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INSTITUTO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE WINNICOTTIANA

Curso de Formação Winnicottiana

Nathália de Bortole Perosa Ravagnani

QUANDO A DESILUSÃO DESVELA A SOLIDÃO, REVELA-SE UM


SER IMPURO

São Paulo
2019
Nathália de Bortole Perosa Ravagnani

QUANDO A DESILUSÃO DESVELA A SOLIDÃO, REVELA-SE UM


SER IMPURO

Trabalho de conclusão da disciplina Patologia Maturacional 1:


as Psicoses e os Distúrbios Psicossomáticos.

Orientador: Ricardo Telles de Deus

São Paulo
2019
INTRODUÇÃO

Figura 1: O Grito

Fonte: Google Imagens (MUNCH, 1893)

Eu caminhava com dois amigos - o sol se


pôs, o céu tornou-se vermelho-sangue - eu
ressenti como que um sopro de melancolia.
Parei, apoiei-me no muro, mortalmente
fatigado; sobre a cidade planavam nuvens
de sangue e línguas de fogo: meus amigos
continuaram seu caminho - eu fiquei no
lugar, tremendo de angústia. Parecia-me
escutar o grito imenso, infinito, da
natureza.

MUNCH, 1893

Um Grito ensurdecedor que ressoa intimamente, silenciado por uma relação


esvaziada com o mundo, restando um estado de melancolia, uma sensação de
esgotamento físico e mental, a cena da vida paralisada, vislumbrada em cores fortes e
imagens distorcidas e um pavor de perder-se para sempre. A composição dessas
impressões, retratadas com riqueza e intensidade na obra e no relato do artista
norueguês Edvard Munch, conversam intimamente com os mais profundos sentimentos
e sensações daqueles que já atravessaram a Depressão como estado clínico, reconhecida
por Winnicott como as impurezas do humor deprimido, tema que será desenvolvido
neste estudo, à luz da teoria do amadurecimento.

Edvard Munch sofria de uma grave depressão, teve uma trajetória conturbada,
cresceu num ambiente em que tudo falhou. Menino de saúde frágil, passou por diversas
internações na infância. Sua mãe faleceu, quando tinha 5 anos, seu pai, militar e
extremamente religioso, fora um pai duro e pouco afetivo. Após a morte de sua mãe,
estabeleceu um vínculo importante de carinho e cuidado com a irmã mais velha, que
veio a falecer aos 15 anos de idade. Nos anos seguintes, Munch perdeu o pai e viu a
outra irmã ser internada em um hospital psiquiátrico com diagnóstico de esquizofrenia.
Ele então ficou sob os cuidados da tia, que o matriculou na Escola de Artes e Ofícios de
Kristiania, atual Oslo, aonde começou a pintar, encontrando um meio de lidar com os
fantasmas de seu mundo interno e as perdas que viveu ao longo da vida.

Sua obra é marcada por temas como solidão, melancolia, ansiedade, medo e a
morte, tão presentes em sua trajetória, buscou retratar as mais profundas e dolorosas
expressões humanas. Tornou-se um dos principais representantes da corrente
expressionista do século XX. A arte em sua vida teve um efeito curativo, foi por meio
dela que encontrou uma forma de continuar a ser e ser real no mundo, mesmo tendo
sido marcado por experiências tão traumáticas e momentos de importante
desorganização emocional. “Quando pinto a doença e o vício, isso supõe um saudável
desabafo. É uma reação saudável da qual se pode aprender e segundo a qual se pode
viver”. (MUNCH)

O caso de Munch é um exemplo de como a depressão pode ter intensidades e


sintomas diversos e como o ambiente, as relações e as experiências vividas ao longo da
trajetória pessoal são fatores que contribuem para o adoecimento. Tão diverso quanto as
manifestações clínicas do estado depressivo, são os aspectos envolvidos na sua etiologia
e as indicações de tratamento, tornando-se um tema complexo e controverso. A
psicologia e a psiquiatria, disciplinas responsáveis pelo estudo e tratamento da
depressão, estão fundamentadas em bases distintas, possuindo enfoques de compreensão
e atuações diferentes. A psiquiatria propõe a ideia de que a depressão é um transtorno
bioquímico e como tal, deve ser tratada com medicamentos que visam a regulação do
humor. A psicologia considera que a gênese da depressão é relacional, apontando para a
importância de investigar a história do desenvolvimento pessoal e emocional do
paciente para compreender a construção e manutenção do sintoma depressivo, processo
que se dá através da psicoterapia. (MORAES, 2005)
A polarização e oposição dessas propostas parece ser um fator limitante no que
diz respeito a compreensão da depressão e ao tratamento das pessoas que sofrem com
ela. Numa compreensão winnicottiana, todo ser humano habita um corpo, que não pode
ser presumido separado do mundo pessoal e relacional, e, portanto, revela-se marcado
pelas experiências do indivíduo ao longo da sua existência, de modo que toda e
qualquer manifestação sintomática localiza-se na unidade psico-soma.
Como médico e psicanalista, Winnicott teve uma formação integradora, traço
marcado na sua teoria, dialogou com um público amplo, sob enfoques diferentes,
atuando e testando diversos enquadres, o que enriqueceu e ampliou suas pesquisas,
levando-o a propor ideias inovadoras na compreensão das psicopatologias.
Winnicott relaciona os conceitos de saúde e doença à maturidade. Entende
como sendo intrínseco à natureza humana, uma persistente tendência ao
amadurecimento, que promove o desenvolvimento do indivíduo e proporciona um
impulso no sentido da cura quando há interrupções nesse processo de evolução.
Partindo dessa premissa, compreende as doenças mentais como padrões de conciliação
entre êxito e fracasso com relação às tarefas previstas em cada fase do desenvolvimento
emocional. “Deste modo, saúde é maturidade emocional, maturidade de acordo com a
idade, e doença mental tem, subjacente, uma detenção da mesma”. (WINNICOTT,
1983/2007, p. 200)
Estabelecer o elo entre as doenças psíquicas e os estágios do
desenvolvimento emocional da pessoa foi o principal passo de Winnicott para
desconstruir a ideia de classificação dos distúrbios em entidades nosológicas
fixas, predefinidas e sentenciais. Sendo assim, a doença psíquica está
associada à estagnação do processo de desenvolvimento emocional e pessoal,
numa extensão em que seja possível observar a inabilidade da pessoa em se
relacionar - de modo condizente com a idade cronológica e o contexto social
- com a realidade externa e objetiva em qualquer aspecto da existência.
(MORAES, 2005, p. 285)

Um dado importante no diagnóstico winnicottiano refere-se às condições do


ambiente, que pode assegurar ou não o que o indivíduo necessita para continuar a ser.
Para Winnicott, o estar no mundo é sempre constituído de modo relacional, grande parte
daquilo que caracteriza uma pessoa – seu modo de ser, sentir, pensar e fantasiar – se dá
no relacionamento com o outro. Assim sendo, quando a provisão ambiental é falha ou
ausente, podem acontecer interrupções no processo de amadurecimento pessoal,
promovendo a organização dos chamados distúrbios do amadurecimento. (MORAES,
2005).

Além das falhas ambientais, outro fator a se observar, ao se elaborar um


diagnóstico com base na teoria do amadurecimento de Winnicott, diz respeito a
organização dos mecanismos de defesa, o que é um indicativo do que ele chamou força
de ego. Na psicanálise winnicottiana, o ego deixou de ser considerado uma instância
psíquica e passou a ser compreendido como uma tendência, que depende do grau de
integração do eu (o si-mesmo). Quando o processo de integração não se dá de forma
satisfatória, tendo sido interrompido precocemente, emergem defesas excessivamente
rígidas, que visam proteger o si-mesmo, assegurando a continuidade de ser, que é a base
da força do ego. Entretanto, o excesso de rigidez dessas defesas afeta a relação do
indivíduo consigo mesmo e o seu ambiente, é como se o si-mesmo verdadeiro ficasse
encapsulado e distante da realidade, gerando um padrão reativo, pouco ou nada
espontâneo de estar no mundo. (WINNICOTT, 1960)

Tais considerações são de especial importância no diagnóstico dos estados


depressivos, uma vez que, muitas vezes se manifestam associados a essas defesas mais
precoces, sendo necessário, para elucidar a gravidade do caso e o caminho de
tratamento, avaliar o estado de integração conquistado pela pessoa e o grau de distorção
do ego. Para compreender melhor como se manifestam e estruturam tais superposições,
compondo os matizes do humor deprimido, será explorado a seguir a teoria da
depressão de Winnicott.
DESENVOLVIMENTO

DEPRESSÃO EM WINNICOTT

Figura 2: Melancolia

Fonte: Google Imagens (MUNCH, 1891)

Um nevoeiro sobre a cidade representa o


humor deprimido. Tudo está lento e
mantido em estado de inércia. Esse estado
de inércia relativa controla tudo e barra os
instintos e a capacidade para se relacionar
com objetos externos. Gradualmente, o
nevoeiro fica menos denso e em certos
locais começa mesmo a desaparecer.
WINNICOTT, 1963

Winnicott fez contribuições importantes na compreensão dos fenômenos


depressivos. A ideia central de sua obra a respeito da experiência da depressão é que
ela, por mais intolerável que seja, é sinal de saúde, pois, uma vez associada a existência
de conflitos instintivos – amor, ódio e culpa – evidencia a presença de um mundo
interno, de um EU integrado que reconhece a existência da realidade externa e é afetado
por ela.
Nossa visão da depressão está intimamente ligada ao nosso conceito de força
do ego, de estabelecimento do self e de descoberta de uma identidade
pessoal; é por essa razão que podemos discutir a ideia de que a depressão tem
valor. (...) mesmo em distúrbios severos, a presença do humor depressivo dá
alguma base para a crença de que o ego individual não está rompido (...).
(WINNICOTT, 1963/2011, p.62)

Como foi esclarecido anteriormente, para o autor, a força do ego depende da


integração e é esta condição de integração que confere a saúde, pois ele acredita que
somente a pessoa integrada consegue assumir plena responsabilidade por todos seus
sentimentos e ideias e não precisa ficar usando, o tempo todo, a técnica da projeção para
lidar com seus impulsos e pensamentos destrutivos. Pode-se dizer que esta pessoa
atingiu a capacidade de se preocupar e/ou deprimir, tornou-se concernida, usando o
termo de Winnicott. O humor depressivo, quando experimentado de modo saudável, é
como um estado de contemplação interna, no qual o indivíduo se recolhe para reavaliar
e buscar acomodar os elementos bons e maus do seu mundo pessoal. Por isso, Winnicott
dizia que uma pessoa pode sair fortalecida, mais estável e mais sábia de um período
depressivo e que “a depressão traz dentro de si mesma o germe da recuperação”.
(WINNICOTT, 1963/2011, p.60)

Apesar disso, ele adverte que a depressão pertence à psicopatologia e pode ser
severa e incapacitante, podendo, até mesmo, durar a vida inteira dependendo de como se
se deu o processo de integração do indivíduo, o que vai interferir nos recursos que ele
dispõe para lidar com seus instintos. Daí a amplitude das possíveis manifestações
clínicas da depressão, que, segundo Winnicott vão do “quase normal ao quase
psicótico”. (WINNICOTT, 1963/2011, p. 199)

Em seu modo de entender, a depressão deve ser compreendida como um


quadro específico e não simplesmente como um tipo de neurose. Dos estudos realizados
sobre o tema, ele chegou à conclusão de que a classificação dos estados psíquicos em
apenas dois tipos – neurose e psicose – como proposto por Freud, é “prática”, porém,
muito “simples”, “limitada”, “artificial” e “grosseira”. As doenças afetivas ou do humor
representam para ele a principal justificativa para a proposta de uma classificação
psicanalítica ampliada. (MORAES, 2005)

Entre a neurose e a esquizofrenia há todo um território coberto pela palavra


depressão. Quando digo entre, realmente quero dizer que na etiologia destas
doenças, os pontos de origem da depressão se situam entre os pontos de
origem da esquizofrenia e da neurose. Quero dizer também que há todos os
graus de superposição. (WINNICOTT, 1963/2011, p. 199)
Para compreender esse vasto território coberto pela depressão em suas
diferentes manifestações e o porquê, em algumas pessoas, o humor deprimido pode ser
uma experiência enriquecedora, enquanto para outras, uma verdadeira prisão, é preciso
resgatar a história do indivíduo com relação à conquista do concernimento e como se
deu tal estágio, pois é neste momento que se vivencia a integração da vida instintual. A
questão é que o concernimento só poderá ser alcançado mediante conquistas anteriores,
referentes ao estabelecimento do EU SOU, que remontam aos primórdios do estágio da
dependência relativa. Daí a amplitude das manifestações depressivas e defesas que
podem vir associadas.

DEPRESSÃO E SUAS ORIGENS

Figura 3: Amor e Dor

Fonte: Google Imagens (MUNCH, 1895)

Amor e Dor, ilusão e desilusão, fusão e separação, culpa e agressividade: esses


estados ambivalentes e ao mesmo tempo complementares, que ficam tão bem
representados no abraço doloroso de Munch (1895), que acolhe e fere os pares da dupla,
ora misturados, ora separados, são o pano de fundo da depressão. Não poderia haver um
retrato mais fiel das intensas experiências instintivas do amor primitivo vividas no
estágio da dependência relativa.

Na fase da dependência relativa, o bebê deve atravessar algumas etapas:


desilusão, transicionalidade, uso de objeto, eu sou, culminando no concernimento
(derivado do inglês concern: preocupar, interessar), conceito cunhado por Winnicott ao
reescrever a posição depressiva de Klein. Segundo Moraes (2005), é na experiência do
concernimento que está a chave para a compreensão do relacionamento da pessoa com a
externalidade e a base para o estudo da depressão em suas diferentes formas.

A dependência relativa ainda faz parte das etapas iniciais do amadurecimento,


é o momento em que está se consolidando o EU como unidade e a diferenciação EU-
NÃO EU, portanto, se houver um padrão de falhas do ambiente nesse período, ainda há
riscos de psicose. As origens das impurezas do humor deprimido remontam a esta fase.

O estágio da desilusão é caracterizado por uma gradual desadaptação da mãe


com relação às necessidades do bebê. Esta, se é uma mãe saudável, vai se cansando do
estreitamento de seu mundo e da extrema exigência que a dependência absoluta requer,
de modo que passam a ocorrer pequenas falhas consideradas adaptativas, uma vez que
acompanham os avanços do bebê e favorecem o rompimento da unidade mãe-bebê,
liberando o pequeno para viver o longo processo de separação e se constituir como um
eu unitário. Durante esse processo, o funcionamento mental e os processos intelectuais
começam a ser exercidos, ajudando o bebê a lidar com as falhas maternas. Uma
incipiente compreensão dos padrões do ambiente permite que o bebê tolere a ausência
da mãe e tenha alguma previsibilidade sobre isso. (DIAS, 2017)

Um aspecto importante do processo de desilusão, que abre caminho para a


experiência da ambivalência, é a capacidade da mãe para sentir ódio em relação ao bebê
sem retaliá-lo, assim como suportar a ira do bebê provocada pela desadaptação dela.
Winnicott dizia que “a mãe sã ou normal é capaz de suscitar a ambivalência na relação
com o objeto e de poder utilizá-la apropriadamente” (WINNICOTT, 1989/1994, p.114).
Uma mãe clinicamente deprimida pode não suportar todos os sentimentos e sensações
despertados nessa fase inicial, gerando um cuidado instável e pouco confiável que pode
promover a inibição dos instintos do bebê, levando-o a um desenvolvimento precoce da
mente, quadro que se manifesta em alguns casos de depressões impuras.

O que garante as bases para um processo saudável de desilusão é ter vivido a


ilusão de onipotência. Se o bebê não foi exposto a um padrão ambiental invasivo e pôde
ser – ser o objeto, ser o mundo – apresentados a ele em pequenas doses, ao amadurecer,
vai se dando conta de que não é ele quem cria o mundo, a onipotência vai se diluindo,
mas o sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente e pode continuar a ser criado
não desaparece. Essa percepção está na base da criatividade e move o indivíduo para a
experiência da transicionalidade, na qual o bebê adquire um novo sentido de realidade, a
chamada terceira área da experiência ou espaço potencial, que une e ao mesmo tempo
separa o mundo subjetivo e a realidade objetiva. Os objetos transicionais exercem uma
função de amparo, por substituírem a mãe que se desadapta e desilude o bebê. De posse
desse objeto, que é do mundo, mas ao mesmo tempo, é criado por ele, o bebê vai se
desligando da mãe, do dois-em-um da unidade fusional vão emergir dois indivíduos e se
estabelecer um relacionamento. Os objetos e fenômenos transicionais facilitam essa
passagem garantindo que a realidade externa seja concebida mantendo o significado
pessoal. Desse modo, para Winnicott, o sentido de realidade, o sentir-se real e vivo no
mundo está fundado na ilusão básica e o objeto transicional é o que faz a ponte entre
eles. Quando esta ponte é perdida ou não é estabelecida, o gesto espontâneo fica
comprometido e o viver se arrasta no tempo e não é criado, levando a queixa, tão
comum entre os deprimidos crônicos, da falta de sentido na vida. (DIAS, 2017)

Uma vez garantida a ponte entre o mundo subjetivo e a objetividade, o bebê já


está preparado para perceber e fazer uso dos objetos externos. Para que ele possa
perceber o objeto como externo e não como parte de si mesmo, precisa expulsá-lo do
seu controle onipotente. Essa operação de expulsão do objeto é denominada por
Winnicott de destruição do objeto. É preciso destruir o objeto subjetivo, na verdade o
caráter subjetivo do objeto, para que o objeto externo seja concebido. Tal destrutividade
não ter a ver com a raiva, trata-se de uma necessidade, própria do amadurecimento, de o
individuo habitar num mundo que não é a sua projeção e, portanto, exerce um papel
fundamental na criação da realidade. “O que o indivíduo está criando, neste estágio, não
é propriamente um objeto, mas um novo sentido de realidade, o da externalidade”.
(DIAS, 2017, p. 220)

Para que esse processo seja possível, é preciso que a mãe-objeto sobreviva à
destruição. Sobreviver aqui significa não retaliar, não mudar de atitude, não sucumbir.
Se o objeto sobrevive é sinal que ele tem uma existência independente, o que dará ao
bebê a possiblidade de usar o objeto. Se o bebê precisar proteger o objeto, é o caso de
uma mãe frágil, ele não fará a experiência necessária de destruição e não chegará a se
relacionar com o objeto externo, não poderá usá-lo, nem amá-lo, nem odiá-lo. (DIAS,
2017)
Falhas ambientais, nesse período, levam aos quadros depressivos associados a
defesas do tipo falso si-mesmo, pois o que está na origem não se trata da culpa que vem
da responsabilidade pela agressividade contida no impulso instintual, típica do
concernimento, trata-se de algo mais primitivo e básico: a incapacidade para
experimentar a destrutividade que cria a externalidade e constitui o si-mesmo como eu
separado. Configurando-se como uma defesa do ser, do continuar a ser e não do ego,
que ainda não se integrou. (DIAS, 2017)

No estágio do EU SOU se da a conquista da unidade num eu integrado e


separado da mãe. Embora não se possa determinar uma idade exata, Winnicott sugere
que, por volta de um ano e meio, as crianças estão começando esse processo, que
alcança maior estabilidade por volta dos dois ou três anos.

Com essa conquista alcança-se um acabamento e um começo, pois o estado


de SOU, o sentimento de ser real e de existir como identidade não constituem
um fim em si mesmo, mas uma posição a partir da qual a vida pode ser
vivida. (DIAS, 2017, p.228)

A partir do EU SOU, a criança percebe-se tendo um contorno, como uma


membrana limitante, que a separa de tudo que é NÃO-EU. Ela passa a ter um interior,
uma realidade psíquica pessoal, um local aonde repousa suas memórias e o inconsciente
reprimido. Este é um momento de extrema vulnerabilidade, pois é quando se iniciam os
conflitos territoriais (eu/não-eu) produzindo por algum tempo um estado paranoide.
(DIAS, 2017)

Se o ambiente for invasivo e/ou não suportar os testes necessários a


consolidação do território recém conquistado do EU, colocando-o em risco, pode-se
desenvolver uma tendência a paranoia, reconhecida por Winnicott como uma das
possíveis impurezas da depressão, levando a sintomas persecutórios e hipocondríacos.

Tendo alcançado, em algum grau, o estatuto de um eu unitário, a criança está


agora em condições de realizar a integração da vida instintual, tarefa do estágio do
concernimento. Nesta etapa, os impulsos, até então externos à criança, passam a ser
integrados. De incompadecido, o bebê passa a sentir-se concernido pela impulsividade
que o domina nos momentos de excitação, torna-se também preocupado, pois dá-se
conta que essa impulsividade pode ferir o outro (a mãe), que é a mesma que lhe
sustenta, gerando um sentimento de culpa, ambivalência e intensa ansiedade. (DIAS,
2017)
A tarefa da mãe nesta fase é sustentar a situação no tempo e sobreviver aos
ataques, suportando o ódio direcionado a ela, mantendo o ambiente seguro e confiável.
Quando a mãe pode sustentar esta condição, a criança tem tempo de se recuperar dos
estados agressivos e organizar gestos reparatórios. Ela sente necessidade de saber que o
estrago que fez pode ser consertado e reparado. Quando se completa a reparação,
concretiza-se o que Winnicott chamou de ciclo benigno, uma sequencia de machucar-e-
remendar que se repete inúmeras vezes, é o que permite à criança suportar a culpa e
acreditar na possibilidade de reparação e no esforço construtivo, tornando-a livre para o
ambivalente amor instintual. (DIAS, 2017)

Segundo Moraes, as variações mais saudáveis ou menos saudáveis das


experiências depressivas são definidas a partir da posição da pessoa quanto às
conquistas do concernimento.

A pessoa que alcançou a capacidade para ser concernida foi amparada de


maneira adaptada pela mãe desde um momento bem primitivo, não teve
problemas relativos à fusão dos impulsos agressivos e instintivos, distinguiu
fatos e fantasias e conquistou a capacidade para a ambivalência. Trata-se de
uma pessoa que possui uma culpa reparadora e construtiva, parecida com
sentimentos de responsabilidade e envolvimento pela vida e pelos
relacionamentos interpessoais. As dificuldades para essa pessoa serão
inerentes ao viver e nunca relacionados ao aflitivo problema do vir-a-ser,
próprio das pessoas mais esquizoides, que nunca conseguiram viver com base
no verdadeiro eu ou na auto-expressão. (MORAES, 2005, p.247)

Quando a mãe falha em sustentar a situação no tempo e sobreviver aos testes


da criança, o ciclo benigno pode ser rompido e o concernimento não é alcançado ferindo
a capacidade para a ambivalência e gerando uma culpa patológica. Nesses casos, se
estabelece depressões do tipo psicóticas ou patológicas, uma vez que o indivíduo
regride na linha do amadurecimento, tendo que lançar mão de mecanismos de cisão,
dissociação ou repressão para lidar com as ansiedades referentes a experiência de amar
e odiar a mesma pessoa. (MORAES, 2005)

Winnicott propôs uma classificação dos quadros depressivos em Depressões


Reativas (Simples e Patológicas) e Depressões Psicóticas.

A depressão reativa simples, já comentadas anteriormente, nada mais é do que


a vivência do humor deprimido, não deve ser vista como uma doença rara e sim, um
estado de humor, comum tanto em crianças como em adultos, e revela a capacidade da
pessoa de se responsabilizar pela destrutividade inerente ao viver no mundo, exercício
este que inevitavelmente gera raiva e frustração. (MORAES, 2005)

A depressão reativa patológica se caracteriza pela presença de aspectos


inconscientes que complicam a experiência do humor deprimido. Pode estar associada a
uma perda real, de um objeto ou situação, por exemplo a morte de um ente querido, uma
separação, uma situação de conflito. Nesses casos, é interrompida a possiblidade de
viver a reparação dos impulsos agressivos, levando, muitas vezes, o individuo a reprimir
tais impulsos. (MORAES, 2005)

As depressões psicóticas são reconhecidas por Winnicott como as impurezas


do humor deprimido, às quais serão descritas, nas suas manifestações, formação e
cuidado necessário, no item a seguir.

AS IMPUREZAS DO HUMOR DEPRIMIDO

Figura 4: Herança

Fonte: Google Imagens (MUNCH, 1944)

Uma mãe deprimida e fragilizada que não pode reconhecer e sustentar seu
bebê. Solto, perdido, adoecido, o bebê traz consigo a pesada Herança do não acontecido.

As depressões psicóticas são um reflexo de uma série de não acontecidos, que


ferem e/ou interrompem o processo de amadurecimento, levando a organização de
defesas que estão a serviço da continuidade do ser, tarefa que deveria ser assegurada
pelo ambiente.

As depressões psicóticas são reconhecidas, por Winnicott, como impurezas do


humor deprimido, pois são estados em que a experiência característica da depressão –
um recolhimento temporário para reconhecer e acomodar os elementos internos bons e
maus, seguida do sentimento de culpa reparadora e gesto reparador – não é suportada. A
agressividade e a ambivalência, inerentes aos relacionamentos, geram dúvidas
intoleráveis a respeito da própria destrutividade, que colocam em risco a integridade do
indivíduo e sua relação com o mundo. Este não suporta a culpa, que se manifesta de
forma patológica, e vive um estado de confusão interna constante, dificultando a
separação entre fato e fantasia. Tamanha tensão leva, algumas vezes, a erupção de
defesas do tipo psicóticas, caracterizadas pela desintegração, cisão ou dissociação do
ego. (MORAES, 2005)

O problema da depressão que contem impurezas está no fato de ela não poder
ser experienciada como um aspecto de fortalecimento da integração e
totalidade da pessoa e do enriquecimento das relações entre o mundo
pessoal/interno e a realidade compartilhada. Isso acontece, pois, mesmo que
essa pessoa seja capaz de conter certa quantidade de culpa, portanto, de
relacionar-se de modo responsável e relativamente construtivo com a
realidade externa, a incapacidade de tolerar (assumir) a destrutividade pessoal
faz com as tensões geradas na realidade interna evoquem o temor de que a
integração do eu e/ou da unidade psicossomática sejam rompidos.
(MORAES, 2005, p 242-243)

Ocupar-se desses temores gera um estado de baixa vitalidade e de inibição


persistente dos instintos, levando a alteração permanente do humor, o que compromete a
espontaneidade pessoal e produz uma sensação constante de futilidade e irrealidade,
frequentemente retratadas pelos depressivos crônicos como um profundo vazio.

Winnicott descreveu os quadros depressivos impuros de acordo com as defesas


que podem vir associadas, revelando resquícios de imaturidade do ego: (MORAES,
2005)

 Depressão esquizoide: estados depressivos em que há a presença de elementos


esquizoides difusos complicando a depressão. Apesar de se observar uma certa
organização do ego, em função do humor depressivo, a ameaça de desintegração
acompanha a pessoa, levando-a a organização de defesas psicóticas de divisão,
despersonalização, sentimentos de irrealidade e falta de contato com a realidade
interna.

 Depressão com delírios persecutórios: se manifesta em pessoas que mantêm uma


estrutura de ego, o que torna possível a depressão, mas são suscetíveis a delírios
persecutórios. Por meio do mecanismo da projeção, o paciente coloca no mundo
ou na memória de traumas, os fatores adversos do seu ambiente, o “mau” que
não pôde admitir em si, aliviando-se das perseguições internas.

 Depressão hipocondríaca: Winnicott inclui nessa categoria os pacientes que


obtêm alívio das tensões internas por meio de doenças somáticas. Esses
pacientes dramatizam a luta interna entre o que é bom e mau em termos
corporais, por meio de queixas de dor e desconforto, podendo até haver uma
doença física real, usada para expressar (projetar) o mau que não pode ser
admitido no mundo interno.

 Depressão com defesa maníaca: Winnicott se refere à defesa maníaca como o


“feriado da depressão” e entende que, nesse estado, cada detalhe da depressão –
inércia, sensação de peso, escuridão e circunspecção – é suplantado por um
oposto equivalente – vivacidade, leveza, luminosidade e frivolidade. A pessoa
em mania nega a seriedade e a dúvida, não suporta a culpa, revelando-se incapaz
de se responsabilizar.

 Oscilação maníaco-depressiva: Winnicott diz que a oscilação maníaco-


depressiva não oferece, como a defesa maníaca, oportunidade de férias, pois
trata-se de uma alternância de dois estados igualmente desconfortáveis. A
dissociação dos estados de humor é o que caracteriza o quadro, revelando uma
cisão da personalidade.

 Exagero das fronteiras do ego: esse estado depressivo é decorrente do temor da


perda das conquistas alcançadas. A ameaça dos mecanismos esquizoides
estabelece um estado de inibição dos impulsos, que pode acabar se incorporando
à personalidade do pessoa, de modo que sempre estará presente um estado de
baixa vitalidade, tristeza e excesso de racionalidade.
 Melancolia e mau humor: é um estado de defesa inconscientemente organizado
por pessoas que carregam um sentimento de culpa intolerável, sempre exagerado
e desconectado dos fatos reais. Representa uma tentativa de pôr ordem na
confusão do mundo interno, desencadeada pela culpa e pela suspeita de que o
ódio é maior que o amor. No geral, são pessoas de difícil convivência, pois,
devido ao esforço para manter afastados do mundo interno sentimentos que
ameaçam reaparecer, se mostram constantemente mau humoradas, exalando uma
acidez.

O tratamento da depressão é tão diverso quanto suas manifestações. Nos casos


mais graves, a associação com terapias medicamentosas pode se fazer necessário. No
entanto, Moraes faz um alerta importante:

(..) se uma pessoa é arrancada de um estado deprimido por técnicas externas


(medicamentos e tratamentos físicos), retira-se dela a oportunidade de passar
por uma relevante experiência de vida. Essa pessoa poderá́ até retornar para a
vida, porém, terá́ perdido a oportunidade de entender o que aconteceu com
ela. Os conflitos inconscientes relativos à culpa e à destrutividade
permanecerão sem entendimento (não admitidos) e sujeitos a retornar a todo
momento. Quando a experiência da depressão é interrompida por qualquer
forma de tratamento que retire da pessoa a condição de perceber sua
participação nesse adoecer, algo de pessoal se perde. A suposta “cura” não
traz amadurecimento, é sentida como algo externo e impessoal. (MORAES,
2005, p. 257)

Por isso, a administração de medicamentos não é recomendada para todos os


casos de depressão e, quando associado, dever ser feita com cautela e em conjunto a um
processo terapêutico, que ofereça ao indivíduo o cuidado que lhe faltou, permitindo que
este regrida ao estágio em que seu amadurecimento foi interrompido e então possa
retomar a sua trilha.

Winnicott propôs uma modificação da técnica psicanalítica clássica para o


tratamento das depressões psicóticas, considerando mais adequado uma forma de
atendimento inspirada no modelo do cuidado materno, propondo: o holding para
pessoas que ainda lutam para conquistar o eu pessoal; o manejo, baseado na
transferência dual, para indivíduos imaturos, que sofrem com as impurezas do humor
deprimido; e a análise da transferência clássica para aqueles que chegaram a um estado
de relativa saúde mental, como nos casos de depressão reativa. (MORAES, 2005)
De qualquer maneira, algo que não se pode perder de vista, ao cuidar de
pessoas deprimidas, é a possiblidade de ser uma presença que possa se sustentar no
tempo e sobreviver aos ataques que certamente se apresentarão na relação
transferencial, para que o paciente faça seu percurso, no seu tempo, de maneira pessoal,
acomodando a ambivalência instintiva e/ou retomando seu processo de integração.

CONCLUSÃO

Solidão é lava que cobre tudo


Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão

PAULINHO DA VIOLA, 1972

O samba de Paulinho da Viola conversa intimamente com as ideias


apresentadas neste ensaio sobre as depressões impuras como resquícios de um processo
de Desilusão que se deu “solitariamente”. Sem a dupla capaz de sustentar no tempo e
sobreviver, sem ilusão, o ser, só, sucumbe à amargura (oral), restando os dentes de
chumbo dissociados do coração, este emudece e sobrevive resignado e inibido,
escondido num falso e solitário ser.

Movido pela questão do porquê, em algumas pessoas, o humor deprimido pode


ser uma experiência enriquecedora, enquanto para outras, uma verdadeira prisão, este
estudo fez o caminho das origens da depressão na linha do amadurecimento. Seguindo o
rastro dos conflitos contracenados por amor, ódio e culpa, comuns aos casos
depressivos, buscou-se resgatar o estágio do concernimento, momento de integração da
vida instintiva e observou-se, que para esta tarefa se cumprir, muitas coisas precisam ter
acontecido antes: a ilusão, a desilusão, a transicionalidade, a destruição do objeto
subjetivo que leva a concepção do objeto externo, o uso deste, a afirmação EU SOU,
com todos os conflitos territoriais que isso implica e o cumprimento do ciclo benigno. E
tudo isso precisa acontecer na presença e permanência de um outro que sobrevive e
sustenta no tempo essas passagens.

Quando se vai só, pela ausência ou inconstância do outro, penosas são as


consequências para o indivíduo, que não dá conta de se integrar como si-mesmo e se
responsabilizar por todos os seus sentimentos e ideias, restando um ser que não é, com
diversas impurezas e fragilidades.

Ao fazer esse caminho, pode-se confirmar a sugestão de Winnicott de que a


depressão não pode ser compreendida como uma entidade nosológica fixa, tampouco se
enquadra na neurose. A depressão reside no entre: entre a psicose e a neurose, a saúde e
a doença, o amor e o ódio, a fusão e a separação, a culpa e a reparação, o eu e o não-eu e
como tal, pede um cuidado em dupla, um terapeuta que pode ser com, que pode
sobreviver e sustentar no tempo a reconstituição do caminho, bem como os
descaminhos, a angustia, os medos, a raiva, a dor, o Grito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Dias, E.O. (2003). Estágios da dependência e da independência relativas. In E.O. Dias,


A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott.(cap. IV). São Paulo: DWW editorial,
2017

Moraes, A. A. R. E. (2005). A contribuição winnicottiana para a teoria e a clínica da


depressão. Tese de Doutorado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Clínica, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

Moraes, A. A. R. E. (2010). A defesa do falso si-mesmo e os estados depressivos.


Winnicott e-prints, vol.5, n.1, pp. 1-16.

Viola, P. Dança da Solidão. A Dança da Solidão. Rio de Janeiro, Odeon, 1972.

Winnicott, D. W. (1963). O valor da depressão. In D. W. Winnicott, Tudo começa em


casa. (pp. 59-68). São Paulo: Martins Fontes, 2011.

Winnicott, D. W. (1960). Agressão, culpa e reparação. In D. W. Winnicott, Tudo


começa em casa. (pp. 69-79). São Paulo: Martins Fontes, 2011.
Winnicott, D. W. (1963). A Posição Depressiva. In D. W. Winnicott, Natureza
Humana. (pp. 89-115). Rio de Janeiro: Imago, 1990.

Winnicott, D. W. (1963). Os Doentes Mentais na Prática Clínica. In D. W. Winnicott, O


Ambiente e os Processos de Maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento
emocional. (cap. 20). Porto Alegre: Artmed, 2007.  

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