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São Paulo
2018
Nathália de Bortole Perosa Ravagnani
São Paulo
2018
INTRODUÇÃO
O olhar que ilumina a existência do ser, tema inspirado pela canção, será abordado
no presente trabalho, que tem como objetivo fazer uma explanação sobre a constituição do si-
mesmo primário, à luz da teoria Winnicottiana, identificando as tarefas da mãe e de seu bebê
nesse processo, com especial atenção à função especular do rosto materno. Ao abordar a
comunicação silenciosa que se dá na dupla mãe-bebê, serão resgatadas as ideias de Elemento
Feminino Puro e Elemento Masculino Puro e suas implicações para as formações Falso Self.
E por fim, para ilustrar os conceitos expostos e pensar na aplicação prática dos mesmos, o
recorte de um caso será apresentado e a partir dele, algumas recomendações de Winnicott aos
analistas.
Sendo o bebê, nesta fase, uma unidade com a mãe, para cada uma dessas tarefas,
existe o manejo correspondente que esta deve oferecer, proporcionando as condições
necessárias às aquisições do bebê ao longo do processo de amadurecimento. Winnicott
cunhou o termo mãe suficientemente boa para caracterizar a função materna nesse processo, a
qual, como o próprio nome diz, não se espera que seja desempenhada com perfeição, mas que
seja suficiente, no sentido de reconhecer e atender o que a criança precisa.
Para que a mãe seja capaz de decodificar o seu bebê, ela desenvolve um estado muito
especial e específico a esse momento, chamado por Winnicott de Preocupação Materna
Primária. Segundo Dias (2003/2017), trata-se de uma condição psicológica peculiar, na qual a
sensibilidade da mãe fica aumentada, ela experimenta uma regressão parcial, possibilitando
identificar-se com o seu bebê e saber o que ele precisa. Ao mesmo tempo, ela conserva o seu
lugar adulto, estando, portanto, apta a compreender, mas também a cuidar efetivamente da
criança.
Esse estado especial que a mãe acessa permite a ela desenvolver com o seu bebê uma
linguagem própria, muito anterior ao desenvolvimento da fala, que opera uma comunicação
silenciosa entre eles. É sobre isso, que é dito sem ser proferido, tão sutil e tão fundamental,
uma vez que possibilita a inauguração da experiência de ser no mundo, que vamos nos
debruçar.
DESENVOLVIMENTO
O bebê não se percebe, no início, como um todo, nem se da conta, como vimos
anteriormente, da separação entre ele e a mãe. Desse modo, para que o bebê tenha condições
de atingir a noção de EU SOU, ele precisa passar de um estado de não-integração para um
estado de integração. Dias afirma que esse processo “não se dá de uma só vez, nem de uma
vez por todas.” (DIAS, 2003/2017, p.193). A partir do estado de não-integração ocorrem
breves momentos de integração, mediante excitação do bebê, que após ser saciado, retorna ao
estado tranquilo e não-integrado. Essas duas condições vão se alternando e gradualmente o
estado geral de integração se estabelece de maneira estável.
Nesses momentos em que o bebê é tomado de uma tensão instintual, por exemplo a
fome, ele “junta as suas partes” e se excita, o que sinaliza à mãe uma necessidade. Na medida
em que ela se dá conta desse “pedido” e o atende da maneira, na medida e no tempo certos, o
bebê sente como real a sua experiência: sua necessidade, seu impulso, seu gesto e o cuidado
recebido. Uma vez saciado, ele se “desmancha”, retornando ao estado tranquilo de não-
integração, mas leva consigo um tipo de memória deste evento. É importante salientar que,
nesse estágio, não existe mente, portanto a memória que o bebê retém dessa experiência é
algo bem primitivo, um tipo de memória corporal. Sobre essa experiência Dias afirma:
Esses momentos de vivacidade e excitação são precedidos de “uma convergência
aglutinadora do si-mesmo como um todo”. A experiência de estar reunido num si-
mesmo, mesmo que momentaneamente, mas a partir do impulso criativo, é sentida
como real. (...) O encontro com o objeto “realiza” o estar vivo e a necessidade não
apenas no sentido da satisfação, mas no de tornar reais a própria necessidade, o
impulso, o gesto que sai “em busca...” e o algo que é encontrado. (DIAS, 2003/2017,
p. 193)
Tendo isso posto, pode-se dizer que muitos se enganam ao afirmar que os bebês
saudáveis são aqueles que não choram, na verdade esse comportamento inexpressivo pode ser
um alerta de algo que não vai bem. A auto-expressão e o espaço para que ela se dê é de
extrema importância, Winnicott afirma que a saúde do individuo está relacionada a
preservação desse impulso criativo que leva ao gesto espontâneo. Ele nos diz:
O mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu trabalho no
mínimo tão cedo quanto o momento de seu nascimento e da primeira mamada
teórica. Aquilo que o bebê cria depende em grande parte daquilo que é apresentado,
no momento da criatividade, pela mãe que se adapta ativamente às necessidades do
bebê (...). Sabemos que o mundo estava lá antes do bebê, mas o bebê não sabe disso,
e no início tem a ilusão de que o que ele encontra foi por ele criado (...).
Gradualmente, surge uma compreensão intelectual do fato de que a existência do
mundo é anterior à do indivíduo, mas o sentimento de que o mundo foi criado
pessoalmente não desaparece. (WINNICOTT, 1896-1971/1990, p.130-131)
Portanto, podemos dizer que esses momentos de integração sucedidos de cuidado
adequado são as experiências inaugurais do si mesmo. Pois, ao buscar e encontrar com o
cuidado/objeto-seio apresentado pela mãe, o bebê sente como algo que ele criou, que partiu
dele e, portanto, como um objeto subjetivo, de modo que ele faz uma experiência de
identificação primária com o objeto. Ele, o bebê, torna-se o objeto.
Dias (2003/2017) afirma que essa experiência de ser tem um novo sentido para além
daquele da continuidade de ser: o de ser como identidade. A essa experiência de ser,
Winnicott relaciona o que ele chamou elemento feminino puro:
É preciso que o bebê se encontre com um seio que “é, isto é, com o seio de uma mãe
com capacidade de ser, e não com um seio que “faz”. O seio que ‘faz” é um seio de
“elemento masculino puro” e não é satisfatório para a experiência inicial de
identidade. (DIAS, 2003/2017, p. 195)
Quando a mãe é do tipo que faz e impõe o seu modo de funcionamento, ocorre uma
reação por parte do bebê, o que quebra a continuidade de ser e produz uma cisão entre
espontaneidade e reatividade. Dias (2003/2017) alerta que se este for o padrão do ambiente, o
bebê não deixa de construir uma identidade, mas esta será falsa, artificial, pois será edificada
defensivamente, visando a proteger o si-mesmo verdadeiro e espontâneo, que é isolado para
não ser traumatizado.
Portanto quando o bebê encontra um seio que faz e não um seio que é, o Fazer se
sobrepõe ao Ser, o que constitui as bases para as formações do tipo Falso Self. Já a mãe que
tem consigo a capacidade de ser e pode esperar o gesto espontâneo do bebê produz uma
criança cujo self não é (nas palavras de Winnicott, 1970/1994) invejoso do seio, uma vez que,
para essa criança o seio é o self e o self é o seio.
Desse modo, é essencial que a mãe esteja sensível ao seu bebê e possa esperar e
acolher o seu gesto. Para tanto, ela precisa se despir dos conhecimentos intelectuais a respeito
de como cuidar de um bebê e se aventurar a uma comunicação silenciosa com o seu bebê, o
que se torna possível quando ela se identifica com ele, de forma que sua compreensão vem de
um nível mais profundo.
Segundo Dias (2003/2017), um aspecto essencial dessa comunicação silenciosa é o
olhar da mãe. Enquanto mama, o bebê passa a olhar em volta e encontra o rosto da mãe.
Quando ele olha para o rosto dela, o que transparece no olhar da mãe é a sua própria visão do
bebê e a satisfação contida nesse encontro. O bebê, portanto, vê ele mesmo. “Ser visto pelo
olhar da mãe é uma das bases fundamentais do sentimento de existir” (DIAS, 2003/2017,
p.199). Diz Winnicott, “Quando olho, sou visto; logo, existo. Posso agora me permitir olhar e
ver. Olho agora criativamente (...)”. (WINNICOTT, 1967/1975, p.157)
Lacan propõe que, entre os seis e dozes meses de vida, a criança, ao se encontrar com
um espelho (aqui espelho físico, de vidro), vê refletida uma imagem que lhe permite reunir
experiências de um corpo fragmentado e construir uma representação visual de si. Winnicott
sugere que essa experiência se dá antes da criança se encontrar com o espelho físico, ainda no
estágio da dependência absoluta, ao se encontrar com o olhar da mãe. O “espelho” de
Winnicott é portanto, um “espelho vivo”: o rosto materno. Dessa forma, afirma Socha (2008):
O reconhecimento de si não partiria de uma virtualidade, mas da concretude da
presença somática da mãe. (...) O rosto materno, em sua expressividade afetiva,
sustenta o olhar do bebê e o devolve a si mesmo. Sentir-se visto e reconhecido pelo
olhar materno é para a criança a aprovação e confirmação da própria existência.
(SOCHA, 2008)
E quando o olhar da mãe não reflete o bebê? Há algumas mães que não podem notar
seus bebês, por estarem deprimidas ou ansiosas diante da nova função ou mergulhadas em si
mesmas ou preocupadas com a provisão ambiental, enfim, independente do motivo, se o olhar
da mãe não reflete o bebê, “um dado da realidade externa viola a legitima experiência de
onipotência do bebê”. (DIAS, 2003/2017, p.199)
Muitos bebês, contudo, têm uma longa experiência de não receber de volta o que
estão dando. Eles olham e não vêem a si mesmos. Há consequências. Primeiro, sua
própria capacidade criativa começa a atrofiar-se e, de uma ou de outra maneira,
procuram outros meios de obter algo de si mesmos de volta, a partir do ambiente.
(...) Depois, o bebê se acostuma à ideia de que, quando olha, o que é visto é o rosto
da mãe. O rosto da mãe, portanto, não é um espelho. Assim, a percepção toma o
lugar da apercepção, toma o lugar do que poderia ter sido o começo de uma troca
significativa com o mundo, um processo de duas direções no qual o auto-
enriquecimento se alterna com a descoberta do significado no mundo das coisas
vistas. (WINNICOTT, 1967/1975, p.154-155)
A palavra apercepção é usada por Winnicott como o oposto de percepção, sendo
esta uma relação com um objeto objetivamente percebido, resultante da capacidade em
estabelecer uma diferenciação entre eu e não-eu e, portanto, posterior a esse momento que
está em pauta. A apercepção, segundo Dias (2003/2017):
Refere-se ao olhar criativo próprio do mundo subjetivo. Está ligada à palavra criar,
no sentido de “trazer à existência”, ao fato de alguém ser capaz de continuar a “ver
tudo como se fosse pela primeira vez”. Quando há saúde, essa capacidade de olhar
criativamente o mundo não desaparece. Mesmo mais tarde, quando o individuo for
capaz de se relacionar com o mundo dos objetos percebidos objetivamente, esse
olhar nunca será inteiramente submetido. (DIAS, 2003/2017, p. 199)
Winnicott (1967/1975) fala que alguns bebês não perdem a esperança de
encontrarem algo significativo no olhar da mãe. Passam a fazer um estudo das várias feições
desta, numa tentativa de predizer o seu humor. Em casos assim, afirma Outeiral (2001),
ocorre o surgimento precoce da percepção, levando o bebê a um desenvolvimento egóico
prematuro, em detrimento de seu sentimento de self. Assim sendo, para poder olhar
criativamente o mundo, o indivíduo deve ter internalizado a experiência de ter sido olhado.
“Olhado e visto a si mesmo, sem que a doença ou o desejo da mãe tenha se interposto e
imposto a ausência de especularidade”. (OUTEIRAL, 2001, p. 85)
Fonte: Composição de Clarice Outeiral com o quadro “Mi mama y yo” de Frida, (OUTEIRAL & GODOY,
2003)
Michele (nome fictício) tem 35 anos, casada, mãe de uma menina de 2 anos. Sua
queixa inicial dizia da dificuldade de lidar com a filha, que vinha manifestando
comportamentos opositores, típicos dos 2 anos, mas que para Michele eram muito difíceis de
administrar, gerando um descontrole em várias situações. Uma fala recorrente de Michele,
que representa o quanto essa situação era mobilizadora, é: “Quando eu era criança e minha
mãe vinha me corrigir por algum motivo, se inervava e ficava totalmente descontrolada e a
gente (referindo-se também aos irmãos) não tinha respeito nenhum com ela, eu pensava: ela é
a mãe, ela é adulta, não pode reagir assim. E hoje eu faço a mesma coisa com a minha filha,
não consigo ser a adulta. Eu me sinto uma fracassada...”
Michele teve uma mãe que sempre esteve muito ocupada dos fazeres da vida,
cumpridora de papéis que a faziam se sentir constantemente abusada e vítima das situações,
especialmente no que diz respeito aos cuidados com a própria mãe (avó de Michele). Sua mãe
seguiu fazendo e não sendo. O rosto que Michele encontrou era um rosto cansado, olhar
deprimido e defendido, que nunca se rebelou, sempre cumpriu. A dimensão do incomodo só
se podia notar lá, bem no fundo dos olhos.
Ao se deparar com as filhas num momento em que elas já podem afirmar: EU SOU,
numa fase em que estão testando essa descoberta, Michele se deu conta que ela não é, apenas
faz. Cresceu, mas não é adulta, o processo de amadurecimento ficou estagnado.
Ao tomar como referência os conceitos apresentados, pode-se dizer que Michele foi
um bebê privado do gesto espontâneo, que recebeu um olhar inexpressivo e esvaziado dos
efeitos da troca afetiva e silenciosa que se espera na dupla mãe-bebê. Ao invés disso, se
deparou com um olhar que não se comunicou com ela, preso ao mundo e ao si mesmo
também perdido da mãe. Esta, como seio que “faz” – de elemento masculino puro – gerou no
seu bebê a necessidade de investigar o ambiente e reagir a ele, que passou a “fazer como”,
comprometendo sua experiência inicial de ser como identidade e contribuindo para a
construção de um Falso Self.
Tendo sido privada do olhar especular, noto, na relação terapêutica, que mais do que
qualquer palavra, o que Michele precisa é de uma presença que possa sustentar o seu caos,
que possa sobreviver e ser com.
Já dizia Winnicott:
CONCLUSÃO
A partir dos estudos apresentados e das elaborações acerca do tema, chama a atenção
como essa passagem tão fundamental é tão sutil e primitiva. Essa conclusão traz um alerta
importante em relação a forma como é compreendido e conduzido os primeiros tempos da
vida de uma criança.
É comum ouvir, seja no consultório ou em situações sociais, a ideia de que os bebês não
entendem as coisas e portanto, é como se estivessem imunes aos acontecimentos do ambiente
nessa fase da vida. As falas: “Mas isso aconteceu quando eu era muito pequeno...”, “Relaxa,
ele nem vai lembrar...”, “Tanto faz quem cuida, ele não esta entendendo nada mesmo...” são
corriqueiras.
Como vimos, é verdade que o bebê, nos primórdios, não entende nada, porém ele sente-
vive tudo, é marcado e atravessado pelos movimentos mais simples e sutis do seu ambiente.
Justamente por ainda não ter um intelecto desenvolvido, o que fica desse tempo não são
histórias para contar, e sim o registro da experiência no corpo vivo, no psiquesoma.
Assim sendo, pode-se concluir que a dimensão primordial que subjaz à constituição do
si-mesmo e à experiência especular é o cuidado. Ao sentir-se cuidado e reconhecido pela
presença e pelo olhar materno, o individuo percebe a si mesmo. E cuidado aqui, como foi
dito, não se refere simplesmente ao manejo das necessidades fisiológicas, ao fazer, mas
também e em especial, ao acolhimento do impulso criativo e do gesto espontâneo, o que brota
do ser.
Essa lógica se aplica à clínica winnicottiana, a qual se consolida sob a ética do cuidado.
E para cuidar, é preciso ser pessoa, se faz necessário uma atitude íntima de alguém que é, que
sente e reflete o que vê. É preciso ser espelho vivo, pois, como diz o poeta: “É na soma do seu
olhar que eu vou me conhecer inteiro”. (CHICO BUARQUE, 1981)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dias, E.O. (2003). Estágios primitivos: a dependência absoluta. In E.O. Dias, A teoria do
amadurecimento de D.W.Winnicott.(cap. 3). São Paulo: DWW editorial, 2017
Outeiral, J. (2001). O olhar e o espelho. In J. Outeiral & S. Hisada & R. Gabriades, Winnicott:
seminários paulistas. (pp. 79-88). São Paulo: Casa do Psicólogo
Outeiral, C. (2003). Composição com o quadro “Mi mama y yo” de Frida. In J. Outeiral & L.
Godoy, Desamparo e Trauma: Transferência e Contratransferência. (capa). Rio de Janeiro:
Revinter, 2003.
Reis, N. Nos seus olhos. Sim e Não. São Paulo, Universal, 2006
Winnicott, D.W. (1949). O mundo em pequenas doses. In D.W. Winnicott, A criança e seu
mundo. (cap. 10). Rio de Janeiro: LTC editora, 1982
Winnicott, D.W. (1967). Papel de espelho da mãe e da família. In D.W. Winnicott, O brincar
e a realidade (cap 9). Rio de Janeiro: Imago, 1975
Winnicott, D.W. (1970). Sobre os elementos masculinos e femininos ex-cindidos [Split Off].
In D.W. Winnicott, Explorações Psicanalíticas. (cap. 28). Porto Alegre: Artmed, 1994