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Laboratório de Textos 1, Turma B, Professora: Alessandra Matias Querido

Nome: Flávia Cordeiro Ribeiro Matrícula: 09/0113861

A Casa

Esta é a pequena cidade de Andarella, parte de um município esquecido pelo tempo,


sempre atrasado em relação ao resto do mundo; coisa de 10 anos, que não fazia muita diferença
na década de 1810, quando foi fundada a primeira vila por aqui (a cidade de Berle), mas hoje em
dia parece meio século.

Sei porque, vez em quando, saio daqui e vou visitar outras partes do mundo. Não duro
muito, porém, não me impressionam a tecnologia, ou as toneladas de lata sobre rodas zunindo a
toda velocidade de um lado a outro incessantemente, ou as pessoas insossas que parecem
exatamente as mesmas, seja de um lado do globo ou do outro. Não, prefiro ficar por aqui. Até
porque, imagine você, Andarella mesma tem muita história pra contar, uma cidadezinha no fim do
mundo, que só se encontra por acaso, é um lar perfeito para os mais estranhos tipos (e os mais
interessantes causos!), quase sempre perdidos, alguns fugindo de sua vida passada, outros
fugindo de algo mais corpóreo, uns tantos outros que parecem sequer saber como chegam aqui.
Tempos atrás, chegou um aqui, sabia nem o próprio nome, taí até hoje.

O que é mais especial, pra mim, nessa cidade é uma casa, fica no fim da rua Cancione,
pequena, você pode achar, mas de um bom tamanho, comparada com o normal da cidade. Nunca
morei lá, embora o quisera, várias vezes, mas sempre aconteci de conversar com quem morasse,
uns mais, outro menos, alguns me convidavam a entrar e passávamos horas. Sei que ela guarda
muitos segredos, de tantas vidas que ali viveram, como não poderia? Eu e ela, compartilhamos os
segredos, e compartilhamos muitas décadas também.

Hoje, quem mora lá é a Lúcia, já me fez visitá-la várias vezes, gosta de mim do mesmo
tanto que gosto dela. É uma menina inteligente (que nem menina é mais, veja, já tem lá 20 e
tantos anos), com os cabelos loiros eternamente amarrados num rabo-de-cavalo, anda apressada
pra todo lado, sempre com jeito de atarefada, herdou a casa da avó que, entende-se, morreu.
Digo assim porque funeral não teve, ninguém viu um caixão, ninguém viu parente nenhum, um dia
estava lá cuidando do jardim, no outro já não estava. Sei que isso por si só já é estranho, e ainda
pesa em cima todo o passado de eventos incomuns, freqüentes naquela casa; entende-se porque
Lúcia é tão solitária, só uns gatos pingados conversam gentil com ela, o povo da cidade já tem o
costume de isolar quem quer que more ali. Vou contar como aconteceu, a história começou em
1859, ano em que nasceu a casa pelas mãos de Charles Gouda.

Charles, pelo que sei, era filho de uma tradicional família inglesa. Abandonou sua vida aos
27 anos, pra começar uma outra bem diferente. Nunca entendi muito bem o porquê, mas a causa
parece ser séria, e tinha que ser, claro, para fazê-lo atravessar diversas fronteiras com um bebê
nos braços (da mãe nunca soube). Queria poder contar mais sobre os vinte e sete primeiros anos
de Charles, ele é um homem muito interessante, e converseiro também, mas reservado demais
sobre seus tempos remotos. Mas posso contar do resto de seus anos.

Logo que chegou por aqui em Andarella, comprou um pequeno terreno baldio no fim da rua
Cancione, por um preço bem barato, aliás, porque ninguém mais queria saber dele. Era um solo
extremamente inóspito, veja bem, nem mesmo grama, nem a mais daninha das ervas, crescia ali,
e a gente dessa cidade não construía casa sem um jardinzinho sequer, era muito dada a plantar,
planta de tudo que é tipo. Era pequeno demais pra construir um comércio, também, ainda mais no
fim daquela rua afastada e de residências, e por isso o dono, que também era dono duma
mercearia rua acima, pulou de felicidade por conseguir se livrar daquele fardo de terra que a nada
nem a ninguém servia.

Mas naquele pedaço de terra seco e desbotado, cheio de tralhas e ratos, o inglês
conseguiu uma façanha. Construiu com as próprias mãos, e também as mãos de mais 4 pedreiros
que contratou, uma casa, essa mesma de que lhe falo. Naquela época, tinha uma pintura discreta
e uniforme, uma cor muito feia, se me perguntar, um tipo de bege escuro, uma cor meio
encardida. Ao longo de tantos anos já mudou bastante, ganhou até uma extensão lateral no fim
dos anos 80, e a avó de Lúcia foi a última a dar uma nova pintura. O povo achou uma coisa brega,
sem gosto, até desrespeitosa, não sei de onde tiram esses absurdos, desrespeitoso com quem?,
um tijolo não vai reclamar se for amarelo ou cinza. E hoje, eram de várias cores, seja amarelo,
rosa, ou azul (tinha vermelho também, na parte de trás). Era a aparência mais alegre e viva que
aquela casa já tivera, digo mais, se algum tijolo ali pudesse falar, provavelmente diria “Quer
saber? Cansei de ser cinza, bege, branquinho ou cor-de-burro-quando-foge. Exijo uma cor bonita,
agora mesmo!”. Mais ou menos assim.

A façanha, é claro, não era a casa em si, qualquer homem com o mínimo de destreza
consegue juntar alguns pedaços de madeira e colocar um teto sobre sua cabeça. O que chamo de
façanha, e que deixou a população boquiaberta, veio logo depois. Em pouquíssimo tempo (e até
os dias de hoje, após muitas especulações, ainda ninguém entende como isto aconteceu),
Charles fizera brotar, na frente da casa, um jardim. Não era qualquer jardinzinho, não!, era
extenso, frondoso, um mar de folhas verdíssimas de centenas de tipos, pontuado frequentemente
por flores brilhantes, de cores inimagináveis. Era como um sonho, eu não cansava de me sentar
num banquinho no meio daquele milagre (Charles ora ou outra me convidava a ir tomar um chá
com ele) e respirar fundo os diversos perfumes florais que se complementavam.

O resto do povo não foi tão receptivo do jardim de Charles, de repente surgiram sussurros
conspiratórios entre essa gente que nada mais tinha o que fazer além de reunir-se secretamente,
na calada da noite, para discutir o assunto que eles consideravam de “interesse público”. Um
jardim saudável como aquele crescendo bem debaixo do nariz dessa gente, que se julgava
superior em esperteza – por ter enganado um estrangeiro com um pedaço de terra morta? Não,
era inadmissível!

Mas Charles era esperto, a gente conversava bastante quando eu ia visitá-lo (e às vezes
também brincava com James, seu filho), e nem precisava ter contado a ele as coisas que ouvia
por aí. “As idéias que rondam nas mentes das pessoas”, dizia ele, “ainda são inócuas, são meros
embriões, tímidos e solitários, mas que pouco a pouco se juntarão, compartilhando a mesma
hostilidade, para crescer, tomar a forma de palavras e, por fim, transformar-se em ações”. Não
compreendera eu ali o total significado daquelas palavras, e não o iria ainda por um tempo,
naquele momento só conseguia pensar que Charles ou estava maluco, ou não achava que nada
de sério havia na situação.

Como eu descobriria mais tarde, Charles não estava maluco, claro, como disse, ele era
inteligente. O que acontecera é que ele sabia exatamente o que as pessoas estavam pensando
dele, antes mesmo que elas próprias pudessem identificar, e, com esse conhecimento, agiu de
forma a (segundo ele mesmo me falou) controlar a situação, substituindo idéias de ira por idéias
de mesquinhez; a princípio confesso que não entendi muito bem o que ele queria dizer com isso,
até que fui testemunha de sua mágica. Seu plano, foi incrível!, funcionou perfeitamente; pouco a
pouco, uma dona-de-casa por vez, um dono-de-mercearia (ou vendedor-de-feira) atrás do outro, a
gente de Andarella foi dando o braço a torcer, os sussurros foram mudando de tom, já não se
interessavam tanto em saber como ou porque o tal jardim existia. Veja bem, descobriram (e eu
também) que o jardim era também horta e pomar, não dos ordinários, mas do tipo que produzia
ervas nunca antes vistas, frutas fora da estação, leguminosas que pareciam não serem nunca
atacadas por pragas.

Charles chamava isso de suborno, um pequeno preço a pagar pelo silenciamento das
desconfianças, e eles engoliam esse preço gulosos, com farofa pra acompanhar, o medo
suprimido pela ganância. O fato é que isso funcionou bem para Charles por muito tempo, até que
o povo foi aceitando sua presença ali, de fato um cidadão de Andarella. Sempre, no entanto, com
o pé atrás; no cantinho da mente dessa coisa que chamam inconsciente coletivo, ficou a suspeita,
a desconfiança, os olhares tortos para futuros moradores daquela casa, os sussurros agora quase
inaudíveis, mas nunca se foram completamente.

Poderia prolongar-me aqui por horas falando de Charles, poderia porque é uma daquelas
pessoas, sabe, que marca a vida (se ainda posso chamá-la assim) da gente, tão marcado que,
cento e tantos anos atrás, ou cento e tantos anos depois, continua ensinando e impressionando.
Poderia, mas deixo pra outra hora, pra contar de sua longa vida, bastante vivida, de seu filho, de
seus dois netos, de suas viagens, de seus biscoitos que eram uma delícia, ou de seu desfecho
nada feliz. E incluir aí meu próprio desfecho, que achei ser o derradeiro, mas aconteço de ainda
estar por aqui.

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