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VINICIUS BASTOS GOMES

ALMA: O ESTILO PIANÍSTICO DE EGBERTO GISMONTI

CAMPINAS
2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES

VINICIUS BASTOS GOMES

ALMA: O ESTILO PIANÍSTICO DE EGBERTO GISMONTI

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de Mestre em Música na Área de
Concentração: Teoria, Criação e Prática.

Orientador: PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ


Coorientadora: MARIA JOSÉ CARRASQUEIRA

Este exemplar corresponde à versão final


de Dissertação defendida pelo aluno
Vinicius Bastos Gomes e orientada pelo
Prof. Dr. Paulo José de Siqueira Tiné

________________________________

CAMPINAS
2015

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Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Gomes, Vinicius Bastos, 1990-


G585a GomAlma : o estilo pianístico de Egberto Gismonti / Vinicius Bastos Gomes. –
Campinas, SP : [s.n.], 2015.

GomOrientador: Paulo José de Siqueira Tiné.


GomCoorientador: Maria José Carrasqueira Dias de Moraes.
GomDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Artes.

Gom1. Gismonti, Egberto, 1942. 2. Alma. 3. Piano - Desempenho. 4. Composição


musical. 5. Música para piano - Interpretação. I. Tiné, Paulo José de
Siqueira,1970-. II. Moraes, Maria José Carrasqueira Dias de,1948-. III.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. IV. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Heart : the pianistic style of Egberto Gismonti


Palavras-chave em inglês:
Gismonti, Egberto, 1942
Heart
Piano - Performance
Music composition
Piano music - Interpretation
Área de concentração: Práticas Interpretativas
Titulação: Mestre em Música
Banca examinadora:
Paulo José de Siqueira Tiné [Orientador]
Alexandre Zamith Almeida
Danilo Ramos
Data de defesa: 19-06-2015
Programa de Pós-Graduação: Música

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Resumo:

Dividido em três capítulos, este trabalho constitui-se de uma investigação de aspectos


do estilo pianístico e composicional do multi-instrumentista Egberto Gismonti tendo como
material de estudo o álbum “Alma” (EMI-Odeon, 1986), obra em que o pianista executa suas
composições ao piano solo com adição de alguns sintetizadores. Para isso, foram realizadas
transcrições integrais das interpretações pianísticas presentes, disponíveis na seção de anexos ,
e, posteriormente, análises que conduziriam à identificação de aspectos recorrentes nessas
performances. Desse modo, podemos encontrar no primeiro capítulo informações sobre o
disco propriamente dito. Informações essas que nos trarão à luz um panorama sobre sua
concepção e realização. Somando-se críticas e depoimentos encontrados em jornais e livros,
em períodos próximos ao lançamento, às informações coletadas com alguns dos participantes
de sua confecção, pudemos traçar e exemplificar aspectos relacionados ao momento da
carreira em que se encontrava o pianista além de compreender o “ambiente” que auxiliou os
envolvidos a alcançarem os resultados técnicos e musicais até hoje celebrados, abrindo campo
para o aprofundamento na música. O segundo capítulo é constituído das análises propriamente
ditas. A partir das partituras geradas, as nove peças do disco: Baião Malandro, Palhaço, Loro,
Maracatu, Karatê, Frevo, Água e Vinho, Infância e Cigana foram observadas sob vários
pontos (melhor descritos nas considerações e metodologia), sendo alguns dos resultados
apresentados individual e separadamente sob o prisma dos aspectos mais relevantes
encontrados nessas análises. O terceiro capítulo constitui-se de uma síntese dos elementos
recorrentemente resultantes das análises, visando externar algumas das características mais
usuais além dos procedimentos mais utilizados pelo pianista para “dar vida” às suas
composições por meio de suas próprias performances, elementos esses que pudemos agrupar
como indicativos de uma idiossincrasia musical.

Palavras-Chave: Egberto Gismonti, “Alma”, piano solo,

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Abstract:

Divided into three chapters, this work consists of a research about pianistic and compositional
style of the multi-instrumentalist Egberto Gismonti having as study material the album
"Alma" (EMI-Odeon, 1986), a work in which the pianist plays his compositions in a solo
piano with some synths added. For this, full transcriptions of the actual piano interpretations
were realized, available in the attachments section, and then, analyses that lead to the
identification of recurrent aspects in these performances. Thus, we can find in the first chapter
information on the album itself. Such information that will bring us an overview of its
conception and realization. Adding criticism and testimonies found in newspapers and books,
at close times to the release, to the information collected with some of the participants in its
making, we illustrate aspects related to the career moment in which was the pianist in besides
comprehending the "environment "that helped those involved to achieve the celebrated
technical and musical results , opening the field to the deepening in music. The second
chapter consists of the actual analyses. From the generated scores, nine disk parts: Baião
Malandro, Palhaço, Loro, Maracatu, Karatê, Frevo, Água e Vinho, Infância e Cigana were
observed from various points (best described the considerations and methodology) and some
of the individual results and presented separately in the light of the most relevant aspects
found in these analysis. The third chapter consists of an synthesis of recurrently resulting
elements of the analysis, aiming to externalize some of the usual features performed by the
pianist to "give life" to their compositions through the performances, elements we could
group as indicative of a musical idiosyncrasy.

Keywords: Egberto Gismonti, “Alma”, solo piano,

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Sumário
OBJETIVOS E CONSIDERAÇÕES .........................................................................................1
1 - O DISCO .............................................................................................................................. 7
1.1 “Alma”..............................................................................................................................7
1.2 Revisita.............................................................................................................................8
1.3 O repertório...................................................................................................................... 8
1.4 Uma nova fase - “Não sou tão sutil como a música desse disco”.................................... 9
1.5 Músicos Participantes.....................................................................................................12
1.6 Gravação (dois pianos).................................................................................................. 14
1.7 Inovação tecnológica - Presença das partituras ............................................................. 17
1.8 Crítica e Vendas..............................................................................................................18
1.9 O CD ..............................................................................................................................19
2 - ANÁLISES.......................................................................................................................... 21
2.1 Baião Malandro ............................................................................................................. 21
2.2 Palhaço .......................................................................................................................... 38
2.3 Loro................................................................................................................................ 48
2.4 Maracatu......................................................................................................................... 59
2.5 Karatê............................................................................................................................. 73
2.6 Frevo...............................................................................................................................85
2.7 Água e vinho................................................................................................................ 106
2.8 Infância......................................................................................................................... 114
2.9 Cigana...........................................................................................................................127
3 - O ESTILO PIANÍSTICO.................................................................................................. 139
3.1 A concepção de erro e a percepção macroscópica........................................................139
3.2 Um piano de variações................................................................................................. 141
3.3 Forma:.......................................................................................................................... 143
3.4 Harmonia:..................................................................................................................... 145
3.5 Acompanhamento (e textura):...................................................................................... 146
3.6 Melodia:........................................................................................................................154
3.7 Dinâmica:..................................................................................................................... 160
3.8 Articulação....................................................................................................................162
3.9 Ao piano solo ...............................................................................................................165
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 167
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 171
6 - ANEXOS: TRANSCRIÇÃO INTEGRAL DO PIANO DE “ALMA” (EMI – ODEON,
1986)....................................................................................................................................... 177

xi
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Aos meus pais, por tudo.

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Agradecimentos:

Assim como dedico o trabalho, agradeço inicialmente e imensamente aos meus pais Jader B.
Gomes e Maria Cristina S. B. Gomes por toda a forca principalmente nos momentos difíceis
dessa trajetória que não foram poucos e que muito provavelmente teriam interrompido o
caminho.

Agradeço também ao meu orientador, sempre presente e solícito, Paulo Tiné, pela acolhida,
críticas e principalmente pelo entusiasmo e dedicação ao tema da pesquisa.

A Profa. Maria José Carrasqueira pela coorientação e grande auxílio nas questões práticas
com o instrumento.

A FAPESP pelo financiamento da pesquisa e profissionalismo extremo em todos os aspectos.

A Helena Augusta de Souza Cabral (Guta) pela revisão ortográfica minuciosa.

Aos amigos dos grupos Amago Trio e Quinteto Coloquial, Pedro Destro, Raul Rodrigues,
Carol Ladeira, Pedro Abrantes e Gustavo Infante por mostrarem que, apesar de todas as
dificuldades, “fazer” musica vale a pena.

Aos amigos Thiago Parente, Eduardo Akiyama, Stefanie Rubia, Natália Vieira, Filipe
Trindade, Maiara Moreira, Jaqueline Frazatti, Thiago Pinto, Thiago Valadao, Priscila Toneli,
Mariele Motta, Joao Coelho e Juliana Marta pelo convívio e aprendizado extra musicais
fundamentais ao processo de formação.

A Eduardo Mello e Souza e Nando Carneiro pelas entrevistas concedidas.

A Egberto Gismonti por toda sua contribuição à musica e à minha vida, fonte inesgotável de
inspiração.

A musica.

xv
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OBJETIVOS E CONSIDERAÇÕES

Objetivos Gerais

• Compreender e sintetizar, através dos estudos realizados, os procedimentos mais


utilizados por Egberto Gismonti para interpretar e improvisar sobre suas próprias
composições ao piano solo tendo como base o álbum “Alma” (EMI-Odeon, 1986),
abrindo caminho para que outros músicos possam se “apropriar” dessa idiossincrasia
musical/pianística.

Objetivos Específicos

• Obter informações sobre a feitura do álbum e o momento da carreira em que o músico


se encontrava.

• Transcrever integralmente o piano do álbum.

• Analisar, segundo os parâmetros estabelecidos, todas as faixas do álbum,


externalizando na dissertação os pontos mais importantes detectados.

• Compreender a maneira com que a improvisação ocorre na obra do pianista.

• Realizar uma comparação entre as versões em “piano solo” e versões anteriormente


gravadas em grupo.

• Sintetizar as características mais fortemente depreendidas pela pesquisa como


vestígios de um estilo pianístico.

• Incentivar a utilização das descobertas por outros músicos.

1
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Estão presentes no encarte de “Alma” (1986) partituras de todas as as composições ali


registradas. Porém, essas partituras atuam como lead sheets1 (com informações adicionais),
uma forma de escrita resumida, que é parte de uma escolha que dá ao intérprete mais
liberdade para alterações e improvisos. Porém, a melhor compreensão da música de Gismonti,
principalmente à maneira com que o pianista realiza no álbum, nos exigiu algo além, uma
espécie de lupa que encurtasse o caminho entre o que estava escrito e o que poderia ser
depreendido dos áudios, informações que, somadas, ainda nos pareceram insuficientes a um
intérprete que aspirasse uma execução que se aproximasse do trato dado por Egberto em seus
arranjos.
Há também que se notar que Egberto, sendo um músico improvisador, vez ou outra
insere novos trechos ou desenvolve ideias pouco exploradas em determinado arranjo ou
formação2. Havia necessidade então de ilustrações dessa prática.
Por outro lado, algumas das obras contidas no LP em questão aparecem rearranjadas
para diversas instrumentações em outros álbuns do músico. Sendo assim, é possível constatar
que o que é geralmente mantido na maioria desses registros fonográficos são as informações e
indicações contidas nessas partituras de base.
Desse modo, visando facilitar a execução pianística e a compreensão da maneira em
que Egberto Gismonti estrutura e executa suas peças, foram realizadas transcrições
minuciosas dos arranjos contidos no álbum estudado, transcrições que foram o ponto de
partida para as seguintes análises.

Metodologia

Para identificar e compreender as principais características das composições e


performances de Egberto Gismonti no álbum estudado, o método mais utilizado foi o do
cotejamento. Esse cotejamento foi realizado entre algumas das diversas fontes das quais

1 Forma de notação musical na qual estão presentes a melodia principal e a harmonia, por meio de cifras.
2 Exemplo disso pode ser encontrado na execução de Maracatu presente no álbum “In Montreal”(ECM,
2001), em duo com o contrabaixista Charlie Haden. Há nessa versão o desenvolvimento de uma seção da
música que não pode ser encontrado em outras performances de Gismonti.

2
podem absorver informações sobre o material: os registros sonoros contidos no álbum “Alma”
(EMI - Odeon,1986) e em outros álbuns nos quais estão presentes as músicas analisadas, as
partituras (lead sheets) encontradas no encarte do disco, as partituras contidas no Songbook do
músico (Mondiamusic, 1990)3 para Frevo, Palhaço, Maracatu, Loro, Karatê, Baião
Malandro e, principalmente, as transcrições completas das obras realizadas pelo autor deste
trabalho.
A utilização dos lead sheets como fonte de pesquisa foi de suma importância
principalmente para a análise harmônica pois, como observaremos posteriormente, algumas
das formas de acompanhamento utilizadas pelo músico tornam o reconhecimento e a
classificação dos acordes uma tarefa demasiadamente complexa por conta da complexidade
da execução (como pode-se observar principalmente em Loro, Karatê e Frevo). Dessa
comparação entre a partitura completa e os lead sheets, pode-se encontrar também
divergências entre as cifragens das fontes e do presente trabalho. Divergências que se deram
pela tentativa do autor dessa dissertação de manter o rigor analítico para a construção dos
acordes. Utilizaremos então, para as três peças em que esse tipo de acompanhamento se faz
presente, “Loro”, “Karatê” e “Frevo”, uma cifragem mais balizada no material escrito,
mesclando, adaptando e alterando acordes contidos no Songbook do músico e a nas partituras
da contracapa. Para outras, utilizaremos cifras que se guiam mais pelas partituras geradas.
Comuns a todas as análises foram os seguintes parâmetros: forma, sonoridade,
harmonia, acompanhamento, melodia e outras considerações especiais quando necessárias.
Estes seguem aproximadamente o padrão de análise sugerido no livro Guidelines for Style
Analysis (LARUE, 1970), no qual se deve levar em conta os cinco elementos que o autor
considera necessários para a análise musical: sonoridade, harmonia, melodia, ritmo e
dinâmica.
Por se tratarem de peças curtas, alguns desses parâmetros são tratados de maneira
simplificada e diluídos nos demais e outros, como o acompanhamento (elemento de grande
importância quando se trata de peças para piano), foram adicionados para melhor se adaptar
às características das peças analisadas. A análise da sonoridade será dividida e abrangerá dois
aspectos principais: dinâmica e articulação.

3 O soongbook referido será utilizado de forma auxiliar em caso de dúvida. A fonte escrita principal proverá
das partituras contidas no álbum. Essa opção tem base na quantidade de desencontros entre as formas, cifras
e melodias encontradas nas fontes.

3
Ao fim de cada análise, serão apresentados resultados de uma audição comparativa
entre as primeiras versões registradas de cada uma das músicas e as versões contidas no
álbum em questão, para que se possa compreender melhor o que se alterou na adaptação das
composições para o piano.

Elementos estruturais e composicionais

Apesar do disco não conter novas composições, julga-se necessária a análise de


elementos de estrutura das músicas pelo fato de que Gismonti os altera em suas interpretações
solo. Como será percebido, o pianista adiciona e omite partes das composições, altera formas,
padrões rítmicos e melodias para melhor adaptar o repertório à nova formação, aspectos esses
que não se dão no âmbito apenas interpretativo.

Pesquisa de gênero

Três das nove músicas executadas no álbum Baião Malandro, Maracatu e Frevo
fazem menção a manifestações populares do Brasil cujas músicas são características. E, como
em “Alma” são ouvidas ao piano solo, o material sonoro e analítico fornece um bom guia para
a identificação de quais as características contidas nas músicas dessas manifestações Egberto
manteve e quais foram os processos de adaptação (caso hajam ou sejam perceptíveis)
utilizados.
Desse modo, serão conduzidas curtas apresentações visando correlacionar a música de
Egberto e as encontradas nas manifestações mencionadas.

A contradição de se transcrever Egberto Gismonti

Há, para muitos ouvintes, dúvidas relacionadas ao tratamento que Egberto dá a suas
peças. Sua fluência musical e a singularidade de suas composições, cujos padrões estruturais
se diferem dos mais utilizados como o jazzístico (ainda que também o utilize), por exemplo,
dificultam a diferenciação entre o que é “escrito” (pré-estabelecido) e o que é improvisado nas
performances.

4
Desse modo, as transcrições contidas nesse trabalho não visam desencorajar novas
interpretações nem cristalizar as execuções do compositor no álbum estudado como se
constituíssem a maneira “correta” de se interpretar. Tem por objetivo a expansão, a abertura
de novas possibilidades interpretativas.
Como já mencionado, Egberto varia muitos aspectos de suas obras em diferentes
interpretações. E, por ser dono de uma maneira singular e muitas vezes complexa de tocar,
torna-se difícil a identificação do modo como o músico as faz. Dessa forma, as transcrições
não são também a descrição de um modus operandi que se pretende generalizador de sua
idiossincrasia e sim um exemplo de como o pianista a realizou em um momento específico de
sua carreira.
Assim, da comparação entre lead sheets, nos quais encontramos informações
resumidas dos principais pontos das peças, das audições e das transcrições, pode-se encontrar
ideias de como essas variações são realizadas, estimulando sua ampliação e desenvolvimento
por outros músicos e impulsionando a descoberta de outras formas de renovação deste
material.

Especificidade

Faz-se importante ressaltar que as seguintes análises são realizadas a partir das
transcrições das interpretações contidas no álbum em questão e que as conclusões e
formulações aqui encontradas buscam validade apenas para a descrição e compreensão dessas
performances.
Além disso, são mais indicadas para o estudo de como Egberto Gismonti sintetiza ao
piano os elementos de suas composições. Outros arranjos de suas músicas possuem outras
maneiras de organização.
Principalmente quando em formações maiores, alguns dos aspectos aqui tratados
tendem a se modificar, como por exemplo as maneiras de condução do acompanhamento.
Existem formas de executá-los que tendem a impossibilitar ou dificultar demasiadamente a
performance em grupo, como por exemplo a forma improvisada de criação de frases
contrapontísticas internas citadas (e melhor descritas posteriormente). Essas análises e,
consequentemente, sugestões interpretativas se prestam principalmente para formações
grupais muito reduzidas ou realizações solo.

5
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1 - O DISCO

1.1 “Alma”

Trigésimo sexto4 álbum da carreira (ALBIM, 2006) de Egberto Gismonti, o Long Play
Alma, lançado em 1986 pela gravadora EMI – Odeon, é um ícone em sua produção.

Aos 38 anos, após o lançamento de Trem Caipira (EMI-Odeon, 1985), no qual o


multi-instrumentista regravou obras escolhidas de Heitor Villa Lobos em formações musicais
extensas e com enorme participação de máquinas e sintetizadores, disco que o pianista
afirmava na época ser “o melhor trabalho que fiz como músico” e para o qual necessitaria
esforço para responder à própria dúvida de “como fazer outro melhor?”.

A resposta veio segundo Gismonti, em entrevista a Mitico Yoshijima (O GLOBO,


03/12/1986), no retorno ao Rio de Janeiro, depois de uma turnê de 140 shows ao redor do
mundo, sequência de viagens nas quais o músico afirma ter presenciado episódios de
violência principalmente na Europa.

Segundo Egberto:

“... Quando cheguei aqui (Rio de Janeiro) – ainda sentia aquela carga pesada,
negativa – decidi fazer um disco sem limites, onde a música fosse usada para falar
de coisas boas, de soluções. Foi então que, depois do mergulho profundo, me vi fora
desse mundo e, ao mesmo tempo, dentro de um outro paralelo, onde não havia nada,
a não ser um destino: recomeçar. Porém, com uma proposta: falar com a alma, para
se viver mais solidariamente.” (GISMONTI em entrevista para O Globo,
03/12/1986)

É desse modo que o pianista iniciou a feitura de Alma, álbum de um Egberto Gismonti
de carreira estabelecida.

4 Não se pode afirmar com certeza pois Egberto Gismonti não possui website ou uma discografia oficial
acessível. Assim, encontramos menções ao álbum no jornal Folha de São Paulo como 46º (06/12/1986) e
também como 34º (13/12/1986) álbum de sua produção.

7
1.2 Revisita

Contrastando com o último álbum lançado, Egberto traz agora ao público um álbum
quase solo. Tendo o piano como instrumento principal em todas as faixas, o LP é uma revisita
de, segundo Mauro Dias, “clássicos egbertianos”.

Alma não contém composições inéditas. A novidade fica por conta dos arranjos das
músicas que antes eram executadas por sintetizadores, quartetos e bandas ou orquestrações
mais densas e que agora aparecem de forma mais clara.

A falta de composições originais não parece ter sido vista como um problema para a
crítica. Carlos Calado, em matéria para a Folha de São Paulo (9/12/ 86) afirma ser o
procedimento prática comum ao jazz dizendo “... uma canção qualquer pode soar nova como
num passe de mágica. Só depende de quem a interpreta ou improvisa.”, classificando assim o
álbum de Egberto como um trabalho de “variações sobre os mesmos temas” e dizendo que “É
por essa razão que Gismonti não teme se repetir neste disco”.

Afirma também que, ao eliminar a variedade timbrística comum aos álbuns anteriores
e apresentar versões mais despojadas de suas próprias composições, Egberto parece indicar
que utiliza apenas o núcleo central de suas músicas.

“Alma, por uma série de razões, me fez ir mais fundo dentro do poço. Talvez porque
eu já esteja tecnicamente sem problemas para tocar algum instrumento, talvez
porque não tenha problemas técnicos de estúdio. Só pensei no sentimento da
música. Talvez por isso o disco tenha saído com uma expressão muito mais
profunda do que outros” (GISMONTI em entrevista para O Globo 8,12, 88)

1.3 O repertório

O disco é, então, composto de nove regravações de suas próprias obras, na seguinte


ordem:

• Baião Malandro, originalmente gravada em “Carmo” (EMI-Odeon, 1977) em versão

8
com presença de baixo elétrico, bateria, percussão, piano e piano elétrico.

• Palhaço, tendo como primeira gravação na obra de Egberto a performance do álbum


“Circense” (EMI-Odeon, 1980) com baixo acústico, piano, saxofone e orquestra de
cordas.

• Loro, cujos registros apontam a versão do álbum “Sanfona” (ECM, 1981) contando
com baixo acústico, bateria, flauta e piano.

• Maracatu, encontrada originalmente em “Nó Caipira” (EMI-Odeon, 1978) com


bateria, flauta, saxofones e percussão.

• Karatê, que tem por primeiro registro a execução do álbum “Cirecense” (EMI-Odeon,
1980) com baixo acústico, bateria, flautim, saxofone, piano e viola.

• Frevo, primeiramente encontrada em “Nó Caipira” (EMI-Odeon, 1978) com a


presença de bateria, percussão, contrabaixo, flatuas, piano e saxofones, voz. 5

• Água e vinho, gravada originalmente em “Água e Vinho” (EMI-Odeon, 1972)


contando com contrabaixo, piano, violoncelo e vozes.

• Infância, tendo como primeiro registro a versão contida em “Fantasia” (EMI-Odeon,


1982) contando apenas com sintetizadores.

• Cigana, originalmente encontrada em “Egberto Gismonti” (EMI-Odeon, 1984) com


cítar, dilruba6, piano e sintetizadores.

1.4 Uma nova fase - “Não sou tão sutil como a música desse disco”

Juntamente à sua formação musical formal, acredito ser necessária para a


contextualização deste trabalho a compreensão da importância dada pelo músico a outras
experiências vividas, não apenas musicais, mas nas quais a música é peça fundamental para

5 Aparece como quinta faixa do LP intitulada: a - Frevo, b - Esquenta muié, c - Frevo rasgado. Frevo como
em “Alma” parece a junção de as partes a e c citadas.
6 Instrumento de cordas de origem indiana.

9
que se possua uma configuração um pouco mais abrangente do possível significado do LP na
carreira do pianista.

O livro “Música Transpessoal: Uma cartografia holística da arte, da ciência e do


misticismo” (Cultrix, 1990) de Carlos D. Fregtman foi escrito “com a colaboração de Egberto
Gismonti” e conta algumas dessas passagens, nas quais se fazem presentes figuras como pais-
de-santo, iogues e índios, contando com trechos nos quais o pianista faz menção direta ao
disco estudado.

“Alma” parece coroar uma série de reflexões e transformações que Egberto afirmava
passar em sua carreira musical. Vários dos depoimentos dados na época do lançamento que
apontam para uma mudança de foco.

Depois de um profundo mergulho da minha vida como músico, bem como de sua
relação com as outras coisas do universo, me vejo fora deste mundo e, ao mesmo
tempo, dentro de outro, paralelo, onde não há nada, apenas um destino: recomeçar
sempre. A proposta é falar com a alma para viver de modo mais solidário. Essa alma
é uma música de uma consciência emocional. (FREGTMAN, 1991, p.60)

Essa transformação parece estar ligada a uma consciência que o músico foi adquirindo
com relação ao que deveria expressar com sua música. Egberto afirma haver existido uma
época em que era um músico “sem emoção”, “hipnotizado pela competência” e que agora já
não mais queria esse tipo de perfeição afirmando que “Apenas integrando a técnica, o
conhecimento, à emoção e ao sentimento, é possível ser realmente livre, livre para exprimir a
música do universo.” (FREGTMAN, 1991, p.60)

Nessa busca (ou encontro) por uma expressão musical mais profunda, Egberto diz
sobre “Alma” que “A melodia e a harmonia não me interessam tanto, mas sim o sentimento
da música”(F. De São Paulo, 6/12/2986) e comenta ainda algo que buscaremos verificar
durante as análises.

“Em relação à minha música, eu cheguei a um requinte de tocar que eu preciso


estudar muito mais do que estava estudando. Preciso experimentar mais em nível de

10
piano e violão. Eu já me sinto bastante capaz de me comportar com o instrumento
frente ao público, da mesma forma que me comporto sozinho em casa ou no estúdio
– o que me custou um tempo. Isto significa sentar disponível a tocar só o que eu
ouço e não o que preparei para tocar” (FOLHA, 2 de junho de 1987)

Ainda em depoimento a Fregtman, Gismonti conta

Há um caso interessante: quando um dos meus últimos discos - “casualmente”


intitulado Alma – estava concluído, convidei um grupo de jornalistas e amigos para
escutá-lo em meu estúdio. As pessoas foram chegando para ouvir o disco. Tínhamos
contratado recentemente uma empregada para servir café e cuidar da limpeza;
quando ela foi servir café, encontrou todos chorando e não entendeu nada. Eu lhe
expliquei então que aquilo era emoção.(FREGTMAN, 1991, p.60)

Ao que arremata reforçando a ideia de que “o disco tenha saído com uma expressão
muito mais profunda do que outros”

Normalmente, caminho na direção a que me proponho, com passos medidos;


embora eu o reconheço depois, depois de dar o passo. Pode parecer incrível mas
escuto uma gravação com Alma e ainda sou espectador, porque tenho consciência,
através da informação teórica que possuo, de que esse piano, da forma como é
tocado nesse disco, provavelmente não é tocado por ninguém mais no mundo. Não
pela dificuldade, mas pela singularidade. A agilidade que esse piano tem, seja na
velocidade ou na expressão, é muito grande. Eu normalmente nada tenho que ver
com isso. Eu não penso dessa forma, com esse tipo de sensações. Eu não absorvo
dessa maneira. Eu não sou tão sutil como a música desse disco. Eu não toco tão bem
quanto o que é tocado. Eu toco bem, mas o que está gravado talvez tenha sido
motivado por um impulso de um prazer enlouquecido, para além do meu próprio eu.
Isso é expansão emocional. (FREGTMAN, 1991, p.61)

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1.5 Músicos Participantes

O encarte do LP traz alguns nomes tais como o do músico “Valentino”, a quem é


atribuída a execução do Violoncelo em Cigana, o grupo “Sopra que eu gosto” ao qual é
atribuída a execução das “Garrafas” em Karatê, além da presença da orquestra Transarmônica
d`Amla de Omrac.

Porém, não há no disco, além do piano, outros instrumentos acústicos. Todo o resto foi
gravado por sintetizadores e esses nomes não passam de personagens fictícios, brincadeiras
dos músicos participantes, inclusive a orquestra, que, segundo Souza, ao brincar dizendo ter
sido elogiada, afirma, “eram nossos sintetizadores da época” e cujo nome é o inverso de
Transarmônica d`Alma de Carmo.

Participaram então da gravação como instrumentistas, além de Egberto Gismonti,


apenas os músicos Edu Mello e Souza e Nando Carneiro.

Eduardo Mello e Souza7: 26/04/1947, Rio de Janeiro, RJ

Eduardo Mello e Souza começou seus estudos de musica por volta dos 19 anos como
autodidata e cursando aulas particulares onde teve contato com tópicos como contraponto,
composição, orquestração entre outros chegando a cursar um período na Berklee School of
Music (Boston).
Atuou como Produtor Musical nos anos 70 na RCA e Polygram, tendo feito a Direção
de Produção e Direção de Estúdio para artistas como Egberto Gismonti, Gilberto Gil, MPB4,
Alcione, Dominguinhos, Gal Costa, além de dezenas de albuns independentes como produtor
e músico. Trabalhou também na criação de centenas de comerciais da época, através de duas
produtoras que teve.
Pioneiro no estudo e utilização de tecnologias emergentes no anos 70, foi um dos
primeiros a utilizar os sintetizadores (ainda analógicos na época), estando também entre os
primeiros no desenvolvimento e construção dos "home studios", ainda no final dessa década,
o que fez com que ministrasse, no fim da década seguinte cursos de “Tecnologia da Música”,
7 É também o Ude M. Azous, responsável pelo “bombardino” em Karatê.

12
no Centro Musical Antonio Adolfo (RJ) formando músicos profissionais e amadores para
essas novas tecnologias.
Na década de 1980 foi um dos fundadores do estúdio "SYNTH". Totalmente
preparado para gravação de múltiplos teclados, o local se tornou referencia no Rio de Janeiro
tendo recebido enorme gama de artistas, como, por exemplo, Wayne Shorter.
Também nessa época iniciou uma parceria com Egberto Gismonti, trabalhando em
vários dos projetos do pianista na época como discos, balés, composições e filmes. O
convívio quase diário o levou também à participação em vários shows como tecladista e
engenheiro de som em diversas turnês no Brasil e na Europa, convivência que durou cerca de
quinze anos.
Atualmente, afastado do exercício profissional da música, dedica-se ao ofício da
análise de sistemas e à programação no desenvolvimento e manutenção de sistemas de bancos
de dados.

Nando Carneiro. 26/06/1953 Belo Horizonte, MG

Parceiro de Gismonti em muitos trabalhos, irmão do poeta, compositor e também


parceiro de Egberto Geraldo Carneiro, Fernando Ribeiro Carneiro é violonista, pianista e
compositor.

Segundo Albin,(2006), o músico se iniciou profissionalmente integrando o extinto


grupo “A Barca do Sol”, do qual também é membro fundador e com o qual gravou cinco
discos.
Com Egberto Gismonti, acompanhou e participou de turnês de shows e da gravação
dos discos como "Cidade Coração", "Alma", "Infância", "Amazônia", "Música de
sobrevivência" e "Zig Zag".
A parceria com Egberto não ficou apenas nos palcos e gravações de obras do pianista.
Pela gravadora “Carmo”, mantida pelo pianista, o músico produziu também o primeiro e o
segundo disco solo de Nando, intitulados respectivamente “Violão” (1983) e "Mantra Brasil"
(1985), sendo o primeiro relançado 1992, em CD, pela mesma gravadora.
Ainda segundo Albin (2006), “Participou, com outros instrumentistas, do CD

13
"Contemporary instrumental music from Brasil" (uma compilação de músicas registradas pelo
selo Visom Digital, lançada no mercado norte-americano), com duas músicas retiradas de seu
LP 'Topázio' ”. Sendo este último gravado em 2001, pelo selo citado acima.
Em entrevista concedida, Nando (2015) afirma que após o ano de 1986, período que
foi concebido “Alma” pela realização das turnês anteriores referênciadas, interrompeu
momentaneamente a parceria com Egberto, retomando-a em 1990, período no qual iniciaram
uma colaboração mais longa, de mais de dez anos.
Nando ainda participou de gravações e shows com outros artistas como Maria
Bethânia, Vinicius Cantuária, André Gereissati, John McLaughlin e John Scofield.

1.6 Gravação (dois pianos)

“Em tempo: o processo de gravação e mixagem digitais, a prensagem e o corte são


absolutamente primorosos. Pouquíssimos discos brasileiros conseguiram tal resultados
(DIAS, 1986)”. Elogiada pela crítica, a técnica de processos de gravação parece ter sido parte
importante no resultado obtido. Eduardo Mello e Souza, peça fundamental na elaboração do
disco, concedeu detalhes sobre como ocorreram as gravações. Sua proximidade com Egberto
Gismonti e a finalização da construção de seu estúdio, SYNTH, onde parte das gravações
foram realizadas além de processos posteriores à captação do áudio (como a mixagem),
explicam um pouco do clima “intimista” e da sonoridade final alcançada.

Bem.. nessa época já estava muito próximo do EG (Egerto Gismonti) e trabalhando


com ele direto em todos os projetos (balé, filmes, composição etc..). Também
estava finalizando a construção de meu sonho: um estúdio de 24 canais que resultou
de uma parceria com um músico que já era meu sócio anteriormente, o Luiz Avellar -
que atualmente mora e trabalha em Portugal, e o Raymundo Bittencourt que já
carregava uma longa bagagem em estúdios de gravação. Por isso mesmo nasceu o
interesse em realizar este disco "Alma" nesse estúdio – SYNTH - que foi um dos
primeiros estúdios planejado para receber a gravação de múltiplos teclados, todos

14
conectados entre si via MIDI. (SOUZA, 2015)

A solução para o fato de o estúdio SYNTH não possuir um piano de boa qualidade foi
a dos músicos recorrerem à sala Cecília Meirelles 8, onde, segundo Souza, “havia um
Steinway9 com ótima sonoridade” para gravar digitalmente as partes de piano, que seriam a
base para a montagem do LP.

Porém esse piano apresentou problemas que não poderiam ser resolvidos de maneira
rápida. As gravações apresentaram ruídos em mecanismos do instrumento como nos pedais.
Esse fato obrigou os músicos e técnicos a buscarem uma outra alternativa como comenta
Souza:

Fomos buscar junto ao Otto Dreschler que tinha um piano Steinway de boa
qualidade num auditório na Ilha do Governador [Ilha do Fundão]. Um pouco
"verde", com uma sonoridade ainda um pouco "presa" mas que era suficiente para o
projeto (SOUZA, 2015)

As gravações então seguiram com o piano que, segundo Gismonti (O globo,


03/12/1986) foi encontrado na casa de um cônsul alemão e levado a um auditório naquela
localidade. Apesar disso, uma das faixas gravadas naquele primeiro piano, Baião Malandro,
apresentou resultados primorosos e não poderiam ser mexidos. Essa é a razão para que o disco
tenha sido gravado em dois pianos diferentes e que ambos tenham sido utilizados na versão
final.

Assim, o processo de gravação apresentou duas fases: a primeira na qual foram


registrados os pianos tocados exclusivamente por Egberto e a segunda que foram adicionados
os sintetizadores presentes.

Ainda sobre a captação e sobre a ótima performance pianística já descrita pelo próprio
Gismonti em seus depoimentos à Fregtman, comenta Souza quando perguntado sobre o tempo
que essa captação levou

8 Localizada no bairro da Lapa - Rio de Janeiro


9 Piano da marca Steinway & Sons.

15
Essas gravações do piano base foram muito rápidas, porque ele chegava tocava um
pouco para ajustar nível, posicionamento dos mics [sic] e dificilmente necessitava
re-gravar mais do que uma ou duas vezes. Jamais se emendava trechos de gravações
diferentes. Egberto dificilmente utiliza este recurso. (SOUZA, 2015)

Apoiado por Nando Carneiro (2015), afirmando também que “Egberto estava em
plena forma, pianisticamente falando” mostrando também que os arranjos, ainda que possam
ter sofrido modificações e possuam bastante liberdade para isso, pareciam existir previamente,
como comenta

Creio que tudo foi feito a partir dos pianos. Como havíamos feito 2 turnês naquele
ano, uma nos USA (ele e eu, mais ou menos 20 concertos) e outra na Europa (ele, eu
e Nenê10, mais ou menos 40 concertos), aproximadamente o mesmo repertório, então
essa música estava bem amadurecida. (CARNEIRO, 2015)

Assim, com o material gravado em mãos, seguiram para o estúdio SYNTH onde, de
acordo com o que se recorda Souza, realizaram a “transcrição” do piano para o meio
analógico em 24 canais “para termos trilhas disponíveis para os teclados” e iniciaram os
overdubs11, gravações essas que alega terem sido realizadas “ao vivo” (sem a presença de
sequenciadores12).
Sobre a participação de Nando Carneiro, o entrevistado alega que fez “poucas – e
brilhantes intervenções”, afirmando ser o músico “altamente afinado com este tipo de
trabalho, sob as quais o próprio Nando comenta:

A minha participação demorou uma sessão, não mais do que 4 horas. […] Sem
partituras. [...] Eu utilizava na ocasião um Yamaha DX7 com um Xpander Oberheim
conectado através de midi. Mas Egberto e Edu tinham muito equipamento, não sei o
que eles utilizaram.(CARNEIRO, 2015)

10 Realcino Lima Filho (05/02/1947) – Baterista, compositor e arranjador que atuou ao lado de Hermeto
Pascoal, Elis Regina, Milton Nascimento, além de possuir trabalhos autorais.
11 Adição de novos sons a uma trilha ou gravação já existente.
12 Aparato que permite ao compositor programar linhas melódicas para que sejam executadas ao seu comando
ou de maneira também programada É ideal para a realização de figuras repetitivas como ostinatos,
“liberando” o instrumentista para a execução de outras linhas.

16
Souza ainda afirma que essa segurança técnica (“sabíamos o que estávamos fazendo,
do ponto de vista de executar”) e a boa fase musical impulsionaram o trabalho a ocorrer num
clima da “mais absoluta tranquilidade” sem a qual, diz, seria muito difícil conseguirem os
resultados obtidos e sob a qual afirma também ser um traço geral das gravações com Egberto
Gismonti

Como trabalhei em centenas de gravações "comerciais" posso dizer que a gravação


com ele sempre aconteceu num clima altamente diferenciado. Até porque no estúdio
éramos basicamente nós dois (Souza e Gismonti), sem visitas e sem nenhuma outra
interferência (SOUZA,2015)

Os processos de mixagem e edição foram realizados exclusivamente por Egberto


Gismonti e Edu Mello e Souza diretamente para o meio digital.

1.7 Inovação tecnológica - Presença das partituras

Quer dizer, eu já uso computador há 20, 30 anos. E-mail para mim é um negócio
que tem quinze anos de idade. Como eu trabalho com a ECM Records, que é uma
companhia que tem muita ligação com a tecnologia, talvez você se lembre que eu fiz
um disco chamado Trem Caipira, que vinha um carimbo na capa dizendo assim,
"Primeira Gravação em PCM Digital". (Entrevista de Gismonti a WANDER, 2007)

Em “Alma”, além da utilização de processos PCM-Digital 13, pode-se encontrar no


encarte “a grata surpresa das partituras originais para piano, o que permite ao ouvinte iniciado
a evolução da elaboração musical de Egberto” (DIAS, 1986).

Algo inédito em Gismonti, a presença das partituras de todas as músicas executadas no


disco parece ter agradado a críticos e ouvintes. Editadas e computadorizadas pela Carmo

13 Abreviatura do inglês para pulse code modulation (modulação por código de pulso). Sigla internacional que
designa a nova tecnologia de registro digital do som, que permite a reprodução sonora em condições
virtualmente perfeitas (DOURADO, 2004, p.247)

17
Produções Artísticas Ltda, são comentadas por Souza

As partituras foram feitas num dos únicos softwares da época - que não lembro o
nome. Nada de "Professional Composer" ou "Finale" que vieram depois. Um
resultado que, para os dias de hoje, deixou bem a desejar, mas dentro dos recursos
que tínhamos foi quase revolucionário. (SOUZA, 2015)

Como veremos nos capítulos seguintes, as análises e formulações sobre os acordes e


processos harmônicos utilizados por Egberto se mostraram algo complexo e ambíguo. Muitas
vezes não conclusivas, essas vieram ao encontro do comentário de Souza, que além de
participar dos processos musicais, auxiliou também na construção do encarte do LP.

As cifras deram bastante trabalho já que Egberto as usava e sua musica era dificílima
de cifrar sem perder as características originais, pois muitos acordes necessitavam de
uma construção individual e particular o que foge do processo usual de cifragem que
deixa ao interprete uma ampla liberdade. As polêmicas que tivemos foram longas e a
solução foi fazer algo um pouco diferenciado, mas devidamente explicado através de
uma "bula" que consta na pagina inicial, além de manter os acordes originais.
(SOUZA, 2015)

1.8 Crítica e Vendas

Ao que parece, não foram apenas os aspectos técnicos que agradaram à crítica
especializada da época. Sobre o material, Mitico Yoshijima afirma, aparentando reconhecer a
mudança de trajeto referenciada por Egberto

“O mergulho intimista foi tão profundo que o compositor multi-instrumentista


acabou saindo desse mundo cheio de equadramentos, rótulos e padrões, para entrar
num mundo cristalino, limpo, neutro, sem limites onde é “livre para 'ser' música:
Alma” (YOSHIJIMA, 1986)

18
Ao que ainda podemos citar também Mauro Dias

Um disco limpo, em que reina absoluto o piano Steinway, executado com


virtuosismo e com o som colorido, em passagens sutis, com os sintetizadores de
Nando Carneiro, por um bombardino, um cello 14. Na capa a aparente simplicidade do
padrão ECM – a mesma simplicidade aparente de suas músicas de temas
transparentes e inspirados improvisos. (DIAS, 1986)

E continua, ao dizer que “não é trabalho repetitivo”, classificando as novas versões


como “cristalinas” e completa: “fica a impressão de que foi necessária a digestão completa
das composições para que o intérprete encontrasse nelas sua essência [...]” enfatizando que é
um trabalho “indispensável tanto para os aficionados quanto para os que desejam se iniciar no
conhecimento do trabalho de Gismonti” e finaliza afirmando que o disco “merece totalmente
o título “Alma”: é movido pelo sentimento.”

Poucas informações foram encontradas sobre as vendas do LP 15, porém sabe-se que o
álbum foi lançado com venda antecipada de “45 mil cópias”, número que Egberto comemora
afirmando que “Para o tipo de trabalho que eu faço, é o mesmo que lançar um LP já com
quatro discos de ouro” (F.de S.Paulo, 6/12/1986).

O que se pode afirmar é que, além da vendagem antecipada comemorada pelo


pianista, o disco entrou por pelo menos duas vezes 16 na lista de “recomendados” da seção “Os
mais vendidos da semana” do jornal Folha de São Paulo (06/02/1987 e 13/01/1987).

Segundo Nando Carneiro, a gravação foi seguida de apresentações no Brasil e na


Argentina.

1.9 O CD

Em 1996, foi lançado pela Carmo, selo do próprio pianista, um CD intitulado “Alma”
que se difere do disco homônimo, de 1986. Lançado como uma coletânea, a obra possui oito

14 Instrumentos que, como vimos, são os sintetizadores executados por Gismonti, Souza e Carneiro.
15 Vale nota de que o pesquisador buscou essas informações junto à gravadora (hoje “Universal Music Brasil”)
porém foi informado de que tais informações são sigilosas e não poderiam ser disponibilizadas.
16 As que foram encontradas em pesquisa no acervo on-line da folha de São Paulo, presente na bibliografia
deste trabalho.

19
das nove músicas presentes no LP (exclui-se Infância) e conta com mais cinco das peças
executadas ao vivo em performance realizada pela Tom Brasil Produções Musicais no SESC
Pompéia, em 1993, material lançado em disco intitulado “Brasil Musical – André Geraissati e
Egberto Gismonti” de 1993.

Além da omissão de Infância, a coletânea lançada pela Carmo conta com a adição de
Ruth, Sanfona, A fala da paixão, Realejo e 7 anéis, todas de autoria de Gismonti, com
exceção de Ruth, composta por seu avô Antônio Gismonti. O álbum onde as performances
foram buscadas conta com outras músicas além de uma regravação “ao vivo” de Karatê.

20
2 - ANÁLISES

2.1 Baião Malandro

Música de abertura do disco, Baião Malandro é ágil e vigorosa. Possui seções


contrastantes em aspectos dinâmicos e é permeada por jogos rítmicos e ostinatos17. A partitura
contida no álbum sugere que a música deva ser tocada de modo “animado como um forró”.
Sua execução, no álbum tem andamento (semínima) em torno de 112 bpm. 18

Forma

Parte Compassos Resumo


Introdução 1 ao 8 Apresentação dos acordes iniciais

A 9 ao 22 Exposição do primeiro material melódico


A1 23 ao 36 Repetição da seção anterior
B 37 ao 62 Improviso sobre o ostinato da mão direita
Ponte 63 ao 68 Material melódico derivado do ostinato
B1 69 ao 74 Ostinato com improviso
C 75 ao 92 Melodia em três oitavas
Indtrodução 93 ao 100 Reexposição dos acordes iniciais
A2 101 ao 118 Reexposição do primeiro material melódico
B2 119 ao 140 Novo improviso sobre o ostinato da mão direita
C1 141 ao 158 Melodia em três oitavas
Indtrodução 159 ao 166 Repetição dos acordes iniciais
B3 167 ao 178 Improviso sobre ostinato da mão direita
Ponte 2 179 ao 184 Repetição da melodia derivada do ostinato, sem
pedalização
Ponte 3 185 ao 190 Repetição da melodia derivada do ostinato, com

17 Termo que se refere à repetição de um padrão musical por muitas vezes sucessivas. Um ostinato melódico
pode ocorrer no baixo (ver BASSO OSTINATO e GROUND), como melodia numa voz superior (p. ex., o
“Dargasson” de Suíte St, Paul, de Holst), ou simplismente como uma sucessão de alturas repetidas (p.ex., o
“Carrilon” da Suíte L`Arlésienne n.1, de Bizet). A progressão de um acorde constantemente repetido produz
um ostinato harmônico, como na Berceuse de Chopin, enquanto um ostinato rítmico ocorre no Bolero de
Ravel. (SADIE, 1994, p. 687)
18 Batidas por minuto

21
pedalização
B4 191 ao 212 Nova improvisação sobre o ostinato da mão direita
C2 213 ao 230 Melodia em três oitavas
Indtrodução 231 ao 238 Acordes iniciais
Coda 239 ao 245 Sucessão de acordes em quartas e acorde final
Tab.1: Resumo das partes de Baião Malandro (referentes à transcrição)

Baião Malandro, assim como Infância, é organizada de maneira diferente das demais
peças do álbum. Dividida em três seções contrastantes, cuja ligação se dá principalmente pela
manutenção da tonalidade, optou-se pela nomeação por A, B e C para cada uma dessas partes,
apesar de suas repetições não conterem, por exemplo, o mesmo número de compassos. A
divisão se dá pela similaridade das características sonoras de cada uma das partes. A parte B
possui características de um refrão.

A ordem das seções gera sensação de aleatoriedade. Não há linearidade nem


uniformidade na sequência dos acontecimentos. Percebe-se que Egberto realiza saltos entre as
partes e que uma independe da outra, podendo cada seção ser seguida por qualquer outra sem
prejuízo para a execução.

“Repetir cada parte quantas vezes quiser!”, inscrição encontrada na partitura da


contracapa do álbum, parece ser a única regra seguida por Gismonti nessa interpretação.

É importante notar que a ponte desta performance não pode ser encontrada nas
partituras disponíveis. Porém é executada pelo menos uma vez, ainda que não exatamente da
mesma forma, em todas as performances ouvidas.

Harmonia

Os procedimentos harmônicos em Baião Malandro possuem estruturas repetitivas e


ambíguas. Tendo como centro a tonalidade de Ré bemol maior, a composição alterna
harmonias estáticas, ou de poucos acordes, e momentos de maior movimentação. A
ambigüidade se dá na construção desses acordes.

22
Introdução (c.1): I

|: Db :|

A introdução dessa execução da música é constituída de uma série de repetições do


acorde de Ré bemol, como num vamp19 que se repete por várias vezes durante o percurso
musical e que faz também a ligação entre as frases da seção A.

Parte A (c.9): I III bvii I

| Db | Fm | Bm7 | Db | % | % | % |

I (SubV7) V7 V7/II I

| Db | % | A7 Ab7 Gb7 | F7 E7 Eb7 | Db |

Em A, além do vamp, encontramos rápidos afastamentos desse centro em Ré bemol


maior que acompanham as frases. Afastamentos esses, que pela rapidez em que ocorrem, não
caracterizam funções harmônicas e apenas acompanham os arpejos realizados nas frases 1a e
1b20, apesar da sequência de acordes de sétima descendente encontrada acima, que são aqui
inseridos com efeito de cromatismo, como os arpejos da melodia. Além disso, enfatizamos a
opção por cifras que divergem das disponíveis pelo fato de Gismonti utilizar “harmonias de
apoio”21, maneira pela qual os acordes são dispostos sem a presença de sua fundamental,
fazendo com que os trítonos dos acordes de sétima encontrados possam pertencer a pelo
menos dois acordes distintos, como A7 e Eb7, por exemplo. A opção por essa cifragem foi
feita pelo fato da melodia ser construída sobre as tríades que acreditamos ser as dos acordes
vigentes pela ausência dos baixos ou fundamentais das harmonias tocadas.

Caso a opção fosse por manter as cifras contidas no álbum, a melodia ao invés de
19 Na música popular e no jazz é uma progressão introdutória ou transicional de acordes simples repetida até a
entrada do solista […] Embora o termo “vamp” seja quase um sinônimo de “ostinato' em jazz, ele carrega a
ideia adicional de que sua duração está a critério do solista. Em algumas formas de jazz (modal, jazz-rock,
jazz latino) e música popular (especialmente funk), uma peça inteira pode ser baseada numa sucessão de
“vamps” sem fins definidos. (SADIE, 2004, p.235).
20 Sessão “melodia”.
21 Ver o capítulo 7, “Left-Hand Voicings” (LEVINE, 1989, p.41).

23
conter as tríades dos acordes propriamente ditos, seria composta pelo que é conhecido como
“tríades na camada superior (TCS)”22, estruturas que, segundo Tiné (2011), são comuns aos
acompanhamentos dos pianistas de jazz ou aos naipes de trompetes e trombones das Big
Bands.

Fig.1: Utilização de harmonia de apoio

Parte B (c.37):

I V

| Db(6)9 | Absus4(b9) |

Essa seção é também de harmonia estática na qual ocorrem os improvisos contidos na


gravação. Os acordes são executados pela mão direita, enquanto a mão esquerda fica livre
para brincadeiras rítmicas sobre os acordes. A simplicidade harmônica dá espaço a ritmos
complexos e de difícil execução melhor descritos na seção acompanhamento.

É importante notar que apesar das cifras apresentarem Abm7, Gismonti acaba por
executar majoritariamente pelo exemplar suspenso e de nona bemolizada. A constante
utilização das notas La b e Si bb e o não aparecimento da nota Do (sétima maior de Db, como
consta na cifra original) aponta para uma sonoridade que remete a um dos modos da escala
menor melódica, o modo “mixolídio b6”, modo que apresenta as seguinte disposição:

Fig.2: Mixolídio b6
22 As aberturas em tríades na camada superior (TCS) visam obter as extensões dos acordes dentro das posições
fechadas específicas das tríades. (TINÉ, 2011, p.87)

24
Numa rápida escapada do ostinato estático de B Egberto executa um ciclo de quartas
que produz um rápido afastamento do centro tonal, culminando em G7M, que logo retorna ao
Absus4(b9) por cromatismo, retomando a harmonização do vamp

Ponte (c.63): (II V7) -VI -II +IV V

| Bm7 | E7(#9) | A7M(5+) | D7M | G7M | Absus4(b9) |

Parte C (c.75):

I V IV III II SubV7(I)

|: Dbadd9 | Absus4(b9) | Gb6 | Fm7 | Ebm6 | D7(#9) :|

C é a única seção da música onde é possível encontrar um caminho harmônico não


estático, ainda que seja simples. É criado sobre uma linha descendente por graus conjuntos
iniciada sobre o V grau suspenso culminando numa dominante, que aparece como
susbstitutiva, visando a manutenção da linha descendente dos baixos. Aqui sim, podemos
encontrar um caminho harmônico que remete a procedimentos tonais, ainda que
simplificados.

É interessante notar que, assim como em B, o segundo acorde da progressão aparece


cifrado como Abm7. Porém podemos depreender da performance que Gismonti também faz
uso de Absus4(b9), mantendo a sonoridade de mixolídio b6 já utilizada majoritariamente na
seção anterior.

Acompanhamento

O referido vamp sobre Ré bemol maior é uma figura de acompanhamento que permeia
toda a música, principalmente na seção A. É uma figura realizada pelas duas maõs do pianista
com duração de um compasso, como podemos ver:

25
Fig.3: Vamp da seção A.

Ostinatos na mão direita

A seção B de Baião Malandro tem como padrão o acompanhamento de mão direita


que parece emular23 a sonoridade de uma sanfona. Construído sobre os acordes de Db(6)9 e
Absus4(b9), o ostinato em semicolcheia se torna o “pano de fundo” para intervenções de
sonoridade improvisada e de brincadeiras rítmicas na região grave do piano.

Fig.4: Ostinato da seção B

A seção C traz um acompanhamento comum ao universo do piano. Consiste em um


padrão de melodia acompanhada na qual o pianista executa as fundamentais em oitavas numa
região mais grave do piano e, com um salto, completa esses acordes, executando terças,
quintas, sétimas e outras extensões em bloco ou arpejados na região média do instrumento. É
interessante notar que a rítmica da mão esquerda varia, apesar de prevalecer o padrão
semicolcheia-colcheia-semicolcheia, como no exemplo.

23 Como pode ser percebido na seção O baião – características encontradas, abaixo.

26
Fig.5: Acompanhamento básico da seção C

Egberto executa também uma forma incomum de improvisação para Baião Malandro.
Essencialmente rítmica, ocorre em todas as repetições da seção B da música. Incomum,
primeiramente, por ser feita exclusivamente pela mão esquerda.
Sobre o ostinato já demonstrado da mão direita, Gismonti parece brincar com
estruturas rítmicas, fragmentos melódicos e acordes, jogando com a densidade da seção; como
se fosse um improviso coletivo da seção rítmica 24 de um grupo.

O padrão rítmico semicolcheia-colcheia-semicolcheia (“garfinho”) é bastante utilizado


pelo pianista. Além de repetir acordes sobre esse padrão rítmico, Egberto cria pequenos
fragmentos melódicos sobre esse mote. Um exemplo dessa utilização se dá no jogo criado por
duas notas repetidas sobre essa estrutura rítmica, como podemos ver.

Fig.6: Utilização do padrão rítmico descrito no improviso de “seção rítmica”

24 Um termo aplicado aos instrumentos rítmicos ou acompanhadores dentro de uma banda (i.e., piano ou orgão,
violão ou banjo, tuba ou baixo acústico (mais tarde baixo elétrico), ver BANDS §§ 2, 4.(Tradução nossa).
(KERNFELD, 1994, p.406).

27
Fig.7: Mesmo padrão agora sendo tocado com acordes

Destacamos também a seção B2, construída sobre um outro jogo polirrítmico25, mais
complexo. Gismonti agora realiza uma quiáltera26 (quintina27) sobre o ostinato em
semicolcheias, o padrão também é repetido inúmeras vezes e acompanha a mudança dos
acordes:

Fig.8: Quintinas improvisadas gerando efeito polirrítmico sobre o ostinato de B

Outro elemento de destaque é a sequência de notas “pontuadas” que o pianista executa


sobre os acordes. Como num ragtime28, o pianista toca, sem pedal, seu acompanhamento
típico, com saltos de oitavas. Porém, Egberto subverte tal maneira de se acompanhar fazendo
com que os acordes não respeitem as métricas, “caindo” em pontos inesperados dos

25 “[…] também um fenômeno relacionado ao aspecto vertical, onde também será possível detectar dois ou
mais padrões rítmicos ocorrendo simultaneamente, mas todos estarão baseados em uma mesma fórmula de
compasso. É bastante frequente a utilização de quiálteras nos procedimentos polirrítmicos, como os
encontrados na música africana em geral, podendo haver também uma série de combinações possíveis para
este procedimento.” (FRIDMAN, 2011, p.359)
26 Alteração convencional no valor das figuras musicais, permitindo que três delas sejam executadas no tempo
que pertenceria a duas. Também chamada de “tercina”, é indicada por uma linha curva e pelo algarismo 3.
Por extensão, costuma-se aplicar o termo a alterações análogas abrangendo 5,7,9 notas, ou a transformação
de um grupo ternário em binário. (SADIE, 1994, p.758)
27 Quiáltera que altera para 5 a subdivisão antes binária.
28 Estilo de música popular norte-americana que floresceu c.1896-1918. Sua principal característica é o ritmo
“rasgado” (ragged, i.e., sincopado). Embora atualmente encarado como um estilo pianístico, também se
referia a outras peças instrumentais vocais e de dança.[...] (SADIE, 1994, p.762)

28
compassos, “atravessando-os”, gerando um rápido jogo polimétrico29 e confundindo o
ouvinte.

Fig. 9: Trecho de The Entertainer (1902), de Scott Joplin,30. O acompanhamento em colcheias acompanha a
métrica dos compassos

Fig.10: Colcheias pontuadas gerando efeito polímétrico momentâneo pelo deslocamento dos acordes com
relação aos compassos em Baião Malandro.

Num jogo interessante, entre as seções B4 e C2, Egberto, que vinha da execução de
acordes em notas pontuadas sobre o ostinato da mão direita, em seus improvisos rítmicos,
transforma esse artifício no acompanhamento da seção posterior, executando a primeira das
três repetições do material melódico 2 sobre esse acompanhamento e retomando o
acompanhamento arpejado com baixos em oitavas, característico da seção C dessa execução.

29 “[...] definimos a polimetria como qualquer fenômeno rítmico em que se possa distinguir auditivamente a
utilização simultânea de mais de uma fórmula de compasso, sendo este então um fenômeno restrito ao
aspecto vertical[...] (FRIDMAN, 2011, p.358)
30 Disponível em <http://www.free-scores.com/download-sheet-music.php?pdf=3#>

29
Fig.11: Continuação das ”pontuadas” improvisadas no acompanhamento da parte seguinte.

Melodia

Encontramos em Baião Malandro duas melodias estruturais. A primeira, da seção A, é


construída sobre uma sequência de arpejos em oitavas e apresenta um contorno melódico
inexato, não cantabile. Seu movimento é, primeiro, ascendente e é logo seguido de uma frase
descendente.

A segunda melodia encontrada é diferente. Referente à parte C (em B não há melodia


temática, existe apenas o ostinato descrito anteriormente), é cantabile e possui um contorno
melódico claro. A parte C, em todas as suas repetições, é construída pela execução dessa
mesma melodia em três oitavas diferentes.

Divisão das frases na primeira exposição:

Parte Frase
A 1 (9 ao 11) 2 (16 ao 18)
C 3 (75 ao 77)
4 (78 ao 70)
Tab.2: Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

30
Baião malandro, num caso à parte no disco possui pouca variação na execução da
melodia. Por possuir longos trechos de improvisação na seção B, que não possui melodia
característica, quando executadas as melodias de A e C, são tocadas de maneiras bem
similares em suas repetições.

O aspecto que nos chama mais atenção na performance é a maneira como que
Gismonti executa as frases 1 e 2. Essa melodia, como descrita na partitura da contracapa,
possui um contorno melódico nítido sobre um padrão de intervalos ascendentes e arpejos
descendentes.

O que ocorre é que ao piano solo, Egberto não parece se preocupar com a clareza da
melodia tocada. Sua sequência de intervalos não é respeitada e a melodia aparece como um
“borrão” sobre os acordes que a compõem, como podemos observar:

Fig.12: Frase 1 escrita no encarte do álbum (1986, p.2)

31
Fig.13: Frase 1 executada em “Alma”

Vale também ressaltar, apesar da não necessidade de exemplificar, que Gismonti


utiliza o recurso da mudança de oitavas para efeito de variação. Em todas as repeticões de C,
seu material temático é executado em três oitavas ascendentes consecutivas, elemento não
notado na partitura original.

Dinâmica

Como é comum em Lead Sheets, não existem indicações para esse elemento o qual
Gismonti parece utilizar de maneira espontânea.

Essa performance de Baião Malandro apresenta grande amplitude de dinâmica e,


embora não seja tratada de maneira estrutural, ou seja, suas variações não estejam
relacionadas a cada parte sistematicamente, seu uso tem papel fundamental para a variedade
sonora da peça.

Tem se por padrão, não por regra, que a parte A tende à dinâmica forte ou mezzo forte
e C, muito por conta de conter uma melodia que se repete em três oitavas ascendentes
consecutivas, geralmente é executada sob um grande crescendo.

32
A seção B, de improviso, é o trecho musical em que Egberto mais varia esse aspecto
da performance. A utilização de muitos pequenos trechos repetitivos, que poderiam conferir
relativa monotonia à peça, é compensada por partes em crescendo ou piano súbito que
auxiliam no jogo da captura da atenção do ouvinte.

Exemplificamos aqui essa variação de dinâmica referente às execuções B2 e B3. Na


primeira, Egberto, vindo de A, forte, realiza um decrescendo para iniciar seu improviso piano
e em B3, seguido do vamp inicial, também forte em que Egberto mantém a dinâmica forte
para a retomada da improvisação. Outros exemplos de como se dá esse discurso de dinâmica
não estrutural encontram-se na partitura.

Articulação

Assim como a dinâmica, os trechos musicais de Baião Malandro não parecem possuir
uma articulação fixa. Egberto também utiliza esse aspecto como item de variação, muitas
vezes sendo o único elemento que se modifica.

Prevalece articulações non legato para as seções A e B e legato31 para C embora


possamos encontrá-las, em trechos curtos, de outras maneiras, realizadas principalmente pela
utilização ou não do pedal de sustentação do piano.

Exemplo disso são as pontes 2 e 3. Sendo uma executada logo após a outra, Egberto
evita que soem como repetição se utilizando da mudança na articulação, como podemos ver.

Fig.14: Dois primeiros compassos das Pontes 2 e 3 tocadas em seguida tendo como elemento de
variação a articulação.

31 (It., “ligado”) Termo que indica notas suavemente ligadas, sem interrupção perceptível no som, nem ênfase
especial; o oposto de STACCATO. (SADIE, 1994, p.527)

33
Outro uso da articulação por Egberto nessa performance se dá na ligação entre as
partes. A transição entre a parte B1 e C1 é feita dessa maneira. Enquanto nas seções B
predominam articulações non legato e C há a predominância de legato, por meio da
antecipação do uso do pedal de sustentação do piano, em dois compassos, Egberto cria a
“amálgama” entre as duas partes, mantendo os acordes que vinham sendo tocados sobre o
ostinato de B.

O baião – características encontradas.

Dança popular muito preferida durante o século XIX no nordeste do Brasil. […]. A
partir de 1946 o grande sanfoneiro pernambucano Luís Gonzaga divulgou pelas
estações de rádio do Rio de Janeiro o baião, modificando-o com a inconsciente
influência local dos sambas e das congas cubanas. O baião vitorioso em todo o
Brasil, conserva células rítmicas e melódicas visíveis dos cocos, a rítmica (de
percussão) com a unidade de compasso exclusivamente par. (CASCUDO, 2000,
p.128).

Cortes (2014) em seu artigo intitulado “Como se toca o baião: combinações de


elementos musicais no repertório de Luiz Gonzaga” nos subsidia na tentativa de encontrar
possíveis elementos utilizados por Gismonti para a construção do seu Baião (Malandro).

Ao que percebemos, a importância do músico pernambucano se deu na introdução do


ritmo e no seu processo de estilização, visto que em seus primeiros discos no Rio de Janeiro
interpretava choros, polcas, entre outros gêneros mais populares no sudeste e ia modificando
seu repertório de acordo com a necessidade.

A partir de 1945, o artista passa a revezar entre gravações com voz e instrumentais.
Porém, as gravações instrumentais vão ficando cada vez mais escassas e as canções
passam a predominar em sua produção. Esse não foi um fato isolado; de acordo com
SEVERIANO (2008), a música instrumental que predominou nas primeiras
gravações realizadas no Brasil (polcas, valsas, choros, etc.) foi progressivamente
perdendo seu espaço na indústria fonográfica em função do sucesso de público

34
alcançado pelas canções. (CORTES, 2014, p.196).

Constituindo-se de um processo, essa estilização consolidou figuras e procedimentos


melódicos e harmônicos, como afirma o autor

Observa-se que o baião, estilizado por Luiz Gonzaga a partir da década de 1940,
tornou-se uma referência, um modelo, um formato, um dos fortes representantes da
sonoridade nordestina, bem como um componente expressivo dentro do que
convencionou-se chamar de música "tradicional", "de raiz" (NAPOLITANO, 2007)
ou "regional" (FERRETTI, 1988). [...] (CORTES, 2014, p.206)

Desse modo, ainda que saibamos que a definição de baião não se restringe apenas à
sua música ou o que ela se tornou após a inserção na mídia e estilização realizados
principalmente por Gonzaga, a comparação foi feita entre os elementos musicais descritos no
artigo, levando-se em conta o baião como forma musical já consolidada e formatada.

E dessas características descritas32, poucas podem ser encontradas na interpretação


“solo” de Baião Malandro. Sua “levada” característica e sua célula rítmica de referência não
são encontradas nas figuras tocadas33, nem mesmo como variação nos muitos trechos de
improviso de mão esquerda do pianista.

Fig.15: Levada de baião executada por zabumba e triângulo (CORTES, 2014, p.197)

32 Algumas das quais são exemplos de como o “baião” estilizou elementos das cantorias: “expressão artística
desenvolvida no nordeste, realizada normalmente por cantadores violeiros que improvisam versos sobre uma
linha melódica pré-determinada”(CORTES, 2014, p.202).
33 A versão em grupo traz elementos, como a figura do triângulo descrita. É utilizada nas seçoões B e C da
peça.

35
Fig.16: Célula rítmica que se tornou referência da “levada” do baião.(CORTES, 2014, p.197)

Porém, dois recursos descritos parecem ter sido levados por Gismonti como
referência ao gênero: a “utilização de recursos idiomáticos da sanfona” e a presença de
“padrões de terças/sextas e notas repetidas”.

A célula da mão direita da seção B da peça estudada parece uma mescla desses
elementos, principalmente ao que o autor se refere como “jogo de fole” utilizado “para repetir
a mesma nota em subdivisão de semicolcheia”.

A agilidade na execução de notas nos dois movimentos, abrindo e fechando a


sanfona, exigiu o desenvolvimento de uma técnica mais contida na abertura do fole,
promovendo um jogo de fole peculiar, técnica que Luiz Gonzaga aprendeu ainda
menino, e traduziu para a sanfona de 120 baixos, cujo efeito sonoro ficou conhecido
como o "resfolego" da sanfona. (DIAS, 2011, p.25)

Assim Gismonti sintetiza uma figura que poderia ser a repetição em semicolcheias,
que na sanfona seria de mais fácil execução pela utilização dos foles do instrumento,
condensando uma repetição de melodias por terças harmônicas e uma nota pedal,
“estilizando” ao piano, uma figura que poderia se mostrar idiomática da sanfona no baião.

Fig.17: Adaptação pianística de elementos do “baião”.

Na descrição do verbete “Baião”, Câmara Cascudo afirma que

36
[...]o maestro Guerra-Peixe registrou como características melódicas: Escala de dó a
dó – a) todos os graus naturais; b) com o sétimo grau abaixado (si bemol); c) com
quarto grau aumentado (fá sustenido); d) com qualquer mistura de dois dos modos
anteriores, ou mesmo os três[...] (CASCUDO, 2000, p.128).

Assim, podemos perceber que trata-se da utilização de variações modais da escala


maior, contando com os modos mixolídio e mixolídio #4.

Se melodicamente a composição de Gismonti também não se assemelha ao que é mais


comum ao baião como as frases com ênfases em sétimas dos acordes menores, rítmica
predominante em colcheias ou construção sob compassos acéfalos, as análises mostram uma
outra utilização do modo mixolídio (mixolídio b6).

Não é encontrada na melodia propriamente dita, mas pode-se dizer que permeia a
sonoridade da parte B, nos jogos rítmicos/melódicos executados a cada vez que essa seção é
retomada. Sua utilização pode sugerir uma espécie de brincadeira, uma modificação do que há
de comum à música do baião, enfatizando o traço de “subversão” que encontraremos como
uma das características mais fortes em Gismonti, enfatizando o que afirma MELO, sobre o
pianista

O estatuto do “popular” em sua obra é sempre refletido e mediatizado nos procedi-


mentos composicionais. O regional nunca vai sem uma pitada de novidade ou sem
um sentimento de traição com o passado e com a herança cultural. (MELO, 2007,
p.193)

Ao piano solo

Comparando-se à primeira versão gravada, encontrada no LP “Carmo” (EMI-Odeon,


1977), executada em grupo, a versão de piano solo encontrada em “Alma” traz mudanças
significativas.

Mais lenta, a versão em grupo traz o vamp inicial desenvolvido por uma série de
repetições de notas enquanto na versão solo esse mesmo trecho é, basicamente, a execução de

37
uma sequência de acordes, como vistos na descrição.

A execução das frases 1 e 2 na versão em grupo é mais “comportada”, ou seja, respeita


o contorno melódico indicado na partitura, o que propicia, por exemplo a execução da mesma
frase por vários instrumentos, o que não ocorre na versão solo.

As partes da música são as mesmas, porém a ordem em que são apresentadas se difere.
O que na versão solo é aqui nomeado por B poderia, na versão em grupo ser nomeado por C e
vice-versa.

Não há improvisação na execução em grupo, exceto por ornamentações e frases que


preenchem os espaços da melodia, executadas num piano elétrico. Já a versão solo reserva
grande espaço para os improvisos, sobretudo na seção B. Além disso, o ostinato dessa parte,
subdividido em semicolcheias ao piano solo aparece subdividido em colcheias na versão em
grupo, sendo executado de maneira mais “relaxada”.

2.2 Palhaço

Composta em parceria com Geraldo Carneiro, Palhaço, segunda peça do disco, traz
características de canção34 e deve, segundo a partitura, ser tocada de modo “melancólico e
calmo”. É tocada em andamento cuja semínima varia em torno de 114 bpm.

Forma
Parte Compassos Resumo
A 1 ao 11 Exposição do primeiro material melódico
Vamp 1 12 ao 15 Sequência de acordes de transição (casa 1)
A1 16 ao 25 Reexposição do primeiro material melódico
Vamp 2 26 ao 29 Sequência de acordes de transição
B 30 ao 37 Exposição do segundo material melódico
B1 38 ao 44 Repetição
Vamp 3 45 só 48 Sequência de acordes de transição

34 Não apenas traz aspectos como também pode ser encontrada cantada (com letra de Geraldo Carneiro) por
Olívia Byington no disco “Gozos da alma” (2006, SESC-Rio Som), de Geraldo.

38
C 49 ao 56 Exposição do terceiro material melódico
C1 57 ao 64 Novo material melódico sobre mesmo suporte harmônico
C(2,3,4,5,6) 65 ao 104 Improviso sobre a estrutura harmônica de C
A2 105 ao 112 Variação da melodia de A sobre a harmonia de C
A3 113 ao 118 Variação da melodia de A sobre a harmonia de C
Vamp 4 119 ao 122 Sequência de acordes de transição
Coda 123 ao 137 Trechos do tema em rallentando
Tab.3: Resumo das partes em Palhaço (referentes à transcrição)

Embora a seção C, sobre a qual Gismonti improvisa melodias, não conste na partitura
da contracapa do álbum, ela é aqui tratada como parte da composição, principalmente pelo
fato de ser executada em outras performances, de outros discos, com a melodia executada de
maneira muito similar..

Harmonia

Tendo como centro a tonalidade de Lá bemol maior, o caminho harmônico utilizado


por Egberto mostra dois aspectos principais. Primeiro o movimento em graus conjuntos dos
baixos e segundo os movimentos de quartas passando por dominantes secundários.

Além disso, a parte C e as conseqüentes repetições de improvisação são construídas


sobre uma harmonia que se inicia no IV grau, como podemos ver:

Parte A (c.1): I -VII IV V


|: Abadd9 | % | % | % | Gbadd9 | % | Db/F | % | Eb/G |
I IV
| Abadd9 Db/Ab | % | %| % |

Parte B (c.30): I IV -VII I


| Abadd9 | % | Db/F | % | Gbadd9 | % | Abadd9 | % |
I IV I IV V7
|: Abadd9 Db/Ab | % | %| Abadd9 Db/Ab Ab7 :|

39
Percebemos tanto em A quanto em B, que apesar dos acordes poderem ser lidos sob
aspectos funcionais, suas construções ocorrem muito por conta do movimento por graus
conjuntos dos baixos

São formados por movimentos simples que se iniciam descendentes e retornam de


modo ascendente. A diferença se dá que em A, o retorno para a tônica se por intervalo de
meio tom, formando uma dominante invertida Eb enquanto que em B, o caminho melódico do
baixo passa pela sétima bemolizada da tonalidade, no acorde caracterizado por empréstimo
modal (modo menor) Gbadd9.

Não podemos afirmar que a origem da sequência harmônica das partes citadas está no
que há de idiomático no instrumento, porém é fato que a condução de vozes é bastante
auxiliada pela harmonia tanto pelo paralelismo entre acordes como Abadd9 → Gbadd9 e
Db/F → Eb/G quanto na manutenção de vozes encontrada no movimento Gbadd9 → Db/F e
Eb/G → Abadd9.

Parte C (c.49):
IV V7 I VI II V I V7/IV
|: Dbadd9 | Eb/Db | Ab/C | Fm7 | Bbm7 | Ebsus9 | Abadd9 | Ab7(#9,b13):|

O caminho harmônico da parte C, em que Gismonti reserva à improvisação melódica,


traz uma mescla de harmonias com baixos caminhando em graus conjuntos seguidos, logo
após, a partir de Fm7, por movimentos de quarta com acordes do campo harmônico que
culminam tônica, logo transformada em dominante do IV grau, retomando-o.

Acompanhamento

O acompanhamento em Palhaço se dá de maneira simples. Acordes seguem, na maior


parte do tempo, um padrão rítmico de colcheias que pontuam e subdividem a fórmula de
compasso em 3/4 na qual a música é executada.

A tessitura e a montagem dos acordes conferem o caráter de melodia acompanhada

40
estável dominante na execução e assim como a disposição rítmica, variam pouco. A tessitura
do acompanhamento se mantém pequena e a montagem dos acordes, geralmente em posição
aberta, privilegia os intervalos de quinta, o que contribui para uma espécie de estabilidade da
textura, não havendo a ocorrência de muitos saltos nem grandes mudanças de região na
montagem dos acordes, por exemplo.

Fig.18: Forma básica de acompanhamento de Palhaço

Como percebemos em Egberto, o modo de acompanhamento destcrito se mostra


apenas como um guia, não como regra. Alterações rítmicas e acordes em posição fechada
podem ser encontrados como variação desse “padrão” predominante.

Melodia

Segue a disposição das primeiras execuções de cada uma das frases encontradas em
Palhaço :

Seção Frases
A 1 (2 ao 5)
2 (6 ao 9)
3 (10 ao 13)
B 4a (29 ao 32) 4b (33 ao 36)
C 5 (49 ao 52)
6 (53 ao 56)
7a (57 ao 60) 7b (61 ao 64)
Tab.4 :Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

Além da descrição das melodias, o que mais chama atenção nessa execução de
Palhaço é a grande quantidade de recursos de variação e ornamentação melódica utilizados

41
por Gismonti ao piano solo. Tomemos como exemplo o trecho que compreende as frases 2 e
3, tanto no Lead Sheet quanto na primeira exposição da transcrição para podermos
exemplificar o enriquecimento que a performance confere à melodia guia.

Fig.19: Trecho descrito no encarte do álbum (1986, p.2)

Fig.20: Mesmo trecho executado em “Alma”

Percebemos em um único trecho que, durante a performance, Gismonti modifica


consideravelmente a rítmica da melodia e faz uso de vários recursos de embelezamento
melódico como bordaduras e apojaturas.

É também curioso o fato do pianista adicionar vozes suplementares, também de


maneira aparentemente opcional, à melodia. Essa constatação se dá pelo fato de que nas
repetições desse mesmo trecho a adição não ocorrer de maneira semelhante. Aqui pudemos
conferir três notas suplementares adicionadas, em outros casos, encontramos duas, uma ou
nenhuma fazendo desse traço algo determinado pelo intérprete.

42
A análise acima é um exemplo de como Egberto trata uma melodia em sua
performance. Muitos outros artifícios são encontrados na execução 35. Podemos afirmar que
Palhaço é uma das peças em que a melodia é mais ornamentada, principalmente pela adição
de notas não previstas na partitura guia.

Palhaço também é caracterizada pela riqueza de sua agógica 36. Além de acelerar e
desacelerar a execução de modo torná-la mais expressiva, Gismonti se utiliza amplamente de
fermatas e trechos em ritardando que enfatizam notas e passagens que ocorrem
principalmente em fins de frases, semi-frases ou na preparação para uma repetição, como por
exemplo, no trecho a seguir no qual o último tempo do repouso da melodia é dilatado e faz
com que o retorno da frase retome também o andamento vigente.

Fig.21: Variações de agógica em Palhaço.

Um outro artifício utilizado por Egberto como variação é a reexposição, no retorno da


seção de improviso, da frase 1, pela utilização da repetição de notas, o recurso exemplifica
como alguns motivos ou maneiras de se executar melodias, por exemplo, parecem fazer parte
da preferência37 do músico e contribuir para a formação de uma maneira de tocar particular.

Fig.22: Trecho da frase 1 descrito no encarte do álbum (1986, p.2)

35 Vide partitura anexa.


36 “Termo para um tipo de acentuação que se baseia antes na duração (um certo repouso sobre a nota a fim de
enfatizá-la) do que na intensidade: é importante na música para instrumentos como o cravo ou o órgão nos
quis a intensidade não pode ser alterada imediatamente, sendo preciso encontrar outros meios de acentuação.
O termo “agógica” às vezes é usado para designar qualquer tipo de desvio em relação ao rigor rítmico.”
(SADIE, 1994, p.12)
37 Identificadas pela recorrência de uso.

43
Fig.23: Mesmo trecho da Frase 1 executado sob notas repetidas na sesão A3

Dinâmica

Assim como na maioria das músicas do álbum, a dinâmica em Palhaço não é


correlacionada com as partes da música e varia em pequenos trechos intrínsecos,
principalmente, às frases e semi-frases.

A amplitude é media e os movimentos tendem a ocorrer entre piano e mezzo forte.


Destacamos aqui que Gismonti utiliza a dinâmica como forma de variação, ou seja, como
auxílio à não repetição literal das partes.

A título de exemplo, expomos aqui um movimento interessante de dinâmica realizado


por Gismonti em A1. O pianista realiza um crescendo repentino entre o repouso da frase 1 e
inicia a frase 2 sob a dinâmica forte realizando, logo após, um decrescendo interno a essa
mesma frase que volta à dinâmica piano da qual veio executada na frase 1. A rápida mudança
de dinâmica gera a quebra de expectativa do ouvinte, que poderia esperar a continuação do
trecho sob a dinâmica forte, e causa a sensação, pela pouca duração, de que Egberto “desistiu”
da mudança optando por continuar piano, como numa espécie de crescendo/derescendo
súbito.

44
Fig.24: Manipulação livre da dinâmica na execução de Palhaço

Consideramos esse um exemplo de como Gismonti ”brinca” com a dinâmica e a


mantém de forma livre e improvisada.

Além disso podemos perceber trechos em que a dinâmica se modifica de maneira mais
gradual. O trecho a seguir exemplifica como o pianista se utiliza da maior movimentação,
tornando a textura mais densa pela maior quantidade de notas e conseqüente subdivisão do
compasso para a geração de um crescendo de maior duração, partindo de um subito p.

Fig.25: Maior subdivisão rítmica da melodia gerando crescendo gradual.

45
Articulação

Palhaço tem como articulação predominante o legato e constante utilização do pedal


direito do piano, com trocas no início de cada compasso. Porém, num momento do trecho da
música reservado à improvisação, a articulação predominante é suspensa.

A exceção da articulação predominante se dá do início seção de improviso C6 à


retomada do tema na parte A3 (compassos 89 a 103). Nesse trecho Egberto utiliza um recurso
também explorado em outras interpretações do álbum.

A interrupção do uso do pedal e da rítmica precedente cria uma sensação de


aleatoriedade da mão esquerda, que passa a atuar como num comping38 jazzístico, pela
ausência de um fluxo rítmico constante da mão esquerda, como se Gismonti suspendesse o
acompanhamento e apenas pontuasse trechos da melodia e, principalmente, seus espaços.

Além disso, o improviso segue com melodias executadas sob articulações que variam
entre o staccato39 e o portato40, até então não encontradas na performance. Essa quebra do
fluxo torna a seção mais “pontiaguda” e “seca”, como percebemos no exemplo a seguir, entre
os compassos 100 e 103:

38 “Comping”, termo utilizado para acompanhamento (ou complementação), é o que o pianista faz por trás do
solista e durante as sessões em conjunto. […]. (LEVINE, 1989, p.223, tradução nossa)
39 (It., “destacado”) Diz-se de uma nota, durante a execução, separada de suas vizinhas por um perceptível
silêncio de articulação e que recebe uma certa ênfase, não exatamente MARCATO, mas oposto de LEGATO.
O staccato é notado com um ponto, um traço vertical ou um sinal em forma de cunha. (SADIE, 1994, p.896)
40 Um legato que possui uma leve acentuação; uma combinação de legato e staccato, mas com uma ligadura
definida. [...] Kraemer, B. In. Italian Musical Glossary. Disponível em < http://piano.about.com/od/Italian-
Music-Glossary/tp/Italian-Music-Glossary_P-Q.htm .>. Acesso em 12 de nov de 2014 (Tradução nossa)

46
Fig.26: Variação por mudanças de articulação

Outro exemplo interessante da performance é a percepção de que mesmo em trechos


cuja articulação é predominantemente legato, o pianista se utiliza, também como forma de
variação, e, assim como a agógica, para destaque de notas ou pequenos movimentos, de modo
opcional, de outras articulações como staccato.

No exemplo a seguir podemos perceber esse tipo de utilização. Os excertos se referem


às partes B e B1, tocados um em seguida do outro. O que é perceptível é que Gismonti, na
primera exposição, utiliza-se de staccato para o trecho e, no seguinte, não realiza essa
articulação optando pela manutenção da vigente (legato).

Fig.27: Utilização de staccatos e legatos num mesmo trecho (em B e B1)

47
Ao piano solo

Algumas diferenças estruturais e interpretativas foram encontradas pela audição da


versão contida no álbum “Circense” (EMI – Odeon, 1980) em comparação à versão do álbum
pesquisado.

A que julgamos mais importante se encontra no que concerne à execução das


melodias. A versão em grupo possui, muito provavelmente pelo fato de haver mais de um
músico tocando a melodia, uma interpretação mais direta, ou seja, sem muitos ornamentos,
ainda que existam e permaneçam no âmbito da performance pois, muitas vezes, apenas um
dos músicos que executam a melodia a faça.

Também por esse motivo, encontramos uma interpretação da melodia menos variada
ritmicamente, mais “reta”, ausentando também as variações mais drásticas de agógica como
as passagens em ritardando ou as fermatas em trechos casuais, amplamente utilizadas na
versão solo.

A performance de “Alma” traz, como vimos, muitos desses elementos, o que condiz
com a liberdade de se executar uma melodia sem a necessidade de que os tempos e
ornamentos coincidam ou sejam escritos pelo compositor/arranjador.

Estruturalmente, modifica-se a parte sob a qual ocorrem os improvisos. Como vimos,


ao piano solo, Gismonti elege a seção D para a prática enquanto que na versão em grupo, num
exemplo de transmutação de partes, o pianista utiliza o vamp que permeia toda a execução
passando por todo o ciclo das quintas41, sendo essa sim, a seção na qual existe um improviso
de saxofone.

2.3 Loro

Terceira peça do disco, tocada de maneira ágil, com a semínima em torno de 145 bpm,
tem como indicação interpretativa a inscrição “rápido, alegre e leve”.

41 Sequência de notas (aqui acordes) que passa por todos os doze tons da escala cromática por saltos de
quintas, que também é o intervalo gerado no movimento dominante – tônica, utilizado por Egberto para que
o vamp ou levada da música se tornasse a seção de improvisação.

48
Forma

Loro constitui-se de uma forma canção com apenas uma parte (20 compassos) e um
refrão (8 compassos, repetido um vez) tocada por seis vezes:

Parte Compassos Resumo


A 1 ao 37 Exposição dos primeiros materiais temáticos
A1 38 ao 73 Reexposição dos materiais temáticos
A2 a A4 39 ao 180 Improviso sobre a estrutura harmônica
A5 e A6 181 ao 243 Reexposição do material temático com variações
Coda 244 ao 250 Acordes finais em rallentando
Tab.5: Resumo das partes em Loro (referentes à transcrição)

Harmonia

Loro se comporta de maneira tonal e o modo com que o acompanhamento é executado


dificulta, como em outras peças de estruturas semelhantes, a descrição precisa dos acordes
tocados. Desse modo os acordes descritos se comportam como regiões e são confirmados por
repetições, pela melodia e pelas partituras já existentes. Acordes triádicos e inversões
prevalecem durante o percurso harmônico.

Dois aspectos principais da construção harmônica são depreendidos da análise da


peça. Primeiro, é possível perceber que o percurso é basicamente construído sobre relações de
dominantes secundárias. Segundo, percebe-se que as inversões de acordes ocorrem
principalmente para conferir ao movimento dos baixos dos acordes um caminho que
privilegia os graus conjuntos descendentes. A progressão se dá da seguinte maneira 42

42 Cifragem baseada na partitura encontrada na contracapa do disco. Há alterações.

49
Parte A (c.2):

V7(V) IV (V)VI VI
| Eb/Db | % | Ab/C | % | G(b9)/B | % | Cm/Bb | % |

(IIº V7)III (V)VI (V)II V(V) V7 (V)-III VII


| Aº | D7(#9) | Gsus4 | % | Csus4(9-)| % | F(5+)/C | % | Bb7sus | Bb7 | Db13| Dm6 |

O caminho harmônico da seção A inicia-se por um movimentos de dominantes


secundárias sobre um movimento de baixos por graus conjuntos. Essa sequência melódica é
interrompida por uma cadência II V I executada em posição fundamental e seguida de um
curto pedal de dominantes43 desembocando na dominante da tonalidade, que segue por
movimento cromático até a tônica na seção B. Perceberemos, mais adiante, a alternância entre
movimentos por grau conjunto e movimentos por quartas, procedimento padrão nas
harmonias de Gismonti.

Refrão (c.22)

I V7/IV IV IV I V7/V V7
| Eb(6-) | Eb(6-)/Db | Ab/C | Ab add9 | Eb/G | F7 | Bbsus7 | Bb7 |

V7/IV IV IV I V7/V V7
| Eb/Db | % | Ab/C | Ab add9 | Eb/G | F7 | Bbsus7 | Bb7 |

Notamos que no refrão a harmonia é mais simples, constituída de apenas um caminho


descendente dos baixos no sentido da tônica Eb para a dominante Bb, com dominantes
secundários para o IV e V graus.

Os dois primeiros acordes do refrão, apesar de não serem cifrados desse modo nas
outras partituras, apontam, pela utilização dos intervalos de quinta justa e sexta menor, além
da omissão da sétima no primeiro acorde, para o uso, assim como em Baião Malandro, da

43 Ainda que nem todos utilizem suas sétimas.

50
sonoridade do modo mixolídio b644.

Fig.28: Utilização rápida do modo mixolídio b6.

A simplicidade harmônica favorece a execução do complexo acompanhamento


estudado a seguir.

Acompanhamento

“O ritmo complementar é dado pela relação entre as vozes, uma preenchendo os


vazios da outra, e mantendo, assim,o movimento (isto é, a subdivisão regular do compasso)”.
(SCHOENBERG,1990, p.110).

Nessa interpretação predomina uma espécie de acompanhamento complementar um


tanto quanto mais irregular que a descrição de Schoenberg, no qual os acordes são executados
em linhas melódicas que aparecem nos espaços da melodia principal dando vida a uma textura
polifônica45 complexa e de difícil execução.

Com uma rítmica sincopada, sem padrões, e uma grande variedade de articulações em
um andamento ligeiro, a sonoridade dos acordes não permanece para os ouvintes, o que
confere à textura da música um senso de aleatoriedade, como se as melodias simplesmente
aparecessem de maneira improvisada.

44 A formação da escala se encontra na análise de Baião Malandro.


45 Termo derivado do grego, significando “vozes mútilplas, usado para a música em que duas ou mais linhas
melódicas (i.e., vozes ou partes) soam simultaneamente. […] (SADIE, 1994, p.733)

51
Porém, uma leitura mais atenta do acompanhamento, visto detalhadamente na
transcrição, mostra que essas melodias são construídas essencialmente por notas dos acordes,
ainda que de maneira flexível.

Outro fator contribui para a complexidade da textura, além da irregularidade rítmica,


é a ausência de padrão para a disposição das vozes dos acordes. Gismonti não hesita começar
um acorde por sua quinta ou sétima e “entregar” a fundamental apenas no último tempo do
compasso ou em algum tempo fraco.

Peculiar, essa forma de se acompanhar requer agilidade. Ainda que não


necessariamente improvisada em todos os aspectos, existe nessas passagens uma riqueza na
condução de vozes. A maneira com que ocorre a transmutação das notas comuns aos acordes
necessita um planejamento prévio que mescla o impulso do momento da execução com a
necessidade de expor a harmonia. Aqui, um exemplo de como essa transmutação ocorre:

Fig.29: Transmutação entre acordes da primeira exposição de B.

52
O exemplo mostra o que foi mencionado acima na primeira exposição do refrão onde
podemos identificar o modo em que Egberto conduz o acompanhamento e as mudanças de
acordes, omitindo notas como em Eb(6-)/Db, antecipando através de síncopa a mudança entre
Eb/G e F7. Além disso, no exemplo, pode-se perceber a inconstância rítmica e os acordes
sendo iniciados por notas outras que não as suas fundamentais, como em F7 e Bbsus7,
iniciando-se em suas terças e sétimas, respectivamente.

Ainda que exista a condução de vozes exemplificada acima, o procedimento não é


uma regra. Há momentos em que Egberto se abstém de uma melodia por graus conjuntos ou
por notas próximas e realiza saltos, geralmente visando atingir a fundamental do acorde
subsequente.

O que é possível notar é uma via de mão dupla na construção da harmonia e do


acompanhamento. Vemos que os acordes além de manterem uma ou mais notas do anterior,
muitas vezes são invertidos gerando caminhos harmônicos cujos baixos caminham por graus
conjuntos, o que facilita essa ligação melódica entre eles fazendo-nos supor que tanto o
acompanhamento quanto a harmonia em seu aspecto funcional influenciam mutuamente a
composição da peça. Gismonti também toca, de maneira descompromissada e não
padronizada, acordes em bloco, como num comping jazzístico.

Ritmicamente é também notável a independência entre as mãos direita e esquerda, no


trecho a seguir, podemos exemplificar a manutenção de uma melodia em semicolcheias na
mão direita, enquanto a mão esquerda realiza colcheias pontuadas trazendo à tona um dos
muitos exemplos de polimetria realizados pelo músico.

Fig. 30: Semicolcheias na mão direita e colcheias pontuadas na esquerda.

53
Melodia

Divisão das frases da primeira exposição

Seção Frases (Compassos)


A 1 (2 ao 9)
2 (10 ao 13)
3 (14 ao 21)
Refrão 4 (22 ao 25)
5 (26 ao 29)
Tab.6 :Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

A execução de Loro em “Alma” mostra como o pianista se dá o direito de alterar suas


composições. A comparação entre a melodia escrita e a realizada pelo músico na performance
do álbum é um exemplo disso.

Como um “chorão”46, Egberto não toca, desde a primeira exposição, a melodia da


mesma maneira duas vezes. Brinca, alterando sua rítmica, atrasando, “tercinando” ou
adiantando resoluções, altera pequenos trechos de sua construção assim como insere frases e
comentários melódicos em seus respiros.

A melodia escrita tem como material temático sequências de repetições de notas


durante todo o seu percurso. Esse elemento, até então essencial à melodia, é omitido por
Gismonti na versão transcrita. Desde a primeira exposição, a melodia é tocada sob um aspecto
de variação e as repetições, antes constantes, agora aparecem apenas em alguns pontos, sem
respeitar a regularidade sob a qual é escrita. A alta velocidade com que é executada no álbum
é um dos prováveis motivos para a substituição de muitas das repetições de notas sobre as
quais a melodia é composta por outros desenhos melódicos, fazendo com que Gismonti tome
outros caminhos para dar brilho à melodia, antes tão dependente do recurso.

É notável que essa maneira de execução é realizada apenas ao piano solo. O fato de
não haver outros músicos executando a mesma melodia confere também maior liberdade

46 Maneira com que são chamados os músicos executantes do gênero “Choro”.

54
rítmica e melódica ao pianista, como podemos perceber:

Fig. 31: Melodia do refrão como escrita no encarte (1986, p.3) e executada em outras versões

Fig.32: Mesma melodia na execução do álbum

O exemplo acima mostra alguns dos recursos utilizados por Egberto para evitar a
contínua repetição de notas. Na figura, o pianista as substitui, respectivamente, por arpejos,
pausas, pequenos “clusters”47 e fragmentos melódicos em terças, o que resulta numa execução
muito variada tornando a compreensão melódica mais complexa. Como a melodia completa
é repetida várias vezes durante a performance, Gismonti utiliza, além dos descritos, vários
47 Esbarrões que se repetem de forma aparentemente intencional.

55
outros recursos de modificação melódica.

Além do processo descrito, o pianista também modifica a rítmica das frases, como no
exemplo abaixo, no qual substitui as notas tocadas em divisão binária pelo mesmo contorno,
porém em tercinas48.

Fig.33: Excerto melódico executado em A

Fig.34: Mesmo excerto melódico executado em A1, com variações rítmicas.

Outro elemento usado como variação é a execução da melodia em oitavas diferentes.


Além disso, Gismonti reserva três repetições da forma para o improviso melódico à
maneira jazzística. O que se pode notar da improvisação de Gismonti em Loro é a constante
reiteração de trechos da melodia principal em seu improviso. Muitos dos motivos ou semi-
frases são utilizados durante esse período de maior afastamento do material temático, aspecto
que merece estudo mais aprofundado.

Dinâmica

Não há em Loro um procedimento dinâmico estrutural. A peça é executada, em média


sobre a dinâmica mezzo forte e se utiliza de crescendos e decrescendos que correlacionam-se
mais com o momento da performance do que com a composição em si. Podemos observar a
48 Aqui, a variação rítmica não é em relação à melodia escrita, mas sim entre as repetições na própria
performance.

56
presença de piano súbito ou ataques em dinâmica forte, porém, todos esses recursos se
encontram a cargo do Egberto Gismonti “intérprete”. Assim ele cria jogos de dinâmica de
curta duração que não necessariamente se repetem com a repetição de um mesmo trecho
musical, fazendo-nos crer que é também um parâmetro improvisado.

Encontra-se aqui um uso específico do pedal de sustentação do instrumento. Com


poucas inserções de curta duração, o pedal aparece como recurso de alteração na dinâmica da
peça com o qual Egberto realiza rápidos trechos em crescendo, até mesmo de grande
amplitude. O exemplo abaixo demonstra como Gismonti, auxiliado pela utilização de um
acompanhamento mais denso49 utiliza esse artefato para o desenvolvimento do efeito citado
acima.

Fig.35: Exempo de crescendo atingido pela utilização do pedal e adensamento do acompanhamento.

Articulação

Prevalecem articulações non legato nessa interpretação de Loro com raros usos do
pedal de sustentação. Embora prevaleça esse tipo de articulação, podemos encontrar frases,
principalmente as extremamente velozes, sob a articulação legato, valendo ressaltar que essas
são também executadas sem o auxílio do pedal.

Além disso podemos encontrar combinações de articulações opostas, como por


exemplo, nas frases descritas acima, que podem vir acompanhadas de frases em staccato
realizadas pela mão esquerda.

O que se pode afirmar sobre essa performance de Loro é o não extremismo das

49 Aqui o pianista se acompanha executando uma espécie de “levada” por alguns compassos, interrompida logo
a seguir.

57
articulações. Com exceção de alguns trechos propositalmente mais acentuados, os staccatos
não são muito curtos e por isso muitas das articulações foram inscritas sob o portato, uma
figura que em Egberto pode ser entendida como um “meio termo” entre o legato e o staccato.

Aqui se encontra também um traço muito peculiar de como Egberto executa suas
melodias. É percebido, através, principalmente, de vídeos de performances do músico, que o
pianista costuma realizar repetições de notas com apenas um dedo e ainda que não tenhamos
encontrado uma possível explicação para a constatação, algo que também é notável, não
apenas em Loro, mas também, é uma certa preferência pelo tenuto50 quando o pianista realiza
tercinas.

Ao piano solo

Em sua versão para quarteto, Loro, encontrada no álbum “Sanfona” (EMI-Odeon,


1978) guarda características das performances jazzísticas. Expõe-se o tema e, em seguida, os
músicos, nessa gravação apenas Egberto ao piano, improvisam sobe a estrutura rítmica e
harmônica, enquanto os outros realizam o acompanhamento.

A versão contida em “Alma” ganha aspecto de improviso sobre o tema desde a


primeira exposição.

Substancialmente mais ágil que a versão anterior, a maneira como a melodia principal
é exposta já traz essa característica.

Porém, o aspecto que mais se diferencia da versão em grupo é, como perceberemos


por prática comum em Gismonti, o acompanhamento.

Em grupo, até mesmo pela incompatibilidade que outra maneira traria, Loro possui
uma levada rítmica que é executada pela “cozinha” 51 durante todo o percurso musical,
exposições e improvisos.

Ao piano solo, o padrão de levada se perde dando lugar ao acompanhamento de


características improvisadas descritos na seção destinada a esse elemento. Egberto utiliza o

50 (It., “Sustentado”) Instrução normalmente aplicada a notas isoladas, ou grupos de notas, para que sejam
sustentadas em toda a sua duração ou interrompendo completamente o compasso. (SADIE, 1994, p.941)
51 “Seção rítmico-harmônica”.

58
padrão rítmico de levada da primeira versão apenas em pontos específicos e por curtos
espaços temporais. A estrutura formal se mantém apesar da versão contida em “Alma” contar
com mais repetições.

Um aspecto comum a ambas performances é a variação de andamento. As últimas


exposições são compostas por grandes períodos em rallentando.

2.4 Maracatu

Segundo Guerra-Peixe, a hipótese mais aceita da origem da palavra maracatu reside no


termo “maracatucá”, uma espécie de verbo que os dançadores desse folguedo utilizavam para
dar início ao cortejo e à dança a partir da Igreja do Rosário, no Recife. Esse verbo também, já
como designação do termo, significava batucar, da mesma maneira que o termo batucar
significa “fazer um batuque”.
Também segundo o estudioso, o vocábulo, que era a nomeação de uma forma peculiar
de batuque, hoje, mais amplo, designa um cortejo comum à cidade do Recife/PE.
Assim como os afoxés de Salvador, esses cortejos de conotação religiosa tem sua
atividade intensificada na época do carnaval e podem ser reconhecidos pela observação da
instrumentação de suas orquestras de percussão e, principalmente, pela forma característica de
suas execuções, que apesar das diferenças entre as “nações” (grupos ou agremiações de
maracatus), possuem uma sonoridade geral comum perceptível.
A orquestra dos maracatus é constituída basicamente por: agogô (ou, mais comumente
chamados pelos participantes, gonguê); tarol e caixa de guerra; zabumbas (assim nomeadas
por Guerra-Peixe) ou alfaias. Além dessa instrumentação, admite-se em algumas das
agremiações também o agbê (ou xequerê), o ganzá e, em menor número, os atabaques.
A quantidade e a proporção de instrumentos varia de acordo com a quantidade de
músicos disponíveis e com especificidade de cada “nação”.
Atenção especial deve ser dada ao grupo das alfaias (ou zabumbas). Responsáveis pela
síncopa característica do ritmo do folguedo. O grupo de músicos encarregados desses
instrumentos se dividem em 3: marcante, meião e repique. Cada um possui uma função dentro
dos arranjos instrumentais da orquestra.

Em seus aspectos gerais os grandes tambores assemelham-se, mas há pequenas


diferenças de dimensões, “tonalidades” e encargos rítmicos dividindo-os em funções.

59
Por esses motivos ocorrem designações indicadoras de sua funcionalidade:
“marcante”, o zabumba mestre, comandante do grupo; “meião”, o que transmite o
comando rítmico aos restantes zabumbas; “repiques” o grupo de tambores que, em
posição subsidiária, segue as indicações do anterior. (GUERA-PEIXE, 1956, p.61).

Recorremos novamente a Guerra-Peixe para compreensão da importância dos


“zabumbas” no cortejo:

Para um músico ocupar a posição de “marcantista”, - isto é, executante do


zabumba-marcante – não basta tornar-se seguro intérprete dos ritmos executados no
Maracatu, mas deve também possuir requisitos morais à altura das responsabilidades
exigidas pela função. Isso porque o marcante condiciona preceitos religiosos e uma
tradição certa a serem seguidos, pois antes de ser executado pela primeira vez ele
passa por um ritual de sagração num dos terreiros de confiança dos dirigentes do
Maracatu. O mesmo instrumento não deve ser atingido por mãos profanas quando
em função nos cânticos sagrados. E a hereditariedade é um fator adstrito a uma casta
de privilegiados, uma vez que a posição de marcantista decorre, tanto quanto
possível, de relações de parentesco e de sucessão. (GUERA-PEIXE, 1956, p.61-62).

Devemos esclarecer também duas designações para o termo “toque virado” (ou “baque
virado”). Primeiro, o termo é utilizado para a diferenciação de tipos de folguedos cuja
instrumentação é determinante.
Segundo Guerra-Peixe, o maracatu de “baque virado” ou “baque dobrado” (utilizado
como mote para a composição de Egberto Gismonti) é o folguedo em que estão presentes
mais de um zabumba, assim “virado” é uma espécie de acepção de “dobrado”. O termo é um
oposição aos maracatus-de-orquestra, também chamados de “maracatu baque solto”,
formação em que se admite apenas um zabumba, permitindo a esse músico maior liberdade
para variações.
O segundo significado do termo “toque virado” é o de arranjo instrumental (já
pertencente a um maracatu do tipo “toque virado”) no qual se permite a “viração”, variações
rítmicas em conjunto que tem como finalidade animar a música por alguns instantes,
transmitindo também o entusiasmo aos dançadores. Essas variações não são sempre
permitidas, como por exemplo no toque “Luanda” (outro arranjo instrumental dos maracatus
de “baque virado”) que, por conter características mais explicitamente sagradas, exige a
conservação de sua simplicidade.
As peculiaridades referidas acima darão subsídios para que possamos criar hipóteses
para os procedimentos de adaptação musical utilizados pelo músico.

60
O Maracatu de Gismonti

[...] Aprendi com eles [os bateristas mencionados com quem Egberto havia tocado]
que Maracatu, para ser Maracatu, tem que ter o sujeito que toca tarol bêbado. Se não
tiver o “tarol” bêbado, não é Maracatu. E essa informação que eles me deram me
ajudou a pensar num maracatu que tem[...] [mostrando ao piano as células
características de sua composição] (Gismonti no programa Ensaio da TV Cultura.
FELICIO, 2013)

Das peças contidas no álbum estudado, Maracatu nos parece um caso especial, tendo
como indicação interpretativa a inscrição “cantando”. Trata-se da mais evidente adaptação
pianística de alguns dos elementos sonoros de uma manifestação artístico/religiosa
homônima, cuja música é muito característica e possui papel fundamental. Há também no LP
outras composições nomeadas homonimamente a manifestações artísticas brasileiras (Baião
Malandro e Frevo), porém existem diferenças exemplificadas na seção de análise destas
obras.
Maracatu é uma composição de sonoridade peculiar. Seu mote principal é sua
“levada” extremamente característica que é uma síntese pianística, ao modo de Egberto, da
música produzida pela orquestra de percussão das “nações” pernambucanas.
A textura predominante é a homofônica (melodia acompanhada) embora muitos
eventos musicais ocorram simultaneamente como a clave da mão direita e a melodia
principal, que não soam juntas, mas que pelo fato de Egberto inserir a clave nos repousos
melódicos, obtem-se o efeito de que são executadas ao mesmo tempo, como no exemplo:

Fig.36: melodia que continua em nota longa concomitantemente com a clave.

Além disso, o próprio acompanhamento é uma superposição de elementos musicais,


como já analisados e descritos mais detalhadamente abaixo. A simulação da sonoridade dos
tambores, somada a linhas melódicas internas cria um efeito polifônico, ainda que não seja de

61
fato pela ausência de independência melódica entre as vozes.

Forma
Parte Compassos Resumo
Introdução 1 ao 12 Apresentação da clave e da “levada”.
A 13 ao 21 Exposição da melodia principal
A1 22 ao 28 Reexposição da melodia principal
Ponte1 29 ao 37 Sequência de acordes em repouso
B 38 ao 77 Seção de sonoridade improvisada sobre a região dominante
Ponte 2 78 ao 81 Melodia que retoma a “tônica”
Introdução 2 82 ao 96 Retomada da levada e da clave
A2 97 ao 104 Reexposição temática sobre outra harmonia
A3 105 ao 112 Reexposição temática
Coda 113 ao 126 Seção de sonoridade improvisada em rallentando.
Tab.7: Resumo das partes em Maracatu (referentes à transcrição)

A clave

Guerra-Peixe, em sua obra sobre esse cortejo, utilizou o “Maracatu Elefante”


(agremiação recifense) como base para a pesquisa. Transcreveu cada uma das figuras rítmicas
e melódicas (para os instrumentos que possuem diferenciação de alturas) dos toques desse
grupo. Traçaremos, a partir daqui, um paralelo entre essa documentação e transcrições da
composição de Egberto Gismonti realizadas pelo autor e também contidas no encarte do
álbum estudado.
A primeira figura descrita é a do gonguê. No instrumento metálico de frequência
aguda, geralmente com apenas uma campânula nos maracatus, os executantes conseguem
extrair dois sons, um mais grave quando percutido o centro do corpo do instrumento e um
mais agudo quando percutida a área mais próxima da base. Assim, para diferenciação, Guerra-
Peixe separou em duas alturas a grafia das figuras realizadas com intuito de localizar a área a
ser percutida no instrumento.
Ao piano, Egberto, numa referência ao gonguê dos maracatus, executa uma espécie de
inversão de alturas de uma das claves notadas, separando-as em oitavas, como podemos notar:

62
Fig. 37: Uma das claves do gonguê (GUERRA-PEIXE, 1956, p.74)

Fig.38: Clave de Maracatu de Gismonti (1986, p.3)

O pianista, assim como nos maracatus recifenses, mantém essa figura inalterada
durante todas as seções da música, marcando e subdividindo os compassos, omitindo-a apenas
com o aparecimento da melodia, que é realizada pela mão direita (assim como a clave do
gonguê), impossibilitando a execução simultânea.
Essa figura é também o primeiro elemento a ser exposto em todas as versões
apresentadas, o que também remete à maneira com que o cortejo inicia as toadas:
“Se bem que o primeiro instrumento a marcar sua entrada seja indiferentemente, o gonguê ou
o tarol, a este cabe anunciar o andamento a ser observado por todo o conjunto.” (GUERRA-
PEIXE, 1956, p.69)
Egberto parece ter escolhido o gonguê para dar início e mostrar o andamento para seu
próprio maracatu.

O “corpo” da levada

Há no cortejo de maracatu uma sincopação muito característica dada pelos zabumbas.


Devido ao volume alcançado pelo cortejo, a figura executada por esse grupo de
instrumentistas que se consegue perceber auditivamente é:

Fig.39: Figura musical mais audível dos zabumbas no meio dos grupos de Maracatu (Transcrição do autor)

63
Porém, é importante notar que as alfaias (ou zabumbas) são tocadas com duas
baquetas diferentes: a maçaneta e o bacalhau (ou resposta).
A diferença de intensidade produzida com essas baquetas é grande.
Comparativamente, maçaneta produz, geralmente, um fortíssimo, enquanto o “bacalhau”,
algo em torno de um piano.
Assim sendo, a transcrição da figura rítmica executada pelos “zabumbas” se faz da
seguinte maneira:

Fig.40: Célula executada pelos zabumbas (GUERRA-PEIXE, 1956, p.77)

Ao fazer a adaptação Egberto utilizou o padrão semicolcheia–colcheia–semicolcheia


para todos os 4 tempos do compasso. Somando a figura realizada pelas alfaias à informação
do “caixa bêbado”, Egberto criou uma levada cuja acentuação forja uma espécie de
irregularidade rítmica que simula a execução de músico bêbado, mas respeita o padrão
semicolcheia-colcheia-semicolcheia, largamente utilizada na seção de instrumentos de
frequências médias e graves no cortejo.
Assim, percebe-se que o padrão executado pela mão esquerda é uma síntese das
figuras realizadas principalmente pelas alfaias (repique, meião e marcante) e pelo tarol/caixa
de guerra, com as alterações necessárias para que se faça perceptível a harmonia.

Fig.41: Condensação ao piano da levada de maracatu (GISMONTI, 1987, p.2)

64
Fig.42: Uma das levadas do maracatu Elefante (GUERRA-PEIXE, 1956, p. 80)

Harmonia

Constituída basicamente por dois acordes, na parte A encontramos uma espécie de


utilização de harmonia predominantemente modal. Cada um dos dois acordes principais sobre
os quais a composição foi construída, Bm7 e G#Ø(9), representa aqui uma forma de
harmonização de algum modo derivado da escala de Si menor. Além disso é possível notar a
presença de uma região de F#752. Em A, o acorde predominante é Bm7, com duração de 5 dos
8 compassos que compõem a forma dessa parte, sendo assim o que podemos chamar de centro
da peça. Dessa estrutura, G#Ø(9) ocupa 2 e F#7(9-) cumpre uma espécie de dominante
fazendo com que a peça retorne a seu centro, Si menor.
Dessa forma a seguinte estrutura pode ser percebida:

I +VI I V
| Bm7| % | % | % | G#Ø(9) | % | Bm7 | F#7(9-) |

Especificamente nessa interpretação de Maracatu, na qual o B é acompanhado de um


improviso, encontramos a polarização do quinto grau maior, Fá sustenido, da peça,
configurando o que aqui nomearemos de modulação para a região da dominante e
consequente “tonalização” da peça, pelo fato de tanto a melodia quanto a harmonia
apresentarem claros movimentos de afastamento e aproximação, se utilizando de dominantes,

52 Cifrado na contracapa do álbum.

65
do centro tonal momentâneo, como podemos ver no exemplo:

Fig.43: Cadência na dominante (Fá#), região para a qual houve a modulação.

Acompanhamento

Parcialmente descrito na análise da recriação ao piano, da sonoridade de um folguedo


de maracatu de baque virado, o acompanhamento será descrito agora em sua relação com a
harmonia, numa tentativa de desvinculação com a transfiguração realizada por Gismonti.
Virtuosístico e sincopado, constitui um padrão de “levada” para piano solo, ou seja,
resume padrões rítmicos característicos de um gênero musical fazendo-os interagir com
harmonia criada.
Encontramos aqui também, um elemento que reforça características modais da
composição que são as melodias internas em terças executadas sobre os acordes. Essas
melodias fazem com que os acordes não sejam formados por tríades ou tétrades e sim por
regiões de notas de uma escala ou modo por suspensões, como veremos:

Fig.44: Melodia interna aos acordes que criam suspensões e resoluções, caracterizando os modos Eólio ou
Dórico de Si.

66
Temos aqui um pedal em Si e a melodia interna que soa, respectivamente na voz mais
aguda e mais grave, Mi – Ré – Do# e Do# - Ré – Mi. Falta uma informação que ajudaria na
conclusão do modo sobre o qual o trecho foi construído, que é a presença do sexto grau,
fazendo com que, mesmo se tratando de um trecho modal, ainda exista a dúvida sobre qual o
modo utilizado pois haveria a possibilidade de ser o modo Eólio, caso houvesse a presença da
nota Sol, ou o modo Dórico caso houvesse a presença de Sol sustenido. Os outros graus da
escala já foram definidos.

Fig.45: Modos Eólio e Dórico de Si, respectivamente

Também temos:

Fig.46: Melodia interna aos acordes, caracterizando o modo Lócrio 9 de Sol #

Aqui, além do pedal em Sol sustenido a melodia interna soa, respectivamente na voz
mais aguda e mais grave, Ré – Do - Si e Si – Lá# - Sol#, que juntos com as notas Fá#
executadas na clave da mão direita são suficientes para sugestionar o modo Lócrio 9 de Sol
sustenido, pela presença da quinta bemolizada (Ré) e da nona maior (Lá#). Modo derivado da
escala menor melódica de Si.

67
Fig.47: Escalas menor melódica de Si e o modo Lócrio 9 de Sol#, respectivamente.

Da mesma maneira, o acorde de dominante, F#7(9-), encontrado na peça também é


produzido por uma melodia interna e caracteriza uma região de dominante, não seu acorde
propriamente dito.

Fig.48: Melodia interna que somada à clave da mão direita forma uma espécie de inversão de F#7(9-)

Outros tipos de acompanhamento são ainda encontrados nessa interpretação. Há em B,


um momento em que há a polarização do quinto grau, uma espécie de acompanhamento
intermitente53 que se dá pelo fato da clave ser mantida na mão direita e a mão esquerda do
pianista ser utilizada para a construção de uma nova melodia, aparentemente improvisada, e
seu respectivo acompanhamento, que se dá nos repousos da mesma (Ver figura 14).

Variações do tarol no acompanhamento.

A performance analisada conta com um trecho no qual Egberto mantém a figura do


gonguê (descrita acima) na mão direita e executa uma figura semelhante a uma das figuras do
tarol coletadas por Guerra-Peixe :

53 A harmonia pode aparecer uma só vez em um, ou em vários compassos. (SCHOENBERG, 1991, p.109)

68
Fig.49: Desenho pianístico semelhante a uma das variações do tarol (Transcrição do autor)

Fig.50: Variação do tarol (GUERRA-PEIXE, 1956, p.75)

Há de se notar que em sua performance, Egberto acentua levemente a primeira


semicolcheia dos tempos ímpares e a segunda dos tempos pares (a opção pela não grafia dos
acentos se dá pela sutileza e pela irregularidade com que aparecem).
A figura de tarol notada por Guerra-Peixe, por sua vez, possui acentos grafados apenas
nas primeiras semicolcheias dos tempos ímpares. Porém, o modo de grafia que utilizou para a
percussão inclui também a manulação (indicação de qual das mãos deve percutir determinada
figura musical). Assim, podemos perceber que as segundas semicolcheias dos tempos pares
são percutidas por ambas as mãos, o que naturalmente gera uma espécie de acentuação para
aquele tempo.
Egberto faz variações desse padrão naquela ocasião, o que também vai ao encontro de
informações do pesquisador:
“O tarol realiza inúmeras variações, enquanto que as caixas-de-guerra cingem-se à
fórmulas rítmicas pouquíssimo variadas.” (GUERRA-PEIXE, 1956, p.74)

Melodia complementar entre as mãos

No retorno ao A final, ocorre em um trecho de “Maracatu” uma passagem que não há


acompanhamento, apenas melodias divididas entre as mãos. Nesse momento, a clave da mão
direita é fundida com a melodia complementar da mão esquerda, gerando uma nova textura e

69
um crescendo de dinâmica e densidade que retomam o mote inicial da peça, sua levada:

Fig.51: Melodia criada da mistura da clave da mão direita complementadas pela esquerda

Melodia

A melodia em “Maracatu” parece exercer papel secundário, já que a “levada” da mão


esquerda é aparentemente o aspecto central da peça.
Somado à harmonia, esse é um dos aspectos em que Egberto mais se distancia da mera
tentativa de reprodução da música dos maracatus de baque virado.
Segundo Tiné:

Como referido no início deste capítulo, as congadas mineiras pesquisadas não


apresentaram traços modais e seu correspondente pernambucano, o Maracatu –
também equivalente ao Afoxé baiano, ou seja, à apresentação pública do Candomblé
– não apresenta os traços procurados. (TINÉ, 2008, p.86)

O que encontramos no tema principal de “Maracatu” é uma melodia essencialmente


modal. Construída basicamente sobre a escala pentatônica menor do quinto grau (Fá
sustenido) do acorde mais recorrente na peça (Bm), não carrega o senso de tonalidade que a
maioria das melodias encontradas em marcatus trazem.
A melodia em A é constituída de duas frases na forma de antecedente – consequente
que são apresentadas da seguinte forma:

70
Fig.52: Frases 1 e 2 de Maracatu.

Outras linhas melódicas que são encontradas, principalmente na seção B, possuem


caráter e sonoridades improvisatórios que minimizam a importância de uma análise estrutural.
É notável que Egberto utiliza, assim como na harmonização, a tonalidade de Fá sustenido
maior e cria essa melodia com a mão esquerda (Figura 43/Melodia completa na partitura).

Dinâmica

Em “Alma”, Maracatu ganha um sonoridade complexa e variada. Apesar do aspecto


mântrico gerado pela harmonia estática e pela clave executada na mão direita do pianista por
quase toda a peça, suas partes são contrastantes.
Possui grande amplitude e aqui sim, pode-se afirmar que as mudanças desse aspecto
são estruturais. Com exceção das pontes, cujos materiais consideramos por trechos não
estruturais e ligam uma parte à outra, há a predominância de dinâmicas mais fortes na seção
A, trecho mais ilustrativo da simulação da orquestra do maracatu, numa afirmação um tanto
quanto óbvia, e em B, trecho de maior relaxamento e menos movimentação, a predominância
de dinâmicas mais próximas ao piano. Os micro movimentos da dinâmica podem ser
osbervados na transcrição em anexo.
Outro aspecto notável de “Maracatu” é sua variação de densidade. Por vezes alta,
principalmente quando o acompanhamento da levada característica é executado, outras de
densidade baixa e pouca simultaneidade de acontecimentos musicais, como no início da parte
B, na qual soam apenas a clave na mão direita e acordes da esquerda. Essa variação de
densidade contribui na variação de dinâmica auxiliando na manutenção do contraste
característico entre as partes.
Como visto no subtítulo melodia complementar entre as mãos observamos também
o uso da dinâmica, auxiliada por outros elementos, na ligação entre as partes. Visando partir
de B, cuja dinâmica é predominantemente piano para A, de dinâmica mais forte, Gismonti

71
cria a ponte demonstrada e realiza a transição de maneira coerente, sem mudanças bruscas.
O pianista realiza também amplos e lentos trechos crescendo e decrescendo.

Articulação

Há também em “Maracatu” grande variedade de articulações. E apesar de ser uma


espécie de “simulação” sonora da orquestra de percussão dos maracatus de baque virado, não
há a predominância do staccato54.
Ainda assim, Egberto faz uso capcioso da manipulação de dinâmica no exemplo a
seguir. Ainda na construção da levada síntese da música do folguedo, tocada de modo legato
e valendo-se do pedal de sustentação, num rápido golpe de acentuação e articulação, Gismonti
ergue o pedal e executa as notas Do# e Mi por um golpe de staccato que já é logo seguido da
volta do pedal e das notas articuladas em legato. O efeito confere mais “balanço”55 à levada e
não acontece em todas as execuções. Por vezes, o pianista executa a figura do
acompanhamento toda com o pedal acionado todo em legato, gerando variação interna ao
acompanhamento.

Fig.53: Acompanhamento sob diferentes articulações, legato e staccato.

Ao piano solo

O que difere, principalmente, a versão solo, de “Alma” da versão em grupo, contida no


disco “Nó Caipira” (1978, EMI-Odeon) é a “literalidade” da levada de maracatu estilizada. A
presença de vários instrumentos de percussão facilita tanto a execução quanto a percepcão do
ritmo executado. A realização pelo baterista de várias das células descritas por Guerra-Peixe

54 O que é de se esperar visto que a simulação refere-se a uma orquestra de tambores, nas quais a articulação
legato não são executáveis.
55 Essa quebra de articulação interrompe o fluxo e as ressonâncias do pedal de sustentação proporcionando
uma a execução mais ritmada.

72
deixa explícita a vontade de que a performance soe como uma orquestra de maracatu.
Apesar da manutenção da mesma levada, pode-se dizer que em ”Alma” o macaratu é
mais “metafórico”, mesmo com os elementos encontrados tanto na transcrição de Egberto
quanto nas transcrições de Guerra-Peixe.
Não há na gravação em grupo a parte B, dedicada aos improvisos na região da
dominante. O que encontramos é uma seção em que os instrumentos de sopro realizam uma
longa frase descendente sobre a escala de tons inteiros, gerando um rápido retorno ao material
temático.
Ainda assim podemos afirmar que a sonoridade de ambas é bastante similar e que a
versão solo conserva muitos elementos da primeira gravada.

2.5 Karatê

Quinta peça do álbum, Karatê, segundo Gismonti, deve ser tocada “com humor”. A
performance no álbum ocorre de maneira ágil num andamento cuja semínima oscila em torno
de 214 bpm. É também uma das composições mais simétricas do disco sendo sua forma e
divisão fraseológica razoavelmente mais claras e de fácil descrição do que as outras peças.

Forma
Parte Compassos Resumo
A 1 ao 16 Primeira exposição temática
A1 17 ao 32 Reexposição oitava abaixo
B 33 ao 48 Exposição do segundo material temático
B1 49 ao 64 Repetição
A2 65 ao 80 Reexposicão da primeira melodia e entrada do “bombardino”
A3 81 ao 96 Reexposição melódica oitava abaixo
C 97 ao 112 Exposição do terceiro material melódico e entrada dos
sintetizadores
C1 113 ao 128 Repetição
D 129 ao 144 Exposição do quarto e último material melódico
A4 145 ao 160 Volta da primeira melodia e do bombardino
A5 161 ao 176 Repetição

73
Improviso 177 ao 191 Improvisação com acordes
Improviso 192 ao 208 Improvisação com acordes
A6 209 ao 224 Primeiro material melódico com as mãos invertidas
A7 225 ao 240 Repetição e entrada das “garrafas”
B2 241 ao 256 Reexposição de B e volta do “bombardino”
B3 247 ao 272 Repetição da seção anterior
A8 273 ao 289 Reexposição de A com “garrafas” e fim
Tab.8: Resumo das partes de Karatê (referentes à transcrição)

Harmonia

Construída sobre a tonalidade de Fá maior, Karatê possui a seguinte disposição


harmônica:

Parte A (c.1):

I V7 I (V7) IV7M (II V7)II II V7

| F7M | % | C7sus4 | % | % |% | F7M | % | Fsus7 | Bb7M | % | Am9 D7(b9) | Gm9 C7 |

I V7 I

||F7M C7sus4 | C7 :|| F7M | % |

Parte B (c.33):

V7 I (II V7) VI (II V7) II (II V7) II V7

| C7sus4 | % | F7M | % | Em7 | A7 | Dm | % | | Aø | D7 | Gm |% | Am D7 | Gm7 C7|

I V7 V7 I

|| F7M C7sus4 | C7sus4 :|| F7M | % ||

74
Parte C (c.97):

(II V7) II V7 I V7/V V7/-VI V7/VI

| Am9 | % | D(5+)/F# | % | Csus7 | % | F | % | G13(11+) | Ab13(11+) | A13(11+) |

V7/-VII V7/VII V7 I

Bb13(11+) | B13(11+) | C7sus4 || F7M | % |

Parte D (c.129):

(V7) II V7 I VI II (V7) VI (V7) II (V7)VI I V7/III V7/IV

| D7 | Gm | C13 | F7M | Dm7 | Gm7 | A(9-) | Dm | D7 | Gm | A(9-) | F7M | E(9+) F7(9+)|

(subV7) V7/VI I V7

| Gb(9+) A(9+) | F7M | C7 |

Pode-se perceber que suas partes são construídas por procedimentos muito
semelhantes, simples e característicos à harmonia tonal. Em A percebemos um movimento de
tônica → dominante → tônica que caminha para o IV grau e resolve-se por duas cadências II
V, encontrando novamente a tônica, ou em B em que notamos a presença de uma progressão
II V para o VI, outra para o II e segue por duas novas progressões nesse modelo até a
dominante.

Os maiores afastamentos do campo harmônico são dados por dominantes e


progressões II V ou V secundários, na maioria das vezes resolvidos, podendo ser notados em
todas as seções e também rápidas passagens por movimentos cromáticos. É notável também a
presença de dominantes não resolvidos, ainda que sejam poucos.

Vale destacar também, em C, que após um movimento que conduz à tônica,


encontramos uma sequência de acordes de sétima que não são resolvidos e seguem num

75
movimento ascendente cromático acompanhando uma série de arpejos na melodia que se
intercalam por ascendentes e descendentes sob cada um dos acordes.

Das peças mais claramente tonais de Gismonti em “Alma”, é interessante notar que em
Karatê Egberto utiliza poucas inversões que induziriam para um caminho dos baixos em
graus conjuntos. Os acordes aqui tendem a ser dispostos em posição fundamental56, o que gera
maior movimentação por saltos, numa maneira de organizar a harmonia menos comum às
encontradas no disco.

A “simplicidade” harmônica é “compensada” pelo acompanhamento polifônico que


torna os movimentos harmônicos, assim como os acordes, menos nítidos fazendo-se
importante reforçar que a maneira com que Gismonti executa a harmonia não foi suficiente
para a definição dos acordes e cifras, nos obrigando a recorrer ao auxílio das partituras
contidas na contracapa do álbum e modificando-as onde houvesse necessidade.

Acompanhamento

São encontrados basicamente dois tipos de acompanhamento em Karatê. O primeiro,


dominante, que é o complementar, segue, assim como Loro e Frevo, o padrão das musicas nas
quais a inscrição “soltar a mão esquerda” está presente e onde as melodias criadas com notas
dos acordes, ora simultâneas, ora em seus repousos, criam uma textura polifônica.

O que podemos notar é que a maneira como é tocada nessa peça é mais “clara” para a
identificação das melodias complementares às principais. Isso ocorre, cremos, primeiro pelo
fato do acompanhamento ser menos denso, possuir rítmica mais simples, conter menor
57
quantidade de saltos de grande amplitude e ser construído sobre linhas simples, sem a
ocorrência de muitos blocos, isso percebemos na primeira exposição temática:

56 Ainda que nesta execução Gismonti não os toque em blocos, tornando a compreensão harmônica mais
complexa.
57 Reduzindo a tessitura do acompanhamento.

76
Fig.54: Acompanhamento contrapontístico e disposição dos acordes na primeira exposição de Karatê.

Podemos perceber que, apesar dos acordes serem dispostos em posição fundamental
(como indicado na partitura guia) a construção das melodias elimina muitos dos saltos sob os
quais a composição harmônica ocorre, privilegiando graus conjuntos na ligação de um acorde
ao seu próximo, gerando uma espécie de “condução melódica de vozes”.

O segundo tipo, referente apenas à seção C, é ritmicamente padronizado. Sob a forma


de melodia acompanhada, o pianista “separa” os baixos do restante das notas dos acordes,
num primeiro momento, tocando os baixos em saltos de oitavas em relação às outras notas.
Num segundo momento, quando a harmonia realiza um movimento cromático ascendente,
executa os baixos nas mesmas oitavas em que o restante das notas 58.

58 Baixos que aqui não caracterizam a fundamental dos acordes, configurando novamente o uso de harmonias
de apoio.

77
Fig.55: Acompanhamento da seção C. Melodia acompanhada e rítmica mais padronizada.

Não se preocupe com a falta da fundamental nos acordes. Quando tocar com uma
seção rítmica o baixista tocará frequentemente a fundamental no primeiro tempo de
um acorde, e pianistas de jazz utilizam esses voincings até mesmo ao tocar piano
solo (LEVINE, 1989, p. 41, Tradução nossa).

Percebemos também, que apesar de serem “quebrados” e tocados em bloco, na


sequência cromática de acordes de sétima, Egberto omite essa “fundamental” dos acordes,
utilizando novamente (como em Baião Malandro) o processo também conhecido por
“harmonia de apoio”

Uma característica é perceptível no acompanhamento de Karatê. Uma espécie de


memória muscular parece atuar e permear as linhas melódicas criadas. É fato de que as
melodias de mão esquerda variam. Porém muitos desses movimentos se repetem de maneira
bastante similar ou até mesmo fazendo com que o mesmo fragmento melódico, mesmo que
curto, seja repetido. Essa constante reiteração de trechos, realizada muitas vezes pela
manutenção da “posição” da mão do pianista em relação ao teclado, conferem ao
acompanhamento uma maneira que se mostra mista entre algo premeditado e improvisado,

78
além de desmontar ou diminuir, ao ouvinte que focaliza sua audição nesse aspecto da
performance, a sensação de aleatoriedade que as primeiras audições desse modo de
acompanhar tendem a causar.

Algo também mais notável nessa peça, do que nas outras de acompanhamento similar
é, além de uma maior simplicidade rítmica, a maior utilização das pausas na mão esquerda.
Podemos observar momentos em que Gismonti não realiza melodias ou intervenções dessa
mão quando do repouso da melodia. Essa utilização do silêncio, enfatizando as últimas notas
executadas, pode ser percebida como uma espécie de variação do elemento, por omissão,
fazendo soar apenas a melodia principal, como visto abaixo:

Fig.56: Omissão, por alguns compassos, do acompanhamento.

Melodia

É notável que Karatê é uma das peças cuja divisão fraseológica é mais simétrica em
“Alma”, como podemos notar na tabela com as primeiras exposições frasais:

Parte Frases (compassos)


A 1 (2 ao 5)
2 (6 ao 9)
3 (10 ao 13)
4 (14 ao 17)
B 5 (34 ao 37)
6 (38 ao 41)
7 (42 ao 45)
8 (46 ao 49)

79
C 9 (98 ao 101)
10 (102 ao 105)
11(106 ao 109)
12 (110 ao 113)
D 13 (130 ao 133)
14 (134 ao 137)
15 (138 ao 141)
16 (142 ao 145)
Tab.9:Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

A execução melódica de Karate é, por comparação às outras, a de maior fidelidade à


partitura guia. Pode-se observar, por exemplo que as várias repetições da melodia ocorrem
sob rítmicas muito similares e também sob pouca ornamentação, como bordaduras, apojaturas
e outros recursos dos quais Gismonti utiliza corriqueiramente.

Assim sendo, um dos recursos de variação, que também é utilizado em muitas das
outras performances nas quais a melodia é repetida muitas vezes, é potencializado nessa
execução: a mudança de oitavas.

Podemos observar a melodia principal executada em várias oitavas diferentes,


principalmente a melodia referente à parte A, a mais repetida durante a peça, encontrada em
quatro oitavas diferentes59.

Uma dessas variações de oitavas faz a execução de Karatê ser também o único
exemplo no álbum em que o pianista “cruza” as mãos sobre o piano para a execução de uma
melodia, ou seja, o acompanhamento passa para a região mais aguda do espectro enquanto a
melodia se situa na região mais grave.
Há exemplos de melodias situadas em regiões mais graves que o acompanhamento em
Baião Malandro e Infância. Porém o que nos faz inferir sobre o não cruzamento das mãos é o
fato dessas melodias serem criadas sob ostinatos de difícil execução na região aguda, que são
mais provavelmente tocados pela mão direita. Além disso, as melodias nas músicas citadas
são menos movidas, assimilando-se mais a movimentos melódicos característicos de

59 Vide partitura em anexo.

80
contrabaixos.

Em Karatê pode-se notar o oposto. A melodia principal é executada na região mais


grave enquanto uma, menos movida, se dá na região mais aguda, sendo percebida mais
facilmente como parte do acompanhamento.

Fig.57: Excerto da seção A6: inversão das mãos.

Apesar de encontrarmos certa fidelidade entre a melodia escrita e a executada,


podemos perceber também trechos de inexatidão melódica. Como a execução da frase 7, no
exemplo abaixo, escrita sobre um contorno melódico bem delineado e executada de maneira
menos clara na performance.

Fig.58: Excerto melódico descrito no encarte do álbum (1986, p.3)

Fig.59: Mesmo excerto melódico, como executado no disco.

81
Dinâmica

Possuindo pouca amplitude e girando em torno de um predominante mezzo forte, O


uso da dinâmica em Karatê não se mostra correlacionado às partes em si. Apenas a parte C se
destaca nesse quesito, sendo tocada de maneira relativamente mais forte do que as outras
seções da peça. Muito dessa diferença vem da mudança no acompanhamento e na articulação
do trecho. A utilização dos saltos com oitavas na região grave do piano auxiliada pela
utilização do pedal de sustentação faz com que essa seção impulsione naturalmente uma
mudança de dinâmica

Mas o que podemos encontrar, principalmente, são mudanças mais sutis quando da
repetição de partes. Assim como as mudanças de oitavas da execução da melodia, Gismonti
ora repete uma parte de forma mais piano, ora mais forte, utilizando, dessa maneira, da
dinâmica como recurso à menor variação rítmica e melódica das frases.

Algo notável é o fato de as mudanças mais bruscas ocorrerem de maneira bastante


rápida. Alterações de dinâmica de curta duração ligam principalmente os fins de frases que
fecham um trecho com as frases iniciais da subsequente, não sendo encontrados, por exemplo,
longos movimentos em crescendos ou decrescendo.

Um movimento de dinâmica recorrente é a presença de um decrescendo que


acompanha a frase 4, conclusiva da parte A. O trecho é executado sob essa variação de
intensidades em todas as suas ocorrências, independente se é seguido de uma repetição de A
ou uma nova seção, como B e C, que também a seguem, como podemos ver:

Fig.60: Frase 4 sempre acompanhada de um decrescendo.

82
Articulação

A articulação da peça, nessa execução parece vinculada às seções. De modo geral,


essas partes, com exceção de C na qual utiliza-se o legato, são predominantemente tocadas
sob articulações non legato.

Ainda com exceção de C, podemos observar que o pedal de sustentação é


praticamente inutilizado e a maioria das frases, melódicas ou harmônicas, mais ligadas têm
esse efeito atingido pela articulação e sustentação de notas pelas mãos do pianista. Apenas em
trechos curtíssimos podemos observar sua utilização, como auxílio à execução de uma ou
outra frase, como podemos perceber:

Fig.61: Uso rápido do pedal em meio à seção non legato.

Em C ocorre o oposto, Gismonti se utiliza largamente do pedal de sustentação e todas


as frases são tocadas sob a articulação legato modificando, como já vimos, a forma de
acompanhar e dispor os acordes tornando a sonoridade da seção mais “lúdica”. Um efeito
interessante é conseguido, quando ao fim dessa parte, o pianista ergue o pedal e retoma as
articulações em non legato e staccato, trazendo a performance à “sobriedade” novamente,
sem transições, como pode-se notar na figura abaixo.

Fig.62: Mudança mais brusca de articulação na passagem entre as seções C e D.

83
É também do álbum a execução cujos staccatos são mais extremos, ou seja, as notas
são tocadas com a menor duração, principalmente na secão D, tendo seu início ilustrado
acima.

Ao piano solo

Ainda que não nos caiba analisar detalhadamente performances externas ao álbum
delimitado, Karatê nos leva a uma reflexão a cerca dos gêneros utilizados por Gismonti.

A performance em grupo da música contida no álbum “Circense” (EMI-Odeon, 1980)


traz como componentes característicos “levadas”, tanto de bateria/percussão quanto de piano
(ainda que estilizado pela não utilização do instrumento nas orquestras tradicionais), que
remetem à música da manifestação cultural pernambucana do frevo.

Fig.63: Padrão rítmico executado pela “caixa” no frevo (SALDANHA, 2003, p.184) também executado na
performance de Karatê no álbum anterior.

Levendo em conta a alteração da forma de se acompanhar na adaptação da peça ao


piano solo, o instrumento, que antes enfatizava com acordes os acentos da figura rítmica
descrita, agora traz uma mão esquerda diferente. Sem “levadas”, torna a estilização do gênero
um tanto mais abstrata. O que podemos encontrar são melodias rápidas (também encontradas
no genêro) e grande presença de síncopas no acompanhamento, comuns a vários gêneros da
música brasileira, não apenas o frevo. O questionamento que ocorre, consiste na percepção ou
não da versão “solo” ainda como estilização do gênero citado.

Outras diferenças básicas são encontradas ao compararmos a versão em grupo e ao


piano solo. Levando-se em conta a partitura guia, em grupo, as melodias são executadas de
maneira mais próxima à escrita do que ao piano solo, na qual Egberto parece possuir mais
liberdade para alterá-las.

84
Outro aspecto que nota-se de diferente é a improvisação melódica sobre a forma que é
encontrada na performance de “Circense”, enquanto que em “Alma”, podemos encontrar
apenas repetições da mesma melodia em diferentes oitavas.

2.6 Frevo

Das peças mais intrigantes do álbum Frevo, sexta do disco (primeira faixado lado B do
LP), é uma das composições de Egberto mais reproduzidas e arranjadas por ele mesmo (em
outras formações) e por outros músicos.
Se comparada a outras performances, a contida em “Alma”, num piano solo com
intervenções de sintetizadores pelo próprio Egberto e por Nando Carneiro, se mostra ainda
mais complexa.
Os aspectos sonoros em Frevo são extremamente variados. Suas partes são
contrastantes entre si e suas mudanças, abruptas. Esse efeito é conseguido apesar da
composição não sair da tonalidade de Ré menor.
Essa complexidade é encontrada principalmente no acompanhamento, do qual se
encarrega a mão esquerda. A polifonia e o efeito polirítmico gerados pelas partes das mãos
direita e esquerda criam uma textura de difícil compreensão. É executada num andamento em
torno de 250 bpm.

Esse concerto do Colón é um bom parâmetro. Eu não me lembro nesses 30 anos,


tocando profissionalmente, de eu ter tocado 90 e tal minutos com uma concentração e
uma precisão muito raras... O "Frevo" do Colón é uma das coisas mais complexas que
eu já ouvi como resultado do piano que eu toco. É complexo no sentido da polifonia.
Quando eu ouço esse troço, eu digo 'mas caçamba, eu nunca tinha tocado esse troço
assim!' (Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.17)

A citação acima refere-se a outra performance da peça, mas o mesmo poderia ser dito
da execução encontrada em “Alma”

85
Forma
Parte Compassos Resumo
A 1 ao 32 Exposição do primeiro material melódico.
B 33 ao 48 Exposição do segundo motivo melódico.
A1 49 ao 64 Reexposição do motivo melódico com alterações do
acompanhamento
Ponte 65 ao 72 Sequência de acordes de transição para a nova parte
C 73 ao 115 Ostinato pedal na região grave
D 116 ao 162 Secão predominantemente legato da música
B1 163 ao 177 Retomada do segundo tema com alterações no
acompanhamento
A(2,3,4,5,6,7,8,9,10) 178 ao 336 Variações sobre o tema e criação de novas melodias
sobre o suporte harmônico de A.
Coda 337 ao 345 Acordes finais perdendo-se ritmicamente.
Tab.10: Resumo das partes de Frevo (referentes à transcrição)

Harmonia

A harmonia de Frevo necessita de segmentação para que seja melhor compreendida. O


fato dessa peça possuir mais fortemente um aspecto de colagem dificulta a análise como
apenas uma unidade.
Um dos elementos que podem dar unidade a essa composição é o fato dela priorizar,
ora tonal, ora modalmente, o centro em Re menor.

Parte A:
I VII VI V
|: Dsus7 | Csus7 | Bb7M(11+) | Asus7(9-) :|

Está presente na harmonia de A um procedimento harmônico similar ao de Cigana e


Água e Vinho, trazendo contraste à harmonia que suporta as frases 1 e 2. O movimento inicia-
se com baixos caminhando descendentemente em graus conjuntos e tem seu consequente, que

86
caminha por movimentos que privilegiam intervalos de quartas e quintas, pela utilização de
dominantes e dominantes secundários, como podemos notar:

(II V) III III VI (II V) V V


| Gm9 | Csus4(9) C13(9-) | F7M(5+) | Bb7M | BØ9 | E(13-,9-) | A13(11) | A(13-,9-) |

Dessa forma percebemos a polarização da relativa maior de Ré, que é trazida através
de uma cadência II V secundária, seguida do VI grau (Bb7M), que é novamente seguida por
uma cadência II V para a dominante A13(11) e, por sua vez, finaliza o trecho retomando o Ré
menor.
É importante notar que a cifragem de “Frevo” é algo particularmente peculiar. A
fragmentação utilizada por Egberto no acompanhamento executado pela mão esquerda faz
com que o pianista omita ou inclua notas aos acordes modificando-os, cada vez que são
executados e dificultando a classificação, principalmente com relação às extensões utilizadas.
A harmonia de B também é predominantemente construída sobre cadências II V
secundárias, como podemos notar:

Parte B (c.33)

(II V) IV IV (II V) III -III/iii (V) IV (II V7) III


| AØ | D13(9-) | Gm7M(9) | Gm7(9) | GØ | C13(9) | Ab(add9) | D(9+,13-) | GØ | C13(9-) |

-III/iii iii I (V/IV) V


| Ab(add9) | Fm(add9) | D(9+,13-) | D(13-) | A(13-) | Aadd9 |
A progressão se inicia com uma cadência II V secundária sobre o IV grau, acorde que
logo adquire a função de II e é seguido pelo dominante do III grau da tonalidade (Fá). Em
seguida, a rota é desviada pela aparição do acorde de Ab(add9), que tem nesse caso, uma
possível explicação: pode ser compreendido como uma resolução no relativo maior de Fm,
que teve por dominante C13(9).
O exemplar do III grau não vem na forma esperada. Dá lugar a um acorde de

87
empréstimo modal do modo lócrio de Ré, Fm(add9), que é seguido pelo primeiro grau maior,
uma espécie de dominante não resolvida do IV grau e pelo dominante da tonalidade, fechando
o ciclo.

Ponte (c.65):

|: Dm11 Cm11 Bb7M(11+) | Bb7M(11+) :| 60

A harmonia da ponte é constituída de uma movimentação paralela de acordes,


separados por intervalos de 2ª maior. Esses acordes não se explicam tonal ou modalmente,
apenas pelo movimento melódico gerado, que é uma antecipação do padrão a ser utilizado na
próxima parte.

Parte C (c.73):

Diferindo das outras partes da peça, em C pode ser encontrada uma harmonização
estática devido ao pedal realizado entre as notas Do e Ré. Além da estaticidade harmônica,
encontramos com auxílio da melodia, um trecho no qual prevalece o modo dórico, algo que
ainda não havia ocorrido na peça.

Parte D (c.116):

Na seção D é possível encontrar um caminho harmônico mais claro pelo fato da


mudança no estilo do acompanhamento, elemento melhor descrito na seção homônima
seguinte. Essa mudança faz com que os acordes sejam tocados de maneira completa, sem as
omissões e adições de notas de passagem, que o estilo fragmentado dos acompanhamentos
das partes anteriores continham, facilitando assim a identificação e qualificação dos acordes
utilizados.

60 Aqui há divergência entre a cifra do autor e a cifra contida no Songbook (Mondiamusic, 1990). O exemplar
de Bb é executado com sua 3ª maior 11ª aumentada e deve ser cifrado do modo aqui presente, em vez de
Bbm7(11).

88
I (II V) V V* V
|: Dm11 | Dm11/C | BØ9 | E13(9-) | A7M(5+) | A(13-,9+) :|

(II V) IV IV * IV (II V) +III=SubV/VII VII


| AØ/D | D13(9-) | G7M(5+) | Gm9 | G#Ø9 | Db13(9-) | Csus4(13) | C13|

I VII (II V) V V V
|Dm11 | Csus4(13) | BØ | E13(9-) | A7M(5+) | A(9+,13-)|

Nesse trecho, há um caminho semelhante ao que ocorre na parte A da música. O


caminho harmônico que acompanha a primeira frase da seção, frase 8, se dá de maneira
simples iniciando-se na tônica (Dm) e seguida de uma progressão II V para a dominante
(A7,13-,9-).
Vale notar a aparição do acorde A7M(5+). Essa tríade maior do acorde de Do
sustenido sobre o baixo da dominante cria um efeito ambíguo, que retarda a aparição do
acorde de dominante propriamente dito, o mesmo valendo para G7M(5+)

Acompanhamento:

A análise do acompanhamento em Frevo também deve ser segmentada de acordo com


as partes em que a peça foi dividida. Essa necessidade vem da pluralidade de estruturas
utilizadas por Egberto e reforça ainda a heterogeneidade da peça.
Em A, a forma utilizada por Egberto é a do acompanhamento complementar. São
formadas melodias contrapontísticas utilizando-se basicamente as notas dos acordes
estipulados nas cifras. Essas melodias são executadas, geralmente, nas pausas da melodia
principal e criam uma espécie de contínuo rítmico na seção que é subdividido entre as mãos
do pianista, como podemos notar nos primeiros compassos da música:

89
Fig.64: Contínuo melódico em colcheias dado pela complementaridade das linhas melódicas.

São utilizadas também algumas “notas de passagem”, que ligam um acorde ao


próximo ou até mesmo notas do mesmo acorde separadas por graus conjuntos.
É importante notar também que não há um desenho melódico padronizado para esse
acompanhamento. Dessa forma, cria-se uma sensação de aleatoriedade pela aparição e
distribuição temporal das vozes dos acordes, obscurecendo a compreensão da região
harmônica na qual o pianista se encontra. Esse fato ocorre muito por conta da irregularidade
rítmica das fundamentais61 dos acordes, como no exemplo a seguir:

Fig.65: Comparação entre as cifras e as melodias com notas dos acordes executados por Gismonti.

Assim como em Loro e Karatê não é possível afirmar que essa forma de acompanhar
seja totalmente improvisada. Além disso, a partir da observação das várias repetições formais
que ocorrem nessa interpretação, percebe-se também que padrões são criados a partir dessas

61 A nota mais grave de um acorde, quando as notas são organizadas numa sequência de terças. Se não for
necessária nenhuma reorganização, diz-se que o acorde está em posição fundamental; se a fundamental não é
a nota mais grave, acorde encontra-se em INVERSÃO (SADIE, 1994, p.349)

90
improvisações e se repetem, como se houvessem espécies de shapes de montagem dos
acordes, que fazem com que a improvisação ocorra dentro dessas notas “possíveis” ou mais
facilmente "alcançáveis”.
Em B temos um acompanhamento diferente. Também é polifônico e mune-se de notas
dos acordes ainda referentes à cifragem dos lead sheets do encarte do disco. A diferença no
acompanhamento dessa parte é rítmica.
Enquanto em A o acompanhamento se faz muito do preenchimento das pausas e
repousos da melodia principal, em B tem-se um grau de independência melódica ainda maior.
Ocorre nessa seção uma sincopação que desloca e defasa temporalmente as linhas da mão
direita e da esquerda. Enquanto uma, a da mão direita, é constituída apenas de colcheias num
desenho rítmico regular, a outra, da mão esquerda, executa figuras rítmicas sincopadas ora
regulares, ora irregulares. Essas, somadas às melodias da mão direita, resultam numa textura
musical complexa e polirítmica de difícil execução:

Fig.66: Padrão regular da melodia principal contra melodia de rítmica irregular no acompanhamento.

Em C encontra-se uma forma de acompanhamento bastante diferente. Muito


contrastante com as seções anteriores, esse trecho da composição traz um pedal sincopado em
oitavas na região grave do piano.

91
Fig.67: Pedal sincopado da seção C

Já na parte D, pode-se encontrar ainda uma outra forma mais comum ao universo
pianístico e já utilizada de maneira similar em Karatê, no padrão homofônico de melodia
acompanhada. Aqui o que ocorre é a execução em oitavas das fundamentais dos acordes na
região grave do piano, seguida de complemento harmônico na região média. O que
observamos aqui é um procedimento composicional de variação semelhante ao que acontece
na peça citada acima. A mudança na maneira em que se dá o acompanhamento cria texturas
diferentes, adicionando contraste às partes da música.

Fig.68: Quebra dos acordes como na parte C de Karatê.

Melodia

Por ser constituída de partes muito contrastantes, Frevo possui construções melódicas
variadas. O fator comum entre as melodias de todas as partes da música é o fato de serem
pouco cantabile.
A peça contém uma grande variedade de frases e faremos aqui, uma breve distinção de
seu material estrutural.

92
Parte Frases (compassos)
A 1a (1 ao 4) 1b (5 ao 8)
2 (9 ao 12)
3 (13 ao 16)
B 4a (33 ao 36) 4b (37 ao 40)
4a` (41 ao 44) 4b` (45 ao 48)
C 5 (81 ao 84) 5b (85 ao 87)
6 (88 ao 91)
7 (92 ao 94)
D 8 (116 ao 121)
9 (128 ao 131) 9b (132 ao 135)
Tab.11: Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

No artigo sobre a peça (BORÉM e PINTO, 2013), os autores mostram que apesar de
variado, é possível encontrar no material melódico da peça alguns padrões fraseológicos que
conferem aspectos de unidade às partes da composição, ora pela utilização de movimentos e
motivos semelhantes, ora pela transfiguração de um motivo melódico, que se torna, por
exemplo, parte do acompanhamento em outra seção da música.
Um exemplo das reiterações e reutilizações de padrões melódicos encontrados pelos
pesquisadores que nos pareceu interessante é a possível transmutação do motivo rítmico de
melodia ascendente da finalização da frase 1a, na seção A, em parte do acompanhamento
pedal da parte C da peça.

Fig.69: padrão melódico de fechamento da frase 1a.

Fig.70: utilização do padrão melódico anterior na construção do acompanhamento de C

93
Sobre aspectos interpretativos da melodia, destaca-se a variação rítmica realizada pelo
pianista nas repetições principalmente das frases da seção A. Egberto evita a repetição literal
da melodia através dessas alterações, como no exemplo a seguir que Gismonti as executa de
maneira tercinada:

Fig.71: Frases 1b e 2 com rítmica alterada e prevalência das tercinas

Ainda como variação da melodia, Egberto utiliza ataques súbitos a duas ou mais notas
na região aguda do piano, como intervalos de segunda, gerando uma espécie de cluster62,
como no exemplo a seguir:

Fig.72: Exemplo de ataque súbito utilizado em Frevo

Além disso reservamos um exemplo em que o pianista faz uso da mudança de oitavas
da melodia. Salientamos que o material vinha sendo executado na oitava inferior e apenas por

62 (Ing., “agrupamento”) Grupo de notas adjacentes que soam simultaneamente. Os instrumentos de teclados
adequan0se particularmente a sua execução, uma vez que podem ser prontamente tocados com o punho, a
palma ou o antebraço. (SADIE, 1994, p.204)

94
um instante, um trecho da frase é tocado numa oitava superior.

Fig.73: Rápida mudança de oitavas dentro de uma frase.

Por se tratar de material extenso, sugerimos a audição acompanhada da partitura


completa para que se tenha mais exemplos de como Gismonti varia sua própria melodia.

Dinâmica

A amplitude de intensidade sonora é grande. É possível encontrar pianíssmos quase


inaudíveis, assim como fortíssimos que chegam a gerar distorções na gravação.
Separando-as por partes, podemos reduzir as dinâmicas entre mezzo fortes e mezzo
piano para as partes A e B, fortes e fortíssimos para a ponte e parte C, e mezzo forte e forte
para a parte D.
Então, como artifício de variação, encontramos muitas “brincadeiras” que se valem da
dinâmica nas várias repetições.
Dois exemplos são: repetição de partes sob dinâmicas diferentes como no segundo A,
em que o pianista executa a frase 1 num mezzo forte e a repetição, logo em seguida, em mezzo
piano.

95
Fig.74: Frases 1a e 1b executadas sobre leves mudanças de dinâmica

E destacamos também um uso da dinâmica como efeito como podemos verificar nos
sforzzando da ponte.

Fig.74: Utilização da dinâmica como efeito.

É mais aceitável em Frevo que a dinâmica seja improvisada, não respeitando muitas
outras regras a não ser a vontade do executante. É importante lembrar que não só esse
parâmetro é improvisado, mas também que ele é elemento de destaque na improvisação, que
ocorre nas várias repetições de A ao fim da música, principalmente. Egberto executa uma
“montanha russa” de pianíssimos de poucos compassos, seguidos por fortes ataques gerando,
inclusive, sensação de aleatorieadade de dinâmica.

96
Articulação

Prevalece na música as articulações staccato e non legato, auxiliadas pela ausência ou


pouca utilização do pedal de sustentação do piano, exceto em D, parte da composição na qual
a sonoridade se inverte e prevalece o legato e a pedalização.
Aspectos mais sutis de articulação podem ser percebidos, como em exemplos nos
quais Egberto executa uma melodia em staccatos, quase stacatíssimos e outros em que a
mesma é executada apenas de modo non legato, também como um modo de dar variação às
repetições constantes do material temático.

Fig.75: Trecho da frase 2 executado em staccato, quando geralmente é executada apenas em non legato.

Outro aspecto que destacamos aqui é a primeira execução da frase 8. Como numa
transição entre as partes, a primeira execução dessa frase ainda carrega traços da articulação
anterior non legato, sem pedal, até sua repetição, em que aí sim, Gismonti assume a
articulação legato e utiliza de maneira constante o pedal de sustentação do instrumento.

Fig.76: Utilização de non legato no início da seção D, predominantemente legato, como transição entre as partes

97
Destacamos ainda, a sobreposição de articulações como no exemplo que Egberto
executa frases mais próximas ao staccato em uma das mãos e outras mais próximas ao legato
em outra, impossibilitando o uso do pedal de sustentação para a criação da textutra.

Fig.77: Diferentes articulações executadas simultaneamente entre as mãos

Frevo e dobrado.

Juntamente com Maracatu e Baião Malandro, Frevo completa o quadro de músicas


que fazem menção a ritmos/manifestações culturais populares brasileiras em seus títulos.
Diferentemente de Maracatu, as relações entre a composição de Egberto e a música
contida na manifestação cultural em Frevo, não são tão evidentes.
O próprio compositor comenta sobre o processo que deu origem a essa peça em uma
entrevista cedida à TV Cultura, no programa “Ensaio”:

[01:01] Ah...essa história de frevo... aliás, o pessoal de Olinda e Recife que me


perdoe... eu acabei fazendo um frevo porque eu ouvi muito dobrado... [01:16] Tio
Edgar tocava o dobrado dele [cantando uma linha do baixo, imitando um
bombardino... 'pó, pó, pó, pó-ró-ró-pó-pó"]... [01:26] e eu vim pensando nisso e fiz
um dobrado que se chama Frevo [começa a tocar Frevo, cantarolado junto]... que
parece que não é dobrado mas é [enquanto fala, toca acelerando o andamento]... é um
frevo mas é dobrado... [05:20, após terminar de tocar] É um frevo, mas é um
dobrado...aliás o [percussionista] Naná [Vasconcelos], sempre me dizia... esse teu
Frevo mais parece um dobrado... mas que é um frevo! ... Naná de Olinda!... (Gismonti
no programa Ensaio da TV Cultura. FELICIO, 2013)

98
O dobrado.

Segundo o dicionário Grove, dobrado é um “...gênero de música semelhante à marcha.


Para alguns autores, o que os distingue é o fato de que no dobrado há dobramentos de
instrumentos, ou desdobramentos das partes instrumentais, o que justificaria o nome.”
(SADIE, 1994, p.271)
Parte dos repertórios das bandas militares brasileiras, esse gênero advém das músicas
que acompanhavam as marchas (caminhadas dos grupos) e passaram a ser denominadas
homonimamente (marchas). Desse modo, de acordo com as táticas adotadas pelos grupos,
exigia-se uma forma diferente de movimentação, e, consequentemente, de acompanhamento
musical.
Três tipos de deslocamento desses grupos eram conhecidos e podem ser distinguidos
pela diferenciação de suas cadências, ou suas velocidades. O primeiro é o “passo de estrada”,
uma marcha mais lenta que varia aproximadamente entre 68 e 76 bp e é utilizado percorrer
distâncias longas. O segundo é o “passo de parada” ou “ordinário”, forma bem mais rápida
que tem aproximadamente o dobro do andamento da primeira. Há também o “passo
acelerado”, que é o modo utilizado em ataques propriamente ditos.
Assim como o estilo musical que acompanha as marchas militares obteve a
denominação de “marcha”, o termo “passo dobrado”, que indicava a caminhada em
andamento metronômico cujo valor é o dobro do “passo de estrada”, passou também a
denominar o que era conhecido por “passo ordinário” ou “passo de parada”, além de passar a
designar a música que acompanhava as marchas militares em “passos ordinários”.
Correspondente ao passo doppio dos italianos, paso doble dos espanhóis e à march
dos ingleses e alemães, as velocidades, divisões rítmicas e outras características musicais
dessas marchas receberam contínua influência de aspectos nacionais, tendo assim seus
caminhos desviados, o que culminou na diferenciação entre as músicas executadas.
A marcha militar no Brasil também se modificou por influência de aspectos culturais
nacionais. Segundo Rocha:

No Brasil não foi diferente, mas, embora tenhamos extraordinários compositores do


gênero, não podemos apontar nenhum que, em particular, tenha sido responsável

99
direto pela criação de um modelo nacional de marcha rápida. Podemos, no entanto,
verificar que, sendo executada em toda a vastidão do território nacional, a marcha,
ou seja, o “passo dobrado” europeu, no transcorrer do século, ficou completamente
exposto às influências dos vários outros gêneros musicais, que, por sua vez, já
haviam sido inoculados pelas diversidades musical, étnica e cultural das crescentes
populações urbanas. Resultou, daí, a gradativa consolidação de uma marcha
brasileira, que, sob a denominação genérica de dobrado, foi adquirindo e
sedimentando características muito peculiares. E, na medida em que foi se
distanciando dos modelos herdados do passo dobrado e das marchas européias, o
dobrado foi se consolidando como a marcha nacional brasileira por excelência, de
tal sorte que, a partir do último quartel dos anos 1800, o nosso dobrado já possuía
características melódicas, harmônicas, formais e contrapontísticas que o distinguiam
de outros gêneros musicais, permitindo assim a sua inclusão no rol dos gêneros
musicais genuinamente brasileiros. (ROCHA, 2014, p.9)

O frevo.

Segundo Lima (2005), o termo Frevo é um designado da pronuncia equivocada do


verbo ferver, maneira de falar de populares de menor instrução formal. O termo significa uma
manifestação artística popular comum às cidades de Recife e Olinda, em Pernambuco. Teve
sua primeira aparição impressa em 1907 no Jornal Pequeno do Recife, numa nota
convocatória para a participação no ensaio do Clube Carnavalesco Empalhadores do Feitosa.
Ferver, ou “frever” se relaciona diretamente com as características da dança e da música
realizadas nessa manifestação.
Ferviam as apresentações das bandas marciais do 4º Batalhão de Artilharia, o Quarto,
e do Corpo da Guarda Nacional, também chamada de Espanha, que executavam polcas e
marchas de maneira acelerada e incitavam a efervescência tanto musical, quanto dos ânimos
mais exaltados dos simpatizantes das diferentes agremiações, que muitas das vezes faziam
com que as apresentações terminassem em brigas.
Essas brigas, na maioria das vezes, eram iniciadas pelos “capoeiras”. Adeptos dessa
luta saíam armados à frente dos desfiles supostamente para abrir caminho entre os
participantes e também proteger a banda. Com esse intuito, esses participantes carregavam
paus, navalhas e realizavam um misto de coreografias e evoluções com piruetas e gingadas e

100
que terminavam em provocações e, mais adiante, nas brigas citadas.
Devido à grande quantidade de reclamações, a prática foi proibida e seus praticantes
perseguidos pela polícia. Dessa maneira, para passarem despercebidos, esses participantes
foram obrigados a adaptar seu modo de atuar nessas situações. Seus passos abrandaram e se
transformaram gradualmente em uma dança própria.
Assim, os “capoeiras” se transformaram nos “passistas”. Seus paus e navalhas deram
lugar aos guarda-chuvas, que em seguida, por conta ainda da utilização destes como arma,
deram lugar às pequenas sombrinhas, hoje símbolos do “Frevo”.
Segundo Saldanha:

Como música, o frevo remonta do repertório das bandas militares sediadas


no Recife a partir da segunda metade do século XIX. É marcha-carnavalesca
derivada das árias63 cantadas nos clubes, bem como e principalmente das polcas-
marchas e dobrados64 tocados pelas bandas musicais de Pernambuco. Inicialmente
sofre influências do maxixe, da quadrilha e do galope, posteriormente, se deixa
influenciar por americanismos conhecidos através do disco e do rádio como o one-
step e o jazz. Surge como música popular urbana autoral e hoje conta com data de
nascimento oficia. Alcança grande destaque através do disco e do rádio em seu
período áureo, se firmando comercialmente como produto e se consolidando como
gênero. (SALDANHA, 2005, p.29)

Com o passar do tempo, o Frevo se tornou o ritmo mais importante e representativo do


carnaval pernambucano. A aceleração das marchas e outros ritmos executados pelas bandas
deu origem a um estilo virtuosístico, no qual passou a ser necessário verdadeiro conhecimento
musical para a realização. A execução e concepção cada vez mais complexa fizeram com que
o gênero fosse reconhecido e saudado, não apenas por populares, mas também de músicos e
pesquisadores conceituados.
Desse modo, o verbete relacionado ao termo no dicionário Grove o descreve como

63 A ária popular, com melodias populares. Não se trata da ária italiana, encontrada na ópera e na música de
concerto, muito embora, sofra influências desta, seja na divisão binária, ou na forma ternária A-B-A.
Contudo, mais próxima da ária do século XVI, composições simples sobre poesia ligeira.
64 Gênero de música de banda semelhante à marcha. Para alguns autores, o que os distingue é o fato de que no
dobrado há dobramento de instrumentos, ou desdobramento das partes instrumentais, [com linhas melódicas
desdobradas, com figuras de divisão rápida] o que justificaria o nome. (SADIE, 1994. Pg. 271).

101
uma manifestação cuja dança é folclórica, ou seja, de autoria não identificada enquanto a
música é autoral. Pode-se então depreender que o Frevo possui expoentes, nomes que
consolidaram ou modificaram o estilo.

O Frevo de Gismonti

A declaração do músico para o programa da TV Cultura é um indício da hibridação da


peça. Não há aqui a intenção de concluir a que gênero a composição intitulada Frevo, de
Egberto, pertence, mas sim apontar elementos contidos na obra que se aproximam do que
comumente se faz, tanto no gênero do frevo quanto no dobrado. Mais importante é a
percepção de que, assim como em Maracatu, a peça faz parte de um ideário do compositor, de
suas prováveis reminiscências de como soava a música executada pelas bandas de música as
quais teve acesso somadas ao ímpeto composicional do artista, gerando um terceiro gênero,
que muito provavelmente não é frevo nem dobrado.
Além disso, a diferenciação entre essas formas musicais não é clara. Pode-se afirmar
que o dobrado antecede o frevo e que muitas das características de ambos se misturam.
Sobre o Frevo de Gismonti:

Estilisticamente, Frevo de Egberto Gismonti faz alusão ao frevo coqueiro, com suas
passagens no registro agudo, virtuosismo e instrumentação contrapontística. Já sua
utilização de harmonia modal, acordes alterados e improvisação na forma remete ao
frevo de salão. Na performance de Frevo no disco Alma, Egberto Gismonti,
refletindo sua formação erudita no piano, utiliza um andamento ainda mais
virtuosístico, com semínima variando entre 224 e 232, o que torna esta versão, com
toda a complexidade de suas poliritmias, difícil mesmo para pianistas experientes.
(PINTO, BORÉM, 2013, p.104)

É sim possível encontrar características dos tipos de frevos citados acima, mas, como
o próprio Egberto afirma, muitas das características musicais de seu Frevo parecem ser
advindas do dobrado.
Em sua pesquisa sobre o frevo, Saldanha enumera alguns dos padrões que fazem parte
das composições e execuções dos frevos. A primeira das constatações afirma que o gênero é:

102
“Invariavelmente escrito em compasso binário 2/4, começa em anacruse, comumente, mas,
não exclusivamente em movimento ascendente”
Nesse ponto já é possível encontrar divergências entre a composição de Egberto e a
música das agremiações de Recife e Olinda. O Frevo de Gismonti não se inicia com uma frase
em anacruse.
O andamento que o músico imprime a essa interpretação se aproxima das execuções
dos Frevos. Nas versões impressas precedentes, a formula de compasso é de 4/4 65. Contudo, é
possível supor que essa opção é apenas para que seja facilitada a leitura, visto que Egberto
executa essa composição em andamentos extremamente rápidos (com a semínima variando
entre 224 e 232 na versão encontrada em “Alma”).
Ainda segundo Saldanha:

“Também, ainda diferente da marchinha-carioca e da marcha-militar, onde, o acento


do surdo na base rítmica está no primeiro tempo, no frevo, assim como, no samba,
este acento está deslocado para o segundo tempo, na figura da semínima, o que
confere um caráter rítmico diferenciado das demais marchas.” (SALDANHA, 2005,
p.187)

O dobrado também se enquadra nos ritmos que possuem acento no primeiro tempo,
como afirma Rocha, e é esse um dos pontos que mais aproximam a execução de Gismonti da
execução dos dobrados.

Das audições e análises, podemos perceber que a acentuação empregada por Egberto
em seu Frevo também se dá no primeiro tempo dos compassos.

E, finalmente, a estrutura formal se aproxima da estrutura de um possível dobrado.


Enquanto o Frevo, de acordo com Saldanha, é composto de duas partes distintas, A e B,
dispostas normalmente na fórmula A – A – B – B – A, o Dobrado, segundo Rocha, é
normalmente constituído de três, A, B e C, sendo que a parte C é normalmente um trio, que
geralmente possui as seguintes características:

65 Também na transcrição do autor.

103
O trio tem andamento ligeiramente mais lento do que as demais partes do
dobrado. Caracteriza-se, também, pela suavidade e doçura de sua linha melódica,
executada com dinâmica próxima do pianíssimo. Tem arranjos e instrumentação
peculiares, onde não faltam graves solos dos clarinetes, chorosos duetos e outros
elementos influenciados por sentimentos difusos, fazendo-nos lembrar certa
melancolia, encontrada também nas valsas e em outros gêneros nacionais ou
nacionalizados. (ROCHA, 2014, p.11).

Entretanto, Rocha ainda afirma que existe uma inúmera quantidade de dobrados nos
quais os temas levam a um desdobramento de exposição, A, B, C, fazendo com que o trio, a
parte contrastante da música, se torne o D.

Desse modo, a ordem das partes normalmente é alterada para o modelo A – B – A.


Conforme a citação de ROCHA (2014, p.11), “Seguem-se então, a terceira parte, que é o solo
do baixo (C), e o trio (D), para, então, indicada pelo Da Capo, ser feita a reexposição.”

Como vimos, a composição de Egberto Gismonti obedece a essa estrutura formal.


Ainda de acordo com as características enumeradas por Rocha, o C da obra de Egberto é uma
seção na qual os baixos, ou a região grave do piano, tem destaque, em seu pedal contrastante
com as respostas agudas.

Além disso, o D de Frevo é também um momento de contraste na peça. A


predominância dos legatos somados agora à melodia mais cantabile, apesar de complexa,
trazem traços mais suaves à seção que a distancia do caráter vigente na peça até este ponto.
Essas modificações fazem com que a parte se aproxime do modo que os trios dos dobrados
são constituídos, de acordo com a descrição acima, realizada por Rocha.

Cita-se ainda:

Embora mais raros, existem ainda dobrados cujos trios são desdobrados em duas
partes. Se a exposição tiver duas partes (A-B), a elas seguirão as do trio (C-D), antes
da reexposição. No entanto, se a sua exposição for desdobrada em três partes (A-B-
C), após o solo do baixo, serão executadas as duas partes do trio (D-E) e depois a
reexposição geral que, como vimos, pode ser abreviada pela exclusão da segunda
parte (B). (ROCHA, 2014, p.11)

104
Essa última afirmação faz com que o Frevo de Gismonti tenha, até que completada sua
primeira exposição, uma estrutura muito semelhante às dos dobrados pesquisados por Rocha.
A última parte da música pode sim ser dividida em duas partes, o que sugeriria um D – E.

Desse modo, concluímos que a composição Frevo, de Egberto Gismonti possui uma
quantidade maior de características que remetem aos dobrados que aos frevos propriamente
ditos.

Ao piano solo

Ao piano solo, Frevo passou por uma grande modificação no acompanhamento. A


execução antes em grupo obrigou Egberto, apesar de já trazer indícios da forma como a
executa solo, a simplificar, principalmente, o que diz respeito aos rítmos de sua mão esquerda.

Encontra-se na versão anterior, inclusive alguns aspectos de “levada” realizados por


Gismonti juntamente com a seção rítmica de baixo e bateria. Consequentemente, por conta
dos músicos, juntos, manterem padrões rítmicos no acompanhamento, a execução faz maior
menção ao ritmo66 executado pelas orquestras recifenses.

Além disso, como vem se mostrando comum a Gismonti, modificou-se a forma da


música. Não há na versão contida em “Nó Caipira” (EMI – 1972) a grande quantidade de
partes A, sobre os quais Egberto improvisa à maneira jazzistica. Os improvisos concentram-se
sobre a ponte e são executados de maneira bastante livre, levando até mesmo à inserção de
um nova música no meio da execução.

Ao piano solo Frevo é executada mais rapidamente acentuando o papel virtuosístico da


primeira performance gravada.

66 Exemplo de levada de frevo

105
2.7 Água e vinho

Sétima peça, Água e vinho é também uma das mais lentas do álbum. Sua execução tem
a semínima em torno de 78 bpm e a sugestão interpretativa contida nas partituras do disco é a
de que seja tocada “Com alma”.
De caráter e estrutura semelhantes a Cigana, é construída também num padrão de
melodia acompanhada em tonalidade menor e sua sonoridade é também homogênea, ou seja,
pouco variada nos aspectos estudados. Essa estrutura homofônica prevalece durante toda a
peça com a presença de vozes internas, que não são independentes o suficiente para a
classificação polifônica. Pode-se afirmar também que seu material melódico é bastante
uniforme.
A tessitura do piano é bastante explorada, principalmente na região aguda do
instrumento.

Forma

Água e Vinho é uma canção de uma só parte e um refrão melhor apresentados na


divisão apenas fraseológica (1, 1b, 2 e 3) e se estrutura da seguinte maneira:

Parte Compassos Resumo


Introdução 1 ao 2 Apresentação do motivo de acompanhamento
A 3 ao 20 Exposição do tema
A1 21 ao 38 Reexposição do tema com linha melódica adicional superior
A2 39 ao 56 Improviso sobre a estrutura harmônica do tema
A3 57 ao 74 Reexposição final
Coda 75 ao 77 Escala de tons inteiros ascendente.
Tab.12: Resumo das partes de Água e Vinho (referentes à transcrição)

Harmonia:

106
Com centro em Ré menor, Água e vinho é tonal, predominantemente triádica e com
grande presença de acordes invertidos, prática comum a Egberto Gismonti.
Outro elemento muito encontrado em Egberto também presente nessa composição é o
movimento dos acordes por graus conjuntos, como no acompanhamento frase 1, em que os
acordes vão em caminho ascendente de Dm ao seu dominante A7(9-), passando por Gm/D, F
e Gm.
Esse movimento é modificado quando a melodia se direciona para a frase 2. Ocorre
então uma cadência de engano67, no qual o acorde de dominante (A7) caminha em grau
conjunto para o relativo maior (Bb), que culmina numa inversão da dominante resolvendo no
homônimo maior da tonalidade (D/F#).

Parte A (c.3):
I IV III IV V
|: Dm Gm/D | F Gm | Asus7(9-) :|

VI IV V
| Bb Gm/Bb | A7(13-)/C# |

Refrão (c.11):
V/IV V/III V7/I VI -II VI ( II SubV) VI II V
| D/F# D | Csus7 C7 | A/C# Bb | Eb Bb/D | Cm6 B6 | Bb | Esus Asus7 |

Desse modo, o caminho harmônico que acompanha o refrão é uma forma de contrastar
partes da música.
Digno de uma análise mais aprofundada, a sequência harmônica que se inicia no
acorde de Ré (maior), aqui utilizado como dominante secundário não resolvido do quarto grau
(Gm), e é seguido da dominante do terceiro grau (F), que nos surpreende também por não ser
executado e dar lugar a A7/C# que caminha para a relativa maior da tonalidade (Bb).

67 […] “Por outro lado, as denominadas cadências interrompidas [Trugschlüsse] são mais construtivas como
significação harmônica. Por esse nome entende-se a substituição do passo V – I – que era esperado – por V -
VI ou por V – IV. Seu protótipo é este: após o V grau espera-se o I; mas, em vez deste, vem o VI ou o IV.

107
Há então uma cadência que polariza momentaneamente Bb [VI II V ( II SubV) VI]
e logo, fechando, um II V para a tônica Ré menor.
Esta última não ocorre. Egberto nos entrega a tônica sim, mas não sem passar
primeiramente pelo IV grau, Gm.
Um fato curioso é que existe, no repouso da progressão no qual Gismonti alterna entre
Gm e Dm, um pedal na nota Fá# nas oitavas superiores do piano. Esse pedal alteraria a
configuração harmônica desses dois últimos acordes para Gm7M e D. Entretanto, a distância
entre o que se faz soar entre as mãos é tão grande que desconsideramos esse pedal na análise
harmônica, fazendo deste apenas um recurso timbrístico.
Há nesse acompanhamento momentos distintos. O primeiro, no qual a harmonia
caminha a maior parte do tempo em graus conjuntos (no sentido tônica – dominante) e o
segundo, no qual a harmonia movimenta-se mais por padrões de dominantes secundárias não
resolvidas e tem em seu movimento o objetivo de alcançar a tônica.

Acompanhamento:

Água e vinho é um típico exemplo de melodia acompanhada cuja classificação é a de


figuração que, segundo SCHOENBERG (1991, p.109) é um “acompanhamento pianístico
comum quando há arpejos, geralmente com a utilização de uma ou mais figuras sistemáticas
que seriam o motivo do acompanhamento”. Todo o percurso musical é seguido de apenas um
padrão que se repete e se adapta aos acordes. É um padrão regular de acordes arpejados em
posição aberta e subdivididos temporalmente em colcheias, como no exemplo:

Fig.78: Padrão regular de colcheias e acordes em posição aberta no acompanhamento de Água e Vinho.

Esse mote de acompanhamento arpejado é encontrado durante toda a peça, com


exceção dos dois compassos introdutórios, em que, apesar de semelhantes, encontra-se um
padrão um pouco diferente que não é subdividido em colcheia por todo o compasso, como

108
podemos ver:

Fig.78: Introdução de Água e vinho, motivo que precede o acompanhamento.

Melodia:

A melodia de Água e Vinho parece derivar de apenas um motivo, a figura melódica


germinal da peça. Dividiremos aqui as frases da peça em 1, 2 e 3 contando também com a
frase 1b, que é a ponte entre a parte A e o refrão.
Dessa maneira, encontramos a seguinte organização:

Parte Frases (Compassos)


A 1 (3 ao 5 e 6 ao 8)
1b (9 ao 10)
Refrão 2 (11 ao 14)
3 (14 ao 17)
Tab.13: Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

Assim sendo, nota-se que as frases 1 (e 1b) privilegiam graus conjuntos e notas
repetidas, enquanto que as frases 2 e 3 privilegiam saltos intervalares maiores, compensados
por graus conjuntos e guarda do motivo inicial a repetição de notas.
No retorno à frase 1 (A2), após a primeira exposição do refrão, Egberto surpreende ao
trazer um nova linha melódica secundária. A surpresa não reside no fato de haver uma linha
contrapontística colorindo e modificando a linha melódica principal e sim no fato de essa
nova linha ser mais aguda que a linha principal e ainda assim ser ouvida como secundária.
Alguns processos explicam o ocorrido. Primeiro, a diferença rítmica entre elas,
enquanto a melodia principal é movida principalmente em colcheias, essa nova melodia se
move, quando mais subdividida, em semínimas, mas também em mínimas e semibreves.
Dessa maneira a melodia principal (mais grave) ainda se faz mais presente ao ouvinte.

109
Outro aspecto é a reiteração. A melodia principal já havia sido exposta sem a linha
complementar. Como traz o material temático que permeia a peça e já havia sido exposta
anteriormente, não perde o sentido de primeiro plano.
Um terceiro aspecto que contribui para que essa nova linha contrapontística não soe
como linha principal é a dinâmica empregada por Gismonti. Apesar de executar ambas as
melodias com a mesma mão, Egberto as executa com intensidades diferentes. A melodia
principal temática é executada levemente mais forte do que a melodia secundária.

Fig.79: Melodia secundária “acima” da melodia principal.

É interessante notar que na última exposição (A3), após a seção de improviso, o


pianista mescla a execução da melodia “pura”, como em A1, com trechos em que também
“insere” essa melodia adicional contrapontística, indicando que executá-la ou não parece
opcional.
Um outro aspecto que se faz necessário notar é a execução rítmica que Egberto
imprime às melodias em suas interpretações. Principalmente quando em peças mais lentas, as
executa de forma muito livre e irregular. Parece brincar com o tempo das linhas melódicas da
maneira que acha melhor. Raramente um padrão de colcheias é executado dessa maneira.
Mantendo o acompanhamento constante, acelera alguns conjuntos de notas, atrasa outros e
assim por diante.
A opção do autor por transcrever a melodia como uma sequência de colcheias,
diferentemente do que ocorre na transcrição de Cigana, onde a opção foi escrevê-la em
tercinas, em oposição à partitura presente no encarte do álbum, em que a melodia também se

110
encontra escrita em colcheias, se deu pela constância dessas quiálteras.
Em Cigana, a quiáltera executada sobre o acompanhamento em colcheias, ocorre mais
regularmente, como se essa fosse a forma não variada da rítmica da melodia. A opção pela
não grafia de inscrições como Swing Feel68 para preservação da escrita em colcheias é apenas
estilística.
A escolha, então, pela grafia em colcheias se deu para facilitar a leitura, visto que se
escrita da maneira como executada, a dificuldade de ler “engessaria” a performance do
pianista que se dispusesse a executá-la.
Para manutenção da fidelidade das transcrições, algumas inscrições foram adicionadas
para que o pianista leitor compreenda a maneira de execução de Egberto em aspectos mais
gerais de sua performance sem comprometer a leitura.
Com a rítmica regular do acompanhamento como referência de pulso e subdivisão,
essas inscrições interferem na relação entre a melodia (mão direita) e da linha desenvolvida
pela mão esquerda, como no exemplo a seguir:

Fig.80: Indicação de execução rítmica da melodia

Deve ser tocado aproximadamente:

Fig.81: Forma aproximada de como deve soar a indicação anterior.

68 Forma de grafia musical típica das partituras de jazz na qual as colcheias são escritas normalmente porém
não são tocadas como grafadas.

111
Além da forma ritmicamente aberta percebida da execução, é possível perceber que há
nessa interpretação improvisação melódica.
A improvisação em Água e vinho é realizada à maneira jazzística. Egberto reserva um
chorus para a criação de novas melodias sobre a estrutura harmônica da música toda. Apesar
disso, é contido.
Assim como no material estrutural, evita dissonâncias e notas de passagem e se utiliza
basicamente das mesmas escalas que constituem a melodia, saindo da escala de Ré menor
apenas quando há a presença das dominantes secundárias.
O caráter tranquilo é mantido e a rítmica do improviso também não sofre muitas
alterações. Permanecem as frases em colcheias com repousos nos mesmos acordes em que
encontramos os “respiros” da melodia. Assim como os outros improvisos melódicos de
Gismonti, mantém o caráter de variação sobre a mesma.
Algo também notável é a utilização, única em toda a peça, da escala de tons inteiros. A
coda, realizada após a última execução do tema, consiste num movimento ascendente por essa
escala, finalizando a performance, como podemos ver:

Fig.82 Escala de tons inteiros, coda de Água e Vinho.

Dinâmica

Apesar de predominantemente piano ou mezzo piano, condizente com o caráter da


peça, percebemos em Água e vinho grande variação dinâmica e uma forma rica e não
padronizada de usá-la. Não foi possível perceber uma dinâmica própria a cada parte, pois

112
Egberto varia, ainda que não drasticamente, a cada repetição mostrando assim o quão
dependente de cada interpretação da música a está dinâmica.
De maneira geral, a dinâmica acompanha a movimentação das frases, tendo os
momentos de maior densidade sob dinâmicas mais fortes e os de menor, mais piano.
Um exemplo que nos chamou a atenção é o seguinte trecho da frase 1b que liga o A ao
refrão, constituído de um movimento ascendente que, ao contrário do que se espera por conta
da frase seguinte ser geralmente mais forte, é tocado em decrescendo, sendo seguido de um
rápido crescendo, para que seja retomada a dinâmica posterior.

Fig.83: Frase ascendente tocada sob um decrescendo provocando alteração no caminho melódico.

Outro momento interessante são os ataques nas oitavas superiores ao fim de cada
forma completa. Junto com as gravações de sinos, que são inseridas na faixa, Egberto as
realiza em decrescendo e pianíssimo tão acuradamente que a sonoridade chega se fundir com
a dos sinos disparados.

Fig.84: Sinos

Apesar da realização dos caminhos de variação de intensidades descritos nas


transcrições, o autor acredita que em outras performances, o pianista se sente à vontade para
variar da forma que melhor lhe convir, podendo alterá-la de maneira significativa.

113
Articulação

Não há variação de articulação na execução de Água e vinho no disco. Predomina o


legato durante todo o percurso musical e também o uso do pedal de sustentação do
instrumento.

Ao piano solo

Água e vinho, das músicas pesquisadas, é a que se modifica menos e mantêm mais
características que remetem à primeira versão, gravada em grupo.
Ao piano solo, a composição, que em sua primeira gravação é cantada pelo próprio
Egberto, tem modificações principalmente rítmicas.
Possivelmente pelo fato da formação instrumental ser maior, a interpretação contida
em “Água e Vinho” (EMI-Odeon, 1972) possui a pulsação mais regular, o que não ocorre em
sua interpretação solo.
Tocada de forma mais lenta, privilegia as mudanças de andamento acelerando os
meios das frases e retardando calmamente seus finais, valorizando os repousos melódicos.
O improviso sobre a forma completa também é uma novidade da versão solo à medida
em que a primeira interpretação conta apenas com duas exposições temáticas, sendo assim,
mais curta.

2.8 Infância

Oitava peça do disco, Infância é tocada de modo ligeiro, com a semínima em torno de
151 bpm e contém a inscrição “Infantilmente” na indicação contida na partitura do disco.
Permeada por ostinatos, a inscrição aponta para a presença de jogos rítmicos na execução que
trazem o tom de brincadeira presente na performance.

114
Forma
Parte Compassos Resumo
Inrodução 1 ao 8 Apresentação do primeiro ostinato
A 9 ao 37 Execução do primeiro material melódico
Ponte 38 ao 45 Ponte sobre a região do quinto grau (casa 1)
A1 46 ao 60 Reexposição da primeira melodia sob outro acompanhamento
B 61 ao 107 Segundo material melódico sobre novo ostinato
B1 108 ao 134 Segundo material melódico sobre primeiro ostinato
A2 135 ao 149 Reexposição da primeira melodia
C 150 ao 177 Novo ostinato (mão direita) com improvisação rítmica
C1 178 ao 196 Repetição oitava do ostinato oitava acima e continuação do
improviso rítmico
Ponte 1 197 ao 204 Vamp sobre o centro tonal
Ponte 2 205 ao 224 Rápido afastamento da tonalidade
C2 225 ao 244 Retomada do ostinato da mão direita
C3 245 ao 267 Ostinato uma oitava acima
Ponte 3 268 ao 295 Bricandeira rítmica sobre o vamp da ponte 1
A3 296 ao 329 Retomada da da primeira melodia
A4 330 ao 344 Exposição final
Tab.14: Resumo das partes de Infância (referentes à transcrição)

Como podemos notar, sua forma é livre e a música possui muitas vezes, um aspecto de
colagem. Suas partes são assimétricas e suas repetições não contam necessariamente com o
mesmo número de compassos.
A execução do álbum contém partes não descritas nos Lead Sheets da contracapa,
assim como em outras ocorrências do disco, dificultando a diferenciação do que são os
aspectos estruturais e os que não são.
Aqui encontramos também a exemplificação do possível desapego dos aspectos
formais que Egberto mostra.
O Lead Sheet da contracapa traz o que aqui é nomeado por Ponte como se fosse a
casa 1 de A e os sete primeiros compassos de B como a casa 2 da parte anterior. Porém,
Egberto as executa dessa maneira apenas na primeira exposição. As repetições A2, A3 e A4
não são seguidas de um respiro na melodia principal e desembocam diretamente na seção

115
posterior. O que se percebe é que Egberto insere repousos entre algumas das partes, mas esses
não parecem exercer papel estrutural na composição.

Harmonia

Construída sob a tonalidade de Ré bemol maior, Infânca contém procedimentos


harmônicos ambíguos, apesar de extremamente simples. Primeiramente, nas seções A e B, o
pianista não executa acordes propriamente ditos.
A manutenção dos ostinatos sem alterações de notas reserva a caracterização das
regiões harmônicas às mudanças dos baixos, que Gismonti executa nas regiões mais graves do
instrumento.
A primeira exposição de A possui basicamente, uma harmonia que construída sobre I
IV V I69 70. Entretanto, as exposições seguintes da mesma seção não trazem essa mudança
fazendo-nos considerá-la um grande Db.
Mais precisamente em A171, Egberto varia esse modo de acordes não definidos e
realiza a progressão harmônica sugerida na contracapa do álbum. Acompanhando a frase 2,
temos, nos compassos 54 a 57, a seguinte harmonia:
Parte A (c.9)
IV I II I
|: Gb | Db/F | Ebsus | Db :|

Em B encontramos o mesmo procedimento de acordes não definidos cujas regiões são


definidas pelos baixos. Baixos estes que seguem o mesmo caminho da progressão em A.
Atenção especial deve ser dada à parte C. Aqui sim, encontramos uma progressão
clara dada principalmente pela melodia em ostinato.
Encontrando as seguintes progressões:

69 Os tempos aqui são uma redução e não coincidem com a execução. Isso é feito pois Egberto mantém a
mesma região harmônica por vários compassos, o que tornaria a escrita demasiadamente massante.
70 Omitimos a análise harmônica da ponte por não ser parte constituinte da composição nas partituras
encontradas.
71 Apenas nessa repetição, todas as outras são realizadas sob o ostinato.

116
Parte C (c.150): I IV V I
|: Db | Gb | Ab | Db:|

IV III II V
| Gb | Fm | Ebm | Ab |

Desse modo, podemos especular que a harmonia não é um item fixo e também como a
performance, afeta inclusive a movimentação harmônica na peça, na qual Egberto, em partes
repetidas, opta pela estaticidade ou não do movimento.

Ponte 2 (c.205):

É interessante notar o movimento harmônico encontrado nessa seção da peça.


Afastando-se por alguns compassos da tonalidade, ainda que não a consideremos uma
modulação, encontramos a seguinte progressão72:

(II V) -VI (II V7) VII


Bm7 | E7 | A6/C# | % | Dsus11 | G7 | C(11+) | % |

VII -vii -vi V/V (V ) V/VI V (V)


C(11+) | Bm7 | Aø | Bbsus13 | Csus4 | F/C | Ab/Eb | Ebsus4
|
V
| Absus13(9-)| % | %| % |

Acompanhamento

Elemento de destaque em Infância, o acompanhamento é variado. São apresentados


em dois blocos basicamente. Primeiro em ostinatos curtos, que se repetem longamente
72 A seção não consta na partitura de base e a maneira com que Egberto executa os acordes dificulta sua
classificação (os baixos são executados pelo sintetizador adicional)

117
durante a peça, segundo procedem de brincadeiras e padrões rítmicos realizados sobre os
acordes, principalmente na parte C dessa execução da peça.
O primeiro ostinato, de abertura da faixa, como numa menção a figuras do
minimalismo73. Estático, veloz e repetitivo, dá suporte à melodia principal num jogo
polimétrico.
Seu ciclo é ternário, enquanto a subdivisão da melodia é quaternária. Esse jogo gera
uma série de desencontros que só não são mais confusos pela não acentuação do começo de
cada ciclo. A execução é tecnicamente complexa, pois exige, além da habilidade de manter a
polimetria, a resistência física do executante.

Fig.85: Ciclos do ostinato com relação à melodia, presença de diferentes métricas.

Apesar do padrão matemático que existe nesse acompanhamento, esse não parece ser
o aspecto central da performance. Os inícios de frases não coincidem com os padrões do
ostinato e não se deslocam de uma maneira perceptível pela audição ou pela análise.
As mudanças de acordes são dadas, principalmente, pela alteração dos baixos
realizadas pela mão direita que “cruza” com a esquerda, executando essas fundamentais em
regiões graves do piano. O padrão de notas realizadas pela mão esquerda se mantém fixo nas
partes em que vigora.

73 Termo que a partir de 1970 passou a designar técnicas composicionais baseadas na repetição de pequenas
células rítmicas e melódicas, frequentemente sobre harmonias construídas por tríades quase estáticas. Seus
mais conhecidos divulgadores foram Steve Reich, Terry Riley e Philip Glass. Conceitualmente, pode-se
dizer que há aspectos minimalistas na música da Antiguidade (India e Bali), nas obras do francês Éric Satie e
até em Webern , da chamada Segunda Escola de Viena […] (DOURADO, 2004, p.206)

118
Fig.86: Mudança de região harmônica pela alteração dos baixos e início das melodias coincidindo com diferentes
partes nos ciclos dos ostinatos.

A segunda exposição de A (A1) é um exemplo de como o pianista utiliza vários


recursos na construção de seus acompanhamentos. O que percebemos nessa retomada, é que,
nas duas primeiras frases, Gismonti usa uma complementaridade entre a melodia e apenas
uma nota, Lá b. A mão esquerda toca majoritariamente nos tempos em que a direita não toca,
gerando um contínuo rítmico em semicolcheias, construindo, mesmo que rapidamente, um
acompanhamento para a seção:

Fig.87: Acompanhamento de apenas uma nota para as duas primeiras frases de A1.

119
O segundo ostinato, referente à parte B, é ritmicamente mais simples. Sua subdivisão
binária não cria padrões polimétricos e seus ciclos se fecham simultaneamente aos das frases
da melodia.

Fig.88: Segundo ostinato

O que se nota é que em meio à reexposição de B, Gismonti retoma o primeiro ostinato,


fazendo com que as melodias da seção sejam executadas sobre o acompanhamento da anterior
retomando o jogo polimétrico, antecipando a volta de A e levando a primeira figura até a
interrupção pela melodia de parte C.
Referente a essa nova parte, o terceiro modo em que Egberto se acompanha merece
destaque. O artifício que se mostra como um dos mais explorados pelo músico, em suas
versões para piano, a mão esquerda aparece sob intensa variação rítmica e se torna o elemento
que chama a atenção do ouvinte.
Construído sobre a melodia em ostinato de quatro compassos em semicolcheias,
realizada pela mão direita e valendo-se da estrutura harmônica simples da seção, Egberto
utiliza, principalmente, fundamentais e quintas dos acordes na região grave do instrumento
criando um jogo rítmico complexo.
Vários padrões rítmicos são criados e um deles é destacado pela complexidade de sua
execução. As notas citadas dos acordes aparecem sobre um padrão de sequências de colcheias
pontuadas, que geram síncopas e deslocamentos do acompanhamento em relação ao ostinato
melódico, da seguinte forma:

120
Fig.89: Colcheias pontuas sobre as fundamentais e quintas dos acordes.

Outros padrões mais simples são encontrados, como o tresillo, comum a diversos
estilos da música sul-americana .

Fig.90: Célula rítmica do Tresillo. (GOMES, 2012)

Fig.91: Tresillo no acompanhamento.

Melodia
Parte Frases
A 1a (9 ao 12)

121
2a (25 ao 28) 2b (34 ao 37)
B 3a (68 ao 71) 3b (78 ao 81)
3c (88 ao 91) 3d (98 ao 101)
C 4a (150 ao 153) 4b (154 ao157)
5 (166 ao 169)
Ponte 6a (504 ao 207) 6b (209 ao 211)
7a (213 ao 216) 7b (217 ao 220)
Tab.15:Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

Infância se mostra diferente das outras interpretações do álbum pelo fato de haver
menos variação nas melodias. Ritmicamente são executadas de maneiras muito semelhantes,
tendendo à repetição pura e a ornamentação que é limitada.
Alguns aspectos saltam à análise e julgamos de importante explicação. Primeiramente,
vale destacar a complexidade técnica das frases 1 e 2. Suas melodias, apesar de simples e
construídas por graus conjuntos, são tocadas paralelamente em intervalos de 6 a, o que dificulta
a execução devido ao andamento rápido da música e o acompanhamento “defasado” visto na
parte anterior. As frases 2 se comportam como respostas à frase 1.
Da execução, é interessante notar que essas frases são tocadas em intervalos de sextas
paralelas, exigindo do pianista destreza, para que sejam bem tocadas principalmente por conta
do andamento ágil, dificultando o salto e as semicolcheias da frase 1 e as repetições de notas
da 2.

Fig.92: Saltos e semicolcheias em sextas paralelas na frase 1

Fig.93: Notas repetidas na frase 2

Aqui encontramos também uma outra maneira de variação, menos explorada no

122
álbum. Sem grandes alterações de rítmica e notas das frases 1 e 2, Gismonti inverte a
acentuação, privilegiando os contratempos, como podemos perceber:

Fig.94: Modificação na acentuação (frase 1) (A2)

As frases 3(a,b,c e d) são variações de uma mesma melodia. O que se altera entre elas
é apenas a região harmônica sobre a qual são executadas. Aqui encontramos também uma
forma interessante de preenchimento dos repousos melódicos, Egberto, ao fim de cada uma
das figuras, realiza arpejos em 5a ascendentes e descendentes. A ornamentação 74 é realizada
ao fim de todas as exposições das frases em B.

Fig.95: Frase 3a e arpejo em quintas


74 Apesar de o movimento aparecer ao fim de cada frase em B, é considerado como ornamentação por não
constar na partitura disponível.

123
Outro elemento de destaque são as melodias da parte C, constituídas
basicamente por arpejos da harmonia vigente. O que encontramos nessa seção é uma inversão
da ordem predominante até o momento. Apesar da grande movimentação das melodias 4 e 5,
elas admitem função secundária e Gismonti traz para o destaque o acompanhamento descrito
acima. Aqui, um exemplo dessa construção.

Fig.96: Frases 4a, 4b e 5, respectivamente.

Dinâmica

Assim como a maioria das peças do disco, a variação de dinâmica em Infância não é
feita de maneira estrutural. A priori, suas partes não são diferenciáveis nesse aspecto e as
nuances ocorridas provém apenas da performance.
Os extremos de volume não são alcançados, predominando assim diâmicas mezzo
piano e mezzo forte. É, possivelmente, o elemento performático menos variado da gravação e
dá espaço para outras formas de enriquecimento da performance.
Um aspecto relevante da performance, sobre o filtro da dinâmica, é percebido a
respeito de questões técnicas. Invertendo-se a prática comum pianística na qual a mão direita,
geralmente responsável pela melodia, é executada levemente mais forte do que a esquerda, a
parte C de Infância é constituída do contrário desse procedimento. Egberto executa o ostinato
melódico da mão direita de maneira levemente mais fraca que os baixos da mão esquerda,
fazendo com que esses, juntamente à rítmica complexa sob a qual são executadas, obtenham

124
lugar de destaque no espectro sonoro.

Articulação

Prevalece nessa execução articulações non legato, o que dificulta ainda mais a
realização os ostinatos da composição. Esse tipo de articulação obriga o pianista, para que
mantenha o fluxo de frases repetidas, a executá-las sobre grande acuidade rítmica.
O pedal de sustentação do instrumento é pouco utilizado e acreditamos, que seu uso
aqui vem como forma de variação da sonoridade. Tomemos como exemplo a mudança de
ostinatos entre as partes A e B.
As figuras possuem rítmicas e aspectos harmônicos semelhantes. O aspecto que mais
varia na diferenciação da sonoridade das partes é a mudança de articulção, que é auxiliada
pelo uso do pedal. A segunda figura repetitiva tende a um espectro mais “embolado” 75 e uma
rítmica menos definida. Desse modo, Egberto nos mostra como a variação de aspectos
simples podem trazer novos coloridos às interpretações, mesmo as que possuem elementos
bastante repetitivos.
Um exemplo da articulação pode ser encontrado nos arpejos em quintas, já
mencionados na seção B. Egberto alterna, sem ordem pré-estabelecida, entre realizá-los sob
staccatos e legatos contando, para isso, com o auxílio do pedal, brincando com o elemento,
como podemos ver:

Fig.97: Variação na articulação nos arpejos em quintas (seção B)

Não se pode afirmar, mas suspeita-se também que o pedal é utilizado como “descanso”

75 Por conta da sobreposição dos harmônicos das notas que soam simultaneamente.

125
para as mãos do pianista, que chega a repetir a mesma figura em semicolcheias por trinta e
sete compassos ininterruptos, como na parte A. Assim, com o pedal pressionado, há menor
necessidade de precisão rítmica.
Vale ressaltar também, o uso comum ao pianista, de diferentes articulações para as
duas mãos. Em C temos um exemplo disso, quando Egberto realiza a melodia característica
da seção em um “quase” legato e executa os baixos numa articulação que varia entre o
portato e o stacatto.

Ao piano solo

Num caso raro em Egberto encontramos nas versões de “Alma” (EMI-Odeon, 1986) e
“Fantasia” (EMI-Odeon, 1982), muitas semelhanças.
Sendo a primeira versão executada apenas por sintetizadores e sendo esses,
instrumentos de teclado, pode-se sugerir uma razão para tamanha semelhança apesar da
grande discrepância timbrística.
A forma se mantém praticamente inalterada (exceto pela finalização em C na versão
mais antiga) e não há adição ou omissão de seções para ambas performances.
A versão solo é ligeiramente mais veloz e a maior diferença é encontrada no
tratamento da seç ão C. Ao piano solo, Gismonti reserva essa parte para brincadeiras rítmicas
mais elaboradas no acompanhamento, o que não ocorre na versão com sintetizadores.
Retomando o que foi mencionado a respeito da diferenciação de dinâmica entre as
mãos (que na versão solo o pianista executa a melodia mais piano que o acompanhamento), é
notório que na versão com sintetizadores essa inversão não ocorre, o que reserva o primeiro
plano à melodia, não ao acompanhamento.
Acreditamos que a falta de variedade de timbres da versão solo tem sua compensação
no virtuosismo da performance, com suas “pontuadas” e ritmos complexos, principalmente na
seção C.

126
2.9 Cigana

Nona peça do disco, Cigana é uma das mais lentas de “Alma”. A inscrição “Com
amor”, encontrada no lead sheet do disco é um indicativo do tratamento que o pianista sugere
à peça. No LP possui andamento com a semínima em torno de 68 bpm.

Forma
Parte Compassos Resumo
Introdução 1 ao 6 Apresentação do acompanhamento
A 7 ao 30 Exposição do tema
Ponte 31 ao 38 Movimento sobre o centro tonal
A1 39 ao 62 Reexposição do tema com pequenas variações de
acompanhamento
B 63 ao 79 Exposição do tema 2, derivado do motivo de A.
A2 80 ao 103 Reexposição de A, com variações melódicas e no
acompanhamento.
B1 104 ao 121 Variação do tema de B.
A3 122 ao 144 A com mudanças na tessitura melódica e do acompanhamento.
Ponte 1 145 ao 153 Suspensão e exposição do acorde de centro tonal. Fechamento.
Tab.16: Resumo das partes de Cigana (referentes à transcrição)

Harmonia

Com o centro tonal em Lá menor, a peça tem em seu A, logo após a apresentação do
arpejo motívico que perpassa essa seção uma progressão cromática descendente iniciada em
Am(9).
A cadência harmônica do A, se dá da seguinte maneira (cifragem divergente da que
constitui a partitura do encarte do álbum):

127
Parte A (c.7):

I +VI VI (II V) IV SubV/IV


| Am(9) | C7M(5+)/G# | C7M/G | F#Ø(11+) 76 | F7M(9, omit3) | Esus4(7) | A7/E | D#7(11+)
|

(II V) +III IV V
|D#Ø | G#7/D# | D7(11+) | E7(13-) |

Outro elemento composicional que pode ser percebido nessa progressão de acordes é
que sua montagem não se dá por funções harmônicas. Com exceção do último acorde da
sequência, E7(13-), dominante tanto para o Lá menor da ponte, quanto para o da parte B, no
qual todas as vozes se movem simultaneamente com relação ao acorde anterior, nota-se que a
condução de vozes é o sistema que deu origem à harmonia dessa seção da música.
Em muitos casos da cadência harmônica, apenas uma voz do acorde é movida e gera o
novo subsequente. Em outros, duas ou três. É desse modo que podemos perceber a harmonia
criada por Egberto. Há ainda que se considerar, que a cifragem acima foi mantida apenas por
rigor teórico, pois acredita-se que há aqui, na verdade, uma progressão intrínseca mais
simples e coerente.
Muito comum a vários estilos musicais, a progressão que se inicia com um acorde
menor em posição fundamental, segue com o início do segundo acorde, num movimento em
que a fundamental (ou sua oitava) caminha cromaticamente para sétimas e sextas (8ª – 7ªM –
7ªm – 6ªM – 6ªm). A diferença nesse caso, que nos obrigou à opção por uma cifragem que
valorizasse mais as notas tocadas que o movimento harmônico, reside no fato de que Egberto,
ao fazer essa opção de caminho harmônico, omitiu a fundamental Lá, geradora da progressão
nos 4 acordes subsequentes ao primeiro.
Em B, encontramos um outro procedimento utilizado com relativa frequência por
Egberto, que é a alternância entre movimentos harmônicos em uma determinada direção por
grau conjunto ou cromático e movimentos harmônicos por intervalos de quartas ou quintas 77.

76 Mesmo com a ausência da terça do acorde, considera-se este um exemplar de acorde meio diminuto, pois,
segundo Tiné (2011, p.41) as notas básicas e indispensáveis ao acorde meio diminuto são a quinta e a sétima.
77 Padrões semelhantes são encontrados em Frevo e Água e Vinho.

128
Vale também ressaltar, que mesmo utilizando um padrão desses, entre um acorde e
outro, não necessariamente faz o mesmo movimento com seus baixos78. Desse modo, uma
progressão que caminha em intervalos que não sejam graus conjuntos ou que faça presente a
relação de tensão/resolução comum ao movimento dominante (primário ou secundário) –
tônica, pode estar camuflada por acordes invertidos em outro padrão de desenho melódico ou
até mesmo sem padrão algum.
A parte B de “Cigana” é um exemplo desse contraste de movimento da progressão
harmônica. Assim, encontramos a seguinte cifragem (também diferente do encontrado no
encarte do disco):

Parte B (c.63):

I subV/VII=(V/IV IV iv I
| Am | Ab/Gb | Ab/Gb | Db69/F | Db6/F | Dbm9/Fb | Dbm/Fb | Ab/Eb |

+IV I (subV/V)=V I
| % | DØ | DØ(13-) | Ab/Eb | % | E7 (13-) | % | Am |

Em B, pode-se perceber um caminho harmônico diferente. O distanciamento da tônica


(Lá menor) se dá logo no segundo acorde (Ab/Gb). Desta maneira, Egberto instaura uma
cadência que se movimenta entre o I e IV graus disfarçada sobre um movimento de baixos
que ainda se utiliza do padrão cromático como na progressão em A.
Polarizando momentaneamente Lá bemol maior, essa sequência se dá da seguinte
maneira: o acorde de dominante (Ab/Gb) não sugestiona ainda a polarização desse mesmo
acorde e logo traz seu IV grau (Db), em exemplares maiores e menores. Este segundo
caracteriza um empréstimo modal da tonalidade de Lá bemol menor. Logo em seguida,
Egberto repousa os dois períodos seguintes nesse mesmo Ab, antes de retomar o acorde de
dominante da tonalidade inicial da peça.
É necessário atentar para a aparição do acorde DØ. Acredita-se que a ocorrência deste,
e não de Db7M, se dá pela manutenção do cromatísmo na voz mais grave, pois Db7M

78 Notas mais graves que não necessariamente a fundamental de um acorde.

129
interromperia o movimento adicionando um salto de segunda maior, que ainda não havia
ocorrido na progressão.
Ainda assim, é possível considerá-lo como um representante do quarto grau, porém
agora aumentado (+IV).

Acompanhamento

O acompanhamento dessa peça é característico e pode ser classificado como


acompanhamento de figuração79. Basta que os dois primeiros compassos soem para que se
possa reconhecê-la. Seu aspecto identitário se encontra na síncopa que ocorre entre os
compassos.

Fig.98: Acompanhamento sincopado (figuração). Somente encontrado na versão solo.

Os acordes dessa seção são dispostos em posição fechada e são executados em formas
arpejadas, sendo que a última colcheia de cada compasso é ligada à primeira do seu posterior,
o que caracteriza essa síncopa e gera uma espécie de pedal nas extremidades agudas dos
acordes, dado que essas notas muitas vezes se repetem.
O acompanhamento da parte seguinte, B, é também sincopado, porém de maneira
diferente. Segue a estrutura colcheia-semínima-colcheia (com modificações) e apresenta a
harmonia em forma de blocos subdivididos em baixo-acorde-baixo, de acordo com a
sequência rítmica apresentada.

79 Ver nota em Água e vinho.

130
Fig.99: Acompanhamento no padrão colcheia-semínima-colcheia com acordes quebrados.

Variações no acompanhamento

Como já foi dito, para que se possa compreender mais do estilo pianístico de Egberto,
é necessário entender que o músico opta pela não repetição literal de elementos. O desenho
desenvolvido pela mão esquerda do pianista em Cigana apresenta exemplos.
A reexposição do A conta com algumas modificações no acompanhamento. A
progressão e o desenho melódico sincopado são mantidos, mas os acordes são dispostos agora
na posição aberta, ocupando maior espaço espectral. Essa abertura é perdida no compasso 86,
no qual Egberto volta à posição fechada retomando a fórmula executada previamente.

Fig.100: Variação do acompanhamento por figuração pela utilização de acordes em posição aberta por alguns
compassos em A2.

Essa retomada da progressão com acordes dispostos em posição aberta ocorre nas duas
passagens em que retorna de B para A. A primeira ocorrência tem duração de 6 compassos

131
(80 a 85) e a segunda de 8 (121 a 128). Essa irregularidade traz uma questão sobre como
possivelmente Egberto realiza o tratamento harmônico. Uma possível hipótese é a de que
Egberto deixou nessa gravação, para decidir no momento da performance, que tipo de
abertura utilizaria para a realização dos acordes ao invés de programá-lo previamente. O
pianista decide iniciar a nova seção sob uma disposição diferente dos acordes e não
encontrando uma solução para dar continuidade às aberturas, por conta do posicionamento das
mãos ou mesmo da tessitura, resolve retomar a posição fechada, sob a qual poderia estar mais
habituado, com movimentos mais automatizados.

Melodia

O motivo geralmente aparece de uma maneira marcante e característica ao início de


uma peça. Os fatores constitutivos de um motivo são intervalares e rítmicos,
combinados de modo a produzir um contorno que possui, normalmente, uma
harmonia inerente. Visto que quase todas as figuras de uma peça revelam algum tipo
de afinidade com ele, o motivo básico é frequentemente considerado o “germe” da
ideia: se ele inclui elementos, em última análise, de todas as figuras musicais
subsequentes, poderíamos considerá-los como o “mínimo múltiplo comum”; e, como
ele está presente em todas as figuras subsequentes, poderia ser denominado “máximo
divisor comum”. (SCHOENBERG, 1991, p.35)

Parte Frases (Compassos)


A 1a (7 ao 10) 1b (11 ao 14)
1c (15 ao 19) 1d (19 ao 22)
1e (23 ao 26) 1f (27 ao 30
B 2a (63 ao 66) 2b (67 ao 70)
2c (71 ao 74) 3 (75 ao 78)
Tab.17: Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada

A melodia de Cigana é claramente construída a partir de um motivo que se desenvolve


ao longo de toda a peça. O que podemos perceber em A é que a seção é composta de
variações da mesma frase em diferentes regiões harmônicas, frases essas onde podemos
encontrar a rítmica do motivo “germe” que permeia a composição, como podemos ver:

132
Fig.101 trecho da frase 1a

Fig.102: Rítmica “germe” de Cigana

Enquanto na estrutura do discurso melódico de A o motivo aparece uma única vez e é


seguido por dois compassos de notas longas, criando contrastes entre movimento e repouso,
há em B mais movimento. O motivo rítmico inicial de um compasso é repetido três vezes e
contrastado com apenas um compasso de repouso. A seção também é construída de três frases
muito similares e uma conclusiva.

Fig.103: Exemplo da utilização do motivo rítmico na seção B (Frase 2b)

Outro aspecto a ser notado é que há diferenças também na construção intervalar do


motivo rítmico/melódico. Em A, a amplitude intervalar é invariavelmente de uma terça. Desse
modo, tem-se uma melodia mais cantabile pois esse salto de terça ascendente é logo
compensado por segundas descendentes que retornam à nota de “partida”.
Em B a melodia é menos cantabile. Basicamente construída a partir dos arpejos dos
acordes da seção, os saltos melódicos e a quase ausência de passagens em graus conjuntos dão
a característica dessa seção que, somadas ao adensamento rítmico, aumentam o contraste
entre as partes A e B.
Ainda com relação à melodia, é importante notar divergências entre a notação rítmica

133
contida nas partituras do encarte do álbum e a grafada pelo autor.
Aqui, diferentemente do que ocorre em Água e Vinho, descrito em sua análise, não é a
variação da melodia que cria a diferença rítmica entre o acompanhamento e a melodia. A
melodia é predominantemente executada como se estivesse escrita em uma fórmula de
compasso composto, enquanto o acompanhamento em compasso simples. Dessa forma, a
opção de notação foi a que mais se aproximava da execução do pianista, como no exemplo:

Fig.104: Jogo polirritmico entre as mãos direita e esquerda

Ainda assim, a transcrição rítmica dessa melodia se faz por uma aproximação pois
existem nuances utilizadas nas variações interpretativas que inviabilizariam a leitura das
partituras geradas.
Gismonti utiliza, como em muitas das performances presentes no álbum, a mudança de
oitavas da melodia, para efeito de variação melódica. Esta performance mostra a liberdade
com que o pianista brinca com esses elementos. Em A3, podemos perceber80 que apenas a
frase 1a é executada duas oitavas acima e a próxima frase, 1b, já vem executada na região da
tessitura do piano predominante na peça:

Fig.105: Mudança de oitavas entre as frases na mesma seção.

80 Além de uma alteração rítmica que omite a anacruse inicial das frases.

134
Dinâmica

Possui pequena amplitude dinâmica, ou seja, o momento predominantemente forte


dessa interpretação (B1) se distancia pouco em termos de intensidade sonora de seus
momentos mais piano.
O que encontramos são variações de dinâmica sutís e geralmente internas às frases,
não se estendendo como grandes movimentos de crescendo ou decrescendo. Percebemos que
a dinâmica está ligada principalmente à interpretação de Egberto em cada um das frases
separadamente. Nisso percebemos também um padrão não notado por conta de sua sutileza:
os pequenos movimentos melódicos que constituem o tema são tocados sobre também
pequenos crescendo e decrescendo partindo do repouso ao movimento e do movimento ao
repouso, como podemos perceber

Fig.106: Movimento de dinâmica acompanhando a movimentação da melodia.

Movimentos mais amplos de variação de intensidade são encontrados, mas possuem


na interpretação do autor, características de casualidade. O pianista parece eleger trechos ou
frases para realizá-los e os faz, como por exemplo a frase 1e, na primeira exposição, realizada
num crescendo e decrescendo elevando sua intensidade bastante acima da média em que as
demais haviam sido executadas até então. O decrescendo logo a seguir retoma essa média na
frase 1f, como pode-se perceber81:

81 Recomenda-se recorrer à gravação para que o exemplo fique mais claro.

135
Fig.107: Crescendo acima da média na frase 1e (A).

Articulação

De todos os aspectos, a articulação é o quesito menos variado na peça. Pode-se dizer


que predomina exclusivamente o legato durante todo o percurso musical. Legato esse que é
auxiliado pelo pedal de sustentação do piano, predominantemente trocado a cada dois
compassos, sem grandes complicações.
Esse aspecto somado à ausência de variações bruscas de dinâmica e outros aspectos na
interpretação contribuem para o caráter homogêneo da peça.

Ao piano solo

A versão solo de Cigana ganhou movimentação e variedade. A compensação para a


falta de múltiplos de timbres82 é dada pela interpretação de Gismonti. O caráter mântrico da
primeira interpretação, presente em “Fantasia” (EMI-ODEN, 1982) se perde e dá lugar a uma
outra música, que parece ter sido escrita exclusivamente para piano.

A melodia, antes executada na sitar, era tocada em apenas uma região do instrumento,
na mesma oitava. A versão solo traz uma melodia que se apresenta em várias oitavas do piano
e conta também com interpretação rítmica mais livre.

O destaque está no acompanhamento. A primeira versão gravada conta com o


acompanhamento de som contínuo e não ritmado executado por um sintetizador e pontuado
por acordes soltos de um piano elétrico. Esse tipo de acompanhamento somado à execução da
melodia sugeriam um clima diferente à música.

82 Executados pelos sintetizadores e outros instrumentos presentes na gravação anterior.

136
A perda da estaticidade da música se dá na subdivisão rítmica, que o
acompanhamento, descrito na seção homônima, confere a ela.

137
138
3 - O ESTILO PIANÍSTICO

A singularidade do piano de Egberto Gismonti é complexa e indescritível em sua


totalidade. A riqueza do conjunto de fatores que tornam possível, e até relativamente fácil, o
reconhecimento de sua “identidade” musical transcende às palavras e não se restringe aos
procedimentos técnicos e formais descritos.

Porém, esses procedimentos externam o processo criativo do compositor/intérprete.


São uma espécie de resultado “palpável” de algo de maior complexidade, que ultrapassa o
fazer musical e que não cabe a esse trabalho analisar. E o fato é que parte do que cria essa
“impressão digital musical ao piano” reside em padrões recorrentes e identificáveis.

Desse modo, este capítulo é dedicado às características mais usuais que foram
depreendidas das análises e transcrições. Serão aqui apresentados conjuntos de fatores que,
sem limitar, focalizará recursos recorrentes do piano de Gismonti apontando preferências e
tendências de um estilo.

Dois aspectos principais serão abordados. Os resultados ilustrarão como Egberto, por
um lado, utiliza técnicas e soluções musicais e pianisticas já “consagradas” ou comuns e, por
outro, como o músico se apropria e as modifica, gerando nuances que, se não são particulares,
são bem menos utilizadas por outros músicos, diferenciando-o.

Por motivo organizacional, a apresentação dos resultados seguirá a ordem de


parâmetros utilizadas nas análises. É também importante notar que alguns desses parâmetros
terão destaques pois são mais amplamente desenvolvidos e sinalizam pontos mais
característicos no estilo de Egberto.

3.1 A concepção de erro e a percepção macroscópica.

É possível constatar, a partir da relação entre as partituras disponíveis, as gravações e,


principalmente, as transcrições realizadas, que mesmo em trechos nos quais a intenção de
repetição parece clara, a existem divergências. Em algumas ocasiões essas divergências se dão

139
em planos mais sutis como em articulações e dinâmicas. Em outras, encontra-se em uma nota,
numa sequência delas ou num ritmo dado, por exemplo.
Essas diferenças, em alguns dos casos, soam involuntárias. O que muitos pianistas e
outros instrumentistas classificariam como “erro”, podem ser encontrados em Egberto como
parte sadia do procedimento performático e até mesmo composicional que o músico parece
cultivar, ao invés de tentar evitar.

[...] tanto que tem erro de nota, mas que não muda nada o sensorial. E
normalmente quem toca na emoção, se errar uma nota o cachimbo cai. Comigo não
cai porque é o sensorial que está mandando. (Depoimento de Gismonti a SILVA,
2005, p.61)

Ainda Egberto, sobre sua preparação para apresentações:

Se eu conhecer as outras partes e a minha, e a coordenação delas, qualquer


acontecimento que não seja aquele que esteja previsto não é um erro. É uma
abertura. Pode ser chamada de improvisação, ou uma brecha que abriu. Quantas
vezes você estava pretendendo tocar notas tais e por um descuido qualquer você
tocou outra, que te pareceu muito melhor? A liberdade ou a preparação para um
concerto é que você tem que ficar tão veloz, [que] qualquer ocasional que aconteça e
que seja bom te faça esquecer o que estava combinado. Você vai seguindo a música
que está se apresentando pra você. Esse é o processo de preparação que não dura
uma temporada, nem duas; dura a vida. [...] (Depoimento de Gismonti a SILVA,
2005, p.61)

Pode-se perceber que Gismonti aceita suas contribuições involuntárias. Essa postura,
de acordo com o próprio pianista, não se dá apenas no âmbito performático. Traz também o
“erro” como procedimento composicional:

Mas eu, como compositor, passei a não considerar mais nenhum erro de
nada, até porque eu já errei e qualifiquei muito o que eu estava fazendo. Muitas
vezes eu toquei coisas erradas e pensei “Mas isso aí é muito melhor do que eu tinha
pensado!”. (Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.61)

Reflete ainda uma concepção geral de seu pensamento musical e dá indícios do que

140
espera da compreensão musical alheia:

Para aqueles que têm uma leitura profunda, a compreensão é muito mais
ampla, porque não é um compasso, é o contexto todo. Leva isso para um ator: você
nunca vai ver a Fernanda Montenegro gaguejar uma peça, ou parar, porque se ela
esquece 1, 2, 3, 4, 5 palavras, ela lembra as outras 15 mil. Porque o que interessa são
as 15 mil, e não as 10. Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.61)

O pianista mostra que privilegia aspectos macroscópicos da obra. Parece acreditar que
a atenção para os detalhes em detrimento do todo é errônea e incentiva a busca pelo oposto.
“Alma” parece permeado desse pensamento. O fato do disco ter sido concebido para
piano solo, o que consequentemente não obriga o músico a “acertar detalhes” de melodias ou
harmonias com outros músicos, que poderiam dobrá-las ou tocá-las sobre outras relações
intervalares, potencializa o efeito do privilégio do geral sobre o detalhe.

Percebem-se que “esbarrões”, harmonias alteradas por escapadas dos dedos, melodias
de contorno obscuro e trechos de sonoridade “embolada”, não são omitidos da gravação. Não
se trata de dificuldade técnica nem descuido com a obra. Trata-se de captar o momento da
performance e valorizar aspectos outros que não uma execução cristalina, ao que o próprio
pianista comenta sobre seu modo de compor, mas que também está refletido, cremos, em seu
modo de tocar:

Tenho a impressão de que consigo hoje colocar no trabalho a formação, a técnica de


composição que aprendi em conservatório e a emoção da música popular que para
mim é uma necessidade física. (Apud SILVA, 2005, p.11, Apud VILELA, 1998.)

3.2 Um piano de variações.

Paula V. Valente, em seu artigo intitulado “Improvisação no choro. História e reflexão”


traz uma discussão em que alguns dos parâmetros podem ser aplicados do mesmo modo como
Egberto interpreta suas músicas.

141
O alto grau de elaboração de algumas das composições de Gismonti - suas partituras
guia, na maioria das vezes, não são constituídas apenas de linhas melódicas e cifras, como é
um procedimento comum à musica popular escrita) torna dúbio seu modo composicional.
Esse aspecto afeta diretamente a interpretação por outros músicos da obra do pianista.
A dúvida, que essa maior elaboração da escrita gera nos intérpretes, está ligada à falta de
clareza na decisão do que é essencial à caracterização da performance. Assim sendo,
encontramos execuções bastante “fiéis” às partituras guia e outras em que muitos elementos
são alterados, como num improviso sobre a obra ou um arranjo com bastante liberdade.
Apesar de indicar elementos não descritos comumente, como o acompanhamento em
alguns dos casos, o tratamento que o pianista confere às próprias músicas é feito de maneira
mais próxima ao que se costuma fazer em execuções de música popular, pois:

O texto notado em forma de partitura pelo compositor popular prevê e deixa


espaços que serão preenchidos pelas singularidades, cultura e desejos musicais do
intérprete, ao mesmo tempo em que as suas práticas de performance, intrínsecas ao
processo de transmissão oral do conhecimento musical nos gêneros populares,
inspiram a escrita de seus compositores. (FABRIS Apud VALENTE 2010, p.274)

Percebe-se por procedimento comum a todas as performances do disco, o


desenvolvimento das músicas pela repetição das partes. E é nesse ponto que Gismonti se
aproxima do que seria “chorão” de seus próprios temas.

No choro, os temas geralmente apresentam grande invenção melódica e harmônica


e, por isso, a improvisação geralmente acontece mais ao nível da variação melódica,
da sugestão de alteração da métrica, da realização rítmica com sutilezas que parecem
escapar das possibilidades da notação e que imprime o assim chamado “molho” do
choro. (FABRIS Apud VALENTE, 2010, p.276)

Se comparadas a performances anteriores, podemos perceber que para a execução ao


piano solo, Egberto altera elementos estruturais das obras 83, porém com relação às repetições
internas das execuções de “Alma”, a citação acima se mostra bem representativa do modo

83 A rítmica do acompanhamento da seção B de Baião Malandro, por exemplo.

142
com que Gismonti trata suas repetições. O que se altera é uma espécie de “molho”.
O que podemos perceber ainda é que o “molho” em Egberto não é conseguido apenas
por variações e ornamentações na melodia principal. E ainda como um “chorão” a maneira de
se acompanhar também varia, tanto em questões sutis como articulação e dinâmica quanto nas
notas que as constituem, em alguns casos, como uma “baixaria” realizada pelos violonistas
acompanhadores no choro84.
O que torna especial a performance do pianista é o fato de uma mesma pessoa ser
responsável pela execução melódica, inspirada e ornamentada e também de um
acompanhamento não menos rebuscado. Obviamente um pode afirmar que “tocar piano”
necessita intrinsecamente dessa habilidade, entretanto, na prática, não é algo tão comum
encontrar pianistas que demonstram tamanha desenvoltura, principalmente por se tratar de
algo com um alto teor de improvisação, acumulando as duas funções de maneira tão
equilibrada, atenuando os desníveis de habilidade e raciocínio para cada uma das mãos.
Ainda que haja improvisação melódica sobre a estrutura harmônica das peças,
principalmente em Frevo, é menos comum que Gismonti amplie o discurso musical ao modo
jazzístico.
O que se pode dizer é que todos os parâmetros analisados se comportam, em algum
momento, como elemento de variação nas performances do pianista.

3.3 Forma:

A maior parte das composições presentes no álbum possui partes bem definidas e de
fácil diferenciação. Ainda assim, Gismonti traz à luz uma maneira de executá-las particular e
incomum.

Ainda que não seja de uso exclusivo do pianista, a concatenação entre as partes é que
nos chama a atenção. As sugestões de execução inscritas nos Lead Sheets da contracapa do
disco são uma pista da maneira em que o pianista as trata, tais como “repetir cada parte

84 É necessário compreender que a “baixaria” aqui citada como prática comum a Egberto em suas
interpretações no disco, não são constituídas necessariamente das características rítmco/melódicas
encontradas no gênero do choro. É encontrada em sentido metafórico indicando que Egberto mantém, em
alguns casos, acompanhamentos nos quais realiza ornamentos, frases, mudanças de articulação e de
dinâmica de maneira aparentemente improvisada.

143
quantas vezes quiser” (Baião Malandro), “improvisar quantas vezes queira!” (Frevo),
“repetir quantas vezes queira” (Infância), “repetir várias vezes” (Cigana).

Apesar das inscrições indicativas de liberdade formal serem encontradas apenas nas
quatro músicas supracitadas, pode-se dizer que a prática é comum a todas as músicas, com
diferenças.

O que é perceptível é que Egberto altera as formas das composições ao seu gosto. E na
obra estudada, o pianista não se limita apenas a repetir partes ou não. Também as altera,
adiciona e omite.

Metaforicamente, poderíamos inferir que as peças estudadas são como uma espécie de
quebra-cabeça, no qual as peças (partes) se encaixam independentemente de sua ordem, de
qualquer maneira.

Exemplos de irregularidade nas formas são encontrados das mais diversas maneiras. A
parte B de Baião Malandro apresenta números de compassos diferentes a cada exposição.
Assim como a opção por executar as frases 1(a e b) na parte sob o vamp característico da
mesma música não é regra.

Outro aspecto notável é que algumas das músicas de Egberto apresentam pontes e
seções que interligam partes. O fato curioso é que tocá-las ou não também nos parece uma
opção, como em Palhaço, onde os acordes sobre os quais ocorre o repouso da melodia ora
interligam repetições de partes, ora partes diferentes, ora são omitidos.

As exceções à prática do álbum são Loro e Água e Vinho. Estas últimas, por se
tratarem de composições de apenas uma parte, se constituem de uma sequência de repetições
“iguais”85

Essa maneira de executar as composições nos leva a crer que a prática é uma das
várias formas de improvisação encontradas em Egberto. Ou seja, o pianista muito
provavelmente opta pela escolha da próxima parte ou de uma possível repetição da anterior
durante a execução.

Além disso, fato não observável no disco estudado, Gismonti utiliza esse tipo de

85 Com exceção dá última repetição de Loro, na qual Egberto omite o último Refrão.

144
improvisação para junções de músicas e pout-pourri que realiza em apresentações 86.

3.4 Harmonia:

Encontramos basicamente duas formas de concepção harmônica nas peças de “Alma”:


estáticas e por movimentos de quartas e dominantes.

Quando tonais, as harmonias seguem, na maioria dos casos por movimentos de quartas
e relações de dominantes, dominantes secundárias e progressões II V I. O que é comum a
essas harmonias é a grande quantidade de inversões de acordes que fazem com que as linhas
dos baixos caminhem por graus conjuntos, facilitando, por exemplo, a execução dos
intricados acompanhamentos de Frevo, Karatê e Loro.

É possível notar também que não há rigidez nas cifras de Gismonti. Se tomarmos
como base a cifragem contida na contracapa do álbum, percebemos que o pianista deixa de
notar extensões de acordes que executa e não executa algumas das que escreve. Tornando a
tarefa de definição de acordes, principalmente nas músicas cujos acompanhamentos se fazem
de melodias ao modo contrapontístico, complexa e inexata.

Suas composições possuem poucas modulações, tendendo na maioria das vezes a uma
única tonalidade. O que encontramos são rápidos afastamentos dos centros tonais, por poucos
compassos, como algumas pontes que na maioria das vezes não constam nas partituras guia,
como em Infância ou Baião Malandro, logo compensados por uma dominante ou movimento
cromático que retoma a tonalidade principal.

É possível notar também a preferência por tonalidades que tendem à utilização de


notas bemolizadas, a única exceção é Maracatu.

As harmonias estáticas são encontradas principalmente da formação de vamps e


ostinatos, em peças cujos ritmos dos acompanhamentos, isoladamente, já possuem estruturas
pré-estabelecidas e ricas na maioria das vezes.

86 Como quando toca Forrobodó em apresentação em Montreal. Gismonti utiliza a parte B de Baião Malandro
como ponte para inserir citar uma música dentro de outra. Assim, em ordem diferente, com o B antecedendo
o A, o pianista executa Baião Malandro e usa a parte B também como retomada de Forrobodó.

145
Harmonias construídas pela condução de vozes.

É observável também em suas construções harmônicas, a manutenção de vozes dos


acordes ou suas mudanças por movimentos paralelos curtos. Suas progressões harmônicas são
permeadas de acordes com mais de uma nota em comum, fazendo com que o câmbio entre um
acorde e outro seja a alteração de apenas uma voz como, por exemplo, em Cigana, na qual o
caminho harmônico da seção A é construído quase que exclusivamente da alteração dos
baixos.

Assim como a progressão Iadd(omit3) – V(1a inversão) também muito encontrada, na


qual podemos perceber, exemplificando na tonalidade de Lá bemol, as seguintes notas
formando os acordes:

La b – Mi b – Sib → Sol – Mi b – Si b
87
Ao que, seguindo fórmula, a progressão poderia ser seguida de um Fsus7 – F7 que
geraria a seguinte condução, na qual, também encontramos mudanças de acordes pela
alteração de apenas uma nota do anterior:

La b – Mi b – Si b → Sol – Mi b – Si b → Fa – Mi b – Si b → Fa – Mi b – La

A recorrência desses movimentos é um indício de que a condução de vozes está,


muitas vezes, na gênese da construção harmônica de Gismonti, podendo também indicar
influência do instrumento, pois sabemos que esses movimentos são de fácil execução ao
piano.

3.5 Acompanhamento (e textura):

O acompanhamento não deve ser uma mera adição à melodia. Deve ser o mais
funcional possível e, nos melhores dos casos, atuar como complemento às essências
de seu assunto: tonalidade, ritmo, fraseio, perfil melódico, caráter e clima
expressivo. Deve revelar, também, a harmonia inerente do tema, estabelecer um
movimento unificador, satisfazer às necessidades e explorar os recursos

87 Como acontece em Loro.

146
instrumentais .O acompanhamento se torna uma questão imperativa se a harmonia
ou o ritmo são complexos. Na música descritiva, o acompanhamento contribui muito
para a determinação de uma sonoridade expressiva. (SCHOENBERG, 1991. p.106)

Podemos perceber, principalmente pela audição comparativa entre as execuções em


grupo e as de “Alma”, que na maior parte do tempo o acompanhamento não é, em Gismonti,
algo intrínseco à composição88. A maioria das peças traz grandes mudanças 89 nesse elemento,
deixando-o assim no âmbito do arranjo.
O que nos é perceptível é que como arranjador, a atenção dada por Egberto, ao que faz
principalmente, a sua mão esquerda - que agora “sintetiza” o que antes fazia um conjunto de
instrumentos - é grande.

Consideramos esse um dos elementos mais ricos no álbum estudado. A variedade


encontrada é grande e é nesse ponto que percebemos também os procedimentos mais
complexos, singulares e, acreditamos, definidores do estilo de Egberto Gismonti ao piano.

A importância dada a esse elemento é tão grande que muitas vezes é o “foco” principal
da música, levando a melodia a um segundo plano no espectro sonoro, como na seção C de
Infância, onde a variedade rítmica, sobre a qual os acordes são dispostos chama mais a
atenção do ouvinte do que a melodia executada 90.

Nota-se como tendência nos acompanhamentos em “Alma” uma divisão de maneiras


mais características, conforme os andamentos, as texturas e o caráter predominantes nas
músicas.

O primeiro grupo dessa divisão seria a das peças mais lentas e de caráter mais dolce
como Palhaço, Água e vinho e Cigana. O segundo grupo, agora de peças mais ágeis, dos
contrapontísticos como Karatê, Loro e Frevo. E o terceiro grupo, mais heterogêneo, de peças
mais estáticas e enérgicas, como Baião Malandro, Maracatu e Infância.

Ainda que extremamente desenvolvidos, não há rigidez quanto à execução 91. Não
soam como se fossem escritos e seguidos. São, assim como os “erros” encontrados, abertos à
88 Diferentemente do que ocorre com as harmonias e melodias que, ainda que se modifiquem, trazem
características muito semelhantes às das primeiras gravações.
89 Karatê, Loro e Frevo possuem “levadas” quando executadas nas primeiras versões gravadas, por exemplo.
90 Óbviamente a construção melódica da seção contribui para que se destaque a rítmica dos acordes.
91 O fato de Cigana se iniciar com um acompanhamento por figuração característico não faz, necessariamente,
que esse modo se mantenha durante toda a peça.

147
vontade do pianista. O músico parece ter uma ideia da sonoridade de um ponto ou outro e
altera como quer esse elemento para atingí-la.

De modo geral, um dos traços mais marcantes de Gismonti ao se acompanhar é a


inquietação, é como se o pianista não conseguisse ou se “entediasse” muito rapidamente com
uma forma pré-concebida e quisesse sempre alterá-la, modificando assim a cada repetição ou
quadratura, de modo sutil ou não. Se fôssemos apontar uma forma de acompanhamento
característica de Egberto, em vez de assinalar uma rítmica ou forma de disposição das notas
dos acordes, possivelmente a melhor indicação nas partituras fosse: “alterar ritmicamente a
mão esquerda quando quiser”

Melodias acompanhadas (primeiro grupo)

Nesse grupo de peças, podemos perceber uma forma de se acompanhar que destaca a
melodia principal. Encontramos principalmente uma mão esquerda tocada levemente mais
piano do que a direita e também movimentos harmônicos mais elaborados, conforme as
análises demonstradas.
Tem, por característica, maior simplicidade e regularidade rítmica, apesar de Cigana
ser composta de um desenho de figuração sincopado peculiar (que ainda assim não se
sobrepõe à melodia, funcionando majoritariamente como suporte a esta), geralmente
subdividindo os compassos simetricamente, deixando as polirritimias ocorridas mais em
função da variação rítmica da execução da melodia.
Há de se notar que apesar da maior parte do tempo, como em Palhaço, haver uma
figura, ou sequência linear sob a qual o acompanhamento é construído, permeando-o durante
toda a peça, o pianista não hesita em alterá-la. Fazendo com que os arpejos não sigam um
desenho padrão, tal qual uma seção violonística arpejada em que a ordem dos dedos da mão
direita (para um violonista destro) não fosse definida, podendo ser disposta ao gosto do
executante.
É importante também perceber que desenhos incidentais surgem vez ou outra e se
tornam vigentes por alguns compassos do acompanhamento, sendo logo abandonados pelo
pianista, que parte para outro, toca um acorde em bloco ou retoma às figuras utilizadas

148
anteriormente, por exemplo.

Quando em melodia acompanhada, o pianista parece preferir a utilização de acordes


em posição aberta e a não utilização de saltos, o que confere uma certa estabilidade à
composição das figuras realizadas pela mão esquerda, reduzindo sua tessitura e tornando-as
mais homogênea, ou seja, simplificando-as. Essa simplificação é auxiliada pelo fato de
Gismonti omitir muitas das extensões e as vezes notas básicas dos acordes que cifra,
diminuindo a densidade e deixando os mesmos se definirem com auxílio das melodias
tocadas.92
Percebe-se também funções bem definidas para as duas mãos. A direita responsável
pelas melodias e a esquerda exclusivamente destinada ao acompanhamento, havendo pouca
interferência de uma na outra.

O acompanhamento complementar de Gismonti (segundo grupo)

[…] Nos anos setenta, convivi por um longo período com Jean Barraqué, um
discípulo de Webern, e percebi que a qualidade ou propriedade do seu trabalho era
muito relativa; notei que eu tinha estabelecido um vinculo puramente racional com a
sua obra, desprovido de laços afetivos. O conceito estético e formal podia ser
analisado de modo muito profundo, mas não era absolutamente sentido. Para poder
compreender melhor aquilo a que Barraqué se propunha, cheguei a fazer uma
tradução e adaptação da “Bíblia dos Doze Tons”, denominada Introdução à Música
dos Doze Tons, de René Leibovitz. [...] Naquele momento eu não sabia que, quatro
ou cinco anos depois, terminaria por abominar a música do discípulo e do mestre.
Aconteceu algo muito curioso: comecei a adorar a forma escrita da música de
Webern, mas não tolerava ouvi-la em minha cabeça. Quando a lia, eu a ouvia em
minha imaginação e ela me agradava; mas, se a executavam, me aborrecia. Passei
um tempo com uma dúvida incrível, pois não conseguia discernir o que me agradava
ou desagradava em relação a Webern. Eu a escutava e sentia que era uma musica
desagradável, mas, por outro lado, os caminhos da partitura me faziam vibrar de
emoção. […] Concluir que a leitura de Webern é estimulante, pois impulsiona minha
criação, mas que, ouvida, a sua música não me diz nada, é uma conclusão muito real.

92 Destaque para os acordes formados apenas por suas fundamentais, quintas e nonas (maiores), maneira de
disposição bastante encontrada no disco.

149
E tão absurda quanto a necessidade do impulso criador (Depoimento de Gismonti a
FREGTMAN, 1991, p.26)

Segundo Dourado (2014, p.259), o pontinlhismo: “Termo derivado da pintura


impressionista (trabalhos de Seurat, principalmente), refere-se à técnica que deixa entrever
pequenos pontos sonoros, em vez de contornos melódicos definidos, a exemplo de certas
obras de Stockhausen.” E sobre as gravações de Gismonti, principalmente para piano solo,
CORRENTINO (2013, p.15) afirma que “anunciam uma abordagem de texturas pontilhistas”
dizendo ser estas “bastante presentes na música de Webern 93 e Barraqué94”

Encontramos aqui um exemplo da apropriação realizada por Egberto Gismonti. Não se


pode afirmar que o músico esteve engajado com a escola serial ou atonal, as quais vinculam-
se os dois compositores citados. Ainda assim, a percepção da presença de características das
suas músicas nas do pianista é perceptível (“A primeira revelação relativa ao impulso criador
teve uma estreita relação com a obra de Anton Webern” 95), ainda que o próprio músico afirme
um certo desafeto posterior às obras do compositor. Gismonti não faz música pontilhista,
“apenas” se utiliza algumas de suas características na ampliação de timbres, coloridos e
texturas de suas próprias composições.

Adicionamos ainda que esse tipo de característica é encontrada principalmente na


forma do acompanhamento do pianista. “Soltar a mão esquerda”, inscrição comum a Loro,
Karatê e Frevo, pelo menos em “Alma”, parece ter significado uma indicação para além do
fato de não haver uma “levada” ou acompanhamento pré-concebido, contribuindo na geração
de uma forma textural mais específica. Como se o pianista estimulasse os intérpretes a uma
maior fragmentação das figuras realizadas, nos respectivos acompanhamentos das peças em
questão.

Dois aspectos afastam a abordagem “pontilhista” de Gismonti em “Alma” da obra dos


dois músicos citados anteriormente. Primeiramente, as três peças do álbum, cujos
acompanhamentos são executados a esse modo possuem caminhos harmônicos
predominantemente tonais. Assim sendo, podemos perceber que, além de pontuar trechos da

93 Anton Friedrich Wilhelm von Webern (03/02/1883 – 15/07/1945)


94 Jean-Henri-Alphonse Barraqué (17/01/1928 – 17/08/1973)
95 FREGTMAN, 1991

150
melodia e repousos, os pequenos fragmentos melódicos executados por Gismonti pontuam
também “notas chave” e extensões de acordes e suas mudanças 96, criando assim uma textura
que poderíamos, ilustrativamente nomear por “contraponto tonal pontilhista”.

Ainda que não siga as regras de condução de vozes do contraponto, as frases de mão
esquerda do pianista se utilizam majoritariamente de notas dos acordes, o que, desse modo,
remete a peças polifônicas para teclado como as “invenções a duas vozes” 97 de J.S.Bach, por
exemplo.

Egberto se afasta também dos dois compositores supracitados pelo modo improvisado
com que realiza a textura referida. As várias repetições mostram que, da maneira com que
ocorrem, seria demasiadamente trabalhosa e, provavelmente desnecessária e de difícil
execução, a escrita do que realiza a mão esquerda do pianista.

Levando em conta a textura e o fato de muito do que é executado ser improvisado 98,
acompanhar-se dessa maneira exige habilidades bastante específicas dos intérpretes
principalmente no que concerne a independência rítmica e melódica das mãos e também o
conhecimento das notas que formam os acordes.

O pianista intérprete necessita estar disponível para a ocorrência e a coexistência,


durante a performance, de ritmos complexos, às vezes até mesmo cruzados, como na seção B
de Frevo. E também acentuar frases e trechos cométricos e contramétricos, sem que isso afete
a fluência e a coerência do discurso musical, ainda que a sonoridade desejada seja recortada e
aparentemente caótica. É interessante notar que as frases da mão esquerda podem ser bastante
breves, o que contribui para um dinamismo rítmico somente alcançável quando a técnica não
se configura como um empecilho ao pianista.

Quanto ao conhecimento das notas formadoras dos acordes, destacamos a ligeireza em


que as três peças citadas ocorrem. É perceptível que impulsos motores ou necessidades
fraseológicas ocorrentes durante a performance desviam o posicionamento das mãos,
obrigando assim o pianista a encontrar rapidamente soluções em notas que ligam acordes aos

96 Percebidas em detalhe nos excertos do capítulo anterior e integralmente nas transcrições realizadas pelo
autor.
97 Série de peças contrapontísticas para teclado de J.S.Bach
98 Como já referido nas análises, acreditamos que, embora não sejam tocados, hajam shapes que perpassam
muitos dos acordes durante o desenvolvimento dessa forma de se acompanhar, levando à improvisação a
ordem de ocorrência das notas e suas rítmicas.

151
seus sucessores, sendo necessários até mesmo a realização de amplos saltos, aparentemente
não previstos. É interessante observar que esse acompanhamento tende a contemplar a região
médio-grave do piano, auxiliando em sua clareza.

Curtos trechos de “levada” são encontrados durante o desenvolvimento da textura,


mostrando que Egberto se dá a liberdade para, ainda que haja uma indicação e esta possa
significar algo específico, não tratá-la como regra podendo subvertê-la quando quiser.

Alternância (figuras fixas e melodia acompanhada)

O terceiro grupo de acompanhamentos constitui-se de peças que se alternam entre


figuras mais elaboradas de acompanhamento como vamps, ostinatos e levadas de caráter mais
estáticos com momentos de maior movimentação.

A diferença deste para o primeiro grupo situa-se principalmente na importância


reservada ao quesito nas peças. Potencializado em Maracatu, o elemento em comum a esse
grupo de peças é o fato de que, em algum momento ou seção, o acompanhamento obtenha
destaque nos planos sonoros, transformando-se no que acredito ser, o “assunto” principal da
música.

Em contraste aos vamps e ostinatos, encontramos nessas peças seções de maior e mais
rápida movimentação harmônica, como as partes C, de Baião Malandro e Infância, onde
podemos perceber também trechos de melodia acompanhada.

Nesses trechos, percebe-se a presença de elementos típicos de outros músicos como os


“pianeiros” brasileiros Ernesto Nazareth ou Chiquinha Gonzaga, remetendo, principalmente
nas figuras rítmicas executadas, muitas vezes às maneiras com que os pianistas acima citados,
desenvolviam a mão esquerda de seus tangos, maxixes e outros gêneros. Ou então dos
pianistas de “ragtime”, como Scott Joplin, cuja divisão dos acordes, geralmente “quebrados”
utilizando-se dos baixos em oitavas mais graves, um dos traços presentes em Egberto.

152
Fig.108: Trecho de “1922” de Ernesto Nazareth (1922). Percebe-se que o acompanhamento é padronizado. 99

Fig.109: Trecho de Baião Malandro, com figuras rítmicas que parecem remeter ao estilo de Nazareth, porém de
maneira menos padronizada: cada compasso apresenta uma combinação diferente de figuras.

O que pode ser mencionado novamente em Gismonti é sua inquietação. Percebe-se


que o pianista utiliza figuras rítmicas semelhantes às utilizadas por esses pianistas, mas,
mesmo que as utilize, faz de modo menos padronizado, menos comportado, variando-as e
tratando como uma espécie de “indicação” de maneira de acompanhar e não como se aquelas
notas em tais disposições e rítmicas, fossem o acompanhamento em si.

O padrão semicolcheia-colcheia-semicolcheia, amplamente utilizado pelos pianistas


brasileiros citados, também é muito encontrado nas figuras de mão esquerda de Gismonti.
Encontrados na repetição de blocos de acordes, ou na disposição rítmica das notas nos
arpejos, temos nessa figura um pilar para o que o pianista realiza em seus acompanhamentos.

Porém, o que é realmente característico em Egberto é a subversão, as brincadeiras, que


aqui são encontradas em grande quantidade. O notável (aqui) não é o fato do pianista utilizar
figuras já recorrentes e sim como o pianista as altera. O que não encontramos nos pianistas
citados são quiálteras como quintinas100 gerando polirritmias ou a presença de sequências de
notas pontuadas deslocando temporalmente as mudanças de acordes, fazendo com que um

99 Disponível <http://www.ernestonazareth150anos.com.br/Works/view/15>
100 Seção B2 de Baião Malandro.

153
“caia” no “lugar” de outro, enquanto a mão direita segue normalmente realizando uma
melodia ou figura, gerando a impressão, obviamente falsa, de que o pianista se perdeu e não
mais consegue tocar de maneira “correta”101. Sensação que é logo frustrada, quando o pianista
retoma facilmente a ordem “natural” de tempos e quadraturas. Essas brincadeiras rítmicas
com formas comuns de acompanhamento são um traço de Gismonti ao piano solo menos
encontrado em outros músicos.

Além da liberdade e firmeza rítmica mais óbvia, necessária à execução dessas


quiálteras, “pontuadas” e ritmos cruzados, a grande quantidade de saltos, muitas vezes amplos
e ligeiros, sob os quais algumas dessas figuras são executadas, requerem outra habilidade do
pianista que é uma boa “pontaria”.

Sobre essa questão, SILVA (2005. p.52) afirma que “[...]a maioria dos saltos é
realizada sem olhar para o teclado, e com grande precisão. Seu rosto permanece grande parte
do tempo olhando para o centro do teclado”. Ainda podemos perceber a acuidade desses
saltos, segundo Egberto, se dá pelo fato de que o pianista “desistiu” de olhar para o teclado
enquanto os realizava e também por seu posicionamento ao piano, como afirma:

Eu não sei precisar data... Isso vai acontecendo devagar. De uns 10 anos pra cá,
quando eu passei a não mais olhar para o teclado, porque se não eu me confundia, eu
não me mexi mais. Eu me mexo pouquíssimo. E por quê? Porque para que eu toque
e acerte qualquer distância, eu tenho que estar muito bem localizado. (Depoimento
de Gismonti a SILVA. 2005, p.52)

3.6 Melodia:

Se há uma característica comum à grande variedade de construções melódicas em


“Alma”, ela está contida na irregularidade, o que pode nos remeter à sua gênese. A tarefa
aparentemente simples da divisão fraseológica de seus temas, apresenta-se reveladora desse
aspecto, pois explicitou, por conta de sua ambiguidade e grande necessidade de interpretação,

101 Como no acompanhamento de “ragtime” executado em Baião Malandro.

154
esse ponto

Surtindo efeito direto nas formas das músicas, também irregulares na maioria das
vezes, podemos perceber frases que, em sua construção, são dotadas de uma assimetria que
nos remete a uma característica do modo composicional de Gismonti: a pouca preocupação
formal ou a capacidade de fazer com que suas composições não externem processos utilizados
de maneira óbvia.

É interessante notar que esse aspecto é aqui apontado positivamente no pianista


compositor, pois, como vimos, o músico possui formação musical formal e se essa
característica foi percebida pelas análises das performances, indica, nesse processo, algo
aparentemente “intencional” 102.

Essa constatação nos permite inferir que o modo de composição, principalmente


quando levamos em conta elementos como desenvolvimento temático ou motívico, se mostra
bastante intuitivo e prático. O fato é que não podemos perceber complexas relações
composicionais, ou seja, o pianista parece recorrer poucas vezes a soluções teóricas ou
“matemáticas” para o arremate de suas composições, o que nos faz especular que grande parte
da prática de criação de Egberto surge de improvisos e de experimentações ao instrumento.

Ainda assim, não foram nas construções melódicas ou na gênese, que pudemos
encontrar os elementos mais identitários de Gismonti, mas sim em suas execuções e maneiras
de interpretá-las.

O que impressiona em suas execuções ao piano é a quantidade de vezes em que as


melodias são repetidas, sendo o recurso, em algumas das performances, o único no
desenvolvimento da peça. Fazendo assim com que o já referido “molho”, ainda que não se
refira apenas à execução melódica e extremamente dependente do momento da performance,
possua importância primária para a riqueza musical encontrada no disco, repetições que
podem variar em poucos elementos.

Alguns recursos foram mais comumente encontrados nas “repetições”. Os elementos


mais utilizados por Egberto, para que suas músicas fossem tocadas com “molho”, foram a

102 O que entendemos por intencional não é a vontade de ser irregular em suas construções para afirmar algo ou
simplesmente “ser diferente”, mas sim a vontade de que esses elementos, teóricos, não sejam limitantes para
a maneira em que o músico compõe.

155
mudança de oitavas, a variação rítmica e a ornamentação melódica.

Como é comum à pratica dos Lead Sheets, a tessitura da melodia é geralmente escrita
dentro do pentagrama da clave de sol mais para que a leitura seja facilitada, do que como uma
indicação real da tessitura da execução. Em Egberto ocorre do mesmo modo. Suas melodias
parecem não ter uma tessitura específica para que sejam tocadas. Isso faz com que o pianista
utilize amplamente a alternância de “oitavas” nas quais são realizadas. Essa alternância ocorre
de várias maneiras: na repetição de seções, como em Karatê, que as partes A, repetidas,
ocorrem sempre em oitavas diferentes, ou em Baião Malandro cuja seção C é tocada, como
regra apenas na execução do álbum, três vezes, uma oitava acima a cada repetição.

O recurso é também utilizado internamente às partes, como em Frevo e Cigana, nas


quais encontramos um trecho de uma seção em uma oitava e o posterior em outra, ou até
mesmo uma única semi-frase, em uma oitava diferente da qual a melodia da seção vem sendo
executada. Pode-se dizer que Egberto varia ao seu gosto a tessitura de qualquer trecho de suas
músicas, não havendo regras para isso.

A mesma relação pode ser encontrada no tratamento rítmico das frases que constituem
seus temas. A indiscutível fluência rítmica do pianista torna esse tipo de variação das frases
um dos recursos mais importantes do “molho” performático de Gismonti. São raros os
exemplos de reexposições melódicas cuja rítmica busca ser a mesma da execução da parte
anterior. E se tomarmos as partituras encontradas como referência, podemos perceber também
que são apenas guias nesse aspecto.

O que percebemos na performance do pianista é uma espécie de bricolagem melódica.


Uma escapada de um dedo ou a execução de um ritmo incidental em uma semi-frase pode ser
a força motriz para uma nova exposição em que essa escapada ou alteração rítmica esteja em
evidência. Como podemos encontrar em uma das repetições das frases iniciais de Frevo, cuja
rítmica era constituída basicamente de semínimas e colcheias e que a incidência de uma
tercina impulsionou toda uma reexposição com a rítmica alterada, enfatizando a quiáltera
realizada. Desse modo, a utilização, muitas vezes enfática, de ocorrências aparentemente
incidentais, faz com que qualquer “desvio” possa se tornar, inclusive, material temático ou de
variação, exemplificando o que o pianista nomeia por “abertura” ao afirmar que aceita suas
próprias contribuições involuntárias. Essa maneira de se apropriar desses acontecimentos

156
torna dúbia ao ouvinte/analista a intencionalidade ou não de aspectos da execução melódica
de Gismonti.

É interessante notar que essa “bricolagem” melódica varia no nível de afastamento do


que seria a melodia principal básica fazendo com o que por vezes se restringiria a bordaduras,
apojaturas e outros elementos de variação muito encontrados em Palhaço, acabe por se
estender à improvisação ao modo jazzístico, como em Frevo.
Ainda que mereça um estudo à parte, nota-se que, mesmo quando o pianista se dispõe
à prática, é raro um grande afastamento do material temático e que o improviso ocorre quase
sempre numa “região” na qual ocorre também o desenvolvimento temático. É corriqueira a
reiteração de frases do tema nas improvisações e pode-se perceber que a divisão fraseológica,
ainda que irregular em sua concepção, tende a se repetir.

Ressaltamos que esse é um dos aspectos do trato melódico do pianista, especialmente


desenvolvidos em Frevo e Loro, músicas cujas partes são reexpostas muitas vezes. Há peças,
Cigana e Água e Vinho por exemplo, em que a execução melódica é bem menos variada.

Dos vários recursos utilizados, um merece destaque por ser amplamente utilizado ao
longo do disco: a repetição de notas pela mão direita. O pianista se utiliza desse artifício nas
mais variadas situações.

Independente do andamento e, principalmente, repetindo apenas uma vez cada nota de


uma sequência de uma escala ou arpejo, ao ter a primeira nota no contratempo, faz com que a
“nota repetida” coincida com pulso da música como se fossem as repetições anacruzes
internas a cada tempo do compasso. O procedimento pode ser encontrado tanto na construção
das melodias temáticas quanto nas variações e improvisos.

Como material temático, encontramos em Água e Vinho e Loro103:

103 Devido ao andamento extremamente acelerado da execução de Loro no álbum estudado, Gismonti omite
algumas dessas repetições. Na primeira versão, do álbum “Sanfona” (EMI-Odeon, 1981) assim como na
partitura guia, o procedimento é mais claramente percebido. Ainda assim, o recurso é bastante utilizado na
performance de “Alma”, ainda que não sistematicamente.

157
Fig.109: Notas repetidas em Água e Vinho.

Fig.110: Notas repetidas em Loro

Como improviso e variação, temos como exemplos os encontrados em Frevo e Palhaço:

Fig.111: Notas repetidas em Frevo

Fig.112: Notas repetidas em Palhaço

158
Melodia em plano de fundo.

Outro fato curioso é que nem sempre as melodias são o elemento principal da
composição. Como referido nas análises e nas referências aos acompanhamentos, algumas
melodias parecem ter importância secundária nas peças, como em Maracatu, cuja levada da
mão esquerda parece o “astro” da composição e a parte C de Infância na qual a melodia,
repetida várias vezes soa como um palco para a grande quantidade de jogos rítmicos da mão
esquerda do pianista. Percebemos também trechos sem melodia, como a seção B de Baião
Malandro.

“Gestualização” de melodias

O termo gesto, como a maioria dos termos usados na análise musical, é emprestado
de seu sentido mais genérico e corporal e pode sugerir algo no sentido de um
movimento que tem um percurso (começo, meio e fim) e que apresenta uma
intervenção no ambiente, revestida de significado. Trata-se também do seu caráter,
muitas vezes espontâneo, instantâneo, intuitivo e pontual – pois emana de sistemas
que estão implícitos, e por isso, pode gerar respostas “automatizadas” ((nesse caso,
numa síntese passiva) – que caracterizam, neste contexto, a atuação de um
músico/improvisador. (COSTA, 2002, p.8)

Algumas das melodias executadas em “Alma”, principalmente as desenvolvidas em


alta velocidade, como algumas percebidas em Baião Malandro, Karatê ou mesmo em
Palhaço, reforçam um sentido da performance solo de Egberto, que é a ênfase no gesto
musical, no qual parece importar mais um movimento de maneira geral do que cada nota
separadamente. Sobre o assunto , Costa ainda afirma que:

Deste modo, este caráter intuitivo do gesto se contrapõe, na análise musical, a uma
intervenção mais premeditada e estruturada própria do ato do compositor” “É
importante ressaltar que o procedimento de um compositor pode também se dar no
contexto de sistemas e ser considerado, da mesma forma que a intervenção de um

159
improvisador, gestual (pois, automatizada).(COSTA,2002, p.8)

Ao afirmar a valorização de aspectos macroscópicos em suas obras, Gismonti optou,


dificultando inclusive a transcrição, por trechos nos quais as melodias não são executadas
como escritas ou como tocadas em performances anteriores. Alguns excertos melódicos agora
aparecem como “borrões” que percorrem caminhos, arpejos ou trechos de contornos antes
mais bem delineados, “gestualizando-os”.

3.7 Dinâmica:

Do ponto de vista técnico, o pianismo de Gismonti apresenta um grande virtuosismo,


marcado por agilidade e facilidade digital. Do ponto de vista interpretativo, possui
uma rica palheta sonora, graças à diversidade de toques e dinâmicas que consegue
extrair do instrumento. Podemos dizer que essa riqueza de sonoridades está
diretamente relacionada à adaptação física que ele encontrou com o instrumento.
Seus recursos pianísticos são fruto da liberdade e flexibilidade dos seus braços,

pulsos e mãos (SILVA, 2005. p.69)

Como é comum à prática das músicas notadas por Lead Sheets, não há menção a esse
elemento nas partituras encontradas. Isso não faz, porém, com que a dinâmica seja pouco
desenvolvida no álbum.

No entanto, apesar de algumas das seções das peças possuírem uma média de
dinâmica, tendendo ao forte ou ao piano, temos esse aspecto da performance, assim como
muitos outros, como elemento de variação e improvisação.

Sobre o assunto, o próprio músico diz:

… não posso jamais escrever e entregar porque se acabaram os dias em que as salas
de concerto eram o local de se tocar música. Hoje se toca em botequim, em clube...
Todas as salas de concerto tinham condições acústicas de se tocar aquilo que estava
escrito. Hoje não existe... Não adianta estar escrito...depende da qualidade do
instrumento. Você não vai conseguir [realizar em] piano e você vai tocar mal a
música... (Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.29).

160
Entretanto, as condições de gravação de “Alma” pareciam ideais ao desenvolvimento
desse aspecto nas peças. Muito da expressividade encontrada no álbum e dita sobre a forma
com que Gismonti toca, fica a cargo de como cada frase é desenvolvida sob o prisma da
variação de intensidade das notas tocadas. O que pudemos perceber foram pelo menos três
maneiras de se comportar perante a essa variação.

Primeiramente, variações mais sutis são desenvolvidas sob cada frase, semi-frase ou
motivo. Como numa espécie de dinâmica natural intrínseca, que mesmo numa transcrição
detalhada ou caso fossem as peças escritas, não haveria necessidade de sinalizá-las ao
executante. Gismonti parece não se descuidar desse elemento por um momento sequer e,
ainda que pareçam movimentos naturais não intencionais, impregnam o resultado sonoro do
disco.

Segundo, outro uso bastante comum, refere-se a uma variação de sonoridade mais
artificial e fortuita. São movimentos de crescendo e decrescendo, em alguns casos de grande
amplitude e curta duração, que não parecem conectados às mudanças de partes ou a alguma
frase específica. Encontrados algumas vezes em pontos de repouso das melodias ou mesmo na
execução delas, esses movimentos são geralmente súbitos e surepreendem o ouvinte por
poderem ser apreendidos como algo que ocorreu apenas por conta da vontade do pianista.

Um terceiro uso comum ao álbum refere-se, principalmente, à liberdade de Gismonti


para o tratamento de todos os tópicos abordados neste estudo e, novamente, como o pianista
se utiliza de vários recursos como forma de improvisação. Encontramos nas performances
trechos estruturais ou improvisatórios, que têm suas repetições sob dinâmicas completamente
diferentes das quais foram expostas. Um trecho executado sob um fortíssimo pode facilmente
ser repetido sob um pianíssimo, seguido ou não de um crescendo, mostrando que poucos
elementos são encarados como fixos em suas obras e que a improvisação em sua prática não
tem na dinâmica apenas um auxílio ou reforço, e sim um elemento que pode ser o “assunto”
em si, de maneira com que outros aspectos, como as notas tocadas inclusive, variem pouco ou
nem isso.

Vale ressaltar também que as variações de dinâmica não se dão apenas em


movimentos rápidos ou súbitos. Podemos encontrar crescendos e outros movimentos de longa
duração apontando para o grande controle do pianista. Também como exemplo desse controle,

161
podemos citar a clareza na diferenciação entre as mãos. Mais comumente encontramos a
direita mais forte que a esquerda. Como já dito, entretanto, muitas vezes o acompanhamento
ganha aspectos de elemento principal tendo a dinâmica como o maior auxílio na distinção dos
planos. Esse fato subverte a ordem dominante fazendo com que a mão esquerda seja tocada
mais forte do que a direita, sem aparentes dificuldades por parte do músico.

É também interessante notar, embora seja tarefa mais complexa, que entre as peças
existe variação de dinâmica. A maior complexidade da percepção é devida aos recursos de
manipulação sonora comuns posteriores à captação (como a mixagem e masterização).
Principalmente os processos de “diminuição” de volume como compressores e “limiters” 104,
que atenuam as grandes variações desse elemento, somados a uma busca por uma média de
volume geral do disco, coerentes com a execução em locais não completamente apropriados à
audição como os estúdios, eliminam grande parte da variação de dinâmica executada pelo
músico fazendo com que as músicas sejam tocadas, na medida do possível, numa faixa de
volume similar. Porém, a variação de dinâmica altera também o timbre das notas e do
instrumento. E é nesse aspecto que se faz necessário o enfoque para que perceba que, mesmo
no resultado final, o disco, Palhaço e Baião Malandro sejam encontradas em volumes
semelhantes, suas execuções foram feitas sob dinâmicas extremamente diferentes. Essa
atenção à variação timbrística reforça o cuidado na realização perceptível das performances.

Diferentemente do que ocorre na prática comum à música popular, em que a dinâmica


tende a variar pouco, Egberto dá exemplos da importância desse parâmetro em sua
performance, deixando assim à mostra sua formação e seu domínio técnico do instrumento,
sendo, consequentemente, um diferencial de seu estilo.

3.8 Articulação

Também não são encontradas nas partituras guias indicações sobre como se deve

104 Compressor / limitadores foram originalmente introduzidos no estúdio para impedir os picos de distorcer ou
saturar. Esses recursos são funções de volume; seus principais objetivos são abaixá-lo. Eles o fazem quando
fica muito alto, isto é, quando vai acima de um certo volume limiar. Quando o volume é inferior ao limiar, o
compressor / limitador não atua. (Tradução nossa) (GIBSON, 1997, p.31)

162
articular as partes das músicas do álbum. Contudo, algumas inferências podem ser feitas, a
titulo de leitura do intérprete, pelas indicações de caráter das peças, como “com amor” ou
“melancólico e calmo”, podendo sugerir a preferência por articulações mais legato e uso do
pedal, por exemplo. Mas esse aspecto, ainda que não escrito nem sugestionado, parece melhor
definido nas peças, ou seja, as repetições de seções ou trechos tendem a repetir, de maneira
similar, a articulação da exposição anterior.

O fato é que encontramos na articulação executada por Egberto outros exemplos de


seu domínio técnico ao piano, que se estende também à proficiência do uso do pedal de
sustentação do instrumento.

O que nota-se de importante quanto a seu uso são as várias maneiras de aplicabilidade
do artefato e que, também, a articulação predominante de um trecho não impossibilita a
utilização ou a retirada deste que é um recurso que tende a levar os trechos ao legato. Ou seja,
o fato de um seção ser predominantemente staccato ou non legato não impede que Gismonti
acione o pedal direito realizando curtas ligaduras de expressão ou vice-versa 105

O pianista também utiliza o artefato como auxílio a frases de difícil execução técnica
ou à criação de novos coloridos e texturas. Algumas das frases “nebulosas”, em que as
melodias são mais dificilmente percebidas, encontramos, por exemplo, uma forma de uso do
pedal direito menos convencional. Há momentos em que o pianista intencionalmente aciona,
deixando-o permanecer enquanto realiza rápidas frases em regiões mais graves, gerando uma
grande sobreposição de harmônicos, que contribuem para sonoridades puramente gestuais e
indefinidas.

Uma outra forma de utilização desse recurso se dá na suavização das transições entre
partes que envolvem mudanças de articulação. A antecipação da pedalização, que pode
aparecer com utilização parcial (meio pedal) ou com o uso intermitente que se adensa com a
proximidade da nova seção é responsável pela criação de uma espécie de amálgama entre as
partes. Isso acontece quando o pianista tem por intenção que transição não seja brusca, algo
que também ocorre.

É importante também notar como o pianista não necessita do uso pedal para a criação

105 Uma audição atenta de Frevo é representativa de como o pianista aciona o pedal em trechos curtíssimos
contribuindo para a expressividade do toque.

163
de texturas densas ou de sonoridade híbrida106 no que concerne a articulação, realizando o que
é comumente nomeado por “pedal de dedo”.

Assim como pode-se observar quando se trata da dinâmica, algo que chama a atenção
é a maneira com que o pianista está apto a articular de forma independente cada uma das
mãos, como na parte B de Frevo, que o pianista articula a melodia de maneira mais legato e o
acompanhamento de modo mais staccato.

Ainda que seja melhor definido, podemos perceber que o pianista brinca com esse
aspecto de suas próprias músicas como na seguinte citação, na qual havia uma partitura com
indicações para esse parâmetro:

Na primeira vez que tocou esta seção, Egberto não seguiu o texto que havia escrito e
optou por uma interpretação diferente, dando continuidade à atmosfera ressonante e
ligada criada na introdução. Egberto modifica o caráter desta primeira seção,
imprimindo-lhe um aspecto mais expressivo, lento e ligado. (SILVA, 2005. p.38).

O fato citado também ocorre em “Alma”, mas não com relação a uma partitura e sim
relacionando-se a uma exposição anterior. Uma mesma seção pode ser tocada com
articulações opostas ao gosto do pianista, mostrando também grande liberdade e reforçando a
tese de que todos os itens estudados aparecem como formas de variação e dependem apenas
da necessidade musical momentânea do compositor/performer. Ainda que nesse caso, as
variações soem menos fortuitas que as mudanças de dinâmica.

Essas mudanças de articulação são principalmente percebidas em Gismonti como


elemento de contraste nas composições. São raras as peças no álbum que não alternam
momentos predominantemente legato com outros, cuja predominância é de articulações
staccato ou non legato107.

106 Consideramos a primeira exposição do A de Infância o melhor exemplo dessa densidade alcançada sem
pedalização. O pianista executa as frases da melodia e, logo em seguida, ataca os baixos com a mão direita
em oitavas inferiores às do ostinato. A diferença é que, para manter a clareza do movimento em
semicolcheias da mão esquerda, Egberto realiza a sustentação das notas dos baixos mantendo-os
pressionados, sem auxílio do pedal.
107 Cigana e Água e Vinho foram as duas únicas peças em que a articulação permaneceu similar durante toda a
execução.

164
Ainda que essa variação permaneça exclusivamente no âmbito da performance, como
no caso de Palhaço, que a alteração da articulação vigente só ocorre em algumas das
repetições das seções de improviso, quebrando assim a predominância do legato. E percebe-se
também que o recurso é usado na concepção (composição ou arranjo) das peças como Frevo e
Karatê, músicas em que notavelmente predominam articulações non legato e que podemos
encontrar partes D e C, respectivamente, sob articulações opostas.

3.9 Ao piano solo

Se há uma característica para o piano solo de Egberto Gismonti, em comparação ao


que o músico realizava em seu trabalho em grupo, é a do aumento considerável da liberdade
de modificação de qualquer elemento das peças.

Ainda que pareça óbvio a qualquer improvisador que se disponha a tocar sozinho, este
traço em “Alma” faz com que o pianista altere o que quiser sem partir para uma improvisação
livre, o que, por exemplo, algumas das alterações momentâneas executadas pelo músico
poderiam induzir, caso fossem tocadas em grupo.

Durante a performance, a ausência de outros músicos 108 fez com que Egberto pudesse
modificar melodias sob vários aspectos, como vimos, variasse mais a dinâmica e a articulação
de trechos e também se comportasse mais livremente com relação à agógica das peças,
modificando os andamentos mais despreocupadamente, adicionando fermatas onde antes não
havia, como em Palhaço, ou até adicionando trechos de improvisação nos quais alguns
chorus são tocados em andamentos muito diferentes do restante da música, sem que houvesse
mudança de seção, como em Frevo, por exemplo.

Como pudemos perceber, as alterações não se deram apenas no campo da


interpretação. Loro, Frevo e Karatê não eram acompanhadas do modo “pontilhista” como
foram em “Alma”. O vamp inicial de Baião Malandro, apesar da tonalidade, também sofreu
alterações estruturais, assim como seu ostinato de mão direita que remete à figura realizada
por um acordeon.

“Alma” parece remeter-nos aos “núcleos” das composições de Gismonti. A


108 Há outros músicos no disco, porém não há gravação simultânea “ao vivo”

165
“transposição” para piano solo parece ter ocorrido de modo como se Egberto houvesse
desmontado algumas das composições e composto novas, utilizando-se de alguns de seus
elementos e modificando outros, fazendo assim, com que esses arranjos não fossem meras
adaptações ou reduções do que era realizado em grupo e sim recriações.

E, ainda que todas (ou nenhuma das) as peças tenham sido compostas ao piano e
depois expandidas aos grupos, percebemos, pela adaptação ou readaptação ao piano solo, que
os “núcleos” de algumas dessas músicas – os quais não arriscaríamos apontar pela crença de
que mesmo estes variam de época em época até mesmo para o próprio artista – podem residir
em aspectos que vão além de uma melodia, harmonia ou nota em si, sendo uma célula rítmica,
uma tonalidade ou uma coloração/clima, de maneira bastante abstrata.

166
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] Segundo passo, que é também um ato de liberdade: estar preparado para que o
intérprete mostre a ele (o compositor) o que existe de bom, de ruim, ou coisas que
ele, compositor, não havia pensado, e que são muito melhores do que a própria idéia.
Para admitir que o intérprete criou notas melhores do que aquelas que você pensou,
você tem que ter uma capacidade de liberdade tão grande, que ela é fundamenta no
seguinte: [...] não tira o crédito do compositor, porque o compositor é que estimulou
a interpretação, que estimulou o compositor. Dar e receber é isso... (Depoimento de
Gismonti a SILVA, 2005, p.28)

Sendo ao mesmo tempo o compositor e o intérprete, ao afirmar que em suas


performances da época, já se sentia “disponível a tocar o que ouvia, não o que havia
preparado para tocar”, Egberto ilustra bem o que foi possível depreender de suas execuções
no disco: a flexibilidade.

Flexibilidade essa, que é alcançada além de sua concepção musical, pelo domínio
técnico que possui do instrumento. O que notamos é um pianista com recursos para poder dar
variedade e interesse às suas performances por caminhos extremamente sutis - como uma leve
mudança rítmica de uma melodia ou até mesmo pela alteração de sua dinâmica em relação à
execução anterior - ou a combinação de muitos tópicos, como a mudança brusca de uma parte
de articulação predominantemente legato para outra, ainda não executada, cuja forma de se
acompanhar é modificada, assim como sua articulação, e sob a qual a melodia ganha notas
extras, ou é tocada em blocos.

Essa disponibilidade técnica auxilia e enriquece as performances do pianista. Faz,


como vimos, com que o músico não recorra sempre a apenas um tipo de variação - a
improvisação jazzística por exemplo - ainda que preferências sobre os elementos a variar
tenham sido depreendidas e descritas nas análises e transcrições, podendo recorrer a maneiras
menos usuais como mudanças rápidas no acompanhamento.

Algo também notável das execuções é que a técnica parece não ser – ou é raramente –
o aspecto principal da performance. Apesar de poderem ser encontrados muitos trechos de
difícil execução como acompanhamentos permeados de longos saltos, polirritmias ou

167
melodias em alta velocidade, são sempre em auxílio de uma musicalidade fluida cuja riqueza
é intrínseca. Sobre isso, Gismonti afirma:

Não penso em braço, em toque, nada. Penso só na música, porque o corpo está
preparado para tocar a música que eu ouço. E são 40 anos treinando para isso.
(Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.51)

Não há como não destacar o desenvolvimento técnico ao qual chegou a mão esquerda
do pianista. A capacidade rítmica e melódica, além da independência com relação à direita
demonstradas por Gismonti ao utilizá-la – conferindo enorme riqueza aos acompanhamentos
– constitui, creio, uma característica técnica e estilística potencializada no pianista, um
diferencial.

Preferimos constatar porém, que não encontramos um estilo pianístico ou musical em


Egberto apenas. Gismonti se mostra um pianista de várias facetas, múltiplo. O mesmo
instrumentista que desfere golpes em fortíssimo na região grave do instrumento em Baião
Malandro executa melodias cantabile em Cigana. O pianista que varia o acompanhamento
em curtíssimos espaços de tempo em Infância, inquieto, é o mesmo que repete uma mesma
figura, durante todo o percurso musical de Água e Vinho.

Essa multiplicidade que lança o pianista a tocar um “frevo que parece dobrado com
traços da música pontilhista de Webern” ou um Baião Malandro, mais “malandro” que
“baião”, reforça traços de uma formação “musical”109, também múltipla, passando pela
conclusão do curso no conservatório musical ao título de “caraíba cantador”110 atribuído pelos
índios do Alto Xingu.

Acreditamos, no entanto, que a característica mais presente no modo com que Egberto
trata suas composições, seu “traço estilístico maior” é a inquietação. O ímpeto de fazer
diferente do que havia sido feito por ele mesmo, pode ser percebido tanto da audição
comparativa entre versões de diferentes álbuns e apresentações, nas quais percebemos
mudanças mais substanciais – o que também parece ser um estímulo ao músico para manter o
109 Ver SILVA,2005 e FREGTMAN,1991
110 Caraíba significa “homem branco” e cantador é aquele que toca a flauta sagrada (Depoimento de Gismonti
a FREGTMAN, 1989, p.43)

168
hábito que tem de regravar, de várias maneiras, suas próprias obras – quanto nas repetições de
cada parte de cada música executada no álbum estudado, que trazem algum tipo de
modificação, por menor que seja.

...

Assim, concluímos esse trabalho apontando os resultados obtidos de maneira sintética.


O primeiro capítulo mostra o momento da carreira em que Egberto se encontrava assim como
o processo de criação do álbum estudado em aspectos técnicos. O amadurecimento musical
pelo qual o músico afirmava passar assim como a maneira tranquila e intimista em que
ocorreram as gravações abriram caminho para a confecção de um disco celebrado pelo
próprio músico e crítica, no qual o pianista demonstra grande liberdade no trato de suas
próprias composições.

O segundo capítulo demonstra como essa liberdade foi traduzida em forma de música.
As análises de vários aspectos de cada obra como forma, harmonia, acompanhamento,
melodia, dinâmica e articulação além da comparação entre as versões de instrumentação
reduzidas com as versões em grupo exemplificaram como cada um desses aspectos são
utilizados pelo pianista para a manutenção do frescor de sua obra. Comparando-se excertos
das partituras geradas das transcrições com os Lead Sheets contidos na contracapa do álbum,
podemos observar em detalhe como o músico realiza e altera cada um dos aspectos estudados,
além de adicionar outros como a dinâmica e a articulação, não notados nas partituras base.

O terceiro capítulo traz uma síntese dos aspectos mais utilizados por Gismonti em suas
interpretações. Retomando cada um dos itens analisados no segundo capítulo, pode-se
observar as características estilísticas mais encontradas nas performances do álbum estudado.
O perceptível desenvolvimento da mão esquerda (e dos elementos realizados por ela, como
acompanhamentos), assim como uma alteração constante de todos os itens (utilizados como
variação na maior parte das peças) somam-se a uma concepção musical na qual o “erro” é
parte sadia e cultivada pelo músico criando performances diversificadas e, ao mesmo tempo,
singulares.

Desse modo, acreditamos que o presente trabalho traz contribuições valiosas para a

169
área em que se encontra pois além de contar com formulações sobre os processos utilizados
pelo multi-instrumentista que é um ícone da música brasileira traz exemplos que, além de
ilustrar, servem de base para performances posteriores.

Pretende-se, como sequência ao trabalho, utilizar tais materiais de maneira didática,


facilitando o caminho de outros músicos em direção às descobertas realizadas durante o
presente estudo.

170
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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