Você está na página 1de 9

UNIVERSIDADE PAULISTA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


CURSO DE PSICOLOGIA

JOSÉ RICARDO BELTRAMINI DE MELO T499IC-5

6º SEMESTRE NOTURNO

22B9 – Atividades Práticas Supervisionadas

CAMPUS RIBEIRÃO PRETO - SP

NOVEMBRO de 2020
JOSÉ RICARDO BELTRAMINI DE MELO

Uma análise fílmica: “Cidadão Kane” no escopo kleiniano

Texto apresentado para a disciplina de Atividades


Práticas Supervisionadas de código 22B9 do Curso de
Psicologia no Instituto de Ciências Humanas, campus
Ribeirão Preto.

RIBEIRÃO PRETO – SP

NOVEMBRO DE 2020
Introdução:
O presente trabalho procura analisar a obra cinematográfica “Cidadão Kane”
(1941) de Orson Welles sob o escopo da psicanálise. Para tal tarefa, nos embasamos nos
desenvolvimentos psicanalíticos de Melanie Klein, nos retendo aos conteúdos trabalhos
ao longo da disciplina, mas também nos embasando em contribuições para o campo de
estudo do filme dentro da psicanálise, visto que tal obra é um tema recorrente para a
psicanálise.

O filme “Cidadão Kane” (1941) detém títulos ímpares dentro do universo


cinematográfico. Consagrado como um marco na indústria do cinema, pode-se dizer que
o filme de Orson Welles é uma das obras que moldou e consolidou uma forma dentro
do que hoje chamamos de cinema hollywoodiano. Diante disso, temos Melanie Klein
tecendo linhas a respeito da obra, que estreou com seu diretor já dizendo de antemão o
forte fundamento psicanalítico para entender-se as relações que perpassam a película.
Diante do fato de termos considerações referenciais de Klein a respeito do filme, fora
escolhido furtar-se de mobilizados no desenvolvimento desse trabalho, uma vez que a
proposta dessa produção é exercitar o nosso próprio olhar psicanalítico perante a
realidade, bem como nas diferentes obras de arte.

Temos, logo de início do filme, uma das mais icônicas palavras consagradas
pelo cinema: rosebud. Com a palavra sendo proferida por um corpo moribundo e um
globo de neve espatifando-se no chão temos a apresentação do argumento principal do
filme: o que é rosebud? Com isso, passamos a assistir a reprodução de um documentário
dentro do filme “Cidadão Kane”. Podemos, na verdade, interpretar que o filme nada
mais é do que a tentativa de reconstituição da vida de Charles Kane, pois
acompanhamos alguns jornalistas produzirem um documentário a respeito da vida e
morte de Charles Kane, assim como procuram decifrar o mistério por trás da última
palavra do magnata dos meios de comunicação em massa.

Metodologia:
Por mais vasta que seja a relação entre psicanálise e cinema, sempre se faz
presente a necessidade de estabelecer recortes para a análise. Recortes do material e da
metodologia que será utilizada para trabalhar esse objeto. Sendo assim, seguindo a
proposta da disciplina, o filme estará sob a ótica de um dos autores trabalhados em sala,
a saber Melanie Klein.

Assim, temos as elaborações de Klein sobre o Estado de aniquilamento, sobre o


sentimento de angústia que não encontra maneiras de ser externalizado. Além disso, há
sua concepção de édipo precoce, em que se faz presente uma díade mãe-criança, que
triangula uma relação entre mãe, bebê e ausência, que envolve o processo de
amamentação. Com essa relação constituindo o complexo de édipo kleiniano, que
apresenta a desamamentarão como traço dessa tendência edípica, culminando em um
modelo de édipo precoce ao modelo freudiano.

Temos também dentro da teoria kleiniana a constituição de um superego


anterior, vivenciado através do terror, que conforme o tempo passa, se atenua. Porém, as
experiências iniciais são de terror. Tal superego é constituído através da internalização
do “seio” da mãe, ou seja, da absorção que o bebê faz da mãe, sendo acompanhadas as
experiências de satisfação e de frustração. A respeito da categoria do seio materno, a
autora nos apresenta uma bipartição, onde há o “seio bom” e o “seio mau”, em que são
associados a satisfação e a frustração respectivamente.

Klein detém diferenças quanto aos mecanismos de defesa, pois apresenta defesas
específicas para a posição esquizo-paranoide como a clivagem 1 do objeto do sujeito,
constituindo-se como a defesa mais primitiva contra a angústia, e com a clivagem do
objeto, a autora entende que também ocorre a clivagem do ego, separando-o em ego
bom e ego mau, pois para ela o ego rudimentar se desenvolve a partir da introjeção que
o sujeito faz dos objetos. Há também o mecanismo de reparação, onde o sujeito procura
reparar os efeitos produzidos nos seus objetos de amor através de suas fantasias. O
mecanismo da reparação acompanha todo o processo de angústia do sujeito.

Análise:

Ao iniciar o filme, podemos notar que mesmo sem muitas introduções a figura
de Charles Kane, o homem que acabamos de presenciar o falecimento desperta muitos
interesses. Um grupo de jornalistas estão discutindo a respeito de sua vida e morte para

1
A clivagem para Klein também se manifesta na posição depressiva, que incide no objeto total do sujeito.
a produção de um documentário. No grupo, o jornalista chefe fixa-se em um primeiro
momento na palavra Rosebud, falada de forma enfática pelo velho moribundo que
vemos derrubar o globo de neve e falecer. O mesmo jornalista posteriormente identifica
Kane como a pessoa que fora mais amada e posteriormente mais odiada de toda
américa.

Podemos, em um primeiro momento, tentar criar interpretações sobre aspectos


que o luto de Kane acarreta, pois pensando em uma interpretação do projeto de
reportagem sobre sua vida, o que tal projeto traz para o jornalista chefe? Qual a sua
insistência em desvendar o mistério que a palavra Rosebud possa conter. Mesmo em
meio aos seus pares dizendo que poderia ser algo simples, sem profundas arquitetações
misteriosas, o jornalista ainda sim delega a função de investigar o significado de
Rosebud para Charles Kane, o grande magnata que se aventurara pela carreira política,
para um de seus subordinados.

Nessa investigação temos, como uma representação simbólica, as memórias de


Charles Kane trancafiadas em uma espécie de cofre dentro da biblioteca. Como
percebemos, não é uma situação comum, e para ratificar essa sensação, o filme nos
expõe o caráter de especialidade que o jornalista detém a possibilidade de leitura do
livro onde estão parte das memórias de Charles Kane.

No flashback recriado para o expectador através da leitura das memórias pelo


jornalista encarregado, notamos a forma como a mãe de Kane se relaciona com o filho,
sem demonstrar afetividade por ele, parecendo não estabelecer um vínculo com a
criança. Demonstra apatia, extremo controle das ações de Kane e despreocupação –
podendo até estender que fora sua proposição – o filho estar sendo encaminhado para
fora do lar, somado a situação gerada pela assinatura da mãe nos documentos que o
banco passa deter a responsabilidade de tutela de Charles.

Charles enquanto criança demonstra-se apático ao banqueiro que está tentando


se socializar com o garoto. Age de forma apática, dedicando sempre a atenção
primeiramente a mãe. O pai realiza esforços para ter a atenção do menino através de
suas falas expressando seus sentimentos de preocupação, cuidado e carinho para com o
filho em um primeiro momento, mas resultam sempre no filho virando-se para a
imagem da mãe.
Kane insiste em requisitar mais motivos para sua mãe não viajar com ele,
desconfiado da figura desconhecida. Ao final da cena de flashback, na despedida do
garoto com os pais, é revelado ao público a verdadeira intenção da mãe e de suas ações
para o distanciamento da criança: a mãe de Charles diz que longe deles o pai não poderá
bater na criança para educa-lo. Vemos, portanto, que talvez a apatia da mãe em um
primeiro momento pode vir a ser entendida como uma manifestação da angústia de sua
relação com o marido. Tal elemento é importante de ser debatido, pois a angústia toma
um lugar central durante todo o decorrer do filme.

Em um flash novamente, agora em que Kane já está em idade avançada e


Thatcher, um elemento que assemelha-se a um consultor financeiro em algumas horas, e
em outras uma figura um pouco mais fraternal, vemos Thatcher confrontar Kane a
respeito do que gostaria de ter sido se tivesse a oportunidade de poder escolher seu
destino, no que Charles afirma que teria sido tudo aquilo que ele [Thatcher] odeia.

Bernstein, um empregado e amigo de Charles Foster Kane, ao conversar com o


repórter a respeito da palavra rosebud, nos dá indícios de sua memória, a respeito de
uma mulher que vira ocasionalmente durante sua juventude, em um único relance, mas
que nunca a esquecera. Traça toda essa analogia para supor ao repórter que o vocábulo
poderia não ter tanta importância, deixando no ar a pergunta do que será que poderia se
lembrar quando se está à beira da morte.

Jedediah Leland, personagem que Bernstein diz ao repórter saber coisas únicas a
respeito do magnata falecido, faz a comparação da memória como uma maldição,
dizendo: “I can remember everything. That’s my curse, Young man. It’s the greatest
curse that’s ever been inflicted on the human race: memory.”. Leland ainda descreve
Kane como uma pessoa egoísta, que só acreditava em si, não vivendo nada do que
realizava, apenas tendo como parte dele, como pertencente à ele, si próprio. Talvez, em
uma análise mais cuidadosa e embasada, pode-se levantar a hipótese de uma construção
de um falso self, em que Kane nos demonstra – através do flashback – uma rigidez do
ambiente para com as suas atividades, e não consumando seus atos, não adquirindo
satisfação em suas variadas empreitadas.

Nos diálogos com sua primeira esposa Charles nos dá indícios de uma
personalidade autoritária, egocêntrica. Diz a ela que as pessoas irão pensar no que ele
quer que elas pensem ao debater com a mulher a respeito de suas críticas ao presidente,
tio de sua esposa. Complemente dizendo que o tio de sua esposa ser o presidente do país
foi um erro que logo será corrigido por ele [Kane], indicando sua vontade política.

Ao apresentar outro diálogo com Leland, o idoso revela que Charles casou-se
por amor, e por isso se desdobrou em diferentes atividades durante seu primeiro
casamento. Conclui que Charles sempre quis amor, queria o amor dos eleitores, tudo
que ele queria na vida era amor e essa é a história de Charles, assim como é o que ele
perdeu. Com essa fala do mais íntimo dos amigos de Kane, temos como consagrado a
falha de estabelecer bons vínculos com os seus objetos, demonstrando possivelmente o
mecanismo da clivagem, onde volta-se aos seus objetos de amor.

Leland ainda relata que Kane chamou sua segunda esposa de “o perfil do público
americano” – o que nos traz que seu casamento possa ter sido motivado talvez por
algum vislumbre em Susan de algo que ele havia perdido, de um amor pelo qual ele
sempre está em busca para receber. É mencionado por Charles que se sente solitário ao
conhecer Susan na calçada. Naquele momento, Charles Kane, o magnata donos de uma
das maiores riquezas do mundo, estava indo a um caminho de reencontro com sua
infância, pois iria visitar pertences de sua falecida mãe que tivera guardado por todo
esse tempo em um galpão.

Já em seu relacionamento com Susan, se mostra controlador com a esposa, para


que ela continue a cantar, independente de sua vontade ou aptidão, para que ele não faça
papel de bobo, demonstrando que, por debaixo de seu discurso a respeito de sua
personalidade que simpatiza com os trabalhadores e é posicionada como a de um
jornalista sensato, traz a importância que delega aos pensamentos daqueles os quais ele
não consegue controlar, como havia falado para sua primeira esposa Emily.

Em determinado ponto do filme, expressa à vontade por realizar um piquenique e


demostra intransigência quanto a realização da atividade com Susan e os convidados.
Sua esposa Susan tenta argumentar com Charlie, mas ele se mantém rígido em sua
vontade de realizar um piquenique, novamente, demonstrando ser intransigível com ela,
seu objeto de amor, como haviam se estabelecido as suas relações com a sua mãe.

Ao evidenciar o desgaste da relação do casal, há a primeira cena de violência


física presenciada no filme todo. A cena em questão ocorre que, em meio a uma
discussão do casal, Charles Kane utiliza de seu cinto para bater em Susan. Tal cena é
marcada também por um fundo em que há uma mulher gritando, histericamente,
enquanto ocorre o diálogo após a agressão.

Ao fim da cena de violência do casal, em um ataque de fúria pela saída de sua


esposa da casa, e consequentemente de seu casamento quebra generalizadamente o
quarto da agora ex-esposa, parando apenas ao se deparar com um globo de neve.
Charles Kane ao observar o globo, remete-se a casa de seus pais biológicos,
contrapondo-o assim a imagem em foco do globo de neve agitado com a cena de
introdução a antiga casa, com a casa em foco central, rodeada por neve. É nessa cena
que nosso protagonista permanece com a palavra Rosebud que vem a sua mente ao
encontrar o globo de neve, internalizando-a até sua morte. A beira do falecimento,
repete o vocábulo Rosebud, em meio a um último suspiro, deixando o globo de neve
espatifar-se no chão.

Como forma de encerramento do longa, em meio ao trabalho de seus


funcionários para catalogarem e se livrarem de todos os objetos acumulados pelo
magnata, há um trenó de gelo. Em meio aos seus objetos acumulados, podemos ver seu
antigo trenó de criança incinerando-se no forno de entulhos. Tal item detém uma
estampa com o escrito Rosebud, queimando sob o fogo e transformando as últimas
lembranças de Charlie Foster Kane em uma fumaça densa, escura e, por quê não,
angustiante.

Conclusão

Vemos, em todo o decorrer do filme que o discurso de Charles Kane é sempre


um discurso egocêntrico. Para também toda uma ambientação concebida para o filme
que cria a atmosfera de angústia nas relações que vai desvendando sobre a vida do
magnata protagonista, elemento com o qual não trabalhamos a fundo, pois necessita de
uma análise mais lapidada da teoria psicanalítica e do objeto em questão, estudando
suas características e recursos.

Sobre as relações sociais que podemos identificar, pode-se indagar se há uma


dificuldade na formação da díade mãe-bebe, pois o pouco contato que nos aparecem
enquanto o protagonista já é uma criança mais velha, demonstra controle estrito das
atividades do garoto, assim como de seu comportamento. Há também
indissociavelmente a forma do complexo de édipo ao percebermos a angústia de Kane,
ainda mais se relembrarmos o ímpeto que havia para o diálogo e atenção da mãe

Nas relações estabelecidas por Charlie Foster Kane, o magnata, e o jornalista, como
afirmou algumas vezes as suas duas personalidades, podemos identificar a formação de
mecanismos de defesa. Um dos recursos identificados e empreendidos pelo
protagonista, verifica-se em clivagens que realiza, ao demonstrar que suas relações
sujeito-objeto não estão bem estabelecidas, pois busca incessantemente, cada vez mais,
o amor de mais pessoas, de mais admiradores, para que assim trazer todo esse amor para
acompanhar sua angústia.

Bibliografia

CINTRA, E. M. U.; FIGUEIREDO, L. C. Melanie Klein, estilo e pensamento. São


Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

KLEIN, M. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991-1997. (Amor,


culpa e reparação e outros trabalhos, Vol I).

FROEMMING, Liliane Seide; RIBEIRO, Márcia Regina. Melancolia como herança


no filme Cidadão Kane. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza ,  v. 7, n. 2, p. 385-404, set. 
2007.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S1518-61482007000200008&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 21
nov.  2020.

Você também pode gostar