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Universidade de São Paulo

Faculdade de Educação
Sociologia da Educação I
Professora Kimi Tomizaki

Aluna: Renata Bertoni Bazan


Nº USP: 8031819
Período Noturno

Que horas ela volta? – Análise Crítica

São Paulo
2017
Resumo do roteiro:

O filme “Que horas ela volta?” mostra em suas telas a realidade de muitos
nordestinos que vem para São Paulo na busca de emprego e melhores condições de
vida. A personagem principal é Val, empregada de uma família de classe social elevada
de São Paulo. Saindo de sua cidade para a capital, deixa sua filha Jéssica ainda pequena
para a avó criar, tendo a possibilidade de fazer poucas visitas à mesma, pois tem que
cuidar da casa e do filho de seus patrões. É evidenciado algum tipo de conflito familiar
com o pai de Jéssica, mas que acaba não sendo explicada na trama; o que fica nítido é
que apesar da distância é a mãe a responsável pelo sustento da filha.
Após 10 anos sem vê-la, Jéssica telefona para a mãe comunicando sua ida à São
Paulo para prestar o vestibular, o mesmo que Fabinho iria fazer. Com a sua chegada
iniciam os conflitos e questionamentos sobre a posição que Val ocupa, sendo
considerada da família, mas vivendo no quartinho dos fundos, sem poder usufruir da
casa. No meio desses conflitos entre Jessica e Barbara, Val precisa encontrar um novo
caminho em sua vida.

Análise Crítica – Que horas ela volta?

O filme “Que horas ela volta?” Aborda de maneira crítica questões


profundamente enraizadas na sociedade brasileira. A luta de classes teorizada
principalmente por Karl Marx é comumente associada à grandes empresas, ambientes
fabris; o filme, no entanto, mostra uma outra face, a luta de classes no ambiente
doméstico.

A imposição do rico sobre o pobre, abordada na película nem sempre fica clara,
um espectador mais desatento, ou menos informado, pode assistir ao filme e não ver
nada de mais nas atitudes de D. Bárbara, patroa de Val, empregada doméstica
vivenciada por Regina Casé e até mesmo ver com maus olhos o comportamento de
Jéssica, filha de Val, recepcionada pela família para a qual ela trabalha.

A trama começa a mostrar suas reais intenções a partir da chegada de Jéssica na


casa. A família se surpreende com as pretensões da filha da empregada que vem à São
Paulo com o objetivo de prestar vestibular para o curso de Arquitetura de uma
Universidade Pública muito disputada. O estranhamento causado pela pretensão de
Jéssica se justifica pelo fato de que a menina não teve uma boa educação e pela
dificuldade de ingressar no curso, na ocasião Fabinho, filho de D. Bárbara, fica
espantado com a escolha e frisa que se trata de um dos cursos mais difíceis de entrar.
Esses fatores acabam por fazer uma seleção natural dos alunos que ingressam em
universidades públicas, o resultado disso são turmas compostas, em sua maioria, por
estudantes vindos de famílias abastadas, provenientes de escolas particulares caríssimas
e que durante toda a vida se dedicaram exclusivamente o estudo. Jéssica não se
enquadra em nenhuma dessas categorias, é um ponto fora da curva, por esse motivo a
família a subestima, não acreditando nas chances da menina em passar no vestibular.

Logo de início Jéssica percebe o que Val levou a vida toda para perceber, embora
bem tratada, há uma distinção muito clara entre a empregada e o resto da família, o
quarto minúsculo, separado do resto da casa, as regras implícitas que nunca foram
faladas ou escritas, mas que sempre foram claras à empregada, a rejeição do presente
oferecido por Val à D. Bárbara, tudo isso mostra essa distinção. Diálogos ao longo do
filme ilustram a e relação explorado vs explorador demarcando profundamente o lugar
que Val, e consequentemente Jéssica, deveria ocupar. “[…] Não pode sentar na mesa
deles [sic], onde é que já se viu filha de empregada sentar na mesa dos patrões [sic]?
[…] Quando eles oferecem algumas coisas que é deles [sic] é por educação, é porque
eles têm certeza que a gente vai dizer não!”. Embora não perceba, Val é vítima da
segregação social, internaliza valores a ela impostos sem se questionar a respeito deles;
sua filha, diferentemente da mãe, não aceita ser tratada de maneira diferente por conta
de sua classe social e durante todo o filme questiona o pensamento de Val e as situações
as quais ela se submete, passando a incomodar os anfitriões.
Em variadas cenas do é exposta a posição secundária que Val ocupa na sociedade,
porém, desempenhando papel fundamental dentro da família em que a mesma trabalha.
Uma das primeiras cenas que traz isso é o momento em que a personagem de Regina
Casé comunica que Jéssica está vindo para São Paulo. Dona Bárbara questiona quem é
Jéssica; “É minha filha”, responde a personagem, evidenciando que a vida fora do
trabalho é ignorada pelos patrões, a funcionária considerada “da família” possui a sua
própria, a qual precisa deixar de lado para criar o filho da patroa.
Outro momento muito marcante do filme é a cena em que Val e Jéssica estão
passeando com a cachorra Meg em direção à casa onde outra colega sua trabalha. Em
seu diálogo Val mostra seu incômodo com o comportamento da filha, enquanto a
mesma também está incomodada, mas por ver o jeito que sua mãe é tratada e a cega
aceitação quanto à tudo que ocorre na casa. Ela questiona: “Não sei onde você aprendeu
essas coisas, que não pode isso, não pode aquilo (...) Tu chegou aqui e ficaram te
explicando essas coisas?!”, e segue a resposta “Isso aí ninguém precisa explicar não, a
gente já nasce sabendo, que que pode e que que não pode.”
Essa cena revela a posição de Jessica em questionar as máscaras da base de
dominação e opressão social, que garantem a legitimação e aceitação dos abismos entre
as classes sociais. O comportamento da personagem de Regina Casé e sua fala é uma
externalização clara do conceito de Habitus criado por Bordieu. Apesar da convicção da
personagem de que “a gente já nasce sabendo”, o habitus mostra que desde o nosso
nascimento somos expostos a um conjunto de disposições que moldam nossas
possibilidades, limites, oportunidades e proibições de acordo com o papel que a
sociedade espera dos indivíduos de cada classe social em suas práticas individuais e
coletivas, naturalizando comportamentos e um “senso comum” na comunidade.
Nesse sentido, o filme coloca em cenas claras o que Jessé de Souza define como
imaginário social: “(...) o imaginário social significa o que as pessoas comuns
percebem como sendo seu ambiente social, percepção esta que quase nunca assume a
forma explícita de teorias, mas que se manifestam ao contrário sob a forma de
imagens, estórias, lendas, ditos populares etc. É este imaginário social que permite a
“pré-compreensão” imediata de práticas cotidianas ordinárias permitindo um senso
compartilhado de legitimidade da ordem social”. Durante quase todo o longa,
comportamento de Val, o modo de falar e de se relacionar estão impregnados de
referências às hierarquias sociais, isso porque existe um “mapa social” que guia de
forma implícita a sua conduta, assim como de outros personagens na tela e na vida real.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Jessé utiliza Bourdieu para construir seu
argumento sobre os processos de dominação pessoal e impessoal, que se utilizam de
mecanismos que mascaram as relações de dominação em todas as esferas da sociedade
para que tais relações de dominação sejam naturalizadas, e dessa forma, indiscutíveis.
Nesse caso Jéssica tem papel central ao representar a mudança de um imaginário
social atrelada à educação, pois foi um de seus professores que a “ensinou” a pensar de
forma crítica. No meio popular a qual ela pertence, a continuidade dos estudos para
além da escola é algo que se mostra muitas vezes improvável pois existe uma grande
diferença ao acesso dos diferentes capitais (cultural, econômico, social e simbólico,
como define Bourdieu) que será sempre uma barreira aos meios populares. 
Para Bourdieu, o capital cultural são bens simbólicos que as sociedades
selecionam e valorizam e por isso são desejados e possuídos. A isso ele se refere como
uma "alta cultura", que estaria em posse das classes sociais elevadas, facilitando
a trajetória escolar daqueles que tem acesso a ela, como o personagem representado por
Fabinho. Nesse caso, Fabinho é um agente que interioriza disposições de
comportamentos, o habitus, orientando escolhas de sua vida no campo em que se
organiza a vida social a qual ele está inserido. Por isso, é uma grande frustração quando
seu objetivo não é atingido; mas a solução vem fácil: uma viagem internacional para
estudar inglês. Isso evidencia que a família possui enorme peso no percurso educacional
através do investimento e estratégias que permitem o jovem a seguir um caminho
similar ao de seus pais.
Seguindo essa lógica, Jéssica, criada pela avó, é uma transgressora do
comportamento que é naturalizado na classe social a qual ela pertence, que é entrar no
mercado de trabalho após finalizar o Ensino Médio, sem a possibilidade de seguir no
Ensino Superior. A jovem não possuía nada a seu favor: mãe distante, pai ausente e um
filho para criar. Mesmo assim, a presença de um professor que a inspira foi suficiente
para fazer com que ela seguisse adiante. Mas Jéssica é um caso a qual podemos chamar
de exceção. Durkheim, 100 anos atrás já havia percebido que a educação tem papel
fundamental em inculcar ideias que são indispensáveis para manter certa
homogeneidade nas sociedades e que a mesma varia entre as classes sociais e regiões.
Dessa forma, a educação no Brasil tem sido uma das grandes bases de sustentação da
estratificação social, pois a mesma, não passa de um fruto de sua própria sociedade.
Bibliografia

DURKHEIM, Emile. A educação, sua natureza e sua função. In: Educação e


Sociedade. São Paulo: Ed. Melhoramentos, (s/d), p. 33-56. 
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. Editora
Vozes, 1988 (com introdução de Marco Aurélio Nogueira). 
SOUZA, Jessé de. A construção social da subcidadania. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2012.

Filme

Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Fabiano Gullane, Caio
Gullane, Débora Ivanov, Anna Muylaert. Brasil: Pandora Filmes. 2015, DVD.

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