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HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA EM WALTER BENJAMIN

        HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA EM WALTER BENJAMIN

                               PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS


                              Campinas, novembro de 2006

   
     A reflexão filosófico-benjaminiana aponta de forma crítica para a tendência do
marxismo - a concepção marxista materialista da história busca controlar as leis do
processo do desenvolvimento histórico; controlar a ordem dos eventos – em
privilegiar o binômio racionalidade-futuro. Noutras palavras, o pensamento
marxiano, dando vazão a que conceitos importantes adquirissem sentidos vagos ou
ambíguos, cedeu, desse modo, a interpretações e a apropriações posteriores de
caráter simplistas, inadequadas, cujo resultado promoveu sobremaneira a
integração do materialismo histórico ao historicismo (grosso modo: a história
universal nos leva conhecer todos os pontos do “continuum” histórico) e ao
positivismo (grosso modo: trata-se da aplicação do modelo mecanicista da física e
da linguagem matemática na interpretação da realidade humana). Com efeito,
Walter Benjamin é contra o “casamento” da história com a técnica, defendido pelas
indevidas apropriações do pensamento marxista, cujo resultado se expressa no
conhecido “marxismo vulgar”. Contra tal estado de coisas, Benjamin insurge-se,
afirmando:

“A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um


conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo
os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da
humanidade em si, e não de suas capacidades e conhecimentos (...).” (1)

     É preciso frisarmos que Walter Benjamin não nega a capacidade da


progressividade humana, mas nega a idéia de progresso inscrita em teorias da
história com bases na escatologia. E Benjamin prossegue, acentuando que:

“O historicismo culmina legitimamente na história universal (...) A história universal


não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa
dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio (...).” (2)
     Basicamente, cabe a esta crítica benjaminiana resgatar a liberdade
transcendental e a individualidade como valores fundamentais do ser humano; ou
mais particularmente, resgatar a subjetividade humana no sentido dela se
autopropor como sujeito, pois a idéia do processo histórico como progresso linear,
mais do que a realização da razão (projeto do pensamento iluminista), apresentou-
se, também, na constatação dos representantes da Escola de Frankfurt (em
especial, Theodor Adorno e Max Horkheimer), como algo destruidor da própria
razão. É o que se confirma nas belas e trágicas páginas da “Dialética do
Esclarecimento”.
     Como podemos constatar nas teses “Sobre o conceito de história” (1940), para
Benjamin, a historicidade, de acordo como os homens a fazem, é sempre marcada
por rupturas, e não por um movimento contínuo e linear. A história realiza-se em
movimentos que, a princípio, poderiam ser diferentes, ou seja, a concepção
benjaminiana de tempo perdido não se encontra no passado, mas no “futuro”, isto
é, nos sonhos, nos desejos, nas aspirações do não-realizado, daquilo que não
chegou a se concretizar, mas que ainda se encontra voltado para o porvir - qual
uma utopia retrospectiva.

     Já foi dito que sem ser poeta, Walter Benjamin pensava o mundo poeticamente
(Arendt, 1987). Assim, na teoria benjaminiana da modernidade, o herói moderno é
representado pela figura do flâneur – do poeta, isto é, do “gauche”, do deslocado
nas grandes metrópoles:

“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os


dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os
despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que
chamamos bens culturais (...).” (3)

     Desse modo, consoante Benjamin, o poeta é aquele que “dá as costas ao


cortejo infernal...”; é aquele que não se entrega ao sistema; é aquele que declara
guerra com a prática da flânerie. Assim, investigando o lirismo inscrito nos versos
de Charles Baudelaire, Benjamin recupera e registra, em seus escritos, a alegoria
da caducidade moderna. É com Flores do Mal, com flores doentias: temas,
posturas, comportamentos etc., enfim, com o lixo humano, que Benjamin se inicia
em seus escritos literários. Nestes, os heróis são aqueles que estão à margem da
sociedade (o marxismo buscou controlar as leis do desenvolvimento da história,
procurando controlar a ordem dos eventos históricos, como já afirmamos. Ao
contrário, na concepção benjaminiana de história há um efeito libertador, quando
Benjamin fala em margens!), como por exemplo, os trapeiros, os velhos, os
marginalizados, os michês, os invertidos, os inadaptados, as prostitutas, as
crianças, os tímidos, os desajeitados, os deslocados, os anjos
A OBRA DE ARTE NA ERA DA TÉCNICA

E DA ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA

por Adriana Schryver Kurtz

gui@cpovo.net

Resumo: Como poucos homens de seu tempo, Walter Benjamin


pensou o cinema com um equilíbrio inusitado entre a paixão
de um simples mortal pela magia das imagens em movimento e
sua militante e utópica crença (como bom frankfurtiano não
ortodoxo) no papel emancipatório das técnicas de
reprodução. As esperanças de Benjamin foram frustradas
pelo nazi-fascismo. A técnica, inclusive a do cinema foi
usada como "um fetiche do holocausto". Numa época em que a
sociedade está cada vez mais deslumbrada com os avanços da
tecnologia e que a politica caminha inexoravelmente para
"o triunfo da espetacularização", vale a pena retornar a
algumas considerações de Benjamin sobre o papel da
tecnologia (e o lugar da ética) no universo da arte (e
indústria) do cinema......

"Manejar a técnica não como um fetiche do holocausto, mas


como uma chave para a felicidade." Esta era a esperança que
o filósofo frankfurtiano Walter Benjamin depositava em uma
geração capaz de ver na guerra não mais um episódio mágico,
mas sim a imagem do cotidiano. Com esta descoberta, os
homens estariam aptos a superar tanto a guerra "eterna"
invocada pelos novos alemães (fascistas) quanto a "última"
guerra, com a qual se iludiam os pacifistas. E mais:
poderiam transformá-la numa guerra civil – "mágica
marxista, a única à altura de desfazer esse sinistro
feitiço da guerra" (Benjamin, 1985a:72).

A utopia benjaminiana, expressa no ensaio Teorias do


Fascismo Alemão, de 1930, mostrou-se inócua diante da
crescente aceitação que a apologia da guerra ("misticismo
bélico", dirá um sarcástico Benjamin) suscitava junto a
sociedade germânica. O tipo de irracionalismo e idealismo
que animava a publicação de Guerra e Guerreiros (1930),
coletânea organizada por Ernst Jünger, representava um
apelo imensamente maior do que a crítica militante de
Walter Benjamin. Essa tendência não levaria apenas a mais
uma "guerra de alcance planetário" (expressão entusiástica
dos guerreiros-autores do livro): ela possibilitaria também
o apoio irrestrito – por ação ou omissão – a um regime
ditatorial insano e ao mais bárbaro projeto de extermínio
massivo já registrado na história: o Holocausto judeu.
É mais do que sugestivo que o célebre ensaio A Obra de Arte
na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1935/1936) tenha o
cinema, a rigor, como seu objeto de análise. Cinco anos
antes, Benjamin dedicava sua crítica à obra literária
fascista – a coletânea organizada por Jünger. Sua aguda
percepção da natureza "estetizante" do fascismo alcançaria
em A Obra de Arte sua mais contundente expressão. A auto-
alienação da humanidade, diria o filósofo, chegara a um
ponto capaz de levá-la a viver "sua própria destruição como
um prazer estético de primeira ordem" (e o que fez a
Alemanha hitlerista, senão abraçar este tipo de vivência?).
"Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo.
O comunismo responde com a politização da arte" (Benjamin,
1985b:196).

O comunismo - entre outras correntes políticas e


ideológicas -, como sabemos, não respondeu à altura das
exigências que os movimentos fascistas e o nazismo alemão
exigiram de seus oponentes. O próprio Benjamim não deixou
de ser uma vítima desta incapacidade. De uma forma ou de
outra, os partidários da razão mostravam-se inaptos a
perceber na sua totalidade a força e o alcance dos
movimentos massivos engendrados pela direita em toda a
Europa. Como observara Benjamin no texto que ainda hoje é
um dos marcos da teoria do cinema, as metamorfoses no modo
de exposição geradas pelas técnicas da reprodução tinham
afetado também a política. Entrara em campo um novo
processo de seleção – agora diante do aparelho técnico – do
qual emergiam, "como vencedores, o campeão, o astro e o
ditador" (ibidem:183). Pois este seria, de fato, o século
dos astros e dos ditadores: e ambos se dirigiram às massas
através do cinema.

"Todos os esforços para estetizar a política convergem para


um ponto. Esse ponto é a guerra", profetizara Walter
Benjamin. A nova guerra mundial seria a oportunidade ideal
para oferecer um objetivo aos grandes movimentos de massa,
enquanto os meios técnicos de então fossem mobilizados em
sua totalidade, "preservando as relações de produção
existentes" (ibid.:195). Pois a guerra, já antecipada, não
se fez demorar. Ela significou para a indústria do cinema o
mais efetivo impulso em seu desenvolvimento. As grandes
fábricas de sonhos nasceram sob o signo da guerra,
florescendo ao longo dos dois conflitos mundiais, conforme
mostrou Sigfried Kracauer no clássico De Caligari a Hitler.
Uma História Psicológica do Cinema Alemão (1988). Mesmo o
desenvolvimento estético do cinema – a especificidade de
sua linguagem – nota Paul Virilio - deve sua maturidade às
lições deixadas pelo uso da parafernália armamentista.
"O cinema entra para a categoria das armas a partir do
momento em que está apto a criar a surpresa técnica ou
psicológica", já que não existe guerra sem representação ou
arma sofisticada sem mistificação psicológica diz Virilio
em Guerra e Cinema (1993:12), bela reflexão sobre a
história da relação do medium por excelência do século XX
com os avanços técnicos e científicos militares. O cinema
esclareceria, assim, porque "abater o adversário é menos
capturá-lo do que cativá-lo, é infligir, antes da morte, o
pânico da morte" (idem). Com o que Goebbels concordaria
plenamente ao proferir seu célebre discurso, no Congresso
do Partido em Nuremberg, em 1934, imortalizado nas imagens
de O Triunfo da Vontade (1936), pela cineasta Leni
Riefenstahl: "O poder baseado em armas pode ser uma coisa
boa; é porém, melhor e mais gratificante conquistar o
coração de um povo e mantê-lo" (Goebbels apud Kracauer,
1988:191).

Nem mesmo o chamado "Programa de Eutanásia" – bem como o


Holocausto judeu - prescindiu das imagens em movimento.
Mesmo obras-primas expressionistas promoveram bem mais do
que familiaridade com o que Kracauer chamou de "procissão
de déspotas": elas já expressavam o típico preconceito
contra as massas, de forma geral, e contra os judeus, em
particular, como em O Golem, Como Ele Veio ao Mundo (1920),
de Paul Wegener. Documentários abomináveis de
contrapropaganda, como O Führer Doa uma Cidade aos Judeus
(1944), procuravam confundir a opinião pública a respeito
do genocídio, enquanto Vítimas do Passado (1937) invocava o
mais rasteiro darwinismo como justificativa para estancar a
propagação dos "imbecis". Obras ficcionais como O Judeu
Süss e "documentários" como O Eterno Judeu repisavam, em
1940, a acusação quanto à natureza intrinsecamente
pervertida do povo judeu, preparando a aceitação pública
para a deportação em massa, o confinamento e a matança.

Pode ser irônico que uma das últimas providências de


Goebbels, à frente de um Terceiro Reich já moribundo, tenha
sido a realização de um grandioso espetáculo
cinematográfico, Kolberg – um drama histórico sobre a
resistência dos bravos soldados alemães, numericamente
inferiores, ao exército de Napoleão. Em abril de 1945,
Kolberg é finalmente exibido para um seleto grupo de
funcionários do ministério. O filme não seria exibido ao
público alemão pois Berlim ardia sob incessante bombardeio
aliado.

Conta a lenda que, ao final da projeção, Goebbels faria uma


insólita espécie de "previsão": em 100 anos, uma obra
semelhante a Kolberg seria realizada, enfocando os feitos
"heróicos" do Nacional-Socialismo. "Cavalheiros, vocês não
querem fazer parte desse filme? Posso assegurar-lhes que
será belo e edificante". O fechamento não deixa de ser
surpreendente. Estaria o Ministro da Propaganda imaginando-
se em um papel que – posteriormente – seria interpretado
nas telas? É o que sugere sua afirmação final: "E a partir
desta perspectiva é que vale a pena resistir. Resistam! E
daqui a cem anos, o público não irá assobiar e vaiar quando
vocês aparecerem na tela".

"Em plena derrota militar, Goebbels queria fazer deste


filme o maior de todos os tempos, uma epopéia que
ultrapasse, por seu fausto, as mais suntuosas produções
americanas". Assim, mais uma vez, a Alemanha cedia à
obsessão pelo "arsenal de percepção americano" (Virilio,
1993:16) – o cinema hollywoodiano que tanto fascinava o
Führer e seu todo poderoso Ministro da Propaganda e da
"Ilustração do Povo" ("patrono" do cinema sob o Terceiro
Reich).

Ao contrário do que sonhara Benjamin, a técnica do cinema,


como evidenciou a história, seria manejada sobretudo como
um fetiche do holocausto. Também as pretensões e/ou
esperanças do Ministro da Propaganda de Adolf Hitler
mostrar-se-iam fantasiosas. Para as gerações nascidas após
a II Grande Guerra e a Shoah (com maior força à medida que
estas mesmas gerações se distanciavam, temporalmente, dos
fatos ocorridos) a história seria – em grande parte –
narrada sob a ótica dos vencedores: milhões de pessoas em
todo o mundo testemunharam – como espectadores – os
terríveis acontecimentos do século dos astros e ditadores,
sob a ótica da indústria do cinema.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

1. BENJAMIN, Walter. Teorias do fascimo alemão. Sobre a


coletânea Guerra e Guerreiros, editada por Ernst Jünger.
In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1985a. p. 61-72. v. 1.

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