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N° 1

Arte urbana e a
(re)construção
do imaginário
da cidade
Sesc | Serviço Social do Comércio
Administração Regional do Sesc no Rio de Janeiro

Interventor
Bruno Breithaupt
DEPARTAMENTO REGIONAL
Diretor
Mauro Lopez Rego
Superintendente de Programas Sociais
Marcos Henrique Rego

PUBLICAÇÃO
Coordenação Editorial
Maria José Motta Gouvêa
Ramon Nunes Mello
Supervisão Editorial
Jane Muniz
Projeto Gráfico
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Diagramação
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Copidesque
Viviane Godoi e Eduardo Frota
Estagiário de Produção Editorial
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cida-


de. – Rio de Janeiro : Sesc, Administração Regional
no Rio de Janeiro, 2015.
108 p. ; 17 cm. – (Caderno diverso, n. 1).
ISBN 978-85-85791-06-3.
1. Arte urbana. 2. Arte e sociedade. 3. Cultura
popular – Brasil. I. Sesc. Administração Regional no
Rio de Janeiro.
CDD 700
N° 1

Arte urbana e a
(re)construção
do imaginário
da cidade

Sesc | Serviço Social do Comércio


Administração Regional do Sesc no Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2015
N° 1

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 6

PALESTRA DE ABERTURA Amir Haddad 8

ENSAIOS literatura como ferramenta de reivenção da cidade


Écio Salles 20
Arte de rua, arte efêmera
Bruno Vianna 28
Arte pública: a cidade como experiência
Paulo Knauss 36
As ruas redefinem o poder
Alexandre Vargas 44
O compartilhamento da cidade
Sérgio Magalhães 50
Remix da cidade: a música urbana dos velhos aos novos tempos
Thiago Vedova 58
Sentidos da vida na cidade
Jailson de Souza e Silva 68
Xxxxxxx
Mauro Lopez Rego 74

PERFIL 88

PROGRAMAÇÃO 94

ESPAÇO PARA O LEITOR 102


INTRODUÇÃO

O imaginário
e a cidade

6 Sesc | Serviço Social do Comércio


A arte urbana reflete a diversidade cultural que transita pelas ruas dos grandes

centros, criando encontros, movimentos e contradições. Um grande caleidoscópio,

no qual as imagens se modificam de acordo com os diferentes itinerários que cor-

tam a cidade. A disputa pelo direito à cidade, acirrada pela inclusão e potência dos

novos atores oriundos de territórios populares, fazem do espaço urbano um palco

de afirmação de identidades urbanas que redefinem e compartilham os espaços

de sociabilidades.

Muros, ruas e praças são os suportes e cenários utilizados por artistas contempo-

râneos que potencializam o diálogo entre as diferentes linguagens, invadem ruido-

samente os espaços públicos, surpreendem os transeuntes e interferem no ritmo da

cidade. Suas obras provocam um intervalo na rotina apressada dos grandes centros,

valorizando o tempo presente e provocando uma reflexão sobre o passado e o futuro

da cidade.

Como um grande remix, a arte urbana recria constantemente o imaginário da cidade.

O encontro Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade, ocorrido na Unidade

Quitandinha, durante o Festival Sesc de Inverno 2014, buscou apreender as novas repre-

sentações e sentidos desencadeados por esse processo contínuo de afirmação e interação

das identidades urbanas.

Com grande satisfação, reunimos nesta publicação diferentes reflexões sobre a cons-

tante construção e reconstrução do imaginário urbano: um movimento contínuo que

traz para a cidade novos sons, imagens, linguagens, arquiteturas e subjetividades.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 7


Amir
Haddad
PALESTRA DE ABERTURA

Hoje conversei sobre muitas coisas, problemas essenciais, questões essenciais da


nossa vida, da vida moderna e da construção de um possível novo mundo, através das
nossas conclusões, das nossas contradições, idiossincrasias, todas essas coisas. Falei: –
Meu Deus, estou com a cabeça que é um monte de entulho! Fiquei vendo aquele cara lá
da arte-pública que vai apagando, apagando... Tenho que dar um jeito para ir apagando,
apagando, e chegar a algum lugar, para limpar um pouco a cabeça porque é muita coisa.
Como posso explicar? Estou com o tempo espremido. Queremos fazer uma pequena
demonstração do nosso trabalho e já está nevando lá fora, meus atores já estão “pneu-
mônicos” esperando. Como vou limpar, e falar o que gostaria, tenho muitas coisas para
comentar sobre tudo o que foi exposto até o momento. Óbvio que tenho. Não faço outra
coisa na vida. Tenho 55 anos de teatro e caminhei sempre em uma única direção. É um
chamado inevitável do qual você não pode escapar. Tenho muita coisa para falar, porque
primeiro fiz tudo, pensei depois. Então, tenho teoria nascida da minha prática. Tenho e
gosto de falar dela. Não gosto de esconder nada. O que sei, não posso calar, como dizia
o Galileu do Brecht. “Eu não posso calar, como um bêbado, como um amante ou como
um traidor”, entende? É perigoso e isso pode levar a vários lugares, mas eu falo... Eu
falo. Tudo que eu sei eu falo, nada eu guardo, tudo eu quero compartilhar. Então, eu
estava nessa, com essa coisa... Como vou fazer, nesse pouco tempo que me resta, com
a cabeça entupida já de tanta informação e querendo tanto esclarecer alguns pontos
do discurso de vocês, coisas que aprendi, que já sei, mas que vocês, pelo seu discurso,
ainda não pensaram, ainda não sabem? Talvez o que eu disser possa ajudar a avançar
o pensamento de vocês todos e eu enrolado nisso tudo... Como enfio isso na cabeça...?
Esse cara veio e lavou a minha cabeça, limpou, me fez descansar... Eu estou feliz aqui e
ninguém vai embora antes da meia-noite!
Já basta fazer o que faço, já basta avançar na direção em que avanço, que me deixa fre-
quentemente muito sozinho longe dos meus pares, mas não me deixa longe do meu povo,
da minha cidade, da população com quem eu convivo há 35 anos. Estou na rua há 35 anos
e costumo dizer que fico mais à vontade de cueca na rua do que em casa, entende?

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Diretor singular no cenário do teatro brasileiro contemporâneo. Dirigiu grupos
alternativos na década de 1970 fundamentando uma linha de trabalho
significativamente pesquisada por essa geração: disposição não convencional da cena;
desconstrução da dramaturgia; utilização aberta dos espaços cênicos; e interação
entre atores e espectadores. Fundador do Grupo Tá na Rua, referência, nacional e
internacional, para a pesquisa, formação e criação no âmbito do teatro de rua.

Tranquilamente, e há muito tempo. Fico sem saber... Ver e ler esse texto maravilhoso...
Está tudo aí. O Aderbal estudou a minha vida, ele me conhece bastante, ele estudou e
fala tudo isso de mim. Estou com a cabeça limpa. Estaria começando de outro jeito se
não tivesse lido o texto dele; me agradou muito, mas ainda fico assim com uma questão:
da hora, do tempo que nós temos, entende? Da necessidade de falar alguma coisa, que
eu sinta vontade de falar e ao mesmo tempo de querer mostrar alguma coisa do meu
trabalho, porque uma coisa é educação sexual e outra é trepar. Eu queria mostrar esse
pacto amoroso que é o teatro, e não dissertar sobre as minhas coisas. Mas tenho sido
condenado ultimamente a ser o porta-voz de muitas ideias, a liderar movimentos, a ter
voz e um discurso, não ficar preso no meu trabalho, mas convocar o mundo com as
minhas ideias, com o que penso, com os avanços que acho que as coisas podem ter, tudo
isso. Me sinto obrigado a fazer isso desde que meu amigo Augusto Boal morreu. Quan-
do ele estava vivo ele falava e eu trabalhava, entende? Então era bom, ele fazia um dis-
curso... Que bom! O Boal está falando. O Boal está falando! E eu ficava ali fazendo meu
teatrinho sem problemas. Depois que ele morreu eu falei: não dá mais, não dá mais, não
tem mais vozes. Não tem mais voz o teatro brasileiro, é medíocre, como ele falou aqui,
é medíocre, está fechado no shopping. Não tem mais nada, a inteligência brasileira é
cada vez mais burra, cada vez mais burra, o país cada vez mais perde contato consigo
mesmo, perde contato com o simbólico, como se falou isso aqui também, entende?
Então, cada vez mais, não tem mais quem fale nada. Com a morte do Boal, desapareceu,
não tem mais uma pessoa, e eu falei: não posso mais me furtar a fazer isso, e tenho
feito, falando as minhas coisas. É claro que eu não vou falar sobre o Teatro do Oprimido.
Não vou botar azeitona na empada dele! Não vou falar do teatro dele, vou falar do meu,
é a minha voz, e é isso que eu falo, mas desde então tenho me transformado quase que
em um teórico, coisa que eu odeio. Mas é preciso pensar, e a minha teoria ela é extrema-
mente ligada à minha prática, não tem um conceito, um pensamento que não tenha
saído da minha observação direta dos fatos e da minha vivência direta dos fatos, porque
ao mesmo tempo estou fazendo teatro seja onde for: na rua, no teatro ou em qualquer

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Amir Haddad

lugar – porque até no teatro dá para fazer teatro, dá, não sou radical nesse ponto, até no
teatro dá para fazer teatro. A maior parte das pessoas não faz. Faz esse “arremedo” que
o Aderbal falou, essa apropriação que se faz da linguagem poderosa e real, muito nova e
muito antiga que é o teatro. Então até no teatro dá para fazer teatro, mas cada gesto meu,
cada movimento, eu estou pensando. Lembro que, na primeira vez que fui fazer teatro
de rua, estava com meu grupo e de repente fiz um gesto (abre os braços) e fiquei estate-
lado... Falei: Santo Deus, já vivi isso, já vivi isso, estou me reconhecendo, não é a primei-
ra vez que faço isso, nem será a última, não sei onde, mas já vivi isso, sei que já vivi isso!
Uma sensação que nunca tinha tido fazendo teatro nas salas fechadas, mas fazendo esse
gesto na rua, abrindo meus braços, o povo ali fora... Gente pobre, gente rica, todo mun-
do, cachorro, polícia, todo mundo ali em volta... Eu já vivi isso! Já vivi isso não só no meu
gesto, já vivi nessa gente que está em volta de mim, nessa plateia heterogênea que se
formou em volta de mim, nessa construção de um novo edifício teatral, que é o cidadão
livre se expressando no meio da praça dizendo à sua maneira o que ele quer dizer paro
o outro e respeitando a inteligência do outro, em nenhum momento tratando nenhum
ser humano na praça como se ele não fosse capaz de entender todas as linguagens, a
melhor das linguagens: a mais direta, a mais viva, a mais perturbadora, a mais transfor-
madora que é essa relação direta que o teatro estabelece com as pessoas. Cheguei a
pensar em trazer um videozinho para publicar também... Vou levar, eu levo uma vari-
nha... Mas não é isso, não vou levar, nunca levei e não vou levar dessa vez. Quando vi que
eles estavam trazendo, eu pensei: poxa me dei mal (risos). Mas não vou levar porque
acredito nessa coisa que só o teatro pode proporcionar, que é o encontro direto entre as
pessoas. Isso é muito novo, porque encontro direto a gente não tem mais, mas é muito
velho, isso é eternamente velho e isso é eternamente novo. Esse contato direto, essa
linguagem é poderosa, você vai para o meio da rua e tem esse contato com a população
e eu ali no meio... Caramba! Eu já vivi isso. Durante anos fiquei com essa sensação... Eu
já vivi isso! Depois comecei a pensar assim: ah, caramba, não é que eu já vivi isso, eu já
vi tanto livro de teatro, eu já vi tantas gravuras dos atores nas ruas, eu já vi tantas coisas
da commedia dell’arte que eu vi esse gesto em algum lugar em alguma gravura... Porque
está cheio nos livros, você olha e tá lá o cara... (abre os braços). É dali que eu vi, fiquei
calmo, já sabia de onde tinha visto; não era mágica. Mas depois (a vida não para), depois
eu fui vendo que era mais que isso: não é que tinha visto em um livro, nem que eu tinha

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vivido, mas era a ancestralidade dessa forma de manifestação dentro de mim. Quando
fiz o gesto, fiz o gesto da minha ancestralidade, era a memória coletiva do ser humano
se manifestando dentro de mim em praça pública da mesma maneira que essa ancestra-
lidade se manifestava na cara de cada expectador que me assistia e que provavelmente
nunca tinha ido ao teatro. E entendi o que eu estava fazendo, entendi o meu gesto; eu
me reconheci ali e eles também me reconheceram. Eu comecei a perceber que isso se
devia à recuperação de uma possibilidade ancestral dentro de mim, dentro de cada um
de nós seres humanos. É possível recuperar essa ancestralidade. Ancestralidade é a pos-
sibilidade de nos colocarmos no mundo de uma maneira contemporânea. A ancestrali-
dade da noção do ser humano, da sua história e da sua continuidade. Então ancestral é
ser contemporâneo. O moderno nasce velho, o moderno não tem ancestralidade, é de
ontem, hoje é moderno, amanhã é pós-moderno e depois de amanhã é “pré e pós-
-moderno”, cada modernidade de Nova York no dia seguinte está velha... São tantas as
novidades! E o que me garantia de ser novo a cada instante e velho o tempo todo era de
repente a descoberta dessa ancestralidade do meu ofício e daquilo que eu faço, e não só
do que eu faço, também de todos os artistas. Todos os artistas quando se manifestam
estão manifestando a sua melhor possibilidade humana, a mais ancestral de todas.
Duvido que aquele cara que pintou o bisonte na caverna estivesse pensando em galeria,
duvido que ele quisesse que alguém fosse lá recortar a parede dele e vender por um
milhão de libras. Não passa pela cabeça dele, como provavelmente não passa pela cabeça
do artista que pinta na rua, ser aproveitado e transformado em uma galeria. Mas não
falta ideologia capaz de matar o cara que quer ser efêmero e não deixar ele ser efêmero...
Por que não? Por que não? Por que não ser efêmero? Por que não deixar as coisas se
acabarem? Elas irão durar se tiverem que durar. Isso é o aprendizado que o teatro dá: não
há nada mais efêmero do que o teatro. Feito, foi embora, acabou! Mas é ancestral; essa
ancestralidade está viva dentro de cada um de nós. Então você pode ser efêmero se esti-
ver trabalhando com sua ancestralidade; se você estiver pintando uma parede no meio
da rua como você pinta um bicho em uma caverna para dizer para os seus que aquele
bicho existe, que você caçou aquele bicho e você se deu ao trabalho de ir lá e fazer aque-
le bicho... É essencial que essa pessoa exista, que pinte o bicho ali e que o deixe ali para
quem quiser, não para vender, para filho da puta nenhum. É para ser compartilhado! É
para ser compartilhado, ele doa, ele doa a quem doer! Ele oferece, ele oferece aquela obra

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Amir Haddad

ali... Eu imagino o homem da caverna indo caçar o bisão para comer e olha aquele
outro lá desenhando: mas esse vagabundo! Todo mundo trabalhando e esse filho da
puta pintando!

E ele é visto como o primeiro vagabundo da sociedade, ele é o primeiro de todos os


vagabundos que somos todos nós, entende? Sou um vagabundo, nós queremos ser vaga-
bundos. Eu sou agora cada vez mais partidário de ideia de que eu não quero ser nada, eu
quero ser um vagabundo, eu quero fazer o meu caminho, eu sou vagabundo que pinta
bisonte na caverna. Eu não quero ser útil, eu não quero botar gravata, eu não quero
trabalhar, eu não quero fazer o que todo mundo faz para ganhar a vida. Eu quero ser
aquele que anuncia outra possibilidade para o ser humano, não quero ficar prisioneiro,
burocrata, submetido e massacrado por um salário, por melhor que ele seja. Quero ser
um vagabundo como estes que pintam as coisas no meio da rua. Quero ser vagabundo
como estes que cantam e dançam no meio da rua, que escolhem a rua como lugar para
se apresentar. Não quero ser aqueles que vão para a rua porque não têm lugar para se
apresentar enquanto não tiver suas chances; não, muita gente é assim. Tem muitos,
muitos que escolhem este lugar para se oferecer publicamente com a ideia de que não
é possível fazer arte e guardar no escaninho esperando o melhor preço. Não é possível
fazer arte para esperar Cristo vir olhar e dizer o que é. Não é possível fazer arte sob a
encomenda do museu de arte moderna de Nova York, não é possível fazer arte dessa
maneira. Não é por aí... Então, aquele que sabe o que está fazendo, está doando. Arte é
obra pública pela própria natureza. Ninguém faz arte para guardar. Quando faço, é para
dar, eu doo. Mas se alguém quiser escrever uma teoria sobre a oferta que fiz, escreva,
mas não me mate, não se apodere de mim, não pegue a minha coisa, não bote em um
museu, não diga que vale um milhão; é uma ofensa à minha liberdade, é uma ofensa à
minha possibilidade de me ofertar publicamente sem cobrar pelo que eu estou fazendo,
oferecer o que eu tenho de melhor para o outro, que é a minha possibilidade criativa
sem nenhuma condição. É doação universal. O artista é um doador universal. Ele não
é um produto do mercado. Estamos doentes por causa do mercado. O setor de arte, as
galerias, os teatros, os artistas, os filmes... Todos, todos com a alma partida. Não falo
sobre seus produtos, falo do artista que produz porque não está mais cumprindo o seu
impulso generoso de ofertar o que ele tem de melhor para o outro, ele está pensando:

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“Vai vender, não vai vender; vou ganhar dinheiro, não vou? O que está usando agora,
qual é a última moda da música? Qual é a ultima moda das artes plásticas? O que vou
fazer? Cara, não faz isso que isso não vende!”
O Vincent van Gogh não vendia, e hoje cobram 120 milhões por um quadro dele.
É um insulto ao van Gogh fazer isso. Principalmente se soubermos que ele quase mor-
reu de fome, teve uma vida fodida, filha da puta, ficou louco, doente, cortou a orelha...
E ninguém deu nenhum valor para os quadros dele. Hoje, qualquer milionário compra
um quadro dele por 120 milhões, isso tem a ver alguma coisa? E quem me garante que
se a Mona Lisa ficasse na rua não iam tê-la pintado, hoje todo mundo faz brincadeira
com a Mona Lisa. E a gente fala: é sagrado, é sagrado! Ele pintou o retratinho dele; ele
tinha os mecenas que tratavam dele; ela não pintou para o mercado, não pintou para
vender. Tinha um cara que falava: esse cara trabalha bem, você quer continuar ofertan-
do? Continue, eu te dou um dinheirinho. No Renascimento, havia esses homens que
proporcionavam aos artistas a possibilidade deles poderem exercer sua arte livremente
e poderem oferecer seu talento, sua criatividade para todos, para as igrejas, os palácios,
as ruas etc. As cidades italianas são obras de arte maravilhosas oferecidas à população.
Como também as cidades gregas, cidades harmônicas oferecidas à população e para
bens da população. Imagina se o Fídias, escultor da Grécia Antiga, vai procurar uma
galeria para expor as obras dele em Atenas. Ele oferece obra pública, arte pública; a arte
é pública sempre.
A gente precisa parar de pensar a arte como atividade privada e entender que ela,
como atividade privada, é um momento da história do homem, esse momento difícil por
que estamos passando, esse momento do fim, da decadência de uma civilização que não
tem mais nenhum valor, não sabe mais onde se segurar. A arte privatizada é um aspecto
desse momento da nossa civilização, mas ela é pública pela própria natureza.
A arte nunca foi propriedade de nenhuma pessoa, de nenhum grupo, nenhum artis-
ta se sente assim.
A coisa de que mais gosto é que faço o espetáculo com meu grupo e amanhã não
faço mais. Não vou repetir aquele cadáver maquiado todo dia, eu faço isso no teatro, pois
preciso ganhar dinheiro, mas quando trabalho com o meu grupo, e todos eles sabem
disso, nós somos cada vez uma coisa. Se der tempo, se a neve deixar, deixar vocês verem
qualquer coisinha que possa ter a gente aqui hoje, vocês vão ver, única e exclusivamente

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Amir Haddad

hoje, vocês vão ver o que aconteceu aqui hoje. Eu vou ter medo do efêmero? O efême-
ro é que me salva, que me deixa livre, que me faz ficar longe. Imagina se eu ficasse
pensando: “Esse espetáculo, eu podia ter feito um vídeo desse espetáculo, colocado na
internet, e quem sabe 5 milhões de pessoas vissem e amanhã eu iria à TV Record dar
uma entrevista!” ou “Quando a Globo me disser: Olhe, 5 milhões de pessoas viram o que
você fez!” Eu vou lá? Não quero, não posso, não tenho tempo. Não poderei ir lá; vou estar
fazendo outras coisas, não quero.
Nós somos doadores universais, somos todos sangue tipo O. Nós, artistas, somos
sangue O. E para quem não sabe, na história do sangue humano, os primórdios eram
portadores do sangue O. Então, a primeira leva da humanidade era de doação univer-
sal. Depois, com a diversificação de agricultura, gado, alimentação, moradia e forma de
viver, o sangue foi se transformando. Mas na nossa origem cada um de nós seres huma-
nos somos doadores universais. A nossa natureza é de compartilhamento; se alguém
precisar do meu sangue, vou oferecê-lo sem sacríficio, pois o que estou fazendo aqui
é me oferecer para vocês de carne, alma e sangue. Estou botando tudo que está aqui
– entende? –, então, nós somos doadores universais. A arte pública é a possibilidade
de você recuperar para o cidadão sua melhor natureza, sua melhor possibilidade, sua
generosidade maior, a possibilidade de você produzir coisas que são para bem e uso
coletivo, sem que isso seja transformado em uma mercadoria, em uma civilização a que
só alguns tenham acesso e outros, não. Como posso produzir uma coisa que acho que
é maravilhosa, que é importante, que eu queira dizer para os outros e falo: toma! Para
você não, você também não, cadê a grana? Você não vai pagar, não vai ter! Como é que
eu posso fazer uma coisa dessas selecionando meu público através de um preço? Nós
temos que pensar em outro mundo, não podemos pensar no mundo com o pensamento
do mundo em que vivemos hoje porque este mundo já não existe mais, este mundo
acabou, está indo embora, não vai acabar depois de amanhã, nem vai sair uma matéria
no jornal O Globo, como: “Acabou o mundo!” Não vai! Mas prestem atenção: desde que
Jesus Cristo morreu até Roma se transformar em um império cristão, passaram 300
anos, ou seja, demora a mudar, mas já estamos pelo menos 150 anos mudando, desde
a primeira revolução importante no início do século XIX que o mundo vem mudando.
A partir disso, a gente tem visto cada vez mais a decadência. Quem pode afirmar algum
valor no mundo em que vivemos hoje?; quem pode acreditar neste mundo que estamos

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vivendo, que existe um futuro maravilhoso pela frente para a humanidade? Se a gente
não questionar esses valores, vamos repetir isso. Eu não quero salvar nada, nada, nada!
Eu quero começar, eu como eu faço a construção de uma possibilidade, eu faço a minha,
ele faz a dele na rua; ele faz a dele na música, mas temos que pensar que estamos
construindo outro mundo e não estamos ganhando o mercado para os nossos artistas,
os artistas pobres e os artistas ricos. Eu conversava com o José Junior e dizia:
– Junior, o que você quer? Pretende formar com o pessoal do morro mão de obra
para o mercado?
Ele respondia: – É!
Eu disse: – Tô fora! Se você quiser formar cidadãos conscientes, capazes de modificar
o mundo, estarei junto com você, mas se você quiser criar mão de obra de mercado,
empregar essas pessoas para esses patrões que existem aí, meu amigo, tô fora.
Foi assim que parei de trabalhar e saí, porque não quero, vejo a arte como ativi-
dade pública.
Estou há 35 anos na rua fazendo este trabalho. Acredito que a arte é pública. Ela fica
privada em determinado momento, principalmente com o avanço da sociedade bur-
guesa e com o pensamento mercantilista pragmático que a Reforma Protestante trouxe
para o mundo (“Rico não entra no céu”). Depois, Lutero falou que rico entra no céu.
Ele era rico. Mas Calvino era podre de rico. Eram burgueses ricos. Mas só porque eles
tinham dinheiro, iam entrar no céu? Não era justo. Prosperidade é quem tem dinheiro,
porque foi abençoado por Deus. Isso é uma verdade que formou a sociedade cristã. A
civilização cristã capitalista ocidental trabalhou em cima dessa manifestação protestante.
Os Estados Unidos são o maior país protestante do mundo e são os que mais lidam com
dinheiro. Então a coisa vai por aí... É muita coisa que me vai saindo, aos montes.
O pensamento protestante modificou totalmente essa história: o que não tinha
valor, passou a ter valor. Assim, quem tinha dinheiro não estava de maneira alguma
pecando, pelo contrário, Deus olhava para quem tinha dinheiro, isso está na origem
da criação do capitalismo. A ética cristã, a ética protestante, criam a possibilidade
do capitalismo e a estética da burguesia também. Eu abandono essa ideia, mas foi
esse pensamento da sociedade capitalista, trazido pelo pensamento burguês através do
protestantismo, que criou esse mundo em que estamos vivendo, e é um mundo que já

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Amir Haddad

está acabando, você pode olhar isso em qualquer pregação evangélica: o cara sai com
o carro dele: foi Deus que me deu! Dizendo que se Deus me deu é porque eu mere-
ço; se eu mereço, sou abençoado por Deus. Se você é um fodido, você não merece.
Você é fodido porque você não é olhado por Deus; se você quiser que Deus olhe para
você, junte dinheiro, ganhe dinheiro, faça um curso aqui de empresariado comigo. As
igrejas preparam pequenos capitalistas muito melhor que o Sebrae! Ensinam a eles o
que fazer, tem reuniões lá, seminários com empresários, seminários com produtores
disso, produtores daquilo, tudo ali em nome de Deus mexendo no dinheiro. “In God,
we trust”, é isso que está escrito no dólar americano. Então, nós vivemos esse tempo,
esse mundo, essa sociedade... Eu não quero colaborar com nada desses tempos, nada,
nada, nada! Se for possível criar outra coisa, é por aí que eu vou. Eu falo isso: – Não
quero colaborar. Antes eu falava com culpa, era uma loucura, mas depois de 55 anos de
teatro, 35 anos de teatro na rua, eu já sei que é possível um mundo novo, já sei que é
possível ser de outro jeito, que é possível sobreviver, sei que eu não preciso me vender
de jeito nenhum, já sei que posso ir para praça diante de uma plateia heterogênea,
abrir meus braços e encontrar com eles a minha ancestralidade, desde o homem da
caverna que pintou, até agora, até daqui a pouco, até depois de amanhã, sem passar
por isso que a gente está passando agora: esse momento histórico de uma civilização
em decadência – muitas outras civilizações vieram e foram embora, por que a nossa
vai durar? Por que é essa que vai ser eterna? Não vai... Está no fim... Preparem-se
para o fim do mundo. Fico apocalíptico às vezes! (risos). Eu falo mal dos evangélicos.
Fico igual a um pastor. Mas é um mundo em finalização. Vai melhorar por onde?
Vai melhorar a economia americana e o mundo vai ficar bom? A Europa vai sair do
buraco e vai ficar tudo bem? Como vai ser? O Brasil vai conseguir se superar e ficará
tudo bem? Se tem uma possibilidade de criação de um mundo novo, somos nós aqui,
trabalhando com a nossa diversidade étnica, com a nossa diversidade cultural, com
as nossas possibilidades enormes que temos como país, pelo nosso tamanho, pelo
tamanho da nossa população, pela variedade cultural que nós temos. Então é possível
entrar em contato com a população, com a plateia no teatro de rua e é possível recu-
perar a esperança – é o único jeito. Se eu não tivesse esperança, não falava “Eu não
quero salvar nada”. Eu não quero salvar nada do que está aí porque eu tenho esperança
de que eu posso colaborar para um mundo melhor, e posso, e posso, e colaboro, e

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colaboro. E faço e me sinto bem, e me mantenho inteiro e vivo, ereto, possível de
qualquer encontro amoroso em qualquer ponto da cidade onde vivo. Enquanto houver
esperança existe caminho, e eu acredito, como alguém aqui falou, eu acredito no ser
humano! Apesar dessa multidão de escrotos que existe, eu acredito no ser humano,
acredito que seja possível. Por isso, enquanto houver esperança, vou trabalhar a minha
esperança e não vou levar “isso” sequer do mundo que eu estou deixando para trás.
Porque, se eu levar “isso”, vai contaminar. Ideologia é a coisa mais perigosa que existe
no mundo, come a nossa alma e a gente acha que está sendo livre, mas está só afir-
mando valores de dominação ideológica, repetindo padrões, repetindo moda, repetin-
do tendências e não está se deixando escoar livremente. Assim, enquanto houver um
artista que pinte um bisonte na caverna, haverá esperança. Se a esperança é a última
que morre, o artista público será o penúltimo. Se ele morrer, acabou! O mundo ficará
por conta do judiciário, dos executivos, dos financistas, dos religiosos... Aí acabou.
Mas enquanto houver a possibilidade da gente estar aqui discutindo a questão das
artes públicas, do encontro com outro cidadão, da construção de um novo mundo, de
uma possível civilização totalmente diferente dessa, a gente tem que ir tratando. Nós
estamos propondo a recuperação do sentimento público, que é uma coisa que vai na
contramão das tendências do mundo em que nós estamos vivendo, que é a privatiza-
ção excessiva em todos os sentidos. A vida pública está privatizada. Quando a gente
começa a ir para rua, eu tenho certeza que é um movimento histórico porque nós não
aguentamos tanta privatização, nós não somos feitos pra viver nisso, nós precisamos
ir pra rua porque precisamos respirar. Esse movimento é grande e não para. Em 1980
havia três grupos de teatro de rua no Brasil, hoje tem mais de 700, é uma coisa que
não para de crescer. O Alexandre estava contando: ele abriu inscrições para o festival
de arte de teatro de rua em Porto Alegre e teve 300 inscrições. Não para, aumenta, é
uma peste, é uma peste, prestem atenção. É a peste saneadora, é a peste que vem pra
salvar, é a peste que vem liberar a gente, é a Arte Pública. Não para de crescer e não é
porque dá dinheiro, porque não dá. Dá pro cara que “cortou a parede” e vendeu. Mas
o artista quando pintou lá não estava nem pensando nisso. Então não dá dinheiro, não
dá fama, de jeito nenhum. Essa fama que o Aderbal falou aí é porque eu fiz teatro de
palco durante 25 anos, então me garantiu um certo prestígio, porque se fosse só na
rua, nem o Aderbal iria me conhecer.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 17


Amir Haddad

É tão essencial para cada um de nós e nós sabemos disso, as suas crianças lá sabem
disso, entende? Cada um de nós sabe que isso é importante. Como é que esse grupo vai
crescer se eu ficar medindo? Esse pode, esse não pode, esse paga, esse não paga... Aí a
gente fica fazendo projeto.
Vivemos com o nosso lado mais criativo, mais transformador, mais generoso, que
é o lado artístico, só que a arte é pública, não é pra ganhar dinheiro, ganha-se dinheiro
porque esse é o mundo onde nós vivemos, mas é feio ganhar dinheiro com a arte, você
pode arranjar outras maneiras. Eu gosto muito se eu fizer minha arte... Ninguém me
manda fazer nada e falam: “opa, toma esse dinheiro aqui”, eu adoro. Como o artista
público, alguém falou aí, que passa o seu chapéu. Agora, eu não vou fazer só pra ganhar
dinheiro, mas se cai um dinheiro no meu chapéu é claro que eu quero, eu não sei o
que seria hoje o “chapéu” na mão do governo, não sei qual seria o chapéu do artista
público, eu não sei quem seria o mecenas do artista público. Que Doge, que Conde, que
Visconde? Que nobre italiano iria patrocinar a arte pública no Brasil hoje? Mas é uma
atividade que não pode ser ignorada, e o poder público ignora, eles não têm um concei-
to de Arte Pública. Todas as políticas são políticas para o mundo privado da produção
artística, não é para a produção pública, não é para o ato generoso da entrega. O poder
público ignora a arte pública porque o poder público trabalha para a iniciativa privada.
Não existe um pensamento público, aberto, generoso. Não existe nenhum sentimento
litúrgico da sociedade que nos permita termos juntos uma manifestação que nos faça
engrandecer a todos. Liturgia é uma palavra grega formada de duas palavras que signifi-
ca: “obra pública feita por particular” e que acabou avançando por dentro da organização
religiosa, dentro do rito católico e se transformou em liturgia. É um bem público, uma
obra pública feita para todos. Por isso, se você participa de um movimento litúrgico,
um movimento religioso qualquer que te eleve, você está participando de uma liturgia.
Aquilo é para todos!

18 Sesc | Serviço Social do Comércio


Escritor, autor de Poesia revoltada
(um estudo sobre a cultura hip-hop
no Brasil), coautor de História e
Memória de Vigário Geral, ambos
da editora Aeroplano, e curador
da coleção Tramas Urbanas, dessa
mesma editora. É um dos criadores
e organizadores da Festa Literária
das Periferias (FLUPP), encontro
internacional de literatura criado
no Rio de Janeiro em 2012 e
realizado em favelas cariocas.

Écio
Salles

ENSAIO

A literatura
como
ferramenta de
reinvenção
da cidade
20 Sesc | Serviço Social do Comércio
Écio Salles
Periferia
Nossos plurais são tão singulares
É nóis!!!
Binho
O mundo das fronteiras
Uma cidade de leitores não é, necessariamente, uma cidade melhor. O mesmo vale-
ria para o país ou o mundo. E quando afirmo isso não me refiro a supostos conteúdos.
Não tem a ver com o que se lê ou deixa de ler. Tem a ver com o porquê da questão.
Acredito que a leitura possa ser transformadora, positivamente transformadora por-
que, na minha adolescência, a descoberta desse universo me possibilitou ver além das
cercas que separam quintais, além dos obstáculos estabelecidos pela condição social,
pela história familiar e por todo o resto. Não importou tanto, àquela época, o que eu lia
– tudo começou com uma paixão inexplicável pelos livros da fase realista de Machado de
Assis; depois, passou por Agatha Christie, pelos livros das séries Vagalume e Para Gostar
de Ler, chegou a Graciliano e, então, não encontrou mais limites.
Tampouco importava como eu lia, se li direito ou não esses autores. O importante
é que lia porque queria tocar novos mundos, além daquele que, de certa forma, me
oprimia e limitava. E me sentir, quem sabe, capaz de inventar outros.
Nasci e me criei no bairro de Olaria, zona da Leopoldina, no subúrbio da cidade do Rio
de Janeiro. A casa onde vivi boa parte do tempo ficava, como dizíamos, no pé do morro.
Em minha infância e juventude (décadas de 1970 e 1980), a presença do tráfico já pairava
sobre a cidade, como um espectro. Mais tarde, o morro em cujo pé estava assentada a
casa de meus pais ganhou uma nova dimensão: o morro do Alemão (que na verdade era
apenas uma de um conjunto de 16 comunidades) agora era conhecido como o Complexo
do Alemão. Ainda hoje um conjunto expressivo de estigmas e violências afeta essa loca-
lidade, com consequências quase sempre danosas, especialmente para os moradores.
Comecei a circular bem cedo – jovem curioso apresentando-se à cidade e sendo apre-
sentado a ela. O sistema de transporte no bairro não era tão ruim, facilitando o acesso
ao Centro e a trechos da Zona Sul. O problema era a volta, sobretudo tarde da noite ou

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 21


ENSAIO: A literatura como ferramenta de reinvenção da cidade na madrugada. Nessas ocasiões, via-me obrigado a reservar alguma grana para voltar de
táxi. Essas viagens de volta para casa me marcaram profundamente.
Com incômoda frequência os taxistas faziam comentários pouco generosos com o
lugar, não raro acompanhados de expressões preconceituosas. Às vezes, recusavam-se
a seguir caminho quando indicava a saída 6 da Linha Amarela, que vai desembocar
nas ruas do entorno do Complexo. A apreensão, quando não o mais completo terror,
era visível no rosto do motorista quando passávamos nas ruas de frente para algumas
comunidades conhecidas: Nova Brasília, Grota, Morro do Adeus. Nessas ocasiões, já
sabia que seria quase inevitável ouvir a frase “olha, isso aqui é sinistro”. Perdi a conta de
quantos debates acalorados mantive com taxistas nessas ocasiões.
Essa experiência fortaleceu em mim uma percepção que outros aspectos de nossa
organização social viriam reforçar. A cidade, apesar de sua alma encantadora, é cheia de
armadilhas e interdições. Muitas delas têm a ver diretamente com recortes sociais, raciais,
de gênero, etários e geográficos, entre outros. Com o agravamento da questão da violência
urbana nos últimos anos, esses recortes desdobraram-se em visões dicotômicas, limitadas
e limitadoras sobre a cidade – “cidade partida”, “favela e asfalto”, “lado A e lado B”. Por isso
os problemas colocados à circulação, especialmente a circulação dos jovens.
Um filósofo bem interessante, chamado Sandro Mezzadra,1 pode contribuir para a
discussão. Ele propõe distinguir os conceitos de fronteira e de confim. O primeiro desig-
naria um espaço de transição, contato e reconhecimento do outro. O segundo consistiria
em uma divisão intransponível, que dividiria os territórios e atuaria no sentido de fechar
e proteger espaços políticos, sociais e simbólicos previamente consolidados. Não é casual
a proximidade semântica entre essa acepção de confim e a noção de confinamento.
Vivemos, então, entre dois mundos possíveis.
Um é bem conhecido nosso. O mundo do confim explica parte do desenho do Rio
de Janeiro – e de muitas outras cidades no Brasil – hoje. Vemos como a violência divide
a cidade não em dois, mas em diversos blocos que não se comunicam ou, quando o
fazem, baseiam-se no conflito, na hostilidade. Essa lógica abrange tanto as ações do
Estado contra parte da população (operações da polícia em favelas, por exemplo), quanto
os conflitos entre territórios diferentes da cidade.
O outro, o mundo das fronteiras, é aquele em que a cidade encontra seus pontos de
cerzimento (para usar a poética expressão de Adair Rocha), de contato entre os diferen-
tes. Isso é relevante, porque permite que a radicalização da democracia na cidade se dê
não na tolerância à diferença, mas no seu efetivo reconhecimento. Parte dos problemas
1
MEZZADRA, Sandro. Derecho de fuga. Migraciones, ciudadania y globalización. Madri: Traficantes de sueños, 2005.

22 Sesc | Serviço Social do Comércio


da festejada diversidade brasileira é, de certa forma, o fato de ela ter buscado se funda-

Écio Salles
mentar no apagamento das diferenças. Por esse motivo os repetidos casos de racismo
(que não se limitam apenas ao futebol) ainda assombram nosso imaginário.
Com isso, em vez do surrado discurso do “somos todos iguais” (que tem sua contra-
partida na anedota “mas alguns são mais iguais que outros”), talvez seja o caso de pensar
o “fronteiriço” como o entendimento de que “somos todos diferentes” e – não apesar
disso, mas por isso mesmo – podemos viver juntos, partilhar o que há de comum e (re)
construir a cidade, esta cidade.

Uma história só versus infinitas histórias


Chimamanda Adichie, uma escritora nigeriana radicada nos Estados Unidos, alerta
em suas palestras para o que denomina “os perigos de uma única história”. Ela fala de
um momento em que só acessava um tipo de história, quase sempre de origem europeia,
o que a fez acreditar que os livros tinham sempre que tematizar personagens e situações
com as quais ela não poderia se identificar. Isso só mudou quando ela conheceu os livros
de autores africanos. “Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de
chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos-de-cavalo, também podiam
existir na literatura”. Conhecer os escritores africanos salvou-a de ter uma única história. E,
certamente, mais que isso, de saber ou acessar “uma única história”. Reconhecer múltiplas
histórias, portanto, pode nos afastar das visões e gestos preconceituosos, do mundo do con-
fim. E construir fronteiras propícias para a invenção do novo e a celebração dos encontros.
Por isso, Chimamanda acredita, e eu com ela, nas narrativas como forma de trans-
formar o mundo.
É possível à Literatura, ou às práticas literárias, mudar o mundo? Essa é uma tarefa
a que muitos se dedicam. E, no campo da cultura, normalmente se valem de formas de
expressão diversas, como a música, a dança ou o teatro, de ações socioculturais, das mais
variadas atividades micropolíticas. No entanto, a Literatura acabou se tornando o primo
pobre das lutas no mundo.
A Literatura (mas também a música popular, o samba-enredo, o artesanato artís-
tico, o futebol-arte...), afirma Joel Rufino dos Santos, são as únicas histórias do pobre
“porque o institui como sujeito desejante”. Mas, não de modo satisfatório, uma vez
que na literatura culta ele “não passa de figurante, sombra ao fundo, intruso que se
mete na conversa”.2
2
SANTOS, Joel Rufino. Épuras do social – como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 23


ENSAIO: A literatura como ferramenta de reinvenção da cidade No Brasil, a Literatura, assim com maiúscula, tornou-se mais um campo de exclusão
dos pobres do país. No campo das possibilidades de expressão, houve até aqui destaque
para a canção (incluindo o samba, o rap e o funk), a dança de rua, a batucada, a ginga
da capoeira, as artes visuais nos muros das cidades. A palavra escrita era um mundo
fechado. Raramente, encontrava-se uma brecha por onde passava um Solano Trindade,
uma Carolina Maria de Jesus, um Lima Barreto. Entre outros, claro.
Isso mudou drasticamente de uns anos pra cá.
Há um conto, do Italo Calvino, em que uma das personagens, o arquiteto Enrico, faz
este comentário sobre o futuro do urbanismo: “não é do palacete, mas do casebre, cole-
gas, que sairemos para traçar nosso caminho…”. Essa é uma ideia atraente, que ganhou
força em nosso campo, o campo da Cultura, em mais de um aspecto. É possível dizer,
nesse contexto, que os caminhos para que a Literatura (e a música, a dança, o teatro...)
se efetive como uma ferramenta importante para a transformação social e radicalização
democrática serão abertos menos pelas casas-grandes do que pelas senzalas, ou mais
pelas periferias do que pelos centros.
A questão é: não se pode tratar apenas de uma inversão de sinal. Como se o que antes
era apenas privilégio do centro passasse a ser privilégio da periferia. O aprofundamento
democrático exige a multiplicação de uma e de outra, de forma que se anulem as hierar-
quias rígidas e surjam novas forças. Preferencialmente, forças alheias à ideia de centro
e periferia. Se hoje é possível dizer que o centro está em toda parte, é porque a periferia
também está.

O advento da Literatura
Em uma roda de conversa informal (mas com a presença de intelectuais do campo da
Literatura), um dos presentes alegou que, em sua opinião, “não existia mais, nem parece
que virá a existir novamente, uma cidade literária”. Ele talvez pensasse em uma época
em que poetas como Olavo Bilac pontificavam nos cafés do Centro do Rio. E, certamen-
te, ignorava o que se passa nas periferias (e não só nas periferias) de quase todos, senão
todos, os centros urbanos do país.
No fim da década de 1990, na periferia de São Paulo, o Sarau do Binho e o Sarau
da Cooperifa davam os primeiros passos no surgimento de uma cena que se espalha-
ria pelo país inteiro. Hoje, dezenas de saraus povoam as noites das cidades brasileiras,
reunindo uma quantidade incontável de pessoas que “buscam espaço para tornar seus

24 Sesc | Serviço Social do Comércio


versos parte de um coletivo”.3 A literatura – e a poesia, que julgávamos condenada para

Écio Salles
sempre ao ostracismo acadêmico – domina um amplo território, geográfico e afetivo, do
atual contexto cultural brasileiro.
Conta Sérgio Vaz que os poetas presentes nesses saraus são professores, metalúrgi-
cos, donas de casa, taxistas, vigilantes, bancários, desempregados, aposentados, mecâni-
cos, estudantes, jornalistas, advogados…
“Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido a uma peça de teatro,
ou que nunca tinha feito um poema, começou a partir desse instante a se interessar por
arte e cultura”. E agora, continua Sérgio Vaz, “exercem sua cidadania através da poesia”.4
Os saraus se multiplicam em quantidade, variam em qualidade e se diversificam nos
formatos, adaptam-se a diferentes contextos. Ainda em São Paulo, por exemplo, todas
as segundas e quintas-feiras de cada mês acontece o ZAP (Zona Autônoma da Palavra),
encontro de Poetry Slam (ou simplesmente Slam) que reúne dezenas, talvez centenas, de
poetas a cada edição. Slams são encontros em que se realizam performances vocais de
poesia, normalmente em forma de competição. Já o ZAP5 se autodefine como “um espa-
ço dedicado à poesia falada, ágora livre, fresta no tempo onde a diversidade é convidada
de honra e a celebração da palavra, o principal objetivo”.
Já na Bahia, em Salvador, além do tradicional sarau Bem Black, no Pelourinho, há
o Sarau da Onça,6 cuja motivação inicial é muito significativa em relação a tudo o que
falamos até o momento: “fazer frente ao aumento dos índices de violência contra os
jovens negros do bairro de Sussuarana”.
No Rio de Janeiro, há saraus como Uma noite na Taverna, em São Gonçalo; Poesia
de Esquina, na Cidade de Deus; Donana, em São João de Meriti; Corujão da Poesia, em
São Gonçalo e no Leblon; Sarau do Vidigal, da Rocinha, de Manguinhos... São tantos que
cometerei a injustiça de não citar todos. O importante é que, citados ou não, eles ajudam
a redesenhar um mapa do Rio de Janeiro que tem sido, desde o início, configurado para a
segregação. Nesse passo, inscrevem-se em um processo recorrente que negros e pobres,
também desde o início, têm efetivado: o de produzir constantemente narrativas criativas
de contestação e não permitir a consolidação de uma história única sobre a cidade. O
que produz uma tensão permanente, capaz de inventar fronteiras, muitas vezes sobre os
escombros das políticas de confinamento. Essa tensão, talvez, seja uma das belezas do Rio.
3
  PADIAL, Diane de O. In Binho (culpado). Sarau do Binho. São Paulo: Sarau do Binho, 2013.
4
  VAZ, Sérgio. Cooperifa: antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
5
  Ver em www.zapslam.blogspot.com.br.
6
  Ver em www.saraudaonca.wordpress.com.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 25


ENSAIO: A literatura como ferramenta de reinvenção da cidade A literatura como ferramenta de reinvenção da cidade
Quando a FLUPP (Festa Literária das Periferias) surgiu, a ideia era criar um espaço
de fruição, compartilhamento e reflexão focado na literatura. Tornar a literatura uma
linguagem acessível, instigante e provocadora de novas interações. Para mim (como já
disse antes) e para meu sócio, a FLUPP deveria ser um ambiente para ampliar as opor-
tunidades que ambos tivemos, a de entrar na vida pela rota da palavra criativa.
Como dissemos na apresentação de um dos livros com textos produzidos pela FLUPP:
em um país em que a Literatura primeiro foi empenhada, depois encarada como missão
e ainda ocupou o “entrelugar” na ordem do discurso, ela não poderia jamais ser para
poucos, para os raros. A possibilidade de um Brasil literário, embora tenha avançado em
vários aspectos – aumento da produção de livros, crescimento e incremento das biblio-
tecas públicas, criação de políticas específicas para o setor etc. –, ainda enfrenta alguns
problemas. Um deles seria, supostamente, a falta de leitores; outro, o entendimento da
literatura como linguagem reservada a certas elites culturais.
Por isso, a FLUPP é mais do que um evento literário. Quando criamos a FLUPP
Pensa – um projeto de formação de leitores e autores, com circulação literária pelo ter-
ritório –, queríamos questionar esse lugar-comum. Achávamos que havia numerosos e
interessantes leitores, e também autores, nas periferias do Rio. Faltava encontrá-los e
criar um ambiente favorável para a convivência, a fruição e a produção criativa.
Nos três anos de existência do projeto, algumas histórias – além de nos emocionar e
incentivar – demonstram o acerto daquela intuição. No grupo de pessoas que compunha
essas primeiras gerações participantes do processo, havia uma diversidade que é – nas
palavras de Jailson de Souza e Silva,7 durante a edição do evento na Maré – a cara do
Brasil. Homens e mulheres, de diferentes orientações sexuais, múltiplos e variados tons
de pele e texturas de cabelo, faixa etária de 12 aos 50 anos, e ainda a diversidade regional
da metrópole: de Nova Iguaçu a São Gonçalo, da Rocinha à Cidade de Deus, do Borel ao
Batan; havia pessoas de todos os lugares, um conhecendo o lugar do outro. Uma troca
permanente e produtiva.
No percurso da FLUPP Pensa pelo Rio de Janeiro de Lima Barreto, notamos ainda
outro público para a Literatura: jovem e predominantemente de pele escura, como per-
cebeu o escritor Teju Cole, um nigeriano radicado em Nova York que chegou ao Brasil
como uma das estrelas da FLIP e participou de uma das atividades no Cantagalo. Há
vários pontos em comum entre esse público e a Geração Prouni, uma das políticas de
inclusão em universidades públicas mais impactantes das últimas décadas.
7
  Coordenador do Observatório de Favelas, ONG que foi parceira da FLUPP nessa ocasião.

26 Sesc | Serviço Social do Comércio


Uma das obsessões de muitos artistas, escritores inclusive, ao longo da história é a

Écio Salles
de “falar pelos que não falam”. Dar voz àqueles que, supostamente, não poderiam “falar
por si” porque seriam impedidos ou limitados pela condição social, cultural, geográfica.
Bem, certamente uma das grandes novidades dos últimos anos é que, cada vez mais, os
habitantes das periferias (geográficas ou discursivas) encontram meios de falar por si. A
proliferação dos saraus e experiências congêneres, as inúmeras ações literárias (como a
FLUPP) espalhadas pelo país, a publicação crescente de autores “das margens” parecem
demonstrá-lo de maneira inequívoca. As inúmeras e variadas manifestações da cultura
popular (o jongo, o maracatu, o rap, o funk, o tecnobrega...) já vinham desempenhando
esse papel ao longo da história. Atualmente, o campo literário se alargou de maneira
ainda não devidamente avaliada para abrigar um contingente enorme de pessoas que
recusam os lugares demarcados da subalternidade.
Essas pessoas constituem, ou podem constituir, esse campo do fronteiriço na cidade.
Afinal, são elas que promovem as articulações – constroem as pontes – que tornarão
viáveis as perspectivas de travessia, de contato, de diálogo. Um diálogo que terá de ser
qualificado no percurso, porque ao mesmo tempo em que se dialoga também se mede
forças. No final, apesar das contradições, ele traz à luz sinais “de um discurso que é dife-
rente – outras formas de vida, outras tradições de representação”.8 Se essa diferença será
capaz de mudar o mundo é difícil dizer, mas, desde já, compõe uma força constituinte
de um novo tempo cuja marca é a criatividade e a imprevisibilidade.

  HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org.: SOVIK, Liv. Belo Horizonte: UFMG; Brasília:
8

Unesco, 2003.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 27


Trabalha com esculturas audiovisuais,
cinema e suportes móveis. É formado
em cinema e tem mestrado em artes
interativas pelo ITP/NYU. Fazia
filmes lineares narrativos de ficção
em formatos curto e longo, até
realizar o longa interativo Ressaca;
recebeu diversos prêmios, desde o
Melhor Filme no Festival de Gramado
até o prêmio Vida, da Telefônica
espanhola. Ultimamente tem se
dedicado também a organizar e a
participar de encontros, residências
e produções colaborativas.

Bruno
Vianna

ENSAIO

Arte de
rua, arte
efêmera

28 Sesc | Serviço Social do Comércio


Bruno Vianna
Se uma viajante em um dia de verão de Londres se cansa de ver quadros famosos,
tesouros arqueológicos roubados e monumentos da realeza, há possibilidade de ela se
lembrar que a cidade também é a principal tela de uma das maiores referências da arte
urbana: Banksy. Munida talvez de uma bicicleta, orientada por blogs sobre graffiti, com
a ajuda de mapas online, ela vai em busca do frisson de encontrar o original, íntegro,
com aura benjaminiana, de um sem-fim de Banksys que já viu à exaustão em sites, redes
sociais, livros.
Mas a tarefa que prometia ser prazerosa vai revelando-se árdua: mesmo com o ende-
reço exato e fotos, o painel parece impossível de ser encontrado. E no meio do jogo de
gato e rato, buscando mais fotos, e, quem sabe, conferindo a street view de alguns anos
atrás, a viajante chega a uma conclusão frustrante: o painel não existe mais. Foi comple-
tamente apagado. O tour segue: em algumas pinturas, ela identifica traços do original,
uma mancha. Outros foram parcialmente vandalizados por pixações e outros danos físi-
cos. Um pensamento lhe atravessa: mas o painel em si já não era o vandalismo?
Decidida a não voltar para sua cidade sem ao menos uma lembrança, a viajante insis-
te. A exploração se estende por dois, três dias, tempo do qual não dispunha. Alguns
painéis, é verdade, estão conservados: geralmente cobertos por um acrílico – que ime-
diatamente se torna uma nova superfície para ser vandalizada – mas uma pequena parte
sobrevive. Frente à decepção de não poder fotografar seus graffiti mais queridos, ela
começa a se conformar em documentar os restos. A metade de uma personagem, um
acrílico pixado, a textura sutil de uma parede que revela um fantasma. E ela começa
a criar um afeto por essas fotos. Elas escapam do óbvio da documentação, tem uma
estética arqueológica e, mais importante: uma história por trás, uma narrativa de criação
e destruição. Elementos que os graffiti intactos não contêm, necessariamente.
Mas se os graffiti que sofrem a ação do tempo (e das ruas) são mais interessantes
do que os intactos, qual o sentido de se preservar essas obras? Hoje em dia, grandes
esforços são feitos com o objetivo de se criar gigantescos acervos de arte. As cinematecas
estão repletas de rolos de mídias mortas. Colecionadores gastam o dinheiro obtido no
mercado financeiro montando gigantescas galerias privadas. Instituições como o MAR
(Museu de Arte do Rio) estimulam artistas a doarem obras para sua reserva técnica

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 29


ENSAIO: Arte de rua, arte efêmera acenando com o canto da imortalidade – trabalhos conservados para a posteridade, sar-
cófagos repousando em pirâmides desenhadas no grasshopper. Mas será que o desapego
da arte urbana – se é que ele existe – não seria mais apropriado e inovador para um
planeta que já não se pode dar ao luxo de mais acumulação?

Apegos e territorialismos
O fato de um artista trabalhar no espaço público não o torna necessariamente desa-
pegado das suas obras. Nas entrevistas realizadas para a documentação da realização dos
murais de arte urbana para o Festival Sesc de Inverno, os artistas trouxeram informa-
ções interessantes. Se por um lado existe uma incerteza sobre o destino de obras feitas
em espaço público, por outro, muitos grafiteiros vão buscar algum tipo de controle sobre
os trabalhos prontos.
A proteção a uma pintura, por exemplo, passa pela noção de “respeito”. O “respeito”
dentro dessa comunidade se traduz em trabalhos de artistas que não sejam pixados ou
cobertos por outro trabalho. O respeito se mistura com a ideia de território: um muralista
tem prioridade sobre um muro que ele “descobriu”, ou obteve permissão para pintar. A
partir daí, pintar por cima dessa obra será um sinal de desrespeito ao “dono” do mural, ou
donos – muitas vezes os painéis são obras coletivas. E o que torna o artista mais respeitado?
Diversos fatores: o reconhecimento da qualidade do seu trabalho por seus pares, a ousadia
de pintar painéis em lugares mais controlados, o pertencimento a um bairro, rua ou região,
e outros elementos subjetivos. A punição a alguém que interfere no mural de um colega
é a própria desaprovação dos seus pares – esse violador passaria a ser menos respeitado.

Direito de imagem, direito ao espaço público


Outra forma de territorialismo que surge nas narrativas diz respeito ao direito às
imagens geradas. As áreas com graffiti atraentes tornam-se potenciais cenários para
atividades econômicas, como o turismo e o comércio de rua. Mas a atividade mais polê-
mica é a do audiovisual, que se apropria cenograficamente das obras de rua em video-
clipes, comerciais, longas e novelas. “Ora”, diz o pintor, “se um diretor de arte escolheu
determinada locação com um mural é porque sabe que minha obra vai enriquecer o
filme”. E, portanto, esse filme teria que pagar direitos de imagem para o grafiteiro, como
pagaria a uma pintora de cenário, uma musicista, uma escritora.
Apesar de diretores e produtores poderem argumentar que o uso das imagens no
audiovisual serve como difusão do artista e não necessitaria ser ressarcida, a demanda
dos criadores de imagens é plenamente prevista nas leis de direito autoral do Brasil e na

30 Sesc | Serviço Social do Comércio


maior parte do mundo. Portanto, quando isso acontece e os artistas acionam a produção

Bruno Vianna
do filme, eles geralmente conseguem algum tipo de compensação.
O que é curioso no caso do graffiti é que, enquanto a imagem do painel é amplamente
protegida, o original não é. Afinal, a não ser em um caso muito peculiar, em que o artista
pinte o muro da própria casa, a obra está sendo realizada em propriedade de outrem.
O dono do muro – seja ele o poder público ou um proprietário particular – tem todo
direito, por exemplo, de destruir a parede e a obra junto. Em uma inversão que só a arte
de rua pode provocar, o original está entregue à própria sorte, enquanto as cópias têm
proteção legal. Extrapolando essa noção para a arte clássica, como poderíamos imaginar
um mundo em que originais de Picasso podem ser rasgados livremente, enquanto suas
reproduções estão protegidas?

Publicidade e contracultura
Essa contradição vem exatamente da opção pelo uso do espaço público. Ao pintar
em um lugar que não tem a privacidade de um museu ou a propriedade privada de uma
galeria o artista está promovendo uma ocupação desse lugar, que pode ser vista como
melhoria, para os que admiram a arte de rua, ou como imposição, para os que preferem
uma cidade asséptica.
Essa atitude não é muito diferente do uso do campo visual urbano pela publicidade.
A indústria da propaganda vê o urbano como mídia, com preços, alcance e linguagem
próprias – e como uma mina de globos oculares para ser explorada. E nem todos os
donos desses olhos estão confortáveis com essa exploração. A onipresença da publici-
dade incomoda: o argumento de que basta não olhar já não funciona, já que é cada vez
mais difícil ter na cidade um campo visual limpo de anúncios. Não é à toa que São Paulo,
mesmo numa administração conservadora, optou por proibir a publicidade externa.
Esse argumento da inescapabilidade do olhar frente à imposição publicitária é o que
nos leva de volta ao artista inglês. “Uma carta de Banksy” é um manifesto publicado no
livro Cut it Out, de 2004, em que ele sugere que toda publicidade ou elemento visual no
espaço público é um convite não só à depredação, mas também ao reuso intencional – à
modificação, à subversão, ao roubo. “Você não deve nada às empresas. [...] Elas é que lhe
devem. Elas reorganizaram o mundo para colocar-se na sua frente. Nunca pediram sua
permissão. Nem pense em pedir a delas.”
É o mesmo argumento que pode ser usado quando o direito a fotografar ou filmar
elementos públicos urbanos como fachadas de prédios ou monumentos é limitado. Foi
usado, recentemente, no caso em que a Arquidiocese do Rio vetou uma filmagem do

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 31


ENSAIO: Arte de rua, arte efêmera Cristo Redentor – que é administrado pela Fundação Roberto Marinho – por considerá-la
pouco respeitosa. Mas ele é usado (por que não?) quando optamos por enquadrar um
painel de graffiti em um filme sem autorização do autor.
Como é recorrente dentro das ações e trabalhos de Banksy, o texto que é um estímulo
à expropriação dos outdoors vem a ser, ele próprio, um roubo: foi copiado em sua maior
parte de um post do blogueiro Sean Tejaratchi, publicado no calor das manifestações de
Seattle em 1999.

Plágio e originalidade, roubo e propriedade, lucro e compartilhamento


Banksy não é de fato um exemplo de originalidade. Muitas das suas obras “derivam”
dos trabalhos dos primeiros grafiteiros de renome, como o francês Blek Le Rat – que
pintava ratos muito parecidos com os que Banksy veio a usar depois quase como marca
registrada. Frente a essas acusações, ele costuma responder ironicamente – dizendo,
por exemplo, que ele copia os ratos de fato, mas que os copia de outro grafiteiro. Mas
se é fato que Banksy não só copia como lucra em cima desses plágios, por outro lado
ele não parece se importar quando é vítima disso, lembrando de certa forma o caso da
banda de rock Led Zeppelin, outros plagiadores de distinção. O que Banksy parece estar
construindo é uma narrativa que sustenta uma proposta ética de criação onde nada é ori-
ginal, tudo é derivado de, inspirado por, criado a partir de outra obra; obras que sofrem
mutações e contaminações o tempo todo.
Antes de prosseguir com esse argumento, convêm algumas palavras de esclareci-
mento sobre esse artista e os métodos que utiliza em prol do anonimato e da própria
autossustentação. Banksy optou por trabalhar sob o manto do oculto – talvez não exista o
Banksy, ou exista a Banksy ou mesmo os Banksys. No entanto, a personagem se comunica
com o público por uma variedade de canais, geralmente online: no site pestcontroloffice.com
(escritório de controle de pragas) são tiradas dúvidas sobre a autenticidade ou não de suas
obras urbanas ou gravuras; o site picturesonwalls.com vendia suas gravuras a preços popu-
lares, até que o site passou a não dar conta dos acessos quando uma oferta de venda era
anunciada. Uma empresa o representa quando organiza uma exposição de seus trabalhos
ou publica um livro. Na sua primeira grande exposição, em Bristol, a diretora do museu
da cidade, sem poder confirmar a identidade do intermediário, declarou ter ficado em
dúvida se a negociação seria ou não um trote até o dia da montagem. Mas jamais, através
de nenhum desses canais, ele tentou coibir a difusão ou cópia de suas obras.
O caso é que, além da ubíqua comercialização de suas imagens em camisetas, livros
e postais, os seus originais têm valor estratosférico. E, sendo assim, um painel que é

32 Sesc | Serviço Social do Comércio


pintado na rua passa a ser um objeto de desejo no mercado da arte, e está sujeito à

Bruno Vianna
remoção com fins de revenda – o que vem acontecendo com mais e mais frequência.
Em 2013, Banksy pintou o painel Slave Labour em um bairro de Londres. A vizinhança
comemorou o “presente” e chegou a colocar um acrílico para proteção da obra. Mas em
uma manhã os moradores levaram um susto: a parte do muro com a pintura simples-
mente desapareceu. E ressurgiu, em poucos dias, do outro lado do Atlântico: estava à
venda em um leilão de arte em Miami. Protestos e queixas formais tiveram o efeito de
intimidar a casa de leilões e o painel foi retirado do lote. Seis meses depois, porém, ele
foi arrematado, em Londres mesmo, por 1,5 milhão de dólares.
Parece surpreendente, mas é uma prática cada vez mais comum. Apesar de a identi-
dade do vendedor ter sido mantida em sigilo, é bastante óbvio que se tratava do dono da
loja em cujo muro o estêncil foi feito. Nenhuma queixa policial foi feita. Em outro caso
conhecido, da pintura Ball Play, o dono do muro assumiu ter encomendado a extração e
revenda do painel. Negociantes de arte chegam a afirmar que ao remover a peça estarão
garantindo sua preservação. Mas que sentido tem preservar a arte de rua dentro dos
muros de um colecionador e não sobre os muros das ruas?

Coautorias, involuntárias ou não


Além dos ladrões de paredes, a arte urbana está sujeita a diversas outras intempé-
ries. São comuns os casos em que a conservação urbana apaga obras importantes, por
engano ou de propósito. E como já comentamos, a própria comunidade grafiteira se
encarrega de interferir nos trabalhos de seus pares. São conhecidas as provocações de
Banksy para outros artistas, e as ricas narrativas que as disputas geram.
King Robbo, um dos grafiteiros pioneiros de Londres, teve um de seus painéis mais
antigos parcialmente coberto por um estêncil de Banksy, que ilustrava um funcionário
tapando a obra; Robbo responde modificando o desenho para fazer parecer que o pintor
de Banksy estava desenhando sua assinatura, “King Robbo”, que no lance seguinte foi
modificado para se tornar “Fucking Robbo”. O diálogo prosseguiu por alguns meses
até que Robbo sofreu um acidente e entrou em coma, o que levou Banksy a prestar
homenagem ao adversário com a reprodução do painel original adicionado de uma vela
em formato de spray. Seguidores de Robbo passaram então a “dialogar” com obras de
Banksy por toda cidade, adicionando comentários, modificações, ironias; e restauraram
o painel original de Robbo em todo o seu esplendor.
Outra briga comprada por Banksy foi contra (ou com) o misterioso “Fantasma Cinza”,
de Nova Orleans, que havia tomado para si a missão de tapar todas as pixações da cidade,

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 33


ENSAIO: Arte de rua, arte efêmera depois da passagem do furacão Katrina, usando um rolo de pintura com tinta cinza. Banksy
cria pequenas narrativas em diversas dessas “manchas cinzas” deixadas pelo fantasma. E
depois que ele deixou a cidade essas mesmas interferências foram devidamente tapadas
de cinza – com a exceção de um estêncil que os moradores protegeram com acrílico.
Banksy não se manifesta sobre a remoção de seus painéis e de graffiti apagados por
engano ou por colegas. Pelo contrário, parece que escolhe locais e provoca parceiros de
modo que seus trabalhos estejam ainda mais sujeitos a interferências.

Buscando uma conclusão


A arte de rua é uma arte viva, dinâmica: o ato de pintar o espaço público é só o
começo de um processo criativo coletivo, orgânico, de duração indeterminada. Ao inter-
romper esse processo, conservando a peça em um museu ou uma coleção, decreta-se
a morte da obra: daí em diante ela sobrevive em um estado de suspensão, como um
animal empalhado nos museus antigos de história natural.
A cidade e a natureza evoluem em camadas que vão se sobrepondo: a vontade de
congelar esse processo é um desejo humano de controle sobre o tempo. Em 2007, Miles
de Viviendas, uma ocupação histórica na cidade de Barcelona, retratada no documentário
Squat – a cidade é nossa, teve seu despejo decretado pela justiça. O coletivo já havia
sido desalojado e o prédio reocupado algumas vezes: dessa vez, para evitar novas ações,
o prédio seria demolido pela Prefeitura. Ciente disso, o coletivo resolveu deixar uma
última mensagem para a cidade e preparou uma ação nos dias anteriores à demolição.
E na medida em que o edifício é derrubado, a pintura é desvelada: em cada parede dos
cômodos adjacentes ao prédio ao lado foi escrito, em letras colossais, o pedaço de um
poema. Ao final da demolição, a obra estava pronta: um texto que ocupava os cinco
andares de uma empena na rua principal do bairro da Barceloneta.
Mas em se tratando de arte urbana, o gesto não iria parar ali: a cidade recobriu a
empena com chapas de metal, que, por sua vez, recebeu imediatamente uma nova
camada de pixações e desenhos. Assim, a viajante que flanar pelo Passeio Joan de Borbo
talvez repare uma pequena praça sem muitos atrativos. Espreitando a praça, as cha-
pas de metal da parede alta, aparentemente vazia, não revelam sua verdadeira função:
ocultar e conservar um documento de uma história esquecida da cidade. Quem sabe
uma arqueóloga vai encontrar esse texto daqui a 50 anos e tentar decifrá-lo? Ou, mui-
to provavelmente, essa empena também será demolida e caberá simplesmente a uma
menina ter a curiosidade, despertada por aquelas letras gigantes, sem sentido aparente,
nos pedaços dos tijolos de uma parede quebrada, a dar significado ao texto.

34 Sesc | Serviço Social do Comércio


Doutor em História, professor
do Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense,
diretor-geral do Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro e presidente
do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio de Janeiro. É membro do
Comitê Brasileiro de História da
Arte, membro fundador do Grupo de
Estudos de Arte Pública - América
Latina e pesquisador do campo da
história da arte pública com trabalhos
publicados sobre escultura pública
e graffiti urbano contemporâneo.

Paulo
Knauss

ENSAIO

Arte pública:
a cidade
como
experiência

36 Sesc | Serviço Social do Comércio


Paulo Knauss
Direito à cidade
A presença da arte nas cidades é uma das fontes de afirmação do pensamento urbano
moderno? Essa interrogação conduziu à discussão sobre a forma urbana e os sentidos de
sua beleza, condicionando o papel que a arte deveria assumir nas cidades. Nesse sentido,
o embelezamento urbano se tornou uma medida do desenvolvimento das cidades e legi-
timou, por exemplo, as grandes reformas urbanas que marcaram a história dos centros
metropolitanos ocidentais a partir da segunda metade do século XIX.
O compromisso com a beleza instaurou um urbanismo com foco na forma, capaz de
traduzir a racionalidade das atividades e dos fluxos urbanos. Pode-se dizer que a opção
por uma abordagem formal das cidades levou à afirmação da hierarquia entre os espaços
urbanos, seus eixos e ponto de atração central, definindo a cidade moderna pelo controle
da ordem espacial. Essa vertente de tratamento das cidades tendeu a uma abordagem
estática do espaço urbano, favorecendo a promoção das expressões artísticas de caráter
permanente, como a arquitetura e a escultura monumental.
Por outro lado, é preciso reconhecer que o discurso da ordem urbana, com fre-
quência, andou junto com a promoção da exclusão social, atingindo grupos sociais e
algumas atividades urbanas tradicionais que dependiam da liberdade de circulação e
ocupação de espaços urbanos não necessariamente especializados para o seu desen-
volvimento. Nesse caso, a promoção da ordem urbana se identificou com formas de
repressão, definindo as cidades como espaços de constrangimento e opressão. Assim,
o controle social das cidades afetou diretamente artistas de rua, como artesãos nôma-
des, poesia e teatro de rua, bem como o circo, entre outras manifestações artísticas
efêmeras. A defesa da ordem urbana tendeu a discriminar os artistas de rua e margi-
nalizar sua atividade criativa, identificando-a como ação perturbadora da ordem e foco
da ação repressiva.
Além disso, é preciso reconhecer também que o projeto de cidade ordenada e dis-
ciplinada nunca abarcou completamente a vida urbana e que o processo de exclusão
social é uma resposta à dificuldade de submeter o dinamismo citadino e as formas
variadas de apropriação do espaço pela diversidade dos sujeitos sociais urbanos que
territorializam sua vivência do espaço da cidade. Diante do controle social do espaço

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 37


ENSAIO: Arte pública: a cidade como experiência e da ação repressiva, a presença da arte nas cidades muitas vezes pode ser igualmente
caracterizada como uma forma de resistência social.
O estudo da arte nas cidades permite, então, sublinhar que o projeto de cidade
ordenada se confundiu muitas vezes com uma cidade submetida a um controle social
excludente, incapaz de admitir a cidade como espaço de manifestação livre. Contudo, a
arte fornece igualmente uma medida para identificar como as cidades também são capa-
zes de se definir como território de liberdade. Desse modo, a redefinição dos sentidos
da ordem urbana se traduz na preparação das cidades como espaço criativo e de livre
manifestação, capaz de acolher diversas expressões artísticas, permanentes ou efêmeras,
fixas ou nômades, com circuitos sociais locais ou internacionais, dando visibilidade à
pluralidade da cidade.
Portanto, analisar a presença da arte nas cidades pode servir para distinguir diferen-
tes projetos de cidade e colocar em interrogação os sentidos de ordem e de liberdade na
cidade. Dito de outro modo, por meio do sentido da arte na cidade é possível identificar
lógicas de poder urbano. Em consequência, o debate sobre a presença da arte nas cida-
des se relaciona com a discussão e a luta pelo direito à cidade.

Percursos artísticos
O Rio de Janeiro foi o lugar da primeira escultura pública do Brasil, a estátua eques-
tre de D. Pedro I, imperador do Brasil, inaugurada em 1862, ainda hoje conhecida como
a peça de maior quantidade de bronze das Américas. Sua escala traduz sua intenção
monumental e sua composição, seu caráter narrativo, marcando a paisagem urbana.
Desde então, muita coisa mudou nas cidades, mas elas não abandonaram seus monu-
mentos cívicos. Ao lado desse tipo de expressão, porém, as formas da escultura pública
se multiplicaram.
A escultura contemporânea não deixa de marcar a diversidade da arte pública na
cidade do Rio de Janeiro. Na década de 1990, a Prefeitura da Cidade renovou a presença
da escultura urbana no Rio de Janeiro. Artistas conhecidos, como Franz Weissmann,
Amílcar de Castro, José Resende, Ivens Machado, Ascânio MMM e Waltércio Caldas
povoaram a cidade com suas criações. O feio e o bonito são tematizados pela opção
por materiais inesperados, desgastados ou comuns, ou de tinta de automóvel. O caráter
abstrato e a tradição construtiva dessas obras chamam atenção ao se combinar à compo-
sição de formas cinéticas ou incompletas, o que faz com que a obra assuma um volume
indefinido e nunca se apresente com uma forma absoluta diante do olhar. A cada novo
ângulo elas ganham uma nova solução plástica, ora abrindo, ora fechando suas partes

38 Sesc | Serviço Social do Comércio


umas sobre as outras, ou se contorcendo. A mesma forma, por exemplo, pode parecer

Paulo Knauss
um triângulo ou um trapézio, dependendo do ângulo da visão. Desse modo, ao não defi-
nirem claramente suas formas, as esculturas contemporâneas do Rio de Janeiro recusam
o poder de centro que os monumentos tradicionais exercem sobre a paisagem urbana.
Esse aspecto se reforça pela ausência de pedestal, o que deixa uma sugestão de peça
perdida na cidade sem implantação própria, aproximando-as dos passantes das ruas.
Outra característica que completa essas esculturas é a marca do vazio. Elas tematizam
antes o vazio da composição do que o cheio, permitindo que o espaço urbano complete
a obra ao se inserir numa moldura escultórica. Fragmentos são emoldurados em formas
tortas, ressaltando o momento passageiro em que o olhar capta determinado aspecto da
cidade em movimento. Para isso é preciso conviver com a obra e querer se aproximar
da sua construção conceitual. Por meio dessas molduras da cidade, as pessoas podem
descobrir um ângulo próprio pleno de intimidade, quase impossível de ser repetido,
como um buraco da fechadura que serve para descobrir a cidade.
De outro lado, na atualidade, chamam muita atenção as soluções coloquiais, que no
Rio de Janeiro, por exemplo, começaram a surgir a partir da década de 1990. São estátuas
que representam personagens de destaque na história da vida cultural da cidade, espe-
cialmente da música e das letras. Pode-se dizer que o gênero teve estreia em 1996, com a
inauguração da estátua de Noel Rosa (autoria de Joás Pereira Passos), junto a uma mesa
de bar com garrafa de cerveja, em atitude do cotidiano urbano comum. A consagração
do gênero veio no ano de 2002, com a inauguração da estátua do poeta Carlos Drum-
mond de Andrade, sentado em banco do calçadão da praia de Copacabana (de autoria do
escultor Léo Santana). Os exemplos se multiplicaram, variando entre representações em
situações prosaicas da vida urbana ou soluções caricaturais. O gênero caricatural é uma
variação da vertente escultórica coloquial, e pode ser exemplificado na cidade do Rio de
Janeiro pela obra de Otto Dumovich, autor das imagens dos músicos Pixinguinha (1996),
Braguinha (2004) e, mais recentemente, de Dorival Caymmi (2009). A marca dessas
peças é a intimidade que o passante tem com elas, passando a mão, sentando-se ao lado,
ou por provocar a alegria do riso. A ausência de pedestal ou a existência de um pequeno
soco e a situação prosaica quebram a distância entre a obra e o expectador.
Esse sentido coloquial reaparece de modo muito diferente em intervenções artísticas
efêmeras nas cidades. No Rio de Janeiro, a galeria Gentil Carioca, nos últimos anos,
definiu um espaço de arte pública especial no Centro da cidade, ao aproveitar a empena
lateral do seu edifício na Rua Gonçalves Ledo.1 Todo ano, há produções específicas que
1
  Ver em http://www.agentilcarioca.com.br/Eventos/parede.html

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 39


ENSAIO: Arte pública: a cidade como experiência caracterizam a empena como espaço de curadoria de arte e que compõe o programa da
Parede Gentil. Organizada desde 2005, a cada ano a galeria convida artistas para realizar
sua criação de arte pública aproveitando a parede por quatro meses. As soluções variam
entre recursos pictóricos diversos, como a parede de estreia de Julia Czeko, de marca
mais tipográfica, ou soluções mais próximas do graffiti urbano contemporâneo como a
criação de Marinho, de 2006, ou soluções mais ilusionistas como a de Carlos Garaicoa,
de 2008. Ao lado disso, os artistas Botner e Pedro apresentaram Parede Cega, que consis-
tiu na instalação de um visor eletrônico com um olho que mira a rua a partir da empena
sem vãos do edifício, normalmente definida como cega. Mas o que mais chama atenção
da cidade são as criações que podem ser definidas como instalações vivas, como a obra
Abrigo, de Dane Mitchell, do ano de 2006, que consistia numa barraca de camping
montada na parede habitada a noite pelo artista. Na mesma linha, em 2007, Guga Fer-
raz apresentou uma instalação denominada Cidade dormitório, composta de beliches de
ferro montados uns sobre os outros, por cuja escada qualquer um podia subir e ocupar
seu lugar. Em 2009, o espaço foi ocupado, ainda, pela criação de Tiago Primo e Gabriel
Primo, denominada A Parede, que consistiu em recriar as áreas domésticas, com camas,
mesa, televisão, sofá etc. Os próprios artistas ocuparam durante semanas os móveis
pendurados na parede pública, escutando música, comendo, dormindo, repetindo atos
cotidianos comuns acompanhados pelos olhos de todos que passavam pela rua. O que
chama atenção nessas intervenções é a proposta de caracterizar o cotidiano urbano não
pela rotina e o indistinto da multidão, mas pela novidade ao criar situações inesperadas
e peculiares.
O graffiti urbano contemporâneo tem presença forte no universo da arte pública das
cidades dos nossos dias. As formas de inscrição livre sem tratamento de suporte se
multiplicam tanto quanto seus artistas, que se escondem por codinomes. Os traços e
técnicas variam entre o uso da lata de tinta em aerosol (spray), o pincel, o serigrafite e o
lambe-lambe, entre a ênfase na mancha ou na linha, entre o destaque policromático e as
soluções de cor única ou matizes da mesma cor, entre a figuração e a abstração, entre a
solução logotípica (tag) e as composições figurativas. No Rio de Janeiro, porém, o grau
de organização de grupo de grafiteiros, chamados de crews, garante a visibilidade das
tendências do movimento.
O caráter engajado na vida da cidade de muitas crews atribui ao graffiti a condição
de instrumento de reconstrução de laços sociais de uma cidade carregada de marcas da
violência urbana. Por sua vez, em seus diferentes formatos, o graffiti urbano contem-
porâneo subverte os suportes da cidade, transformando pilares de viadutos em murais,

40 Sesc | Serviço Social do Comércio


empenas cegas em paredes de formas e cores visíveis, muros que separam em painéis

Paulo Knauss
de comunicação, mobiliário e equipamentos urbanos em telas pictóricas. Instalando-se
onde ninguém espera e fazendo arte onde não há expectativa alguma, a ordem artística
do graffiti inspira o movimento que se opera nas cidades, procurando subverter também
a ordem urbana baseada na violência.
O graffiti ganhou assim territórios, multiplicando-se nas favelas do Rio de Janeiro,
por exemplo.2 Esse potencial criativo e de intervenção social contagiou iniciativas de
artistas estrangeiros em favelas em torno de arte comunitária, aproximando o graffiti e
a pintura mural. Uma das intervenções pictóricas urbanas de grande escala é a obra da
dupla holandesa Jeroen Koolhaas and Dre Urhahn, que coordena o projeto Favelapain-
ting, desenvolvido na favela da Vila Cruzeiro.3 Em 2007, a dupla de artistas inaugurou
uma imensa pintura mural sob a fachada de várias casas que margeiam o campo de fute-
bol do bairro popular. Sob um imenso fundo azul, o que se vê é o retrato de um menino
soltando pipa (ou papagaio). Em 2008, eles fizeram do espaço que contorna uma das
escadas de acesso ao morro um imenso rio com peixes pintados, animando o ambiente
inóspito, dando um sentido lúdico à área urbana onde se realizou a intervenção artística.
Novamente, o que se opera são os sentidos do belo na cidade na intenção de promover a
transformação social da cidade.
Cada uma dessas soluções artísticas promove leituras distintas da cidade.
A escultura monumental promove uma leitura única do espaço urbano, caracterizan-
do a cidade como território do civismo, promovendo uma experiência da cidade como
corpo social unívoco e integrado, como se a existência de cada cidadão se realizasse
plenamente no plano coletivo. Junto com isso, a solução monumental sacraliza a pre-
sença da arte nas cidades também como valor abrangente e estabelecido. Tanto o sentido
integrado do corpo social da cidade quanto o significado da arte é questionado pelas
experiências propostas por outras soluções artísticas na cidade. As formas aleatórias da
escultura contemporânea provocam uma compreensão variada das relações entre a obra
artística com o espaço em que está implantada desafiando o próprio estatuto da obra de
arte. Propõe a constituição de um olhar íntimo para as cidades, e sem crença especial
na cidade como conjunto, e aposta nas suas dobras e contradições, mas que provoca a
interação do passante com seu derredor que, por admiração ou rejeição, é desafiado a
lidar com as obras de arte no seu trajeto urbano. Por sua vez, a escultura coloquial que
2
  Um bom registro desse trabalho se verifica em publicações como o livro Tinta no morro (Rio de Janeiro,
Casa de Arte da Mangueira, 2004), que apresenta um projeto de encontro de grupos de grafiteiros no morro da
Mangueira, acompanhados pelos alunos da oficina de fotografia da Casa de Arte da Mangueira, mobilizando a
juventude local.
3
  Ver em www.favelapainting.com

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 41


ENSAIO: Arte pública: a cidade como experiência provoca o riso nas cidades ou de sentido tátil, ao alcance das mãos e da convivência em
escala humana, também é vivenciada individualmente, mas de um modo que contagia
os outros despertando o convívio próximo com a obra de arte. A interação ganha tons
sensíveis da saudade de alguém que nem sempre se sabe quem é exatamente, mas que
seguramente está ausente, despertando a lembrança lírica de outros tempos da cidade.
De outro lado, a surpresa na cidade é explorada pelas intervenções artísticas efêmeras
que, ao final, revelam a intenção de instalar o inusitado alegrando a cidade, mas de
modo inquietante. As criações intervencionistas, como o graffiti urbano contemporâneo,
também subvertem os suportes da cidade e afirmam o compromisso mais ou menos
engajado da arte com o debate e a polêmica social, promovendo a reflexão sobre o terri-
tório urbano e seus sujeitos sociais. Portanto, o campo da arte nas cidades é diversificado
e muitas vezes coloca as suas diferentes soluções e formas de expressão em disputa.

Arte pública
A arte pública marca as cidades contemporâneas. Sua marca não é apenas acontecer
nas ruas e praças, mas promover um território de convivência de diferenças, de encontro
da diversidade, que afirma o espaço público como terreno compartilhado. Assim, nota-se
que nem toda arte no espaço urbano ou arte urbana necessariamente define a cidade
como espaço público, o que define o caráter da arte pública, propriamente dito. Uma
bela escultura no jardim de um prédio que se projeta sobre o espaço urbano não define a
cidade como construção coletiva e compartilhada, ou bem público. Por isso, a arte públi-
ca pode ser até desinteressada, mas é própria dela a capacidade de tocar o cidadão como
sujeito que atua na cidade e se apropria dos significados do espaço urbano, demarcando
os territórios de possibilidades urbanas. Em torno da noção de arte pública se reconhece
que as expressões artísticas vivenciadas no espaço público constroem sentidos sobre a
cidade que mobilizam afetos, sentimentos e atitudes, pois cada sujeito urbano se desco-
bre a partir da descoberta da cidade promovida pela manifestação artística e reconhece
a multiplicidade de sujeitos da cidade. A arte pública provoca e conduz à consciência da
experiência urbana.
Diversas manifestações artísticas se sobrepõem e concorrem nos espaços das cidades.
No campo das artes visuais, se em outros tempos as esculturas monumentais de caráter
cívico reinavam na paisagem urbana, nos dias de hoje essas obras tradicionais convivem
com outras expressões, caracterizando um terreno diversificado que afirma um universo
de arte nas ruas. A partir do acervo de obras de arte nas ruas e bairros da cidade do Rio de
Janeiro pode-se caracterizar essa diversidade contemporânea da arte pública.

42 Sesc | Serviço Social do Comércio


A presença da arte nas cidades permite identificar diversas leituras da cidade que

Paulo Knauss
se inscrevem no espaço urbano e no tempo da metrópole. Cada uma das expressões
artísticas provoca olhares sobre a cidade, evidenciando a manifestação de sujeitos sociais
urbanos e multiplicando as diversas percepções da cena urbana. O que a arte pública
contemporânea apresenta é a possibilidade de fazer com que o espaço e o tempo da
cidade sejam animados pela provocação do olhar e de significados plurais. Assim,
pode-se dizer que a criação artística dá vida às cidades e que a arte pública define a
cidade como experiência.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 43


Ator, diretor, empreendedor cultural,
diretor artístico e coordenador-geral
do Festival Internacional de Teatro
de Rua de Porto Alegre, fundador do
Centro de Pesquisa do Trabalho do
Ator – CPTA (2003). Na sua formação
teatral destaca-se, além do diretor
teatral Eugenio Barba, os integrantes
do Living Theatre: Judith Malina,
Ilion Troya e Hanon Reznikov; grupo
italiano Teatro Tascabile di Bergamo
e o ator e o diretor Yoshi Oida.

Alexandre
Vargas

ENSAIO

As ruas
redefinem
o poder

Sesc | Serviço Social do Comércio


Alexandre Vargas
Não existe a menor dúvida, a história confirma: as ruas redefinem o poder. O espaço
público tornou-se uma agenda prioritária para as cidades em anos recentes. O Festival
Sesc de Inverno propor um seminário sobre arte urbana e a (re)construção do imaginário
da cidade é sintoma de profunda transformação na sociabilidade brasileira. Essa mudança
se iniciou no século passado, no ano de 1983, na campanha para as “Diretas Já”.
Existe conexão entre espaço público e a democracia? Ou espaço público e regimes
totalitários? Espaços públicos deteriorados são lugares de solidão, conflito e crimina-
lidade? Espaços públicos cuidados são de interação, amizade e desfrute, fundamentos
de uma democracia verdadeiramente cidadã? Nesta década o Brasil vive um momento
de atrito e a dificuldade anunciada é política.
O espaço, a terra no país, sempre foi uma forma segura e fácil de valorizar o patrimô-
nio e manter a dominação. O patrimonialismo em relação à terra, a imensa desigualdade
e a segregação socioespacial são traços comuns das nossas cidades, o mesmo vale para as
metrópoles da América Latina. Podemos mencionar as recentes políticas habitacionais,
que têm aspectos semelhantes. Salvo poucas exceções, essas políticas seguem as deter-
minações dos organismos internacionais. Esses organismos, como o Banco Mundial,
pregam como solução a expansão do crédito e de subsídios para que as famílias acessem
o mercado imobiliário. Isso tem levado, recentemente no Brasil, a uma periferização
sem precedentes em diversas cidades.
Esse é apenas um exemplo na mecânica desse crescimento desenfreado no qual falta
o comprometimento com setores fundamentais, como a educação, a cultura e a saúde.
É necessário pensar não só a estruturação da cidade, mas também a humanização e a
qualidade de vida dos seus habitantes. As especificações das instituições culturais do
nosso país, nesse processo, são fundamentais para responder às particularidades do
nosso desenvolvimento urbano não planejado no aspecto de convivência. As “Artes de
Rua”, em especial o “Teatro de Rua” é um gênero no qual essas instituições podem atuar
de forma mais decisiva para reconstruir o imaginário das cidades. No campo artístico,
entretanto, é preciso trabalhar para criar e fortalecer um senso de comunidade artística.
É necessário pensar e agir de modo mais abrangente e entender que instituições fortes,
profissionais e artistas mais preparados, com maior apoio, beneficiam o todo, e esse

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 45


ENSAIO: As ruas redefinem o poder todo se constitui em uma força que se materializa em grandes avanços para a sociedade.
O desenvolvimento do país vai se consolidar com a expansão da cultura.
Fundamentalmente devido à natureza da estrutura do Estado contemporâneo bra-
sileiro, a cultura tornou-se um dispositivo marcante para a reinvenção dos municípios.
Portanto, para as representações dos novos atores e redes na cena artística e cultural das
cidades, temos que desenvolver o valor cívico da cultura e não apenas o institucional.
Também é necessário ter a clareza de que determinados projetos, iniciativas e ações
não podem ficar reféns do direcionamento mercadológico ou “governadológico”, prática
maldita do corporativismo.
Nesta década começou a ser elaborado o conceito de “Artes Públicas”. Devemos isso
ao teatrólogo Amir Haddad. Uma das argumentações desse conceito é a de que todas as
políticas públicas realizadas no país são feitas para as “Artes Privadas”. Isso significa que
o Estado brasileiro não tem políticas públicas para as artes públicas, ou seja, os governos
são primitivos nesse aspecto. É uma obviedade que para sair dos espaços fechados e se
exercitar no espaço público, é preciso desenvolver políticas públicas para as artes públi-
cas. Pensar em políticas de ocupação dos espaços públicos, de abertura e limpeza das
praças, ver gente nas ruas, é uma forma de afirmar as identidades urbanas, bem como os
poderes locais e as forças comunitárias. Pensar políticas públicas para as Artes Públicas
significa pensar o mundo de outra maneira. Cabe destacar que isso deve ser pensado
pelo Estado e pelas instituições culturais atuantes do nosso país. As cidades precisam se
humanizar e a transformação desses territórios pode acontecer a partir de políticas cul-
turais. É nesse contexto que a reflexão se estabelece para repensar o processo de socia-
bilidade brasileira que se originou em 1983. Ao repensar esse procedimento estaremos
reconstruindo o imaginário das cidades e admitindo outro valor para as nossas vidas.
Os festivais de teatro desenvolvidos no país ocupam as cidades para catalisar e poten-
cializar os territórios. No entanto, é essencial discernir que o Brasil vive um momento de
sociabilidade bem diferente daquele no qual se originaram diversos festivais de teatro no
país. Atualmente, os inúmeros festivais que compõem o circuito do teatro brasileiro são
distintos entre si e conservam características, traços, perfis, negócios, lobbies, modelos de
produção e imagens inflacionadas que forjam uma identidade arduamente construída
ao longo dos anos. Essa trincheira de convicção pode ser um cárcere que ofusca o pensar
contemporâneo sobre os novos caminhos dos festivais de teatro no Brasil. Portanto, como
fugir da acumulação, da experiência que se cristaliza em uma identidade e se converte
involuntariamente em uma limitação? Em que consiste a continuidade dos festivais de
teatro no Brasil para destilar novas imagens, fragrâncias e sabores? Para que algo tenha

46 Sesc | Serviço Social do Comércio


uma história tem que haver uma certa continuidade entre seu passado e seu presente,

Alexandre Vargas
assim a questão nuclear dos festivais é não perder a revolta e redescobrir a curiosidade
intelectual e o desejo de diálogo profissional, sem esquecer que os grandes defensores dos
festivais são os habitantes das cidades.
O crescimento das cidades e a difícil arte das relações entre os homens e os grupos
sociais não são suficientes para adjetivar a dimensão do desafio que temos como socieda-
de. Reunimo-nos em cidades para sobreviver e nela buscamos felicidade e prazer, nossos
impulsos vitais. Por isso, é importante não desaperceber que quem constrói o espaço urbano
é o conjunto de seus cidadãos. As manifestações de junho de 2013, praticamente em todas
as capitais do Brasil, deixaram bem claras as insatisfações dos brasileiros sobre os serviços
públicos ofertados, como o transporte, a saúde, a educação e o sistema político. O povo
brasileiro parece questionar-se: “Como quero viver?”
Em 2009, no Rio Grande do Sul, foi criado o Festival Internacional de Teatro de Rua
de Porto Alegre. A ênfase dada aos espetáculos de rua, e, portanto, gratuitos, reflete
uma deliberada intenção de estimular a relação do cidadão com a cidade, uma vez que,
quando o indivíduo assiste a um espetáculo na rua, ele está também usufruindo de
um espaço público de convívio urbano. Logo, a presença deliberada dos espetáculos
nas ruas, bairros, praças e parques é uma estratégia para o crescimento e regeneração
de riquezas das cidades, pois as insere no contexto de “Cidade Mundo” ao redefinir o
espaço de sociabilidade no urbano.
Os esforços da curadoria do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre
detêm-se na possibilidade de construção de novas subjetivações, pois existe o entendi-
mento de que novos desejos ativam a imaginação cultural da população e instigam as
pessoas a perceber e formular, ou reformular, seus direitos com horizontes poéticos
mais amplos. E isso pode gerar uma reflexão sobre a cidade e sobre a condição de cida-
dão nesse território. Para tanto, o desafio é saber: qual é o lugar físico, geográfico, afetivo
e mental do teatro de rua no Brasil?
A história do teatro de rua no Brasil ainda é subterrânea, muitas vezes sem nome e
sem fama. Em muitos casos é um terreno escuro e turbulento de onde surgem e desa-
parecem valores imprevisíveis e experiências imprevistas. No entanto, é nesse ambiente
que o teatro pode se renovar e transcender. Trata-se de uma transcendência concreta de
superação dos limites que tradicionalmente diferenciam o que é ou não teatro, o que é a
prática artística e a intervenção política ou social.
Quase toda órbita do teatro de rua é marginal em relação aos centros em que pulsa
a vida e o teatro (a cultura) de nosso tempo no Brasil. O teatro de rua leva a marca de

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 47


ENSAIO: As ruas redefinem o poder uma diversidade que pode ter a debilidade de um limite ou a força e a dignidade de
quem se reconhece em minoria, mas é, sobretudo, um modo particular de mover-se no
panorama do teatro que se realiza no país. O teatro de rua é dissidente porque cria uma
distância sem separar-se por completo para evidenciar suas diferenças. Essas diferenças
se tornam fecundas somente se convertidas em inquietações.
A forma do teatro de rua – sua maneira de organizar-se, sua maneira de entrar em
contato com os espectadores e com a realidade social circundante – não se adapta, em
muitos casos, aos modelos teatrais vigentes. Em geral, esse teatro deriva de necessidades
pessoais e do grau de distância dos valores e práticas reconhecidas e consolidadas. A
consistência do teatro de rua reside no grupo vulnerável de pessoas que o compõem.
Esse teatro desaparece com elas, mas move-se se baseando em desenhos independentes.
É interessante observar que o processo de transformação da sociabilidade brasileira
tem provocado uma transformação estética na constituição de alguns grupos de teatro
de rua no Brasil.
O fato é que a realização do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre
vem alterando a relação entre o teatro e a cidade nos últimos anos. Múltiplas e vigoro-
sas propostas de intervenções no espaço público criadas no país podem ser observadas
nos vários âmbitos de atuação dos artistas que integram a programação ao longo das seis
edições. Essa promoção do hábito do encontro entre os agentes teatrais com o cidadão, a
população, vem convocando à reflexão os pensadores das nossas situações política, social,
econômica e cultural. É importante perceber que o processo advindo da relação e das idios-
sincrasias dos artistas com a cidade mantém a reflexão crítica, o olhar atento e a percepção
aguçada sobre o principal objetivo do festival: a cidade como princípio, interlocução e fim.
O caráter transgressor da arte é encarado como meio e como fim, reavivando a con-
vivência com o espaço público comum, tendo a diferença como valor humano, na livre
construção do discurso poético, para que possamos usufruir dessa construção coletiva
que é a vida em sociedade.
Nesse contexto, pode-se afirmar que existe uma modificação efetiva da geografia do
teatro na cidade de Porto Alegre que aponte para o enraizamento dinâmico do teatro
na cidade e para a cidade. Em Porto Alegre existem mais de 600 praças, oito grandes
parques e estamos entre as cidades com a maior área verde do mundo. Estima-se que o
público do Festival Internacional de Teatro de Rua seja algo em torno de 120 mil a 170
mil pessoas. O festival contempla as 17 regiões da cidade e chega a cerca de mais de 30
bairros, periféricos e centrais. A produção do teatro de rua no Rio Grande do Sul cresce
20% por ano e os grupos circulam nos maiores festivais do Brasil. O festival com as suas

48 Sesc | Serviço Social do Comércio


ações, orgânicas e complementares, fomenta a construção de novas relações de trabalho

Alexandre Vargas
e produção, o desenvolvimento de novas técnicas, a criação de novas poéticas e também
a formação de novos públicos, pois estabelece outros vínculos com a população.
A programação do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre repensa as
relações por meio do exercício estético dos artistas participantes entre a população, seja
pelos conteúdos e formas abordados nas obras, seja pelas relações estéticas estabelecidas
no trabalho dos grupos teatrais, seja na interlocução com outros agentes da sociedade.
Portanto, não se trata apenas de proporcionar entretenimento; o desafio é a ampliação
do pensamento.
Com a experiência de seis edições do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto
Alegre, observo a importância do reconhecimento e da valorização dos artistas de rua
como parceiros fundamentais na formação cultural das nossas futuras gerações. As ações
desses grupos, muitas vezes localizadas em lugares difíceis, promovem aproximações,
construções de vínculos e sentidos de pertencimento entre público e manifestações
culturais, nesse caso, o campo das artes cênicas com ênfase no teatro. Com esse espaço
de atuação amplia-se a importância do público como parte integrante e ativa na cadeia
de produção artística e se fortalece a condição do sujeito de cidadão cultural através das
atividades realizadas por esses grupos teatrais. Ao apreciarmos as obras, colocamo-nos
também como coautores cuja sensibilidade e a criatividade possibilitam o diálogo com os
diversos elementos da vida artística desses grupos. Trata-se de um engajamento criativo,
lúdico e imaginário no qual as emoções constroem conexões entre a vida e a realidade
fictícia encenada pelos atores; é algo vivo que se desenrola diante dos nossos olhos.
É possível considerar ruas, praças e parques não só como um lugar de apresentações,
mas também como espaços educativos e afetivos. Uma experiência nova para as crianças
e jovens nas cidades que nunca tiveram a oportunidade de frequentar um ambiente
parecido. Por isso, a partir do momento em que o público sai de casa para ir às ruas há
uma preparação interna e externa para viver o evento cultural. Essa aprendizagem se
aprofunda e se define no momento de apreciação do espetáculo, de uma fala, de uma
demonstração, na qual o público absorve, mesmo que não racionalmente, diretamente,
os conteúdos, temas, histórias e estéticas propostas pelos artistas, assim como toma
consciência de sua percepção e afeto.
Por fim, gostaria de sublinhar a pluralidade do teatro de rua no Brasil. Na realidade
é um valor, pois é o resultado de uma escolha, já que antes mesmo de saberem o que e
como vão produzir, os artistas de teatro de rua são capazes de conservar com dignidade
o sentido da própria revolta através de seu ofício.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 49


Arquiteto e doutor em Urbanismo
e professor da UFRJ. Foi secretário
municipal de Habitação do Rio de
Janeiro (1993-2000), período em
que implantou o Programa Favela-
Bairro em 155 favelas/600.000
habitantes, e foi secretário de Estado
de Projetos Especiais do Estado do
Rio de Janeiro (2001-2002). É autor
de A Cidade na Incerteza: Ruptura e
Contiguidade em Urbanismo e Sobre
a Cidade: Habitação e Democracia no
Rio de Janeiro, entre outros livros.

Sérgio
Magalhães

ENSAIO

O
compartilhamento
da cidade

50 Sesc | Serviço Social do Comércio


Sérgio Magalhães
O tema proposto para esta mesa, “O compartilhamento da cidade”, não poderia ser
mais oportuno. Nosso país já é urbano para mais de 85% de sua população e construiu,
ao longo de poucas décadas, um sistema de cidades de grande magnitude, no qual se
contam 20 metrópoles e duas megacidades – Rio de Janeiro e São Paulo.
Vivemos, também, um período histórico de consolidação da democracia política
no qual expressa-se o desejo majoritário de inserção cidadã plena para o conjunto de
sua população. Esse desejo é parcialmente atendido pelo avanço de políticas sociais de
garantia de renda mínima, o que tem permitido a grandes parcelas de brasileiros o
acesso a bens importantes para o desempenho da vida contemporânea.
Assim, desde a Constituição de 1988, a um ciclo de estabilidade política democrática
sucedeu-se um ciclo de estabilidade econômica, somando-se um ciclo de inserção social
de grande parcela pobre da população.
Encontramo-nos face a um quadro de quase total urbanização de uma sociedade na
qual ainda há, porém, grandes assimetrias na disponibilidade de bens, equipamentos e
serviços públicos, o que tem sustentado desigualdades sociais importantes.
A democracia veio para ficar. É possível estimar que o país deverá investir crescente-
mente nos próximos tempos objetivando reduzir as assimetrias existentes entre cidades
ou entre partes de uma mesma cidade.
No entanto, também é possível estimar que o investimento, por maior que seja, não
alcançará tais objetivos se persistir no caminho da setorização trilhado até o momento.
Em geral, os investimentos se dão em projetos temáticos – moradia, saneamento,
transporte etc. – e têm abstraído suas relações espaciais e urbanísticas. Na cidade, toda
ação tem consequências e, dependendo das escolhas, o investimento pode ser até preju-
dicial ao conjunto.

O princípio da urbanicidade
No monumental estudo que Lewis Mumford fez sobre a história e a cultura da
cidade,1 ele chamou a atenção para uma importante característica da cidade moderna, a
1
Mumford, Lewis. A Cidade na História: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São Paulo: Editora Martins
Fontes Editora, 1982.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 51


ENSAIO: O compartilhamento da cidade especialização de funções. Para o autor, a separação geral das funções e a diversificação
das classes, que levam ao “isolamento”, geram a necessidade oposta, justamente a da
troca das experiências, a da interação. Ele é reiterativo quanto ao papel da cidade como
lugar da diferença e faz a crítica da cidade moderna por sua despreocupação quanto à
qualidade dos espaços urbanos.
Para Mumford, a missão de futuro das cidades é “colocar o homem à vontade em
face de seu ego mais profundo e de seu mundo mais amplo”. E ainda: “A tarefa é unir os
fragmentos dispersos da personalidade humana, transformando homens artificialmente
mutilados – burocratas, especialistas, ‘peritos’, agentes despersonalizados – em seres
humanos completos, reparando os danos que foram causados pela divisão vocacional,
pela segregação social, pelo cultivo exagerado de uma função predileta.”
A razão essencial da cidade é possibilitar a interação social – da troca entre as dife-
renças. A cidade é feita para a disputa, para o conflito, para o alcance das diversidades.
E o espaço público é a expressão dessa essência, o locus do cotejo entre os interesses; o
lugar da política.
Identifico na pintura A batalha entre o Carnaval e a Quaresma, de 1559, de Pieter Brue-
gel, o Velho, uma representação da urbanicidade, essa qualidade essencial do espaço
urbano. A multiplicidade de atividades, de situações, de pessoas com variadas condições
sociais, em processo de inter-relação não programada, pode sugerir uma síntese meta-
fórica da urbanicidade.
Assim, ao discutirmos o tema da construção (ou da reconstrução) do imaginário da
cidade, gostaria de destacar essa razão fundadora das cidades – a qual, contudo, tem sido
em grande medida desconsiderada na cidade contemporânea.

O princípio da construção compartilhada


De algumas décadas para cá, o desejo coletivo de que a cidade seja socialmente inte-
grada, “a cidade para todos”, fortalece-se como perspectiva para reduzir as desigualdades.
Uma de suas exigências é a participação cidadã no cotidiano urbano, entendendo que
a cidade não é apenas uma expressão coletiva, e que sua promoção deve ser responsabi-
lidade de todos, governos e sociedade.
A participação na definição política dos rumos urbanos é exercício de cidadania
que tem ocupado crescente relevância. Aliás, tem sido considerada como um dos pila-
res da construção democrática mais geral – e é uma prática já bastante consolidada em
países desenvolvidos.

52 Sesc | Serviço Social do Comércio


Outra expressão da participação se dá no compartilhamento dos encargos necessá-

Sérgio Magalhães
rios à construção e à manutenção da cidade.
Embora possa parecer óbvia tal necessidade de compartilhamento, é preciso expli-
citá-la porque a nossa legislação urbanística de âmbito federal desde 1979 transferiu
às famílias as responsabilidades de produção das infraestruturas urbanas.2 Por isso,
as periferias construídas nas últimas décadas apresentam grande passivo urbanístico-
-ambiental que é preciso enfrentar como investimento prioritário coletivo.
No âmbito da cidadania, é fundamental que se garanta o acesso à cidade, o que com-
preende a possibilidade de o homem viver nela em consonância com as exigências da
vida moderna, dispondo de um lugar seguro, com água, esgoto, drenagem, acessos,
serviços, transporte adequado, educação, saúde, trabalho e lazer. Contudo, no limiar do
terceiro milênio, esse ainda é um direito fundamental a ser conquistado.
Finalmente, o compartilhamento igualmente pressupõe a permanente atualização
do ambiente construído, em especial do espaço público.
A noção de Cidade compartilhada reconhece que a produção da cidade é própria do
coletivo – portanto dos governos e da sociedade – e se constitui em uma condição para a
construção da cidade democrática e sustentável.
Nesta apresentação, procurarei destacar caminhos percorridos que nos têm levado
ao fortalecimento da cidade como instância coletiva, assim como outros caminhos que
nos levam à anticidade. E, de certo modo, apresentam-se como o não compartilhamento.

Cidade como instância pública


No início do século XX, o Rio de Janeiro promoveu um redesenho de seu espaço
urbano e de representação, fruto simultaneamente (i) do desejo político do país recém-
republicano de se inserir no concerto internacional com expressão de modernidade e
(ii) da descoberta do mar como lugar de prazer.
Ao primeiro fator se deve o retraçado urbanístico do Centro da cidade, com o símbolo
máximo na construção da Avenida Central, lugar síntese da metrópole que se reformava.
Destaco, nesse exemplo, a exuberância do desenho do espaço urbano, tanto pelo dimen-
sionamento da avenida (2,33 km de largura, inéditos na cidade), quanto pela qualificação
2
A legislação brasileira, a partir de 1979, passou a exigir que os novos loteamentos fossem providos
necessariamente de toda a infraestrutura urbana, tais como redes de saneamento, de iluminação pública,
arruamento pavimentado, entre outras. Desse modo, a expansão urbana, em grande parte promovida para as
famílias mais pobres, teve seus custos muito elevados, tornando-os inacessíveis para essa condição de renda.
Assim, os loteamentos legalizados se tornaram muito raros, levando à irregularidade ou à clandestinidade o
parcelamento destinado às famílias pobres nas periferias urbanas.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 53


ENSAIO: O compartilhamento da cidade desse espaço, concebido como unidade projetual e pontuado por importantes edificações
públicas e privadas. A Avenida Central significou o lugar da centralidade política brasileira.
Ao segundo fator, a descoberta do mar, devemos a promoção de um novo modo de
interação social que se torna crescentemente importante – suportado, também, pelo
desenho urbanístico que garantiu, ineditamente, a publicização do acesso à orla.
O Rio reafirmou sua identidade na constituição de uma sociedade valorizadora do
espaço público.
A multiplicidade de interesses para a vivência do espaço público está muito bem
explicitada nesse desenho do arquiteto Orlando Mollica, que faz referências ao bairro
do Catumbi, elaborado por ocasião de movimento popular que defendia a permanência
dos moradores no lugar ante a fúria demolitória do governo do estado, interessado em
“renovar” a Cidade Nova, nos anos 1960-1970. Mollica reproduz as inúmeras atividades
de rua realizadas no local, que vão desde a simples circulação, passando pela apropriação
como lugar de lazer (jogos de bola e de carteado), oficina mecânica e espaço para atuali-
zação das informações, entre outras razões da vida urbana.

Cidade como instância privada


Em oposição ao reconhecimento da cidade como instância pública e lugar da polí-
tica, lugar de interação social, também se desenvolveram – e continuam muito fortes
– alguns elementos constituintes da cidade moderna que exaltam sua produção como
instância privada.
Entre eles destaco os modelos urbanísticos do isolamento monofuncional, como o
condomínio fechado e o shopping center; a produção dos volumes edificados constituí-
dos a partir dos condicionantes dos lotes e abstraindo as relações que venham a estabe-
lecer com o espaço público; e a abstenção do Estado na promoção da infraestrutura e na
prestação dos serviços públicos urbanos.
Condomínio fechado e shopping center servem-se mutuamente e são esteios da
cidade funcionalista extensiva. Associáveis ao modelo urbanístico que resultou da hege-
monia do automóvel, exemplificado no subúrbio típico norte-americano, contrapõem-se
à ideia da cidade como lugar da diversidade e da surpresa. Mas é também pela escala
que estabelecem relação de estranhamento com a cidade existente. Em geral, consti-
tuem enclaves quando construídos em proximidade ou no interior do tecido urbano
– estabelecendo um antidiálogo com a cidade ou uma tentativa de evidenciarem-se em
supremacia à cidade que os acolhe.

54 Sesc | Serviço Social do Comércio


O edifício definido volumetricamente conforme as condições do lote é outra evidên-

Sérgio Magalhães
cia da concepção de cidade como instância privada.
Em grande parte das cidades brasileiras, passou a vigorar a partir da segunda metade
do século XX uma legislação edilícia que está quase exclusivamente referenciada às
dimensões dos terrenos. Segundo a largura e a profundidade do lote, permite-se edi-
ficar sem observar relação com a vizinhança ou com o espaço público. Assim, podem
justapor-se edificações com volumes e alturas muito diferenciados entre si. É claramen-
te um modelo em oposição àquele que define os edifícios a partir da composição do
espaço público, como exemplificado no projeto de Alfred Agache para o Rio de Janeiro
(1927-1930), e nos que conformaram os bairros de Ipanema, Copacabana e Flamengo,
entre outros trechos urbanos.
Uma exacerbação desse modelo que privilegia o interesse do lote em detrimento
do espaço público são as edificações que destinam os primeiros pavimentos a estacio-
namento de automóveis – ignorando, portanto, os desejáveis vínculos de interação do
edifício com a rua. Na prática, apresentam-se como um verdadeiro paroxismo de rejei-
ção à cidade.
Ainda no mesmo diapasão de rejeição, convém lembrar os diversos estágios de
abandono e degradação de bairros inteiros comuns a muitas cidades, não apenas as bra-
sileiras. As áreas centrais costumam ser aquelas preferidas para a “renovação” forçada
pela decadência induzida.
Os centros históricos das principais cidades têm experimentado o esvaziamento
produzido pelo estímulo à construção em áreas novas de expansão urbana, onde as
vantagens imobiliárias são maiores, e para onde o poder público tem destinado ver-
bas crescentes.
Esse modelo de abandono dos centros tem em cidades norte-americanas uma exem-
plificação contundente, nas quais quarteirões são demolidos para dar lugar a áreas de
estacionamento que atendem às novas edificações de grande altura – que reinam sobe-
ranas por sobre o terreno arrasado da antiga cidade.
Finalmente, a abstenção do Estado na promoção da infraestrutura e na prestação
dos serviços públicos – uma das mais injustas características das cidades brasileiras –
reforça a ideia da composição urbana como atribuição de âmbito privado.
Como já dito antes, sem financiamento as famílias foram obrigadas a produzir suas
moradias segundo as possibilidades de sua poupança – em geral muito escassas. Sendo
a imensa maioria constituída por famílias de baixa renda, as cidades brasileiras apre-
sentam um grande passivo ambiental pela ausência de redes adequadas de saneamento

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 55


ENSAIO: O compartilhamento da cidade e de serviços públicos, inclusive o de limpeza urbana. As cidades, então, se constituem
como produto de decisão individual, em especial nas áreas de favelas e loteamentos
irregulares, em um claro retrocesso político se considerarmos que vem do século XIX a
explicitação do conceito de cidade como instância pública.

Assim, em vez de a cidade apresentar um continuum espacial que permita a plena


fruição do espaço coletivo – tal como ocorre nas cidades pré-industriais ou mesmo nas
grandes capitais que conseguiram preservar a identidade de seus espaços públicos, das
quais são exemplos Londres, Paris, Buenos Aires e Nova York-Manhattan –, muitas de
nossas cidades seguiram o caminho da atomização do espaço. Foi dada ênfase ao modelo
baseado no rodoviarismo como estruturador urbano, no qual é o sistema viário o ele-
mento integrador. O espaço público multifuncional e de uso pleno pelo cidadão não é o
organizador da vida urbana – mas a autopista sem calçadas, a estrada, o automóvel, na
sua exaltação do indivíduo.

O desejo à cidade
Contrapondo-se aos modelos que desmerecem a ideia de compartilhamento da cida-
de, pela exaltação da instância privada, reforçam-se movimentos que buscam a valoriza-
ção da cidade existente, a recuperação de áreas centrais, a qualificação do espaço público,
a implantação de meios alternativos de mobilidade, a pressão para que o Estado se faça
presente em todo o território.

Uma das vertentes mais consistentes do urbanismo contemporâneo é a que propug-


na pela contenção do espraiamento das cidades e pelo seu adensamento – não neces-
sariamente com edifícios altos – de modo a permitir a universalização da prestação dos
serviços públicos, uma das exigências da cidade democrática, bem como o melhor e
mais intenso uso do espaço público, o lugar da interação.

Tenho especial apreço por uma modesta residência em bairro pobre do Rio de Janei-
ro, cujo autor (provavelmente seu proprietário) não se inibiu com a proximidade de uma
estrada de grande movimento, a Linha Vermelha, e construiu os quatro pavimentos da
edificação com grandes varandas voltadas para o espaço público.

Leio essa proposta como um interesse de participação na cidade. Ao se opor ao isola-


mento, tão valorado por tantos outros autores, demonstra o desejo de compartilhamento
da vida urbana.

56 Sesc | Serviço Social do Comércio


Concluindo

Sérgio Magalhães
Na construção do imaginário da cidade, o Rio de Janeiro se coloca em posição privile-
giada entre as grandes cidades contemporâneas. Se a sua dinâmica urbana foi capaz de
promover a grande diversidade morfológica, sem hegemonia de nenhum modelo, que
é uma de suas características, também a sua inserção geográfica é peculiar, pontuada
pelos gigantescos ícones montanhosos e pelas águas com os quais convive em simbiose.
Das grandes cidades mundiais, é das poucas – senão a única – em que há referen-
ciais imagéticos que a acompanham desde sua fundação e que lhe dão continuidade de
construção da memória coletiva através das gerações.
Talvez seja essa característica uma das bases mais fortes do compartilhamento que é
comum a todo o carioca: o amor por sua cidade.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 57


Atua na área musical como produtor
e curador. É curador de música do Oi
Futuro de Ipanema, do Espaço Cultural
Sérgio Porto, da Babilônia Feira Hype
e do Teatro Maria Clara Machado. Foi
empresário de vários artistas da nova
cena carioca, concentrando-se na
coordenação de Eventos de Música
como o Dia da Rua e o MPTM.

Thiago
Vedova

ENSAIO

Remix da
cidade: a
música urbana
dos velhos aos
novos tempos

58 Sesc | Serviço Social do Comércio


Thiago Vedova
“Todo artista tem de ir aonde o povo está”
Milton Nascimento e Fernando Brant

Este artigo procura fazer uma reflexão sobre a importância do espaço urbano, das
cidades e da rua como um espaço histórico fundamental para o desenvolvimento da
música e para a democratização e ampliação do seu acesso para as pessoas. O texto está
dividido em duas partes: a primeira faz uma análise um pouco mais histórica da relação
entre a música e a rua, tendo um foco maior no Brasil; e a segunda apresenta novas
possibilidades que viabilizam e democratizam o acesso à música, além de permitir e
facilitar o surgimento e a sobrevivência de novos artistas.

A música, a rua e os músicos de rua


Quando discutimos a relação entre a música e o espaço urbano, podemos verificar o
quanto aquela é permeável e fluida. Sua execução no espaço urbano ora foi permitida,
ora proibida, sempre convivendo com as tensões e discussões relativas ao conflito públi-
co x privado, sobretudo porque a definição clara do limite entre os espaços públicos e
privados perdeu-se em vários momentos ao longo da história.
O espaço público é considerado como espaço de uso comum, de propriedade de
todos. Se entendermos a cidade como local de encontros e relações, o espaço público
apresenta em seu ambiente um papel determinante: é nele que se desenvolvem ativida-
des coletivas, com convívio e trocas entre os grupos diversos que compõem a heterogê-
nea sociedade urbana.
A existência do espaço público, portanto, está relacionada diretamente com a forma-
ção de uma cultura agregadora e compartilhada entre os cidadãos. A rua é considerada
seu espaço por excelência. Sendo o elemento articulador das localidades e da mobilidade,
pode ser considerada a formadora da estrutura urbana e de sua representação; também é
o local principal em que se forma a imagem da cidade, já que é por ela que os habitantes
transitam e têm a oportunidade de observá-la e entendê-la.
Apresentações de músicos em locais públicos e na rua em troca de gratificações
remontam à Antiguidade. Os chamados músicos de rua, ou buskers, existem há muito

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 59


ENSAIO: Remix da cidade: a música urbana dos velhos aos novos tempos tempo. Os ciganos, assim como os Trovadores na França, já se apresentavam na rua des-
de a Idade Média, e em outros momentos da história esses músicos de rua fizeram-se
presentes em diferentes lugares do mundo, como os Skomorokh, na Rússia, os Maria-
chis, no México, os Chindonya, no Japão e os Bhavai, na Índia e no Paquistão.
Os músicos de rua proliferaram-se em áreas urbanas no século XIX e início do sécu-
lo XX, tendo na contracultura dos hippies da década de 1960, na área da San Francisco
Bay, o epicentro desse movimento. Diversos artistas renomados já foram buskers, como
Joan Baez, Edith Piaf, BB King, Janis Joplin e Jimi Hendrix, entre outros. Essa cultura
continua muito presente até hoje, especialmente em cidades cosmopolitas e grandes
metrópoles, particularmente nos metrôs e pontos turísticos. Recentemente, inclusive,
a Red Bull criou um festival Internacional de Músicos de Metrô, que teve edições no
Brasil, o Red Bull Sounderground.
Mas a vida de um músico de rua nunca foi fácil, sempre convivendo com legislações
que proibiam ou restringiam suas atividades. Na Roma antiga, em 462 aC, a “Lei das
Doze Tábuas” tornou crime cantar sobre o Governo ou fazer paródias dele ou de seus
funcionários em locais públicos. A pena era a morte. Na França, o Rei Luís I, conhecido
como O Piedoso, retirava desses artistas o privilégio de justiça. Em 1530, Henry VIII
ordenou o licenciamento deles, mas se eles não obedecessem poderiam ser chicoteados
por dois dias consecutivos.
E no Brasil, a prefeitura de São Paulo restringiu apresentações desses artistas perto
de estações de metrô, pontos de ônibus e monumentos tombados, entre outros locais,
em 2014. No Rio de Janeiro, em 2009, a Secretaria de Ordem Pública chegou a anunciar
que, para continuar a tocar no espaço público, o músico deveria efetuar um cadastro no
município e obter licença na subprefeitura da região.
Em outras regiões, como nos Estados Unidos e na Europa, a proteção da liberdade
de expressão artística se estende aos músicos de rua. A atividade é permitida, mas com
pequenas regulamentações, como o volume do som e restrições de alguns locais.

A importância das zonas portuárias dos grandes centros urbanos para a música
As zonas portuárias sempre foram zonas de contato público, contato de pessoas de
diferentes regiões, tradições, culturas, classes, profissões e atividades, um lugar da hete-
rogeneidade, e, por isso, tornaram-se grandes centros de efervescência musical. Não
à toa, grandes portos ocidentais se destacaram por uma produção musical própria e
profícua ao longo da história: Liverpool, Nova York, Nova Orleans, Buenos Aires e até
um minúsculo país, Cabo Verde.

60 Sesc | Serviço Social do Comércio


O Brasil não fugiu à regra: Recife, Salvador e Rio de Janeiro estão entre as cidades

Thiago Vedova
com maior produção musical do país, e mesmo São Paulo, longe do litoral, que se con-
solidou como nosso grande centro musical, superando o Rio de Janeiro, foi a região que
mais atraiu imigrantes no século passado, transformando-se também em uma zona de
contato entre culturas diversas.
O nascimento de uma música genuinamente brasileira se deu na zona portuária
carioca. Na região da Gamboa, mais especificamente na Pedra do Sal, perto das primei-
ras docas e com grande circulação de estivadores. Era ali que os negros se concentravam,
desde as épocas dos mercados de escravos, firmando a vizinhança como um importante
ponto de encontro. Tornou-se um reduto de referência da cultura negra e posteriormen-
te do samba: da Tia Ciata e as músicas do Candomblé até as reuniões de grandes sambis-
tas, como Donga, João da Baiana, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres. Era o período em
que a Praça Onze e suas imediações na zona central – Gamboa, Saúde, Estácio e Cidade
Nova – tornavam-se o epicentro dessa “invenção” e possibilitavam o contato entre des-
cendentes de escravos baianos e cariocas, entre tradições urbanas e rurais, entre brancos
e negros, entre artistas populares e a nascente indústria cultural do Brasil.
A história da produção musical popular no Rio de Janeiro tem íntima relação com
outras dinâmicas históricas que se configuraram na cidade. Dentre elas destacam-se
as vinculadas aos conflitos e interações decorrentes das desigualdades que permea-
vam – e permeiam cada vez mais – o tecido urbano carioca. Nas primeiras décadas do
século XX, o processo de modernização da cidade trouxe o surgimento de ritmos como
o maxixe, o choro e o samba. A história desses ritmos revelou que a música popular
injetou na vida urbana carioca possibilidades de convivências, trocas culturais, críticas
sociais e relativização, mesmo que tênue, das diferenças entre as classes sociais e
espaços na cidade.
Alguns de nossos ritmos mais populares, como o funk e o samba, sempre viveram
dentro de um complexo paradoxo na nossa sociedade. Eles deveriam ser integrados ou
escondidos? Deveríamos aceitá-los ou proibi-los? Consumidos ou estigmatizados? Os
dois ritmos foram desenvolvidos nas periferias e favelas da cidade e ligados basicamente
aos grupos marginalizados, mas ambos se desenvolveram em estreita relação com o
mercado da indústria cultural brasileira. Ambos tiveram suas proibições legais e regula-
mentações, despertando, a partir da popularidade, debates e conflitos na opinião pública.
O samba, com sua origem e estética, sempre foi vinculado às regiões e hábitos vistos
pelo poder público como “atrasados”. Mas o interessante é que, ao mesmo tempo, seu
sucesso no mercado cultural acabou por torná-lo um dos grandes símbolos de identidade

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 61


ENSAIO: Remix da cidade: a música urbana dos velhos aos novos tempos da cidade e do país, permanecendo durante muito tempo como o espaço de encontro,
nem sempre pacífico e harmonioso, entre grupos sociais diversos. Mas é importante res-
saltar que o samba chegou a ser proibido de ser executado em espaços públicos, assim
como o culto às religiões afro-brasileiras, à capoeira e outras manifestações culturais da
mesma origem.
O curioso é que, ao mesmo tempo em que foram perseguidos, há relatos de que
muitos nomes da elite brasileira, inclusive o futuro presidente Hermes da Fonseca,
participavam das reuniões musicais na Gamboa, e que as rodas de Tia Ciata eram
protegidas pela polícia, graças, como reza a lenda, ao fato de que ela teria curado com
ervas e rezas o presidente da República Venceslau Brás de um problema considerado
insolúvel pelos médicos.
Com o funk não foi muito diferente. Durante os anos de 1980 e 1990, ele tornou-se
caso de polícia, sempre associado à escalada da violência urbana e ao inchaço da cidade,
chegando a ser tema de CPI na Alerj, em 1999. Conviveu também com a Lei no 5265 de
2008, que obrigava os bailes a terem autorização da Secretaria de Estado de Segurança.
Anos depois, foram necessárias duas novas leis que o transformassem em movimento
cultural e música de caráter popular.
Além do samba e do funk, outros movimentos musicais brasileiros foram essen-
cialmente urbanos e também conviveram com tensões. Foi assim com o movimento
hip-hop, a partir do início dos anos 1990, e com o punk paulista de São Paulo, nos
anos oitenta.
O chamado BRock, a geração do rock dos anos 1980, teve em Brasília um impor-
tante berço, com o nascimento de bandas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso,
Peble Rude e Capital Inicial. A maioria dos componentes desses grupos vivia o cotidiano
monótono da capital do Brasil ao fim da ditadura militar. Esse mesmo rock brasileiro
teve um grande impulso no Circo Voador, que surgiu no verão de 1982, instalando uma
lona no Arpoador. O Circo surgiu do anseio de uma enorme onda de artistas carentes
de espaço para atingir o grande público, e foi a grande alavanca para muitos grupos,
hoje consagrados. Proibido de continuar no Arpoador, o Circo Voador foi transferido
para a Lapa até ser cassado em 1996 pelo então prefeito Cesar Maia, e mantido fechado
pelo seu sucessor, Luiz Paulo Conde, até 2002. Em ação popular movida pela produtora
Maria Juçá, teve o seu direito reconquistado na Justiça para retornar às atividades e a Pre-
feitura, que havia demolido o espaço, teve que reconstruí-lo por determinação judicial.
O tradicional carnaval de rua da cidade do Rio também só existe graças à militância
de alguns pesquisadores da cultura e do folclore brasileiros, que no fim da década de

62 Sesc | Serviço Social do Comércio


1990 criaram instituições como o Cordão do Boitatá e o Céu na Terra, fazendo com

Thiago Vedova
que o carnaval de rua voltasse com força total. Blocos tradicionais, como a Banda de
Ipanema, Barbas, Simpatia É Quase Amor e o Suvaco do Cristo, que eram a resistência
do carnaval de rua, apesar de atrelados a uma estética diferente, se fortaleceram e se
renovaram. Foram anos de disputa para que o poder público entendesse sua importân-
cia. Hoje, virou um grande negócio, explorado pelo poder municipal e “vendido” a uma
grande marca de cerveja.

Os novos tempos: coletivos e coletividades


O meio digital e, sobretudo, a internet, têm estimulado releituras de conceitos que
sempre foram considerados pilares da economia. Modelos de negócios consagrados
no século passado são cada vez mais adaptados a um cenário em que novas fórmulas
de lucro, competição e propriedade convivem com compartilhamento e colaboração. O
surgimento da Web 2.0, na qual o usuário também é produtor de conteúdo, trouxe uma
mudança para a sociedade: deixamos de ser meros espectadores e nos tornamos prota-
gonistas, produtores e transmissores. Nunca na história o poder de transformação social
esteve tão distribuído. Esse fenômeno tecnológico criou inúmeras plataformas online
e offline e diversas possibilidades de produção, organização e comunicação que trans-
formaram profundamente as interações entre as diferentes comunidades da sociedade,
as empresas e o governo. Todas essas plataformas são ampliadas pelas mídias sociais
Facebook e Twitter, que estão se tornando cada vez mais comuns na vida da maior parte
da população.
As possibilidades de uma sociedade mais colaborativa, com a criação de coletivos e
coletividades, têm se apresentado como uma grande ferramenta para o fortalecimento
das artes em geral, tendo grande impacto sobre o cenário da música e atuando como
transformador do espaço urbano.
A maturidade da sociedade conectada em rede trouxe diversos benefícios de imenso
valor social. Um grande exemplo é o financiamento coletivo (crowdfunding). A captação
de recursos ocorre de forma direta, sem intermediários, os quais trazem uma autono-
mia para diversos criadores e empreendedores sociais que desejam realizar projetos,
mas que sempre esbarraram em dificuldades para conseguir financiamento para seus
projetos que muitas vezes não estavam ligados aos interesses de grandes empresas,
instituições financeiras e governo.
Nesta era de microfinanciamento, milhares de pessoas podem apoiar diretamente
um projeto, como, por exemplo, um festival de música, um projeto musical de interven-

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 63


ENSAIO: Remix da cidade: a música urbana dos velhos aos novos tempos ção urbana ou até o financiamento de um disco, de um clipe ou de uma turnê de seu
artista favorito, aumentando o espaço para uma nova relação entre artistas e público.
No Brasil, já existem diversas plataformas de financiamento coletivo: como o Catarse
(catarse.me) e a Benfeitoria (benfeitoria.com), além de duas plataformas exclusivas de
música, como a Embolacha (embolacha.com.br) e o Queremos! (queremos.com.br). O
Queremos! é uma plataforma que mistura crowdfunding, com crowdsourcing, que mobi-
liza grupos de pessoas para resolverem problemas em conjunto, criar novos produtos,
produzir conteúdos e encontrar soluções. No caso do Queremos!, a plataforma abre a
possibilidade de fãs de uma mesma cidade se juntarem para pedir um show. Depois de
engajar um determinado número de pessoas, começa uma campanha de financiamento
coletivo para viabilizar a vinda do grupo.
O recorde do financiamento coletivo ou colaborativo no Brasil vem do Catarse e com
um projeto de música. O financiamento do sétimo álbum e da turnê da banda Dead Fish
tornou-se a maior arrecadação de uma campanha no Brasil. O grupo independente de
hardcore recebeu quase R$ 260 mil de mais de 3.200 apoiadores.
Além de shows, projetos de crowdfunding já viabilizaram festivais de música, como
o Móveis Convida, de Brasília, e podem promover intervenções em cidades, como o caso
do projeto I Make Rotterdam, onde os moradores da cidade holandesa se uniram para
solucionar um problema urbanístico: uma rodovia de alta velocidade dividia o centro
da cidade em duas partes, dificultando o dia a dia dos pedestres. O projeto convidou
os cidadãos para atuar na melhoria do espaço público, e com os fundos arrecadados foi
construída uma passarela de madeira de 350 metros que passa por cima da autoestrada.
São diversos os movimentos de engajamento e intervenção urbana. Só no Rio de
Janeiro existem o Simplicidades (simplicidades.net), o Meu Rio (meurio.org.br) e o Rio
Mais (riomais.benfeitoria.com), entre outros (rioeuamoeucuido.com.br, #rioeuteamo,
imaginanacopa.com.br).

Parklets
Um dos novos exemplos de intervenção coletiva nas cidades são os parklets. O ter-
mo foi usado pela primeira vez em São Francisco, nos Estados Unidos, em 2005, para
representar a conversão de um espaço de estacionamento de automóvel na via pública
em um “miniparque” temporário, cujo objetivo era propiciar a discussão sobre uma
cidade para as pessoas, com um uso do solo mais democrático. Em 2011, mais de 50
unidades foram implantadas em São Francisco, e os parklets também foram incorpo-
rados ao cotidiano nas ruas de diversas cidades norte-americanas, muitos deles com

64 Sesc | Serviço Social do Comércio


shows, transformando-se em um espaço afirmativo de convívio da população e de novas

Thiago Vedova
possibilidades de apresentações musicais.
No Brasil, o conceito surgiu em São Paulo, em 2012, e sua implantação ocorreu
durante um festival de 2013, liderado por um grupo composto de arquitetos e designers.
Nessa primeira instalação, os parklets funcionaram durante poucos dias nos bairros da
Vila Buarque e Itaim Bibi. Após, uma segunda iniciativa ao lado do Conjunto Nacional,
que durou 30 dias. A boa avaliação da população permitiu à prefeitura de São Paulo
transformar a ideia original em política pública de ocupação dos espaços públicos da
cidade, revertendo áreas originalmente destinadas aos automóveis para as pessoas. Em
contrapartida, o Rio de Janeiro prepara uma grande ação para 2014, no dia 22 de setem-
bro, Dia Mundial Sem Carro.

Novos agentes de cultura e o trabalho em rede


“A cidade pode ser palco e pode ser plateia. Pode ser barulho, pode ser música, motivo de vaia,
causa de aplauso: um ambiente fora de compasso, um espaço de vida e de sons em harmonia.
Esteja ela afinada ou não com seus habitantes. A cidade, enfim, pode sempre ser transformada.”

Coletivo SerHurbano

Em meados do ano 2000, houve uma significativa emergência de coletivos e grupos,


com propostas com foco na busca e articulação do desenvolvimento nas produções de
arte na cidade. O trabalho em rede é um modus operandi que torna possível a prolifera-
ção de diversos agentes, coletivos, ações que viabilizam a música dentro da cidade, que
vêm trabalhando para transformar o ambiente urbano em algo mais colorido, mágico e
democrático. Coletivos como o SerHurbano, Norte Comum, Leão Etíope, I Love XV não só
fazem projetos em espaços urbanos, como trazem cultura para regiões menos valoriza-
das da cidade.
Essas ocupações do espaço urbano são cada vez mais comuns e não necessariamente
oficiais, legalizadas pelo poder público. Na Pedra do Leme, por exemplo, inicialmente
sem autorização, festas como a Disritmia e shows como o Mohandas on the Rocks já
atraem mais de mil pessoas em cada uma de suas edições.
Novos coletivos surgem com novas propostas de diálogos entre a rua e a música,
como a Nuvem Móvel, que propõe a construção de caixas acústicas portáteis a partir da
resignificação de objetos, que são acoplados em bicicletas, para a formação de “uma
grande nuvem móvel e sonora” em suas bicicletadas; ou o Sofar sounds, que é uma
comunidade de música independente que realiza performances de novos artistas em
locais secretos, e acontece em mais de 80 cidades no mundo.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 65


ENSAIO: Remix da cidade: a música urbana dos velhos aos novos tempos Dia da Rua
Um dos principais exemplos de um festival de música que trabalha com a questão
urbana é o Dia da Rua, do qual sou um dos realizadores junto com o Qinho. O Dia da
Rua é um projeto de intervenção urbana e instalação sonora que funciona como uma
parada musical, um projeto de ocupação do espaço público com apresentações gratuitas
de novas bandas e artistas do Rio de Janeiro.

Criado em 2008, inicialmente sem autorização e sem patrocínio, por iniciativa dos
próprios artistas participantes, o Dia da Rua cresceu, ampliou o diálogo com o setor
público e privado e consolidou-se no calendário cultural da cidade, chegando à sua quin-
ta edição em 2014.

Na sua primeira edição, no dia 28 de fevereiro de 2008, através da mobilização cole-


tiva, 17 novas bandas e artistas ocuparam as calçadas das esquinas ao longo da Avenida
Ataulfo de Paiva, no Leblon, e da Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema. Nessa ocasião
não possuíamos qualquer tipo de patrocínio e nem mesmo a autorização da Prefeitura
para a realização dos shows em plena rua, os quais ocorreram de maneira simultânea de
19h as 20h, justamente para evitar possíveis interrupções pela polícia. Esse fato gerou
inclusive um debate em forma de notinhas enviadas à coluna “Gente Boa”, do jornal
O Globo, sobre a legitimidade do projeto, com o público se manifestando a favor da
iniciativa e o poder público questionando a sua execução sem a devida autorização. É
importante ressaltar que na época, além da falta de espaços para a música na cidade do
Rio, vivíamos uma época pré-UPP, em que o poder dos narcotraficantes era ainda mais
forte, e consequentemente, o espaço público ainda mais esvaziado, com a população
acuada pelo medo.

Nesse sentido, é importante concluir que a ocupação do espaço urbano não só foi
historicamente fundamental para o desenvolvimento da música no Brasil e na cida-
de do Rio de Janeiro, como também permitiu que cidadãos com interesses comuns
se encontrassem, aumentando sua identificação com a cidade. Esse é um processo
essencial para a criação de comunidades e para o fortalecimento do engajamento das
pessoas no cuidado com estes espaços. A construção de uma nova economia, mais
colaborativa, ajuda nesse processo rediscutindo o papel desempenhado pelo espaço
público na cidade hoje, fazendo com que o espaço deixe de ser apenas “teoricamente”
comum a todos, para que volte a ser de fato público, na essência da palavra. Abrindo,
assim, novas possibilidades de atuação para a música e para os grupos musicais.

66 Sesc | Serviço Social do Comércio


Geógrafo formado pela UFRJ,
com mestrado e doutorado em
Educação pela PUC-Rio. É professor
associado da UFF, fundador e diretor
do Observatório de Favelas.

Jailson de
Souza e Silva

ENSAIO

Os sentidos
da vida
na cidade

68 Sesc | Serviço Social do Comércio


Jailson de Souza e Silva
O presente texto é uma adaptação da fala realizada no evento Arte Urbana e a
(re)construção do imaginário da cidade, no âmbito do Festival Sesc de Inverno 2014. Na
abordagem do tema, minha preocupação central foi discutir os vínculos entre as práticas
e representações sociais dos sujeitos nos territórios da cidade, com atenção particular
para a forma como os moradores das favelas são reconhecidos.
O que define a cidade e, por extensão, a vida nela? Essa interrogação me acompanha
há muitos anos. Na compreensão do mundo social, interessa-me entender, especialmente,
as práticas dos sujeitos nos territórios urbanos. Essa relação entre o sujeito e as estrutu-
ras socioterritoriais é complexa, havendo influências mútuas que definem o processo de
construção plural e permanente das identidades das pessoas e de seus espaços de vivência.
Nessa busca de entendimento, parto de uma definição positiva da cidade: ela é, por
excelência, um espaço de encontro das diferenças e das diversidades. Encontro que
torna possível a ampliação permanente do tempo e do espaço existenciais dos seres
sociais.1 Logo, a cidade permite o encaminhamento inovador de duas questões-chave do
contemporâneo, no que concerne à vivência coletiva: a construção de formas igualitá-
rias de exercício da dignidade humana, aspecto central para a civilização desde as lutas
sociais e políticas do século XIX; e o reconhecimento e legitimação da diferença, tema
trazido pelas lutas das minorias políticas – mulheres, negros, indígenas, homossexuais
etc. – durante o século XX, principalmente.
O que os movimentos da sociedade civil comprometidos com a agenda acima buscam
é a construção de uma cidade onde o encontro fraterno das diferenças seja estabelecido e
que todas as pessoas tenham um patamar mínimo de dignidade. Patamar que é histórico e,
portanto, se altera de acordo com a correlação de forças entre os grupos políticos e sociais.
A luta pela igualdade não se contrapõe à busca de que todos os seres sociais tenham
direito a viver de acordo com sua “autenticidade”, na perspectiva de Rousseau, isto é,
viver de forma plena sua individualidade subjetiva, tendo direito a expressar de forma
livre desejos, afetos, crenças e ideias.
1
Quando penso na cidade nesses termos, sempre me vem à mente uma frase lida, ainda na minha adolescência,
em um popular livro intitulado História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, e que foi importante para
a minha desnaturalização do mundo: “venha para a cidade e seja livre”. A cidade moderna, no seu processo de
formação no início da sociedade capitalista, remetia a formas novas de construção da vida autônoma por parte
dos sujeitos sociais.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 69


ENSAIO: Os sentidos da vida na cidade Separadas durante todo o século XX, igualdade e liberdade se entrelaçam de forma
inseparável no contemporâneo, revelando os nexos fundamentais entre a ética e a polí-
tica: o direito à diferença e à autenticidade remete ao mundo da moralidade e da ética
em termos de relação entre os sujeitos e dos direitos destes sobre seus corpos, desejos
e aspirações. O direito à igualdade, do ponto de vista, da dignidade se vincula ao campo
dos enfrentamentos políticos, tensões entre interesses globais e particulares e espaços
de poder de realização da igualdade. Por isso, a questão do poder, entendido neste texto
como expressão das relações de influência entre sujeitos e grupos, tem um peso central
no tratamento das duas pautas. Assim, a correlação de forças entre os diversos grupos
de interesse definirá os caminhos de tratamento da igualdade e diferença no tempo e
espaço em que vivemos.
A centralidade desses temas em nossa realidade urbana decorre do fato de a cidade
permitir uma vida mais autônoma aos indivíduos em um contexto de inserção em redes
sociais ampliadas, das quais eles são produtos e produtores. A experiência de vida autô-
noma dos seres sociais, por sua vez, pode se expressar de duas maneiras: de forma
individualizada, que se materializa no sujeito individualista, ou de forma individuada,
que se manifesta no sujeito individuado.
O individuado reconhece a importância de viver sua subjetividade plenamente, mas
a partir de uma relação empática com a outra pessoa, e não de sua negação ou subordi-
nação. Nesse caso, ele reconhece, em nome da coerência existencial, o direito do outro a
ter atendidas suas necessidades existenciais. Logo, ambos os seres apresentados buscam
viver de acordo com seus interesses; o que os diferencia é o modo de se relacionar com
seus semelhantes.
O individualista, por sua vez, é aquele que se vê como o ponto de partida e de che-
gada da experiência existencial. Logo, a outra pessoa é percebida, em geral, como um
simples instrumento para a satisfação de suas necessidades egoicas. Ele é o ser da socie-
dade capitalista, por excelência, e o consumo de bens distintivos, como um fim em si, e
o desejo de posse são os elementos norteadores de suas relações subjetivas e objetivas.
Sua relação com o mundo urbano será marcada pelo esforço da apropriação particular
e de competição com outras pessoas e grupos para garantir de forma exclusiva o acesso
aos ativos mais importantes da urbe.
O ser individualista dos grandes centros brasileiros estabelece com esse território
uma relação que defino como particularizada: uma experiência espacial fragmentária,
tópica, sem um sentimento de pertencimento ao conjunto. Ele circula de um territó-
rio particular e conhecido para outro com as mesmas características. Assim, ele se

70 Sesc | Serviço Social do Comércio


relaciona apenas com o mesmo, alguém com suas características sociais, econômicas,

Jailson de Souza e Silva


étnicas e culturais, e se torna intolerante com o outro, pessoa que dele se diferencia.
Desse modo, ele passa a temer o diferente, tanto em termos de territórios como de
indivíduos, e abre mão de ter plena mobilidade.
A mobilidade plena reúne formas plurais de o sujeito experimentar a cidade, atin-
gindo suas diferentes possibilidades: ele tem mobilidade física, que seria a capacidade
de se mover no conjunto do território urbano; mobilidade socioeconômica, que seria o
acesso a diferentes formas de consumo nos territórios e a transformação das condições
econômicas de origem; mobilidade educacional, que seria a ampliação continuada da
escolaridade; mobilidade cultural, que seria a capacidade de acessar e/ou produzir for-
mas estéticas diversas; e, por fim, a mobilidade simbólica, que seria a capacidade de se
sentir com pleno direito de experimentar a totalidade do espaço urbano, para além dos
interditos construídos no âmbito da sociedade hierarquizada e estigmatizante.
Nesse quadro, a cidade, em sua generalidade, torna-se, de certa maneira, um lugar:
território com o qual estabelecemos uma relação subjetiva e afetiva. O lugar implica uma
relação territorializada dominada pela sensação de pertencimento e agenciamento, um
espaço no qual o sujeito sente e age, ampliando suas formas de inserção e de ação na
vida cotidiana.
A experiência da cidade como lugar se reproduz a partir da experiência do ser indi-
viduado, o ser social pleno, que constrói sua vivência em quatro dimensões concomi-
tantes. A dimensão singular/subjetiva é sua expressão mais própria, pessoal, única e
indivisível, a ser vivida como uma prática autêntica, que permita as vivências de seus
desejos e referências de mundo. A segunda dimensão do ser individuado é a social, na
qual ele vive experiências de pertencimento e identidade em termos étnicos, de gênero,
nacionalidade, naturalidade, gostos etc. A sua terceira dimensão é a humano‑genérica,
que representa o grau de empatia com os seres humanos, para além das suas particula-
ridades e diferenças, e se refere à capacidade de sentir-se em comunhão com os outros
seres, identificando-se com suas dores e alegrias. Por fim, a quarta dimensão do ser indi-
viduado é a global/ecológica, que revela o pertencimento ao planeta em sua condição de
Gaia, morada de todos os seres, e a necessidade de nele vivermos de forma sustentável.
As proposições feitas até o momento remetem a uma experiência utópica de cidade,
mas em uma perspectiva espacializada. O que implica a negação, no caso, da tradicional
referência temporal que caracteriza o conceito clássico de transformação social. A visão
teleológica é dominada por uma premissa positivista de futuro, que é estabelecido em
ruptura com as referências, contradições e questões do tempo/espaço presente. Nas

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 71


ENSAIO: Os sentidos da vida na cidade perspectivas teleológicas clássicas, o mundo do futuro é dominado pela ideia de harmo-
nia e de eliminação das contradições entre os seres subjetivos e as estruturas sociais.
Temos, então, a ausência de reconhecimento de que o conflito é um elemento intrínseco
à realidade humana. Logo, nosso desafio é dar conta dos limites presentes que impedem
que a experiência humana/urbana seja plena no campo da diferença e da igualdade. O
futuro terá, por sua vez, demandas específicas, de acordo com as formas inventadas por
seus sujeitos para dar sentido à vida.
A experiência de cidade do individualista, particularizada, vai em outra direção:
caracterizada pela negação do outro como um sujeito com direitos ao território urba-
no, ela se manifesta como uma distopia, uma experiência de vida e de espacialidade
dominada por elementos negativos. O que ele destaca no mundo são as situações de
violência, corrupção, poluição, assim como a presença dos pobres, loucos, moradores de
rua, comportamentos imorais etc. Desse modo, a cidade se torna um espaço de negação
das possibilidades de uma vida harmônica e pacífica para o ser individualizado e um
território, acima de tudo, de risco e temor.
Na percepção da cidade como distopia, a favela é um componente fundamental da
representação negativa. Em tal representação, ela é definida a partir de um “paradigma
da ausência”, sustentado em referências sociocêntricas – visão do outro a partir dos
elementos fundantes de sua vida particular – a favela é considerada o espaço da não cida-
de, das carências materiais, legais, morais, culturais, educacionais etc. Seus moradores
são vistos como seres incivilizados, incapazes de viver de forma autônoma, complexa e
cidadã no território urbano. Nesse processo, as formas autoritárias de ação do Estado
nas favelas são naturalizadas, sobretudo no campo da segurança pública, e a venda de
drogas no varejo nas periferias e favelas é corporificada, por definição, como o crime a
ser combatido na realidade urbana. Na mesma direção, a violência letal, que já destrói
mais de 56 mil vidas no país, é invisibilizada, principalmente por atingir de forma mais
direta os pobres, negros e jovens das periferias e favelas.
Outro imaginário sobre os territórios populares, em particular as favelas, é possível.
De fato, esse território, densamente povoado e construído a partir da soma da ação de
múltiplos indivíduos, possui, para além das suas inegáveis demandas em termos de
serviços e equipamentos urbanos, características que o tornam profundamente potente.
Destaca-se o alto grau de inventividade e criatividade presente nas práticas sociais locais:
seja criando formas originais de garantir arruamento, acesso à água, à energia e aos
produtos necessários ao cotidiano; seja via a invenção de brincadeiras, práticas estéticas
e formas de lazer que permitem uma forte socialização, manifestação das subjetividades

72 Sesc | Serviço Social do Comércio


e expressão das demandas e questões cotidianas; seja por criação de formas de convivên-

Jailson de Souza e Silva


cia que tornam lugares comuns em espaços de alta intensidade.

Essas características do espaço favelado carioca, e de favelas de outros cantos, funcio-


nam como uma resposta às formas de particularização e individualização dominantes
nos territórios mais valorizados das grandes cidades. Nos territórios favelados, há um
grau de convivência, solidariedade, proximidade e demandas de negociação da expe-
riência comum que tornam o local mais complexo e com níveis de possibilidade de
relacionamento social e produção coletiva bem acima da média da cidade.

O que estou dizendo, cabe reiterar, não afirma uma representação idílica do território
popular. Existem diferentes formas de violência nas favelas, tanto no âmbito da vida
doméstica como da vida coletiva. Essas violências, muitas delas efetivadas por grupos
criminosos ou forças do Estado, não podem, todavia, obliterar as formas inovadoras
construídas pelos moradores, em suas práticas cotidianas, de lidar com os desafios de
construir um habitat, um espaço de morada – e não apenas residencial – na cidade.

É a reprodução das formas de socialização a partir da vivência em espaços comuns


múltiplos que permite a criação permanente do território popular. Assim, soltar pipa,
rodar pião, jogar ping-pong em mesas improvisadas, jogar futebol, dançar o passinho,
produzir um funk, um rap, um gospel ou um sarau de poesia, fazer um curso de foto-
grafia, vídeo, trabalhos manuais e/ou pré-vestibular etc. são maneiras de experienciar o
território de forma altamente subjetiva, criando-se formas identitárias próprias e híbri-
das, que não deixam de ser expostas e retraduzidas em outros territórios da cidade.

Nessa construção, as favelas afirmam novas formas de se compreender a relação


entre ordem x caos; cultura x arte; mobilidade x circulação; potência x carência; parti-
cularização x convivência plural. Ela cria experiências que podem ser centrais para a
democratização da cidade, na superação das formas de reprodução da desigualdade, das
hierarquias e de processos de subjetivação que levam o indivíduo ao encapsulamento e,
muitas vezes, para a depressão e aniquilação social.

Estamos, no século XXI, vivendo tensões, portanto, entre sujeitos e territórios que
estão conformando as experiências possíveis de produzir a cidade e significá-la. Nessa
caminhada, a cidade vai se fazendo em nós, em uma relação de produção que sintetiza
as dimensões subjetivas e objetivas das relações entre os sujeitos. E que vai dando um
sentido maior ao sentimento de estarmos vivos, donos de nossos destinos, nossas esco-
lhas e buscas existenciais.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 73


Engenheiro, pós-graduado em
Gerência e Planejamento de
Projetos e mestre em Administração
pela Fundação Getulio Vargas.
Professor na educação básica, no
ensino superior e em arte-educação.
No Departamento Nacional do Sesc
desde 1992, trabalhou no Sesc
Ciência e no Programa Especial de
Bolsa de Estágio. No Acre, atuou
no planejamento e na gestão
de programas sociais. Chefiou o
planejamento do Sesc Pantanal e
foi diretor regional no Rio Grande
do Sul. Atualmente, é diretor
regional do Sesc no Rio
de Janeiro. Mauro Lopez
Rego

ENSAIO

Reaver o
avesso – a
apropriação
da paisagem

74 Sesc | Serviço Social do Comércio


Mauro Lopez Rego
A título de apresentação e início, cumprimento o fato de estarmos reunidos para o
Seminário, que representa parcela importante do Festival de Inverno que o Sesc traz à
região serrana do Rio de Janeiro no mês de julho. O Seminário caracteriza de maneira
aguda a reflexão com que o Sesc pretende marcar toda a mobilização trazida pela criação,
a sensibilização e a convivência que acontecem ao longo do Festival. Em outras palavras,
este grupo de pessoas reunidas em torno do pensamento crítico é parte indissociável
das pretensões de que, pelas ações em Cultura, sejamos todos capazes de agir em favor
de uma sociedade melhor, e que isso se faça com pessoas que se comunicam, que se
aperfeiçoam, que trocam e que se desenvolvem – não num sentido pré-definido de
desenvolvimento, mas na concepção de desdobramento, de apresentação ao mundo e
de conhecimento do mundo.
Aqui, faço um parêntese. Seria inócuo e despropositado discutir o que é arte de quali-
dade. Mas vou postular uma de suas características. Arte de qualidade é a que nos move
para áreas da existência que antes não conhecíamos. O Festival Sesc de Inverno pretende
trazer este tipo de arte para tocar as pessoas e fazê-las viver essa experiência, e é o que
acontece em escala nas cidades participantes. Fecho o parêntese.
Há muitas formas de olhar essa sociedade que precisa melhorar. Uma delas é a cons-
tituição, a estrutura, a dinâmica da vida e da morte em nossas urbanidades. Para ilustrar
todo esse universo que nos circunda e que nos restringe, escolhi um caminho. Havia
vários, havia muitas formas de mostrar e de ilustrar como se domesticam o nosso ima-
ginário, a nossa potência pessoal e coletiva. Para isso, vale lembrar a acepção da Idade
Média, na qual as pessoas estavam ligadas a terra. Havia um senhor feudal proprietário
daquela terra, e as várias populações ligadas àquele elemento espacial eram como exten-
sões da propriedade, os chamados servos da gleba. A propriedade e o poder estabeleciam
estrutura que determinava e limitava as possibilidades de mobilidade e ação para a grande
maioria daquelas populações. Mas já no contexto da Idade Média, o habitante das cidades
era um privilegiado frente aos camponeses, fosse pela menor dependência em relação ao
trabalho servil, fosse pela proximidade da nobreza e do clero.
Muito tempo se passou desde então, e sucessivas ondas de mudança. O Renascimen-
to, as Revoluções Burguesas, o Iluminismo, a Revolução Industrial e a evolução da ciência

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 75


ENSAIO: Reaver o avesso – a apropriação da paisagem e tecnologia causaram impactos nas concepções e práticas da Economia, da Política e
até da própria ideia de direitos humanos. Proponho olharmos agora para o Brasil do
século XX, onde houve uma evolução enorme em termos de direitos. Podemos situar
na primeira metade deste século a mudança substancial nesse particular, em paralelo
à Revolução já presente na escrita de Sérgio Buarque de Holanda, de transição de um
país agrário, no qual a economia e a população estavam ligadas ao campo, em direção
às cidades – cidades que este Seminário vem discutir. Esse imenso aporte da população
rumo aos centros urbanos foi o fenômeno que impactou na sociedade brasileira, e que
veio a exigir, posteriormente, a rede de benefício social da qual o Sesc faz parte. Essa rede
foi criada para atender ao cidadão, mas enfocando principalmente o trabalhador urbano
com vínculo empregatício, a cidadania regulada, ou seja, o cidadão do asfalto, portador
de carteira assinada, amparado pelo Estado. Dessa imensa população que se deslocou do
meio agrário para o meio urbano, grande parte ocupou as favelas. Olhando para os direi-
tos, se direitos foram incorporados, é para o trabalhador urbano. Em toda a década de
1930 e 1940 houve grandes avanços para o trabalhador urbano. O trabalhador rural teve
que esperar um pouco mais, e o trabalhador que deixou de ser rural e veio para a cidade
ocupar as favelas, as periferias, esse também teve que esperar e continua esperando.
A distribuição do espaço da cidade separa nitidamente as pessoas que têm recursos
acima do indispensável, que estão para cá dessa linha divisória. Essa divisão beneficia
pessoas que têm praças ou que têm espaços de lazer, onde tem urbanismo, onde tem
calçada, onde tem iluminação; e relembra de forma agressiva, de forma muito desigual,
os herdeiros daqueles que vieram do campo, que ainda esperam por essa aquisição de
direitos. Essencialmente o tema do compartilhamento da cidade seria, nessa visão que
trazemos, um caso geral. Que, no caso brasileiro, é grave. No qual há assimetria acentu-
ada entre dois extremos da população com relação ao uso do espaço, com relação à priva-
cidade advinda desse espaço, com relação às garantias de segurança, conforto e serviços
que se oferecem a esses espaços. Esses extremos da população produzem dicotomias
como asfalto/favela ou centro/periferia, ou ainda incluídos/excluídos.
Tal fenômeno ocorre em níveis inusitados no Brasil, mas não é inexistente em outros
países. O confronto entre mundo da vida e mundo do trabalho é constante nas outras
sociedades, ou seja, o espaço vital para a liberdade, a crítica e a resistência, está condi-
cionado e assediado pelo dever de lidar com engrenagens sociais e de cumprir algum
papel obrigatório, normalmente o papel do trabalho, do ofício. Estamos no vaivém das
vidas entre a casa e o trabalho. As vias, os grandes deslocamentos urbanos, as ruas,
estão ali principalmente para levar ao trabalho e, depois, de volta para casa. Esse espaço

76 Sesc | Serviço Social do Comércio


urbano é limitado e preparado para ser o condutor dessa energia. Como uma artéria,

Mauro Lopez Rego


o canalizador desse fluxo vital é o muro. O muro é o que divide o privado do público,
que conduz, que limita e substitui horizontes e serve para guiar as populações rumo ao
trabalho na ida e na vinda...

POEMA ATRAVESSADO PELO MANIFESTO SAMPLER


Ramon Nunes Mello*
I

invadir o corpo do mundo


aceitar
o
caos
atuar no esvaziamento das certezas

não copie e cole


se aproprie e recrie a realidade
use seu imaginário
carta de alforria para um primeiro
ato

nem todo início é um prólogo

II

acredite
você não é original
certo
apenas a pureza de um
mito

a pressão não
é

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 77


ENSAIO: Reaver o avesso – a apropriação da paisagem simples
pratique
sequestro saque captura
de palavras

não comunique aos pais


toda palavra é
órfã

não
existem palavras
finais
toda palavra
é
começo

pirata capitão buquineiro


promessa de geração
00
remix de ideias
souvenirs
alô wally
ah se você ainda estivesse por aqui

não escrever sobre


não descrever ou reproduzir
o mestre
produzir escrever produzir

eu
estou menino
em suas palavras
não chame meu nome em vão
salte a pedra
no caminho

78 Sesc | Serviço Social do Comércio


III

Mauro Lopez Rego


seja atravessado pelos poetas que lê
aniquile as referências
um coletivo de enumerações

faça
literatura sem agradecer a raduan
ou adalgisa
faça
você seu retrato
enquanto jovem

encontre suas ideias


a partir de
apesar de
(lembra dela?)
apesar
de

invasor
ao combate
quais os limites
do texto?
autores originais
não mais

viva de uma forma política


crie assim
invada a cidade

invente
coloque tudo para dentro
para depois respirar
sentir e notar

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 79


ENSAIO: Reaver o avesso – a apropriação da paisagem você
eu estou colocando
pra dentro
o chocolate
de tanto olhar
ler

IV

propriedade coletiva
eu sou vocês
sou eu nos
reconhecemos nas palavras
lidas e não ditas e não lidas
também
percebe
posse-criação


os mentirosos
são dignos
do amor

deus
em latim é fingidor
da via
criação
escreva tudo
com essa mão nervosa
escreva escreva
as vozes que habitam
em ti

no papel
selvagem caótico

80 Sesc | Serviço Social do Comércio


esse texto não é

Mauro Lopez Rego


seu nem meu
esse texto pertence
apenas

ataque
perigo ritmo
sem receio da autocrítica
se aproprie dos rótulos
para destruí-los

plagiador sabotador
coroe sua intimidade
perturbe
seus pares
não os deixem

presos

no século passado
o aprendizado
as vanguardas e a tradição
modos de usar
sua língua

esqueça os ismos
a divisão didática
atravesse
seja tático

cale
a boca de quem

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 81


ENSAIO: Reaver o avesso – a apropriação da paisagem não se posiciona
no espaço
torne seu o que é
do outro
provoque todas
as encenações institucionais
modo de fazer
aprender fazendo
seu trabalho
diário

manipule a história
alheia escreva a nossa

invente
seja autor inventor
o leitor
deve reconhecer seus passos
caminho percorrido
está
tudo no passado

o futuro se tropeça
com ele

a poesia se esfrega nas coisas


percebe?
ao acordar veja as coisas
como
as coisas todas

espalhadas livros jornais


mesquinhez de sua relação
amorosa

82 Sesc | Serviço Social do Comércio


você pode abrir sulcos na escrita

Mauro Lopez Rego


fluxos
corpo é texto
é corpo

emancipe sua escrita


deixem falar mal
amanhã
estão todos lambendo seu rabo

discuta apenas sua


existência
na palavra

leia
escreva
como quem atravessa
o leitor
subverta

transforme o meio com a palavra


transtextual
células trans
transexual
exu contemporâneo se aloja no outro
passado tomando o presente
de cavalo

VI
ultrapasse
a si mesmo
não trapaceie é fatal

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 83


ENSAIO: Reaver o avesso – a apropriação da paisagem amadureça
a experiência
seja através
dos outros

a verdadeira história da literatura


uma história de ladrões

experiência
número infinito
o homem forte vive

lembre dos outros

entenda
as relações de força
você ouviu de um artista de plástico
vale tudo só não vale
qualquer
coisa

as coisas negras são


tão bonitas
menos o cavalo

beba
ice tea light
com limão e gelo
lipton com muita cafeína
no cafeína
não imite
escreva a partir
de

dobre a linha da folha


dobre-se

84 Sesc | Serviço Social do Comércio


você sabe que o papel

Mauro Lopez Rego


só pode ser dobrado
sete vezes
hum
modo de
de experimentar
os espaços
nascemos com os mortos
sempre

o fim é o meio
novo desvio
novidade sem novidade
caminho literário cercado de música
ouça
não é preciso citar
não é

faça
teses para corrompê-las
o texto tem sentidos
não
sentido
fazer ao ler
a linguagem não indica sentido
mas possibilidades
as palavras
penetram em você
ou não

use todos os guardanapos


do café
com leite e biscoito de maisena
(compensando os 10% de mal atendimento)
ganhar força com as ideias

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 85


ENSAIO: Reaver o avesso – a apropriação da paisagem pense no tempo
em nosso tempo
tempo
tempo
tempo
tempo

silêncios
incorporados na escrita
esquecimento como aprendizado da escritura
invasão pela leitura

esse poema não tem


fim
é o meio

Ramon me ajuda a confrontar os rótulos, porque no caminho murado entre a origem


e o destino, no operariado do já existente, na porfia de Penélope, ele entra sem ser anun-
ciado. O que é que vem lá? O marginal, o rebelde, o transgressor. Rótulo é aquilo que
a gente pega, é aquilo que nos incomoda e que é uma forma de resgatar o exercício do
poder, ou seja, você é certo, você é errado, você está fora do caminho, você não pode fazer
isso, você é outsider, você é um rebelde, você é um vândalo; quando na verdade do ponto
de vista dele, é apenas uma pessoa que pelo exercício da liberdade me liberta, e a inten-
ção dessa provocação é exatamente essa. O artista é aquele que rejeita a conformidade e
ousa ultrapassar a fronteira do bom senso, da propriedade, do conhecido, da repetição,
da massificação; e que nos obriga a lidar com isso, ou lidar mudando internamente ou
pelo diálogo ou pela reação.
Obrigado Ramon e demais artistas! Vamos questionar a realidade para poder mudar
e transferir o poder. E para conseguir transmitir aos outros a condição de liberdade de
fazer isso também.

* Escritor, poeta e jornalista. Autor de Vinis mofados e Poemas tirados


de jornal. Integrante da Gerência de Cultura do Sesc Rio.

86 Sesc | Serviço Social do Comércio


Diretor, ator e dramaturgo. Fundador
do Grêmio Dramático Brasileiro (1973)
e do Centro de Demolição e Construção
do Espetáculo – CDCE (1989), Aderbal
Freire-Filho assina, entre outros, as
peças teatrais Apareceu a Margarida;
A Morte de Danton; A Mulher Carioca
aos 22 anos e Tiradentes. Distingue-se
entre os diretores brasileiros por
aliar a busca constante por novas
formas de teatralismo a uma
encenação que prioriza o ator como
agente principal da linguagem e da
comunicação das ideias do texto.

PERFIL

Amir
por Aderbal
Freire-Filho
PERFIL Amir Haddad O Amir Haddad, assim com esse nome, foi ao Egito. Deve ter sido aí pelo fim
dos anos 90, em um festival, um congresso... Mal chegou, os egípcios puxaram
papo. Em árabe, claro. Ele calado. No hotel ou onde o apresentavam, todos que-
riam conversar com o Amir e ele sem entender por que diabos falavam tanto com
ele. Até que o recepcionista do hotel revelou sua decepção, que era a de todos: com
esse nome e com essa cara, o senhor não sabe falar árabe, a língua do seu povo?
O Amir não se perdoou. Quando voltou de lá, quase chorou me contando: cara, eu
não sei falar a língua do meu povo, de onde eu venho. Não sei se agora ele já sabe
árabe, é capaz, tanto ele preza as raízes, a sociedade como formadora do indivíduo,
o homem social.
Mas os egípcios foram cruéis, acertaram no único ponto fraco do Amir. Por-
que, tirando árabe, ele sabe tudo. E, depois, saber árabe nascendo em Guaxupé
é quase impossível, mesmo na família Haddad, mesmo se chamando Amir. E o
tempo que podia ter dedicado a aprender árabe, ele dedicou a uma língua uni-
versal, chamada teatro. Através dessa língua, o teatro, o Amir é compreendido
no Ocidente e no Oriente, com ela não há fronteiras para a expressão das suas
ideias e dos seus sentimentos. Para dizer com palavras que ele preza, em teatro
o Amir diz tudo o que querem dizer sua cabeça e seu coração.
Por saber dessa sua capacidade ilimitada de expressão, posso dizer que não
conheço teatro mais novo do que o do Amir, assim como não conheço teatro
mais novo do que o de Shakespeare. E posso dizer de outro jeito: assim como
a dramaturgia contemporânea, isto é, as novas dramaturgias, caminham em
direção a William Shakespeare, a cena contemporânea caminha em direção a
Amir Haddad.
Muitos de nós já ouvimos a história do teatro contada pelo Amir, com pala-
vras dele e com o magnetismo com que ele fala e abre nossa cabeça. Uma his-
tória que começa com o teatro de todos, ou do povo, ou popular, ou do homem
– como prefiram chamar. E que aos poucos vai sendo usurpado pelos nobres,
pelos senhores, pelos poderosos, pelas classes dominantes – como prefiram
chamar. Nesse mesmo movimento, enquanto o teatro vai se fechando nas salas
dos palácios, depois em edifícios próprios, mais ou menos suntuosos, a arte
teatral vai se fechando em regras e convenções estreitas. Ou seja, o universo
da cena vai perdendo a dimensão da arte tal como ela existe em Cervantes, em
Rabelais, em Shakespeare, em Suassuna – onde o culto não recusa o popu-
lar, pois encontra nele sua seiva e sua constante renovação. Paralelamente, vai

90 Sesc | Serviço Social do Comércio


desacreditando nos infinitos saberes e poderes do homem e passa a falar só a

PERFIL Amir Haddad


língua pobre do burguês. Até deixar de ser o teatro aberto à fantasia, à ilusão, à
imaginação: a santíssima e satânica trindade da criação artística.
Como Shakespeare nasceu um pouco antes do Amir, dizem que também em
Guaxupé, dá para entender essa história acompanhando o destino das peças
dele ao longo dos últimos 400 anos. Quando foram escritas, eram apresenta-
das ao ar livre e ao homem livre. Depois fecharam o teto dos teatros e a cabeça
dos espectadores; colocaram cortinas que abriam e fechavam entre uma cena
e outra; levantaram paredes para mostrar castelos e colocaram telões pintados
com árvores e até árvores mesmo para mostrar florestas... Como puderam rou-
bar tanto os poderes da cena (e os poderes da imaginação, isto é, do homem) do
grande Shakespeare?
Amir devolve a Shakespeare a cena poderosa, e o cara pode outra vez, no
teatro, agarrar a consciência do rei. Nada mais novo no teatro do que o ator vivo
e presente e solto das correntes com que o amarraram enquanto roubavam
de Shakespeare os poderes da cena. Está bem, existem novas poéticas e novos
horizontes estéticos, mas nada tem sentido fora do ator presente. Muitas vezes,
uma tentativa de renovação poética se desmancha no ar de uma atuação vicia-
da, literária, armada, solene e seca. Amir desmonta o ator que ainda carrega o
lado ruim daquela história contada por ele e o apresenta vivo a Shakespeare.
William, aqui estão os atores, aqui está a trupe, outra vez viva. Obrigado, Amir.
Por nada, William. Continuamos juntos.
Amir devolve o teatro ao homem. Quis fazer isso tão veementemente, tão
completamente, que veio para a praça, para a rua. Mas antes de vir, Amir já era
popular e erudito, aberto à fantasia, à imaginação, já tinha a desmedida da ilusão.
Vou lembrar um pouco o ano de 1970, com o olhar curioso e assustado de
quem estava chegando ao Rio. Tinha: o Solar da Fossa, um lugar encantado
para viver, olhar, sentir, pensar; Santa Teresa, não a própria, mas o bairro; o
anúncio da Era de Aquarius; o medo da repressão; a descoberta da maconha;
o amor livre; tinha só para loucos, só para raros; telefone público em bote-
quim, a novidade ainda não era celular, mas o orelhão; era outra civilização.
Às vezes, todas essas coisas estavam representadas por um nome. Um nome
como, por exemplo, Comunidade. A comunidade. Era o nome mágico de um
grupo de teatro, sediado no MAM e que montou uma peça chamada A constru-
ção, que pouco depois de apresentada virou lenda. Por uma década, a partir do

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 91


PERFIL Amir Haddad nascimento dessa lenda e até a criação do Tá na Rua, um semideus chamado
Amir Haddad cresce na cidade: anda pelas ruas da Lapa; atravessa o túnel até
Copacabana e vai à caça na Rua Raul Pompeia; cruza a Rio Branco e dá uma
entradinha em um edifício de nove andares ao lado de onde existiu o Trianon;
volta a Copacabana e sobe as escadas rolantes de um centro comercial para
dançar um tango; frequenta assiduamente um prédio velho atrás do Campo de
Santana, Rua Vinte de Abril, onde transmite para os jovens as palavras mágicas;
começa uma guerrilha na Praça Tiradentes, que junta artistas guerrilheiros no
movimento chamado Somma e muda para sempre a cara do teatro carioca.
Depois, vai pra rua.
Assim como na vida de Shakespeare, alguns momentos da formação do Amir
são desconhecidos, outros aventurosos. Sabe-se que ele foi de sua Guaxupé
para o interior de São Paulo, daí para a capital, conheceu Zé Celso na Facul-
dade de Direito, participou da fundação do Teatro Oficina e dirigiu alguns dos
primeiros espetáculos do grupo. Depois esteve três ou quatro anos na região
amazônica, mais exatamente em Belém do Pará, onde conviveu com um casal
formado por um sábio e uma artista: Benedito Nunes e Maria Silvia. Um capí-
tulo desconhecido da história da literatura brasileira foi a criação – por Benedi-
to Nunes, o Bené, junto com Maria Silvia, o poeta Max Martins e um casal de
forasteiros que se perdeu no tempo – da Academia da Rua da Estrela, que se
reunia aos sábados à noite para falar de Proust, de Machado, de teatro, de poe-
sia e da cozinha paraense. Amir não sabe até hoje, mas ele era, de certa forma, o
patrono dessa Academia. Enfim, com a força da floresta amazônica, temperada
na Rua da Estrela com a cultura universal, Amir chegou ao Rio, onde está até
hoje: semideus, homem de teatro, homem. E de onde sai para muitas viagens.
Acho que nenhum artista viaja tanto pelo Brasil como Amir, caixeiro viajante
do teatro, hoje no Rio Grande do Norte, amanhã no Ceará, depois em Minas,
outras vezes em Tocantins, no Maranhão... Às vezes sai do Brasil, uma vez foi
ao Egito, outra à Espanha, e em todo lugar é compreendido, porque ele fala
teatro, a língua universal que ele busca tornar mais e mais expressiva, ilimitada.
Pois bem, pode ser que, daqui a uns séculos, o que aconteceu com Shakespe-
are aconteça com Amir. E surjam teorias de que ele não existiu, os semideuses
não existem, ninguém pode ser tantos...
Mas como estamos perto dele e olhamos pra ele e falamos com ele e ouvimos
o que ele diz, vamos aproveitar.

92 Sesc | Serviço Social do Comércio


PROGRAMAÇÃO

Seminário
Arte urbana e
a (re)construção
do imaginário
da cidade
Datas: 30/7/2014 e 31/7/2014
Local: Sesc Quitandinha,
Petrópolis (RJ)
A arte urbana reflete a diversidade cultural que transita pelas ruas das grandes
cidades, criando encontros, movimentos e contradições.
O imaginário da cidade se constrói e reconstrói constantemente a partir da
interação de seus moradores e visitantes com o espaço urbano.
O seminário propõe discutir por meio de diferentes visões (e ações) e
apreender as novas representações e sentidos desencadeados por esse
processo contínuo de afirmação e interação das identidades urbanas.

Mesa 1 – O compartilhamento da cidade


Um dos grandes desafios desse século é a reinvenção da cidade como um espaço
democrático, aberto ao compartilhamento e à intervenção de uma multiplicidade de
atores, a partir do reconhecimento e da valorização das potências de seus territórios,
marcados pela diversidade de práticas sociais e culturais.
Palestrantes: Mauro Lopez Rego, Sergio Magalhães e Jailson de Souza e Silva
Mediação: Bianca Ramoneda, jornalista, roteirista, poeta e diretora teatral, se dedica à cul-
tura desde o início da carreira. Atualmente, apresenta o programa Starte na GloboNews.

Mesa 2 – A diversidade em trânsito


A arte pública na cidade participa da afirmação de identidades urbanas, de poderes
locais e de forças comunitárias. A cultura de rua estimula a relação com a cidade e
redefine os espaços de sociabilidades. Como as transformações desses territórios podem
ser pensadas a partir de políticas culturais? De que maneira os projetos que ocupam as
cidades catalisam e potencializam os diversos territórios?
Palestrantes: Paulo Knauss, Alexandre Vargas e Junior Perim.
Mediação: Fabiano Moreira, jornalista, colaborador da coluna Trans Cultura, do
Segundo Caderno do jornal O Globo, e do site internacional Pantoneview, da Pantone,
no qual escreve sobre as cores e os modos do Rio de Janeiro.

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 95


Mesa 3 – O remix da cidade
Quais são as novas representações e sentidos promovidos pela, cada vez mais pre-
sente, participação de novos atores e redes culturais na cena artística e cultural das cida-
des? As intervenções urbanas, que têm duração no mínimo indefinida, podendo ser
continuamente substituídas por novas obras ou performances, trazem à tona questões
importantes sobre a ocupação do tempo e do espaço da cidade. Será que o desapego – se
é que ele existe – é o que a arte urbana tem de mais inovador?
Palestrantes: Écio Salles, Thiago Vedova e Bruno Vianna
Mediação: Fabiano Moreira

Encerramento – A festa do imaginário, com Amir Haddad e Grupo Tá na Rua


Palestra: A arte pública no Brasil

96 Sesc | Serviço Social do Comércio


FESTIVAL SESC DE INVERNO – 2014
26/7 A 10/8 | NOVA FRIBURGO, PETRÓPOLIS E TERESÓPOLIS

CONCEPÇÃO E CURADORIA Estagiários


> Departamento Regional Ana Cecília Reis
Denise Miranda
Diretor
Luciana Lima
Mauro Lopez Rego

Praças de Esporte
> Superintendência de Programas Sociais > Gerência de Esporte e Recreação

Superintendente Gerente
Marcos Henrique Rego Fernando Fraga de Borba
Equipe
> Gerência de Cultura Viviane Oliveira

Gerente Espaços Gastronômicos


Maria José Motta Gouvêa
Equipe > Gerência de Saúde
Ana Paula Simonaci (Biblioteca)
Gerente
Christine Braga e André Gracindo (Artes Cênicas) William Silveira
Leila Dantas (Música) Equipe
Marina Vieira (Seminário) Marcela Monteiro de Lima
Ramon Nunes Mello (Literatura)
Stela Costa (Artes Visuais) COCURADORIA E OPERACIONALIZAÇÃO
Equipe Administrativa
Camila Cristina de Almeida Barbosa Unidade Quitandinha

Cristian Stozek Gerente


Diva da Costa Neta Anderson Bravo
Gabrielle Lesaffre Coordenador Administrativo
Leandro Paschoa Trindade Wilson Azevedo
Coordenador Técnico
Luciana Dias de Aquino
Aline Duque
Taciana Botelho de Oliva Pedrosa
Equipe
Curadores convidados Carla Lobato
Jane Teresinha Schoninger (Coordenadora de
Cristiane de Souza Mayworm
Cultura – Sesc Porto Alegre)
Elaine Romano
José Manoel Sobrinho (Gerente de Cultura –
Sesc Recife) Mariclea Dias Soares

Juliana Moura Ribeiro (Técnica de Cultura – Raquel Mascarenhas dos Santos


Sesc Fortaleza) Vinicius Moraes Garcia
Sonoe Juliana Ono Fonseca (Técnica de Cultura
– Sesc São Paulo)
Unidade Teresópolis
Armando Fernandes Neto (Técnico de Cultura –
Sesc São Paulo) Gerente
Eugênio Carlos

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 97


Coordenador Técnico Andrea Azara
Paulo Lavrador Andrea Fontes
Equipe Angela Gomes
Adriana Dias
Beatriz Carrilho
Adriano Sampaio
Daniele Bender
Ana Cristina
Eduardo Loureiro
Anderson Bruno
Layla Dardes
Áquila Mendes
Sandra Lucia Martins da Silva
Bruna Machado
Sidnei Pereira Junior
Carmem Lúcia
Silvia Heloneida
Elane Rezende
Thiago Souza
Fabiano Marques
Fabiano Serafim PRODUÇÃO, COMUNICAÇÃO VISUAL
Kadú Magalhães E DIVULGAÇÃO
Lu Guarilha
> Superintendência de Comunicação
Paula Gueiros
Paulo Zanon Superintendente
Christiane Caetano
Thaís Guarilha
Thomaz Garcia > Núcleo de Integração Operacional

Equipe
Unidade Nova Friburgo
Jailce Rocha
Gerente Jaqueline Cunha
Carlos Rocha Simone Bastos
Coordenador Administrativo
Paulo Santos > Gerência de Assessoria de Imprensa
Coordenador Técnico
Luiz Folly Gerente
Paulo Gramado
Equipe
Cynthia Lack Equipe
Laís Maurílio
Fátima Zarife
Mariana Trigo
Heloísa Viana
Vanessa Freitas
Lídia Veloso
Wando Soares
Assessoria Externa
Unidade Nogueira
Friburgo Assessoria e Comunicação
Gerente Bruno Pedrete
Pedro Zanotta Duda Emerick
Coordenador Técnico Edilene Mota
Guilherme Takaki Fabiana Lima
Coordenador Administrativo
Roberta Gheren
Daniel Arruda
Coordenadora de Hospitalidade > Gerência de Comunicação e Publicidade
Sandra Constantino
Equipe Gerente
André Rodrigues Carolina Falci

98 Sesc | Serviço Social do Comércio


Coordenadores Técnicos Maria Emilia Nogueira
Jananda Lima Michele Borges
Leonardo Mércio Produtores de Logística
Equipe Ericson Soares
Adriana Rodrigues
Lu Guarilha
Alexandre Monteiro
Mariana Pietrobon
Ana Lucia Santos
Sandro Rabello
Andréia Leida
Coordenadores de Som e Luz
Angelina Antonella Regina Deiverson Oliveira (Gaúcho)
Bernardo Solon Fabiano Marques
Diego Fonseca João Leonardo de Almeida
Eduardo Frota JR Fontes
Gabriela Morand Luiz Claudio Stadler (Mou)
Janaina Linhares Produtores de Campo
Larissa Arantes Jacqueline Marttins

Luciana Daltro Renata Borges

Malu Brasil
Nelson Castro > Gerência de Mídias Digitais

Mônica Campos
Gerente
Patricia Dodsworth
Daniel Vidal
Estagiários
Equipe
Evelyn Lima
Amanda Barbosa
Mariana Queiroz
Anderson Nascimento

> Gerência de Comunicação Interna Derek Corrêa


Letícia Bueno
Gerente Luiz Carlos Silva Oliveira
Vanessa Medeiros
Estagiários
Equipe
Luiz Eduardo Rodrigues
Ana Paula Jachelli
Welington Gomes
Fabíola Mattos
Fernando Jesus
> Gerência de Relacionamento com o Público
Patrícia Padovani
Patrícia Vidal Gerente
Eduardo Moreira Dias
> Gerência de Eventos Equipe
Alice Poll
Gerente
Lilian de Lima Matos
Danielle Vianna Martins
Márcia da Conceição Marques
Coordenadora Técnica
Nikki Canuto Maria Bessa
Equipe Rita Lucena
Gabriel Augusto Rosana Mesquita
Gloria Paulino Symonne Ribeiro
Julianna Sattler

Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade 99


ARTE Trilha
Graffiti Siri
Airá Ocrespo
André Kajaman Produção
Gaivota Studio
Davi Baltar
Diego Monnerat Unidade Nova Friburgo
Joana Cesar Produção
Bruno Vianna
Marcelo Ment
Rafael Se7 Trilha
Rafo Castro Felipe Ribeiro
Rodrigo Doug
Colaboração
Fotografia
Marcelo Cabral
Claudia Dantas
Maya Dikstein
Hélio Melo
Raphael Cruz

Vídeos
Unidade Teresópolis
Unidade Quitandinha
Videomakers
Direção
Breno Soares
Andrea Capella
Felipe Távora

Animação Marcelo Mello


Romulo Pinheiro Ronaldo Land

100 Sesc | Serviço Social do Comércio


ESPAÇO
PARA O
LEITOR

102 Sesc | Serviço Social do Comércio


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fia Scala Regular, títulos em Serif12 Beta,
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