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CAMPINAS
2015
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
________________________________
CAMPINAS
2015
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Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350
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Abstract:
Divided into three chapters, this work consists of a research about pianistic and compositional
style of the multi-instrumentalist Egberto Gismonti having as study material the album
"Alma" (EMI-Odeon, 1986), a work in which the pianist plays his compositions in a solo
piano with some synths added. For this, full transcriptions of the actual piano interpretations
were realized, available in the attachments section, and then, analyses that lead to the
identification of recurrent aspects in these performances. Thus, we can find in the first chapter
information on the album itself. Such information that will bring us an overview of its
conception and realization. Adding criticism and testimonies found in newspapers and books,
at close times to the release, to the information collected with some of the participants in its
making, we illustrate aspects related to the career moment in which was the pianist in besides
comprehending the "environment "that helped those involved to achieve the celebrated
technical and musical results , opening the field to the deepening in music. The second
chapter consists of the actual analyses. From the generated scores, nine disk parts: Baião
Malandro, Palhaço, Loro, Maracatu, Karatê, Frevo, Água e Vinho, Infância e Cigana were
observed from various points (best described the considerations and methodology) and some
of the individual results and presented separately in the light of the most relevant aspects
found in these analysis. The third chapter consists of an synthesis of recurrently resulting
elements of the analysis, aiming to externalize some of the usual features performed by the
pianist to "give life" to their compositions through the performances, elements we could
group as indicative of a musical idiosyncrasy.
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Sumário
OBJETIVOS E CONSIDERAÇÕES .........................................................................................1
1 - O DISCO .............................................................................................................................. 7
1.1 “Alma”..............................................................................................................................7
1.2 Revisita.............................................................................................................................8
1.3 O repertório...................................................................................................................... 8
1.4 Uma nova fase - “Não sou tão sutil como a música desse disco”.................................... 9
1.5 Músicos Participantes.....................................................................................................12
1.6 Gravação (dois pianos).................................................................................................. 14
1.7 Inovação tecnológica - Presença das partituras ............................................................. 17
1.8 Crítica e Vendas..............................................................................................................18
1.9 O CD ..............................................................................................................................19
2 - ANÁLISES.......................................................................................................................... 21
2.1 Baião Malandro ............................................................................................................. 21
2.2 Palhaço .......................................................................................................................... 38
2.3 Loro................................................................................................................................ 48
2.4 Maracatu......................................................................................................................... 59
2.5 Karatê............................................................................................................................. 73
2.6 Frevo...............................................................................................................................85
2.7 Água e vinho................................................................................................................ 106
2.8 Infância......................................................................................................................... 114
2.9 Cigana...........................................................................................................................127
3 - O ESTILO PIANÍSTICO.................................................................................................. 139
3.1 A concepção de erro e a percepção macroscópica........................................................139
3.2 Um piano de variações................................................................................................. 141
3.3 Forma:.......................................................................................................................... 143
3.4 Harmonia:..................................................................................................................... 145
3.5 Acompanhamento (e textura):...................................................................................... 146
3.6 Melodia:........................................................................................................................154
3.7 Dinâmica:..................................................................................................................... 160
3.8 Articulação....................................................................................................................162
3.9 Ao piano solo ...............................................................................................................165
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 167
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 171
6 - ANEXOS: TRANSCRIÇÃO INTEGRAL DO PIANO DE “ALMA” (EMI – ODEON,
1986)....................................................................................................................................... 177
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Aos meus pais, por tudo.
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Agradecimentos:
Assim como dedico o trabalho, agradeço inicialmente e imensamente aos meus pais Jader B.
Gomes e Maria Cristina S. B. Gomes por toda a forca principalmente nos momentos difíceis
dessa trajetória que não foram poucos e que muito provavelmente teriam interrompido o
caminho.
Agradeço também ao meu orientador, sempre presente e solícito, Paulo Tiné, pela acolhida,
críticas e principalmente pelo entusiasmo e dedicação ao tema da pesquisa.
A Profa. Maria José Carrasqueira pela coorientação e grande auxílio nas questões práticas
com o instrumento.
Aos amigos dos grupos Amago Trio e Quinteto Coloquial, Pedro Destro, Raul Rodrigues,
Carol Ladeira, Pedro Abrantes e Gustavo Infante por mostrarem que, apesar de todas as
dificuldades, “fazer” musica vale a pena.
Aos amigos Thiago Parente, Eduardo Akiyama, Stefanie Rubia, Natália Vieira, Filipe
Trindade, Maiara Moreira, Jaqueline Frazatti, Thiago Pinto, Thiago Valadao, Priscila Toneli,
Mariele Motta, Joao Coelho e Juliana Marta pelo convívio e aprendizado extra musicais
fundamentais ao processo de formação.
A Egberto Gismonti por toda sua contribuição à musica e à minha vida, fonte inesgotável de
inspiração.
A musica.
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OBJETIVOS E CONSIDERAÇÕES
Objetivos Gerais
Objetivos Específicos
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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Metodologia
1 Forma de notação musical na qual estão presentes a melodia principal e a harmonia, por meio de cifras.
2 Exemplo disso pode ser encontrado na execução de Maracatu presente no álbum “In Montreal”(ECM,
2001), em duo com o contrabaixista Charlie Haden. Há nessa versão o desenvolvimento de uma seção da
música que não pode ser encontrado em outras performances de Gismonti.
2
podem absorver informações sobre o material: os registros sonoros contidos no álbum “Alma”
(EMI - Odeon,1986) e em outros álbuns nos quais estão presentes as músicas analisadas, as
partituras (lead sheets) encontradas no encarte do disco, as partituras contidas no Songbook do
músico (Mondiamusic, 1990)3 para Frevo, Palhaço, Maracatu, Loro, Karatê, Baião
Malandro e, principalmente, as transcrições completas das obras realizadas pelo autor deste
trabalho.
A utilização dos lead sheets como fonte de pesquisa foi de suma importância
principalmente para a análise harmônica pois, como observaremos posteriormente, algumas
das formas de acompanhamento utilizadas pelo músico tornam o reconhecimento e a
classificação dos acordes uma tarefa demasiadamente complexa por conta da complexidade
da execução (como pode-se observar principalmente em Loro, Karatê e Frevo). Dessa
comparação entre a partitura completa e os lead sheets, pode-se encontrar também
divergências entre as cifragens das fontes e do presente trabalho. Divergências que se deram
pela tentativa do autor dessa dissertação de manter o rigor analítico para a construção dos
acordes. Utilizaremos então, para as três peças em que esse tipo de acompanhamento se faz
presente, “Loro”, “Karatê” e “Frevo”, uma cifragem mais balizada no material escrito,
mesclando, adaptando e alterando acordes contidos no Songbook do músico e a nas partituras
da contracapa. Para outras, utilizaremos cifras que se guiam mais pelas partituras geradas.
Comuns a todas as análises foram os seguintes parâmetros: forma, sonoridade,
harmonia, acompanhamento, melodia e outras considerações especiais quando necessárias.
Estes seguem aproximadamente o padrão de análise sugerido no livro Guidelines for Style
Analysis (LARUE, 1970), no qual se deve levar em conta os cinco elementos que o autor
considera necessários para a análise musical: sonoridade, harmonia, melodia, ritmo e
dinâmica.
Por se tratarem de peças curtas, alguns desses parâmetros são tratados de maneira
simplificada e diluídos nos demais e outros, como o acompanhamento (elemento de grande
importância quando se trata de peças para piano), foram adicionados para melhor se adaptar
às características das peças analisadas. A análise da sonoridade será dividida e abrangerá dois
aspectos principais: dinâmica e articulação.
3 O soongbook referido será utilizado de forma auxiliar em caso de dúvida. A fonte escrita principal proverá
das partituras contidas no álbum. Essa opção tem base na quantidade de desencontros entre as formas, cifras
e melodias encontradas nas fontes.
3
Ao fim de cada análise, serão apresentados resultados de uma audição comparativa
entre as primeiras versões registradas de cada uma das músicas e as versões contidas no
álbum em questão, para que se possa compreender melhor o que se alterou na adaptação das
composições para o piano.
Pesquisa de gênero
Três das nove músicas executadas no álbum Baião Malandro, Maracatu e Frevo
fazem menção a manifestações populares do Brasil cujas músicas são características. E, como
em “Alma” são ouvidas ao piano solo, o material sonoro e analítico fornece um bom guia para
a identificação de quais as características contidas nas músicas dessas manifestações Egberto
manteve e quais foram os processos de adaptação (caso hajam ou sejam perceptíveis)
utilizados.
Desse modo, serão conduzidas curtas apresentações visando correlacionar a música de
Egberto e as encontradas nas manifestações mencionadas.
Há, para muitos ouvintes, dúvidas relacionadas ao tratamento que Egberto dá a suas
peças. Sua fluência musical e a singularidade de suas composições, cujos padrões estruturais
se diferem dos mais utilizados como o jazzístico (ainda que também o utilize), por exemplo,
dificultam a diferenciação entre o que é “escrito” (pré-estabelecido) e o que é improvisado nas
performances.
4
Desse modo, as transcrições contidas nesse trabalho não visam desencorajar novas
interpretações nem cristalizar as execuções do compositor no álbum estudado como se
constituíssem a maneira “correta” de se interpretar. Tem por objetivo a expansão, a abertura
de novas possibilidades interpretativas.
Como já mencionado, Egberto varia muitos aspectos de suas obras em diferentes
interpretações. E, por ser dono de uma maneira singular e muitas vezes complexa de tocar,
torna-se difícil a identificação do modo como o músico as faz. Dessa forma, as transcrições
não são também a descrição de um modus operandi que se pretende generalizador de sua
idiossincrasia e sim um exemplo de como o pianista a realizou em um momento específico de
sua carreira.
Assim, da comparação entre lead sheets, nos quais encontramos informações
resumidas dos principais pontos das peças, das audições e das transcrições, pode-se encontrar
ideias de como essas variações são realizadas, estimulando sua ampliação e desenvolvimento
por outros músicos e impulsionando a descoberta de outras formas de renovação deste
material.
Especificidade
Faz-se importante ressaltar que as seguintes análises são realizadas a partir das
transcrições das interpretações contidas no álbum em questão e que as conclusões e
formulações aqui encontradas buscam validade apenas para a descrição e compreensão dessas
performances.
Além disso, são mais indicadas para o estudo de como Egberto Gismonti sintetiza ao
piano os elementos de suas composições. Outros arranjos de suas músicas possuem outras
maneiras de organização.
Principalmente quando em formações maiores, alguns dos aspectos aqui tratados
tendem a se modificar, como por exemplo as maneiras de condução do acompanhamento.
Existem formas de executá-los que tendem a impossibilitar ou dificultar demasiadamente a
performance em grupo, como por exemplo a forma improvisada de criação de frases
contrapontísticas internas citadas (e melhor descritas posteriormente). Essas análises e,
consequentemente, sugestões interpretativas se prestam principalmente para formações
grupais muito reduzidas ou realizações solo.
5
6
1 - O DISCO
1.1 “Alma”
Trigésimo sexto4 álbum da carreira (ALBIM, 2006) de Egberto Gismonti, o Long Play
Alma, lançado em 1986 pela gravadora EMI – Odeon, é um ícone em sua produção.
Segundo Egberto:
“... Quando cheguei aqui (Rio de Janeiro) – ainda sentia aquela carga pesada,
negativa – decidi fazer um disco sem limites, onde a música fosse usada para falar
de coisas boas, de soluções. Foi então que, depois do mergulho profundo, me vi fora
desse mundo e, ao mesmo tempo, dentro de um outro paralelo, onde não havia nada,
a não ser um destino: recomeçar. Porém, com uma proposta: falar com a alma, para
se viver mais solidariamente.” (GISMONTI em entrevista para O Globo,
03/12/1986)
É desse modo que o pianista iniciou a feitura de Alma, álbum de um Egberto Gismonti
de carreira estabelecida.
4 Não se pode afirmar com certeza pois Egberto Gismonti não possui website ou uma discografia oficial
acessível. Assim, encontramos menções ao álbum no jornal Folha de São Paulo como 46º (06/12/1986) e
também como 34º (13/12/1986) álbum de sua produção.
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1.2 Revisita
Contrastando com o último álbum lançado, Egberto traz agora ao público um álbum
quase solo. Tendo o piano como instrumento principal em todas as faixas, o LP é uma revisita
de, segundo Mauro Dias, “clássicos egbertianos”.
Alma não contém composições inéditas. A novidade fica por conta dos arranjos das
músicas que antes eram executadas por sintetizadores, quartetos e bandas ou orquestrações
mais densas e que agora aparecem de forma mais clara.
A falta de composições originais não parece ter sido vista como um problema para a
crítica. Carlos Calado, em matéria para a Folha de São Paulo (9/12/ 86) afirma ser o
procedimento prática comum ao jazz dizendo “... uma canção qualquer pode soar nova como
num passe de mágica. Só depende de quem a interpreta ou improvisa.”, classificando assim o
álbum de Egberto como um trabalho de “variações sobre os mesmos temas” e dizendo que “É
por essa razão que Gismonti não teme se repetir neste disco”.
Afirma também que, ao eliminar a variedade timbrística comum aos álbuns anteriores
e apresentar versões mais despojadas de suas próprias composições, Egberto parece indicar
que utiliza apenas o núcleo central de suas músicas.
“Alma, por uma série de razões, me fez ir mais fundo dentro do poço. Talvez porque
eu já esteja tecnicamente sem problemas para tocar algum instrumento, talvez
porque não tenha problemas técnicos de estúdio. Só pensei no sentimento da
música. Talvez por isso o disco tenha saído com uma expressão muito mais
profunda do que outros” (GISMONTI em entrevista para O Globo 8,12, 88)
1.3 O repertório
8
com presença de baixo elétrico, bateria, percussão, piano e piano elétrico.
• Loro, cujos registros apontam a versão do álbum “Sanfona” (ECM, 1981) contando
com baixo acústico, bateria, flauta e piano.
• Karatê, que tem por primeiro registro a execução do álbum “Cirecense” (EMI-Odeon,
1980) com baixo acústico, bateria, flautim, saxofone, piano e viola.
1.4 Uma nova fase - “Não sou tão sutil como a música desse disco”
5 Aparece como quinta faixa do LP intitulada: a - Frevo, b - Esquenta muié, c - Frevo rasgado. Frevo como
em “Alma” parece a junção de as partes a e c citadas.
6 Instrumento de cordas de origem indiana.
9
que se possua uma configuração um pouco mais abrangente do possível significado do LP na
carreira do pianista.
“Alma” parece coroar uma série de reflexões e transformações que Egberto afirmava
passar em sua carreira musical. Vários dos depoimentos dados na época do lançamento que
apontam para uma mudança de foco.
Depois de um profundo mergulho da minha vida como músico, bem como de sua
relação com as outras coisas do universo, me vejo fora deste mundo e, ao mesmo
tempo, dentro de outro, paralelo, onde não há nada, apenas um destino: recomeçar
sempre. A proposta é falar com a alma para viver de modo mais solidário. Essa alma
é uma música de uma consciência emocional. (FREGTMAN, 1991, p.60)
Essa transformação parece estar ligada a uma consciência que o músico foi adquirindo
com relação ao que deveria expressar com sua música. Egberto afirma haver existido uma
época em que era um músico “sem emoção”, “hipnotizado pela competência” e que agora já
não mais queria esse tipo de perfeição afirmando que “Apenas integrando a técnica, o
conhecimento, à emoção e ao sentimento, é possível ser realmente livre, livre para exprimir a
música do universo.” (FREGTMAN, 1991, p.60)
Nessa busca (ou encontro) por uma expressão musical mais profunda, Egberto diz
sobre “Alma” que “A melodia e a harmonia não me interessam tanto, mas sim o sentimento
da música”(F. De São Paulo, 6/12/2986) e comenta ainda algo que buscaremos verificar
durante as análises.
10
piano e violão. Eu já me sinto bastante capaz de me comportar com o instrumento
frente ao público, da mesma forma que me comporto sozinho em casa ou no estúdio
– o que me custou um tempo. Isto significa sentar disponível a tocar só o que eu
ouço e não o que preparei para tocar” (FOLHA, 2 de junho de 1987)
Ao que arremata reforçando a ideia de que “o disco tenha saído com uma expressão
muito mais profunda do que outros”
11
1.5 Músicos Participantes
Porém, não há no disco, além do piano, outros instrumentos acústicos. Todo o resto foi
gravado por sintetizadores e esses nomes não passam de personagens fictícios, brincadeiras
dos músicos participantes, inclusive a orquestra, que, segundo Souza, ao brincar dizendo ter
sido elogiada, afirma, “eram nossos sintetizadores da época” e cujo nome é o inverso de
Transarmônica d`Alma de Carmo.
Eduardo Mello e Souza começou seus estudos de musica por volta dos 19 anos como
autodidata e cursando aulas particulares onde teve contato com tópicos como contraponto,
composição, orquestração entre outros chegando a cursar um período na Berklee School of
Music (Boston).
Atuou como Produtor Musical nos anos 70 na RCA e Polygram, tendo feito a Direção
de Produção e Direção de Estúdio para artistas como Egberto Gismonti, Gilberto Gil, MPB4,
Alcione, Dominguinhos, Gal Costa, além de dezenas de albuns independentes como produtor
e músico. Trabalhou também na criação de centenas de comerciais da época, através de duas
produtoras que teve.
Pioneiro no estudo e utilização de tecnologias emergentes no anos 70, foi um dos
primeiros a utilizar os sintetizadores (ainda analógicos na época), estando também entre os
primeiros no desenvolvimento e construção dos "home studios", ainda no final dessa década,
o que fez com que ministrasse, no fim da década seguinte cursos de “Tecnologia da Música”,
7 É também o Ude M. Azous, responsável pelo “bombardino” em Karatê.
12
no Centro Musical Antonio Adolfo (RJ) formando músicos profissionais e amadores para
essas novas tecnologias.
Na década de 1980 foi um dos fundadores do estúdio "SYNTH". Totalmente
preparado para gravação de múltiplos teclados, o local se tornou referencia no Rio de Janeiro
tendo recebido enorme gama de artistas, como, por exemplo, Wayne Shorter.
Também nessa época iniciou uma parceria com Egberto Gismonti, trabalhando em
vários dos projetos do pianista na época como discos, balés, composições e filmes. O
convívio quase diário o levou também à participação em vários shows como tecladista e
engenheiro de som em diversas turnês no Brasil e na Europa, convivência que durou cerca de
quinze anos.
Atualmente, afastado do exercício profissional da música, dedica-se ao ofício da
análise de sistemas e à programação no desenvolvimento e manutenção de sistemas de bancos
de dados.
13
"Contemporary instrumental music from Brasil" (uma compilação de músicas registradas pelo
selo Visom Digital, lançada no mercado norte-americano), com duas músicas retiradas de seu
LP 'Topázio' ”. Sendo este último gravado em 2001, pelo selo citado acima.
Em entrevista concedida, Nando (2015) afirma que após o ano de 1986, período que
foi concebido “Alma” pela realização das turnês anteriores referênciadas, interrompeu
momentaneamente a parceria com Egberto, retomando-a em 1990, período no qual iniciaram
uma colaboração mais longa, de mais de dez anos.
Nando ainda participou de gravações e shows com outros artistas como Maria
Bethânia, Vinicius Cantuária, André Gereissati, John McLaughlin e John Scofield.
14
conectados entre si via MIDI. (SOUZA, 2015)
A solução para o fato de o estúdio SYNTH não possuir um piano de boa qualidade foi
a dos músicos recorrerem à sala Cecília Meirelles 8, onde, segundo Souza, “havia um
Steinway9 com ótima sonoridade” para gravar digitalmente as partes de piano, que seriam a
base para a montagem do LP.
Porém esse piano apresentou problemas que não poderiam ser resolvidos de maneira
rápida. As gravações apresentaram ruídos em mecanismos do instrumento como nos pedais.
Esse fato obrigou os músicos e técnicos a buscarem uma outra alternativa como comenta
Souza:
Fomos buscar junto ao Otto Dreschler que tinha um piano Steinway de boa
qualidade num auditório na Ilha do Governador [Ilha do Fundão]. Um pouco
"verde", com uma sonoridade ainda um pouco "presa" mas que era suficiente para o
projeto (SOUZA, 2015)
Ainda sobre a captação e sobre a ótima performance pianística já descrita pelo próprio
Gismonti em seus depoimentos à Fregtman, comenta Souza quando perguntado sobre o tempo
que essa captação levou
15
Essas gravações do piano base foram muito rápidas, porque ele chegava tocava um
pouco para ajustar nível, posicionamento dos mics [sic] e dificilmente necessitava
re-gravar mais do que uma ou duas vezes. Jamais se emendava trechos de gravações
diferentes. Egberto dificilmente utiliza este recurso. (SOUZA, 2015)
Apoiado por Nando Carneiro (2015), afirmando também que “Egberto estava em
plena forma, pianisticamente falando” mostrando também que os arranjos, ainda que possam
ter sofrido modificações e possuam bastante liberdade para isso, pareciam existir previamente,
como comenta
Creio que tudo foi feito a partir dos pianos. Como havíamos feito 2 turnês naquele
ano, uma nos USA (ele e eu, mais ou menos 20 concertos) e outra na Europa (ele, eu
e Nenê10, mais ou menos 40 concertos), aproximadamente o mesmo repertório, então
essa música estava bem amadurecida. (CARNEIRO, 2015)
Assim, com o material gravado em mãos, seguiram para o estúdio SYNTH onde, de
acordo com o que se recorda Souza, realizaram a “transcrição” do piano para o meio
analógico em 24 canais “para termos trilhas disponíveis para os teclados” e iniciaram os
overdubs11, gravações essas que alega terem sido realizadas “ao vivo” (sem a presença de
sequenciadores12).
Sobre a participação de Nando Carneiro, o entrevistado alega que fez “poucas – e
brilhantes intervenções”, afirmando ser o músico “altamente afinado com este tipo de
trabalho, sob as quais o próprio Nando comenta:
A minha participação demorou uma sessão, não mais do que 4 horas. […] Sem
partituras. [...] Eu utilizava na ocasião um Yamaha DX7 com um Xpander Oberheim
conectado através de midi. Mas Egberto e Edu tinham muito equipamento, não sei o
que eles utilizaram.(CARNEIRO, 2015)
10 Realcino Lima Filho (05/02/1947) – Baterista, compositor e arranjador que atuou ao lado de Hermeto
Pascoal, Elis Regina, Milton Nascimento, além de possuir trabalhos autorais.
11 Adição de novos sons a uma trilha ou gravação já existente.
12 Aparato que permite ao compositor programar linhas melódicas para que sejam executadas ao seu comando
ou de maneira também programada É ideal para a realização de figuras repetitivas como ostinatos,
“liberando” o instrumentista para a execução de outras linhas.
16
Souza ainda afirma que essa segurança técnica (“sabíamos o que estávamos fazendo,
do ponto de vista de executar”) e a boa fase musical impulsionaram o trabalho a ocorrer num
clima da “mais absoluta tranquilidade” sem a qual, diz, seria muito difícil conseguirem os
resultados obtidos e sob a qual afirma também ser um traço geral das gravações com Egberto
Gismonti
Quer dizer, eu já uso computador há 20, 30 anos. E-mail para mim é um negócio
que tem quinze anos de idade. Como eu trabalho com a ECM Records, que é uma
companhia que tem muita ligação com a tecnologia, talvez você se lembre que eu fiz
um disco chamado Trem Caipira, que vinha um carimbo na capa dizendo assim,
"Primeira Gravação em PCM Digital". (Entrevista de Gismonti a WANDER, 2007)
13 Abreviatura do inglês para pulse code modulation (modulação por código de pulso). Sigla internacional que
designa a nova tecnologia de registro digital do som, que permite a reprodução sonora em condições
virtualmente perfeitas (DOURADO, 2004, p.247)
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Produções Artísticas Ltda, são comentadas por Souza
As partituras foram feitas num dos únicos softwares da época - que não lembro o
nome. Nada de "Professional Composer" ou "Finale" que vieram depois. Um
resultado que, para os dias de hoje, deixou bem a desejar, mas dentro dos recursos
que tínhamos foi quase revolucionário. (SOUZA, 2015)
As cifras deram bastante trabalho já que Egberto as usava e sua musica era dificílima
de cifrar sem perder as características originais, pois muitos acordes necessitavam de
uma construção individual e particular o que foge do processo usual de cifragem que
deixa ao interprete uma ampla liberdade. As polêmicas que tivemos foram longas e a
solução foi fazer algo um pouco diferenciado, mas devidamente explicado através de
uma "bula" que consta na pagina inicial, além de manter os acordes originais.
(SOUZA, 2015)
Ao que parece, não foram apenas os aspectos técnicos que agradaram à crítica
especializada da época. Sobre o material, Mitico Yoshijima afirma, aparentando reconhecer a
mudança de trajeto referenciada por Egberto
18
Ao que ainda podemos citar também Mauro Dias
Poucas informações foram encontradas sobre as vendas do LP 15, porém sabe-se que o
álbum foi lançado com venda antecipada de “45 mil cópias”, número que Egberto comemora
afirmando que “Para o tipo de trabalho que eu faço, é o mesmo que lançar um LP já com
quatro discos de ouro” (F.de S.Paulo, 6/12/1986).
1.9 O CD
Em 1996, foi lançado pela Carmo, selo do próprio pianista, um CD intitulado “Alma”
que se difere do disco homônimo, de 1986. Lançado como uma coletânea, a obra possui oito
14 Instrumentos que, como vimos, são os sintetizadores executados por Gismonti, Souza e Carneiro.
15 Vale nota de que o pesquisador buscou essas informações junto à gravadora (hoje “Universal Music Brasil”)
porém foi informado de que tais informações são sigilosas e não poderiam ser disponibilizadas.
16 As que foram encontradas em pesquisa no acervo on-line da folha de São Paulo, presente na bibliografia
deste trabalho.
19
das nove músicas presentes no LP (exclui-se Infância) e conta com mais cinco das peças
executadas ao vivo em performance realizada pela Tom Brasil Produções Musicais no SESC
Pompéia, em 1993, material lançado em disco intitulado “Brasil Musical – André Geraissati e
Egberto Gismonti” de 1993.
Além da omissão de Infância, a coletânea lançada pela Carmo conta com a adição de
Ruth, Sanfona, A fala da paixão, Realejo e 7 anéis, todas de autoria de Gismonti, com
exceção de Ruth, composta por seu avô Antônio Gismonti. O álbum onde as performances
foram buscadas conta com outras músicas além de uma regravação “ao vivo” de Karatê.
20
2 - ANÁLISES
Forma
17 Termo que se refere à repetição de um padrão musical por muitas vezes sucessivas. Um ostinato melódico
pode ocorrer no baixo (ver BASSO OSTINATO e GROUND), como melodia numa voz superior (p. ex., o
“Dargasson” de Suíte St, Paul, de Holst), ou simplismente como uma sucessão de alturas repetidas (p.ex., o
“Carrilon” da Suíte L`Arlésienne n.1, de Bizet). A progressão de um acorde constantemente repetido produz
um ostinato harmônico, como na Berceuse de Chopin, enquanto um ostinato rítmico ocorre no Bolero de
Ravel. (SADIE, 1994, p. 687)
18 Batidas por minuto
21
pedalização
B4 191 ao 212 Nova improvisação sobre o ostinato da mão direita
C2 213 ao 230 Melodia em três oitavas
Indtrodução 231 ao 238 Acordes iniciais
Coda 239 ao 245 Sucessão de acordes em quartas e acorde final
Tab.1: Resumo das partes de Baião Malandro (referentes à transcrição)
Baião Malandro, assim como Infância, é organizada de maneira diferente das demais
peças do álbum. Dividida em três seções contrastantes, cuja ligação se dá principalmente pela
manutenção da tonalidade, optou-se pela nomeação por A, B e C para cada uma dessas partes,
apesar de suas repetições não conterem, por exemplo, o mesmo número de compassos. A
divisão se dá pela similaridade das características sonoras de cada uma das partes. A parte B
possui características de um refrão.
É importante notar que a ponte desta performance não pode ser encontrada nas
partituras disponíveis. Porém é executada pelo menos uma vez, ainda que não exatamente da
mesma forma, em todas as performances ouvidas.
Harmonia
22
Introdução (c.1): I
|: Db :|
| Db | Fm | Bm7 | Db | % | % | % |
I (SubV7) V7 V7/II I
Caso a opção fosse por manter as cifras contidas no álbum, a melodia ao invés de
19 Na música popular e no jazz é uma progressão introdutória ou transicional de acordes simples repetida até a
entrada do solista […] Embora o termo “vamp” seja quase um sinônimo de “ostinato' em jazz, ele carrega a
ideia adicional de que sua duração está a critério do solista. Em algumas formas de jazz (modal, jazz-rock,
jazz latino) e música popular (especialmente funk), uma peça inteira pode ser baseada numa sucessão de
“vamps” sem fins definidos. (SADIE, 2004, p.235).
20 Sessão “melodia”.
21 Ver o capítulo 7, “Left-Hand Voicings” (LEVINE, 1989, p.41).
23
conter as tríades dos acordes propriamente ditos, seria composta pelo que é conhecido como
“tríades na camada superior (TCS)”22, estruturas que, segundo Tiné (2011), são comuns aos
acompanhamentos dos pianistas de jazz ou aos naipes de trompetes e trombones das Big
Bands.
Parte B (c.37):
I V
| Db(6)9 | Absus4(b9) |
É importante notar que apesar das cifras apresentarem Abm7, Gismonti acaba por
executar majoritariamente pelo exemplar suspenso e de nona bemolizada. A constante
utilização das notas La b e Si bb e o não aparecimento da nota Do (sétima maior de Db, como
consta na cifra original) aponta para uma sonoridade que remete a um dos modos da escala
menor melódica, o modo “mixolídio b6”, modo que apresenta as seguinte disposição:
Fig.2: Mixolídio b6
22 As aberturas em tríades na camada superior (TCS) visam obter as extensões dos acordes dentro das posições
fechadas específicas das tríades. (TINÉ, 2011, p.87)
24
Numa rápida escapada do ostinato estático de B Egberto executa um ciclo de quartas
que produz um rápido afastamento do centro tonal, culminando em G7M, que logo retorna ao
Absus4(b9) por cromatismo, retomando a harmonização do vamp
Parte C (c.75):
I V IV III II SubV7(I)
Acompanhamento
O referido vamp sobre Ré bemol maior é uma figura de acompanhamento que permeia
toda a música, principalmente na seção A. É uma figura realizada pelas duas maõs do pianista
com duração de um compasso, como podemos ver:
25
Fig.3: Vamp da seção A.
26
Fig.5: Acompanhamento básico da seção C
Egberto executa também uma forma incomum de improvisação para Baião Malandro.
Essencialmente rítmica, ocorre em todas as repetições da seção B da música. Incomum,
primeiramente, por ser feita exclusivamente pela mão esquerda.
Sobre o ostinato já demonstrado da mão direita, Gismonti parece brincar com
estruturas rítmicas, fragmentos melódicos e acordes, jogando com a densidade da seção; como
se fosse um improviso coletivo da seção rítmica 24 de um grupo.
24 Um termo aplicado aos instrumentos rítmicos ou acompanhadores dentro de uma banda (i.e., piano ou orgão,
violão ou banjo, tuba ou baixo acústico (mais tarde baixo elétrico), ver BANDS §§ 2, 4.(Tradução nossa).
(KERNFELD, 1994, p.406).
27
Fig.7: Mesmo padrão agora sendo tocado com acordes
Destacamos também a seção B2, construída sobre um outro jogo polirrítmico25, mais
complexo. Gismonti agora realiza uma quiáltera26 (quintina27) sobre o ostinato em
semicolcheias, o padrão também é repetido inúmeras vezes e acompanha a mudança dos
acordes:
25 “[…] também um fenômeno relacionado ao aspecto vertical, onde também será possível detectar dois ou
mais padrões rítmicos ocorrendo simultaneamente, mas todos estarão baseados em uma mesma fórmula de
compasso. É bastante frequente a utilização de quiálteras nos procedimentos polirrítmicos, como os
encontrados na música africana em geral, podendo haver também uma série de combinações possíveis para
este procedimento.” (FRIDMAN, 2011, p.359)
26 Alteração convencional no valor das figuras musicais, permitindo que três delas sejam executadas no tempo
que pertenceria a duas. Também chamada de “tercina”, é indicada por uma linha curva e pelo algarismo 3.
Por extensão, costuma-se aplicar o termo a alterações análogas abrangendo 5,7,9 notas, ou a transformação
de um grupo ternário em binário. (SADIE, 1994, p.758)
27 Quiáltera que altera para 5 a subdivisão antes binária.
28 Estilo de música popular norte-americana que floresceu c.1896-1918. Sua principal característica é o ritmo
“rasgado” (ragged, i.e., sincopado). Embora atualmente encarado como um estilo pianístico, também se
referia a outras peças instrumentais vocais e de dança.[...] (SADIE, 1994, p.762)
28
compassos, “atravessando-os”, gerando um rápido jogo polimétrico29 e confundindo o
ouvinte.
Fig. 9: Trecho de The Entertainer (1902), de Scott Joplin,30. O acompanhamento em colcheias acompanha a
métrica dos compassos
Fig.10: Colcheias pontuadas gerando efeito polímétrico momentâneo pelo deslocamento dos acordes com
relação aos compassos em Baião Malandro.
Num jogo interessante, entre as seções B4 e C2, Egberto, que vinha da execução de
acordes em notas pontuadas sobre o ostinato da mão direita, em seus improvisos rítmicos,
transforma esse artifício no acompanhamento da seção posterior, executando a primeira das
três repetições do material melódico 2 sobre esse acompanhamento e retomando o
acompanhamento arpejado com baixos em oitavas, característico da seção C dessa execução.
29 “[...] definimos a polimetria como qualquer fenômeno rítmico em que se possa distinguir auditivamente a
utilização simultânea de mais de uma fórmula de compasso, sendo este então um fenômeno restrito ao
aspecto vertical[...] (FRIDMAN, 2011, p.358)
30 Disponível em <http://www.free-scores.com/download-sheet-music.php?pdf=3#>
29
Fig.11: Continuação das ”pontuadas” improvisadas no acompanhamento da parte seguinte.
Melodia
Parte Frase
A 1 (9 ao 11) 2 (16 ao 18)
C 3 (75 ao 77)
4 (78 ao 70)
Tab.2: Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada
30
Baião malandro, num caso à parte no disco possui pouca variação na execução da
melodia. Por possuir longos trechos de improvisação na seção B, que não possui melodia
característica, quando executadas as melodias de A e C, são tocadas de maneiras bem
similares em suas repetições.
O aspecto que nos chama mais atenção na performance é a maneira como que
Gismonti executa as frases 1 e 2. Essa melodia, como descrita na partitura da contracapa,
possui um contorno melódico nítido sobre um padrão de intervalos ascendentes e arpejos
descendentes.
O que ocorre é que ao piano solo, Egberto não parece se preocupar com a clareza da
melodia tocada. Sua sequência de intervalos não é respeitada e a melodia aparece como um
“borrão” sobre os acordes que a compõem, como podemos observar:
31
Fig.13: Frase 1 executada em “Alma”
Dinâmica
Como é comum em Lead Sheets, não existem indicações para esse elemento o qual
Gismonti parece utilizar de maneira espontânea.
Tem se por padrão, não por regra, que a parte A tende à dinâmica forte ou mezzo forte
e C, muito por conta de conter uma melodia que se repete em três oitavas ascendentes
consecutivas, geralmente é executada sob um grande crescendo.
32
A seção B, de improviso, é o trecho musical em que Egberto mais varia esse aspecto
da performance. A utilização de muitos pequenos trechos repetitivos, que poderiam conferir
relativa monotonia à peça, é compensada por partes em crescendo ou piano súbito que
auxiliam no jogo da captura da atenção do ouvinte.
Articulação
Assim como a dinâmica, os trechos musicais de Baião Malandro não parecem possuir
uma articulação fixa. Egberto também utiliza esse aspecto como item de variação, muitas
vezes sendo o único elemento que se modifica.
Exemplo disso são as pontes 2 e 3. Sendo uma executada logo após a outra, Egberto
evita que soem como repetição se utilizando da mudança na articulação, como podemos ver.
Fig.14: Dois primeiros compassos das Pontes 2 e 3 tocadas em seguida tendo como elemento de
variação a articulação.
31 (It., “ligado”) Termo que indica notas suavemente ligadas, sem interrupção perceptível no som, nem ênfase
especial; o oposto de STACCATO. (SADIE, 1994, p.527)
33
Outro uso da articulação por Egberto nessa performance se dá na ligação entre as
partes. A transição entre a parte B1 e C1 é feita dessa maneira. Enquanto nas seções B
predominam articulações non legato e C há a predominância de legato, por meio da
antecipação do uso do pedal de sustentação do piano, em dois compassos, Egberto cria a
“amálgama” entre as duas partes, mantendo os acordes que vinham sendo tocados sobre o
ostinato de B.
Dança popular muito preferida durante o século XIX no nordeste do Brasil. […]. A
partir de 1946 o grande sanfoneiro pernambucano Luís Gonzaga divulgou pelas
estações de rádio do Rio de Janeiro o baião, modificando-o com a inconsciente
influência local dos sambas e das congas cubanas. O baião vitorioso em todo o
Brasil, conserva células rítmicas e melódicas visíveis dos cocos, a rítmica (de
percussão) com a unidade de compasso exclusivamente par. (CASCUDO, 2000,
p.128).
A partir de 1945, o artista passa a revezar entre gravações com voz e instrumentais.
Porém, as gravações instrumentais vão ficando cada vez mais escassas e as canções
passam a predominar em sua produção. Esse não foi um fato isolado; de acordo com
SEVERIANO (2008), a música instrumental que predominou nas primeiras
gravações realizadas no Brasil (polcas, valsas, choros, etc.) foi progressivamente
perdendo seu espaço na indústria fonográfica em função do sucesso de público
34
alcançado pelas canções. (CORTES, 2014, p.196).
Observa-se que o baião, estilizado por Luiz Gonzaga a partir da década de 1940,
tornou-se uma referência, um modelo, um formato, um dos fortes representantes da
sonoridade nordestina, bem como um componente expressivo dentro do que
convencionou-se chamar de música "tradicional", "de raiz" (NAPOLITANO, 2007)
ou "regional" (FERRETTI, 1988). [...] (CORTES, 2014, p.206)
Desse modo, ainda que saibamos que a definição de baião não se restringe apenas à
sua música ou o que ela se tornou após a inserção na mídia e estilização realizados
principalmente por Gonzaga, a comparação foi feita entre os elementos musicais descritos no
artigo, levando-se em conta o baião como forma musical já consolidada e formatada.
Fig.15: Levada de baião executada por zabumba e triângulo (CORTES, 2014, p.197)
32 Algumas das quais são exemplos de como o “baião” estilizou elementos das cantorias: “expressão artística
desenvolvida no nordeste, realizada normalmente por cantadores violeiros que improvisam versos sobre uma
linha melódica pré-determinada”(CORTES, 2014, p.202).
33 A versão em grupo traz elementos, como a figura do triângulo descrita. É utilizada nas seçoões B e C da
peça.
35
Fig.16: Célula rítmica que se tornou referência da “levada” do baião.(CORTES, 2014, p.197)
Porém, dois recursos descritos parecem ter sido levados por Gismonti como
referência ao gênero: a “utilização de recursos idiomáticos da sanfona” e a presença de
“padrões de terças/sextas e notas repetidas”.
A célula da mão direita da seção B da peça estudada parece uma mescla desses
elementos, principalmente ao que o autor se refere como “jogo de fole” utilizado “para repetir
a mesma nota em subdivisão de semicolcheia”.
Assim Gismonti sintetiza uma figura que poderia ser a repetição em semicolcheias,
que na sanfona seria de mais fácil execução pela utilização dos foles do instrumento,
condensando uma repetição de melodias por terças harmônicas e uma nota pedal,
“estilizando” ao piano, uma figura que poderia se mostrar idiomática da sanfona no baião.
36
[...]o maestro Guerra-Peixe registrou como características melódicas: Escala de dó a
dó – a) todos os graus naturais; b) com o sétimo grau abaixado (si bemol); c) com
quarto grau aumentado (fá sustenido); d) com qualquer mistura de dois dos modos
anteriores, ou mesmo os três[...] (CASCUDO, 2000, p.128).
Não é encontrada na melodia propriamente dita, mas pode-se dizer que permeia a
sonoridade da parte B, nos jogos rítmicos/melódicos executados a cada vez que essa seção é
retomada. Sua utilização pode sugerir uma espécie de brincadeira, uma modificação do que há
de comum à música do baião, enfatizando o traço de “subversão” que encontraremos como
uma das características mais fortes em Gismonti, enfatizando o que afirma MELO, sobre o
pianista
Ao piano solo
Mais lenta, a versão em grupo traz o vamp inicial desenvolvido por uma série de
repetições de notas enquanto na versão solo esse mesmo trecho é, basicamente, a execução de
37
uma sequência de acordes, como vistos na descrição.
As partes da música são as mesmas, porém a ordem em que são apresentadas se difere.
O que na versão solo é aqui nomeado por B poderia, na versão em grupo ser nomeado por C e
vice-versa.
2.2 Palhaço
Composta em parceria com Geraldo Carneiro, Palhaço, segunda peça do disco, traz
características de canção34 e deve, segundo a partitura, ser tocada de modo “melancólico e
calmo”. É tocada em andamento cuja semínima varia em torno de 114 bpm.
Forma
Parte Compassos Resumo
A 1 ao 11 Exposição do primeiro material melódico
Vamp 1 12 ao 15 Sequência de acordes de transição (casa 1)
A1 16 ao 25 Reexposição do primeiro material melódico
Vamp 2 26 ao 29 Sequência de acordes de transição
B 30 ao 37 Exposição do segundo material melódico
B1 38 ao 44 Repetição
Vamp 3 45 só 48 Sequência de acordes de transição
34 Não apenas traz aspectos como também pode ser encontrada cantada (com letra de Geraldo Carneiro) por
Olívia Byington no disco “Gozos da alma” (2006, SESC-Rio Som), de Geraldo.
38
C 49 ao 56 Exposição do terceiro material melódico
C1 57 ao 64 Novo material melódico sobre mesmo suporte harmônico
C(2,3,4,5,6) 65 ao 104 Improviso sobre a estrutura harmônica de C
A2 105 ao 112 Variação da melodia de A sobre a harmonia de C
A3 113 ao 118 Variação da melodia de A sobre a harmonia de C
Vamp 4 119 ao 122 Sequência de acordes de transição
Coda 123 ao 137 Trechos do tema em rallentando
Tab.3: Resumo das partes em Palhaço (referentes à transcrição)
Embora a seção C, sobre a qual Gismonti improvisa melodias, não conste na partitura
da contracapa do álbum, ela é aqui tratada como parte da composição, principalmente pelo
fato de ser executada em outras performances, de outros discos, com a melodia executada de
maneira muito similar..
Harmonia
39
Percebemos tanto em A quanto em B, que apesar dos acordes poderem ser lidos sob
aspectos funcionais, suas construções ocorrem muito por conta do movimento por graus
conjuntos dos baixos
Não podemos afirmar que a origem da sequência harmônica das partes citadas está no
que há de idiomático no instrumento, porém é fato que a condução de vozes é bastante
auxiliada pela harmonia tanto pelo paralelismo entre acordes como Abadd9 → Gbadd9 e
Db/F → Eb/G quanto na manutenção de vozes encontrada no movimento Gbadd9 → Db/F e
Eb/G → Abadd9.
Parte C (c.49):
IV V7 I VI II V I V7/IV
|: Dbadd9 | Eb/Db | Ab/C | Fm7 | Bbm7 | Ebsus9 | Abadd9 | Ab7(#9,b13):|
Acompanhamento
40
estável dominante na execução e assim como a disposição rítmica, variam pouco. A tessitura
do acompanhamento se mantém pequena e a montagem dos acordes, geralmente em posição
aberta, privilegia os intervalos de quinta, o que contribui para uma espécie de estabilidade da
textura, não havendo a ocorrência de muitos saltos nem grandes mudanças de região na
montagem dos acordes, por exemplo.
Melodia
Segue a disposição das primeiras execuções de cada uma das frases encontradas em
Palhaço :
Seção Frases
A 1 (2 ao 5)
2 (6 ao 9)
3 (10 ao 13)
B 4a (29 ao 32) 4b (33 ao 36)
C 5 (49 ao 52)
6 (53 ao 56)
7a (57 ao 60) 7b (61 ao 64)
Tab.4 :Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada
Além da descrição das melodias, o que mais chama atenção nessa execução de
Palhaço é a grande quantidade de recursos de variação e ornamentação melódica utilizados
41
por Gismonti ao piano solo. Tomemos como exemplo o trecho que compreende as frases 2 e
3, tanto no Lead Sheet quanto na primeira exposição da transcrição para podermos
exemplificar o enriquecimento que a performance confere à melodia guia.
42
A análise acima é um exemplo de como Egberto trata uma melodia em sua
performance. Muitos outros artifícios são encontrados na execução 35. Podemos afirmar que
Palhaço é uma das peças em que a melodia é mais ornamentada, principalmente pela adição
de notas não previstas na partitura guia.
Palhaço também é caracterizada pela riqueza de sua agógica 36. Além de acelerar e
desacelerar a execução de modo torná-la mais expressiva, Gismonti se utiliza amplamente de
fermatas e trechos em ritardando que enfatizam notas e passagens que ocorrem
principalmente em fins de frases, semi-frases ou na preparação para uma repetição, como por
exemplo, no trecho a seguir no qual o último tempo do repouso da melodia é dilatado e faz
com que o retorno da frase retome também o andamento vigente.
43
Fig.23: Mesmo trecho da Frase 1 executado sob notas repetidas na sesão A3
Dinâmica
44
Fig.24: Manipulação livre da dinâmica na execução de Palhaço
Além disso podemos perceber trechos em que a dinâmica se modifica de maneira mais
gradual. O trecho a seguir exemplifica como o pianista se utiliza da maior movimentação,
tornando a textura mais densa pela maior quantidade de notas e conseqüente subdivisão do
compasso para a geração de um crescendo de maior duração, partindo de um subito p.
45
Articulação
Além disso, o improviso segue com melodias executadas sob articulações que variam
entre o staccato39 e o portato40, até então não encontradas na performance. Essa quebra do
fluxo torna a seção mais “pontiaguda” e “seca”, como percebemos no exemplo a seguir, entre
os compassos 100 e 103:
38 “Comping”, termo utilizado para acompanhamento (ou complementação), é o que o pianista faz por trás do
solista e durante as sessões em conjunto. […]. (LEVINE, 1989, p.223, tradução nossa)
39 (It., “destacado”) Diz-se de uma nota, durante a execução, separada de suas vizinhas por um perceptível
silêncio de articulação e que recebe uma certa ênfase, não exatamente MARCATO, mas oposto de LEGATO.
O staccato é notado com um ponto, um traço vertical ou um sinal em forma de cunha. (SADIE, 1994, p.896)
40 Um legato que possui uma leve acentuação; uma combinação de legato e staccato, mas com uma ligadura
definida. [...] Kraemer, B. In. Italian Musical Glossary. Disponível em < http://piano.about.com/od/Italian-
Music-Glossary/tp/Italian-Music-Glossary_P-Q.htm .>. Acesso em 12 de nov de 2014 (Tradução nossa)
46
Fig.26: Variação por mudanças de articulação
47
Ao piano solo
Também por esse motivo, encontramos uma interpretação da melodia menos variada
ritmicamente, mais “reta”, ausentando também as variações mais drásticas de agógica como
as passagens em ritardando ou as fermatas em trechos casuais, amplamente utilizadas na
versão solo.
A performance de “Alma” traz, como vimos, muitos desses elementos, o que condiz
com a liberdade de se executar uma melodia sem a necessidade de que os tempos e
ornamentos coincidam ou sejam escritos pelo compositor/arranjador.
2.3 Loro
Terceira peça do disco, tocada de maneira ágil, com a semínima em torno de 145 bpm,
tem como indicação interpretativa a inscrição “rápido, alegre e leve”.
41 Sequência de notas (aqui acordes) que passa por todos os doze tons da escala cromática por saltos de
quintas, que também é o intervalo gerado no movimento dominante – tônica, utilizado por Egberto para que
o vamp ou levada da música se tornasse a seção de improvisação.
48
Forma
Loro constitui-se de uma forma canção com apenas uma parte (20 compassos) e um
refrão (8 compassos, repetido um vez) tocada por seis vezes:
Harmonia
49
Parte A (c.2):
V7(V) IV (V)VI VI
| Eb/Db | % | Ab/C | % | G(b9)/B | % | Cm/Bb | % |
Refrão (c.22)
I V7/IV IV IV I V7/V V7
| Eb(6-) | Eb(6-)/Db | Ab/C | Ab add9 | Eb/G | F7 | Bbsus7 | Bb7 |
V7/IV IV IV I V7/V V7
| Eb/Db | % | Ab/C | Ab add9 | Eb/G | F7 | Bbsus7 | Bb7 |
Os dois primeiros acordes do refrão, apesar de não serem cifrados desse modo nas
outras partituras, apontam, pela utilização dos intervalos de quinta justa e sexta menor, além
da omissão da sétima no primeiro acorde, para o uso, assim como em Baião Malandro, da
50
sonoridade do modo mixolídio b644.
Acompanhamento
Com uma rítmica sincopada, sem padrões, e uma grande variedade de articulações em
um andamento ligeiro, a sonoridade dos acordes não permanece para os ouvintes, o que
confere à textura da música um senso de aleatoriedade, como se as melodias simplesmente
aparecessem de maneira improvisada.
51
Porém, uma leitura mais atenta do acompanhamento, visto detalhadamente na
transcrição, mostra que essas melodias são construídas essencialmente por notas dos acordes,
ainda que de maneira flexível.
52
O exemplo mostra o que foi mencionado acima na primeira exposição do refrão onde
podemos identificar o modo em que Egberto conduz o acompanhamento e as mudanças de
acordes, omitindo notas como em Eb(6-)/Db, antecipando através de síncopa a mudança entre
Eb/G e F7. Além disso, no exemplo, pode-se perceber a inconstância rítmica e os acordes
sendo iniciados por notas outras que não as suas fundamentais, como em F7 e Bbsus7,
iniciando-se em suas terças e sétimas, respectivamente.
53
Melodia
É notável que essa maneira de execução é realizada apenas ao piano solo. O fato de
não haver outros músicos executando a mesma melodia confere também maior liberdade
54
rítmica e melódica ao pianista, como podemos perceber:
Fig. 31: Melodia do refrão como escrita no encarte (1986, p.3) e executada em outras versões
O exemplo acima mostra alguns dos recursos utilizados por Egberto para evitar a
contínua repetição de notas. Na figura, o pianista as substitui, respectivamente, por arpejos,
pausas, pequenos “clusters”47 e fragmentos melódicos em terças, o que resulta numa execução
muito variada tornando a compreensão melódica mais complexa. Como a melodia completa
é repetida várias vezes durante a performance, Gismonti utiliza, além dos descritos, vários
47 Esbarrões que se repetem de forma aparentemente intencional.
55
outros recursos de modificação melódica.
Além do processo descrito, o pianista também modifica a rítmica das frases, como no
exemplo abaixo, no qual substitui as notas tocadas em divisão binária pelo mesmo contorno,
porém em tercinas48.
Dinâmica
56
presença de piano súbito ou ataques em dinâmica forte, porém, todos esses recursos se
encontram a cargo do Egberto Gismonti “intérprete”. Assim ele cria jogos de dinâmica de
curta duração que não necessariamente se repetem com a repetição de um mesmo trecho
musical, fazendo-nos crer que é também um parâmetro improvisado.
Articulação
Prevalecem articulações non legato nessa interpretação de Loro com raros usos do
pedal de sustentação. Embora prevaleça esse tipo de articulação, podemos encontrar frases,
principalmente as extremamente velozes, sob a articulação legato, valendo ressaltar que essas
são também executadas sem o auxílio do pedal.
O que se pode afirmar sobre essa performance de Loro é o não extremismo das
49 Aqui o pianista se acompanha executando uma espécie de “levada” por alguns compassos, interrompida logo
a seguir.
57
articulações. Com exceção de alguns trechos propositalmente mais acentuados, os staccatos
não são muito curtos e por isso muitas das articulações foram inscritas sob o portato, uma
figura que em Egberto pode ser entendida como um “meio termo” entre o legato e o staccato.
Aqui se encontra também um traço muito peculiar de como Egberto executa suas
melodias. É percebido, através, principalmente, de vídeos de performances do músico, que o
pianista costuma realizar repetições de notas com apenas um dedo e ainda que não tenhamos
encontrado uma possível explicação para a constatação, algo que também é notável, não
apenas em Loro, mas também, é uma certa preferência pelo tenuto50 quando o pianista realiza
tercinas.
Ao piano solo
Substancialmente mais ágil que a versão anterior, a maneira como a melodia principal
é exposta já traz essa característica.
Em grupo, até mesmo pela incompatibilidade que outra maneira traria, Loro possui
uma levada rítmica que é executada pela “cozinha” 51 durante todo o percurso musical,
exposições e improvisos.
50 (It., “Sustentado”) Instrução normalmente aplicada a notas isoladas, ou grupos de notas, para que sejam
sustentadas em toda a sua duração ou interrompendo completamente o compasso. (SADIE, 1994, p.941)
51 “Seção rítmico-harmônica”.
58
padrão rítmico de levada da primeira versão apenas em pontos específicos e por curtos
espaços temporais. A estrutura formal se mantém apesar da versão contida em “Alma” contar
com mais repetições.
2.4 Maracatu
59
Por esses motivos ocorrem designações indicadoras de sua funcionalidade:
“marcante”, o zabumba mestre, comandante do grupo; “meião”, o que transmite o
comando rítmico aos restantes zabumbas; “repiques” o grupo de tambores que, em
posição subsidiária, segue as indicações do anterior. (GUERA-PEIXE, 1956, p.61).
Devemos esclarecer também duas designações para o termo “toque virado” (ou “baque
virado”). Primeiro, o termo é utilizado para a diferenciação de tipos de folguedos cuja
instrumentação é determinante.
Segundo Guerra-Peixe, o maracatu de “baque virado” ou “baque dobrado” (utilizado
como mote para a composição de Egberto Gismonti) é o folguedo em que estão presentes
mais de um zabumba, assim “virado” é uma espécie de acepção de “dobrado”. O termo é um
oposição aos maracatus-de-orquestra, também chamados de “maracatu baque solto”,
formação em que se admite apenas um zabumba, permitindo a esse músico maior liberdade
para variações.
O segundo significado do termo “toque virado” é o de arranjo instrumental (já
pertencente a um maracatu do tipo “toque virado”) no qual se permite a “viração”, variações
rítmicas em conjunto que tem como finalidade animar a música por alguns instantes,
transmitindo também o entusiasmo aos dançadores. Essas variações não são sempre
permitidas, como por exemplo no toque “Luanda” (outro arranjo instrumental dos maracatus
de “baque virado”) que, por conter características mais explicitamente sagradas, exige a
conservação de sua simplicidade.
As peculiaridades referidas acima darão subsídios para que possamos criar hipóteses
para os procedimentos de adaptação musical utilizados pelo músico.
60
O Maracatu de Gismonti
[...] Aprendi com eles [os bateristas mencionados com quem Egberto havia tocado]
que Maracatu, para ser Maracatu, tem que ter o sujeito que toca tarol bêbado. Se não
tiver o “tarol” bêbado, não é Maracatu. E essa informação que eles me deram me
ajudou a pensar num maracatu que tem[...] [mostrando ao piano as células
características de sua composição] (Gismonti no programa Ensaio da TV Cultura.
FELICIO, 2013)
Das peças contidas no álbum estudado, Maracatu nos parece um caso especial, tendo
como indicação interpretativa a inscrição “cantando”. Trata-se da mais evidente adaptação
pianística de alguns dos elementos sonoros de uma manifestação artístico/religiosa
homônima, cuja música é muito característica e possui papel fundamental. Há também no LP
outras composições nomeadas homonimamente a manifestações artísticas brasileiras (Baião
Malandro e Frevo), porém existem diferenças exemplificadas na seção de análise destas
obras.
Maracatu é uma composição de sonoridade peculiar. Seu mote principal é sua
“levada” extremamente característica que é uma síntese pianística, ao modo de Egberto, da
música produzida pela orquestra de percussão das “nações” pernambucanas.
A textura predominante é a homofônica (melodia acompanhada) embora muitos
eventos musicais ocorram simultaneamente como a clave da mão direita e a melodia
principal, que não soam juntas, mas que pelo fato de Egberto inserir a clave nos repousos
melódicos, obtem-se o efeito de que são executadas ao mesmo tempo, como no exemplo:
61
fato pela ausência de independência melódica entre as vozes.
Forma
Parte Compassos Resumo
Introdução 1 ao 12 Apresentação da clave e da “levada”.
A 13 ao 21 Exposição da melodia principal
A1 22 ao 28 Reexposição da melodia principal
Ponte1 29 ao 37 Sequência de acordes em repouso
B 38 ao 77 Seção de sonoridade improvisada sobre a região dominante
Ponte 2 78 ao 81 Melodia que retoma a “tônica”
Introdução 2 82 ao 96 Retomada da levada e da clave
A2 97 ao 104 Reexposição temática sobre outra harmonia
A3 105 ao 112 Reexposição temática
Coda 113 ao 126 Seção de sonoridade improvisada em rallentando.
Tab.7: Resumo das partes em Maracatu (referentes à transcrição)
A clave
62
Fig. 37: Uma das claves do gonguê (GUERRA-PEIXE, 1956, p.74)
O pianista, assim como nos maracatus recifenses, mantém essa figura inalterada
durante todas as seções da música, marcando e subdividindo os compassos, omitindo-a apenas
com o aparecimento da melodia, que é realizada pela mão direita (assim como a clave do
gonguê), impossibilitando a execução simultânea.
Essa figura é também o primeiro elemento a ser exposto em todas as versões
apresentadas, o que também remete à maneira com que o cortejo inicia as toadas:
“Se bem que o primeiro instrumento a marcar sua entrada seja indiferentemente, o gonguê ou
o tarol, a este cabe anunciar o andamento a ser observado por todo o conjunto.” (GUERRA-
PEIXE, 1956, p.69)
Egberto parece ter escolhido o gonguê para dar início e mostrar o andamento para seu
próprio maracatu.
O “corpo” da levada
Fig.39: Figura musical mais audível dos zabumbas no meio dos grupos de Maracatu (Transcrição do autor)
63
Porém, é importante notar que as alfaias (ou zabumbas) são tocadas com duas
baquetas diferentes: a maçaneta e o bacalhau (ou resposta).
A diferença de intensidade produzida com essas baquetas é grande.
Comparativamente, maçaneta produz, geralmente, um fortíssimo, enquanto o “bacalhau”,
algo em torno de um piano.
Assim sendo, a transcrição da figura rítmica executada pelos “zabumbas” se faz da
seguinte maneira:
64
Fig.42: Uma das levadas do maracatu Elefante (GUERRA-PEIXE, 1956, p. 80)
Harmonia
I +VI I V
| Bm7| % | % | % | G#Ø(9) | % | Bm7 | F#7(9-) |
65
do centro tonal momentâneo, como podemos ver no exemplo:
Acompanhamento
Fig.44: Melodia interna aos acordes que criam suspensões e resoluções, caracterizando os modos Eólio ou
Dórico de Si.
66
Temos aqui um pedal em Si e a melodia interna que soa, respectivamente na voz mais
aguda e mais grave, Mi – Ré – Do# e Do# - Ré – Mi. Falta uma informação que ajudaria na
conclusão do modo sobre o qual o trecho foi construído, que é a presença do sexto grau,
fazendo com que, mesmo se tratando de um trecho modal, ainda exista a dúvida sobre qual o
modo utilizado pois haveria a possibilidade de ser o modo Eólio, caso houvesse a presença da
nota Sol, ou o modo Dórico caso houvesse a presença de Sol sustenido. Os outros graus da
escala já foram definidos.
Também temos:
Aqui, além do pedal em Sol sustenido a melodia interna soa, respectivamente na voz
mais aguda e mais grave, Ré – Do - Si e Si – Lá# - Sol#, que juntos com as notas Fá#
executadas na clave da mão direita são suficientes para sugestionar o modo Lócrio 9 de Sol
sustenido, pela presença da quinta bemolizada (Ré) e da nona maior (Lá#). Modo derivado da
escala menor melódica de Si.
67
Fig.47: Escalas menor melódica de Si e o modo Lócrio 9 de Sol#, respectivamente.
Fig.48: Melodia interna que somada à clave da mão direita forma uma espécie de inversão de F#7(9-)
53 A harmonia pode aparecer uma só vez em um, ou em vários compassos. (SCHOENBERG, 1991, p.109)
68
Fig.49: Desenho pianístico semelhante a uma das variações do tarol (Transcrição do autor)
69
um crescendo de dinâmica e densidade que retomam o mote inicial da peça, sua levada:
Fig.51: Melodia criada da mistura da clave da mão direita complementadas pela esquerda
Melodia
70
Fig.52: Frases 1 e 2 de Maracatu.
Dinâmica
71
cria a ponte demonstrada e realiza a transição de maneira coerente, sem mudanças bruscas.
O pianista realiza também amplos e lentos trechos crescendo e decrescendo.
Articulação
Ao piano solo
54 O que é de se esperar visto que a simulação refere-se a uma orquestra de tambores, nas quais a articulação
legato não são executáveis.
55 Essa quebra de articulação interrompe o fluxo e as ressonâncias do pedal de sustentação proporcionando
uma a execução mais ritmada.
72
deixa explícita a vontade de que a performance soe como uma orquestra de maracatu.
Apesar da manutenção da mesma levada, pode-se dizer que em ”Alma” o macaratu é
mais “metafórico”, mesmo com os elementos encontrados tanto na transcrição de Egberto
quanto nas transcrições de Guerra-Peixe.
Não há na gravação em grupo a parte B, dedicada aos improvisos na região da
dominante. O que encontramos é uma seção em que os instrumentos de sopro realizam uma
longa frase descendente sobre a escala de tons inteiros, gerando um rápido retorno ao material
temático.
Ainda assim podemos afirmar que a sonoridade de ambas é bastante similar e que a
versão solo conserva muitos elementos da primeira gravada.
2.5 Karatê
Quinta peça do álbum, Karatê, segundo Gismonti, deve ser tocada “com humor”. A
performance no álbum ocorre de maneira ágil num andamento cuja semínima oscila em torno
de 214 bpm. É também uma das composições mais simétricas do disco sendo sua forma e
divisão fraseológica razoavelmente mais claras e de fácil descrição do que as outras peças.
Forma
Parte Compassos Resumo
A 1 ao 16 Primeira exposição temática
A1 17 ao 32 Reexposição oitava abaixo
B 33 ao 48 Exposição do segundo material temático
B1 49 ao 64 Repetição
A2 65 ao 80 Reexposicão da primeira melodia e entrada do “bombardino”
A3 81 ao 96 Reexposição melódica oitava abaixo
C 97 ao 112 Exposição do terceiro material melódico e entrada dos
sintetizadores
C1 113 ao 128 Repetição
D 129 ao 144 Exposição do quarto e último material melódico
A4 145 ao 160 Volta da primeira melodia e do bombardino
A5 161 ao 176 Repetição
73
Improviso 177 ao 191 Improvisação com acordes
Improviso 192 ao 208 Improvisação com acordes
A6 209 ao 224 Primeiro material melódico com as mãos invertidas
A7 225 ao 240 Repetição e entrada das “garrafas”
B2 241 ao 256 Reexposição de B e volta do “bombardino”
B3 247 ao 272 Repetição da seção anterior
A8 273 ao 289 Reexposição de A com “garrafas” e fim
Tab.8: Resumo das partes de Karatê (referentes à transcrição)
Harmonia
Parte A (c.1):
I V7 I
Parte B (c.33):
I V7 V7 I
74
Parte C (c.97):
V7/-VII V7/VII V7 I
Parte D (c.129):
(subV7) V7/VI I V7
Pode-se perceber que suas partes são construídas por procedimentos muito
semelhantes, simples e característicos à harmonia tonal. Em A percebemos um movimento de
tônica → dominante → tônica que caminha para o IV grau e resolve-se por duas cadências II
V, encontrando novamente a tônica, ou em B em que notamos a presença de uma progressão
II V para o VI, outra para o II e segue por duas novas progressões nesse modelo até a
dominante.
75
movimento ascendente cromático acompanhando uma série de arpejos na melodia que se
intercalam por ascendentes e descendentes sob cada um dos acordes.
Das peças mais claramente tonais de Gismonti em “Alma”, é interessante notar que em
Karatê Egberto utiliza poucas inversões que induziriam para um caminho dos baixos em
graus conjuntos. Os acordes aqui tendem a ser dispostos em posição fundamental56, o que gera
maior movimentação por saltos, numa maneira de organizar a harmonia menos comum às
encontradas no disco.
Acompanhamento
O que podemos notar é que a maneira como é tocada nessa peça é mais “clara” para a
identificação das melodias complementares às principais. Isso ocorre, cremos, primeiro pelo
fato do acompanhamento ser menos denso, possuir rítmica mais simples, conter menor
57
quantidade de saltos de grande amplitude e ser construído sobre linhas simples, sem a
ocorrência de muitos blocos, isso percebemos na primeira exposição temática:
56 Ainda que nesta execução Gismonti não os toque em blocos, tornando a compreensão harmônica mais
complexa.
57 Reduzindo a tessitura do acompanhamento.
76
Fig.54: Acompanhamento contrapontístico e disposição dos acordes na primeira exposição de Karatê.
Podemos perceber que, apesar dos acordes serem dispostos em posição fundamental
(como indicado na partitura guia) a construção das melodias elimina muitos dos saltos sob os
quais a composição harmônica ocorre, privilegiando graus conjuntos na ligação de um acorde
ao seu próximo, gerando uma espécie de “condução melódica de vozes”.
58 Baixos que aqui não caracterizam a fundamental dos acordes, configurando novamente o uso de harmonias
de apoio.
77
Fig.55: Acompanhamento da seção C. Melodia acompanhada e rítmica mais padronizada.
Não se preocupe com a falta da fundamental nos acordes. Quando tocar com uma
seção rítmica o baixista tocará frequentemente a fundamental no primeiro tempo de
um acorde, e pianistas de jazz utilizam esses voincings até mesmo ao tocar piano
solo (LEVINE, 1989, p. 41, Tradução nossa).
78
além de desmontar ou diminuir, ao ouvinte que focaliza sua audição nesse aspecto da
performance, a sensação de aleatoriedade que as primeiras audições desse modo de
acompanhar tendem a causar.
Algo também mais notável nessa peça, do que nas outras de acompanhamento similar
é, além de uma maior simplicidade rítmica, a maior utilização das pausas na mão esquerda.
Podemos observar momentos em que Gismonti não realiza melodias ou intervenções dessa
mão quando do repouso da melodia. Essa utilização do silêncio, enfatizando as últimas notas
executadas, pode ser percebida como uma espécie de variação do elemento, por omissão,
fazendo soar apenas a melodia principal, como visto abaixo:
Melodia
É notável que Karatê é uma das peças cuja divisão fraseológica é mais simétrica em
“Alma”, como podemos notar na tabela com as primeiras exposições frasais:
79
C 9 (98 ao 101)
10 (102 ao 105)
11(106 ao 109)
12 (110 ao 113)
D 13 (130 ao 133)
14 (134 ao 137)
15 (138 ao 141)
16 (142 ao 145)
Tab.9:Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada
Assim sendo, um dos recursos de variação, que também é utilizado em muitas das
outras performances nas quais a melodia é repetida muitas vezes, é potencializado nessa
execução: a mudança de oitavas.
Uma dessas variações de oitavas faz a execução de Karatê ser também o único
exemplo no álbum em que o pianista “cruza” as mãos sobre o piano para a execução de uma
melodia, ou seja, o acompanhamento passa para a região mais aguda do espectro enquanto a
melodia se situa na região mais grave.
Há exemplos de melodias situadas em regiões mais graves que o acompanhamento em
Baião Malandro e Infância. Porém o que nos faz inferir sobre o não cruzamento das mãos é o
fato dessas melodias serem criadas sob ostinatos de difícil execução na região aguda, que são
mais provavelmente tocados pela mão direita. Além disso, as melodias nas músicas citadas
são menos movidas, assimilando-se mais a movimentos melódicos característicos de
80
contrabaixos.
81
Dinâmica
Mas o que podemos encontrar, principalmente, são mudanças mais sutis quando da
repetição de partes. Assim como as mudanças de oitavas da execução da melodia, Gismonti
ora repete uma parte de forma mais piano, ora mais forte, utilizando, dessa maneira, da
dinâmica como recurso à menor variação rítmica e melódica das frases.
82
Articulação
83
É também do álbum a execução cujos staccatos são mais extremos, ou seja, as notas
são tocadas com a menor duração, principalmente na secão D, tendo seu início ilustrado
acima.
Ao piano solo
Ainda que não nos caiba analisar detalhadamente performances externas ao álbum
delimitado, Karatê nos leva a uma reflexão a cerca dos gêneros utilizados por Gismonti.
Fig.63: Padrão rítmico executado pela “caixa” no frevo (SALDANHA, 2003, p.184) também executado na
performance de Karatê no álbum anterior.
84
Outro aspecto que nota-se de diferente é a improvisação melódica sobre a forma que é
encontrada na performance de “Circense”, enquanto que em “Alma”, podemos encontrar
apenas repetições da mesma melodia em diferentes oitavas.
2.6 Frevo
Das peças mais intrigantes do álbum Frevo, sexta do disco (primeira faixado lado B do
LP), é uma das composições de Egberto mais reproduzidas e arranjadas por ele mesmo (em
outras formações) e por outros músicos.
Se comparada a outras performances, a contida em “Alma”, num piano solo com
intervenções de sintetizadores pelo próprio Egberto e por Nando Carneiro, se mostra ainda
mais complexa.
Os aspectos sonoros em Frevo são extremamente variados. Suas partes são
contrastantes entre si e suas mudanças, abruptas. Esse efeito é conseguido apesar da
composição não sair da tonalidade de Ré menor.
Essa complexidade é encontrada principalmente no acompanhamento, do qual se
encarrega a mão esquerda. A polifonia e o efeito polirítmico gerados pelas partes das mãos
direita e esquerda criam uma textura de difícil compreensão. É executada num andamento em
torno de 250 bpm.
A citação acima refere-se a outra performance da peça, mas o mesmo poderia ser dito
da execução encontrada em “Alma”
85
Forma
Parte Compassos Resumo
A 1 ao 32 Exposição do primeiro material melódico.
B 33 ao 48 Exposição do segundo motivo melódico.
A1 49 ao 64 Reexposição do motivo melódico com alterações do
acompanhamento
Ponte 65 ao 72 Sequência de acordes de transição para a nova parte
C 73 ao 115 Ostinato pedal na região grave
D 116 ao 162 Secão predominantemente legato da música
B1 163 ao 177 Retomada do segundo tema com alterações no
acompanhamento
A(2,3,4,5,6,7,8,9,10) 178 ao 336 Variações sobre o tema e criação de novas melodias
sobre o suporte harmônico de A.
Coda 337 ao 345 Acordes finais perdendo-se ritmicamente.
Tab.10: Resumo das partes de Frevo (referentes à transcrição)
Harmonia
Parte A:
I VII VI V
|: Dsus7 | Csus7 | Bb7M(11+) | Asus7(9-) :|
86
caminha por movimentos que privilegiam intervalos de quartas e quintas, pela utilização de
dominantes e dominantes secundários, como podemos notar:
Dessa forma percebemos a polarização da relativa maior de Ré, que é trazida através
de uma cadência II V secundária, seguida do VI grau (Bb7M), que é novamente seguida por
uma cadência II V para a dominante A13(11) e, por sua vez, finaliza o trecho retomando o Ré
menor.
É importante notar que a cifragem de “Frevo” é algo particularmente peculiar. A
fragmentação utilizada por Egberto no acompanhamento executado pela mão esquerda faz
com que o pianista omita ou inclua notas aos acordes modificando-os, cada vez que são
executados e dificultando a classificação, principalmente com relação às extensões utilizadas.
A harmonia de B também é predominantemente construída sobre cadências II V
secundárias, como podemos notar:
Parte B (c.33)
87
empréstimo modal do modo lócrio de Ré, Fm(add9), que é seguido pelo primeiro grau maior,
uma espécie de dominante não resolvida do IV grau e pelo dominante da tonalidade, fechando
o ciclo.
Ponte (c.65):
Parte C (c.73):
Diferindo das outras partes da peça, em C pode ser encontrada uma harmonização
estática devido ao pedal realizado entre as notas Do e Ré. Além da estaticidade harmônica,
encontramos com auxílio da melodia, um trecho no qual prevalece o modo dórico, algo que
ainda não havia ocorrido na peça.
Parte D (c.116):
60 Aqui há divergência entre a cifra do autor e a cifra contida no Songbook (Mondiamusic, 1990). O exemplar
de Bb é executado com sua 3ª maior 11ª aumentada e deve ser cifrado do modo aqui presente, em vez de
Bbm7(11).
88
I (II V) V V* V
|: Dm11 | Dm11/C | BØ9 | E13(9-) | A7M(5+) | A(13-,9+) :|
I VII (II V) V V V
|Dm11 | Csus4(13) | BØ | E13(9-) | A7M(5+) | A(9+,13-)|
Acompanhamento:
89
Fig.64: Contínuo melódico em colcheias dado pela complementaridade das linhas melódicas.
Fig.65: Comparação entre as cifras e as melodias com notas dos acordes executados por Gismonti.
Assim como em Loro e Karatê não é possível afirmar que essa forma de acompanhar
seja totalmente improvisada. Além disso, a partir da observação das várias repetições formais
que ocorrem nessa interpretação, percebe-se também que padrões são criados a partir dessas
61 A nota mais grave de um acorde, quando as notas são organizadas numa sequência de terças. Se não for
necessária nenhuma reorganização, diz-se que o acorde está em posição fundamental; se a fundamental não é
a nota mais grave, acorde encontra-se em INVERSÃO (SADIE, 1994, p.349)
90
improvisações e se repetem, como se houvessem espécies de shapes de montagem dos
acordes, que fazem com que a improvisação ocorra dentro dessas notas “possíveis” ou mais
facilmente "alcançáveis”.
Em B temos um acompanhamento diferente. Também é polifônico e mune-se de notas
dos acordes ainda referentes à cifragem dos lead sheets do encarte do disco. A diferença no
acompanhamento dessa parte é rítmica.
Enquanto em A o acompanhamento se faz muito do preenchimento das pausas e
repousos da melodia principal, em B tem-se um grau de independência melódica ainda maior.
Ocorre nessa seção uma sincopação que desloca e defasa temporalmente as linhas da mão
direita e da esquerda. Enquanto uma, a da mão direita, é constituída apenas de colcheias num
desenho rítmico regular, a outra, da mão esquerda, executa figuras rítmicas sincopadas ora
regulares, ora irregulares. Essas, somadas às melodias da mão direita, resultam numa textura
musical complexa e polirítmica de difícil execução:
Fig.66: Padrão regular da melodia principal contra melodia de rítmica irregular no acompanhamento.
91
Fig.67: Pedal sincopado da seção C
Já na parte D, pode-se encontrar ainda uma outra forma mais comum ao universo
pianístico e já utilizada de maneira similar em Karatê, no padrão homofônico de melodia
acompanhada. Aqui o que ocorre é a execução em oitavas das fundamentais dos acordes na
região grave do piano, seguida de complemento harmônico na região média. O que
observamos aqui é um procedimento composicional de variação semelhante ao que acontece
na peça citada acima. A mudança na maneira em que se dá o acompanhamento cria texturas
diferentes, adicionando contraste às partes da música.
Melodia
Por ser constituída de partes muito contrastantes, Frevo possui construções melódicas
variadas. O fator comum entre as melodias de todas as partes da música é o fato de serem
pouco cantabile.
A peça contém uma grande variedade de frases e faremos aqui, uma breve distinção de
seu material estrutural.
92
Parte Frases (compassos)
A 1a (1 ao 4) 1b (5 ao 8)
2 (9 ao 12)
3 (13 ao 16)
B 4a (33 ao 36) 4b (37 ao 40)
4a` (41 ao 44) 4b` (45 ao 48)
C 5 (81 ao 84) 5b (85 ao 87)
6 (88 ao 91)
7 (92 ao 94)
D 8 (116 ao 121)
9 (128 ao 131) 9b (132 ao 135)
Tab.11: Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada
No artigo sobre a peça (BORÉM e PINTO, 2013), os autores mostram que apesar de
variado, é possível encontrar no material melódico da peça alguns padrões fraseológicos que
conferem aspectos de unidade às partes da composição, ora pela utilização de movimentos e
motivos semelhantes, ora pela transfiguração de um motivo melódico, que se torna, por
exemplo, parte do acompanhamento em outra seção da música.
Um exemplo das reiterações e reutilizações de padrões melódicos encontrados pelos
pesquisadores que nos pareceu interessante é a possível transmutação do motivo rítmico de
melodia ascendente da finalização da frase 1a, na seção A, em parte do acompanhamento
pedal da parte C da peça.
93
Sobre aspectos interpretativos da melodia, destaca-se a variação rítmica realizada pelo
pianista nas repetições principalmente das frases da seção A. Egberto evita a repetição literal
da melodia através dessas alterações, como no exemplo a seguir que Gismonti as executa de
maneira tercinada:
Ainda como variação da melodia, Egberto utiliza ataques súbitos a duas ou mais notas
na região aguda do piano, como intervalos de segunda, gerando uma espécie de cluster62,
como no exemplo a seguir:
Além disso reservamos um exemplo em que o pianista faz uso da mudança de oitavas
da melodia. Salientamos que o material vinha sendo executado na oitava inferior e apenas por
62 (Ing., “agrupamento”) Grupo de notas adjacentes que soam simultaneamente. Os instrumentos de teclados
adequan0se particularmente a sua execução, uma vez que podem ser prontamente tocados com o punho, a
palma ou o antebraço. (SADIE, 1994, p.204)
94
um instante, um trecho da frase é tocado numa oitava superior.
Dinâmica
95
Fig.74: Frases 1a e 1b executadas sobre leves mudanças de dinâmica
E destacamos também um uso da dinâmica como efeito como podemos verificar nos
sforzzando da ponte.
É mais aceitável em Frevo que a dinâmica seja improvisada, não respeitando muitas
outras regras a não ser a vontade do executante. É importante lembrar que não só esse
parâmetro é improvisado, mas também que ele é elemento de destaque na improvisação, que
ocorre nas várias repetições de A ao fim da música, principalmente. Egberto executa uma
“montanha russa” de pianíssimos de poucos compassos, seguidos por fortes ataques gerando,
inclusive, sensação de aleatorieadade de dinâmica.
96
Articulação
Fig.75: Trecho da frase 2 executado em staccato, quando geralmente é executada apenas em non legato.
Outro aspecto que destacamos aqui é a primeira execução da frase 8. Como numa
transição entre as partes, a primeira execução dessa frase ainda carrega traços da articulação
anterior non legato, sem pedal, até sua repetição, em que aí sim, Gismonti assume a
articulação legato e utiliza de maneira constante o pedal de sustentação do instrumento.
Fig.76: Utilização de non legato no início da seção D, predominantemente legato, como transição entre as partes
97
Destacamos ainda, a sobreposição de articulações como no exemplo que Egberto
executa frases mais próximas ao staccato em uma das mãos e outras mais próximas ao legato
em outra, impossibilitando o uso do pedal de sustentação para a criação da textutra.
Frevo e dobrado.
98
O dobrado.
99
direto pela criação de um modelo nacional de marcha rápida. Podemos, no entanto,
verificar que, sendo executada em toda a vastidão do território nacional, a marcha,
ou seja, o “passo dobrado” europeu, no transcorrer do século, ficou completamente
exposto às influências dos vários outros gêneros musicais, que, por sua vez, já
haviam sido inoculados pelas diversidades musical, étnica e cultural das crescentes
populações urbanas. Resultou, daí, a gradativa consolidação de uma marcha
brasileira, que, sob a denominação genérica de dobrado, foi adquirindo e
sedimentando características muito peculiares. E, na medida em que foi se
distanciando dos modelos herdados do passo dobrado e das marchas européias, o
dobrado foi se consolidando como a marcha nacional brasileira por excelência, de
tal sorte que, a partir do último quartel dos anos 1800, o nosso dobrado já possuía
características melódicas, harmônicas, formais e contrapontísticas que o distinguiam
de outros gêneros musicais, permitindo assim a sua inclusão no rol dos gêneros
musicais genuinamente brasileiros. (ROCHA, 2014, p.9)
O frevo.
100
que terminavam em provocações e, mais adiante, nas brigas citadas.
Devido à grande quantidade de reclamações, a prática foi proibida e seus praticantes
perseguidos pela polícia. Dessa maneira, para passarem despercebidos, esses participantes
foram obrigados a adaptar seu modo de atuar nessas situações. Seus passos abrandaram e se
transformaram gradualmente em uma dança própria.
Assim, os “capoeiras” se transformaram nos “passistas”. Seus paus e navalhas deram
lugar aos guarda-chuvas, que em seguida, por conta ainda da utilização destes como arma,
deram lugar às pequenas sombrinhas, hoje símbolos do “Frevo”.
Segundo Saldanha:
63 A ária popular, com melodias populares. Não se trata da ária italiana, encontrada na ópera e na música de
concerto, muito embora, sofra influências desta, seja na divisão binária, ou na forma ternária A-B-A.
Contudo, mais próxima da ária do século XVI, composições simples sobre poesia ligeira.
64 Gênero de música de banda semelhante à marcha. Para alguns autores, o que os distingue é o fato de que no
dobrado há dobramento de instrumentos, ou desdobramento das partes instrumentais, [com linhas melódicas
desdobradas, com figuras de divisão rápida] o que justificaria o nome. (SADIE, 1994. Pg. 271).
101
uma manifestação cuja dança é folclórica, ou seja, de autoria não identificada enquanto a
música é autoral. Pode-se então depreender que o Frevo possui expoentes, nomes que
consolidaram ou modificaram o estilo.
O Frevo de Gismonti
Estilisticamente, Frevo de Egberto Gismonti faz alusão ao frevo coqueiro, com suas
passagens no registro agudo, virtuosismo e instrumentação contrapontística. Já sua
utilização de harmonia modal, acordes alterados e improvisação na forma remete ao
frevo de salão. Na performance de Frevo no disco Alma, Egberto Gismonti,
refletindo sua formação erudita no piano, utiliza um andamento ainda mais
virtuosístico, com semínima variando entre 224 e 232, o que torna esta versão, com
toda a complexidade de suas poliritmias, difícil mesmo para pianistas experientes.
(PINTO, BORÉM, 2013, p.104)
É sim possível encontrar características dos tipos de frevos citados acima, mas, como
o próprio Egberto afirma, muitas das características musicais de seu Frevo parecem ser
advindas do dobrado.
Em sua pesquisa sobre o frevo, Saldanha enumera alguns dos padrões que fazem parte
das composições e execuções dos frevos. A primeira das constatações afirma que o gênero é:
102
“Invariavelmente escrito em compasso binário 2/4, começa em anacruse, comumente, mas,
não exclusivamente em movimento ascendente”
Nesse ponto já é possível encontrar divergências entre a composição de Egberto e a
música das agremiações de Recife e Olinda. O Frevo de Gismonti não se inicia com uma frase
em anacruse.
O andamento que o músico imprime a essa interpretação se aproxima das execuções
dos Frevos. Nas versões impressas precedentes, a formula de compasso é de 4/4 65. Contudo, é
possível supor que essa opção é apenas para que seja facilitada a leitura, visto que Egberto
executa essa composição em andamentos extremamente rápidos (com a semínima variando
entre 224 e 232 na versão encontrada em “Alma”).
Ainda segundo Saldanha:
O dobrado também se enquadra nos ritmos que possuem acento no primeiro tempo,
como afirma Rocha, e é esse um dos pontos que mais aproximam a execução de Gismonti da
execução dos dobrados.
Das audições e análises, podemos perceber que a acentuação empregada por Egberto
em seu Frevo também se dá no primeiro tempo dos compassos.
103
O trio tem andamento ligeiramente mais lento do que as demais partes do
dobrado. Caracteriza-se, também, pela suavidade e doçura de sua linha melódica,
executada com dinâmica próxima do pianíssimo. Tem arranjos e instrumentação
peculiares, onde não faltam graves solos dos clarinetes, chorosos duetos e outros
elementos influenciados por sentimentos difusos, fazendo-nos lembrar certa
melancolia, encontrada também nas valsas e em outros gêneros nacionais ou
nacionalizados. (ROCHA, 2014, p.11).
Entretanto, Rocha ainda afirma que existe uma inúmera quantidade de dobrados nos
quais os temas levam a um desdobramento de exposição, A, B, C, fazendo com que o trio, a
parte contrastante da música, se torne o D.
Cita-se ainda:
Embora mais raros, existem ainda dobrados cujos trios são desdobrados em duas
partes. Se a exposição tiver duas partes (A-B), a elas seguirão as do trio (C-D), antes
da reexposição. No entanto, se a sua exposição for desdobrada em três partes (A-B-
C), após o solo do baixo, serão executadas as duas partes do trio (D-E) e depois a
reexposição geral que, como vimos, pode ser abreviada pela exclusão da segunda
parte (B). (ROCHA, 2014, p.11)
104
Essa última afirmação faz com que o Frevo de Gismonti tenha, até que completada sua
primeira exposição, uma estrutura muito semelhante às dos dobrados pesquisados por Rocha.
A última parte da música pode sim ser dividida em duas partes, o que sugeriria um D – E.
Desse modo, concluímos que a composição Frevo, de Egberto Gismonti possui uma
quantidade maior de características que remetem aos dobrados que aos frevos propriamente
ditos.
Ao piano solo
105
2.7 Água e vinho
Sétima peça, Água e vinho é também uma das mais lentas do álbum. Sua execução tem
a semínima em torno de 78 bpm e a sugestão interpretativa contida nas partituras do disco é a
de que seja tocada “Com alma”.
De caráter e estrutura semelhantes a Cigana, é construída também num padrão de
melodia acompanhada em tonalidade menor e sua sonoridade é também homogênea, ou seja,
pouco variada nos aspectos estudados. Essa estrutura homofônica prevalece durante toda a
peça com a presença de vozes internas, que não são independentes o suficiente para a
classificação polifônica. Pode-se afirmar também que seu material melódico é bastante
uniforme.
A tessitura do piano é bastante explorada, principalmente na região aguda do
instrumento.
Forma
Harmonia:
106
Com centro em Ré menor, Água e vinho é tonal, predominantemente triádica e com
grande presença de acordes invertidos, prática comum a Egberto Gismonti.
Outro elemento muito encontrado em Egberto também presente nessa composição é o
movimento dos acordes por graus conjuntos, como no acompanhamento frase 1, em que os
acordes vão em caminho ascendente de Dm ao seu dominante A7(9-), passando por Gm/D, F
e Gm.
Esse movimento é modificado quando a melodia se direciona para a frase 2. Ocorre
então uma cadência de engano67, no qual o acorde de dominante (A7) caminha em grau
conjunto para o relativo maior (Bb), que culmina numa inversão da dominante resolvendo no
homônimo maior da tonalidade (D/F#).
Parte A (c.3):
I IV III IV V
|: Dm Gm/D | F Gm | Asus7(9-) :|
VI IV V
| Bb Gm/Bb | A7(13-)/C# |
Refrão (c.11):
V/IV V/III V7/I VI -II VI ( II SubV) VI II V
| D/F# D | Csus7 C7 | A/C# Bb | Eb Bb/D | Cm6 B6 | Bb | Esus Asus7 |
Desse modo, o caminho harmônico que acompanha o refrão é uma forma de contrastar
partes da música.
Digno de uma análise mais aprofundada, a sequência harmônica que se inicia no
acorde de Ré (maior), aqui utilizado como dominante secundário não resolvido do quarto grau
(Gm), e é seguido da dominante do terceiro grau (F), que nos surpreende também por não ser
executado e dar lugar a A7/C# que caminha para a relativa maior da tonalidade (Bb).
67 […] “Por outro lado, as denominadas cadências interrompidas [Trugschlüsse] são mais construtivas como
significação harmônica. Por esse nome entende-se a substituição do passo V – I – que era esperado – por V -
VI ou por V – IV. Seu protótipo é este: após o V grau espera-se o I; mas, em vez deste, vem o VI ou o IV.
107
Há então uma cadência que polariza momentaneamente Bb [VI II V ( II SubV) VI]
e logo, fechando, um II V para a tônica Ré menor.
Esta última não ocorre. Egberto nos entrega a tônica sim, mas não sem passar
primeiramente pelo IV grau, Gm.
Um fato curioso é que existe, no repouso da progressão no qual Gismonti alterna entre
Gm e Dm, um pedal na nota Fá# nas oitavas superiores do piano. Esse pedal alteraria a
configuração harmônica desses dois últimos acordes para Gm7M e D. Entretanto, a distância
entre o que se faz soar entre as mãos é tão grande que desconsideramos esse pedal na análise
harmônica, fazendo deste apenas um recurso timbrístico.
Há nesse acompanhamento momentos distintos. O primeiro, no qual a harmonia
caminha a maior parte do tempo em graus conjuntos (no sentido tônica – dominante) e o
segundo, no qual a harmonia movimenta-se mais por padrões de dominantes secundárias não
resolvidas e tem em seu movimento o objetivo de alcançar a tônica.
Acompanhamento:
Fig.78: Padrão regular de colcheias e acordes em posição aberta no acompanhamento de Água e Vinho.
108
podemos ver:
Melodia:
Assim sendo, nota-se que as frases 1 (e 1b) privilegiam graus conjuntos e notas
repetidas, enquanto que as frases 2 e 3 privilegiam saltos intervalares maiores, compensados
por graus conjuntos e guarda do motivo inicial a repetição de notas.
No retorno à frase 1 (A2), após a primeira exposição do refrão, Egberto surpreende ao
trazer um nova linha melódica secundária. A surpresa não reside no fato de haver uma linha
contrapontística colorindo e modificando a linha melódica principal e sim no fato de essa
nova linha ser mais aguda que a linha principal e ainda assim ser ouvida como secundária.
Alguns processos explicam o ocorrido. Primeiro, a diferença rítmica entre elas,
enquanto a melodia principal é movida principalmente em colcheias, essa nova melodia se
move, quando mais subdividida, em semínimas, mas também em mínimas e semibreves.
Dessa maneira a melodia principal (mais grave) ainda se faz mais presente ao ouvinte.
109
Outro aspecto é a reiteração. A melodia principal já havia sido exposta sem a linha
complementar. Como traz o material temático que permeia a peça e já havia sido exposta
anteriormente, não perde o sentido de primeiro plano.
Um terceiro aspecto que contribui para que essa nova linha contrapontística não soe
como linha principal é a dinâmica empregada por Gismonti. Apesar de executar ambas as
melodias com a mesma mão, Egberto as executa com intensidades diferentes. A melodia
principal temática é executada levemente mais forte do que a melodia secundária.
110
encontra escrita em colcheias, se deu pela constância dessas quiálteras.
Em Cigana, a quiáltera executada sobre o acompanhamento em colcheias, ocorre mais
regularmente, como se essa fosse a forma não variada da rítmica da melodia. A opção pela
não grafia de inscrições como Swing Feel68 para preservação da escrita em colcheias é apenas
estilística.
A escolha, então, pela grafia em colcheias se deu para facilitar a leitura, visto que se
escrita da maneira como executada, a dificuldade de ler “engessaria” a performance do
pianista que se dispusesse a executá-la.
Para manutenção da fidelidade das transcrições, algumas inscrições foram adicionadas
para que o pianista leitor compreenda a maneira de execução de Egberto em aspectos mais
gerais de sua performance sem comprometer a leitura.
Com a rítmica regular do acompanhamento como referência de pulso e subdivisão,
essas inscrições interferem na relação entre a melodia (mão direita) e da linha desenvolvida
pela mão esquerda, como no exemplo a seguir:
68 Forma de grafia musical típica das partituras de jazz na qual as colcheias são escritas normalmente porém
não são tocadas como grafadas.
111
Além da forma ritmicamente aberta percebida da execução, é possível perceber que há
nessa interpretação improvisação melódica.
A improvisação em Água e vinho é realizada à maneira jazzística. Egberto reserva um
chorus para a criação de novas melodias sobre a estrutura harmônica da música toda. Apesar
disso, é contido.
Assim como no material estrutural, evita dissonâncias e notas de passagem e se utiliza
basicamente das mesmas escalas que constituem a melodia, saindo da escala de Ré menor
apenas quando há a presença das dominantes secundárias.
O caráter tranquilo é mantido e a rítmica do improviso também não sofre muitas
alterações. Permanecem as frases em colcheias com repousos nos mesmos acordes em que
encontramos os “respiros” da melodia. Assim como os outros improvisos melódicos de
Gismonti, mantém o caráter de variação sobre a mesma.
Algo também notável é a utilização, única em toda a peça, da escala de tons inteiros. A
coda, realizada após a última execução do tema, consiste num movimento ascendente por essa
escala, finalizando a performance, como podemos ver:
Dinâmica
112
Egberto varia, ainda que não drasticamente, a cada repetição mostrando assim o quão
dependente de cada interpretação da música a está dinâmica.
De maneira geral, a dinâmica acompanha a movimentação das frases, tendo os
momentos de maior densidade sob dinâmicas mais fortes e os de menor, mais piano.
Um exemplo que nos chamou a atenção é o seguinte trecho da frase 1b que liga o A ao
refrão, constituído de um movimento ascendente que, ao contrário do que se espera por conta
da frase seguinte ser geralmente mais forte, é tocado em decrescendo, sendo seguido de um
rápido crescendo, para que seja retomada a dinâmica posterior.
Fig.83: Frase ascendente tocada sob um decrescendo provocando alteração no caminho melódico.
Outro momento interessante são os ataques nas oitavas superiores ao fim de cada
forma completa. Junto com as gravações de sinos, que são inseridas na faixa, Egberto as
realiza em decrescendo e pianíssimo tão acuradamente que a sonoridade chega se fundir com
a dos sinos disparados.
Fig.84: Sinos
113
Articulação
Ao piano solo
Água e vinho, das músicas pesquisadas, é a que se modifica menos e mantêm mais
características que remetem à primeira versão, gravada em grupo.
Ao piano solo, a composição, que em sua primeira gravação é cantada pelo próprio
Egberto, tem modificações principalmente rítmicas.
Possivelmente pelo fato da formação instrumental ser maior, a interpretação contida
em “Água e Vinho” (EMI-Odeon, 1972) possui a pulsação mais regular, o que não ocorre em
sua interpretação solo.
Tocada de forma mais lenta, privilegia as mudanças de andamento acelerando os
meios das frases e retardando calmamente seus finais, valorizando os repousos melódicos.
O improviso sobre a forma completa também é uma novidade da versão solo à medida
em que a primeira interpretação conta apenas com duas exposições temáticas, sendo assim,
mais curta.
2.8 Infância
Oitava peça do disco, Infância é tocada de modo ligeiro, com a semínima em torno de
151 bpm e contém a inscrição “Infantilmente” na indicação contida na partitura do disco.
Permeada por ostinatos, a inscrição aponta para a presença de jogos rítmicos na execução que
trazem o tom de brincadeira presente na performance.
114
Forma
Parte Compassos Resumo
Inrodução 1 ao 8 Apresentação do primeiro ostinato
A 9 ao 37 Execução do primeiro material melódico
Ponte 38 ao 45 Ponte sobre a região do quinto grau (casa 1)
A1 46 ao 60 Reexposição da primeira melodia sob outro acompanhamento
B 61 ao 107 Segundo material melódico sobre novo ostinato
B1 108 ao 134 Segundo material melódico sobre primeiro ostinato
A2 135 ao 149 Reexposição da primeira melodia
C 150 ao 177 Novo ostinato (mão direita) com improvisação rítmica
C1 178 ao 196 Repetição oitava do ostinato oitava acima e continuação do
improviso rítmico
Ponte 1 197 ao 204 Vamp sobre o centro tonal
Ponte 2 205 ao 224 Rápido afastamento da tonalidade
C2 225 ao 244 Retomada do ostinato da mão direita
C3 245 ao 267 Ostinato uma oitava acima
Ponte 3 268 ao 295 Bricandeira rítmica sobre o vamp da ponte 1
A3 296 ao 329 Retomada da da primeira melodia
A4 330 ao 344 Exposição final
Tab.14: Resumo das partes de Infância (referentes à transcrição)
Como podemos notar, sua forma é livre e a música possui muitas vezes, um aspecto de
colagem. Suas partes são assimétricas e suas repetições não contam necessariamente com o
mesmo número de compassos.
A execução do álbum contém partes não descritas nos Lead Sheets da contracapa,
assim como em outras ocorrências do disco, dificultando a diferenciação do que são os
aspectos estruturais e os que não são.
Aqui encontramos também a exemplificação do possível desapego dos aspectos
formais que Egberto mostra.
O Lead Sheet da contracapa traz o que aqui é nomeado por Ponte como se fosse a
casa 1 de A e os sete primeiros compassos de B como a casa 2 da parte anterior. Porém,
Egberto as executa dessa maneira apenas na primeira exposição. As repetições A2, A3 e A4
não são seguidas de um respiro na melodia principal e desembocam diretamente na seção
115
posterior. O que se percebe é que Egberto insere repousos entre algumas das partes, mas esses
não parecem exercer papel estrutural na composição.
Harmonia
69 Os tempos aqui são uma redução e não coincidem com a execução. Isso é feito pois Egberto mantém a
mesma região harmônica por vários compassos, o que tornaria a escrita demasiadamente massante.
70 Omitimos a análise harmônica da ponte por não ser parte constituinte da composição nas partituras
encontradas.
71 Apenas nessa repetição, todas as outras são realizadas sob o ostinato.
116
Parte C (c.150): I IV V I
|: Db | Gb | Ab | Db:|
IV III II V
| Gb | Fm | Ebm | Ab |
Desse modo, podemos especular que a harmonia não é um item fixo e também como a
performance, afeta inclusive a movimentação harmônica na peça, na qual Egberto, em partes
repetidas, opta pela estaticidade ou não do movimento.
Ponte 2 (c.205):
Acompanhamento
117
durante a peça, segundo procedem de brincadeiras e padrões rítmicos realizados sobre os
acordes, principalmente na parte C dessa execução da peça.
O primeiro ostinato, de abertura da faixa, como numa menção a figuras do
minimalismo73. Estático, veloz e repetitivo, dá suporte à melodia principal num jogo
polimétrico.
Seu ciclo é ternário, enquanto a subdivisão da melodia é quaternária. Esse jogo gera
uma série de desencontros que só não são mais confusos pela não acentuação do começo de
cada ciclo. A execução é tecnicamente complexa, pois exige, além da habilidade de manter a
polimetria, a resistência física do executante.
Apesar do padrão matemático que existe nesse acompanhamento, esse não parece ser
o aspecto central da performance. Os inícios de frases não coincidem com os padrões do
ostinato e não se deslocam de uma maneira perceptível pela audição ou pela análise.
As mudanças de acordes são dadas, principalmente, pela alteração dos baixos
realizadas pela mão direita que “cruza” com a esquerda, executando essas fundamentais em
regiões graves do piano. O padrão de notas realizadas pela mão esquerda se mantém fixo nas
partes em que vigora.
73 Termo que a partir de 1970 passou a designar técnicas composicionais baseadas na repetição de pequenas
células rítmicas e melódicas, frequentemente sobre harmonias construídas por tríades quase estáticas. Seus
mais conhecidos divulgadores foram Steve Reich, Terry Riley e Philip Glass. Conceitualmente, pode-se
dizer que há aspectos minimalistas na música da Antiguidade (India e Bali), nas obras do francês Éric Satie e
até em Webern , da chamada Segunda Escola de Viena […] (DOURADO, 2004, p.206)
118
Fig.86: Mudança de região harmônica pela alteração dos baixos e início das melodias coincidindo com diferentes
partes nos ciclos dos ostinatos.
Fig.87: Acompanhamento de apenas uma nota para as duas primeiras frases de A1.
119
O segundo ostinato, referente à parte B, é ritmicamente mais simples. Sua subdivisão
binária não cria padrões polimétricos e seus ciclos se fecham simultaneamente aos das frases
da melodia.
120
Fig.89: Colcheias pontuas sobre as fundamentais e quintas dos acordes.
Outros padrões mais simples são encontrados, como o tresillo, comum a diversos
estilos da música sul-americana .
Melodia
Parte Frases
A 1a (9 ao 12)
121
2a (25 ao 28) 2b (34 ao 37)
B 3a (68 ao 71) 3b (78 ao 81)
3c (88 ao 91) 3d (98 ao 101)
C 4a (150 ao 153) 4b (154 ao157)
5 (166 ao 169)
Ponte 6a (504 ao 207) 6b (209 ao 211)
7a (213 ao 216) 7b (217 ao 220)
Tab.15:Divisão das frases em suas primeiras ocorrências na performance estudada
Infância se mostra diferente das outras interpretações do álbum pelo fato de haver
menos variação nas melodias. Ritmicamente são executadas de maneiras muito semelhantes,
tendendo à repetição pura e a ornamentação que é limitada.
Alguns aspectos saltam à análise e julgamos de importante explicação. Primeiramente,
vale destacar a complexidade técnica das frases 1 e 2. Suas melodias, apesar de simples e
construídas por graus conjuntos, são tocadas paralelamente em intervalos de 6 a, o que dificulta
a execução devido ao andamento rápido da música e o acompanhamento “defasado” visto na
parte anterior. As frases 2 se comportam como respostas à frase 1.
Da execução, é interessante notar que essas frases são tocadas em intervalos de sextas
paralelas, exigindo do pianista destreza, para que sejam bem tocadas principalmente por conta
do andamento ágil, dificultando o salto e as semicolcheias da frase 1 e as repetições de notas
da 2.
122
álbum. Sem grandes alterações de rítmica e notas das frases 1 e 2, Gismonti inverte a
acentuação, privilegiando os contratempos, como podemos perceber:
As frases 3(a,b,c e d) são variações de uma mesma melodia. O que se altera entre elas
é apenas a região harmônica sobre a qual são executadas. Aqui encontramos também uma
forma interessante de preenchimento dos repousos melódicos, Egberto, ao fim de cada uma
das figuras, realiza arpejos em 5a ascendentes e descendentes. A ornamentação 74 é realizada
ao fim de todas as exposições das frases em B.
123
Outro elemento de destaque são as melodias da parte C, constituídas
basicamente por arpejos da harmonia vigente. O que encontramos nessa seção é uma inversão
da ordem predominante até o momento. Apesar da grande movimentação das melodias 4 e 5,
elas admitem função secundária e Gismonti traz para o destaque o acompanhamento descrito
acima. Aqui, um exemplo dessa construção.
Dinâmica
Assim como a maioria das peças do disco, a variação de dinâmica em Infância não é
feita de maneira estrutural. A priori, suas partes não são diferenciáveis nesse aspecto e as
nuances ocorridas provém apenas da performance.
Os extremos de volume não são alcançados, predominando assim diâmicas mezzo
piano e mezzo forte. É, possivelmente, o elemento performático menos variado da gravação e
dá espaço para outras formas de enriquecimento da performance.
Um aspecto relevante da performance, sobre o filtro da dinâmica, é percebido a
respeito de questões técnicas. Invertendo-se a prática comum pianística na qual a mão direita,
geralmente responsável pela melodia, é executada levemente mais forte do que a esquerda, a
parte C de Infância é constituída do contrário desse procedimento. Egberto executa o ostinato
melódico da mão direita de maneira levemente mais fraca que os baixos da mão esquerda,
fazendo com que esses, juntamente à rítmica complexa sob a qual são executadas, obtenham
124
lugar de destaque no espectro sonoro.
Articulação
Prevalece nessa execução articulações non legato, o que dificulta ainda mais a
realização os ostinatos da composição. Esse tipo de articulação obriga o pianista, para que
mantenha o fluxo de frases repetidas, a executá-las sobre grande acuidade rítmica.
O pedal de sustentação do instrumento é pouco utilizado e acreditamos, que seu uso
aqui vem como forma de variação da sonoridade. Tomemos como exemplo a mudança de
ostinatos entre as partes A e B.
As figuras possuem rítmicas e aspectos harmônicos semelhantes. O aspecto que mais
varia na diferenciação da sonoridade das partes é a mudança de articulção, que é auxiliada
pelo uso do pedal. A segunda figura repetitiva tende a um espectro mais “embolado” 75 e uma
rítmica menos definida. Desse modo, Egberto nos mostra como a variação de aspectos
simples podem trazer novos coloridos às interpretações, mesmo as que possuem elementos
bastante repetitivos.
Um exemplo da articulação pode ser encontrado nos arpejos em quintas, já
mencionados na seção B. Egberto alterna, sem ordem pré-estabelecida, entre realizá-los sob
staccatos e legatos contando, para isso, com o auxílio do pedal, brincando com o elemento,
como podemos ver:
Não se pode afirmar, mas suspeita-se também que o pedal é utilizado como “descanso”
75 Por conta da sobreposição dos harmônicos das notas que soam simultaneamente.
125
para as mãos do pianista, que chega a repetir a mesma figura em semicolcheias por trinta e
sete compassos ininterruptos, como na parte A. Assim, com o pedal pressionado, há menor
necessidade de precisão rítmica.
Vale ressaltar também, o uso comum ao pianista, de diferentes articulações para as
duas mãos. Em C temos um exemplo disso, quando Egberto realiza a melodia característica
da seção em um “quase” legato e executa os baixos numa articulação que varia entre o
portato e o stacatto.
Ao piano solo
Num caso raro em Egberto encontramos nas versões de “Alma” (EMI-Odeon, 1986) e
“Fantasia” (EMI-Odeon, 1982), muitas semelhanças.
Sendo a primeira versão executada apenas por sintetizadores e sendo esses,
instrumentos de teclado, pode-se sugerir uma razão para tamanha semelhança apesar da
grande discrepância timbrística.
A forma se mantém praticamente inalterada (exceto pela finalização em C na versão
mais antiga) e não há adição ou omissão de seções para ambas performances.
A versão solo é ligeiramente mais veloz e a maior diferença é encontrada no
tratamento da seç ão C. Ao piano solo, Gismonti reserva essa parte para brincadeiras rítmicas
mais elaboradas no acompanhamento, o que não ocorre na versão com sintetizadores.
Retomando o que foi mencionado a respeito da diferenciação de dinâmica entre as
mãos (que na versão solo o pianista executa a melodia mais piano que o acompanhamento), é
notório que na versão com sintetizadores essa inversão não ocorre, o que reserva o primeiro
plano à melodia, não ao acompanhamento.
Acreditamos que a falta de variedade de timbres da versão solo tem sua compensação
no virtuosismo da performance, com suas “pontuadas” e ritmos complexos, principalmente na
seção C.
126
2.9 Cigana
Nona peça do disco, Cigana é uma das mais lentas de “Alma”. A inscrição “Com
amor”, encontrada no lead sheet do disco é um indicativo do tratamento que o pianista sugere
à peça. No LP possui andamento com a semínima em torno de 68 bpm.
Forma
Parte Compassos Resumo
Introdução 1 ao 6 Apresentação do acompanhamento
A 7 ao 30 Exposição do tema
Ponte 31 ao 38 Movimento sobre o centro tonal
A1 39 ao 62 Reexposição do tema com pequenas variações de
acompanhamento
B 63 ao 79 Exposição do tema 2, derivado do motivo de A.
A2 80 ao 103 Reexposição de A, com variações melódicas e no
acompanhamento.
B1 104 ao 121 Variação do tema de B.
A3 122 ao 144 A com mudanças na tessitura melódica e do acompanhamento.
Ponte 1 145 ao 153 Suspensão e exposição do acorde de centro tonal. Fechamento.
Tab.16: Resumo das partes de Cigana (referentes à transcrição)
Harmonia
Com o centro tonal em Lá menor, a peça tem em seu A, logo após a apresentação do
arpejo motívico que perpassa essa seção uma progressão cromática descendente iniciada em
Am(9).
A cadência harmônica do A, se dá da seguinte maneira (cifragem divergente da que
constitui a partitura do encarte do álbum):
127
Parte A (c.7):
(II V) +III IV V
|D#Ø | G#7/D# | D7(11+) | E7(13-) |
Outro elemento composicional que pode ser percebido nessa progressão de acordes é
que sua montagem não se dá por funções harmônicas. Com exceção do último acorde da
sequência, E7(13-), dominante tanto para o Lá menor da ponte, quanto para o da parte B, no
qual todas as vozes se movem simultaneamente com relação ao acorde anterior, nota-se que a
condução de vozes é o sistema que deu origem à harmonia dessa seção da música.
Em muitos casos da cadência harmônica, apenas uma voz do acorde é movida e gera o
novo subsequente. Em outros, duas ou três. É desse modo que podemos perceber a harmonia
criada por Egberto. Há ainda que se considerar, que a cifragem acima foi mantida apenas por
rigor teórico, pois acredita-se que há aqui, na verdade, uma progressão intrínseca mais
simples e coerente.
Muito comum a vários estilos musicais, a progressão que se inicia com um acorde
menor em posição fundamental, segue com o início do segundo acorde, num movimento em
que a fundamental (ou sua oitava) caminha cromaticamente para sétimas e sextas (8ª – 7ªM –
7ªm – 6ªM – 6ªm). A diferença nesse caso, que nos obrigou à opção por uma cifragem que
valorizasse mais as notas tocadas que o movimento harmônico, reside no fato de que Egberto,
ao fazer essa opção de caminho harmônico, omitiu a fundamental Lá, geradora da progressão
nos 4 acordes subsequentes ao primeiro.
Em B, encontramos um outro procedimento utilizado com relativa frequência por
Egberto, que é a alternância entre movimentos harmônicos em uma determinada direção por
grau conjunto ou cromático e movimentos harmônicos por intervalos de quartas ou quintas 77.
76 Mesmo com a ausência da terça do acorde, considera-se este um exemplar de acorde meio diminuto, pois,
segundo Tiné (2011, p.41) as notas básicas e indispensáveis ao acorde meio diminuto são a quinta e a sétima.
77 Padrões semelhantes são encontrados em Frevo e Água e Vinho.
128
Vale também ressaltar, que mesmo utilizando um padrão desses, entre um acorde e
outro, não necessariamente faz o mesmo movimento com seus baixos78. Desse modo, uma
progressão que caminha em intervalos que não sejam graus conjuntos ou que faça presente a
relação de tensão/resolução comum ao movimento dominante (primário ou secundário) –
tônica, pode estar camuflada por acordes invertidos em outro padrão de desenho melódico ou
até mesmo sem padrão algum.
A parte B de “Cigana” é um exemplo desse contraste de movimento da progressão
harmônica. Assim, encontramos a seguinte cifragem (também diferente do encontrado no
encarte do disco):
Parte B (c.63):
I subV/VII=(V/IV IV iv I
| Am | Ab/Gb | Ab/Gb | Db69/F | Db6/F | Dbm9/Fb | Dbm/Fb | Ab/Eb |
+IV I (subV/V)=V I
| % | DØ | DØ(13-) | Ab/Eb | % | E7 (13-) | % | Am |
129
interromperia o movimento adicionando um salto de segunda maior, que ainda não havia
ocorrido na progressão.
Ainda assim, é possível considerá-lo como um representante do quarto grau, porém
agora aumentado (+IV).
Acompanhamento
Os acordes dessa seção são dispostos em posição fechada e são executados em formas
arpejadas, sendo que a última colcheia de cada compasso é ligada à primeira do seu posterior,
o que caracteriza essa síncopa e gera uma espécie de pedal nas extremidades agudas dos
acordes, dado que essas notas muitas vezes se repetem.
O acompanhamento da parte seguinte, B, é também sincopado, porém de maneira
diferente. Segue a estrutura colcheia-semínima-colcheia (com modificações) e apresenta a
harmonia em forma de blocos subdivididos em baixo-acorde-baixo, de acordo com a
sequência rítmica apresentada.
130
Fig.99: Acompanhamento no padrão colcheia-semínima-colcheia com acordes quebrados.
Variações no acompanhamento
Como já foi dito, para que se possa compreender mais do estilo pianístico de Egberto,
é necessário entender que o músico opta pela não repetição literal de elementos. O desenho
desenvolvido pela mão esquerda do pianista em Cigana apresenta exemplos.
A reexposição do A conta com algumas modificações no acompanhamento. A
progressão e o desenho melódico sincopado são mantidos, mas os acordes são dispostos agora
na posição aberta, ocupando maior espaço espectral. Essa abertura é perdida no compasso 86,
no qual Egberto volta à posição fechada retomando a fórmula executada previamente.
Fig.100: Variação do acompanhamento por figuração pela utilização de acordes em posição aberta por alguns
compassos em A2.
Essa retomada da progressão com acordes dispostos em posição aberta ocorre nas duas
passagens em que retorna de B para A. A primeira ocorrência tem duração de 6 compassos
131
(80 a 85) e a segunda de 8 (121 a 128). Essa irregularidade traz uma questão sobre como
possivelmente Egberto realiza o tratamento harmônico. Uma possível hipótese é a de que
Egberto deixou nessa gravação, para decidir no momento da performance, que tipo de
abertura utilizaria para a realização dos acordes ao invés de programá-lo previamente. O
pianista decide iniciar a nova seção sob uma disposição diferente dos acordes e não
encontrando uma solução para dar continuidade às aberturas, por conta do posicionamento das
mãos ou mesmo da tessitura, resolve retomar a posição fechada, sob a qual poderia estar mais
habituado, com movimentos mais automatizados.
Melodia
132
Fig.101 trecho da frase 1a
133
contida nas partituras do encarte do álbum e a grafada pelo autor.
Aqui, diferentemente do que ocorre em Água e Vinho, descrito em sua análise, não é a
variação da melodia que cria a diferença rítmica entre o acompanhamento e a melodia. A
melodia é predominantemente executada como se estivesse escrita em uma fórmula de
compasso composto, enquanto o acompanhamento em compasso simples. Dessa forma, a
opção de notação foi a que mais se aproximava da execução do pianista, como no exemplo:
Ainda assim, a transcrição rítmica dessa melodia se faz por uma aproximação pois
existem nuances utilizadas nas variações interpretativas que inviabilizariam a leitura das
partituras geradas.
Gismonti utiliza, como em muitas das performances presentes no álbum, a mudança de
oitavas da melodia, para efeito de variação melódica. Esta performance mostra a liberdade
com que o pianista brinca com esses elementos. Em A3, podemos perceber80 que apenas a
frase 1a é executada duas oitavas acima e a próxima frase, 1b, já vem executada na região da
tessitura do piano predominante na peça:
80 Além de uma alteração rítmica que omite a anacruse inicial das frases.
134
Dinâmica
135
Fig.107: Crescendo acima da média na frase 1e (A).
Articulação
Ao piano solo
A melodia, antes executada na sitar, era tocada em apenas uma região do instrumento,
na mesma oitava. A versão solo traz uma melodia que se apresenta em várias oitavas do piano
e conta também com interpretação rítmica mais livre.
136
A perda da estaticidade da música se dá na subdivisão rítmica, que o
acompanhamento, descrito na seção homônima, confere a ela.
137
138
3 - O ESTILO PIANÍSTICO
Desse modo, este capítulo é dedicado às características mais usuais que foram
depreendidas das análises e transcrições. Serão aqui apresentados conjuntos de fatores que,
sem limitar, focalizará recursos recorrentes do piano de Gismonti apontando preferências e
tendências de um estilo.
Dois aspectos principais serão abordados. Os resultados ilustrarão como Egberto, por
um lado, utiliza técnicas e soluções musicais e pianisticas já “consagradas” ou comuns e, por
outro, como o músico se apropria e as modifica, gerando nuances que, se não são particulares,
são bem menos utilizadas por outros músicos, diferenciando-o.
139
em planos mais sutis como em articulações e dinâmicas. Em outras, encontra-se em uma nota,
numa sequência delas ou num ritmo dado, por exemplo.
Essas diferenças, em alguns dos casos, soam involuntárias. O que muitos pianistas e
outros instrumentistas classificariam como “erro”, podem ser encontrados em Egberto como
parte sadia do procedimento performático e até mesmo composicional que o músico parece
cultivar, ao invés de tentar evitar.
[...] tanto que tem erro de nota, mas que não muda nada o sensorial. E
normalmente quem toca na emoção, se errar uma nota o cachimbo cai. Comigo não
cai porque é o sensorial que está mandando. (Depoimento de Gismonti a SILVA,
2005, p.61)
Pode-se perceber que Gismonti aceita suas contribuições involuntárias. Essa postura,
de acordo com o próprio pianista, não se dá apenas no âmbito performático. Traz também o
“erro” como procedimento composicional:
Mas eu, como compositor, passei a não considerar mais nenhum erro de
nada, até porque eu já errei e qualifiquei muito o que eu estava fazendo. Muitas
vezes eu toquei coisas erradas e pensei “Mas isso aí é muito melhor do que eu tinha
pensado!”. (Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.61)
Reflete ainda uma concepção geral de seu pensamento musical e dá indícios do que
140
espera da compreensão musical alheia:
Para aqueles que têm uma leitura profunda, a compreensão é muito mais
ampla, porque não é um compasso, é o contexto todo. Leva isso para um ator: você
nunca vai ver a Fernanda Montenegro gaguejar uma peça, ou parar, porque se ela
esquece 1, 2, 3, 4, 5 palavras, ela lembra as outras 15 mil. Porque o que interessa são
as 15 mil, e não as 10. Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.61)
O pianista mostra que privilegia aspectos macroscópicos da obra. Parece acreditar que
a atenção para os detalhes em detrimento do todo é errônea e incentiva a busca pelo oposto.
“Alma” parece permeado desse pensamento. O fato do disco ter sido concebido para
piano solo, o que consequentemente não obriga o músico a “acertar detalhes” de melodias ou
harmonias com outros músicos, que poderiam dobrá-las ou tocá-las sobre outras relações
intervalares, potencializa o efeito do privilégio do geral sobre o detalhe.
Percebem-se que “esbarrões”, harmonias alteradas por escapadas dos dedos, melodias
de contorno obscuro e trechos de sonoridade “embolada”, não são omitidos da gravação. Não
se trata de dificuldade técnica nem descuido com a obra. Trata-se de captar o momento da
performance e valorizar aspectos outros que não uma execução cristalina, ao que o próprio
pianista comenta sobre seu modo de compor, mas que também está refletido, cremos, em seu
modo de tocar:
141
O alto grau de elaboração de algumas das composições de Gismonti - suas partituras
guia, na maioria das vezes, não são constituídas apenas de linhas melódicas e cifras, como é
um procedimento comum à musica popular escrita) torna dúbio seu modo composicional.
Esse aspecto afeta diretamente a interpretação por outros músicos da obra do pianista.
A dúvida, que essa maior elaboração da escrita gera nos intérpretes, está ligada à falta de
clareza na decisão do que é essencial à caracterização da performance. Assim sendo,
encontramos execuções bastante “fiéis” às partituras guia e outras em que muitos elementos
são alterados, como num improviso sobre a obra ou um arranjo com bastante liberdade.
Apesar de indicar elementos não descritos comumente, como o acompanhamento em
alguns dos casos, o tratamento que o pianista confere às próprias músicas é feito de maneira
mais próxima ao que se costuma fazer em execuções de música popular, pois:
142
com que Gismonti trata suas repetições. O que se altera é uma espécie de “molho”.
O que podemos perceber ainda é que o “molho” em Egberto não é conseguido apenas
por variações e ornamentações na melodia principal. E ainda como um “chorão” a maneira de
se acompanhar também varia, tanto em questões sutis como articulação e dinâmica quanto nas
notas que as constituem, em alguns casos, como uma “baixaria” realizada pelos violonistas
acompanhadores no choro84.
O que torna especial a performance do pianista é o fato de uma mesma pessoa ser
responsável pela execução melódica, inspirada e ornamentada e também de um
acompanhamento não menos rebuscado. Obviamente um pode afirmar que “tocar piano”
necessita intrinsecamente dessa habilidade, entretanto, na prática, não é algo tão comum
encontrar pianistas que demonstram tamanha desenvoltura, principalmente por se tratar de
algo com um alto teor de improvisação, acumulando as duas funções de maneira tão
equilibrada, atenuando os desníveis de habilidade e raciocínio para cada uma das mãos.
Ainda que haja improvisação melódica sobre a estrutura harmônica das peças,
principalmente em Frevo, é menos comum que Gismonti amplie o discurso musical ao modo
jazzístico.
O que se pode dizer é que todos os parâmetros analisados se comportam, em algum
momento, como elemento de variação nas performances do pianista.
3.3 Forma:
A maior parte das composições presentes no álbum possui partes bem definidas e de
fácil diferenciação. Ainda assim, Gismonti traz à luz uma maneira de executá-las particular e
incomum.
Ainda que não seja de uso exclusivo do pianista, a concatenação entre as partes é que
nos chama a atenção. As sugestões de execução inscritas nos Lead Sheets da contracapa do
disco são uma pista da maneira em que o pianista as trata, tais como “repetir cada parte
84 É necessário compreender que a “baixaria” aqui citada como prática comum a Egberto em suas
interpretações no disco, não são constituídas necessariamente das características rítmco/melódicas
encontradas no gênero do choro. É encontrada em sentido metafórico indicando que Egberto mantém, em
alguns casos, acompanhamentos nos quais realiza ornamentos, frases, mudanças de articulação e de
dinâmica de maneira aparentemente improvisada.
143
quantas vezes quiser” (Baião Malandro), “improvisar quantas vezes queira!” (Frevo),
“repetir quantas vezes queira” (Infância), “repetir várias vezes” (Cigana).
Apesar das inscrições indicativas de liberdade formal serem encontradas apenas nas
quatro músicas supracitadas, pode-se dizer que a prática é comum a todas as músicas, com
diferenças.
O que é perceptível é que Egberto altera as formas das composições ao seu gosto. E na
obra estudada, o pianista não se limita apenas a repetir partes ou não. Também as altera,
adiciona e omite.
Metaforicamente, poderíamos inferir que as peças estudadas são como uma espécie de
quebra-cabeça, no qual as peças (partes) se encaixam independentemente de sua ordem, de
qualquer maneira.
Exemplos de irregularidade nas formas são encontrados das mais diversas maneiras. A
parte B de Baião Malandro apresenta números de compassos diferentes a cada exposição.
Assim como a opção por executar as frases 1(a e b) na parte sob o vamp característico da
mesma música não é regra.
Outro aspecto notável é que algumas das músicas de Egberto apresentam pontes e
seções que interligam partes. O fato curioso é que tocá-las ou não também nos parece uma
opção, como em Palhaço, onde os acordes sobre os quais ocorre o repouso da melodia ora
interligam repetições de partes, ora partes diferentes, ora são omitidos.
As exceções à prática do álbum são Loro e Água e Vinho. Estas últimas, por se
tratarem de composições de apenas uma parte, se constituem de uma sequência de repetições
“iguais”85
Essa maneira de executar as composições nos leva a crer que a prática é uma das
várias formas de improvisação encontradas em Egberto. Ou seja, o pianista muito
provavelmente opta pela escolha da próxima parte ou de uma possível repetição da anterior
durante a execução.
Além disso, fato não observável no disco estudado, Gismonti utiliza esse tipo de
85 Com exceção dá última repetição de Loro, na qual Egberto omite o último Refrão.
144
improvisação para junções de músicas e pout-pourri que realiza em apresentações 86.
3.4 Harmonia:
Quando tonais, as harmonias seguem, na maioria dos casos por movimentos de quartas
e relações de dominantes, dominantes secundárias e progressões II V I. O que é comum a
essas harmonias é a grande quantidade de inversões de acordes que fazem com que as linhas
dos baixos caminhem por graus conjuntos, facilitando, por exemplo, a execução dos
intricados acompanhamentos de Frevo, Karatê e Loro.
É possível notar também que não há rigidez nas cifras de Gismonti. Se tomarmos
como base a cifragem contida na contracapa do álbum, percebemos que o pianista deixa de
notar extensões de acordes que executa e não executa algumas das que escreve. Tornando a
tarefa de definição de acordes, principalmente nas músicas cujos acompanhamentos se fazem
de melodias ao modo contrapontístico, complexa e inexata.
Suas composições possuem poucas modulações, tendendo na maioria das vezes a uma
única tonalidade. O que encontramos são rápidos afastamentos dos centros tonais, por poucos
compassos, como algumas pontes que na maioria das vezes não constam nas partituras guia,
como em Infância ou Baião Malandro, logo compensados por uma dominante ou movimento
cromático que retoma a tonalidade principal.
86 Como quando toca Forrobodó em apresentação em Montreal. Gismonti utiliza a parte B de Baião Malandro
como ponte para inserir citar uma música dentro de outra. Assim, em ordem diferente, com o B antecedendo
o A, o pianista executa Baião Malandro e usa a parte B também como retomada de Forrobodó.
145
Harmonias construídas pela condução de vozes.
La b – Mi b – Sib → Sol – Mi b – Si b
87
Ao que, seguindo fórmula, a progressão poderia ser seguida de um Fsus7 – F7 que
geraria a seguinte condução, na qual, também encontramos mudanças de acordes pela
alteração de apenas uma nota do anterior:
La b – Mi b – Si b → Sol – Mi b – Si b → Fa – Mi b – Si b → Fa – Mi b – La
O acompanhamento não deve ser uma mera adição à melodia. Deve ser o mais
funcional possível e, nos melhores dos casos, atuar como complemento às essências
de seu assunto: tonalidade, ritmo, fraseio, perfil melódico, caráter e clima
expressivo. Deve revelar, também, a harmonia inerente do tema, estabelecer um
movimento unificador, satisfazer às necessidades e explorar os recursos
146
instrumentais .O acompanhamento se torna uma questão imperativa se a harmonia
ou o ritmo são complexos. Na música descritiva, o acompanhamento contribui muito
para a determinação de uma sonoridade expressiva. (SCHOENBERG, 1991. p.106)
A importância dada a esse elemento é tão grande que muitas vezes é o “foco” principal
da música, levando a melodia a um segundo plano no espectro sonoro, como na seção C de
Infância, onde a variedade rítmica, sobre a qual os acordes são dispostos chama mais a
atenção do ouvinte do que a melodia executada 90.
O primeiro grupo dessa divisão seria a das peças mais lentas e de caráter mais dolce
como Palhaço, Água e vinho e Cigana. O segundo grupo, agora de peças mais ágeis, dos
contrapontísticos como Karatê, Loro e Frevo. E o terceiro grupo, mais heterogêneo, de peças
mais estáticas e enérgicas, como Baião Malandro, Maracatu e Infância.
Ainda que extremamente desenvolvidos, não há rigidez quanto à execução 91. Não
soam como se fossem escritos e seguidos. São, assim como os “erros” encontrados, abertos à
88 Diferentemente do que ocorre com as harmonias e melodias que, ainda que se modifiquem, trazem
características muito semelhantes às das primeiras gravações.
89 Karatê, Loro e Frevo possuem “levadas” quando executadas nas primeiras versões gravadas, por exemplo.
90 Óbviamente a construção melódica da seção contribui para que se destaque a rítmica dos acordes.
91 O fato de Cigana se iniciar com um acompanhamento por figuração característico não faz, necessariamente,
que esse modo se mantenha durante toda a peça.
147
vontade do pianista. O músico parece ter uma ideia da sonoridade de um ponto ou outro e
altera como quer esse elemento para atingí-la.
Nesse grupo de peças, podemos perceber uma forma de se acompanhar que destaca a
melodia principal. Encontramos principalmente uma mão esquerda tocada levemente mais
piano do que a direita e também movimentos harmônicos mais elaborados, conforme as
análises demonstradas.
Tem, por característica, maior simplicidade e regularidade rítmica, apesar de Cigana
ser composta de um desenho de figuração sincopado peculiar (que ainda assim não se
sobrepõe à melodia, funcionando majoritariamente como suporte a esta), geralmente
subdividindo os compassos simetricamente, deixando as polirritimias ocorridas mais em
função da variação rítmica da execução da melodia.
Há de se notar que apesar da maior parte do tempo, como em Palhaço, haver uma
figura, ou sequência linear sob a qual o acompanhamento é construído, permeando-o durante
toda a peça, o pianista não hesita em alterá-la. Fazendo com que os arpejos não sigam um
desenho padrão, tal qual uma seção violonística arpejada em que a ordem dos dedos da mão
direita (para um violonista destro) não fosse definida, podendo ser disposta ao gosto do
executante.
É importante também perceber que desenhos incidentais surgem vez ou outra e se
tornam vigentes por alguns compassos do acompanhamento, sendo logo abandonados pelo
pianista, que parte para outro, toca um acorde em bloco ou retoma às figuras utilizadas
148
anteriormente, por exemplo.
[…] Nos anos setenta, convivi por um longo período com Jean Barraqué, um
discípulo de Webern, e percebi que a qualidade ou propriedade do seu trabalho era
muito relativa; notei que eu tinha estabelecido um vinculo puramente racional com a
sua obra, desprovido de laços afetivos. O conceito estético e formal podia ser
analisado de modo muito profundo, mas não era absolutamente sentido. Para poder
compreender melhor aquilo a que Barraqué se propunha, cheguei a fazer uma
tradução e adaptação da “Bíblia dos Doze Tons”, denominada Introdução à Música
dos Doze Tons, de René Leibovitz. [...] Naquele momento eu não sabia que, quatro
ou cinco anos depois, terminaria por abominar a música do discípulo e do mestre.
Aconteceu algo muito curioso: comecei a adorar a forma escrita da música de
Webern, mas não tolerava ouvi-la em minha cabeça. Quando a lia, eu a ouvia em
minha imaginação e ela me agradava; mas, se a executavam, me aborrecia. Passei
um tempo com uma dúvida incrível, pois não conseguia discernir o que me agradava
ou desagradava em relação a Webern. Eu a escutava e sentia que era uma musica
desagradável, mas, por outro lado, os caminhos da partitura me faziam vibrar de
emoção. […] Concluir que a leitura de Webern é estimulante, pois impulsiona minha
criação, mas que, ouvida, a sua música não me diz nada, é uma conclusão muito real.
92 Destaque para os acordes formados apenas por suas fundamentais, quintas e nonas (maiores), maneira de
disposição bastante encontrada no disco.
149
E tão absurda quanto a necessidade do impulso criador (Depoimento de Gismonti a
FREGTMAN, 1991, p.26)
150
melodia e repousos, os pequenos fragmentos melódicos executados por Gismonti pontuam
também “notas chave” e extensões de acordes e suas mudanças 96, criando assim uma textura
que poderíamos, ilustrativamente nomear por “contraponto tonal pontilhista”.
Ainda que não siga as regras de condução de vozes do contraponto, as frases de mão
esquerda do pianista se utilizam majoritariamente de notas dos acordes, o que, desse modo,
remete a peças polifônicas para teclado como as “invenções a duas vozes” 97 de J.S.Bach, por
exemplo.
Egberto se afasta também dos dois compositores supracitados pelo modo improvisado
com que realiza a textura referida. As várias repetições mostram que, da maneira com que
ocorrem, seria demasiadamente trabalhosa e, provavelmente desnecessária e de difícil
execução, a escrita do que realiza a mão esquerda do pianista.
Levando em conta a textura e o fato de muito do que é executado ser improvisado 98,
acompanhar-se dessa maneira exige habilidades bastante específicas dos intérpretes
principalmente no que concerne a independência rítmica e melódica das mãos e também o
conhecimento das notas que formam os acordes.
96 Percebidas em detalhe nos excertos do capítulo anterior e integralmente nas transcrições realizadas pelo
autor.
97 Série de peças contrapontísticas para teclado de J.S.Bach
98 Como já referido nas análises, acreditamos que, embora não sejam tocados, hajam shapes que perpassam
muitos dos acordes durante o desenvolvimento dessa forma de se acompanhar, levando à improvisação a
ordem de ocorrência das notas e suas rítmicas.
151
seus sucessores, sendo necessários até mesmo a realização de amplos saltos, aparentemente
não previstos. É interessante observar que esse acompanhamento tende a contemplar a região
médio-grave do piano, auxiliando em sua clareza.
Em contraste aos vamps e ostinatos, encontramos nessas peças seções de maior e mais
rápida movimentação harmônica, como as partes C, de Baião Malandro e Infância, onde
podemos perceber também trechos de melodia acompanhada.
152
Fig.108: Trecho de “1922” de Ernesto Nazareth (1922). Percebe-se que o acompanhamento é padronizado. 99
Fig.109: Trecho de Baião Malandro, com figuras rítmicas que parecem remeter ao estilo de Nazareth, porém de
maneira menos padronizada: cada compasso apresenta uma combinação diferente de figuras.
99 Disponível <http://www.ernestonazareth150anos.com.br/Works/view/15>
100 Seção B2 de Baião Malandro.
153
“caia” no “lugar” de outro, enquanto a mão direita segue normalmente realizando uma
melodia ou figura, gerando a impressão, obviamente falsa, de que o pianista se perdeu e não
mais consegue tocar de maneira “correta”101. Sensação que é logo frustrada, quando o pianista
retoma facilmente a ordem “natural” de tempos e quadraturas. Essas brincadeiras rítmicas
com formas comuns de acompanhamento são um traço de Gismonti ao piano solo menos
encontrado em outros músicos.
Sobre essa questão, SILVA (2005. p.52) afirma que “[...]a maioria dos saltos é
realizada sem olhar para o teclado, e com grande precisão. Seu rosto permanece grande parte
do tempo olhando para o centro do teclado”. Ainda podemos perceber a acuidade desses
saltos, segundo Egberto, se dá pelo fato de que o pianista “desistiu” de olhar para o teclado
enquanto os realizava e também por seu posicionamento ao piano, como afirma:
Eu não sei precisar data... Isso vai acontecendo devagar. De uns 10 anos pra cá,
quando eu passei a não mais olhar para o teclado, porque se não eu me confundia, eu
não me mexi mais. Eu me mexo pouquíssimo. E por quê? Porque para que eu toque
e acerte qualquer distância, eu tenho que estar muito bem localizado. (Depoimento
de Gismonti a SILVA. 2005, p.52)
3.6 Melodia:
154
esse ponto
Surtindo efeito direto nas formas das músicas, também irregulares na maioria das
vezes, podemos perceber frases que, em sua construção, são dotadas de uma assimetria que
nos remete a uma característica do modo composicional de Gismonti: a pouca preocupação
formal ou a capacidade de fazer com que suas composições não externem processos utilizados
de maneira óbvia.
Ainda assim, não foram nas construções melódicas ou na gênese, que pudemos
encontrar os elementos mais identitários de Gismonti, mas sim em suas execuções e maneiras
de interpretá-las.
102 O que entendemos por intencional não é a vontade de ser irregular em suas construções para afirmar algo ou
simplesmente “ser diferente”, mas sim a vontade de que esses elementos, teóricos, não sejam limitantes para
a maneira em que o músico compõe.
155
mudança de oitavas, a variação rítmica e a ornamentação melódica.
Como é comum à pratica dos Lead Sheets, a tessitura da melodia é geralmente escrita
dentro do pentagrama da clave de sol mais para que a leitura seja facilitada, do que como uma
indicação real da tessitura da execução. Em Egberto ocorre do mesmo modo. Suas melodias
parecem não ter uma tessitura específica para que sejam tocadas. Isso faz com que o pianista
utilize amplamente a alternância de “oitavas” nas quais são realizadas. Essa alternância ocorre
de várias maneiras: na repetição de seções, como em Karatê, que as partes A, repetidas,
ocorrem sempre em oitavas diferentes, ou em Baião Malandro cuja seção C é tocada, como
regra apenas na execução do álbum, três vezes, uma oitava acima a cada repetição.
A mesma relação pode ser encontrada no tratamento rítmico das frases que constituem
seus temas. A indiscutível fluência rítmica do pianista torna esse tipo de variação das frases
um dos recursos mais importantes do “molho” performático de Gismonti. São raros os
exemplos de reexposições melódicas cuja rítmica busca ser a mesma da execução da parte
anterior. E se tomarmos as partituras encontradas como referência, podemos perceber também
que são apenas guias nesse aspecto.
156
torna dúbia ao ouvinte/analista a intencionalidade ou não de aspectos da execução melódica
de Gismonti.
Dos vários recursos utilizados, um merece destaque por ser amplamente utilizado ao
longo do disco: a repetição de notas pela mão direita. O pianista se utiliza desse artifício nas
mais variadas situações.
103 Devido ao andamento extremamente acelerado da execução de Loro no álbum estudado, Gismonti omite
algumas dessas repetições. Na primeira versão, do álbum “Sanfona” (EMI-Odeon, 1981) assim como na
partitura guia, o procedimento é mais claramente percebido. Ainda assim, o recurso é bastante utilizado na
performance de “Alma”, ainda que não sistematicamente.
157
Fig.109: Notas repetidas em Água e Vinho.
158
Melodia em plano de fundo.
Outro fato curioso é que nem sempre as melodias são o elemento principal da
composição. Como referido nas análises e nas referências aos acompanhamentos, algumas
melodias parecem ter importância secundária nas peças, como em Maracatu, cuja levada da
mão esquerda parece o “astro” da composição e a parte C de Infância na qual a melodia,
repetida várias vezes soa como um palco para a grande quantidade de jogos rítmicos da mão
esquerda do pianista. Percebemos também trechos sem melodia, como a seção B de Baião
Malandro.
“Gestualização” de melodias
O termo gesto, como a maioria dos termos usados na análise musical, é emprestado
de seu sentido mais genérico e corporal e pode sugerir algo no sentido de um
movimento que tem um percurso (começo, meio e fim) e que apresenta uma
intervenção no ambiente, revestida de significado. Trata-se também do seu caráter,
muitas vezes espontâneo, instantâneo, intuitivo e pontual – pois emana de sistemas
que estão implícitos, e por isso, pode gerar respostas “automatizadas” ((nesse caso,
numa síntese passiva) – que caracterizam, neste contexto, a atuação de um
músico/improvisador. (COSTA, 2002, p.8)
Deste modo, este caráter intuitivo do gesto se contrapõe, na análise musical, a uma
intervenção mais premeditada e estruturada própria do ato do compositor” “É
importante ressaltar que o procedimento de um compositor pode também se dar no
contexto de sistemas e ser considerado, da mesma forma que a intervenção de um
159
improvisador, gestual (pois, automatizada).(COSTA,2002, p.8)
3.7 Dinâmica:
Como é comum à prática das músicas notadas por Lead Sheets, não há menção a esse
elemento nas partituras encontradas. Isso não faz, porém, com que a dinâmica seja pouco
desenvolvida no álbum.
No entanto, apesar de algumas das seções das peças possuírem uma média de
dinâmica, tendendo ao forte ou ao piano, temos esse aspecto da performance, assim como
muitos outros, como elemento de variação e improvisação.
… não posso jamais escrever e entregar porque se acabaram os dias em que as salas
de concerto eram o local de se tocar música. Hoje se toca em botequim, em clube...
Todas as salas de concerto tinham condições acústicas de se tocar aquilo que estava
escrito. Hoje não existe... Não adianta estar escrito...depende da qualidade do
instrumento. Você não vai conseguir [realizar em] piano e você vai tocar mal a
música... (Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.29).
160
Entretanto, as condições de gravação de “Alma” pareciam ideais ao desenvolvimento
desse aspecto nas peças. Muito da expressividade encontrada no álbum e dita sobre a forma
com que Gismonti toca, fica a cargo de como cada frase é desenvolvida sob o prisma da
variação de intensidade das notas tocadas. O que pudemos perceber foram pelo menos três
maneiras de se comportar perante a essa variação.
Primeiramente, variações mais sutis são desenvolvidas sob cada frase, semi-frase ou
motivo. Como numa espécie de dinâmica natural intrínseca, que mesmo numa transcrição
detalhada ou caso fossem as peças escritas, não haveria necessidade de sinalizá-las ao
executante. Gismonti parece não se descuidar desse elemento por um momento sequer e,
ainda que pareçam movimentos naturais não intencionais, impregnam o resultado sonoro do
disco.
Segundo, outro uso bastante comum, refere-se a uma variação de sonoridade mais
artificial e fortuita. São movimentos de crescendo e decrescendo, em alguns casos de grande
amplitude e curta duração, que não parecem conectados às mudanças de partes ou a alguma
frase específica. Encontrados algumas vezes em pontos de repouso das melodias ou mesmo na
execução delas, esses movimentos são geralmente súbitos e surepreendem o ouvinte por
poderem ser apreendidos como algo que ocorreu apenas por conta da vontade do pianista.
161
podemos citar a clareza na diferenciação entre as mãos. Mais comumente encontramos a
direita mais forte que a esquerda. Como já dito, entretanto, muitas vezes o acompanhamento
ganha aspectos de elemento principal tendo a dinâmica como o maior auxílio na distinção dos
planos. Esse fato subverte a ordem dominante fazendo com que a mão esquerda seja tocada
mais forte do que a direita, sem aparentes dificuldades por parte do músico.
É também interessante notar, embora seja tarefa mais complexa, que entre as peças
existe variação de dinâmica. A maior complexidade da percepção é devida aos recursos de
manipulação sonora comuns posteriores à captação (como a mixagem e masterização).
Principalmente os processos de “diminuição” de volume como compressores e “limiters” 104,
que atenuam as grandes variações desse elemento, somados a uma busca por uma média de
volume geral do disco, coerentes com a execução em locais não completamente apropriados à
audição como os estúdios, eliminam grande parte da variação de dinâmica executada pelo
músico fazendo com que as músicas sejam tocadas, na medida do possível, numa faixa de
volume similar. Porém, a variação de dinâmica altera também o timbre das notas e do
instrumento. E é nesse aspecto que se faz necessário o enfoque para que perceba que, mesmo
no resultado final, o disco, Palhaço e Baião Malandro sejam encontradas em volumes
semelhantes, suas execuções foram feitas sob dinâmicas extremamente diferentes. Essa
atenção à variação timbrística reforça o cuidado na realização perceptível das performances.
3.8 Articulação
Também não são encontradas nas partituras guias indicações sobre como se deve
104 Compressor / limitadores foram originalmente introduzidos no estúdio para impedir os picos de distorcer ou
saturar. Esses recursos são funções de volume; seus principais objetivos são abaixá-lo. Eles o fazem quando
fica muito alto, isto é, quando vai acima de um certo volume limiar. Quando o volume é inferior ao limiar, o
compressor / limitador não atua. (Tradução nossa) (GIBSON, 1997, p.31)
162
articular as partes das músicas do álbum. Contudo, algumas inferências podem ser feitas, a
titulo de leitura do intérprete, pelas indicações de caráter das peças, como “com amor” ou
“melancólico e calmo”, podendo sugerir a preferência por articulações mais legato e uso do
pedal, por exemplo. Mas esse aspecto, ainda que não escrito nem sugestionado, parece melhor
definido nas peças, ou seja, as repetições de seções ou trechos tendem a repetir, de maneira
similar, a articulação da exposição anterior.
O que nota-se de importante quanto a seu uso são as várias maneiras de aplicabilidade
do artefato e que, também, a articulação predominante de um trecho não impossibilita a
utilização ou a retirada deste que é um recurso que tende a levar os trechos ao legato. Ou seja,
o fato de um seção ser predominantemente staccato ou non legato não impede que Gismonti
acione o pedal direito realizando curtas ligaduras de expressão ou vice-versa 105
O pianista também utiliza o artefato como auxílio a frases de difícil execução técnica
ou à criação de novos coloridos e texturas. Algumas das frases “nebulosas”, em que as
melodias são mais dificilmente percebidas, encontramos, por exemplo, uma forma de uso do
pedal direito menos convencional. Há momentos em que o pianista intencionalmente aciona,
deixando-o permanecer enquanto realiza rápidas frases em regiões mais graves, gerando uma
grande sobreposição de harmônicos, que contribuem para sonoridades puramente gestuais e
indefinidas.
Uma outra forma de utilização desse recurso se dá na suavização das transições entre
partes que envolvem mudanças de articulação. A antecipação da pedalização, que pode
aparecer com utilização parcial (meio pedal) ou com o uso intermitente que se adensa com a
proximidade da nova seção é responsável pela criação de uma espécie de amálgama entre as
partes. Isso acontece quando o pianista tem por intenção que transição não seja brusca, algo
que também ocorre.
É importante também notar como o pianista não necessita do uso pedal para a criação
105 Uma audição atenta de Frevo é representativa de como o pianista aciona o pedal em trechos curtíssimos
contribuindo para a expressividade do toque.
163
de texturas densas ou de sonoridade híbrida106 no que concerne a articulação, realizando o que
é comumente nomeado por “pedal de dedo”.
Assim como pode-se observar quando se trata da dinâmica, algo que chama a atenção
é a maneira com que o pianista está apto a articular de forma independente cada uma das
mãos, como na parte B de Frevo, que o pianista articula a melodia de maneira mais legato e o
acompanhamento de modo mais staccato.
Ainda que seja melhor definido, podemos perceber que o pianista brinca com esse
aspecto de suas próprias músicas como na seguinte citação, na qual havia uma partitura com
indicações para esse parâmetro:
Na primeira vez que tocou esta seção, Egberto não seguiu o texto que havia escrito e
optou por uma interpretação diferente, dando continuidade à atmosfera ressonante e
ligada criada na introdução. Egberto modifica o caráter desta primeira seção,
imprimindo-lhe um aspecto mais expressivo, lento e ligado. (SILVA, 2005. p.38).
O fato citado também ocorre em “Alma”, mas não com relação a uma partitura e sim
relacionando-se a uma exposição anterior. Uma mesma seção pode ser tocada com
articulações opostas ao gosto do pianista, mostrando também grande liberdade e reforçando a
tese de que todos os itens estudados aparecem como formas de variação e dependem apenas
da necessidade musical momentânea do compositor/performer. Ainda que nesse caso, as
variações soem menos fortuitas que as mudanças de dinâmica.
106 Consideramos a primeira exposição do A de Infância o melhor exemplo dessa densidade alcançada sem
pedalização. O pianista executa as frases da melodia e, logo em seguida, ataca os baixos com a mão direita
em oitavas inferiores às do ostinato. A diferença é que, para manter a clareza do movimento em
semicolcheias da mão esquerda, Egberto realiza a sustentação das notas dos baixos mantendo-os
pressionados, sem auxílio do pedal.
107 Cigana e Água e Vinho foram as duas únicas peças em que a articulação permaneceu similar durante toda a
execução.
164
Ainda que essa variação permaneça exclusivamente no âmbito da performance, como
no caso de Palhaço, que a alteração da articulação vigente só ocorre em algumas das
repetições das seções de improviso, quebrando assim a predominância do legato. E percebe-se
também que o recurso é usado na concepção (composição ou arranjo) das peças como Frevo e
Karatê, músicas em que notavelmente predominam articulações non legato e que podemos
encontrar partes D e C, respectivamente, sob articulações opostas.
Ainda que pareça óbvio a qualquer improvisador que se disponha a tocar sozinho, este
traço em “Alma” faz com que o pianista altere o que quiser sem partir para uma improvisação
livre, o que, por exemplo, algumas das alterações momentâneas executadas pelo músico
poderiam induzir, caso fossem tocadas em grupo.
Durante a performance, a ausência de outros músicos 108 fez com que Egberto pudesse
modificar melodias sob vários aspectos, como vimos, variasse mais a dinâmica e a articulação
de trechos e também se comportasse mais livremente com relação à agógica das peças,
modificando os andamentos mais despreocupadamente, adicionando fermatas onde antes não
havia, como em Palhaço, ou até adicionando trechos de improvisação nos quais alguns
chorus são tocados em andamentos muito diferentes do restante da música, sem que houvesse
mudança de seção, como em Frevo, por exemplo.
165
“transposição” para piano solo parece ter ocorrido de modo como se Egberto houvesse
desmontado algumas das composições e composto novas, utilizando-se de alguns de seus
elementos e modificando outros, fazendo assim, com que esses arranjos não fossem meras
adaptações ou reduções do que era realizado em grupo e sim recriações.
E, ainda que todas (ou nenhuma das) as peças tenham sido compostas ao piano e
depois expandidas aos grupos, percebemos, pela adaptação ou readaptação ao piano solo, que
os “núcleos” de algumas dessas músicas – os quais não arriscaríamos apontar pela crença de
que mesmo estes variam de época em época até mesmo para o próprio artista – podem residir
em aspectos que vão além de uma melodia, harmonia ou nota em si, sendo uma célula rítmica,
uma tonalidade ou uma coloração/clima, de maneira bastante abstrata.
166
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] Segundo passo, que é também um ato de liberdade: estar preparado para que o
intérprete mostre a ele (o compositor) o que existe de bom, de ruim, ou coisas que
ele, compositor, não havia pensado, e que são muito melhores do que a própria idéia.
Para admitir que o intérprete criou notas melhores do que aquelas que você pensou,
você tem que ter uma capacidade de liberdade tão grande, que ela é fundamenta no
seguinte: [...] não tira o crédito do compositor, porque o compositor é que estimulou
a interpretação, que estimulou o compositor. Dar e receber é isso... (Depoimento de
Gismonti a SILVA, 2005, p.28)
Flexibilidade essa, que é alcançada além de sua concepção musical, pelo domínio
técnico que possui do instrumento. O que notamos é um pianista com recursos para poder dar
variedade e interesse às suas performances por caminhos extremamente sutis - como uma leve
mudança rítmica de uma melodia ou até mesmo pela alteração de sua dinâmica em relação à
execução anterior - ou a combinação de muitos tópicos, como a mudança brusca de uma parte
de articulação predominantemente legato para outra, ainda não executada, cuja forma de se
acompanhar é modificada, assim como sua articulação, e sob a qual a melodia ganha notas
extras, ou é tocada em blocos.
Algo também notável das execuções é que a técnica parece não ser – ou é raramente –
o aspecto principal da performance. Apesar de poderem ser encontrados muitos trechos de
difícil execução como acompanhamentos permeados de longos saltos, polirritmias ou
167
melodias em alta velocidade, são sempre em auxílio de uma musicalidade fluida cuja riqueza
é intrínseca. Sobre isso, Gismonti afirma:
Não penso em braço, em toque, nada. Penso só na música, porque o corpo está
preparado para tocar a música que eu ouço. E são 40 anos treinando para isso.
(Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.51)
Não há como não destacar o desenvolvimento técnico ao qual chegou a mão esquerda
do pianista. A capacidade rítmica e melódica, além da independência com relação à direita
demonstradas por Gismonti ao utilizá-la – conferindo enorme riqueza aos acompanhamentos
– constitui, creio, uma característica técnica e estilística potencializada no pianista, um
diferencial.
Essa multiplicidade que lança o pianista a tocar um “frevo que parece dobrado com
traços da música pontilhista de Webern” ou um Baião Malandro, mais “malandro” que
“baião”, reforça traços de uma formação “musical”109, também múltipla, passando pela
conclusão do curso no conservatório musical ao título de “caraíba cantador”110 atribuído pelos
índios do Alto Xingu.
Acreditamos, no entanto, que a característica mais presente no modo com que Egberto
trata suas composições, seu “traço estilístico maior” é a inquietação. O ímpeto de fazer
diferente do que havia sido feito por ele mesmo, pode ser percebido tanto da audição
comparativa entre versões de diferentes álbuns e apresentações, nas quais percebemos
mudanças mais substanciais – o que também parece ser um estímulo ao músico para manter o
109 Ver SILVA,2005 e FREGTMAN,1991
110 Caraíba significa “homem branco” e cantador é aquele que toca a flauta sagrada (Depoimento de Gismonti
a FREGTMAN, 1989, p.43)
168
hábito que tem de regravar, de várias maneiras, suas próprias obras – quanto nas repetições de
cada parte de cada música executada no álbum estudado, que trazem algum tipo de
modificação, por menor que seja.
...
O segundo capítulo demonstra como essa liberdade foi traduzida em forma de música.
As análises de vários aspectos de cada obra como forma, harmonia, acompanhamento,
melodia, dinâmica e articulação além da comparação entre as versões de instrumentação
reduzidas com as versões em grupo exemplificaram como cada um desses aspectos são
utilizados pelo pianista para a manutenção do frescor de sua obra. Comparando-se excertos
das partituras geradas das transcrições com os Lead Sheets contidos na contracapa do álbum,
podemos observar em detalhe como o músico realiza e altera cada um dos aspectos estudados,
além de adicionar outros como a dinâmica e a articulação, não notados nas partituras base.
O terceiro capítulo traz uma síntese dos aspectos mais utilizados por Gismonti em suas
interpretações. Retomando cada um dos itens analisados no segundo capítulo, pode-se
observar as características estilísticas mais encontradas nas performances do álbum estudado.
O perceptível desenvolvimento da mão esquerda (e dos elementos realizados por ela, como
acompanhamentos), assim como uma alteração constante de todos os itens (utilizados como
variação na maior parte das peças) somam-se a uma concepção musical na qual o “erro” é
parte sadia e cultivada pelo músico criando performances diversificadas e, ao mesmo tempo,
singulares.
Desse modo, acreditamos que o presente trabalho traz contribuições valiosas para a
169
área em que se encontra pois além de contar com formulações sobre os processos utilizados
pelo multi-instrumentista que é um ícone da música brasileira traz exemplos que, além de
ilustrar, servem de base para performances posteriores.
170
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Gismonti se despede e diz que quer estudar. CALADO, Carlos. Folha de São Paulo. Ilustrada.
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Gismonti faz variações sobre os mesmos temas. CALADO, Carlos. Folha de São Paulo.
Iustrada. 9/12/1986
Som puro, cristalino, movido pelo sentimento. DIAS, Mauro. O Globo. 27/09.1986
Gismonti volta com “Alma” ainda à procura do Brasil. S/A 08/12/1986, Matutina, Jornais de
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Gismonti lança novo álbum inspirado no inconsciente. GRILLO, Cristina. Folha de São
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176
6 - ANEXOS: TRANSCRIÇÃO INTEGRAL DO PIANO DE “ALMA”
(EMI – ODEON, 1986)
CD ANEXO
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