Você está na página 1de 7

Universidade de São Paulo

Faculdade de Educação
EDM1327 - Educação Infantil
Professora Dra. Maria Letícia

Aluna:
Renata Bertoni Bazan, Nº USP: 8031819
Período Noturno

De agentes sociais à tutelados: A invisibilidade das crianças


no Brasil contemporâneo

São Paulo
2020
Introdução

Ao pesquisar referências para o presente trabalho, a fonte mais citada foi Philippe
Ariès. Todos os artigos e textos faziam referência ao autor, e com isso surge a necessidade
de contextualizar a sua escrita. Historiador da terceira geração da Escola dos Annales,
especializado em Medievalismo Francês, família e infância, uma de suas grandes obras,
estudada até os dias de hoje foi História Social da Criança e da Família, publicado em
1960 na França, sob o título L’Enfant et la Vie Familiale sous l’Ancien Régime. Tal livro
ficou conhecido por ser uma referência primária sobre o tema da infância no medievo.
Segundo o autor, na sociedade medieval a ideia de infância não existia.
A partir de seu livro e outros autores da atualidade, será traçado um panorama
sobre a questão da Infância em diferentes tempos históricos e sua (in)visibilidade, levando
em conta que o tratamento e forma que as crianças são vistas muitas vezes dependem do
contexto econômico, social e regional em que elas vivem.

A Infância na Idade Média

O sentimento que cerca as crianças e infância hoje em dia na sociedade Ocidental


nem sempre existiu. Diversas são as razões: mortalidade infantil, que por muitos séculos
foi encarada como algo natural, falta de compreensão sobre a especificidade de seu
desenvolvimento e o mais marcante, inserção na esfera laboral e social de grande
responsabilidade econômica. Ariès destaca dois sentimentos que perduraram até o século
XIX: “A infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na
lembrança; (...) da criança morta, não se considerava que essa coisinha desaparecida tão
cedo fosse digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja sobrevivência era tão
problemática (Ariès, 1981 p. 56).
Ainda, segundo o medievalista francês: “Durante a Idade Média, antes da
escolarização das crianças, estas e os adultos compartilhavam os mesmos lugares e
situações, fossem eles domésticos, de trabalho ou de festa. Na sociedade medieval não
havia a divisão territorial e de atividades em função da idade dos indivíduos, não havia o
sentimento de infância ou uma representação elaborada dessa fase da vida” (Ariès, 1981).
Durante esse período, a diferença entre o adulto e a criança, era marcado apenas
pelo seu tamanho (estatura), e assim que elas apresentassem certa independência física,
eram inseridas no trabalho com os adultos. A ajuda que as crianças ofereciam era de suma
importância para o sustento da família, sendo na plantação das terras dos feudos ou nas
de consumo próprio, caça, pesca e trabalhos manuais.
As condições de tal sociedade não permitiam que as crianças passassem por uma
fase onde houvesse o brincar, se divertir e estudar. É preciso levar em conta que estamos
nos referindo principalmente às crianças da camada popular do período, onde estudar era
um privilégio para os membros da aristocracia e do clero, e ainda assim, em circunstâncias
muito diferentes das dos dias de hoje. Dessa forma, a aprendizagem se reduzia a técnicas
de cultivo ou de outros serviços, como a carpintaria. Essa formação era realizada em meio
aos adultos, carregando peso e exercendo as mesmas tarefas, sem diferenciação alguma.
Mesmo com a existência de locais para a permanência de crianças ou o que
intitularíamos como “colégios” do século XIII, não eram instituições onde se ensinavam
os alunos; mantidos por doações, serviam como moradia a estudantes pobres com bolsa,
sem nenhuma distinção ou separação por idade. Segundo Ariès, no século XV esses
colégios passam a ser institutos de ensino onde irão receber ensinamento e serão postas a
uma hierarquia autoritária. No capítulo “Jovens e Velhos Escolares da Idade Média” que
dá início à segunda parte de seu livro o autor demarca um processo de transição ocorrido
no início da Idade Moderna que demonstra o marco inicial do progresso de um sentimento
de infância: (...) como a escola e o colégio que, na Idade Média eram reservados a um
pequeno número de clérigos e misturavam as diferentes idades dentro de um espírito de
liberdade de costumes, se tornaram no início dos tempos modernos um meio de isolar
cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral como intelectual,
de adestra-las, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separá-las da
sociedade dos adultos”. (Ariès, 1981 p. 165)
Funcionando através de regras, disciplina, vigilância e o controle dos alunos, as
novas diretrizes proporcionaram a evolução da escola simples da Idade Média para a
complexidade da escola moderna, trazendo também novas percepções sobre as idades.
Segundo Ariès: “Essa evolução da instituição escolar está aliada a uma evolução paralela
do sentimento das idades e da infância. No início, o senso comum aceitava sem
dificuldade a mistura de idades. Chegou um momento em que surgiu uma repugnância
nesse sentido, de início em favor das crianças menores. Os pequenos alunos de gramática
foram os primeiros a ser distinguidos” (Ariès, 1981 p.170).
Isso, portanto, afirmou na época que cada fase da vida tinha uma particularidade
e merecia atenção especial. A infância e a juventude eram formadas por várias categorias
e os colégios passaram a assumir outro papel dentro da sociedade do período. Não sendo
mais destinados apenas como um local de cuidados para crianças pobres: “O colégio
tornou-se então um instrumento para a educação da infância e da juventude em geral.
Nessa mesma época, no século XV e sobretudo no XVI, o colégio modificou e ampliou
seu recrutamento. Composto outrora de uma pequena minoria de clérigos letrados, ele se
abriu a um número crescente de leigos, nobres e burgueses, mas também a famílias mais
populares (...) O colégio tornou-se então uma instituição essencial da sociedade: com um
corpo docente separado, com uma disciplina rigorosa, com classes numerosas, em que se
formariam todas as gerações instruídas no Ancien Régime. (Ariès, 1981)
Porém, trazendo foco novamente ao interesse do presente trabalho, partir do
século XVII as crianças pequenas, que, faziam parte do que era chamado de Primeira
Infância, que passou a terminar aos 9-10 anos de idade foram excluídas dos colégios. Ou
seja, as crianças até essa idade não teriam direito à escolarização. Isso está ligado ao fato
de tais crianças serem encaradas na sociedade como seres incapazes, como afirma Ariès:
“a repugnância pela precocidade marcou portanto a diferenciação através do colégio de
uma primeira camada” (Ariès, 1981 p.176).

A Infância no Brasil Contemporâneo

Dando um salto na linha do tempo em alguns séculos e trazendo nosso foco ao


Brasil, é possível notar que por muito tempo as crianças pequenas não foram vistas como
objeto relevante de estudo. A preocupação com as crianças surge a partir do século XIX,
no Brasil e em outros lugares do mundo. No entanto, mesmo a infância constituindo-se
em um “problema social”, não foi suficiente para torná-la digna de investigação científica.
Até a década de sessenta a história da infância e a história da educação pareciam ser dois
campos distintos e inconciliáveis de pesquisa (Ariès, 1981).
No Brasil, as organizações voltadas à educação infantil surgiram com o intuito de
auxiliar mulheres que trabalhavam fora de casa, viúvas, órfãos…permanecendo por
muitos anos com um caráter basicamente assistencialista. Famílias de alto poder
aquisitivo pagavam babás, e, sem outra opção, mulheres trabalhadoras precisavam deixar
seus filhos sozinhos ou em instituições em que fossem cuidados. Não havia intuito
instrucional nesses locais, apenas o cuidado da saúde e alimentar. A educação “formal”
permanecia sob responsabilidade da família. (FULY; VEIGA, 2012)
Muitas dessas instituições de caráter assistencialista surgiram de iniciativas
filantrópicas, como de igrejas, empresários e trabalho voluntário. Com o início do
processo de industrialização do país na década de 1910, os trabalhadores passaram a
reivindicar seus direitos, sendo um deles a educação para seus filhos. Donos de fábricas
passaram a abrir creches e escolas maternais para atender a demanda, visando retorno no
trabalho das funcionárias.
A demanda por educação continuou crescendo e famílias de classe média também
passaram a reivindicar atendimento para seus filhos. Nesse momento, o movimento
feminista teve papel importante na conquista de vagas para os filhos de todas as mulheres,
independente de sua classe social. O Estado se viu obrigado a aumentar o número de
instituições mantidas pelo poder público, e, mesmo assim, a diferença entre as classes
sociais não foi diluída. Instituições privadas tinham enfoque pedagógico, preparando as
crianças para o ensino regular, sendo frequentadas por famílias que poderiam pagar. Já as
instituições públicas tinham um caráter assistencialista, um espaço para cuidados de
higiene e alimentação.
Se a invisibilidade das crianças pequenas dentro da espera social e jurídica
dificultou o acesso a um espaço adequado para a sua permanência, pois as mesmas eram
vistas como responsabilidade da família e não da sociedade (e Estado), a criação de
escolas e a regulamentação através da lei não foi capaz de suprir o que as mesmas
necessitavam. Atualmente, sendo escolarizadas muito cedo, algumas desde os primeiros
meses, passam todo o dia em creches porque os pais e as mães trabalham durante todo o
período. Hoje, espaços adequados e com profissionais qualificados destinados à Educação
Infantil podem ser encontrados tanto na rede pública quanto privada, mas não se pode
dizer o mesmo sobre outros espaços frequentados pelas crianças, como a própria cidade
em que residem.
Segundo a autora Maria Letícia Nascimento, a cidade não considera as crianças.
Os espaços dedicados a elas ficam circunscritos às escolas, ao playground do prédio ou
um parque. Suas observações na cidade de São Paulo mostram que hoje as crianças já não
ocupam mais a cidade como antigamente. Com observações sobre o bairro de Perdizes
trazidos pela autora, posso dizer que o que eu mesma observo no bairro Vila Olímpia, na
mesma cidade, é muito parecido. Muitas crianças nos semáforos da Avenida Brigadeiro
Faria Lima fazendo malabares para conseguir alguns trocados, e, de outro lado da esfera
econômica, crianças com seus familiares andando de bicicleta pela ciclovia da mesma
Avenida, o que também mostra que em famílias pobres a invisibilidade é maior, pois as
mesmas tem ainda menos espaços para frequentar. Crianças de classe média são vistas
com adultos a caminho do parque, do clube, e antes da pandemia, à escola.
Em seu artigo: “(In)visibilidade das crianças e (n)as cidades: Há crianças? Onde
estão?”, Nascimento trás uma provocação sobre os espaços e sua inadequação para os
pequenos. É difícil encontrar lugares com mobiliário adequado para recebê-los. Balcões
de padarias, mesas e cadeiras nos restaurantes altos reduzem ainda mais sua
independência. A cidade é feita para o adulto pois a infância é vista como algo passageiro,
efêmero. Mas a infância não é passageira, crianças crescem e se tornam adultas, mas logo
vem outras. As cidades nunca deixarão de ter crianças. Porém, nas próprias casa em que
habitam a infância é vista como passageira, com aparatos culturais que atendem aquelas
que estão por perto. Muitos já devem ter percebido: em uma casa com pequenos você
encontra berço, trocador, cadeirinhas e “privadinhas”; que permanecem por um tempo,
para depois serem doados.
Percebemos que as crianças existem na cidade apenas quando a vemos nos
espaços, em um clube, no restaurante. E sempre com a expectativa de que elas sejam
contidas: ao ver uma criança chorando, gritando, sempre pensamos onde estão os pais.
No mundo ideal dos adultos, as crianças devem estar sentadas e obedientes.
Como já explicado, a partir do historiador Philippe Ariès, durante muito tempo as
crianças fizeram parte do grupo social. Eram “pessoas” que conviviam com os adultos,
tendo as mesmas tarefas e responsabilidades. Hoje, é justamente a nova visão de infância
que as inviabiliza. As crianças deixaram de ser sujeitos sociais para serem sujeitos da
família e da escola (na Cultura Ocidental), vivendo no mundo dos adultos, que organizam
tudo para a sua vivência, as crianças não possuem meios de se posicionar. Com uma
sociedade que vive uma indiferença estrutural para com as crianças, ficou instaurada a
dificuldade de olhar a criança em um contexto macrossocial. Fazendo parte da família, os
responsáveis acreditam saber o que é melhor para eles. Os pequenos não são ouvidos,
estão ausentes de considerações políticas, mesmo que tais decisões tenham grande
impacto na vida deles.

Considerações Finais

Com o intuito de demonstrar que a infância nem sempre foi vista da forma afetiva
que vemos hoje na sociedade Ocidental, foi traçado um panorama de como as crianças
eram vistas e seu papel social dentro dos Períodos da Idade Média e a transição para o
Antigo Regime (Idade Moderna). Destacando trechos que culminariam na transformação
do ambiente escolar e consequente exclusão das crianças pequenas, muitas informações
precisaram ser resumidas ou cortadas, pois seria impossível trazer a riqueza de detalhes
do estudo de Ariès sem mudar o foco do trabalho: a (in)visibilidade da criança na esfera
social de hoje.
Se na Idade Média as crianças não possuíam infância por estarem totalmente
inseridas na sociedade, a história posterior permite afirmar que a infância pagaria um
preço muito alto pela nova centralidade social: a incapacidade plena (social e, também
jurídica) e, no melhor dos casos, convertendo-se em objeto de proteção e repressão,
deixando de ser vistas como um grupo social que produz cultura e se apropriam do mundo
para ressignifica-lo, modifica-lo e de alguma forma, lidar com ele.

Bibliografia

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução Dora


Flaksman. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 2ª edição, 1986.

FULY, Viviane Moretto da Silva. VEIGA, Georgea Suppo Prado Veiga.


Educação Infantil: Da visão assistencialista à educacional. Interfaces da Educ., Paranaíba,
v.2, n.6, p.86-94.

MOTA, Manoel Santos. “Philippe Ariès e a história no tempo: O registro francês


de um historiador outsider”, Intelligere, Revista de História Intelectual, nº7, p. 161-194.
2019. Disponível em: file:///C:/Users/berto/Downloads/162129-Texto%20do%20artigo-
368624-1-10-20190911%20(1).pdf. Acesso: Julho de 2020

NASCIMENTO, Maria Letícia B. P. (In)visibilidade das crianças e (n) as cidades:


há crianças? onde estão? EDUCAÇÃO EM FOCO (JUIZ DE FORA), v. 23, p. 79-96,
2018. Disponível em https://periodicos.ufjf.br/index.php/edufoco/article/view/20100

QVORTRUP, Jens. Visibilidades das crianças e da infância. Linhas Críticas, vol.


20, núm. 41, jan-abr, 2014, p. 23-42. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/4250 Acesso: Julho de
2020

Você também pode gostar