Você está na página 1de 118

Unidade II

Unidade II
5 TOXICOLOGIA OCUPACIONAL E DE MEDICAMENTOS

Este tópico será dividido em duas partes. Na primeira, abordaremos a toxicologia ocupacional, ou
seja, você terá a oportunidade de compreender melhor como pode ocorrer a exposição e a intoxicação
no ambiente de trabalho e também como é possível prevenir a intoxicação do trabalhador. Na segunda,
abordaremos a toxicologia de medicamentos. Como foi possível você compreender, o medicamento
é um agente exógeno e, por conseguinte, depende da forma pela qual o organismo se expõe a ele,
pode haver o rompimento da homeostase e, consequentemente, o aparecimento de sinais e sintomas
de intoxicação. Neste tópico ainda teremos a satisfação de trabalhar juntos a maneira de se realizar
o diagnóstico da intoxicação por alguns medicamentos, bem como apresentar e compreender a
importância dos antídotos no tratamento da intoxicação.

5.1 Toxicologia ocupacional

Iremos agora expor algumas informações, para que possamos compreender o raciocínio toxicológico
na esfera ocupacional.

5.1.1 Introdução

Desde os primórdios, houve exposição dos trabalhadores a substâncias químicas, material biológico
ou agentes físicos, mas nem sempre foi dada a devida atenção à saúde do trabalhador. Antes da
Revolução Industrial, a exposição das pessoas a substâncias potencialmente tóxicas estava associada à
própria subsistência. Em vários momentos da história, as atividades profissionais foram realizadas por
escravos, ou seja, pessoas que eram dominadas por outros povos e submetidas a atividades insalubres,
fato que perdurou até o final do século XIX.

Para que você tenha dimensão do que representou a exposição ocupacional a agentes
potencialmente tóxicos, no séc. IV a.C., Hipócrates identificou a intoxicação pelo chumbo na
produção mineradora (SANTOS et al., 2004). Plínio, o Velho (23–79 d.C.), observou que, na tentativa de
reduzir a exposição ao chumbo, trabalhadores utilizavam bexigas do trato urinário de animais como
máscaras (KATO; GARCIA; WÜNSCH FILHO, 2007), e na Europa, a partir do século XII, as universidades
já realizavam experimentos associados à higiene ocupacional, na tentativa de compreender melhor
como aconteciam as intoxicações no ambiente de trabalho e preveni-las (SANTOS et al., 2004).

Georgius Agricola (1494–1555) estudou entusiasticamente doenças ocupacionais de mineradores.


Ele descreveu com bastante detalhe para a época os danos que aconteciam com os mineradores em
diferentes situações e concluiu que, durante a extração de minério, quando as minas estavam mais secas
que úmidas, havia liberação de poeira que, associada à baixa umidade do ar, penetrava na traqueia, e
218
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

quando corrosivas, “devorava” os pulmões. Nas minas das montanhas dos Cárpatos, havia mulheres
que se casaram com sete maridos, todos com morte prematura pela exposição à poeira tóxica, nas
mineradoras (HOOVER, 1950).

Bernardino Ramazzini (1633–1714) foi um médico italiano que dedicou praticamente toda sua vida
profissional à medicina ocupacional. Escreveu o livro sobre doenças ocupacionais e higiene industrial,
De morbis artificum diatriba (Doenças dos trabalhadores) (FRANCO; FRANCO, 2001). Em 1767, George
Baker (1722–1809) observou que as epidemias de cólicas saturninas ocorridas durante o século XVII
estavam associadas aos efeitos gastrintestinais causados pela exposição ao chumbo presente na sidra, o
vinho feito de maçã (RIVA, 2012).

Se por um lado a Revolução Industrial trouxe aspectos positivos como as transformações


econômicas, políticas e sociais, além do aprimoramento científico e tecnológico, por outro lado,
homens, mulheres e crianças trabalhavam, moravam e viviam em condições precárias, nessa época.
Os salários eram baixos, a jornada chegava a 18 horas por dia e havia, inclusive, castigos físicos. O
trabalhador não tinha direito algum! Como havia muitas faltas ao trabalho com consequente baixa de
produção, começou a haver a intervenção governamental. As leis associadas à saúde do trabalhador e
à medicina do trabalho começam a surgir nesse período, ou seja, no início do séc. XIX.

Mas você poderia perguntar: e o Brasil, como se posicionava do ponto de vista de legislação ocupacional
nesse momento histórico? O trabalhador era destituído de valor. O trabalho índio foi substituído pelo
escravo negro, e apenas no início do séc. XX o país conseguiu alguma projeção industrial, sobretudo
após as duas grandes guerras.

Esse breve histórico lhe foi trazido à luz para que você tenha uma dimensão temporal de quando a
saúde do trabalhador começou minimamente a ser respeitada, no Brasil. Foi apenas durante o Estado
Novo, em 1943, que houve a Consolidação das Leis do Trabalho, e com ela a Medicina do Trabalho
e a Engenharia de Segurança passaram a ser fundamentais na prevenção das doenças ocupacionais
(MACHADO, 2016).

Saiba mais

Você encontrará mais informações sobre o estudo das doenças dos


trabalhadores em As doenças dos trabalhadores, que é uma tradução para
o português do De morbis artificum diatriba.

RAMAZZINI, B. As doenças dos trabalhadores. 4. ed. São Paulo: Ministério


do Trabalho; Fundacentro, 2016.

O termo intoxicação exógena está associado ao rompimento da homeostasia, o que é caracterizado


pelo aparecimento de sinais e sintomas causados no referencial biológico que se expõe a um ou mais
diferentes toxicantes. Esse desequilíbrio é representado pelas manifestações clínicas ou laboratoriais.

219
Unidade II

Sob a perspectiva epidemiológica, de todos os 695.825 casos de intoxicação exógena relatados no


Brasil entre os anos de 2007 a 2016 (veja a figura a seguir), 43.736 foram de origem ocupacional, ou seja,
6,7% dos casos de intoxicação ocorreram no ambiente de trabalho.
140
Coeficiente de incidência (por mil habitantes)

Centro-Oeste
120 Nordeste
Norte
100 Sudeste
Sul
80 Brasil

60

40

20

0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Ano

Figura 115 – Coeficiente de incidência (por mil habitantes) dos casos notificados
de intoxicação exógena relacionada ao trabalho no Brasil, por região, de 2007 a 2016

Excetuando-se a região Sul, em todas as demais regiões houve aumento do número de casos de
intoxicação ocupacional, no Brasil, a partir de 2013. Na região Sul, esses números aumentaram a partir
de 2015 (BRASIL, 2018a).

O trabalhador pode se expor no ambiente de trabalho a substâncias químicas como inseticidas,


metais pesados, agentes metemoglobinizantes, gases e vapores tóxicos e outras substâncias ou produtos
potencialmente tóxicos.

O gênero masculino (veja a tabela a seguir) apresenta prevalência superior ao feminino, em termos
de intoxicação ocupacional, no Brasil.

Tabela 5 – Distribuição da frequência dos casos notificados de intoxicação exógena


relacionada ao trabalho, segundo dados sociodemográficos: Brasil (2007–2016)

Características N %
Sexo 43.712
Masculino 28.214 64,5
Feminino 15.498 35,5
Raça/cor da pele 42.539
Branca 19.809 46,6
Preta 2.553 6,0
Parda 13.257 31,2
Ignorada 6.449 15,2

220
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Características N %
Outras 471 1,1
Escolaridade 38.007
Analfabeto 525 1,4
Ensino fundamental completo 3.102 8,2
Ensino fundamental incompleto 11.994 31,6
Ensino médio completo 6.668 17,5
Ensino médio incompleto 3.213 8,5
Ensino superior completo 1.011 2,7
Ensino superior incompleto 634 1,7
Ignorado 10.860 28,6

Fonte: Brasil (2018a).

Lembrete

Substâncias de caráter lipofílico atravessam membranas biológicas a favor


do gradiente de concentração, sem gasto de energia, por difusão lipídica.

Deve-se levar em consideração a crescente participação das mulheres no ambiente de trabalho, com
destaque para as lactantes e gestantes. O lactente que é amamentado do leite de uma mãe que se expõe
ocupacionalmente a substâncias químicas de caráter lipofílico pode também estar sendo exposto ao xenobiótico,
pelo leite materno. A exposição vertical pode levar à teratogenicidade, dependendo do período gestacional em
que o feto tiver sido exposto, da quantidade de toxicante ao qual foi exposto e do tempo de exposição.

Quando se avalia a faixa etária e a escolaridade dos trabalhadores, deve-se considerar que é proibido
o trabalho infantil, no Brasil. Ainda assim, a figura a seguir nos traz um gráfico em que é possível
identificar a presença de menores no mercado de trabalho, com risco de intoxicação, nos dias atuais,
risco esse aumentado quando o nível de escolaridade do trabalhador é baixo, uma vez que a atividade
profissional e as medidas de segurança nem sempre são claras, pela dificuldade de leitura ou compreensão
das informações dos que pouco estudaram.
> a 80
Feminino Masculino
n = 42.559 71 a 80
61 a 70
Faixa etária

51 a 60
41 a 50
31 a 40
21 a 30
11 a 20
5 a 13
%
15 10 5 0 5 10 15 20 25

Figura 116 – Distribuição da frequência dos casos notificados de intoxicação exógena


relacionada ao trabalho, segundo faixa etária e sexo, no Brasil, 2007 a 2016

221
Unidade II

Vamos agora unir os pontos da toxicologia? Faremos algumas perguntas.

Qual é mesmo o conceito de toxicologia?

Você se lembrou que é a ciência que estuda os efeitos nocivos causados por uma substância química
no organismo humano.

E o que significa ocupacional?

Está associado ao ambiente de trabalho, também chamado de laboral. Assim, a toxicologia ocupacional
é a área da toxicologia que estuda os efeitos nocivos causados pelas substâncias químicas produzidas ou
utilizadas no ambiente de trabalho.

Você se recorda dos objetivos do estudo da toxicologia?

A toxicologia tem como objetivos o diagnóstico, o tratamento e a prevenção da intoxicação.

Observação

Nesse contexto, dentro dos três objetivos da toxicologia, o mais


importante no âmbito ocupacional é a prevenção da intoxicação.

As instituições ou empresas devem garantir que a exposição do trabalhador aos xenobióticos


seja dentro de limites permitidos e que não leve ao aparecimento de danos aos trabalhadores.
Entretanto, uma pequena parte dos trabalhores pode apresentar lesão com algumas substâncias
químicas, mesmo quando elas estejam abaixo do limite máximo permitido de exposição. Um menor
percentual de trabalhadores pode, inclusive, apresentar agravamento de uma doença preexistente
por conta da exposição ocupacional. É por isso que a toxicologia leva em consideração a sensibilidade
individual. Assim, a maioria dos trabalhadores deve estar protegida, do ponto de vista de intoxicação,
no ambiente de trabalho.

Exemplo de aplicação

Ocorre-nos mais um questionamento: como é possível prevenir a intoxicação no ambiente de


trabalho? Reflita.

Para que se previna a intoxicação do trabalhador, são estabelecidas medidas seguras de exposição
no ambiente de trabalho, e, para deixar caracterizado que elas existam, realizam-se a monitorização
ambiental, a monitorização biológica e a vigilância da saúde.

Vamos compreender melhor esses conceitos?

222
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

O termo monitorização está associado a monitorar, ou seja, medir e comparar o resultado com
uma referência apropriada. Permita-nos fazer uma analogia: para que se saiba se está havendo
aproveitamento, submete-se o aluno a avaliações. Caso as notas obtidas pelo aluno sejam iguais ou
superiores ao limite estabelecido pela instituição de ensino, o aluno é aprovado.

Ficou mais claro para você o conceito de monitorização? No ambiente de trabalho também se realizam
monitorizações. Monitoram-se as substâncias presentes no ambiente de trabalho e no organismo, para
estimar o risco de intoxicação durante toda sua vida laboral.

A partir de agora, detalharemos como e por que ocorrem essas monitorizações.

5.1.2 Monitorização ambiental

Imaginemos o seguinte cenário: um jovem trabalha na refinaria de petróleo. O benzeno, como


sabemos, é um dos hidrocarbonetos presente em uma das frações de destilação do petróleo e pode
causar danos pela exposição aguda ou crônica no trabalhador, dependendo das condições de exposição.
Assim, como que você imagina que seria possível prevenir a intoxicação desse jovem trabalhador da
refinaria de petróleo?

A primeira situação que tem que ser pensada é identificar e quantificar substâncias químicas
presentes no ar que o trabalhador respira, no ambiente de trabalho, e às quais esse trabalhador possa
se expor diariamente, por toda a vida laboral (de trabalho), sem risco de intoxicação. Esse processo é
denominado monitorização ambiental.

Observação

Não confunda monitorização ambiental referente ao meio ambiente


com aquela realizada no ambiente de trabalho! Ambas possuem o mesmo
nome, mas ocorrem em ambientes diferentes.

Assim, a monitorização ambiental é a medida ou quantificação de uma substância química no


ambiente de trabalho, ou seja, no ar que o trabalhador respira, para saber se está dentro dos limites
permitidos pela legislação. Isso significa monitorar: medir a quantidade de um xenobiótico presente no
ar e comparar os resultados obtidos com uma referência adequada (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).

É possível o trabalhador se expor ao benzeno e, ainda assim, não apresentar efeitos tóxicos? Sim, é
possível! Para isso, faz-se necessário que os limites de exposição ocupacional (LEO) sejam respeitados.

O mnemônico LEO é muito utilizado na toxicologia. Ele se refere à máxima quantidade de um


xenobiótico presente no ar presente no ambiente de trabalho a que a maioria dos trabalhadores pode se
expor diariamente, por toda sua vida laboral, sem risco de intoxicação.

223
Unidade II

Você poderia se perguntar após esse preâmbulo: de onde vêm essas informações, ou seja, se cada
substância química apresenta um LEO diferente, como poderíamos saber qual é o LEO de cada uma das
milhares de substâncias químicas utilizadas ou produzidas no ambiente de trabalho?

Esse é um dos maiores desafios associados à toxicologia ocupacional. Essas informações advêm de
estudos toxicológicos realizados em animais e extrapolados para humanos. Esses ensaios toxicológicos
demandam vários anos para serem realizados e consomem milhões de dólares para cada uma das
substâncias químicas.

Não é qualquer um que realiza esses experimentos! Há a necessidade de uma grande quantidade
de experts para realizá-los. Após esse grande investimento financeiro, conduzido por profissionais com
bastante experiência na sua execução, conclui-se qual é o LEO para cada uma das substâncias químicas
presentes no ambiente de trabalho. Caso o trabalhador apresente alguma lesão por conta da exposição
ocupacional, a empresa empregadora responde por isso, legalmente.

Renomadas agências internacionais estabelecem os limites de exposição ocupacional. Como


os limites de exposição ocupacional advém dessas agências, muitas vezes utilizamos o mnemônico
internacional de quem publicou os resultados. Assim, o LEO pode ser escrito como threshold limit value,
em inglês; consequentemete, seu mnemônico é TLV. Dessa forma, LEO apresenta o mesmo significado
que TLV: o primeiro é o mnemônio na língua portuguesa e o segundo, na inglesa.

Em instantes veremos quais são as agências internacionais que normalmente realizam esses
ensaios toxicológicos.

Saiba mais
Sugerimos, entusiasticamente, que você leia a obra a seguir:
BUSCHINELLI, J. T. Manual de orientação sobre controle médico ocupacional
da exposição a substâncias químicas. São Paulo: Fundacentro, 2014.

Como a obtenção desses limites de exposição ocupacional demandam anos para serem realizados,
massa crítica e milhões de dólares (para cada substância química!), essas agências ou instituições
permitem que o Brasil compile essas informações, ou seja, as utilize com autorização.

Exemplo de aplicação

Há poucas décadas, quando um parente, amigo ou vizinho se aposentava, não ficávamos muito
felizes. Reflita sobre isso.

Para muitos desses, dependendo de onde trabalhava, a aposentadoria significava que não viveria
muito tempo, diferentemente do que acontece atualmente, pois a expectativa de vida do brasileiro
aumentou significativamente nas últimas décadas.
224
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Mas por que há essa diferença entre os que se aposentavam no Brasil há algumas poucas décadas
e a realidade atual?

Vamos contextualizar para que você compreenda melhor a linha do tempo da aplicação da legislação
trabalhista brasileira e dos princípios toxicológicos no dia a dia das pessoas.

Dependendo das condições de exposição, o asbesto ou amianto pode causar danos ao trabalhador,
como o mesotelioma, câncer característico da exposição a essas fibras. Centenas de trabalhadores foram
intoxicados pelo asbesto em uma fábrica de telhas que utilizava o amianto como matéria-prima na
cidade de Osasco (WÜNSCH FILHO; NEVES; MONCAU, 2001).

Saiba mais

Sugerimos que você leia mais sobre os danos causados pelo asbesto no
organismo humano em:

INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER. Amianto. Brasília, 2018. Disponível em:


https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/amianto.
Acesso em: 16 nov. 2020.

Consegue entender melhor por que é necessário haver uma legislação trabalhista vigente que aplique
os conceitos toxicológicos? Para evitar perda de produtividade, absenteísmo (ausência no trabalho) e,
principalmente, agravos à saúde e mortes prematuras do trabalhador.

Vamos, agora, entender algumas instituições que realizam ensaios toxicológicos com o cerne
ocupacional.

A American Conference of Governmental Industrial Hygienists (ACGIH) é um comitê


norte-americano de toxicologistas ocupacionais que recomenda que deva haver limites de exposição
ocupacional denominados de threshold limit values. A norte-americana Occupational Safety and
Health Administration (OSHA), ou Administração de Segurança e Saúde do Trabalho (em tradução livre),
adota outra terminologia para o limite de exposição ocupacional: o limite de exposição permitido, ou
permissible exposure level (PEL). Isso quer dizer que a ACGIH e a OSHA possuem os mesmos propósitos,
mas com independência entre elas. Dessa forma, realizam ensaios toxicológicos e os disponibilizam
para que outros países compilem seus dados, ou seja, utilizem essas informações, mediante autorização
dessas instituições. Há outras instituições que também realizam os mesmos ensaios toxicológicos (OGA;
CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).

O TLV ou o PEL utilizados por países que compilam os dados norte-americanos devem atentar à
jornada, ou seja, à carga horária semanal, e utilizar fatores de correção em relação aos números que nos
são disponibilizados. No Brasil, o LEO também é chamado de limite de tolerância (LT).

225
Unidade II

O Brasil compila dados da ACGIH, com algumas adaptações, como o fator de correção exposto
anteriormente. Para efeito de legislação, o Ministério do Trabalho publicou a Norma Regulamentadora
n. 15 (NR-15), de 1978.

Observação

Como o anexo 11 da NR-15/1978 preconiza os limites de exposição para


até 48 horas semanais, faz-se necessário aplicar um fator de correção a
78% de seus valores.

Como é virtualmente impossível estabelecer o LEO para todas as substâncias potencialmente tóxicas
utilizadas ou presentes em processos industriais, a OMS sugere que sejam priorizadados os estudos
dessas substâncias.

Observe que, caso haja uma maior exposição ao asbesto em um dia de trabalho, o funcionário da
empresa não morrerá imediatamente por conta disso, ou seja, o problema associado ao asbesto não
se relaciona à exposição aguda, mas, sim, à crônica. Dentro desse contexto, dividem-se os limites de
exposição ocupacional (TLV) segundo o risco de intoxicação.

5.1.2.1 ACGIH-TLV-TWA

Embora possa parecer uma “sopa de letras”, nos permita explicar essas abreviações. ACGIH,
como exposto anteriormente, é a conferência norte-americana que estabelece limites de exposição
ocupacional. O termo TLV tem o mesmo significado que LEO, ou seja, limite de exposição ocupacional,
e o mnemônico TWA advém do inglês time weighted avarage, ou seja, média ponderada pelo tempo.

O que significa, então, a ACGIH-TLV-TWA?

É um parâmetro de monitoramento ocupacional associado à exposição crônica. Significa que ao


longo da jornada pode haver um ou mais picos de exposição da substância química, mas, ainda assim,
não há risco de intoxicação para o trabalhador, uma vez que a média de exposição ao longo do dia não
terá sido ultrapassada. Esse parâmetro de monitorização ambiental está associado à média de exposição
ao longo da jornada, sem se preocupar se houve uma ou mais sobrexposições à substância química ao
longo do dia, desde que, obviamente, o limite denominado de TWA não seja ultrapassado no final do
dia de trabalho.

Observação

Quando se escreve jornada, deve-se subentender trabalho ao longo


de um dia.

226
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Exemplo de aplicação

Por que o trabalhador pode se expor a uma significativa quantidade da substância química ao longo
da jornada e ainda assim não há risco de intoxicação?

Não há risco de intoxicação porque a substância não ultrapassou o TLV-TWA e porque ela não
apresenta importância na toxicidade aguda, mas, sim, na crônica. Conclui-se, assim, que, quando
o toxicante é monitorado pelo TWA (veja a tabela a seguir), significa que pode haver uma ou mais
exposições relativamente elevadas ao longo da jornada, mas, caso a média ponderada da exposição não
ultrapasse o TWA, não há risco de intoxicação, ao menos para a maioria dos trabalhadores.

Tabela 6 – Limites de exposição ocupacional (TWA) por diferentes instituições

LEO
LT – MTE – EUA – TLV – EUA – PEL – EU – OELV UK –
Substância
Brasil(*) ACGIH(**) OSHA(***) (****) WEL(*****)
Número (CAS)
Benzeno - 71-43-2 1 ppm (******) 0,5 ppm 1 ppm 1 ppm(a) 1 ppm
Chumbo inorgânico - 0,15 mg/
0,1 mg/m3 0,05 mg/m3 0,05 mg/m3 0,10 mg/m3
7439-92-1 m3 (a)
Clorofórmio - 67-66-3 20 ppm 10 ppm 50 ppm 2 ppm (b) 2 ppm
n-hexano - 110-54-3 - 50 ppm 500 ppm 20 ppm (b) 20 ppm
Tolueno - 108-88-3 78 ppm 20 ppm 100 ppm 50 ppm(b) 50 ppm
(*) Limites de tolerância – Ministério do Trabalho e Emprego, Brasil
(**) Threshold limit values – ACGIH, Estados Unidos (sem valor legal)
(***) Permissible exposure limit – OSHA, Estados Unidos (com valor legal)
(****) Occupational exposure limits value – SCOEL, União Europeia
(*****) Workplace exposure limits – HSE, Reino Unido.
(******) 1 ppm não é o LT, mas o valor de referência tecnológico (VRT) para o setor de petróleo, sendo de 2,5 ppm o
VRT para o setor siderúrgico
(a) LEO binding ou obrigatório
(b) LEO indicative ou indicativo

Adaptada de: Costa et al. (2011).

5.1.2.2 ACGIH-TLV-STEL

Há outro parâmetro que é utilizado na monitorização ambiental, no ambiente de trabalho: o


ACGIH-TLV-STEL. O acrônimo STEL advém do inglês short time exposure limit, ou seja, limite de exposição
a curto prazo ou de curta duração (tradução livre). Esse parâmetro de monitoração ambiental é utilizado
para substâncias químicas que possam manifestar narcose, irritação ou dano tecidual irreversível ao
trabalhador (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).

Imagine o seguinte cenário: uma pessoa trabalha em uma refinaria de petróleo e, de repente, ouve
uma sirene de alerta sobre vazamento de substâncias químicas potencialmente tóxicas com risco de
intoxicação aguda. Esse trabalhador tem poucos minutos para evacuar a área para que não seja exposto
à substância.
227
Unidade II

Imagine se, ao procurar a rota de fuga, esse trabalhador apresente um quadro de torpor, ou seja,
redução da sensibilidade e do movimento, e não consegue reciocinar rapidamente! Como o trabalhador
vai conseguir identificar a rota de fuga e evacuar a área com rapidez se ele não consegue raciocinar e
agir de forma célere?

Você consegue entender a importância e complexidade de uma monitorização ambiental? Se o


funcionário ouve a sirene, mas é hiporeativo e não consegue sair rapidamente do local, pode haver uma
grande intensidade de exposição em curto prazo inclusive a outras substâncias e, consequentemente,
importante dano ao trabalhador.

Também é o caso do dano tecidual irreversível: pode ser que a exposição a essa substância,
dependendo das condições de exposição, possa levar a irritação ou lesão tecidual irreversível. Para
substâncias químicas utilizadas ou produzidas no ambiente de trabalho que possam causar esses tipos
de lesão, o monitoramento ocorre pelo ACGIH-TLV-STEL.

Um substância química pode, portanto, ser monitorada pelo ACGIH-TLV-TWA e pelo ACGIH-TLV-STEL
ao mesmo tempo, ou seja, caso o trabalhador se exponha ocupacionalmente a substâncias químicas que
possam trazer danos ao trabalhador em uma exposição crônica e também a substâncias que possam
levar à narcose, irritação ou lesão tecidual irreversível, há as duas monitorizações.

5.1.2.3 ACGIH-TLV-C (ceiling)

Há outra situação envolvendo a monitorização ocupacional: há substânicas químicas que


apresentam importância na toxicidade aguda, ou seja, dependendo da quantidade da substância a
que o trabalhador se exponha, mesmo que por pouco tempo, pode ser fatal. Para essas substâncias, há
um outro parâmetro de monitorização ambiental no ambiente de trabalho: é o ACGIH-TLV-C (ceiling)
(OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).

O ACGIH-TLV-C é o parâmetro que indica a concentração de um xenobiótico presente no ambiente


de trabalho que em momento algum pode ser ultrapassado durante a jornada. Em caso de acidente como
vazamento de substâncias químicas no local de trabalho com importância na toxicidade aguda, dispara-se
a sirene e o trabalhador tem que se retirar imediatamente do local.

Você consegue visualizar que, em caso de narcose, além de aumentar o risco de acidente no trabalho,
o deslocamento desse funcionário em situação de evacuação do local pode ficar comprometido? É por
isso que as empresas precisam trabalhar com a monitorização ambiental, para proteger seus funcionários
da exposição excessiva de substâncias químicas com diferentes perfis de toxicidade (VEGA, 2010).

5.1.2.4 Nível de ação

Os controles periódicos e médicos são iniciados a partir do nível de ação (NA), obtido quando se
divide o limite de exposição ocupacional por 2, onde:

228
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

NA = Nível de ação

TLV = LEO = Limite de exposição ocupacional

NA = LEO
2

Ao medir a concentração da substância no ar que o trabalhador respira, desde que representativo da


zona respiratória do trabalhador (veja a figura a seguir), caso o resultado seja inferior ao nível de ação
dessa substância, interpreta-se que não esteja havendo uma significativa exposição do trabalhador.

Figura 117 – Dinâmica de amostragem pessoal no ambiente de trabalho

Segundo a Norma Regulamentadora n. 9 do Ministério do Trabalho, de 1978 (NR-9/1978 – MT),


valores acima do NA indicam que, para que se minimizem os riscos de intoxicação ocupacional, devem
ser tomadas ações preventivas referentes ao Programa de Prevenção dos Riscos Ambientais (PPRA)
(BRASIL, 1978).

Sabemos que a monitorização ambiental monitora a exposição do funcionário no ambiente de


trabalho. Mas vamos refletir sobre os seguintes cenários: todos os trabalhadores apresentam o mesmo
metabolismo? Todos os funcionários se movimentam exatamente da mesma forma, ao longo da jornada,
ou seja, todos os trabalhadores ficam sentados ou caminham no local de trabalho exatamente pelo
mesmo tempo?

Exemplo de aplicação

Continue seguindo o raciocínio e reflita sobre a pergunta: se para a mesma quantidade de substância
química presente no ar, no ambiente de trabalho, há um trabalhador que se movimenta bastante e outro
que fica mais sentado realizando outra atividade, sendo que se expõem à mesma atmosfera de trabalho,
ambos apresentam o mesmo perfil de exposição?

229
Unidade II

Quando a pessoa se movimenta, ocorre alteração da frequência cardíaca, a ventilação pulmonar


aumenta e, consequentemente, ocorre aumento no volume de ar que a pessoa inala. Se há aumento no
volume de ar, significa que há mais exposição à substância química presente na atmosfera de trabalho
em comparação com um funcionário que fica mais tempo sentado.

5.1.3 Monitorização biológica

Como saber se, ainda que a quantidade da substância química presente no ar esteja dentro dos
limites preconizados pela legislação, o trabalhador apresenta maior exposição com consequente
elevação do risco de intoxicação? É dentro desse contexto que se utiliza da monitorização biológica.

Você já sabe que monitorar significa medir algo e comparar esse resultado com uma referência
apropriada. No caso da monitorização biológica, mede-se a substância química presente no organismo
do trabalhador. É uma forma de garantir que, efetivamente, o trabalhador está sendo monitorado e que,
após anos de trabalho, não haverá lesão a esse organismo por conta da exposição ocupacional.

Assim, caso o organismo se exponha ao benzeno, tolueno ou xileno, são essas as substâncias
químicas que devem ser identificadas e quantificadas no organismo, sendo depois comparadas com
uma referência, para saber se o trabalhador apresenta risco de intoxicação?

Como vimos anteriormente, muitas substâncias às quais o organismo se expõe são rapidamente
biotransformadas e, consequentemente, caso as procuremos no organismo, não mais as encontraremos.
Dessa forma, um artifício utilizado para saber se o organismo se expôs ao xenobiótico é determinar a
substância química inalterada, produtos de biotransformação ou alterações bioquímicas precoces, em
diferentes matrizes biológicas.

É por esse motivo que você dedicou grande parte de seu tempo estudando os mecanismos
de biotransformação de um toxicante, nos princípios da toxicologia: para que você tenha condição de
compreender melhor como se aplicam aqueles conceitos teóricos aprendidos anteriormente, na prática.

Observe que até agora não lhe foi exposto o conceito de monitorização biológica. Primeiro, trouxemos
conceitos fundamentais desse tópico e os contextualizamos. Agora vamos lhe trazer à luz esse conceito.

Monitorização biológica (MB) é a medida de uma substância química inalterada, produto de


biotransformação ou alteração bioquímica precoce, presente no sangue, urina, suor, saliva, ar exalado
ou outra matriz biológica, capaz de estimar o risco de intoxicação quando se comparam seus resultados
com uma referência apropriada (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).

Agora fica muito mais fácil a compreensão desse conceito: você sabe o que é uma substância
química inalterada, um produto de biotransformação, e em poucos instantes iremos apresentar o que
é uma alteração bioquímica precoce. Você sabe que eles podem estar presentes em diferentes matrizes
biológicas (sangue, urina, suor, entre outros) e que, quando são quantificados no organismo, podem ser
comparados com uma referência apropriada. Mas faltam ainda dois importantes conceitos: bioindicador
e referência apropriada.

230
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Indicador biológico de exposição

Bioindicador, indicador biológico de exposição (IBE) ou, em inglês, biological exposure limit (BEI)
é toda substância química inalterada, produto de biotransformação ou alteração bioquímica precoce,
encontrada em diferentes matrizes biológicas como sangue, urina, suor, saliva, ar exalado ou outras
matrizes, que seja capaz de avaliar a exposição e o risco de intoxicação, quando se comparam seus
resultados com uma referência apropriada.

Observação

Observe que o conceito de monitorização biológica e bioindicador são


bastante próximos, mas não são iguais.

Referência apropriada

Você se recorda de que o Brasil compila dados da monitorização ambiental da ACGIH? Saiba que nosso
país faz o mesmo para a monitorização biológica. A legislação brasileira que versa sobre a monitorização
biológica é a Norma Regulamentadora n. 7 do Ministério do Trabalho, de 1978 (NR-7/MT), que determina
que, para promover e preservar a saúde dos trabalhadores, toda empresa ou instituição, ao admitir
funcionários, deve implementar e elaborar o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional
(PCMSO). A NR-7/1978 nos traz conceitos relevantes como valor de referência (VR), índice biológico
máximo permitido (IBMP) e imediatly dangerous to life and health (IDLH) (BRASIL, 2018b).

O VR é o maior índice de um bioindicador para um organismo não exposto ocupacionalmente.


Por exemplo: se você não se expõe ao benzeno no seu ambiente de trabalho, ou seja, se, entre outras
ocupações, você não trabalha como frentista ou em refinaria de petróleo, existe um valor máximo
do biondindicador presente no seu organismo que estima a exposição ao benzeno, como o ácido
s-fenilmercaptúrico (S-PMA) ou o ácido trans-transmucônico (TTMA), que é o VR (OGA; CAMARGO;
BATISTUZZO, 2014). Caso você trabalhe em uma refinaria de petróleo ou é frentista em um posto de
combustível, você será monitorado pelo IBMP, que é a máxima quantidade de um bioindicador presente
no organismo do trabalhador em que se acredita que a maioria dos trabalhadores não apresente risco
de intoxicação (BUSCHINELLI, 2014).

5.1.3.1 Tipos de bioindicadores

Há três diferentes tipos de bioindicadores: de exposição ou dose interna, de efeito e de suscetibilidade.

5.1.3.1.1 Bioindicador de exposição ou de dose interna

Quando o trabalhador se expõe a uma substância química, a identificação dessa substância no


organismo reflete a extensão da absorção da substância, ou seja, a substância química agora está
no “interior” do organismo do trabalhador, por isso se utiliza o termo dose interna (AMORIM, 2003).

231
Unidade II

Ao ser absorvida, nem toda a porção da substância que agora está no organismo do trabalhador
atingirá o órgão-alvo. É possível observar na figura a seguir que o afunilamento dessa “pirâmide
invertida” significa que, para toda a substância a que o organismo se expõe, apenas uma menor parte
tende a atingir o órgão-alvo.
Exposição externa

Mediação da dose interna



Quantidade absorvida

Quantidade alcança tecido

Relação com exposição


Quantidade alcança célula
Ligação com efeitos


Quantidade alcança macromolécula

Quantidade alcança sítio crítico

Dose biologicamente
efetiva

Figura 118 – Representação da intensidade de absorção de uma


substância e quantidade do xenobiótico que atinge órgãos-alvo

Alguma vez você já entrou em algum local e sentiu aquele cheiro forte de tinta? Alguns, inclusive,
podem apresentar intensa cefaleia ao acessar um local cujas paredes tenham sido pintadas recentemente.
Esse cheiro forte existe pelas várias substâncias presentes na tinta de parede, inclusive o tolueno.

Para saber, por exemplo, se um trabalhador de uma fábrica de tintas de parede apresenta risco
de intoxicação pela exposição ao tolueno, substância com meia vida biológica curta, determina-se a
presença do ácido hipúrico urinário.

Qual é o melhor momento para se coletar a urina do trabalhador para verificar o nível de exposição
ao tolueno? Pela manhã?

Nesse caso, a coleta da urina coletada deve ser realizada no final da jornada. Existe uma correlação
direta entre a exposição ao tolueno e seu produto de biotransformação, desde que a coleta da amostra
biológica ocorra no final da jornada.

Caso a coleta da urina seja realizada no período da manhã, por exemplo, que é o que a maior parte
das pessoas imagina, não haverá a correlação entre a exposição da substância e o bioindicador de dose
interna, que é o ácido hipúrico. Assim, o momento da coleta é importante para que não haja erros

232
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

pré-analíticos. É por isso que faz-se necessário conhecer a toxicocinética de cada uma das substâncias
químicas a que o trabalhador se expõe.

A amostragem deve ser realizada no último dia da jornada semanal para a exposição ao n-hexano,
tricloretileno ou outras substâncias químicas de meia vida prolongada, que seja de alguns dias, por
exemplo. Essa coleta apresentará uma adequada correlação entre a exposição e a absorção associadas
aos últimos dias de trabalho.

Você poderia questionar: e se a substância química à qual o trabalhador se expõe tiver uma
meia-vida biológica muito elevada, isso afeta o momento da coleta da amostra biológica?

Desde que tenha havido um tempo de exposição representativo, o momento da coleta da


amostra biológica não é limitante. É o caso do cádmio e chumbo (BRASIL, 2018b). Para que haja a
monitorização biológica do cádmio na urina, o trabalhador deve ter sido exposto ao metal por ao
menos seis meses (BUSCHINELLI, 2014).

5.1.3.1.2 Bioindicador de efeito

O bioindicador de efeito está relacionado aos efeitos precoces que ocorrem no organismo do
trabalhador após a exposição ao xenobiótico, e a estratégia é avaliar esses efeitos no organismo,
na avaliação de risco do trabalhador (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).

Se está havendo efeito, também não está havendo dano ao organismo do trabalhador?

Não necessariamente. Há as alterações bioquímicas precoces.

Vamos compreender melhor esses conceitos. O termo alteração bioquímica precoce está
associado a toda alteração bioquímica que ocorre no organismo causado por uma substância química,
mas que seja reversível e, ao mesmo tempo, possa auxiliar na prevenção da intoxicação. Vamos dar
alguns exemplos clássicos de alteração bioquímica precoce para que você compreenda melhor e
possamos complementar esse conceito.

Comecemos pelo monóxido de carbono. Essa substância é produto da queima incompleta da


matéria orgânica. Assim, quando há casos de incêndio ou queima de combustíveis fósseis ou do
cigarro, o organismo se expõe ao monóxido de carbono.

Gostaríamos que você continuasse interagindo e que se submetesse a seguinte reflexão: você acha
que tem monóxido de carbono no seu sangue, neste momento?

A resposta é sim!

Mais uma reflexão: você está intoxicado pela quantidade de monóxido de carbono presente em
seu sangue?

A resposta é não!
233
Unidade II

Lembrete

Toda substância química é potencialmente tóxica ao organismo humano


e de animais, dependendo das condições de exposição.

Pequenos teores de carboxihemoglobinemia (HbCO no sangue) não causam danos ao organismo


humano. Quando o organismo se expõe ao monóxido de carbono, essa substância ocupa o sítio de
ligação da hemoglobina que deveria se ligar ao oxigênio. Assim, há uma alteração bioquímica, uma vez
que, bioquimicamente, a hemoglobina deveria estar ligada ao oxigênio, e não ao monóxido de carbono.

Ao mesmo tempo, quando os teores de carboxihemoglobina (HbCO) aumentam, ainda que não haja
intoxicação, sinaliza que está havendo o aumento da exposição do organismo a esse gás, ou seja, inicialmente,
não há dano no organismo, mas indica que, caso a exposição aumente, pode haver intoxicação.

Para você ter dimensão, apenas após 10% de carboxihemoglobinemia é que o organismo
apresenta o primeiro sintoma de intoxicação, que é uma ligeira cefaleia. Valores inferiores a 10% de
carboxihemoglobinemia são assintomáticos. Entretanto, valores de 3,5% de HbCO, ainda que não
causem intoxicação, indicam que o trabalhador está exposto ao gás, acima do limite máximo permitido,
no ambiente de trabalho.

A HbCO é uma substância química inalterada ou produto de biotransformação?

Nenhuma delas é a resposta. É uma alteração bioquímica precoce. Sabe por quê? Porque não é
uma substância química inalterada como chumbo no sangue ou cocaína no cabelo e nem produto de
biotransformação como o TTMA, que é um dos bioindicadores de exposição ao benzeno. Entretanto, o
CO está interagindo com a hemoglobina, impedindo a ligação do oxigênio.

Além disso, é capaz de prever a intoxicação (mede-se o teor de HbCO e compara-se com uma referência)
e é reversível, ou seja, se o trabalhador apresenta níveis de HbCO de 12% e uma ligeira cefaleia, ao afastar
o trabalhador da exposição, os níveis de HbCO tendem a baixar e a cefaleia tende a desaparecer.

Ficou mais clara a diferença entre substância química inalterada, produto de biotransformação e
alteração bioquímica precoce?

Em função da importância das alterações bioquímicas precoces, são necessários mais alguns
exemplos clássicos.

Metemoglobina

Vamos compreender melhor o que é a metemoglobina (MeHb) e quais são os principais sistemas
redutores em humanos.

234
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Continuamente, o organismo humano é submetido ao estresse com consequente oxidação


direta ou indireta da oxihemoglobina (HbO2) à MeHb, por oxidação do ferro ferroso (Fe2+) dos anéis
pirrólicos do grupamento heme da hemoglobina, a ferro férrico (Fe3+), gerando a MeHb. A oxidação
do ferro ferroso dos anéis pirrólicos da hemoglobina impede que o oxigênio se ligue aos eritrócitos e,
consequentemente, se reduza o aporte de oxigênio aos tecidos distantes ou remotos.

Para se contrapor à oxidação da hemoglobina, ou seja, para reduzir a metemoglobina a


oxihemoglobina, o organismo humano possui sistemas redutores, que irão reduzir o Fe3+ da MeHb a
Fe2+, restaurando a capacidade de ligação e transporte de oxigênio pela hemácia.

Mas como ocorre essa reação de óxido-redução na hemoglobina?

• Principais sistemas redutores:

— Diaforase I: a diaforase I, também chamada de sistema NADH-citocromob5-redutase, é um


sistema enzimático constituído pelo citocromo b5, citocromo b5-redutase e o citocromo P-450.
Esse potente sistema enzimático capta elétrons derivados da glicólise NADH dependente.
Esse sistema é bem desenvolvido em adultos, mas uma criança de até seis meses de vida não
consegue sintetizar esse sistema redutor em sua plenitude. Sendo assim, as crianças são mais
suscetíveis à intoxicação por agentes metemoglobinizantes.

— Diaforase II: a diaforase II, também denominada de sistema MeHbredutase NADPH-dependente


ou DAPH-flavina redutase, é um sistema carreador de elétrons derivado da glicólise
NADPH-dependente. O azul de metileno é uma substância exógena capaz de captar o elétron
derivado da glicólise NADPH-dependente e, como tem notável afinidade com a MeHb,
transporta elétron a esse pigmento e a reduz à HbO2.

Restaura-se, assim, a capacidade da hemoglobina de se ligar e transportar oxigênio a tecidos remotos.

Agora que nos apropriamos dessas importantes informações, temos condição de compreender que os
agentes metemoglobinizantes são capazes de alterar o estado de oxidação da hemoglogina e impedir
a transferência de oxigênio aos tecidos remotos. Assim, a MeHb é mais um exemplo de alteração bioquímica
precoce e, consequentemente, um bioindicador de efeito (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).

Ácido Δ-aminolevulínico

Quando o organismo se expõe ao chumbo, há algumas formas de monitorar esse trabalhador. Uma
delas é determinar a presença do ácido Δ-aminolevulínico na urina (Δ-ALA U). O chumbo pode interferir
na síntese da heme na medula óssea por ser inibidor enzimático (inibe a enzima Δ-ALA desidratase).
Quando isso ocorre, há acúmulo do Δ-ALA no organismo, que é excretado pela urina, uma vez que o
Δ-ALA não se transforma em porfobilinogênio.

Assim, o Δ-ALA não é uma substância química inalterada, nem produto de biotransformação, mas
uma alteração bioquímica precoce, uma vez que está havendo uma inibição de enzima que atuaria
235
Unidade II

sobre o Δ-ALA; este se acumula, é excretado na urina e é utilizado para prever a intoxicação. À medida
que se identifica e quantifica o Δ-ALA na urina, compara-se esse resultado com a literatura adequada e
estima-se o risco de intoxicação.

Ainda que eventualmente possa ter havido alguma alteração no organismo por conta da exposição
ao chumbo, como a anemia microcítica hipocrômica, quando se retira o trabalhador do ambiente de
trabalho e, consequentemente, deixa de haver a exposição ao chumbo, o quadro de anemia tende a
desaparecer. Assim, o Δ-ALA U é um bioindicador de efeito.

Metalotioneína

Outro clássico exemplo de alteração bioquímica precoce é a presença da metalotioneína na urina.


Quando o organismo se expõe a metais, como o cádmio, para se proteger, o organismo produz maior
quantidade de uma enzima de baixo peso molecular denominada de metalotioneína. Essa proteína se
liga a metais, como o cádmio, forma um complexo hidrossolúvel e excreta o metal, impedindo que haja
a manifestação de danos renais, uma vez que o cádmio é nefrotóxico.

Assim, quando se identifica que há a presença de metalotioneína na urina, significa que o organismo
está se expondo a metais. É mais um exemplo de alteração bioquímica precoce e, consequentemente,
de bioindicador de efeito.

Acetilcolinesterase (AChE)

Por fim, a acetilcolinesterase. Quando o organismo se expõe a substâncias químicas inibidoras da


acetilcolinesterase, como os praguicidas organofosforados, essa enzima é inibida e, consequentemente,
não consegue hidrolisar a acetilcolina, induzindo ao excesso de estímulo colinérgico no organismo.

Atente-se que a inibição da acetilcolinesterase não é uma substância química inalterada, nem um
produto de biotransformação, mas, sim, uma alteração bioquímica precoce, uma vez que está havendo
uma alteração bioquímica (inibição enzimática), que é precoce porque é possível identificar a intoxicação
antes de danos irreversíveis e também é capaz de prever a intoxicação, já que se pode comparar os
resultados com uma referência apropriada e estimar o risco de intoxicação.

Nesse momento, utilizamos os conceitos aprendidos anteriormente, associados à alteração


bioquímica precoce. Um bioindicador de efeito é aquele em que ocorre uma alteração bioquímica no
organismo do trabalhador. Essa alteração deve ser precoce e reversível, ou seja, quando se identifica
que há uma alteração bioquímica precoce, significa que foi possível prever a intoxicação antes de que
houvesse um dano irreversível ao trabalhador.

O trabalhador deve ser submetido a uma avaliação médica pelo médico do trabalho, com possível
afastamento de sua atividade profissional, e realizar tratamento médico caso seja constatada a correlação
entre efeitos tóxicos e os níveis dos indicadores biológicos de exposição de dose interna ou de efeito, ou
seja, caso haja significado clínico.

236
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Você sabia que fatores ambientais ou até mesmo o alimento pode interferir nos resultados analíticos
envolvendo a toxicologia ocupacional?

Sim, isso pode acontecer! Observe a seguir.

O teor de benzeno e de seus bioindicadores no organismo do trabalhador podem estar associados à


exposição dessa substância, que também pode estar naturalmente presente na atmosfera pela liberação
em um incêndio florestal de ocorrência natural ou antropogênica.

Durante a prática do tabagismo, há a liberação de substâncias químicas, e o fumante ativo ou


passivo se expõe ao benzeno liberado pela fumaça do cigarro. Dessa forma, os hábitos do trabalhador,
bem como a região em que vive, podem influenciar direta e significativamente nos resultados analíticos
e clínicos, pela exposição de substâncias químicas presentes no ambiente de trabalho.

Caso uma pessoa more próximo a uma rodovia, por exemplo, inalará monóxido de carbono ao longo
de toda a noite de sono. No dia seguinte, os teores de carboxihemoglobinemia estarão associados à
exposição ambiental (referente ao meio ambiente), quando a pessoa dormiu inalando elevados teores de
monóxido de carbono presente no ar atmosférico, e a ocupacional (trabalha se expondo a essa mesma
substância química).

Para você ter dimensão de como é complexa a monitorização biológica ocupacional, alimentos
como amora, ameixa, morango e até groselha podem interferir no resultado dessa monitorização.
Vamos evoluir no raciocínio para que você tenha elementos bioquímicos para compreender por que
isso acontece.

Quando o organismo se expõe ao tolueno, essa substância é biotransformada em ácido benzoico.


Quando o ácido benzoico sofre reação de síntese com a glicina, forma-se o ácido hipúrico. Esse é um
dos motivos pelos quais o ácido hipúrico é o bioindicador de exposição ao tolueno. Entretanto, o ácido
benzoico está presente naturalmente nos alimentos expostos anteriormente, de forma que o morango,
por exemplo, possui ácido benzoico. Isso significa que o ácido benzoico presente no morango, amora,
ameixa ou também na forma de benzoato de sódio como conservante de alimentos é conjugado com
a glicina, formando o ácido hipúrico (veja a figura a seguir) pela mesma via metabólica que o ácido
benzoico proveniente do tolueno.
Ingestão de alimentos

O
CH3 O OH NH
O OH
HO
NH2
Biotransformação + O

Tolueno Ácido benzoico Glicina Ácido hipúrico

Figura 119 – Via metabólica da formação do ácido hipúrico, a partir do tolueno

237
Unidade II

Assim, como saber se o ácido hipúrico presente na urina do trabalhador da fábrica de tintas é
proveniente do tolueno ou do morango que o trabalhador comeu no dia anterior?

É muito difícil chegar a essa conclusão!

Ficou mais clara a complexidade quando se estuda a determinação da exposição de um organismo


a uma substância química?

Observação

Você deve conhecer e memorizar a relação entre bioindicador com seu


precursor e sua respectiva via metabólica.

Vamos a mais uma contextualização?

O bioindicador de exposição ao xileno é o ácido metil-hipúrico. Entretanto, diferentemente do


tolueno, outras substâncias químicas não interferem na via metabólica desse xenobiótico, de forma a
aumentar a quantidade de bioindicador pela exposição que não seja laboral. Observe a via metabólica
a seguir, associada ao xileno:
Ingestão de alimentos

O
CH3 O OH NH
O OH
Biotransformação HO
NH2
+ O
H3C H3C
Glicina H3C
Metaxileno Ácido metilbenzoico
Ácido metilhipúrico

Figura 120 – Esquema da formação do ácido metil-hipúrico a partir do meta-xileno

Quando o trabalhador se expõe ao xileno, não há uma segunda substância química presente na água
ou alimento que se ingira ou que esteja no ar que o trabalhador respira que poderá interferir na análise da
substância. Dessa forma, não há a necessidade de haver VR para o xileno e há apenas o IBMP (AMORIM, 2003).

5.1.3.1.3 Bioindicador de suscetibilidade

Vimos anteriormente que a monitorização do trabalhador tem como objetivo prevenir a intoxicação da
maioria dos trabalhadores. Mas por que mesmo a maioria dos trabalhadores, e não todos os trabalhadores?

Por causa da suscetibilidade de cada um deles. Para as mesmas condições de exposição, organismos
diferentes respondem diferentemente. E por que respondem diferentemente? A condição genética é
uma das possibilidades: cada qual tem a sua.

238
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Observação

A condição genética é apenas uma condição que pode fazer com que
diferentes pessoas respondam de forma distinta à mesma exposição.

Assim, os biomarcadores de suscetibilidade podem indicar que aquele organismo poderá expressar
uma resposta diferente dos demais, pela sua condição genética.

Observação

Esses bioindicadores podem refletir, além dos fatores genéticos, também


uma condição adquirida.

O trabalhador que apresente, por exemplo, alteração na GST pode ter maior risco de intoxicação
pela exposição aos compostos alifáticos halogenados e ao óxido de etileno, uma vez que pode haver
prejuízo da biotransformação de seus intermediários epóxidos. Os que apresentam alteração na
paroxonase podem ter aumentada a toxicidade dos organofosforados pela redução da atividade da
acetilcolinesterase, e a deficiência da glicose 6-P-desidrogenase reduz (G6PD) a resistência para o
estresse oxidativo de compostos nitroaromáticos.

5.1.4 Programa de controle médico de saúde ocupacional (PCMSO)

O médico do trabalho deve ficar atento aos valores da monitorização biológica e realizar a vigilância
da saúde. Os critérios empreendidos para a interpretação dos resultados dos exames médicos e
laboratoriais e o procedimento adotado perante os resultados dos exames devem estar expressos com
clareza no PCMSO.

Para deixar os conceitos aqui apresentados mais claros, serão apresentados exemplos de como
elaborar um PCMSO combinando com a vigilância à saúde e a monitorização biológica de exposição
(BUSCHINELLI, 2014).

A Norma Regulamentadora n. 9 do Ministério do Trabalho, de 1978, está associada ao Programa de


Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), que determina que, para que se preserve a integridade e saúde
dos trabalhadores, instituições e empregadores realizem o PPRA.

Por meio do reconhecimento e controle dos riscos ambientais, bem como de sua antecipação,
deve-se prevenir o aparecimento de doenças e preservar não apenas a saúde, mas também a integridade de
seus funcionários por meio do PPRA, que deve estar vinculado com o PCMSO, previsto na NR-7.

O modelo de análise utilizado para a medição e coleta de amostras deve levar em consideração
quanto tempo será utilizado para a realização da medição, verificar se o escopo da análise é avaliar o

239
Unidade II

perfil de exposição após a atividades realizadas pelos funcionários ou apenas avaliar a característica da
exposição durante a jornada e, também, levar em consideração qual é o volume de ar que o equipamento
analítico é capaz de coletar (BRASIL, 2018b).

5.1.5 Vantagens e desvantangens da monitorização biológica

A monitorização biológica apresenta vantagens e desvantagens em relação à ambiental e é


complementar a esta.

Uma característica fundamental da monitorização biológica é que, quando se identifica e quantifica


bioindicadores, a estimativa do risco de intoxicação é mais adequada, uma vez que há uma relação mais
direta entre a relação dose/efeito, ou seja, entre a quantidade do xenobiótico presente no organismo e
seus efeitos nocivos causados à saúde do trabalhador.

Outra situação envolvida é que a monitorização ambiental avalia exclusivamente a exposição pelo
trato respiratório. Entretanto, pode haver exposição ocupacional por outras vias, como pelo trato
gastrintestinal e pela via dérmica. Há situações em que o funcionário se expõe a um xenobiótico pelo
hábito de levar circunstancialmente a mão à boca em alguns momentos da jornada.

É o típico caso de exposição pelo chumbo, que na monitorização ambiental pode apresentar baixos
teores, mas quando se realiza a monitorização biológica, identifica-se sua extensa exposição. Até a
diferença de higiene pessoal entre os funcionários da empresa pode levar a resultados significativamente
distintos entre a monitorização ambiental e a biológica.

5.2 Toxicologia de medicamentos

5.2.1 Intoxicações por medicamentos

Discutiremos neste tópico as intoxicações induzidas pelo uso de medicamentos, suas causas,
grupos farmacológicos e manejo clínico, bem como os variados tratamentos empregados nas
intoxicações medicamentosas.

Algumas das informações iniciais você já conhece, especificamente aquelas relacionadas a alguns
termos e alguns conceitos introdutórios, mas ainda assim faremos uma breve e direta revisão sobre
algumas ocorrências.

Aspectos gerais das intoxicações medicamentosas

Segundo o legado deixado por Paracelsus (1493–1541), toda substância pode ser classificada
como um veneno, o que irá diferenciar essa classificação é a dose. Além desse clássico e importante
conceito deixado por aquele que é considerado o pai da farmacologia e da toxicologia, acrescemos
que as condições de exposição também demonstram papel importante nesse contexto, além da
dose administrada.

240
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Saiba mais

Para conhecer um pouco mais sobre as ideias de Paracelsus (ou


Paracelso), você pode consultar o artigo a seguir. Ainda hoje, suas ideias
são consideradas válidas, tendo sido muito importantes para a evolução da
toxicologia.

CORREA, A. D.; SIQUEIRA-BATISTA, R.; QUINTAS, L. E. Similia Similibus


Curentur: notação histórica da medicina homeopática. Revista da Associação
Médica Brasileira, São Paulo, v. 43, n. 4, p. 347-351, 1997. Disponivel em:
http://www.scielo.br/pdf/ramb/v43n4/2026.pdf. Acesso em: 1º mar. 2020.

Face a essa constatação, você concluiu que a capacidade que uma substância apresenta em causar
toxicidade é definida pelo perigo que cada toxicante apresenta de forma inata. Esse perigo é definido
como toxicidade intrínseca e pode ser aferido por valores da DL50, que representa a dose necessária
para matar metade de uma população. Além desse perigo, que é algo inerente ao agente tóxico, a
toxicidade relativa também estabelece uma importância preponderante na avaliação dos compostos.
Essa toxicidade é determinada pelo agente tóxico especificamente (tipo), pela dose que foi utilizada,
pela susceptibilidade individual e pelas condições de exposição (tempo e frequência, principalmente).

Para recordarmos o que estudamos, você deve estar lembrado de que a intoxicação é representada
por um conjunto de sinais e sintomas observáveis a partir da interação de um agente tóxico com um
sistema orgânico através de efeitos nocivos que ocorrem em decorrência de um desequilíbrio orgânico
e são manifestados através de sinais e sintomas.

Esse processo depende da interação do agente tóxico ou toxicante com a parte biológica através
de uma interação dele com um alvo biológico que execute mecanismos de reparo ainda que estes
não sejam suficientes para sanar as alterações na homeostasia. Normalmente esses processos, quando
exacerbados, originam doenças ou até mesmo situações fatais irreversíveis, demonstradas através de
sinais e sintomas dependentes de dose e tempo de exposição. Dividimos a intoxicação em quatro fases
distintas, a saber:

• Fase de exposição: está ligada ao contato do agente tóxico com a parte orgânica, representando
a sua disponibilidade química e condições de introdução no modelo biológico. Essa exposição
pode ocorrer por diferentes vias, sendo as mais comuns a oral (intoxicações por medicamentos,
venenos agrícolas etc.), a por via dérmica (contato com praguicidas na lavoura) e a pulmonar,
através do ar inspirado (névoas de praguicidas agrícolas).

• Fase toxicocinética: consiste no movimento do AT (agente tóxico) no organismo, compreendendo


processos de absorção, distribuição, armazenamento e eliminação (biotransformação e excreção).
Todos esses processos envolvem reações entre o agente tóxico e o organismo, tornando o AT
disponível biologicamente.
241
Unidade II

• Fase toxicodinâmica: corresponde aos efeitos propriamente ditos do AT pela interação com os
alvos biológicos. Isso porque na maioria das vezes não se trata de uma ação localizada do agente,
mas, sim, disseminada.

Observação

Na fase toxicodinâmica, os efeitos ocorrentes não dependem somente


do agente tóxico em si, mas também dos seus produtos de biotransformação
(metabolismo), que algumas vezes são mais tóxicos do que os próprios
agentes tóxicos. Exemplo: quando o paracetamol é utilizado em doses
acima das terapêuticas, ele passa por um processo de biotransformação
hepática e se transforma no metabólito N-acetil-p-benzoquinoneimina,
que é a substância hepatotóxica.

• Fase clínica: nesta fase tem-se as manifestações clínicas dos efeitos pela exposição a um agente
tóxico. É a aparição de sinais e sintomas que caracterizam o efeito tóxico propriamente dito e
evidenciam a presença do fenômeno da intoxicação.

Na toxicologia de medicamentos estudam-se as reações adversas provocadas por doses


terapêuticas dos medicamentos, bem como as intoxicações resultantes de doses excessivas, seja por
uso inadequado ou acidental ou ainda intencional. Entre os variados tipos de efeitos provocados pela
interação entre o medicamento e o organismo, temos:

• Efeito secundário: pode surgir em alguns pacientes pelo uso de medicamentos, ainda que em
doses terapêuticas. Exemplo: diarreias induzidas por uso de antimicrobianos pela destruição de
flora normal intestinal.

• Efeito colateral: são efeitos previsíveis, pois estão ligados ao próprio mecanismo de ação da
substância. Exemplo: sono em pacientes que utilizam alguns anti-histamínicos.

• Idiossincrasia: são efeitos que dependem da forma como cada indivíduo responde quando mantém
contato com uma substância. Essas diferentes formas de efeitos demonstráveis normalmente
são relacionadas a situações genéticas e/ou enzimáticas particularmente individualizadas e que
independem da dose administrada. Exemplo: deficiência da aldeído desidrogenase, enzima
que metaboliza o álcool, em orientais, predispondo esses indivíduos a uma maior embriaguez
quando se expõem a essa substância.

• Alergia: as alergias podem ser caracterizadas como reações idiossincrásicas, pois não
dependem da dose, mas, sim, de uma resposta individualizada. Elas passam a ser estudadas
pela imunotoxicologia. Exemplos: crises alérgicas que muitos pacientes demonstram quando se
expõem a antimicrobianos como penicilinas e sulfas.

242
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

• Tolerância: é a condição em que se necessita de doses maiores para se obterem os mesmos efeitos
iniciais do medicamento. Normalmente o aumento das doses não se faz suficiente para a resolução
da situação, exigindo-se uma substituição. Essa tolerância pode ocorrer por dessensibilização de
receptores ou ainda por indução enzimática. Exemplos: pacientes que utilizam morfina, um analgésico
opioide, e que no mesmo período do dia exigem doses maiores para o efeito analgésico.

Observação

Veja que o processo de tolerância poderá ocorrer em tratamentos


medicamentosos de rotina, e não só ela está ligada ao contexto toxicológico.

• Dependência: é ocorrente quando o medicamento já assume uma postura de uso contínuo


pelos benefícios que produz e pelas sensações prazerosas que possa causar. Exemplo: a agitação
provocada pelo uso de anfetaminas (anorexígenos), que são estimulantes do SNC (sistema nervoso
central) e ativam o SNA (sistema nervoso autônomo) simpático.

• Interações: resultam da utilização simultânea de dois ou mais medicamentos, podendo haver


redução dos efeitos ou, ainda, uma potenciação deles, levando a um quadro variável de intoxicação
ou ineficácia de um dos medicamentos empregados.

Agora que fizemos uma revisão de conceitos previamente estudados e sedimentados, falaremos
sobre intoxicações com medicamentos. Faremos uma introdução e depois conversaremos sobre alguns
medicamentos que estão relacionados a situações de intoxicações.

5.2.1.1 Introdução

Você sabe muito bem que os efeitos dos medicamentos já são conhecidos desde os tempos
remotos, quando nossos antepassados já buscavam a cura de muitas doenças através do uso de
substâncias naturais.

Observação

Os cães, quando se sentem com desconforto gástrico, ingerem grama


para sanar esse problema. Ela atua como irritante do estômago, fazendo-o
vomitar a comida “indesejada” ou o “veneno” ingerido.

Segundo a Anvisa (2020b), medicamento é definido como um produto farmacêutico, tecnicamente


obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico. É uma
forma farmacêutica terminada que contém o fármaco, geralmente em associação com adjuvantes
farmacotécnicos, ou seja, com substâncias que irão se somar aos efeitos do fármaco ali presente.

Ainda que esses medicamentos sejam utilizáveis pretendendo efeitos benéficos, quando mal
empregados e indevidamente utilizados, causam efeitos que podem até chegar à fatalidade. A frequência
de exposição a uma substância medicamentosa está relacionada à sua disponibilidade no mercado, à
243
Unidade II

marca comercial e ao acesso ao produto, às atitudes do médico que os prescreveu, ao farmacêutico que
o dispensa, assim como a quem regulamenta a sua produção, distribuição e utilização.

Segundo Oga, Camargo e Batistuzzo (2003), o padrão de consumo de medicamentos no Brasil é


caracterizado pela elevação do uso como substâncias empregadas somente para curar sintomas ou
ainda por automedicação, além, é claro, do trabalho brilhante feito pelo marketing das indústrias
farmacêuticas, que induz ao uso de muitas substâncias, mesmo aquelas prescritas por um médico. Tal
situação contribui acentuadamente com reações adversas causadas por medicamentos.

No Brasil, embora tenhamos normas para o uso racional de medicamentos, não há um sistema de
registro das ocorrências tóxicas pela exposição a medicamentos devidamente implantado, operante e
atualizado. Existem trabalhos que são feitos de forma isolada e regionalizada que permitem conclusões
que seguem essas regiões e não permitem uma leitura global e dinâmica das ocorrências de intoxicação
no país de forma confiável e oficial.

O Sistema Nacional de Informação Tóxico-Farmacológica (Sinitox/MS/Fiocruz) divulga estatísticas


anuais referentes a casos de intoxicação registrados pelos Centros de Assistência e Informação
Toxicológica (Ceatox), a partir de informações fornecidas espontaneamente, sem padronização de
conceitos, formas de registro, agentes tóxicos e outros critérios. Quanto às reações adversas, há algumas
experiências locais de farmacovigilância (CASTRO, 2000).

Os registros dos Centros de Assistência Toxicológica são sentinelas, captadores de problemas sociais,
alguns passíveis de atuação da vigilância sanitária. Se o medicamento está sendo utilizado, além de sua
finalidade terapêutica, de forma abusiva ou indevida, a sociedade e o sistema de saúde devem enxergar
esses casos e encontrar formas adequadas para enfrentá-los (GANDOLFI; ANDRADE, 2006).

Como já vimos, o Sinitox, criado em 1980 pelo Ministério da Saúde, com sede na Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), tem como principal atividade coordenar o processo de coleta, compilação, análise e
divulgação dos casos de intoxicação humana registrados no país pela Rede Nacional de Centros de
Controle de Intoxicações, comumente denominada Rede Sinitox (BORTOLETTO; BOCHNER, 1999).

Esses mesmos autores, em um trabalho realizado sobre o impacto dos medicamentos nas intoxicações
humanas no Brasil, concluíram que o medicamento é o principal agente tóxico que causa intoxicação
em seres humanos no Brasil, ocupando o primeiro lugar nas estatísticas do Sinitox desde 1994. Os
benzodiazepínicos, antigripais, antidepressivos e anti-inflamatórios são as classes de medicamentos que
mais causam intoxicações em nosso país (44% foram classificadas como tentativas de suicídio e 40%
como acidentes, sendo que as crianças menores de cinco anos (33%) e adultos de 20 a 29 anos (19%)
constituíram as faixas etárias mais acometidas pelas intoxicações por medicamentos.

Veja na tabela a seguir os principais agentes tóxicos em um levantamento mais atualizado, o que
nos mostra a mesma conclusão sobre os medicamentos, ou seja, eles representam o maior número de
casos de intoxicações agora envolvendo não somente o homem, mas também animais e solicitações
de informações que os centros recebem sobre eles.

244
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Tabela 7 – Casos totais de intoxicações humanas, de animais e


de solicitações de informação de 10 dos principais agentes tóxicos

Agente causador Número total de intoxicações Percentual (%)


Medicamentos 21402 26,79
Animais peçonhentos/escorpiões 11943 14,95
Outros animais peçonhentos/venenosos 6439 8,06
Animais não peçonhentos 5402 6,76
Animais peçonhentos/aranhas 6220 7,79
Domissanitários 4761 5,96
Animais peçonhentos/serpentes 3290 4,12
Produtos químicos industriais 2992 3,39
Drogas de abuso 2777 3,48
Agrotóxicos/Uso agrícola 2706 3,39

Adaptada de: Sinitox (s.d.a).

Conforme informado no site Milenar (USO..., 2018), para o mesmo período, um levantamento
conduzido pela Unicamp no Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) concluiu que
o uso de medicamentos responde pela maioria dos casos de intoxicação (33,62% das ocorrências),
mais que o dobro, por exemplo, dos atendimentos por picadas de animais peçonhentos e consumo de
produtos químicos (veja a figura a seguir).

Outros
23,86%
Medicamentos
Animais não 33,62%
peçonhentos/
não venenosos
6,09%
Animais
Produtos peçonhentos/
Produtos químicos domissanitários venenosos
residenciais ou 14,08% 16,22%
industriais
6,13%

Figura 121 – Causas principais de intoxicações

5.2.1.2 Grupos farmacológicos envolvidos nas intoxicações medicamentosas

Embora as variadas pesquisas executadas acerca do uso de medicamentos utilizados e as classes


farmacológicas envolvidas nos processos tóxicos tenham sido divulgadas, não há uma pesquisa
que seja incisiva e atualizada, e ainda que sejam efetuadas, elas acabam por refletir dados que são
regionais, o que pode não traduzir a real ocorrência de forma generalizada.
245
Unidade II

Em tempo, alguns medicamentos e classes se destacam na incidência de intoxicações com


medicamento, como os neuropsicofármacos (clonazepam, carbamazepina, amitriptilina), os analgésicos
e Aines (ácido acetilsalicÌlico, diclofenaco, dipirona, paracetamol), os antialérgicos e antigripais, os
broncodilatadores (salbutamol, fenoterol) e os cardiovasculares (captopril, propranolol).

Ainda que as pesquisas e trabalhos sobre intoxicação por medicamentos sejam regionalizadas
e até específicas em detrimento a isso, os psicofármacos como os benzodiazepínicos (diazepam,
clonazepam, bromazepam), que são substâncias largamente usadas em todo o mundo e no Brasil,
assumem uma posição bem considerável nos casos de intoxicação induzidos por medicamentos,
compreendendo em quase todos os estudos metade das ocorrências. Além dessa, outra metade é
dirigida ao tratamento de problemas diversos músculo-esqueléticos (anti-inflamatórios e analgésicos).
Essas substâncias, ainda que prescritas pelo médico, quando de uma forma não racional, passam a
oferecer uma presença da substância em ambiente doméstico maior, consequentemente aumentando
a incidência de intoxicação por eles.

Estudaremos nos tópicos a seguir alguns dos medicamentos envolvidos em ocorrências de


intoxicações. Você poderá notar que as classes desses fármacos são muito distintas; por isso, tentamos
agrupá-las por sistema, tentando, assim, facilitar a sua compreensão, o que auxiliará muito no processo
de aprendizagem.

5.2.1.2.1 Psicofármacos

Veremos neste tópico os medicamentos que atuam sobre o SNC, ou seja, os fármacos que atuam
sobre a “psique”.

Antidepressivos ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina)

Esses medicamentos são bem empregados no tratamento da depressão, de outros transtornos


psiquiátricos, tais como síndrome do pânico, fobias e transtorno obsessivo-compulsivo, e de
transtornos alimentares, incluindo anorexia, bulimia e obesidade. Veja que as aplicações clínicas
desses medicamentos apresentam uma abrangência vasta de situações, inclusive para outras não
diretamente relacionadas a doenças psiquiátricas.

Observação

Saiba que muitos fármacos que atuam sobre o SNC podem ser
empregados para torcicolos e crises de enxaqueca.

Estes antidepressivos inibem a recaptação de serotonina (um neurotransmissor que melhora o humor)
no SNC, sistema nervoso periférico e plaquetas, estimulando os receptores serotoninérgicos. Quando
comparados aos antidepressivos tricíclicos, são menos efetivos em bloquear a recaptação de noradrenalina e
antagonizar receptores muscarínicos, histaminérgicos e adrenérgicos. Podem causar depressão do SNC
e síndrome serotoninérgica quando usados em conjunto ou com outras substâncias que aumentam o
246
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

nível de serotonina, como outros antidepressivos (inibidores da monoaminoxidase – iMAO, tricíclicos,


antidepressivos duais e atípicos), anfetaminas, sibutramina, ecstasy, cocaína, crack, LSD e opioides.

Geralmente essas substâncias apresentam alto índice terapêutico. Doses acima de 10 vezes a dose
terapêutica são mais toleradas se comparadas aos antidepressivos tricíclicos. Porém a associação com
outros medicamentos ou drogas de abuso é frequente e aumenta a probabilidade de intoxicação grave.

Lembrete

Você já estudou e deve se recordar de que substâncias que possuem


alto índice terapêutico são relativamente mais seguras que aquelas que
possuem um índice baixo.

Acentuemos essa recordação. Isso ocorre porque a distância entre a dose terapêutica e a tóxica é
longa, o que não quer dizer que essas substâncias não possam ofertar um risco.
F
(a) (b) (c)
CF3 CI
O O NH
N HN CI
O
H O
F
NH2
(d) (e)
N O
F3C N

O
O
N

Figura 122 – Estrutura química dos principais ISRS: (a) fluoxetina,


(b) paroxetina, (c) sertralina, (d) fluvoxamina, (e) citalopram

Nível terapêutico
de sinalização

ATC ou ISRS
Legenda: ATC = antidepressivos tricíclicos

Figura 123 – Mecanismo de ação dos ISRS: a) antes do tratamento;


b) com tratamento agudo dos fármacos; c) com tratamento crônico com os fármacos

247
Unidade II

Observação

Veja que esse mecanismo descrito na figura anterior é o ocorrente em


situações toxicológicas. Observe que ocorre um aumento considerável nos
níveis de serotonina na fenda sináptica.

A seguir algumas informações farmacocinéticas acerca dessa categoria de fármacos.

São substâncias bem absorvidas e possuem alta biodisponibilidade, e o pico de concentração


plasmática ocorre em média em horas. Possuem um alto Vd (volume de distribuição), e a ligação
a proteína plasmática pode variar de 56 a 99% e meia vida biológica média de 24 horas (exceto a
fluoxetina, que possui uma T½ vida biológica que pode variar de quatro a seis dias). A biotransformação
é hepática e dois dos fármacos (fluoxetina e paroxetina) são inibidores da enzima CYP2D6, implicando
alterações nos efeitos de muitos outros fármacos.

Observação

Você já conhece a importância do complexo citocromo P450 na


biotransformação de fármacos e as implicações que uma indução ou
inibição enzimáticas desse sistema podem oferecer a outros fármacos.

Sobre as manifestações clínicas, as intoxicações podem ser leves a moderadas, casos em que os
pacientes apresentam ataxia (falta de coordenação em movimentos) e letargia (profunda e prolongada
inconsciência), ou graves, em que os pacientes podem apresentar bradicardia, hipotensão, depressão
do SNC e coma. Há também o risco de síndrome serotoninérgica, quando a quantidade ingerida é alta
ou ocorre ingestão em associação com outras substâncias que aumentam o nível de serotonina, como
outros antidepressivos (iMAO) e drogas de abuso.

Esta síndrome serotoninérgica caracteriza-se por uma tríade:

• alterações do estado mental (agitação, ansiedade e confusão mental);

• instabilidade autonômica (taquicardia, hipertensão, sudorese, hipertermia e midríase);

• hiperatividade neuromuscular, rigidez e tremores.

O que poderia então se fazer para tratamento de intoxicações por essa categoria? Para adoção de
medidas de tratamento das intoxicações, a maioria dos casos de ingestão de ISRS não desenvolvem
sintomas graves, necessitando apenas de medidas de suporte básico de vida, como desobstrução de vias
aéreas, administração de oxigênio, monitorização de sinais vitais, colheita de amostras biológicas para

248
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

posterior envio ao contexto laboratorial ou ainda descontaminação através de lavagem gástrica com
uso de carvão ativado (1 g/kg por VO – via oral).

Observação

Ainda não estudamos de forma detalhada os antídotos, mas o carvão


ativado representa um importante agente adsorvente que pode reduzir a
absorção de várias substâncias.

Veja que, para essa categoria de agente, não há antídoto específico e não se recomendam medidas
para eliminação.

Antidepressivos tricíclicos

Esses fármacos são utilizados no tratamento da depressão maior, insônia e síndromes


dolorosas crônicas.

Os antidepressivos tricíclicos inibem a recaptação de neurotransmissores, principalmente


noradrenalina (NA), serotonina (5-HT) e, em menor proporção, dopamina (DA). As aminas terciárias são
inibidores mais potentes da recaptação de serotonina (clomipramina), enquanto as secundárias atuam
principalmente sobre a recaptação de noradrenalina (desipramina, nortriptilina).

Veja e compare que esses fármacos apresentam um mecanismo muito parecido com os anteriores
discutidos aqui, porém, com um efeito maior sobre outros neurotransmissores como a NA (em maior
grau) e a DA (em menor grau).

São estruturalmente similares às fenotiazinas e têm ações em diversos receptores no organismo,


gerando antagonismo colinérgico, bloqueio alfa adrenérgico, inibição da recaptação da noradrenalina,
serotonina e dopamina, bloqueio de canais de sódio e potássio, e depressão respiratória e do sistema
nervoso central (SNC).

Saiba mais

Leia mais sobre o assunto na página a seguir:

RODRIGUES, S. A. Clorpromazina, C17H19N2SCl. PUBLISBQ – Química


Nova Interativa, [s.d.]. Disponível em: http://qnint.sbq.org.br/novo/index.
php?hash=molecula.264. Acesso em: 28 nov. 2020.

249
Unidade II

N
H

Figura 124 – Estrutura molecular da fenotiazina

CH
Fármaco R1 R2
CH2 Amitriptilina - CH3 - CH3
Nortriptilina - CH3 -H
CH2

R1 R2

Figura 125 – Estrutura química dos antidepressivos tricíclicos amitriptilina e nortriptilina

Note a semelhança entre os ATC e as fenotiazinas.

Na intoxicação, os efeitos mais importantes são no SNC (sedação e coma por atividade anticolinérgica
e convulsões por provável inibição da recaptação de catecolaminas cerebrais) e cardiovasculares
(taquicardia e hipertensão por ação anticolinérgica e inibição da recaptação de catecolaminas,
hipotensão pelo bloqueio alfa-adrenérgico, depressão miocárdica e distúrbios da condução cardíaca por
bloqueio dos canais de sódio).

Da mesma forma que fizemos na categoria anterior, seguem algumas informações rápidas sobre a
farmacocinética desses compostos.

São absorvidos, e o início dos efeitos ocorre após uma hora da exposição, com pico de concentração
plasmática entre duas e oito horas. Possuem um Vd de 7 a 78 l/kg e se ligam em proteínas plasmáticas
> 90% com T½ biológica variando entre sete e 58 horas. A biotransformação é hepática e a eliminação
ocorre pela via renal (70%) e pela via fecal (30%).

Na intoxicação aguda leve podem ocorrer sonolência, sedação, taquicardia, alucinações, midríase e
outros efeitos anticolinérgicos, e em casos de intoxicação grave, convulsões, coma, aumento do intervalo
QRS no eletrocardiograma (ECG), arritmias ventriculares, insuficiência respiratória e hipotensão. Podem
ocorrer arritmias graves levando à parada cardíaca e óbito, mesmo em pacientes jovens.

250
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Para um tratamento na intoxicação, realizam-se medidas de suporte (já citadas anteriormente)


acrescidas de verificação e correção de distúrbios hidreletrolíticos relacionados a Na+, K+ e Ca+2 devido
ao aumento do risco de arritmias, em que o paciente dever ser mantido em observação por 72 horas ou
enquanto ainda apresentar alterações no ECG. Não há antídoto para tratamento.

Benzodiazepínicos

São medicamentos utilizados em transtornos ansiosos, como anticonvulsivantes, na síndrome de


abstinência alcoólica, nos estados hiperadrenérgicos, conforme ocorre nas intoxicações por drogas
de abuso, como relaxantes musculares e como agentes sedativos em procedimentos.

Todos os benzodiazepínicos em uso clínico são capazes de promover a ligação de um importante


neurotransmissor inibitório, o ácido γ-aminobutírico (GABA), aos receptores de GABA do subtipo GABAA,
que existem como canais de cloreto formados por múltiplas subunidades e controlados por ligando,
intensificando, desse modo, as correntes iônicas induzidas pelo GABA através desses canais (BRUNTON;
CHABNER; KNOLLMANN, 2012).

Vamos falar um pouco sobre a farmacocinética? Os benzodiazepínicos são rapidamente absorvidos


após a administração por via oral. Pela via parenteral, a distribuição no organismo se efetua de forma
semelhante à observada com fármacos muito lipossolúveis. A penetração no tecido cerebral é muito
rápida. A administração intramuscular não é sugerida para a maioria dos benzodiazepínicos, excetuando
os hidrossolúveis, uma vez que a absorção por essa via é muito irregular. A biotransformação ocorre pelo
CYP, o que implica às vezes interações medicamentosas significativas, e a eliminação é renal.
R1
R2
N C
2
1
A B 3
5 4 C R3
R7 C N
R4a
R2'
C

Figura 126 – Estrutura geral dos benzodiazepínicos

Nas intoxicações leves e moderadas observam-se sonolência, sedação e fala arrastada.

Você sabia que essas substâncias são amplamente utilizadas como indutoras de anestesia em
cirurgias? Pois bem, elas são muito empregadas para esse fim, e até o momento no qual o paciente fica
inconsciente, ele apresenta essa fala pastosa e arrastada.

251
Unidade II

Nas intoxicações graves ocorrem coma com depressão respiratória, hipotensão e hipotermia,
principalmente com o uso endovenoso ou em associação com outros depressores do SNC. Depressão
respiratória pode ocorrer em crianças, mesmo com doses terapêuticas.

A interação entre um benzodiazepínico e álcool pode ser fatal, pela depressão do SNC. Isso ocorre em
detrimento ao aumento do GABA, deprimindo excessivamente o SNC e incorrendo em óbito, dependendo
das quantidades associadas das substâncias.

Nas intoxicações por benzodiazepínicos, existe um antídoto para tratamento, chamado flumazenil
(Lanexat®). O flumazenil liga-se com alta afinidade a locais específicos sobre o receptor GABA-A, onde
antagoniza competitivamente a ligação e os efeitos alostéricos dos benzodiazepínicos. Ele é raramente
utilizado, pois as intoxicações isoladas por benzodiazepínicos geralmente não representam risco de vida.
Portanto, o seu uso é reservado para situações envolvendo sedações iatrogênicas ou intoxicações graves
com depressão respiratória.

Esse flumazenil é contraindicado nas ingestões concomitantes de substâncias que diminuem o limiar
para convulsão, como os antidepressivos tricíclicos, e em usuários crônicos de benzodiazepínicos, que
podem desenvolver síndrome de abstinência, caracterizada por tremores, ansiedade, disforia e, em casos
graves, psicose e convulsões. Dessa forma, raramente indica-se o uso de flumazenil em usuários crônicos
de benzodiazepínicos.

5.2.1.2.2 Anti-inflamatórios: Aines (anti-inflamatórios não esteroidais)

A aspirina, considerada o protótipo dos Aines, foi há até pouco tempo um dos fármacos mais
utilizados sem prescrição no tratamento da inflamação. Atualmente, outros Aines com ação terapêutica
e segurança superior vêm substituindo o papel da aspirina.

À semelhança de outros grupos farmacológicos, os Aines são divididos em várias classes químicas,
denominados seletivo e não seletivo para COX. Em geral, os Aines são representados por ácidos fracos
(exceto a nabumetona) e, com exceção da aspirina, são inibidores reversíveis da COX, sendo que a
duração de ação inibitória depende de suas propriedades farmacocinéticas. Nesse sentido, os Aines
podem ser divididos em fármacos de curta (< 6 h) e longa duração (> 10 h).

Essa família imensa de fármacos apresenta uma correlação muito grande com várias situações
de intoxicação envolvendo adultos e crianças, pois não são fármacos submetidos a controle especial
(exceto com os Aines seletivos), o que passa a contribuir enormemente com casos de episódios tóxicos.

Agora que conhecemos um pouco sobre a importância clínica desses medicamentos, iremos conversar
um pouco sobre as questões toxicológicas de uma forma geral.

A seguir descrevemos alguns efeitos tóxicos desse grupo:

• Gastrintestinais: esses efeitos são considerados os mais comuns nas terapias com Aines, embora
não seja ocorrente em todos os pacientes de forma absoluta. Esses efeitos decorrem pela inibição
252
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

das PGs gástricas que têm uma função gastroprotetora. Além disso, como a maioria dos elementos
são ácido fracos, passam a oferecer um efeito lesivo direto na mucosa gástrica. Porém, esses
efeitos podem e são observados mesmo quando se emprega um Aines por via parenteral. Isso
ocorrente em menor escala, porém, presente em algumas situações. Existem relatos de incidência
de 15 a 30% de gastrites úlceras gástricas em usuários regulares, assumindo uma postura ainda
superior em pacientes infectados por Helicobacter pylori, naqueles que consomem álcool, ou
ainda no uso de glicocorticoides. Todos os inibidores seletivos de COX-2 são menos propensos a
oferecerem riscos com relação a lesões gástricas (HILAL-DANDAN; BRUNTON, 2015).

• Cardiovascular: os inibidores seletivos de COX-2 foram desenvolvidos para serem mais seguros
com relação a danos gástricos induzidos por Aines, porém, experimentos clínicos induzidos com
celecoxiba, valdecoxiba (suspenso) e rofecoxiba (suspenso) relevam uma incidência de aumento
na ocorrência de infarto agudo do miocárdio, acidente vascular encefálico e trombose.

• Eventos adversos na pressão arterial, renal e renovascular: associam-se os Aines a eventos


adversos renais e renovasculares, o que passa a ter maiores evidências em pacientes com cirrose
hepática, doença renal crônica e hipovolemia. Os Aines estão associados à perda da inibição
induzida por prostaglandinas na reabsorção de Cl- e na ação do hormônio antidiurético,
ocasionando retenção de sal e água. Estudos epidemiológicos sugerem que as complicações
hipertensivas ocorrem mais comumente em pacientes tratados com coxibes que nos tratados
com Aines não seletivos.

Observação

O ácido acetilsalicílico (AAS) é protocolo no tratamento das síndromes


coronarianas agudas, compondo o sistema Monab-C, com papel
anti-agregante plaquetário. Veja que essa aplicação é terapêutica e difere
completamente das atividades dos coxibes, anteriormente citados.

• Nefropatia por analgésicos: representa um estado de insuficiência renal lentamente progressiva,


com redução na capacidade de concentração no túbulo renal. Tem-se como fatores de risco a
associação de Aines de forma crônica em altas doses e nas situações de infecções do trato urinário.

Observação

Antes da utilização de um Aines a um paciente com problemas renais,


deve-se certificar que os benefícios sejam realmente superiores aos riscos.

• Hipersensibilidade: os sintomas ligados à hipersensibilidade com Aines variam desde uma rinite
até um edema de laringe. A intolerância ao ácido acetilsalicílico representa uma contraindicação
ao tratamento com qualquer Aine, devido à sensibilidade cruzada. O tratamento para tal ocorrência

253
Unidade II

segue o protocolo convencional com a administração de adrenalina com suporte de função dos
órgãos vitais.

• Reações cutâneas: após os antimicrobianos, os Aines são as principais causas de reações cutâneas
a drogas. Essas reações podem incluir urticária, angioedema, eritema multiforme, eritema nodoso,
erupções máculo-papulares, reações de fotossensibilidade, eritema pigmentar fixo e vasculite
leucocitoclástica (VARALDA; MOTTA, 2009).

• Toxicidade renal: a toxicidade renal pelo uso de Aines tem sido muito estudada nos últimos
anos. O espectro de nefrotoxicidade inclui necrose tubular aguda, nefrite intersticial aguda,
glomerulonefrite membranosa, síndrome nefrótica por doença de lesão mínima, necrose de
papila renal, insuficiência renal crônica, retenção hidrossalina, hipertensão arterial sistêmica,
hipercalemia e hipoaldosteronismo hiperreninêmico (MELGAÇO et al., 2010).

Os anti-inflamatórios seletivos afetam menos os indivíduos com função renal normal e afetam de
modo semelhante os pacientes com alterações renais prévias; nestes, a gravidade do quadro é diretamente
proporcional ao tempo de terapia. Estudos clínicos recentes mostram que o papel funcional da COX-2 nos
rins está principalmente associado à manutenção da homeostase hidroeletrolítica, enquanto a COX-1
parece estar mais relacionada à manutenção da filtração glomerular normal (MICHELIN et al., 2006).

Melgaço et al. (2010) retrataram em uma revisão de literatura o uso de Aines com danos renais. O
quadro a seguir resume alguns desses efeitos:

Quadro 9 – Resumo dos efeitos dos Aines na função renal

Síndrome renal Mecanismos Fatores de risco Prevenção/Tratamento


Retenção de sódio e Terapia com Aines (efeito
Redução PGs Interromper o uso do Aine
edema adverso mais comum)
Redução PGs, redução na Doença renal, IC, diabetes,
secreção de potássio para Interromper o uso do Aine
mieloma múltiplo e terapia
Hipercalemia túbulo distal e redução – evitar indometacina em
com diurético poupador
da aldosterona/renina/ paciente de alto risco
de K
angiotensina
Doença hepática, doença Interromper o uso do Aine –
Insuficiência renal Redução PGs e queda do renal, IC, desidratação e evitar o uso em paciente de
aguda balanço hemodinâmico idosos alto risco
Síndrome nefrótica Redução do recrutamento e
com nefrite Fenoprofeno Interromper o uso do Aine
ativação dos linfocitos
intersticial
Abuso fenacetina, Interromper o uso do Aine
Necrose pupilar Toxicidade direta combinação de aspirina e Evitar uso crônico de
acetaminofeno analgésico
Legenda: IC: insuficiência cardíaca; PGs: prostaglandinas; K: potássio

Adaptado de: Melgaço et al. (2010).

254
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Como tanto a COX-1 como a COX-2 estão presentes nos rins, todas as classes de Aines podem causar,
em maior ou menor grau, lesão nesse órgão. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que a toxicidade renal
estava associada apenas aos inibidores da COX-1, devido à maior quantidade dessa enzima nos rins.
Entretanto, recentemente, foram descritos casos de toxicidade renal associada aos inibidores seletivos
da COX-2, como o celecoxibe (BRICKS; DA SILVA, 2005).

O principal mecanismo de ação dos Aines é a inibição das ciclooxigenases, impedindo, assim, a
síntese de prostaglandinas. Inibindo as COXs, os Aines provocam uma série de efeitos colaterais,
abaixo detalhados:

• Impedem o efeito vasodilatador das prostaglandinas, causando vasoconstricção renal e redução


na taxa de filtração glomerular, podendo evoluir para necrose tubular aguda.

• Impedem o efeito inibitório das prostaglandinas sobre os linfócitos T, permitindo a ativação dessas
células, com consequente liberação de citocinas pró-inflamatórias.

• Deslocam o ácido araquidônico para a via das lipoxigenases, aumentando a síntese de leucotrienos
pró-inflamatórios.

• A lipoxigenase induz um aumento da permeabilidade capilar, podendo contribuir para a proteinúria,


por alterar a barreira de filtração glomerular.

Os anti-inflamatórios geralmente não constituem um risco significativo aos pacientes com função
renal normal. Contudo, em situações em que a perfusão renal encontra-se diminuída (volume efetivo
circulante reduzido), o que é relativamente comum em pacientes críticos, a inibição do potencial
vasodilatador das prostaglandinas, com o uso do Aines, pode comprometer o fluxo sanguíneo renal e
provocar uma lesão isquêmica no órgão (MELGAÇO et al., 2010).

A nefrotoxicidade dos anti-inflamatórios não esteroidais é relatada em diversos estudos e está


relacionada principalmente à sua ação inibitória na síntese de prostaglandinas. Essa toxicidade ocorre
tanto com os inibidores seletivos quanto com os não seletivos das cicloxigenases, ao contrário do que
se pensava antigamente, podendo ocasionar desde distúrbios hidroeletrolíticos até insuficiência renal
crônica (MELGAÇO et al., 2010).

A prescrição dessa classe de drogas deve ser criteriosa, especialmente para os pacientes considerados
de alto risco para desenvolver lesão renal, como idosos, hipertensos, diabéticos, hipovolêmicos ou aqueles
que fazem uso de diuréticos (MELGAÇO et al., 2010).

Como já discutimos, trata-se de uma classe muito importante na terapêutica, mas que merece uma
atenção especial tanto dos profissionais prescritores como dos farmacêuticos que estão diretamente
ligados ao trabalho nobre da atenção farmacêutica na dispensação desses fármacos, prestando à
população um papel informativo crucial.

255
Unidade II

Teremos agora a oportunidade de falar um pouco melhor e de uma forma mais aprofundada sobre
duas categorias de fármacos pertencentes ao grupo dos Aines, mas que não são empregados como
anti-inflamatórios, mas, sim, como analgésicos e/ou antipiréticos e que estão rotineiramente envolvidos
em ocorrências de intoxicações.

Apesar do grande número de analgésicos aos quais a população tem acesso, apenas dois (salicilatos e
paracetamol) são responsáveis por 11,6% das intoxicações por esse grupo de medicamentos: os salicilatos,
por 8,1% (46 casos), e o paracetamol, por 3,5% (20 casos). Além disso, em casos de intoxicações por esses
analgésicos, o laboratório tem grande importância no diagnóstico e tratamento da intoxicação e no
prognóstico do paciente intoxicado. Por isso, quando se fala em intoxicações por analgésicos, esses são os
mais estudados.

Ácido acetilsalicílico (AAS)

As intoxicações por esses medicamentos têm prevalência em centros urbanos e ocorrem


acidentalmente em crianças e propositalmente em adultos, nas tentativas de suicídio ou pelo uso
crônico abusivo.

Acompanhe o raciocínio, pois essa substância apresenta mecanismos de ação complexos que
envolvem o centro respiratório e o metabolismo.

• Aspectos toxicológicos da intoxicação por salicilatos

São usados amplamente, sistemicamente, como analgésicos (no tratamento de vários tipos de dor,
como enxaqueca, artrite, dismenorreia, nevralgias e mialgias), antipiréticos e anti-inflamatórios, estando
presentes em diversas formulações. Estão presentes também em preparações para uso local, sendo um
exemplo o ácido salicílico, usado para remoção de calos e verrugas e no tratamento de epidermofitoses,
e o salicilato de metila, usado em formulações para dores articulares e musculares.

As intoxicações por salicilatos atingem populações de todas as idades, sendo geralmente acidentais
em crianças e propositais em adultos, nas tentativas de suicídio. Doses de 150 a 300 mg/kg de peso
produzem manifestações tóxicas, e com doses de mais de 300 mg/kg a intoxicação pode ser fatal.

• Toxicocinética

Os salicilatos são substâncias ácidas, bem absorvidas no pH estomacal, que atingem o pico plasmático
em seis horas.

Em doses terapêuticas, tem taxa de ligação a proteínas plasmáticas, em torno de 90%, mas em
doses tóxicas ocorre uma diminuição, podendo o teor de ligação decair para 50%, por saturação das
proteínas plasmáticas.

Os salicilatos, em doses terapêuticas, têm biotransformação que obedece a cinética de primeira


ordem, mas em doses tóxicas, a cinética passa para ordem zero, que é saturável, levando a um aumento
dos níveis de salicilato.
256
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

O ácido acetilsalicílico, por hidrólise, origina o ácido salicílico, que se conjuga principalmente com
a glicina e é excretado na forma de ácido salicilúrico. Em doses tóxicas, ocorre depleção de glicina,
levando a um acúmulo de ácido salicílico.

Dessa forma, todas as alterações de cinética decorrentes de doses tóxicas farão com que ocorra um
aumento da biodisponibilidade e da meia vida biológica, que em doses terapêuticas é de duas a quatro
horas, e em doses tóxicas aumenta para 25 a 30 horas (GOLDFRANK et al., 1994).

• Mecanismo de ação tóxica: toxicodinâmica

As manifestações tóxicas decorrentes da intoxicação aguda por salicilatos ocorrem inicialmente


em função da estimulação do SNC, em especial o centro respiratório, que acontece também em doses
terapêuticas. Esse estímulo ocorre de forma direta, por ação no centro respiratório no bulbo, e de forma
indireta, pois os salicilatos promovem um aumento do metabolismo (por desacoplamento da fosforilação
oxidativa), ocasionando um aumento no consumo de oxigênio e da produção de CO2. Com o aumento
de CO2 também ocorrerá um estímulo respiratório, o qual ocasiona uma maior excreção de CO2, levando
à uma diminuição na pCO2.

H2O + CO2 H2CO3 H+ + HCO3-

A diminuição da pCO2 provocará uma diminuição de ácido carbônico (H2CO3), com consequente
diminuição de H+, ocasionando uma elevação no pH sanguíneo (alcalose respiratória).

Para compensar a alcalose, ocorre aumento da excreção de bicarbonato (HCO3-), acompanhada


de um aumento na excreção de Na+, com consequente excreção de H2O, provocando desidratação. O
aumento do metabolismo leva a uma sudorese, que agrava a desidratação.

Em altas doses, numa segunda fase da intoxicação, os salicilatos produzem efeito depressor
vasomotor, levando a uma depressão respiratória.

Apesar da alcalose (que deixa o salicilato na forma iônica, mais hidrossolúvel), como a dose é alta
e os sistemas de biotransformação estão saturados, a quantidade de salicilato que atravessa a barreira
hematoencefálica é alta o suficiente para produzir depressão respiratória, a qual levará a um aumento
de CO2, com diminuição do pH sanguíneo (acidose respiratória).

Já que os salicilatos atuam como desacopladores da fosforilação oxidativa, bloqueando o ciclo


de Krebs, haverá uma diminuição na produção de ATP pela via aeróbica. Para compensar, haverá um
aumento da glicólise (via anaeróbica), que elevará os níveis de ácido lático e pirúvico, levando a uma
acidose metabólica. O organismo também usa as reservas de glicose muscular e de glicogênio hepático,
podendo ocorrer hipoglicemia. Se as reservas de glicose e glicogênio se esgotarem, os lipídios serão
utilizados para obtenção de energia, podendo ocorrer uma cetoacidose metabólica. Toda essa acidose
deixará o salicilato na forma molecular, mais lipossolúvel, atravessando mais facilmente a barreira
hematoencefálica e aumentando a quantidade da substância disponível no SNC. Com isso, a depressão
respiratória irá se agravar, podendo evoluir para uma parada respiratória.
257
Unidade II

Além desses episódios que narramos, outras duas situações podem ser observadas com o uso de
AAS. São elas:

— Síndrome de Reye: devido à possível associação à síndrome de Reye, não se aconselha a usar
salicilatos em crianças e em adultos com idade inferior a 20 anos com febre associada à origem
viral. Trata-se de uma encefalopatia grave com evolução que pode induzir a fatalidade. Ocorre
uma disfunção hepática e infiltração gordurosa no fígado e outras vísceras. O paracetamol não
está associado à incidência de síndrome de Reye, sendo, portanto, o fármaco preferido como
antipirético, em detrimento dos salicilatos.

— Asma induzida por aspirina: a asma induzida por aspirina (AIA) é uma doença inflamatória
das vias aéreas, adquirida, contínua e agressiva, associada à exacerbação da asma e rinite
após ingestão de AAS e da maioria dos Aines. Inicialmente foi descrita por Samter e
denominada tríade de Samter (asma, pólipo nasal e reação à aspirina). Atualmente, a maioria
das investigações clínicas inclui sinusite crônica nessa patologia, sendo também denominada
como asma intolerante à aspirina, asma sensível à aspirina e doença respiratória exacerbada
por aspirina. A AIA é amplamente subdiagnosticada na população asmática, e as razões são
a falta de reconhecimento de reações leves induzidas pelos Aines pelos pacientes e a falta de
conhecimento sobre AIA entre os profissionais da saúde.

Como principal causa, tem-se uma produção de leucotrienos, que são bronquioconstrictores,
ocasionada pela inibição do eixo das COXs, conforme a figura a seguir ilustra:

Fosfolipídeos de membranas

Fosfolipase A2

Inibidores da COX-1/2 Ácido araquidônico

COX-1/2
15-LO/5-LO/FLAP LTA4

TBX
PGD2 Lipoxina LTA4H LTC4S
PGF2a
PGE2

LTB4 LTC4
LTD4
LTE4

Legenda: AINH: Anti-inflamatórios não hormonais; AA: Ácido araquidônico; COX: Ciclooxigenase;
FA2: Fosfolipase A2; FLAP: Proteína ativadora da 5-LO5-LO: 5-lipoxigenase; 15-LO: 15-lipoxigenase;
LTA, B, C, D: Leucotrieno A, B, C, D; LTA4H: Leucotrieno A4 hidrolase; LTC4S: Leucotrieno C4 sintase LX: Lipoxina;
PGD, E, F: Prostaglandina D, E, F; TBX: Tromboxano

Figura 127 – Patogênese da asma induzida por aspirina

258
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

• Sinais e sintomas da intoxicação

As principais manifestações tóxicas são decorrentes da estimulação do SNC e de maneira


geral incluem vômitos, dor de cabeça, hiperpneia e anormalidades neurológicas, como confusão,
hiperatividade, incoordenação na fala e convulsões generalizadas. Devido à desidratação, pode ocorrer
desequilíbrio eletrolítico. Essas manifestações podem variar dependendo do grau da intoxicação:

— Intoxicações leves: ardor na boca, esôfago ou abdome, fraca ou moderada hiperpneia, letargia,
vômitos, diminuição na audição e vertigens.

— Intoxicações moderadas: hiperpneia severa, letargia marcante, excitabilidade, delírio, febre,


sudorese, desidratação, incoordenação e agitação.

— Intoxicações severas: severa hiperpneia, coma, convulsões, cianose, oliguria, edema pulmonar
e falência respiratória. Reações severas como rinorreia, constricção dos brônquios e colapso
respiratório ocorrem raramente, mais especialmente em asmáticos, após doses de 0,3 a 1 g.

• Tratamento da intoxicação

O tratamento requer medidas de suporte, diminuição da absorção e aumento da excreção do salicilato.

— Medidas de suporte:

- Diminuir a febre por meios físicos, como água fria.

- Controlar as convulsões com diazepam, mas não administrar outros depressores


menos seguros.

- Reduzir o desequilíbrio eletrolítico, através de hidratação.

- Em casos de distúrbios de coagulação, administrar vitamina K1.

— Medidas de descontaminação do trato gastrointestinal:

- Induzir emese.

- Proceder lavagem gástrica, que remove quantidades significativas de salicilato até 12 horas
após a ingestão.

- Administrar carvão ativado, seguido de catártico. O carvão ativado deve ser seriado, para
prevenir a reabsorção do salicilato que tem circulação êntero-hepática.

259
Unidade II

— Medidas para aumentar a excreção:

- Manter a urina alcalina, com o uso de bicarbonato de sódio, para deixar o salicilato na
forma iônica mais hidrossolúvel.

- Em casos graves, pode-se proceder hemodiálise, diálise peritoneal ou hemoperfusão com


carvão ativado.

Lembrete

A alteração de pH urinário, embora represente uma importante


ferramenta na tentativa de reversão da intoxicação por salicilatos, é prática
que exige critério e conhecimento, pois deve-se pensar que nem só o
pH urinário poderá se alterar, incorrendo em problemas de acidose e/ou
alcalose induzidas.

Observação

Para que o tratamento seja efetivo, confronta-se o que se obtém em


laboratório (concentração plasmática) com o nomograma de Done, para
avaliação da severidade da intoxicação.

• Exames laboratoriais

Em um ambiente clínico, as análises toxicológicas auxiliam no diagnóstico e no tratamento das


intoxicações, bem como na avaliação da eficácia do tratamento empregado. Informações sobre a
quantidade de toxicante absorvida ou disponível, somadas à avaliação clínica realizada pelo médico,
permitem correlacionar sinais e sintomas e direcionar o paciente para o tratamento mais adequado para
a intoxicação (KLAASSEN; WATKINS, 2012).

A regra fundamental no tratamento da intoxicação é remover o material que ainda não foi absorvido,
limitando a absorção e facilitando sua eliminação. O laboratório de análises toxicológicas auxilia no
monitoramento das concentrações plasmáticas do agente tóxico ainda disponíveis. Entre as análises de
urgência mais requisitadas estão as dos salicilatos e paracetamol (KLAASSEN; WATKINS, 2012).

A intoxicação aguda por salicilatos é uma situação potencialmente fatal e de não tão rara ocorrência.
A demora no diagnóstico de uma intoxicação grave, assim como o atraso na adoção de uma terapêutica
adequada, está associada a uma taxa de mortalidade maior do que nos casos em que o diagnóstico é
mais rápido e os pacientes tratados de forma apropriada.

260
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

O laboratório de toxicologia tem importante papel nas intoxicações por salicilatos, e as análises mais
comuns nesses casos são:

— Teste rápido com reativo de trinder ou cloreto férrico: adiciona-se 1 ml do reativo a 1 ml de


soro, plasma ou urina. Usado para triagem.

— Cromatografia em camada delgada: usa-se como fase estacionária a sílica gel G; como
sistema solvente utiliza-se clorofórmio acetona (9:1); e o revelador é o cloreto férrico (FeCl3).
A cromatografia em camada delgada pode ser usada para triagem ou para confirmar o
resultado do teste rápido.

— Quantificação espectrofotométrica: a 1 ml de amostra, adiciona-se 1 ml de reativo de trinder


ou cloreto férrico e lê-se a coloração obtida em espectrofotômetro.

— Além dos exames toxicológicos, deve-se monitorar os níveis sanguíneos de bicarbonato,


cloretos, potássio, sódio, glicose e o pH.

• Interpretação dos resultados

— Teste rápido: o íon férrico, reagindo com o grupamento fenólico dos salicilatos, produzirá um
cromóforo de cor violeta ou roxa, que indicará a presença de salicilatos na amostra. Como
pode ocorrer de os resultados darem falso-positivos, devido à presença de outras substâncias
com grupamento fenólico, esse teste é apenas indicativo, e não conclusivo da presença de
salicilatos, devendo, assim, ser confirmado por técnicas mais específicas.

— Cromatografia em camada delgada: seguindo a mesma reação do teste rápido, a coloração


violeta ou roxa indicará a presença de salicilatos. É mais específico que o teste rápido.

— Quantificação espectrofotométrica: da mesma forma que as anteriores, na presença


de salicilato ocorrerá formação de coloração violeta ou roxa, que será mensurada no
espectrofotômetro em 540 nm. Quando se souber o horário da intoxicação, pode ser usada
para se avaliar o grau de intoxicação e a eficácia do tratamento, assim como dar o prognóstico
do paciente, através do nomograma de Done, que relaciona a concentração plasmática com
o tempo decorrente da ingestão (veja a figura a seguir).

261
Unidade II

Grave Moderada
120
100
90 Leve
80
70
60

Salicemia (mg/dl)
50
Assintomática
40

30

20

10
0 12 24 26 48 60
Horas após a ingestão

Intoxicação aguda (25–35 mg%)


Intoxicação crônica (10–15 mg%)

Figura 128 – Nomograma de Done

Veja o nomograma de Done utilizado para que a clínica saiba em qual nível de intoxicação se
encontra o paciente. A partir disso, é possível se instituírem tratamentos adequados para a intoxicação.

Tabela 8 – Valores classificatórios da intoxicação

Tempo após a ingestão Conc. sérica (mg%) Toxicidade


12 25 Assintomático
24 25 Branda
36 25 Moderada

Derivados do p-aminofenol

Os derivados do ácido p-aminofenol exibem ações antitérmica e analgésica, com baixa ou nenhuma
ação anti-inflamatória e uricosúrica por uma ação inibitória não seletiva sobre COX. Compõem essa
classe de fármacos a acetanilida, a acetofenetidina (fenacetina) e seu metabólito acetaminofeno
(paracetamol) (DELUCIA et al., 2014).

Na overdose por paracetamol, as vias de glucuronização e sulfatação tornam-se saturadas e o


metabolismo via citocromo P450 (principalmente pela enzima CYP2E1) aumenta. Dessa forma, aumenta
a produção do NAPQI (N-acetil-p-benzoquinona), que rapidamente esgota a glutationa celular. Quando
cerca de 70% da glutationa estão esgotados, o NAPQI liga-se covalentemente com as macromoléculas

262
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

de proteínas nos hepatócitos, causando alteração de membrana, morte celular e degeneração do fígado.
Pode ocorrer dano renal pelo mesmo mecanismo, devido ao metabolismo do CYP renal.

• Aspectos toxicológicos da intoxicação por paracetamol

A diminuição do uso de salicilatos em crianças, devido à síndrome de Reye, provocou um aumento


no uso de paracetamol, bem como uma elevação nos casos de intoxicações. É o principal metabólito da
fenacetina, mas este não é mais usado atualmente.

É usado como analgésico/antipirético, mas não como anti-inflamatório.

A maior parte dos casos fatais ocorre quando da ingestão de doses maiores que 140 mg/kg de peso.

• Toxicocinética

O paracetamol é absorvido rápida e completamente pelo trato gastrintestinal, e o pico plasmático


é atingido em 30 a 60 minutos. A taxa de ligação proteica é de cerca de 26%, e a meia vida biológica é
de três horas.

É biotransformado e excretado principalmente conjugado com sulfato ou ácido glicurônico. Apenas


2% são excretados inalterados. Uma pequena fração, cerca de 4%, é biotransformada através do sistema
citocromo P-450, originando um produto altamente reativo e extremamente hepatotóxico, mas que é
inativado, por conjugação com a glutationa, sendo posteriormente excretado.

Em altas doses, além de se aumentar a porcentagem de paracetamol biotransformado pela via


secundária, depletam-se as reservas de glutationa. Assim, o intermediário reativo não é inativado,
ligando-se à macromoléculas do hepatócito e produzindo necrose hepática. Essa situação pode ser
agravada se estiver associado um indutor enzimático ou se o indivíduo for usuário crônico de álcool.

Lembrete

Você deve se lembrar que esse exemplo sobre a interação com álcool já
foi utilizado anteriormente.

• Sinais e sintomas da intoxicação

Num primeiro estágio, em 48 horas, ocorrem anorexia, náuseas e vômitos, que são inespecíficos,
daí a importância do diagnóstico laboratorial. A seguir, ocorrem aumento de ALT, AST e de bilirrubina,
devido à lesão hepática.

A intoxicação pode ser fatal em até quatro dias se o indivíduo não for tratado.

263
Unidade II

• Tratamento da intoxicação

Consiste em monitorizamento das funções vitais, diminuição da absorção e administração


de antídoto:

— Monitoramento das funções vitais, parâmetros bioquímicos e função hepática.

— Diminuição da absorção:

- Induzir emese.

- Realizar lavagem gástrica.

- Utilizar carvão ativado.

— Administração de antídotos.

A administração de precursores da glutationa, como a cisteína e a metionina (pouco usada),


são indicadas em quatro a 24 horas após a ingestão. A cisteína é degradada rapidamente quando
administrada por via intravenosa e não é bem absorvida por via oral, por isso, o antídoto mais utilizado
é a n-acetil-cisteína (NAC) (Fluimucil – Zambom). Sua administração pode ser feita por via intravenosa,
mas é sugerido que sua ação é mais eficaz por via oral, pois a n-acetil-cisteína após absorvida irá
primeiramente para o fígado. Você pode acompanhar esse mecanismo de forma bem detalhada na
próxima figura.

Ocorre lesão hepática grave em 90% dos casos em pacientes, tornando o carvão ativado o melhor
método de descontaminação oral, desde que a administração tenha sido feita em até quatro horas.

• Exames laboratoriais

— Teste rápido: a 1 ml de urina, adicionar 1 ml de HCl conc. Em seguida, deixar em banho-maria


a 100 °C por 10 minutos. Retirar 0,2 ml e a ele adicionar 5 ml de solução de fenol ou cresol 1%
e 3 ml de hidróxido de sódio 2M. Em caso positivo, observa-se coloração azul.

— Espectrofotometria: como amostra, pode-se usar plasma ou soro e há formação de um


cromóforo que absorve luz em 430 nm.

— Além dos exames toxicológicos, devem ser realizadas dosagens de ALT, AST e bilirrubina.

• Interpretação dos resultados

Através do nomograma de Rumack, sabendo-se o horário da ingestão é possível avaliar a gravidade


da intoxicação, a eficáca do tratamento e o prognóstico.

264
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Conjugação(40-67%)

Via UDP - Glucoronil


transferase Metabólitos não
tóxicos na urina

Paracetamol Sulfatação (20-47%)

Via fenol sulfotransferase


NAC1
CYP-450
(5-15%)PQI
Via renal inalterada (5%)

NAC2

Cisteína e conjugados do
NAPQI Glutationa ácido mercaptopurínico

NAC3

Toxicidade celular NAC4

Figura 129 – Vias de biotransformação do paracetamol e proteção feita pela NAC (N-acetilcisteína)

• Mecanismo de hepatoproteção da NAC:

— NAC1: aumenta a sulfatação.

— NAC2: é um precursor da glutationa.

— NAC3: é um substituto da glutationa.

— NAC4: melhora a função de múltiplos órgãos durante a lesão hepática e possivelmente limita
a extensão do dano hepático.

Assim como ocorre na intoxicação por salicilatos, para que o tratamento seja efetivo, confronta-se
o que obteve em laboratório (concentração plasmática) com o nomograma de Rumack-Mattew (veja a
figura a seguir), para avaliação da severidade da intoxicação e a administração de antídoto.

265
Unidade II

4 6 8 10 12 14 16
2000 300
1800 250
1600 Alto risco, tratar
1400 200
1200 175
1000 150
800 125
700
Paracetamol (micromol/L)

100
600

Paracetamol (mg/L)
500 80

400 60
Provável 50
300 risco
Fatores de risco 40
250 presentes
200 30

150 Possível risco


20
Baixo risco -
100 normalmente não 15
tratar

4 6 8 10 12 14 16
Tempo decorrido desde a exposição

Figura 130 – Nomograma de Rumack-Mattew

5.2.2 Síndromes tóxicas

Nas intoxicações, temos várias síndromes que passam a ser agrupadas segundo seus agentes
causadores e sintomas. Falaremos, portanto, sobre algumas dessas síndromes, e a importância que elas
passam a ter para o manejo de tratamento das diferentes intoxicações. Segundo o Manual de Toxicologia
Clínica do estado de São Paulo (HERNANDEZ; RODRIGUES; TORRES 2017) e Schvartsman e Schvartsman
(1999), a toxíndrome ou síndrome tóxica pode ser definida como um complexo de sinais e sintomas
produzido por doses tóxicas de substâncias químicas que, apesar de diferentes, têm um efeito mais ou
menos semelhante.

O reconhecimento da síndrome especificamente permite a identificação mais rápida do agente


causador e, consequentemente, a realização do tratamento adequado. Para tanto, é preciso realizar,
como em qualquer outra afecção clínica atendida em serviço de emergência, uma anamnese e um
exame físico cuidadoso. Alguns aspectos específicos devem ser enfatizados ou mais detalhados.

Na história, quando o tóxico for conhecido, deve-se fazer uma estimativa da quantidade em contato
com o organismo, do tempo decorrido desde o acidente até o atendimento, da sintomatologia inicial, do
tipo de socorro domiciliar e dos antecedentes médicos importantes. Quando o tóxico for desconhecido,

266
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

são dados suspeitos: início agudo da sintomatologia, idade entre 1 e 5 anos, pica, problemas domésticos,
estado mental alterado, quadro clínico estranho ou complexo, excesso de medicamentos no domicílio e
informações dos parentes ou dos companheiros.

O exame físico deve detalhar, além dos sinais usuais, características da pele e das mucosas
(temperatura, coloração, odor, hidratação), do hálito, da boca (lesões corrosivas, odor, hidratação), dos
olhos (conjuntiva, pupila, movimentos extraoculares), do sistema nervoso central (nível de consciência,
escala do coma, estado neuromuscular), do sistema cardiocirculatório (frequência e ritmo cardíaco,
pressão arterial, perfusão) e do sistema respiratório (frequência, movimentos respiratórios, ausculta).

Destacaremos a seguir, segundo Schvartsman e Schvartsman (1999), algumas dessas síndromes


tóxicas consideradas como principais:

• Síndrome anticolinérgica sintomatologia. Sintomas: rubor de face, mucosas secas, hipertermia,


taquicardia, midríase, retenção urinária, agitação psicomotora, alucinações e delírios. Principais
agentes: atropina, derivados e análogos, anti-histamínicos, antiparkinsonianos, antidepressivos
tricíclicos, antiespasmódicos, midriáticos, plantas da família Solanaceae, particularmente do
gênero Datura.

• Síndrome anticolinesterásica. Sintomas: sudorese, lacrimejamento, salivação, aumento das


secreções brônquicas, miose, bradicardia, fibrilações e fasciculações musculares. Principais
agentes: inseticidas organofosforados, inseticidas carbamatos, fisostigmina, algumas espécies
de cogumelos.

• Síndrome narcótica. Sintomas: depressão respiratória, depressão neurológica, miose, bradicardia,


hipotermia, hipotensão, hiporreflexia. Principais agentes: opiáceos, incluindo também elixir
paregórico, difenoxilato, loperamida.

• Síndrome depressiva. Sintomas: depressão neurológica (sonolência, torpor, coma),


depressão respiratória, cianose, hiporreflexia, hipotensão. Principais agentes: barbitúricos,
benzodiazepínicos, etanol.

• Síndrome simpatomimética. Sintomas: midríase, hiperreflexia, distúrbios psíquicos, hipertensão,


taquicardia, piloereção, hipertermia, sudorese. Principais agentes: cocaína, anfetamínicos, derivados e
análogos, descongestionantes nasais, cafeína, teofilina.

• Síndrome extrapiramidal. Sintomas: distúrbios do equilíbrio, distúrbios da movimentação,


hipertonia, distonia orofacial, mioclonias, trismo, opistótono, parkinsonismo. Principais agentes:
fenotiazínicos, butirofenonas, fenciclidina, lítio.

• Síndrome metemoglobinêmica. Sintomas: cianose de pele e mucosas, de tonalidade e localização


peculiar, palidez de pele e mucosas, confusão mental, depressão neurológica. Principais agentes:
acetanílida, azul de metileno, dapsona, doxorubicina, fenazopiridina, furazolidona, nitratos,
nitritos, nitrofurantoína, piridina, sulfametoxazol.
267
Unidade II

O reconhecimento da síndrome tóxica agiliza a identificação do agente causal e permite um


tratamento mais adequado.

Quadro 10 – Principais síndromes tóxicas e agentes relacionados

Síndromes Sintomatologia Agentes


Anticolinérgica Aumento da frequência cardíaca e da
pressão arterial, midríase, febre, rubor, Atropina e derivados,
(bloqueio de receptores mucosas e pele secas, alucinações, agitação beladonas, anti-histamínicos,
muscarínicos da Ach) psicomotora
Redução da frequência cardíaca e da
Colinérgica Inseticidas organofosforados,
pressão arterial, miose, fraqueza e carbamatos e alguns
(diminuição da atividade da AchE) fasciculações musculares, sialorreia, cogumelos
broncoespasmo, cólicas
Barbitúricos,
Depressão do SNC Redução da frequência cardíaca e da benzodiazepínicos, etanol,
pressão arterial, miose, sonolência, torpor,
(narcótica, hipnótica sedativa) opioides, antidepressivos
coma, depressão respiratória tricíclicos, carbamazepina
Extrapiramidal
Distorção facial, espasmos musculares,
(bloqueio de receptores mímica facial pobre, choro monótono
dopaminérgicos
Metemoglobinemia
Cianose cinza arroxeada, taquicardia, Nitrito, nitrato, naftalina,
(conversão da hemoglobina em astenia e convulsões anestésicos, sulfona
metemoglobina)
Aumento da frequência cardíaca e da Drogas de abuso, cafeína,
Simpatomimética pressão arterial, midríase, febre, sudorese, descongestionantes tópicos ou
rubor, agitação sistêmicos, teofilina

5.2.3 Toxicologia de emergência (intoxicações agudas)

Uma intoxicação suspeita ou confirmada deverá ser tratada como uma situação clínica
potencialmente grave, pois mesmo pacientes que não apresentam sintomas inicialmente podem
evoluir mal. Dessa forma, a abordagem inicial deve ser feita de forma rápida e criteriosa. Neste tópico
faremos um estudo sobre os princípios e condutas básicas para o atendimento de um paciente com
suspeita de intoxicação. Vamos juntos nessa?

Nas intoxicações, de uma forma geral, existem os procedimentos gerais, para a manutenção e
estabilização do paciente, e as medidas específicas, que são dependentes do agente causador e exigem
uma conduta.

Assim, segundo Schvartsman e Schvartsman (1999), para a estabilização do paciente intoxicado,


existe uma série de etapas que não precisam estar e ser sequenciais, como:

• avaliação clínica inicial;

• estabilização;

• reconhecimento da toxíndrome (síndrome tóxica) e identificação do agente causal;


268
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

• descontaminação;

• administração de antídotos;

• aumento da eliminação do tóxico absorvido;

• tratamento sintomático.

Tais etapas, embora aplicáveis e aceitas pela maioria dos autores e clínicos, apresentam, dependendo
do local, controvérsias que às vezes causam conflito nas informações acerca da sua prática ou não.

5.2.3.1 Avaliação inicial

O primeiro passo no atendimento de um paciente intoxicado é a realização de um breve exame físico


para identificar as medidas imediatas necessárias para estabilizar o indivíduo e evitar a piora clínica.
Portanto, nesse momento, é de fundamental importância checar:

• sinais vitais;

• nível e estado de consciência;

• pupilas (diâmetro e reatividade à luz);

• temperatura e umidade da pele;

• oximetria de pulso;

• medida de glicose capilar (dextro).

Também deve-se:

• obter ECG (eletrocardiograma) e realizar monitorização eletrocardiográfica, se necessário;

• manter vias aéreas abertas e realizar intubação orotraqueal (IOT), se necessário;

• obter acesso venoso calibroso (nesse momento, podem ser coletadas amostras para exames
toxicológicos).

Observação

Estudaremos neste tópico manobras clínicas, as quais você deverá


sempre relacionar a um profissional médico.

269
Unidade II

O objetivo principal da avaliação clínica inicial é o de verificar se o paciente apresenta algum


distúrbio que represente risco iminente de vida. Para tanto, é indispensável um exame físico rápido,
porém rigoroso, para avaliar as seguintes situações:

• Condições respiratórias: distúrbios que representam risco de vida e que exigem atenção imediata;
incluem obstrução das vias aéreas, apneia, bradipneia ou taquipneia intensa, edema pulmonar e
insuficiência respiratória aguda.

• Condições circulatórias: exigem atenção imediata alterações significativas de pressão arterial


ou de frequência cardíaca, disritmias ventriculares, insuficiência cardíaca congestiva, estado de
choque e parada cardíaca.

• Condições neurológicas: estado de mal convulsivo, pressão intracraniana aumentada, coma,


pupilas fixas e dilatadas ou mióticas puntiformes e agitação psicomotora intensa.

Observe que, quando as condições permitirem, a avaliação poderá ser ampliada incluindo outros
dados, tais como pele e anexos, temperatura, estado de hidratação, entre outras.

5.2.3.2 História da exposição

Você já ouviu falar sobre a estratégia dos 5 Ws?

Utiliza-se a estratégia dos 5 Ws para se obterem os dados relacionados ao paciente (Who? – Quem?),
à substância utilizada (What? – O quê?), horário da exposição (When? – Quando?), local da ocorrência
(Where? – Onde?) e motivo da exposição (Why? – Por quê?).

Veja que, nas emergências, muitas informações podem ser distorcidas ou omitidas, principalmente
quando há tentativas de suicídio ou homicídio envolvidas, uso de drogas ilícitas, abortamento ou
maus-tratos. Dessa forma, sugere-se uma conduta geral em situações dessa ordem, para que os vieses
sejam os menores possíveis e a identificação do agente tóxico seja a mais precisa possível.

Observe algumas condutas que separamos como sendo de importância para um manejo clínico:

• Paciente: obter o histórico de doenças, medicações em uso, tentativas de suicídio anteriores,


ocupação, acesso a substâncias, uso de drogas e gravidez.

• Agente tóxico: procurar saber qual foi a substância utilizada e a quantidade. Sempre que possível,
deve-se solicitar para os acompanhantes trazerem os frascos ou embalagens e questionar se pode
ser um produto clandestino.

• Tempo: verificar qual foi o horário da exposição e por quanto tempo a substância foi utilizada,
nos casos de exposições repetidas. Também deve-se questionar se houve algum sintoma prévio
à exposição.

270
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

• Local: saber onde ocorreu a exposição e se foram encontrados frascos, embalagens, seringas ou
cartelas de comprimidos próximos ao paciente. É necessário, ainda, verificar quais medicamentos
são utilizados pelos familiares ou pelas pessoas onde o indivíduo foi encontrado. Também é útil
saber se foi encontrada alguma carta ou nota de despedida em casos de tentativa de suicídio.

• Motivo: identificar a circunstância da exposição, já que é de extrema importância saber se foi


tentativa de suicídio, homicídio, acidente, abuso de drogas ou outro tipo de ocorrência.

5.2.3.3 Exame físico

É importante que o exame físico do paciente seja realizado verificando os principais sinais e sintomas
descritos a seguir:

• Odores característicos: são exemplos hálito etílico (uso de álcool) e odor de alho
(organofosforados).

• Achados cutâneos: sudorese, secura de mucosas, vermelhidão, palidez, cianose, desidratação


e edema.

• Temperatura: hipo ou hipertermia.

• Alterações de pupilas: miose, midríase, anisocoria (tamanho desigual da pupila) e alterações de


reflexo pupilar.

• Alterações da consciência: agitação, sedação, confusão mental, alucinação, delírio e desorientação.

• Anormalidades neurológicas: convulsão, síncope, alteração de reflexos, alteração de tônus


muscular, fasciculações e movimentos anormais.

• Alterações cardiovasculares: bradicardia, taquicardia, hipertensão, hipotensão e arritmias.

• Anormalidades respiratórias: bradipneia ou taquipneia e presença de ruídos adventícios


pulmonares.

• Achados do aparelho digestório: sialorreia, vômitos, hematêmese, diarreia, rigidez abdominal e


aumento ou diminuição de ruídos hidroaéreos.

Esses sinais e sintomas descritos, quando agrupados, podem caracterizar uma determinada
síndrome tóxica.

Lembrete

Você deve se lembrar de que o conhecimento das síndromes tóxicas que


vimos há pouco auxiliam na identificação mais rápida do agente tóxico.

271
Unidade II

5.2.3.4 Tratamento

O manejo adequado de um paciente com suspeita de intoxicação depende do agente envolvido e da


sua toxicidade, assim como do tempo decorrido entre a exposição e o atendimento. Além do suporte, o
tratamento envolve medidas específicas como descontaminação, administração de antídotos e técnicas
de eliminação, descritas a seguir.

5.2.3.4.1 Descontaminação

Esse procedimento visa à remoção do agente tóxico com o intuito de diminuir a sua absorção.
Durante o procedimento, a equipe de atendimento deverá tomar as precauções para se proteger da
exposição ao agente tóxico.

Os seguintes procedimentos estão indicados de acordo com a via de exposição:

• Cutânea: retirar roupas impregnadas com o agente tóxico e lavar a superfície exposta com água
em abundância.

• Respiratória: remover a vítima do local da exposição e administrar oxigênio umidificado


suplementar.

• Ocular: instilar uma ou duas gotas de colírio anestésico no olho afetado e proceder a lavagem com
SF 0,9% ou água filtrada, sempre da região medial do olho para a região externa, com as pálpebras
abertas durante pelo menos cinco minutos. É necessário solicitar avaliação oftalmológica.

• Gastrintestinal (GI): consiste na remoção do agente tóxico do trato gastrintestinal no intuito de


evitar ou diminuir sua absorção.

Descontaminação gastrintestinal

A indicação da descontaminação GI depende da substância ingerida, do tempo decorrido da


ingestão, dos sintomas apresentados e do potencial de gravidade do caso. Recomenda-se avaliação
criteriosa do nível de consciência do paciente antes de iniciar o procedimento e sempre considerar
intubação orotraqueal, caso julgar necessário, para proteção de vias aéreas. Os benefícios maiores desse
procedimento estão nas seguintes situações:

• na ausência de fatores de risco para complicações, como torpor e sonolência;

• na ingestão de quantidades potencialmente tóxicas da(s) substância(s);

• nas ingestões recentes, isto é, até uma a duas horas da exposição;

272
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

• nos casos envolvendo agentes que diminuam o trânsito intestinal (anticolinérgicos, fenobarbital,
etc.) ou de substâncias de liberação prolongada, a indicação da descontaminação pode ser
mais tardia.

O procedimento divide-se em duas etapas: a realização da lavagem gástrica seguida da administração


do carvão ativado, que discutiremos com você a seguir.

• Lavagem gástrica (LG): consiste na infusão e posterior aspiração de soro fisiológico a 0,9%
(SF 0,9%) através de sonda nasogástrica ou orogástrica, com o objetivo de retirar a substância
ingerida. Deve-se sempre avaliar criteriosamente a relação risco x benefício antes de iniciar o
procedimento, pois há grande risco de aspiração.

— É contraindicada na ingestão de cáusticos, solventes e quando há risco de perfuração e


sangramentos. Deve-se evitar a infusão de volumes superiores aos indicados, pois pode facilitar
a passagem da substância ingerida pelo piloro e aumentar a absorção do agente tóxico.

— Deve-se utilizar sonda de grande calibre (adultos, calibre de 18 a 22; crianças, de 10 a 14),
mantendo o paciente em decúbito lateral esquerdo para facilitar a retirada do agente tóxico e
diminuir a velocidade do esvaziamento gástrico para o intestino.

— É necessário infundir e retirar sucessivamente o volume de SF 0,9% recomendado de acordo


com a faixa etária até completar o volume total recomendado ou até que se obtenha
retorno límpido.

• Carvão ativado (CA): é um pó obtido da pirólise de material orgânico, com partículas porosas com
alto poder adsorvente do agente tóxico, que previne a sua absorção pelo organismo. Geralmente
é utilizado após a LG, mas pode ser utilizado como medida única de descontaminação GI. Nesses
casos, a administração pode ser por via oral sem necessidade da passagem de sonda nasogástrica.

Na maioria das vezes deverá ser utilizado em dose única, porém pode ser administrado em
doses múltiplas como medida de eliminação, em exposições a agentes de ação prolongada ou
com circulação entero-hepática, como fenobarbital, carbamazepina, dapsona, clorpropramida,
entre outros.

— Contraindicações ao uso do carvão ativado:

- RN, gestantes ou pacientes muito debilitados, cirurgia abdominal recente, administração de


antídotos por VO.

- Pacientes que ingeriram cáusticos ou solventes ou que estão com obstrução intestinal.

- Pacientes intoxicados com substâncias que não são efetivamente adsorvidas pelo carvão,
como os ácidos, álcalis, álcoois, cianeto e metais como lítio, ferro, entre outros.

273
Unidade II

— Complicações que podem ocorrer com o uso do CA:

- Constipação e impactação intestinal, principalmente quando utilizado em doses múltiplas.

- Broncoaspiração, especialmente quando realizado em pacientes torporosos, sem a proteção


da via aérea.

Lavagem intestinal

Consiste na administração de solução de polietilenoglicol (PEG) via sonda nasoenteral para


induzir a eliminação do agente através do trato gastrintestinal pelas fezes. É raramente utilizada,
salvo nos casos de ingestão de pacotes contendo drogas (body-packing) ou de quantidades
potencialmente tóxicas de substâncias não adsorvidas pelo carvão ativado (exemplos: ferro, lítio
etc.). Está contraindicada na presença de íleo paralítico, perfuração gastrintestinal, hemorragia
gastrintestinal e instabilidade hemodinâmica.

Para finalizarmos este tópico, demonstramos a seguir um fluxograma geral de atendimento


ao paciente:

Anamnese

Suspeita de intoxicação

Discussão: clínico x analista

Sangue Triagem Fluido gástrico

Suspeita de Triagem
intoxicação

Figura 131 – Fluxograma do atendimento ao paciente intoxicado

274
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

5.2.4 Toxicologia clínica

Intoxicações exógenas definem-se como as consequências clínicas que uma substância química
pode desencadear, entre elas o medicamento. A toxicologia clínica representa a parte médica voltada
ao tratamento do paciente exposto ao agente tóxico, com a finalidade de prevenir e diagnosticar a
intoxicação ou aplicar, se necessário, uma medida terapêutica específica para seu tratamento.

Lembrete

Você deve se lembrar novamente de que essa parte clínica é de atribuição


do profissional médico.

Na fase clínica, o médico passa a ter acesso aos sintomas do paciente intoxicado ou mesmo a
algumas alterações laboratoriais que esses agentes tóxicos possam induzir, lembrando que uma mesma
substância pode induzir a um quadro tóxico vários órgãos em um mesmo momento ou em momentos
distintos, e um único órgão pode ser atingido por várias substâncias diferentes.

Os efeitos tóxicos podem se dividir em:

• Efeitos imediatos ou agudos: aparecem imediatamente após uma exposição aguda, ou seja,
exposição única ou que ocorre, no máximo, em 24 horas. Em geral são efeitos intensamente
graves, e a evolução pode levar o paciente à morte ou causar lesões persistentes.

• Efeitos crônicos: são aqueles que surgem de uma exposição crônica, ou seja, exposição a
pequenas doses, durante vários meses ou anos.

• Efeitos retardados: são aqueles que só ocorrem após um período de latência, mesmo quando
já não mais existe a exposição. Exemplo: efeitos carcinogênicos que têm uma latência de
20 a 30 anos. Esses efeitos podem advir de uma exposição aguda ou crônica e são dependentes
do agente tóxico, da dose exposta e das condições de exposição.

Não se pode confundir efeitos agudos e crônicos com exposição aguda e crônica, pois através de uma
exposição aguda é possível se ter um efeito crônico, dependendo, como já mencionado, da substância,
da sua dose e das condições às quais ela foi exposta.

No que diz respeito às intoxicações medicamentosas, é possível observar intoxicações que


ocorreram por uma exposição aguda, originando efeitos agudos ou mesmo crônicos. Ainda, é possível
ter através de uma exposição crônica efeitos agudos que porventura venham também a se cronificar.
Na verdade, nesse contexto destaca-se a importância da monitorização terapêutica, que é aplicada
em pacientes que empregam medicamentos de forma crônica, principalmente.

Nas intoxicações exógenas especificamente voltadas aos medicamentos, a toxicologia clínica se


incumbe da prevenção da intoxicação, do diagnóstico da intoxicação (o que a causou) e do tratamento.
275
Unidade II

Cada classe ou cada medicamento dentro de uma classe exige uma conduta específica com relação aos
tratamentos, ou aplicação quando possível e pertinente de antídotos, para se contraporem aos efeitos
nocivos dos medicamentos. Destaca-se nesse contexto a importância do laboratório de toxicologia,
que muitos hospitais (principalmente os de grande porte) possuem, os quais têm a incumbência de
identificar os medicamentos e as suas classes nas mais variadas matrizes biológicas.

Observação

Considere que o laboratório de toxicologia precisa oferecer resultados


rápidos com técnicas analíticas que priorizem o tempo, para que a parte
clínica possa instituir tratamentos adequados.

Os exames laboratoriais podem ser diretos (qualitativos ou quantitativos) ou indiretos. Exames


diretos qualitativos ou semiquantitativos, como o screening urinário para drogas de abuso, podem ser
úteis no esclarecimento do diagnóstico, detectando acetona, anfetaminas, anticolinérgicos, barbitúricos,
benzoilecgonina, cafeína, canabinoides, cocaína, codeína, deidrocodeína, etanol, fenotiazínicos,
heroína, morfina e nicotina. Além disso, podem detectar antidepressivos tricíclicos, betabloqueadores,
cloroquina, diquat, disopiramida, estricnina, glicóis, herbicidas fenoxiclorados, isopropanol, metanol,
metoclopramida, paracetamol, paraquat, salicilatos e teofilina. Os exames quantitativos, geralmente
realizados no sangue, são importantes no controle da intoxicação devida principalmente aos seguintes
agentes: acetaminofeno (> 20 mg/l), chumbo (> 25 mg/dl), digitálicos (> 2 ng/ml), etanol (> 100 mg/dl),
etilenoglicol (> 20 mg/dl), fenobarbital (> 30mg/ml), ferro (> 300 mg/dl), salicilato (> 30 mg/dl) e
teofilina (20 mg/ml).

Os exames indiretos consistem na dosagem de marcadores sugestivos de intoxicações. São exemplos


a dosagem da atividade da colinesterase sanguínea e a dos níveis de metemoglobinemia. No primeiro
caso, queda superior a 50% é altamente sugestiva de intoxicação por inseticidas organofosforados e
carbamatos. Metemoglobinemia superior a 15% é acompanhada por sintomatologia tóxica.

Convém notar que os resultados das análises toxicológicas de urgência são importantes
por permitirem:

• um diagnóstico preciso de uma intoxicação ou até mesmo a sua exclusão, permitindo até uma
reavaliação clínica;

• a identificação do agente tóxico que irá auxiliar o clínico no uso de uma terapêutica mais específica
e adequada ao paciente;

• a monitorização das intoxicações graves (falaremos melhor com você a seguir sobre monitorização
terapêutica), como aquelas causadas por ferro e metanol;

• o estabelecimento de um prognóstico mais previsível, como ocorre nas intoxicações por


paracetamol e paraquat;
276
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

• um seguimento mais adequado, como na intoxicação por antidepressivos tricíclicos, por


dapsona etc.

Aqui fazemos um destaque ao papel relevante do analista toxicologista, pois, além da capacidade
de realizar as análises propriamente ditas, apresenta plenas condições da interpretação dos resultados.

Observação

Assim sendo, destacamos a importância do estreito relacionamento


entre o clínico e o analista.

As solicitações pela equipe clínica de um screening toxicológico (diagnóstico diferencial) surgem, na


maioria das vezes, da falsa ideia da existência de uma única e rápida análise capaz de confirmar a presença
de qualquer agente tóxico determinante da intoxicação. Um laboratório de análises toxicológicas, de
fato, deve dispor de diferentes métodos orientados através de um planejamento toxicológico.

Dos milhares de agentes capazes de provocar intoxicação, um laboratório tem habilidade para
detectar somente cerca de um décimo desse total e de quantificar dezenas deles nas diversas matrizes
biológicas disponíveis.

O método analítico inclui o conjunto de procedimentos ou técnicas desde o pré-tratamento da


amostra até seu resultado final. Pode ter finalidade qualitativa, em que se verifica a presença ou ausência
do agente tóxico na matriz biológica, ou quantitativa, na qual se realiza a determinação dos analitos,
podendo ser útil para evidenciar a natureza e a magnitude da exposição a um composto em particular
ou a um grupo de compostos. Além disso, as técnicas analíticas podem ser divididas em:

• Testes de triagem: são rápidos e fornecem informações qualitativas ou semiquantitativas para


uma classe de agentes tóxicos (por exemplo, teste positivo para benzodiazepínicos, mas não
necessariamente o diazepam), e algumas vezes podem gerar resultados falso-positivos. Assim, o
resultado de uma técnica de triagem pode ser confirmado por técnicas analíticas mais definitivas.

• Testes de confirmação: identificam o composto específico em vez de simplesmente sua


classe. Esses ensaios carecem de mais tempo (horas/dias) e intensivo trabalho, são de limitada
disponibilidade, além de serem caros de se realizar. A técnica confirmatória de escolha para a
grande maioria dos compostos é a cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massas,
e essa análise pode ser qualitativa ou quantitativa. Se disponíveis, análises confirmatórias serão
necessárias quando houver possível envolvimento médico-legal ou do serviço social. Devido à
complexidade do diagnóstico e tratamento das intoxicações agudas, os resultados toxicológicos,
quando disponíveis no tempo apropriado, podem influenciar no diagnóstico e tratamento
subsequente do paciente intoxicado. Assim, avaliando a abordagem emergencial da intoxicação
aguda, os resultados analíticos devem ser fornecidos rapidamente, usualmente dentro de uma
a duas horas da chegada do paciente ao hospital, priorizando os casos onde o resultado terá
influência na conduta a ser tomada.
277
Unidade II

5.2.4.1 Monitorização terapêutica

Um dos instrumentos mais valiosos de que se dispõe para assegurar uma terapia com máxima
eficácia e efeitos tóxicos mínimos, em casos de tratamentos prolongados, é a monitorização terapêutica.
Dessa forma, torna-se possível, ao prescrever uma dose, medir sua concentração no local de ação e,
consequentemente, prever a intensidade do efeito.

A monitorização da terapêutica medicamentosa (therapeutic drug monitoring – TDM) é a prática


clínica que usa as concentrações dos fármacos, os princípios farmacocinéticos (PK) e os critérios
farmacodinâmicos (PD) na individualização da posologia e na otimização da terapêutica farmacológica
do doente (EVANS; SCHENTAG; JUSKO, 1992).

Observação

Você já deve ter percebido que na monitorização terapêutica os


resultados não precisam ser tão rápidos, mas devem ser reproduzidos por
metodologias bem específicas.

A TDM é uma prática instituída para um pequeno número de fármacos, para os quais há uma
relação direta entre a sua concentração e o efeito farmacológico no local de ação, o que por sua vez
se reflete de forma previsível na resposta. Para esses fármacos está descrita uma margem estreita de
concentrações, acima das quais se observa toxicidade e, abaixo, ineficácia. Tratando-se de um intervalo
de confiança, a noção de margem terapêutica é um conceito probabilístico que representa uma gama de
concentrações do fármaco para as quais existe uma probabilidade relativamente elevada de obter
a resposta clínica desejada e uma probabilidade relativamente baixa de se observar uma toxicidade
inaceitável. No entanto, alguns doentes respondem abaixo da margem terapêutica, enquanto outros
necessitam de concentrações acima dela. De igual modo, há doentes que manifestam reações tóxicas
com concentrações dentro da margem terapêutica (SCHUMACHER, 1995).

A TDM é uma área de farmacocinética clínica que visa a individualização posológica e a otimização
dos tratamentos farmacológicos, com o objetivo de alcançar a máxima eficácia terapêutica com a
mínima incidência de efeitos adversos. Foi proposta pela primeira vez em 1950, aplicada ao tratamento
de arritmias cardíacas com quinidina. A sua utilização vulgarizou-se desde a segunda metade da década
de 1960, com a evolução das técnicas analíticas e dos fundamentos farmacocinéticos da ação dos
fármacos. Atualmente, a melhoria dos cuidados de saúde cria situações clínicas complexas, que tornam
a TDM relevante na decisão e gestão terapêutica (MARTIN et al., 2012).

Na base do desenvolvimento da monitorização das concentrações dos fármacos no sangue estão


várias razões que justificam a realização da TDM (SCHUMACHER, 1995):

• Critérios analíticos: consistem na disponibilidade de um método analítico para dosear o fármaco


de forma rápida, sensível e precisa (exemplos: ELISA, EMIT, FPIA, HPLC) e que, na maioria dos casos,
requer pequenos volumes de amostra.
278
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

• Critérios farmacocinéticos: consistem na descrição de uma elevada variabilidade inter


e intraindividual na distribuição ou na eliminação do fármaco, resultando em diferentes
concentrações ou exposições a ele.

• Critérios farmacológicos: consistem em estar bem demonstrada a relação entre as concentrações


do medicamento e a sua atividade farmacológica, muitas vezes difícil de quantificar, assim como
em identificar uma margem terapêutica estreita ou baixo índice terapêutico.

• Critérios clínicos: consiste na necessidade de existir uma margem terapêutica bem definida e o
conhecimento dos fatores que alteram o comportamento farmacocinético do fármaco, de forma
a permitir a correta interpretação das concentrações.

Alguns fatores que alteram a farmacocinética dos fármacos podem também contribuir para a
necessidade da execução da TDM (BURTON et al., 2006), entre os quais: variabilidade inter e intraindividual,
estados patológicos, fatores genéticos, interações medicamentosas e alterações na distribuição dos
medicamentos na obesidade, gravidez ou mesmo com a permeabilidade da barreira hematoencefálica
(SCHUMACHER, 1995).

Na prática da TDM, a qualidade das informações quanto ao medicamento e ao paciente são de


fundamental importância para que haja fidelidade e exatidão nas informações relacionadas às
concentrações plasmáticas obtidas e correção dessa com a terapia propriamente dita.

Nesse contexto, é fundamental que o profissional da saúde detenha informações acerca da


farmacocinética e farmacodinâmica dos medicamentos envolvidos e processos que possam alterá-las,
sempre com o intuito da otimização da terapêutica.

Não há necessidade e nem exigência clínica para se executar monitorização terapêutica para todos os
fármacos, destacando-se algumas classes como antibióticos (gentamicina, tobramicina), antiepilépticos
(carbamazepina, fenobarbital), lítio, digoxina, imunossupressores (ciclosporina) e antidepressivos
(amitriptilina, imipramina).

Assim como não há uma exigência para todos os fármacos, também não se faz necessário executar a
monitorização para todos os pacientes. As exigências são maiores para alguns grupos, como as crianças
(recém-nascidos), os idosos, os politraumatizados e os doentes, que, por sua condição diferenciada,
exigem um acompanhamento mais rigoroso da terapêutica, para se otimizarem os efeitos e reduzirem
as reações adversas. Além disso, a TDM aplica-se muito bem a pacientes refratários a medicamentos,
como os antipsicóticos.

5.2.4.2 Antídotos

Como o nosso objetivo inicial não é o de fornecer especificamente condutas e tratamentos acerca dos
medicamentos envolvidos nas intoxicações, trazemos aqui informações gerais sobre o uso de antídotos.

279
Unidade II

Ressaltamos que para cada substância pode haver uma conduta e que tais condutas serão
apropriadas e aplicáveis dependendo dos níveis plasmáticos dos medicamentos no meio sistêmico,
sendo essa tarefa de fundamental importância na toxicologia analítica, ou seja, a partir da descoberta
do agente causador da intoxicação (qual medicamento), é possível quantificá-lo e correlacionar esses
níveis plasmáticos com valores de faixa terapêutica de normalidade (MANUAL, 2017).

Os antídotos são substâncias que agem no organismo, atenuando ou neutralizando ações ou efeitos
de outras substâncias químicas. A administração desses medicamentos não é a primeira conduta a ser
tomada na maioria das situações. A maior parte das intoxicações pode ser tratada apenas com medidas
de suporte e com tratamentos sintomáticos. Entretanto, algumas situações exigem a administração de
antídotos e, às vezes, de medicamentos específicos. A disponibilidade dessas substâncias é estratégica
do ponto de vista de saúde pública. Devem estar disponíveis seja para uso imediato, no primeiro
atendimento, em ambulâncias ou nas unidades de emergência, seja em poucas horas para uso hospitalar
ou em serviços de referência.

Apresentaremos aqui algumas medidas que podem ser empregadas para reduzir a intoxicação e logo
a seguir falaremos sobre os antídotos propriamente ditos.

Medidas de eliminação

São utilizadas para potencializar a eliminação do agente tóxico. As principais medidas utilizadas são:

• Alcalinização urinária: pode potencializar a excreção urinária de alguns agentes. Alcalinizar a


urina favorece a conversão de ácidos fracos lipossolúveis (como fenobarbital e salicilatos) para
a forma de sal, impedindo a sua reabsorção pelo túbulo renal. As contraindicações são insuficiência
renal, edema pulmonar ou cerebral e doenças cardíacas.

• Hemodiálise ou hemoperfusão: são técnicas raramente utilizadas. São geralmente indicadas


quando a velocidade de depuração da substância pode ser maior pela remoção extracorpórea
do que pelo próprio clearance endógeno, que ocorre nos casos de nítida deterioração do quadro
clínico do paciente ou quando os níveis séricos da substância determinam mau prognóstico.
A hemodiálise pode ser útil em intoxicações por fenobarbital, teofilina, lítio, salicilatos e
álcoois tóxicos.

— Hemodiálise: é realizada em 90% dos casos que requerem um método de remoção


extracorpórea. Durante a hemodiálise, até 400 ml de sangue por minuto atravessam
um circuito extracorpóreo em que compostos tóxicos difundem-se em uma membrana
semipermeável e são retirados do organismo.

É mais efetiva na remoção de compostos com as seguintes características:

- baixo peso molecular (< 500 daltons);

280
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

- pequeno volume de distribuição (< 1 l/kg);

- baixa ligação a proteínas plasmáticas.

— Hemoperfusão: consiste na depuração do agente tóxico fazendo o sangue passar através de


uma coluna de resinas não iônicas ou de microcápsulas de carvão ativado. Tem a capacidade
de remover mais efetivamente as toxinas adsorvidas pelo carvão ativado quando comparada à
hemodiálise, porém a disponibilidade dessa técnica nos centros de emergência é limitada.

Antídotos comprovadamente efetivos

Poderíamos aqui dispor de inúmeras tabelas contendo antígenos empregados, mas preferimos
elencar alguns destes que comprovadamente demonstram efetividade clínica (SCHVARTSMAN;
SCHVARTSMAN, 1999).

• Acetilcisteína: tem um efeito poupador de glutationa, prevenindo a formação de metabólitos


hepatotóxicos do acetaminofeno. Sua principal indicação terapêutica é a intoxicação por esse
medicamento. Outras indicações ainda não têm evidências suficientes. As doses usuais são de
140 mg/kg, por via oral, e, a seguir, 70 mg/kg, por via oral, durante três dias.

• Atropina: é um antagonista dos estímulos colinérgicos nos receptores muscarínicos com pouco
efeito nos nicotínicos. Sua principal indicação, sobre a qual existem evidências suficientes, é o
tratamento da intoxicação por inseticidas organofosforados e carbamatos. As doses usuais para
crianças são de 0,01 a 0,05 mg/kg, preferencialmente por via intravenosa, repetidas em intervalos
de minutos até a melhora do quadro clínico ou o aparecimento de sinais de intoxicação atropínica.

• Azul de metileno: medicamento que age como transportador de elétrons, ativando a via da
hexose monofosfato eritrocitária, na qual a G-6-PD (glicose 6-fosfato desidrogenase) é enzima
básica, permitindo a redução da metemoglobina em hemoglobina. É indicado no tratamento das
metemoglobinemias tóxicas, particularmente as induzidas por derivados da anilina e nitritos. Em
indivíduos com deficiência de G-6-PD, seus efeitos são menos evidentes.

• BAL ou dimercaprol: é um quelante cujos grupos sulfidrila competem com os das enzimas
teciduais na ligação com metais pesados. Existem evidências suficientes demonstrando sua eficácia
no tratamento da intoxicação por arsênico e ouro e na encefalopatia saturnina (juntamente com
o EDTA). Como é um medicamento de difícil manuseio, que somente pode ser aplicado por via
intramuscular em injeção muito dolorosa, apresentando além disso importantes efeitos colaterais,
há atualmente uma tendência para uso de outras alternativas.

• Deferoxamina: é um agente quelante com especial afinidade pelo ferro, com o qual forma um
complexo hidrossolúvel rapidamente eliminado. Pode ser usado na intoxicação aguda, mas é mais
indicado no tratamento da sobrecarga crônica de ferro. As doses devem ser individualizadas,
utilizando-se genericamente 75 mg/kg/dia, por via intramuscular ou intravenosa.

281
Unidade II

• EDTA-cálcico: EDTA-cálcico ou edatamil cálcio dissódico é um agente quelador que forma


complexos estáveis e hidrossolúveis com alguns metais pesados. Sua principal indicação é a
intoxicação por chumbo. Dificuldade da administração, efeitos colaterais importantes e resultados
nem sempre satisfatórios justificam a tendência atual de procura de medicamentos alternativos.

• Etanol: age bloqueando a metabolização pela desidrogenase alcoólica de outros álcoois,


particularmente metanol e etilenoglicol, impedindo a formação dos derivados que são tóxicos. As
doses usuais têm por objetivo manter uma alcoolemia em torno de 100 mg/dL, geralmente obtida
com 50 g de álcool, por via oral, ou, se necessário, por via intravenosa. Em virtude da incerteza
sobre seus resultados, estão sendo procuradas alternativas terapêuticas.

• Flumazenil: é um medicamento que antagoniza a ação de benzodiazepínicos por inibição


competitiva no complexo receptor GABA-benzodiazepina. Existem evidências suficientes sobre sua
eficácia na reversão do coma induzido por esse grupo de drogas e relatos, que ainda necessitam
confirmação, sobre a melhora da consciência de pacientes com intoxicação alcoólica. A dose usual
inicial é de 0,2 a 0,3 mg, por via intravenosa, em 15 segundos. A seguir, 0,1 mg em intervalos de
um minuto, até a melhora do paciente, que geralmente ocorre com menos de 3 mg.

• Hipossulfito: o hipossulfito (tiossulfato) de sódio faz parte do esquema terapêutico da intoxicação


cianídrica grave juntamente com os nitritos e pode ser de uso isolado na intoxicação leve.
Transforma o cianeto em tiocianato, que é rapidamente eliminado e bem menos tóxico. Sua ação
é lenta e exige a presença da enzima rodanase. As doses usuais são de 1,5 ml/kg da solução a 25%
para crianças e de 50 ml para adultos, por via intravenosa.

• Naloxona: é considerado medicamento de primeira escolha no tratamento da intoxicação


por opiáceos. Atua como antagonista puro, podendo ser usado mesmo quando houver dúvida
diagnóstica. As doses utilizadas são de 0,1 mg/kg, bem maiores que as inicialmente recomendadas,
para crianças com menos de 5 anos de idade e 2,0 mg para crianças maiores, de preferência por
via intravenosa.

• Nitritos: os nitritos, de amila e de sódio, continuam sendo os medicamentos mais utilizados


no tratamento da intoxicação cianídrica grave. Induzem a formação de metemoglobina, que,
ligando-se ao cianeto, forma um complexo, o qual, apesar de dissociável, é menos tóxico e facilita
a ação do hipossulfito, administrado a seguir. As doses usuais são nitrito de amila, inalação de
30 segundos a cada minuto, enquanto é preparado o nitrito de sódio, administrado na dose
de 0,3 ml/kg da solução a 3%, por via intravenosa.

• Pralidoxima: é um reativador de colinesterase utilizado na intoxicação por inseticidas


organofosforados no tratamento das manifestações nicotínicas. Não deve ser usada na intoxicação
por inseticidas carbamatos, apesar de estes serem também inibidores da colinesterase. A dose
recomendada é de 20 a 40 mg/kg, para crianças, preferencialmente por via intravenosa.

• Vitamina K1: vitamina K1 ou fitonadiona é utilizada para restaurar o tempo de protrombina e


interromper o sangramento na intoxicação por medicamentos ou pesticidas anticoagulantes. A
282
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

dose usualmente recomendada para crianças é de 5 a 10 mg, por via oral, repetida várias vezes
por dia. Por via intramuscular, a dose costuma ser de 1 a 5 mg.

Tratamentos sintomáticos

Veja que, além dos antídotos, é possível se empregar substâncias como tratamentos sintomáticos,
que atenuam os episódios e sintomas agudos.

• Tratamento das convulsões: benzodiazepínicos, particularmente o diazepam, continuam sendo


os medicamentos de escolha no controle das crises convulsivas. Não havendo melhora, pode-se
administrar fenitoína, em dose de carga de 15 mg/kg, não ultrapassando a velocidade de infusão
de 50 mg/minuto.

• Tratamento da crise alérgica: prometazina, disponível para uso oral e parenteral, deve ser usada
na dose de 0,5 mg/kg. Ciproeptadina, 0,25 mg/kg/d, por via oral, pode ser usada como alternativa.
Nos casos mais graves, recomenda-se epinefrina 1:1000, na dose de 0,01 ml/kg, por via subcutânea,
repetida se necessário, até três vezes, e cortiscosteroides, como hidrocortisona ou dexametasona.

• Tratamento da dor: o tipo de analgésico depende de sua intensidade. Na leve ou moderada, são
recomendados acetaminofeno, ácido acetilsalicílico ou dipirona. Dores intensas podem exigir
analgésicos narcóticos, particularmente morfina, na dose de 0,2 mg/kg para crianças e 5 a 20 mg
para adultos, por via subcutânea, intramuscular e, se necessário, intravenosa; codeína, 0,3 a 0,5 mg/kg
para crianças e 15 a 60 mg para adultos, por via oral ou parenteral. Alguns casos (picada de animais
peçonhentos, por exemplo) podem exigir anestesia local ou bloqueio anestésico.

• Tratamento da hipertermia: nas intoxicações, os mecanismos de hipertermia geralmente não são


mediados pelos sistemas das prostaglandinas. Assim sendo, os medicamentos antitérmicos usuais
podem não ser eficazes e mascarar o quadro clínico. As medidas físicas são mais recomendadas,
incluindo envoltórios úmidos e frios, compressas frias, bolsas de gelo e fricção com esponja úmida.

6 TOXICOLOGIA SOCIAL

Segundo Oga, Camargo e Batistuzzo (2003), a toxicologia social é a área da toxicologia que estuda
os efeitos nocivos decorrentes do uso não médico de fármacos ou drogas, causando danos não somente
ao indivíduo, mas também à sociedade.

Você deve se lembrar, inclusive de outras disciplinas, que por fármaco entende-se uma substância de
estrutura química definida e que quando em contato ou introduzida em um organismo vivo, consegue
modificar uma ou mais funções, e que possuem um emprego benéfico; já droga é a matéria-prima
de origem mineral, vegetal ou animal que contém um ou mais fármacos. A partir desses conceitos,
entendemos que a lidocaína e benzocaína (importantes anestésicos) representam fármacos e que as
folhas de Erythroxylon coca (folhas de coca) representam droga.

283
Unidade II

Observação

Embora as palavras fármaco e droga representem substâncias diferentes


e possuam características diferentes, esses termos podem ser sinônimos,
em algumas situações definidas e específicas.

Atualmente, entretanto, a primeira ideia que a palavra droga implica é a do uso ilícito, sendo este
um problema social marcante na nossa sociedade e que obriga governos do mundo a gastarem valores
extremamente expressivos em virtude da dependência a várias drogas e substâncias ilícitas como
maconha, cocaína, crack, anfetaminas, entre outras. Além disso, existem gastos com consequências
médicas referentes ao uso dessas substâncias, perda de emprego, crimes e acidentes diretamente
ligados ao seu uso.

Você não deve deixar de considerar que muitas substâncias lícitas, como álcool, nicotina (cigarro) e
cafeína (café), além de serem largamente consumidas em muitos países, às vezes acabam por implicar
efeitos tão deletérios como as substâncias ilícitas.

Apenas para ilustrarmos o quanto o aspecto cultural é decisivo para classificar uma substância como
lícita ou não, um exemplo que você pode observar é o Marrocos, país islâmico que segue o que disse
o Profeta aos seus seguidores: que se abstivessem de libações (ato ou efeito de beber), bem como de
tudo o que nubla, ou seja, deturpa a mente. A história dos muçulmanos com o álcool se desenvolveu em
vários relacionamentos, e o Marrocos não é uma exceção, pois trata-se de um país onde, entre os bons
muçulmanos, vivem e descansam muitos europeus com suas ricas tradições alcoólicas. Ou seja, o país
não apresenta um relacionamento com as bebidas embriagantes de forma lícita, como ocorre na Europa
e em muitos países do mundo, entre os quais o Brasil.

Outro exemplo que podemos usar é um país próximo do Brasil, o Uruguai, onde o uso e cultivo
da Cannabis é estipulado como legal tanto de forma recreacional como medicinal. O mesmo
ocorre no Canadá.

Observação

Falaremos com você melhor sobre as aplicações terapêuticas de


derivados da Cannabis posteriormente.

Neste início de tópico é importante que você se familiarize com algumas terminologias que serão
extremamente úteis para que possamos dar sequência e para que você siga uma linha de raciocínio
bem aplicada.

Entende-se como uso não médico de alguma substância a exposição a uma droga ou fármaco
pelo uso ocasional, frequente ou mesmo compulsivo, aceitos ou não pelos padrões de uma sociedade,

284
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

enquanto uso abusivo representa o uso de uma droga ou fármaco, geralmente por autoadministração,
de forma tal que se desvie de padrões médicos e ou socioculturais.

Observação

De acordo com o conceito de abuso, veja que se um indivíduo utilizar


um único cigarro de maconha para experimentar, esse uso é considerado
como abusivo, pois a maconha é uma substância ilícita no Brasil.

Conforme já comentamos, na toxicologia social estudamos os fármacos e drogas que possuem


um potencial para induzir a dependência. Segundo Oga, Camargo e Batistuzzo (2003), há sete classes
que são elencadas como principais: opiáceos, psicoestimulantes (algumas dessas substâncias foram
discutidas no tópico sobre toxicologia de medicamentos), depressores do SNC (também discutidas no
capítulo sobre toxicologia de medicamentos), inalantes, tabaco, Cannabis e substâncias psicodélicas
(alucinógenas). Essa classificação representa um modelo meramente didático, pois sabemos que os
agentes que compõem cada classe possuem mais ações em comum.

6.1 Farmacodependência

Depois de entendermos um pouco melhor alguns conceitos iniciais, falaremos sobre o fenômeno da
farmacodependência.

Segundo Oga, Camargo e Batistuzzo (2014), a farmacodependência em termos comportamentais


representa uma consequência de um comportamento de consumo do fármaco de forma tão frequente
e fortemente reforçado, que este se transforma em resposta dominante. Trata-se, portanto, de um
fenômeno biopsicossocial.

Antes de prosseguirmos, é muito importante que você entenda bem o que significa e a
representatividade do que seja reforço.

Reforço representa a capacidade de um fármaco gerar autoadministração repetida sem a


necessidade de outros mecanismos externos de indução, como a personalidade, alguma doença psíquica
preexistente, a situação socioeconômica e até mesmo uma “pressão” criada por pessoas de grupos a que
esses indivíduos pertençam.

Observação

Discutiremos melhor tipos de reforço e sua representatividade


na farmacodependência.

Falaremos um pouco melhor sobre a farmacodependência.

285
Unidade II

Pois bem, a farmacodependência não é uma condição do tipo tudo ou nada. Há graus variáveis de
dependência, que vão desde o grau mais leve até o mais intenso. Especificamente nos casos mais intensos,
onde há um interesse médico e legal, empregam-se termos de literatura inglesa, como addiction.
Em língua portuguesa, empregávamos o termo vício para designarmos uma dependência extrema,
porém, esse termo adquiriu um sentido pejorativo e foi eliminado do vocabulário técnico. Embora não
tenhamos um vocábulo equivalente a addiction, temos na língua portuguesa o termo adicto, que
significa aficionado. Na verdade, o adicto vive uma condição em que as atividades relacionadas com a
droga, como a aquisição, a administração, a experimentação dos seus efeitos e a condição de suportar os
efeitos negativos quando deixa de usá-la, assumem uma superioridade sobre todas as outras atividades,
embora haja muitas consequências adversas que esse uso possa lhe acarretar. Ocorre, portanto, uma
completa perda do controle voluntário da autoadministração da droga ou substância.

A partir deste momento, combinaremos de utilizar o termo farmacodependente ou dependente.


Dessa forma, contornamos vieses literários e até preconceituosos.

É importante frisar que o uso de uma droga psicoativa não leva necessariamente à dependência. Há
uma grande maioria de pessoas que conseguem controlar o uso dessas substâncias.

Observação

Uma situação muito comum vinculada a essa situação ocorre com o


uso do álcool. Embora a maioria das pessoas utilize a substância, “apenas”
cerca de 5% tornam-se realmente dependentes dela.

Assim, você pode perfeitamente entender que a ocorrência da farmacodependência depende de


fatores de ordem genética, psicológica e social, ou seja, reiteramos aqui o fenômeno biopsicossocial que
já comentamos com você anteriormente.

Outra coisa muito importante sobre a farmacodependência é o fato de que ela não se instala de
um momento para outro: há diversas fases entre o início do uso até a dependência propriamente
dita e extrema. Para tal, há uma dependência da substância (droga) e também uma dependência do
indivíduo, sendo necessário um conhecimento sobre ela para que consigamos determinar em que fase
ela se encontra.

Saiba que os mecanismos neurobiológicos subjacentes, bem como o prognóstico, podem ser
diferentes em cada uma das fases.

Os fenômenos de tolerância, sensibilização, retirada e desejo compulsivo (craving) geralmente


acompanham a dependência. Discutiremos com você tais fenômenos mais à frente.

É importante frisarmos que a aquisição da dependência se dá, em geral, com um dado tipo de droga,
mas há a tendência de expansão para outros tipos de substâncias. A primeira droga, geralmente, é o
tabaco, o álcool ou até mesmo inalantes, seguida da maconha, de substâncias sedativo-hipnóticas,
286
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

psicoestimulantes e, finalmente, opioides. Claro que essa sequência não é fixa, sendo ela passível das
mais variadas formas, dependendo de disponibilidade, custo, aprovação no subgrupo social e até
personalidade do usuário.

Observação

A tendência à busca de novidades de drogas e efeitos é um traço de


personalidade que favorece o uso precoce de múltiplas drogas.

Em algumas situações, uma droga é empregada para contrabalancear os efeitos negativos de outra.

Observação

Em indivíduos que utilizam álcool, observa-se o uso de psicoestimulantes


para aumentar seu efeito. Já com usuários de cocaína, pode-se observar o
uso de sedativos para atenuar seus efeitos estimulatórios.

6.1.1 Papel dos fármacos ou drogas como reforçadores

Como discutimos anteriormente, o reforço é representado pela capacidade de uma substância em


gerar a autoadministração repetida sem a necessidade de outros mecanismos externos de indução. Esse
potencial de reforço ou de induzir a farmacodependência, como definimos e já entendemos, é função
da velocidade e da intensidade dos efeitos reforçadores de uma droga e/ou fármaco.

Lembrete

O reforço é a probabilidade de uma ação se repetir.

Podemos citar a existência de dois tipos de reforço: o positivo e o negativo.

No reforço positivo, o organismo age para obter diretamente uma recompensa, que gera prazer. Isso
não é válido apenas para drogas ou fármacos: também aplicamos isso ao nosso dia a dia, por exemplo,
no prazer que temos quando ingerimos água.

Já no reforço negativo, o organismo age para evitar um mal-estar ou dor. Na falta da substância,
ocorrem os sintomas de abstinência, sensações desagradáveis que levam o indivíduo a repetir o uso da
droga para aliviar esses sintomas.

Veja na figura a seguir a relação entre o reforço positivo e o negativo com as suas respectivas
características. Note que no reforço negativo o comportamento de busca ocorre em detrimento
de um sinal de abstinência (falta provocada pela retirada da substância) e que no reforço positivo
287
Unidade II

o comportamento de busca relaciona-se aos efeitos prazerosos. Discutiremos a presença dos


neurotransmissores adiante, sendo o principal a dopamina.

Uso de drogas

Comportamento de busca

Neurotransmissor Reforço negativo

Síndrome de
Efeitos prazerosos abstinência

Reforço positivo Neurotransmissor

Figura 132 – Correlação entre reforço positivo e negativo

Trataremos agora sobre os dois pontos importantes ligados a esse potencial de indução à
farmacodependência.

Velocidade de reforço

Quanto mais rapidamente um fármaco produzir os seus efeitos reforçadores, maiores serão as
chances de originar um comportamento de consumo repetido em comparação com outro fármaco que
apresente um início lento de ação.

Observação

Por exemplo, a cocaína e a heroína apresentam um potencial maior


em induzir a dependência em comparação com o fenobarbital, pois este
demora mais a produzir efeitos sobre o SNC.

Algo parecido observamos em usuários que continuam a utilizar uma substância mesmo sabendo que
ela poderia lhe causar sérios e graves prejuízos. Isso porque os efeitos prazerosos ocorrem geralmente a
curto prazo, reforçando o comportamento de autoadministração, enquanto as consequências danosas
são de ocorrência tardia para terem um efeito punitivo sobre o comportamento.

288
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Você deverá considerar de forma muito enfática um fator que é muito importante sobre a velocidade
de reforço, que é a escolha da via de administração, pois de acordo com a via de uso é possível se
alcançar um tipo de efeito em um determinado tempo com uma intensidade relacionada.

Observação

A morfina tem maiores chances de induzir a farmacodependência


quando administrada por via intravenosa em relação à via oral, assim como
a maconha fumada em relação ao seu uso oral.

Intensidade de reforço

Um dos avanços mais importantes no estudo dos mecanismos da farmacodependência foi a


descoberta de que animais de laboratório, geralmente macacos e ratos, são capazes de aprender
a injetar drogas psicoativas em suas veias.

O estudo da autoadministração de fármacos ou drogas pela via intravenosa torna-se útil para
investigar os efeitos farmacológicos agradáveis decorrentes da ação de uma substância nos centros de
recompensa do cérebro, que condicionam sua autoadministração contínua (reforço primário).

Saiba que um dos principais experimentos bem conhecidos na toxicologia acerca da


farmacodependência é realizado com macacos Rhesus e ratos, em que se implanta nesses animais um
cateter venoso ligado a uma bomba e a um reservatório com o fármaco que se queira avaliar. É dado
ao animal um livre acesso a uma alavanca e estabelece-se pelo número de vezes que a alavanca é
pressionada uma correlação com propriedades reforçadoras primárias (autoadministração contínua).

No experimento demonstrado pela tabela a seguir, observe que os estimulantes centrais como a
cocaína e as anfetaminas são as substâncias mais potentes entre as avaliadas, seguidas da morfina e
da heroína. Um animal de laboratório consegue pressionar uma alavanca como essa até a morte, em
detrimento do estímulo provocado pelo pressionar da alavanca.

Tabela 9 – Autoadministração pela via intravenosa de fármacos (reforço primário)

Fármacos Animais de laboratório Homem


Psicoestimulantes
++++ +++
Cocaína, anfetaminas
Depressores do SNC
Barbitúricos, benzodiazepínicos ++ +++
Etanol + +++
Opiáceos
Agonistas (morfina e análogos) +++ ++++
Antagonistas (naloxona) - -

289
Unidade II

Fármacos Animais de laboratório Homem


Cannabis - THC ? +
Psicodélicos
- +
LSD e análogos
Antidepressivos e neurolépticos - -
Analgésicos não opioides - -

Adaptada de: Oga, Camargo e Batistuzzo (2003).

Nos dois exemplos que demonstramos, você deve ter percebido que a nicotina não pode ser avaliada
nesse tipo de experimento, pois outros efeitos diretos do fármaco, que não estão relacionados ao reforço,
também afetam a frequência em que o animal pressiona a alavanca.

Tais evidências sobre a relação entre o pressionar da alavanca e a dependência indicam que as drogas
geradoras de farmacodependência têm propriedades parecidas a reforçadores positivos naturais, como
alimento e sexo. Assim, verifica-se que as drogas dotadas de maior potencial de produzir dependência
são aquelas cujo acesso ao SNC é rápido. Em grande parte, essa rapidez dos efeitos centrais depende da
via de administração, em que a inalação gera picos de concentrações da droga no SNC mais rapidamente
do que outras vias. Explica-se com isso o enorme potencial de dependência do cigarro em relação à
nicotina, bem como do crack em relação à cocaína. Logo após a via inalatória, temos a via intravenosa,
seguida da aspiração nasal e da ingestão oral.

Fazemos menção aqui também a outro fator muito importante, que é a duração da ação da
substância. Quando esta é curta, requer repetição frequente para restabelecer o efeito desejado,
fortalecendo assim o condicionamento. Isso ocorre, inclusive, com compostos que pertencem à mesma
classe: aqueles que oferecem curta duração geram mais facilmente dependência em comparação com
aqueles que oferecem uma duração prolongada.

Observação

Um exemplo dentro desse contexto pode ser observado com a heroína,


(possuindo uma T½ biológica de 30 minutos, sendo biotransformada em
morfina, que possui uma T½ biológica de duas horas), é muito mais viciante
que a metadona, com T½ biológica de 35 horas, e também do que o Diazepam
(um benzodiazepínico), que possui uma T½ de 43 horas em média.

6.1.2 Sistema de recompensa cerebral

James Olds, na década de 1950, fez um mapeamento do cérebro do rato, evidenciando zonas de
recompensa. Ele identificou que, pela estimulação de áreas específicas cerebrais, há uma recompensa,
como aquelas que temos naturalmente, como ingestão de água e alimento ou sexo, conforme já
citamos há pouco.

290
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Em oposição a isso, Olds observou que a estimulação de outras zonas do cérebro desencadeava
um comportamento defensivo, como a luta ou a fuga, não se observando uma estimulação, portanto,
repetida. Muito pelo contrário: o animal aprendia a desligar a estimulação quando era acionada pelo
experimentador. Essas regiões, com efeitos opostos à anterior que você viu agora conosco, foram
caracterizadas como zonas aversivas ou zonas de punição.

Além de Olds, outros autores da literatura especializada verificaram que a estimulação elétrica de
regiões nas zonas de recompensa cerebrais induzia a sensações de prazer, enquanto a estimulação das
zonas de punição ou aversivas provocava sensações muito intensas de medo, pavor mortal ou sofrimento.

Segundo Oga, Camargo e Batistuzzo (2003), os fármacos e drogas que causam dependência exercem
seus efeitos reforçadores atuando sobre um conjunto de regiões cerebrais que estão interligadas entre
si por diversos sistemas de neurotransmissores, recebendo o nome de via ou sistema de recompensa.

A distribuição anatômica do sistema de recompensa cerebral ainda não foi totalmente desvendada,
mas é objeto de muito estudos atuais sobre comportamento.

O principal sistema envolvido é o sistema dopaminérgico via mesocorticolímbico, com corpos


celulares localizados entre a área tegmental ventral (ATV) e núcleo accumbens (NAcc), tubérculo
olfatório, córtex frontal, amígdala e área septal. Propõe-se que os fármacos e drogas psicoativos
liberam dopamina (DA) no NAcc, o mesmo ocorrendo com a estimulação elétrica que comentamos
agora há pouco. Esses estímulos estão associados com eventos de reforço ou recompensa.

“Ectasy“

Opioides, álcool
CF (síndrome de retirada)
Hipoc
MCP
PD
NR LC

NAc ATV
PV
HIP
Cocaína, anfetamina,
opióides, nicotina, etanol,
benzodiazepínicos (?) Opioides, sensibilização
(recompensa e síndrome de Benzodiazepínicos, etanol a psicoestimulantes,
retirada) (melhora da ansiedade) nicotina, THC, etanol

Figura 133 – Via dopaminérgica mesolímbica (da área tegmental ventral ao núcleo accumbens),
considerada uma via “comum” a muitas drogas que causam dependência

291
Unidade II

Pelo que você pode observar na figura anterior, nenhuma categoria de fármacos ou drogas age
exclusivamente no sistema mesolímbico, e diferentes classes de agentes farmacológicos ativam o
sistema dopaminérgico por diferentes mecanismos.

Assim, a maioria dos fármacos e drogas psicoativos também podem apresentar alguns efeitos
desagradáveis e até de punição, chamados de aversivos, ainda que sejam utilizados em uma dosagem
que produza reforço. A intensidade desse reforço em determinado indivíduo depende, portanto, de um
equilíbrio entre os efeitos reforçadores (prazerosos) e aqueles punitivos.

6.1.3 Avaliação do potencial de abuso

Para a avaliação do potencial de abuso de uma substância, é preciso se considerar o reforço primário
(mencionado anteriormente), que é principalmente relacionado à velocidade e intensidade do efeito,
assim como o reforço secundário, que passa a ser composto pela neuroadaptação, pela tolerância
metabólica, pela taquifilaxia e pelo fenômeno ou preferência condicionada por lugar. Para tentar
esclarecer melhor esses elementos, falaremos agora sobre cada um deles de uma forma generalizada.

6.1.3.1 Neuroadaptação

A neuroadaptação representa uma alteração no SNC devida à presença de uma droga ou fármaco
que, após uma exposição única ou repetida, passa a se manifestar pelo aparecimento de transtornos
físicos de alta intensidade quando se interrompe o uso, o que se classifica como síndrome de abstinência
(representada por efeitos opostos àqueles ocorrentes pela substância, que se dão quando se está sem
usar a droga) ou ainda pela resposta reduzida para uma mesma concentração no local da ação, fenômeno
este conhecido como tolerância farmacodinâmica.

Observação

Afinal, por que os indivíduos utilizam as drogas de abuso?

As substâncias químicas tanto lícitas como ilícitas que são consideradas


drogas de abuso, por causarem dependência, são viciantes e promovem
o que chamamos de efeitos hedônicos, isto é, um efeito agradável que
leva o indivíduo a querer repetir a sensação, e com o uso repetido, por
serem substâncias viciantes, eles tornam-se dependentes. Mas o que leva o
indivíduo a utilizar as substâncias pela primeira vez é o efeito de prazer que
elas produzem, já que atuam no sistema de recompensa, ativando áreas
como a região mesolímbica.

Alguns conceitos são importantes quando falamos de toxicologia social: dislépticas (modificadoras,
alucinógenas), lépticas (depressoras), analépticas (estimulantes) e psicolépticas (sedativos, calmantes).

292
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Para uma melhor compreensão, vamos dividir as drogas de abuso em três grupos: depressoras,
estimulantes e despersonalizantes.

A) B) C)

Benzodiazepínicos:
Anfetamina: Euforizantes:
- Tranquilizantes
- Inibidores do apetite - Cocaína
- Indutores do sono
Nicotina: Deprimentes:
Barbitúricos:

Despersonalizantes
- Cigarro - Álcool
Estimulantes
Depressoras

- Anestésicos
Cafeína: - Inalantes
- Sedativos
- Café Alucinantes:
- Anticonvulsivantes
- Chá - Maconha
Ópio e derivados:
Efedrina: - Haxixe
- Morfina
- Descongestionante - Cogumelo
- Heroína
Atropina - LSD
- Codeína

Figura 134 – Drogas de abuso depressoras, estimulantes e despersonalizantes: A) Papoula; B) Café; C) Cannabis sativa

6.1.4 Drogas estimulantes do SNC

6.1.4.1 Tabaco

Vamos compreender um pouco mais sobre o tabaco.

Dados epidemiológicos

De acordo com o Inca, o percentual de adultos fumantes no Brasil tem reduzido nos últimos anos
devido às políticas nacionais de controle do tabaco. No período de 1989 a 2010, a queda foi de 46%. No
Brasil, em 1989, cerca de 35% da população acima de 18 anos era fumante, já em 2013 o percentual
reduziu para 15%. E, de acordo com dados da OMS, a prevalência de fumantes no mundo em 2010
variava de 12,4% a 29% dependendo da região. Em relação ao sexo, os homens fumam mais que as
mulheres. Em relação à mortalidade, dados apontam que no ano de 2015, 156.216 pessoas morreram
em decorrência de complicações causadas pelo tabagismo, o que corresponde a 428 mortes ao dia.
Esse valor corresponde a 12,6% do total de mortes que ocorreram no Brasil anualmente (INSTITUTO
NACIONAL DE CÂNCER, 2020).

Composição do tabaco

O princípio ativo mais importante do tabaco é a nicotina, responsável pelo efeito farmacológico
viciante e efeitos adversos.
293
Unidade II

Um cigarro comercial de tabaco possui em média de 10 a 14 mg de nicotina, o que corresponde a


1,5% em peso do cigarro e 95% do conteúdo total de alcaloides (OGA; CAMARGO; BATISTUZZO, 2014).
As vias de exposição são oral, dérmica ou pulmonar. A DL50 para ratos é de 50 mg/kg; para camundongos,
3 mg/kg; e a dose letal para um homem adulto é de 40 a 60 mg.

Fumaça do cigarro

Em 1996, cerca de 4.800 componentes tóxicos foram identificados na fumaça do cigarro de tabaco
e foi detectado que, entre eles, 69 são carcinogênicos em animais e 11, em humanos (OGA; CAMARGO;
BATISTUZZO, 2014).

O caminho que a fumaça percorre segue o que chamamos de corrente primária e corrente secundária.
A corrente primária é constituída por ponta acesa do cigarro, coluna do cigarro e boca durante a tragada;
já a corrente secundária, pela mistura do composto emitido pela ponta acesa para o meio ambiente.

A fumaça inalada pelo fumante é um aerossol composto por duas fases: de vapor ou gasosa e
particulada e condensada. Cerca de 98,9% do volume total da corrente principal de um cigarro sem
filtro (fase de vapor) contêm nitrogênio (73 moles %), oxigênio (10 moles %), dióxido de carbono
(9,5 moles %), monóxido de carbono (4,2 moles %), hidrogênio (1 mol %), argônio (0,6 mol %) e metano
(0,6 mol %).

Saiba mais

Leia mais sobre o tabagismo em:

VIEGAS, C. A. A. et al. Diretrizes para cessação do tabagismo. Jornal


Brasileiro de Pneumologia, v. 30, supl. 2, p. S2-S76, 2004. Disponível
em: https://www.scielo.br/pdf/jbpneu/v30s2/a02v30s2.pdf. Acesso em:
16 out. 2020.

Quadro 11 – Componentes do cigarro

Fase Componentes
Nitrogênio
Oxigênio
Dióxido de carbono
Monóxido de carbono
Fase de vapor ou gasosa
Água
Outros compostos: amônia, óxidos de nitrogênio,
ácido cianídrico, aldeídos (formaldeído, acetaldeído,
acroleína), nitrilas, nitrosaminas e hidrocarbonetos
voláteis (benzeno, estireno, isopreno, butadieno)

294
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Fase Componentes
Nicotina
Hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (benzopireno)
Fase particulada ou condensada Fenol
Nitrosaminas não voláteis
Radioelementos (polônio)

Adaptado de: Instituto Nacional de Câncer (s.d.).

Principais componentes do cigarro de tabaco e o que causam no organismo

O alcatrão é um conjunto de partículas da fumaça do cigarro com exceção da água e dos alcaloides.
É uma mistura de cerca de 3.500 compostos químicos formados durante a queima consequente
da combustão incompleta de materiais orgânicos presentes e é constituído principalmente por
hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, alguns carcinogênicos para o homem. Pode ser responsável
pelo desenvolvimento de câncer e doenças respiratórias graves e os componentes tóxicos do cigarro
podem promover mecanismos aterogênicos, isto é, formação de trombos.

O monóxido de carbono é um dos componentes da fumaça do cigarro que promove efeito asfixiante
e carcinogênico. O efeito asfixiante é devido à formação de carboxiemoglobina, que resulta em
hipóxia tecidual.

A nicotina promove estimulação simpática devido à ligação aos receptores nicotínicos, liberação dos
neurotransmissores adrenalina e noradrenalina e ativação dopaminérgica.

Os efeitos da ação adrenérgica da nicotina são: ação anorexígena, aumento nos níveis do hormônio
antidiurético, redução do débito urinário, taquicardia, aumento da pressão arterial, aumento do débito
cardíaco, aumento da força de contração no coração (inotropismo), aumento da frequência de batimentos
(cronotropismo), vasoconstrição, redução da motilidade gastrointestinal e impotência sexual.

A redução da ansiedade e tensão é um efeito da nicotina e conduz à dependência.

A tríade da inflamação causada pelo tabagismo ocorre pelos toxicantes presentes ou liberados no
cigarro, quando em contato com o endotélio junto com as LDL do sangue, que geram um mecanismo
inflamatório que resulta em formação de trombo. Esses toxicantes correspondentes ao fator exógeno
(do tabaco) associados ao LDL em maior concentração são análogos ao fator endógeno na promoção à
agressão ao endotélio, provocando uma resposta inflamatória e resultando em reparação tecidual para
cicatrização da lesão (aumento da atividade pró-coagulante) do sangue. Para isso, ocorre a formação do
coágulo que forma o trombo, gerando a aterosclerose.

Os principais efeitos tóxicos do tabagismo são: intoxicação aguda (desconforto gastrointestinal,


náuseas, vômito, tontura, cefaleia, tremor, palidez e hipertensão), doenças cardiovasculares (aterosclerose
e trombose), doenças respiratórias (DPOC, enfisema, bronquite crônica e asma) e câncer.

295
Unidade II

Observação

O uso do tabaco na gestação pode ocasionar: parto prematuro,


complicações no parto, descolamento de placenta, retardo no
desenvolvimento na infância, morte infantil, baixo peso para a idade
gestacional e prejuízo no desenvolvimento nos pulmões do feto.

6.1.4.2 Cocaína

A cocaína é um alcaloide presente nas folhas de duas espécies vegetais do gênero Erytroxylum,
sendo conhecida popularmente como coca.
CH3 O
N
CH3
O
O

Figura 135 – Estrutura química da cocaína

Segundo Chasin, Silva e Carvalho (2014), a cocaína é um anestésico local e tem ação simpatomimética,
sendo assim estimulante no SNC. É considerada um dos estimulantes mais potentes de ação central e
por essa razão passou a ser usada como fármaco de abuso.

Padrões de uso

A forma mais utilizada é o pó cristalino composto por cloridrato de cocaína, uma forma que não
pode ser fumada, pois não se volatiliza e decompõe quando em altas temperaturas, é o resultado da
pasta de coca purificada com ácidos, clorídrico ou sulfúrico. É administrada por aspiração nasal, por
via oral ou intravenosa, sendo a melhor absorção por meio da mucosa nasal. Já na forma de base livre,
chamada de COC-base, pode ser fumada, visto que pode volatizar a temperaturas mais altas, cerca de
90 ºC, e ao aquecimento seus vapores podem ser inalados no ato de fumar. A forma fumada, no Brasil,
é conhecida como crack, merla ou oxi.

Toxicocinética

A velocidade de absorção varia de acordo com a forma de administração: quando fumada, oito
segundos; via intravenosa, de três a cinco minutos; e intranasal, 10 a 15 minutos. Concentrações
plasmáticas entre 300 a 900 ng/ml podem ocorrer de um a dois minutos, sendo que as vias intravenosa
e nasal apresentam padrões cinéticos similares, diferenciando pelo fato de a via respiratória apresentar
efeitos mais rápidos. A biodisponibilidade da droga fumada é 70% devido a uma perda de 26% da forma
básica antes de ser inalada em decorrência da decomposição que ocorre no próprio objeto utilizado
296
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

para queima, e a forma intranasal apresenta uma biodisponibilidade de 60 a 80%. A albumina é uma
das principais proteínas responsáveis pela distribuição de toxicantes no organismo. Entretanto, nem
sempre é assim que ocorre. Há substâncias químicas que, dependendo de algumas características, como
sua estrutura química, são distribuídas por outras proteínas plasmáticas, como a alfa-1-glicoproteínas
ácidas. Devido a sua alta lipossolubilidade, pode atravessar as barreiras hematoencefálica e placentária.

Observação

A cocaína em base livre (crack) é a forma mais lipossolúvel da droga


e apresenta uma passagem pelas membranas muito alta. Seu tempo de
latência é muito curto; dessa forma, o início e o fim do efeito é rápido, o
que leva o usuário a repetir a administração logo em seguida, visto que a
droga promove um efeito hedônico intenso. Isso explica por que o crack
vicia mais rápido que outras drogas ou até mesmo comparado com a
cocaína nas formas inaladas e intravenosa.

Eliminação

Pequenas quantidades são excretadas na forma inalterada na urina (cerca de 10%). Os metabólitos
excretados na urina são éster metilecgonina (32 a 49%), benzoilecgonina (29 a 45%) e outros em menor
porcentagem como ecgonina, norcocaína e benzoilnorecgonina.

Toxicodinâmica

Elevação temporária das concentrações de norepinefrina e dopamina e subsequente redução dos


níveis normais, devido ao bloqueio na recaptação de dopamina na fenda sináptica, o que promove os
estados de euforia seguida de depressão.

O uso da cocaína gera um aumento na estimulação dopaminérgica em D1 e D2, o que gera a


euforia e os delírios. O acúmulo de neurotransmissor nos receptores resulta em um mecanismo de
autorregulação, que podemos também considerar uma taquifilaxia. Dessa forma, há depleção da
dopamina nos receptores. Isso resulta em redução do neurotransmissor no cérebro, o que é possível
verificar através das complicações psiquiátricas como sintomas de embotamento social, depressão, falta
de libido, entre outros sintomas, além da síndrome de abstinência.

Efeitos da intoxicação

Taquicardia, aumento da pressão arterial, vasoconstrição, agitação, hipertermia, alucinações,


agressividade, arritmias cardíacas, infarto agudo do miocárdio, atrofia e necrose do septo nasal (forma
inalada), mal formação congênita (uso na gestação) e mal de Parkinson.

297
Unidade II

6.1.4.3 Anfetamina e correlatos

O termo anfetamínico é utilizado para referir-se ao grupo de substâncias compostas pela


anfetamina e seus derivados. Apresentam a estrutura geral beta-fenetilamina e atuam como aminas
simpatomiméticas.

Alguns exemplos de derivados da beta-fenetilamina: anfepramona, femproporex, e ecstasy ou


MDMA (metilenodioximetanfetamina).
NH2

Figura 136 – Estrutura geral das beta-fenetilaminas

Há também outros medicamentos com estrutura química diferente dos citados anteriormente,
porém promovem estimulação simpática semelhante: mazindol (veja a figura a seguir) e
metilfenidato (Ritalina®).

3' R2
4'
2'

HO
6
N
7 n
R1
8 N
9

Figura 137 – Estrutura geral do mazindol

Padrões de uso

No Brasil, é frequente o uso de anfetaminas conhecidas como “rebites” por caminhoneiros. Existe a
procura pelas anfetaminas e correlatos com o objetivo de aumentar o estado de vigília e também para
o emagrecimento, visto que alguns são comercializados como anorexígenos.

Toxicocinética

A anfetamina é absorvida rapidamente pelo trato gastrointestinal com pico de concentração


plasmática para 10 a 15 mg de uma a duas horas e três horas para metilfenidado e menfluramina.
A absorção completa ocorre no período de quatro a seis horas. A ligação às proteínas plasmáticas é de
15 a 16% para metilfenidato e anfetamina e 34% para fenfluramina. Ela atravessa barreira
hematoencefálica. Além disso, 30% da dose terapêutica é excretada inalterada na urina em 24 horas,
298
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

mas sofre influência do pH urinário; sendo assim, na urina ácida (pH entre 5,5, e 6), 60% serão excretadas
inalteradas, e na urina alcalina (pH entre 7,5 e 8), somente 3 a 7%. A meia-vida de eliminação na urina
ácida é de cerca de sete a oito horas, porém na urina alcalina o tempo aumenta para 18 a 33 horas.

Toxicodinâmica

As anfetaminas atuam nos receptores alfa e beta-adrenérgicos e aumentam a concentração de


dopamina na sinapse. Os estudos indicam que devido à similaridade das anfetaminas com dopamina e
norepinefrina, podem atuar como falso neurotransmissor, e a hipótese mais aceita para o mecanismo
seria a liberação direta dos neurotransmissores das vesículas sinápticas, assim como a inibição da sua
recaptação, resultando em um aumento na concentração sináptica.

Efeitos da intoxicação

Os efeitos tóxicos produzidos pelas anfetaminas e derivados são similares aos efeitos produzidos
pelo uso da cocaína.

6.1.5 Drogas depressoras

6.1.5.1 Etanol

Em 2019, o MS informou que 17,9% da população adulta no Brasil faz uso abusivo de bebidas
alcoólicas e que o consumo abusivo aumentou em 42,9% em mulheres. Em relação à mortalidade,
entre 2000 e 2017, 1,45% dos óbitos no Brasil estavam relacionados ao uso abuso de bebidas alcoólicas
(BRASIL, 2019).

Padrões de uso

De acordo com Oga, Camargo e Batistuzzo (2014), as bebidas alcoólicas com teor maior que 14% são
produzidas por meio de destilação. No processo, a bebida fermentada é aquecida até o ponto em que o
álcool é evaporado e separado da água. O álcool evaporado é, então, condensado e coletado, produzindo
a bebida destilada. O produto varia de acordo com a bebida fermentada comparada com a de origem,
como o conhaque, destilado do vinho, e o whisky, do malte.

A concentração de álcool varia de acordo com a bebida, como pode ser visto na tabela a seguir:

Tabela 10 – Teor alcóolico das bebidas

Bebida Teor alcoólico Dose habitual


Vodca, whisky e cachaça 38% a 50% 50 ml
Cervejas com baixo teor de álcool 3% a 5% 350 ml
Cervejas com alto teor de álcool 5% a 8% 350 ml
Saquê 16% 60 ml

299
Unidade II

Bebida Teor alcoólico Dose habitual


Vinho branco e tinto 10% a 15% 150 ml
Champanhe 11% 220 ml

Adaptada de: Ferreira (s.d.).

Toxicocinética

O etanol é uma substância hidrossolúvel rapidamente absorvida no estômago e intestino delgado.


As maiores concentrações plasmáticas são atingidas entre 30 e 90 minutos após a ingestão. O tempo
de esvaziamento gástrico e início de absorção intestinal pode ser retardado devido à presença de
alimentos. Sua distribuição é rápida e ampla em praticamente todos os tecidos. Ele atravessa a barreira
hematoencefálica, atingindo o SNC. A biotransformação ocorre no fígado por oxidação.

Conforme já discutido, o etanol é biotransformado através da enzima álcool desidrogenase, que


o transforma em acetaldeído, o qual, por sua vez, é transformado em acetato através da acetaldeído
desidrogenase. O acetaldeído é um metabólito tóxico responsável pelos sintomas da ressaca. O etanol pode
promover indução ou inibição enzimática e assim potencializa o efeito de algumas drogas (depressores
ou estimulantes do SNC), aumenta a excreção (antibióticos) ou aumenta a toxicidade (paracetamol).

Toxicodinâmica

O etanol atua em vários sistemas de neurotransmissores e neurorreceptores como sistema


adrenérgico, sistema opioide, serotonina, dopamina, acetilcolina, glutamato e cálcio. Podemos
destacar o efeito na elevação, diminuição e ausência de alterações no sistema GABA.

Uso agudo

Alguns dos efeitos agudos do etanol seriam sedação, redução da ansiedade, diminuição da capacidade
e julgamento, desinibição e fala pastosa. A ação principal é depressora, porém em doses baixas pode
ocorrer um efeito estimulante.

Uso crônico

Causa alterações em diversos sistemas, como hematológico, gastrintestinal, neurológico,


cardiovascular e endócrino-reprodutivo, síndrome fetal, tolerância e dependência.

Efeitos da intoxicação

São efeitos a ocorrência de alterações na coordenação motora, amnésia e aumento da agressividade.


As enfermidades que podem ser provocadas são a neuropatia periférica, anemia megaloblástica,
plaquetopenia e leucopenia, desenvolvimento de câncer principalmente no sistema gastrointestinal,
esteatose hepática, hepatite alcoólica, cirrose, gastrites e úlceras, miocardiopatias, hipertensão, elevação

300
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

do colesterol, infarto agudo no miocárdio e AVC. Outros efeitos que são consequências do abuso de
etanol são diminuição da libido, impotência, esterilidade e hipogonadismo e deficiências nutricionais

Tratamento da dependência

Alguns fármacos são utilizados no tratamento de pacientes dependentes de etanol, como dissulfiram,
naltrexona e acamprosato.

6.1.6 Drogas despersonalizantes e alucinógenas

As drogas despersonalizantes são aquelas com potencial para causar alterações sensoriais e
alucinações. Já as drogas alucinógenas, que fazem parte do grupo das despersonalizantes, são aquelas
conhecidas como psicodélicas, que produzem mudanças na percepção, no pensamento e no estado de
ânimo. São capazes de promover estados delirantes, nos quais o indivíduo escuta vozes que não existem
e tem visões deturpadas da realidade e sensações ilusórias. Além das alterações visuais e auditivas,
também ocorrem sensações olfativas, gustativas e táteis.

Algumas pessoas possuem a ideia errônea de que as alucinações sempre são imagens engraçadas,
divertidas, relaxantes ou sensações agradáveis, mas muitas vezes o que ocorre é o que é conhecido como
bad trip, ou seja, uma “viagem ruim” com alucinações bizarras e aterrorizantes que provocam medo,
desespero e tendências suicidas ou homicidas.

Outro fenômeno provocado pelas drogas é o que chamamos de flashbacks, que são transtornos de
percepção pós-alucinatórias; nesse caso, ocorrem episódios de curta duração em que o indivíduo pode
vivenciar os sintomas da alucinação novamente.

As substâncias que causam alucinações são classificadas em três distintos grupos. As que pertencem
ao grupo 1 provocam alucinações somente quando utilizadas em altas doses, como etanol, metais
e hidrocarbonetos. Ao grupo 2 pertencem as substâncias delirantes, como atropina, fenciclidina e
triexifenidila. Já o grupo 3 engloba as substâncias alucinógenas propriamente ditas, como LSD, mescalina
e psilocibina.

As substâncias alucinógenas propriamente ditas são divididas em dois grupos de acordo com sua
composição química e são semelhantes ao neurotransmissor 5-hidroxitriptamina ou à norepinefrina.

6.1.6.1 LSD25 – dietilamida do ácido lisérgico

Sintetizado pela primeira vez pelo químico Albert Hoffmann em 1938, no laboratório farmacêutico
Sandoz. Ele procurava um fármaco para enxaqueca, porém, ao testar a substância, percebeu que ela
promovia efeitos alucinógenos, sendo assim uma droga sintética, derivada de alcaloides do ergot
(principalmente ergotamina) que ocorrem naturalmente no fungo Claviceps purpúrea.

301
Unidade II

Toxicocinética

A absorção ocorre em um período de 15 a 30 minutos após a administração, e a duração do efeito é


de seis horas. O estágio de recuperação varia de 7 a 9 horas após a administração. A distribuição ocorre
em maior proporção nos rins, fígado e pulmões e em menor proporção no tecido adiposo e cérebro.

Etapas da ação do LSD:

1) Período de latência de 0,5 a três horas.

2) Sensações de frio, suor, midríase e dor de cabeça.

3) Medo e angústia.

4) Síndrome psíquica e afetiva.

5) Deturpação na sensação de tempo e percepções alteradas.

6) Deturpação na sensação de espaço com distorção de sons e imagens.

7) Alteração na sensação do próprio corpo.

8) Alterações afetivas.

9) Pensamentos confusos.

10) Alucinações.

Toxicodinâmica

Interage com receptores serotoninérgicos, adrenérgicos e dopaminérgicos. Age como antagonista na


fenda pré-sináptica, impedindo a recaptação de 5HT, e agonista na fenda pós-sináptica, aumentando
5HT na fenda.

6.1.6.2 Plantas alucinógenas

No Brasil, as plantas alucinógenas mais conhecidas são jurema (Mimosa hostilis), beladona (Atropa
belladonna), saia branca, trombeteira ou maxixe bravo (Datura) e o ayahuasca, mistura da Banisteriopis
caapi e Psycotria viridis.

A planta conhecida como jurema é utilizada na preparação de um vinho, bebida típica entre os
índios e nordestinos. Já a beladona é conhecida nas histórias por ter sido muito utilizada em rituais
de bruxaria na Idade Média e mais recentemente é empregada de forma terapêutica, principalmente
em preparações homeopáticas, mas que por possuir os princípios ativos escopolamina e hiosciamina
tem potencial entorpecente, podendo promover alucinações. No passado, essas substâncias eram

302
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

utilizadas como soro da verdade por causar um entorpecimento e deixar o indivíduo em um estado
de hipnose. A planta datura possui os mesmos componentes e também é utilizada pelo seu potencial
em causar alucinações.

O quadro a seguir pontua algumas plantas com características alucinógenas:

Quadro 12 – Plantas alucinógenas

Nome científico Nome popular Princípios ativos


Atropa belladonna L. Beladona Atropina, escopolamina e hiosciamina
Datura sp., Stramonium sp., Dutra sp., Ceratocaulis sp. e Datura Atropina, escopolamina e hiosciamina
Brugmansia sp.
Mimosa hostilis (Mart) Benth. Jurema Dimetiltriptamina
Virola calophylla (Spruce) Warb. e Virola theiodora (Spruce ex Epená Dimetiltriptamina
Benth.) Warb.
Banisteriopsis caapi (Spruce ex Griseb.) C. V. Morton Ayahuasca Harmina e harmalina
Psychotria viridis Ruiz & Pav. Dimetiltriptamina
Tabernanthe iboga Baill. Chacrona Ibogaína
Ipomoea violacea L. Amida do ácido lisérgico
Lophophora williamsii (Lem. ex Salm-Dyck) J. M. Coult. Cacto peiote Mescalina
Myristica fragrans Houtt. Noz-moscada Miristicina
Salvia divinorum Epling & Játiva Sálvia Salvinorina

Adaptado de: Oga, Camargo e Batistuzzo (2014).

O cipó Banisteriopis caapi, nativo da Amazônia, é conhecido como ayahuasca e possui em sua
composição os alcaloides β-carbolinas harmina e harmalina, que atuam como inibidores da MAO. Dessa
forma, o resultado será uma maior concentração de neurotransmissores na fenda sináptica, como
serotonina e adrenalina. Em rituais de seitas religiosas como a Santo Daime e a União do Vegetal, a
ayahuasca é preparada com o cipó em associação com a planta chacrona (Psycotria viridis), que possui
em sua composição o alcaloide indólico N,N-dimetiltriptamina, o qual atua em receptores de setoronina.
Os usuários dessa bebida relatam que, quando estão sob seu efeito, passam por uma experiência mística
e esotérica na qual conseguem ver santos de sua devoção ou entidades esotéricas como gnomos e
fadas. Eles acreditam que realmente estão em contato com essas entidades.

Alguns dos efeitos tóxicos predominantes são o vômito e as cólicas abdominais, o que pode ser
explicado pelo fato de a N,N-dimetiltriptamina agir em receptores de serotonina e o seu efeito ser
potencializado pelas beta-carbolinas que inibem a MAO, aumentando a concentração de serotonina
na fenda sináptica. Quando a serotonina atua nos receptores de 5-HT na zona de gatilho, ocorre o
reflexo do vômito. Porém, esse efeito tóxico é visto pelos usuários das seitas como uma desintoxicação
do organismo.

A dimetiltriptamina, quando administrada por via parenteral, é um potente alucinógeno, porém,


quando administrada por via oral, é inativada pela ação de desaminação sofrida pela ação da enzima

303
Unidade II

MAO intestinal e hepática. Assim, na associação das beta-carbolinas com a dimetiltriptamina, a ação
da MAO é inibida e ocorre o efeito entorpecente.

Figura 138 – Preparação da bebida ayahuasca

Observação

A Salvia divinorum não é encontrada no Brasil. Trata-se de uma planta


mexicana conhecida popularmente como menta mágica e não é a mesma
sálvia comercializada em nosso país. No Brasil, a salvinorina, princípio
ativo da Salvia divinorum, é considerada uma substância psicotrópica sob
controle especial e faz parte da lista F da Portaria 344/MS, de acordo com
a RDC 39, pela Anvisa.

6.1.6.3 Cogumelos alucinógenos

Os fungos com potencial entorpecente mais numerosos e mais importantes pertencem ao


gênero Pcilocybe. O país onde ocorre o maior consumo de fungos alucinógenos é o México. Os
efeitos alucinógenos são produzidos pelos alcaloides psilocina e psilocibina (4-fosforiloxi-N,
N-dimetiltriptamina), que possuem estrutura química semelhante à da triptamina, atuando em
receptores de serotonina.

Alguns dos cogumelos alucinógenos são encontrados nas fezes de vacas e búfalos (veja o
quadro a seguir).

Quadro 13 – Fungos alucinógenos mais conhecidos

Fungo alucinógeno Característica


Amanita muscaria Alucinógeno mais antigo usado pelo homem
Botelus manicus Relacionado à “loucura dos fungos”
Conocybe siligineoides Fungo alucinógeno sagrado utilizado no México
Conocybe cyanescens Encontrado nos EUA, contém psilocibina

304
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Fungo alucinógeno Característica


Cultivado sobre o esterco de vaca. Contém mais de 1,2% de psilocina e
Copelandia cyanescens 0,6% de psilocibina
Heimiella angrieformis Não se conhece sua contribuição química
Panaeolus sphinctrinus Cresce no esterco de vaca
Psilocybe caerulescens Fungo alucinógeno sagrado utilizado no México
Russula agglutina Relacionado à “loucura dos fungos”
Stropharia cubensis Usado por xamãs, possui psilocibina

Adaptado de: Oga, Camargo e Batistuzzo (2014).

Figura 139 – Fungo Amanita muscaria

Figura 140 – Copelandia cyanencens

Uso prolongado de alucinógenos

O uso a longo prazo de substâncias alucinógenas pode levar o indivíduo a mudanças de


comportamento, mas parece não estar associado ao desenvolvimento de uso compulsivo, ou seja, as
pesquisas indicam que a dependência é psicológica.

Quando ocorre o uso de doses altas podem ocorrer episódios psicóticos como estado confuso ou
paranoico, reações esquizofrênicas, reações paranoicas ou delírios de perseguição, alucinose persistente
como feedback negativo e depressão psicótica. Já as manifestações clínicas são hiperexcitabilidade,
descontrole, hipertensão ou hipotensão, convulsões, coma, estados psicóticos prolongados, midríase,
tremor, reflexos exagerados e febre.

305
Unidade II

Tratamento das intoxicações agudas por alucinógenos

O tratamento de intoxicações agudas por alucinógenos consiste em administrar diazepam


0,1 mg/kg via oral. Em caso graves, quando ocorre o coma, realiza-se a intubação do paciente para
eliminação das secreções mucosas da traqueia mediante aspiração. A acidificação da urina pode ser
útil para acelerar a excreção.

6.1.6.4 Cannabis

De acordo com estimativas da OMS, a Cannabis sativa é a droga ilícita mais consumida no mundo,
com 181,8 milhões de usuários em 2016 (NAÇÕES UNIDAS, 2016). A Cannabis sativa é originária da
Ásia Central, e achados arqueológicos indicam que ela é cultivada desde 4000 a.C. Ela possui diversos
metabólitos que podem promover efeitos medicinais e efeitos tóxicos.

Já foram identificados mais de 400 canabinoides na Cannabis sativa. Entre eles, foram isolados
cerca de 70 fitocanabinoides como delta 9-THC, delta 8-THC, canabinol (CBN), canabidiol (CBD),
canabigerol (CBG), canabicromeno (CBC), canabiciclol (CBL), canabielsoin (CBE), canabinodiol (CBDL) e
canabitriol (CBTL). Entre os fitocanabinoides, o delta 9-THC é reconhecido como o principal responsável
pelos efeitos psicoativos.

Toxicocinética

As preparações de Cannabis são consumidas na forma de cigarros ou cachimbos; assim, a absorção


ocorre por via pulmonar. Elas também podem ser incorporadas em alimentos como doces, sendo
ingeridas, ou, em alguns casos, adicionadas a bebidas.

Quadro 14 – Diferenças toxicocinéticas entre as exposições


da Cannabis por via oral e pulmonar

Vias de administração
Toxicocinética
Oral Pulmonar
Velocidade de absorção Lenta e irregular Muito rápida
Biodisponibilidade sistêmica 4 a 12% 8 a 24%
Início 30 a 60 minutos Minutos
Efeitos subjetivos máximos 2,5 a 3,5 horas 8 a 15 minutos
Duração 4 a 6 horas 1 a 3 horas

Adaptado de: Oga, Camargo e Batistuzzo (2014).

As características toxicocinéticas dos fitocanabinoides são a alta lipossolubilidade e o fato de se


ligarem às proteínas plasmáticas (97 a 99% a lipoproteínas e, em menor proporção, à albumina), e
assim são distribuídas em maior proporção no encéfalo, coração, rins, fígado e pulmões e se acumula
intensamente no tecido adiposo. Atravessam a barreira placentária, podem causar alteração no

306
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

desenvolvimento fetal e são excretadas no leite materno durante a lactação, sendo que 70% são
excretados em 72 horas (30% na urina e 40% nas fezes).

Há situações em que uma pessoa precisa realizar um exame toxicológico, como em um concurso,
admissão em um emprego, acompanhamento de usuários de drogas ou controle de dopagem no esporte.
Assim, se essa pessoa for usuária de maconha, o que aconteceria? Depois de quanto tempo após o uso
o delta 9-THC poderia ser detectado?

A janela de detecção para fumantes eventuais varia de dois a quatro dias, e a de fumantes frequentes
pode chegar a um mês. Quando ocorre a ingestão de dois brownies contendo 2,8% de delta 9-THC, ela
seria de seis dias.

Toxicodinâmica e mecanismo de ação

Os endocanabinoides apresentam seletividade variada aos receptores CB1 e CB2, sendo a


anandamida mais seletiva ao CB1 e o 2-AG (2-araquidonil-glicerol) ativo em CB1 e CB2. Os receptores
canabinoides são receptores metabotrópicos; desse modo, o delta 9-THC interage com os receptores
CB1 ou CB2, assim como os endocanabinoides anandamida e 2-AG, e desencadeiam uma variedade
de eventos intracelulares característicos.

Observação

Anandamida é uma palavra que em sânscrito quer dizer felicidade.

Saiba mais

Para saber mais sobre a anandamida e o efeitos dos endocanabinoides,


veja estas referências:

SAITO, V. M.; WOTJAK, C. T.; MOREIRA, F. A. Exploração farmacológica


do sistema endocanabinoide: novas perspectivas para o tratamento de
transtornos de ansiedade e depressão? Revista Brasileira de Psiquiatria,
v. 32, supl. 1, p. S7-S14, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbp/
v32s1/a04v32s1.pdf. Acesso em: 2 dez. 2020.

SOUZA, A. A. F. et al. Cannabis sativa: uso de fitocanabinoides para o


tratamento de dor crônica. Brazilian Journal of Natural Sciences, 2 ed.
v. 1, p. 1-12, 2019. Disponível em: https://bjns.com.br/index.php/BJNS/
article/view/30/26. Acesso em: 2 dez. 2020.

307
Unidade II

Efeitos tóxicos da Cannabis

A toxicidade aguda da Cannabis é considerada muito baixa, e não existem relatos na literatura que
indiquem que possa causar morte por excesso de consumo.

Observação

Dose fatal: 15 a 70 g (dose muito maior do que a inalada por usuários)

DL50: 800 a 1900 mg/kg

Doses baixas de Cannabis (2 a 10 mg de delta 9-THC) podem causar sensação de bem-estar e felicidade
com risos contagiantes, relaxamento, diminuição da ansiedade e sedação, intensificação de experiências
sensoriais, principalmente estímulos visuais, perda de memória recente, dificuldade de concentração,
perda da noção de tempo e espaço, coordenação motora diminuída e paranoide de perseguição. Os
efeitos físicos mais comuns são taquicardia, hipertensão ou hipotensão, olhos vermelhos, hiposalivação
com boca seca e aumento do apetite.

Com o uso na forma fumada a longo prazo, podem ocorrer danos à mucosa e inflamação das
vias aéreas, tosse, catarro, espirros, sinusite, doença pulmonar obstrutiva crônica, bronquite crônica e
enfisema. Também existe o risco de desenvolvimento de esquizofrenia.

6.2 Toxicologia forense e analítica

6.2.1 Introdução à toxicologia forense e à toxicologia analítica

A toxicologia forense pode ser definida como a aplicação da toxicologia com finalidade legal.
Dessa forma, a aplicação mais comum é na investigação de substâncias químicas que podem ser
usadas de forma a causar intoxicação ou morte (KLAASSEN; WATKINS, 2012).

Na investigação da causa da morte, seguimos três etapas: começamos com o histórico da


ocorrência com detalhes; na sequência, realizamos as análises toxicológicas das amostras coletadas;
e finalizamos com a interpretação dos achados analíticos.

O que você pensa sobre a toxicologia forense? É muito comum que as pessoas se lembrem das
séries investigativas em que o perito criminal vai na cena do crime coletar amostras e realiza as análises
para identificação da causa da morte, muitas vezes utilizando equipamentos de análises associados a
métodos computacionais e acessando banco de dados com informações. Nessas séries, podemos ver
procedimentos que são reais, utilizados na vida real, mas também vemos muita ficção. O que será que é
verdade no que vemos nelas? E quais são as funções de um toxicologista forense?

308
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Ele é um profissional especialista em perícia criminal que pode atuar nas várias etapas de uma
investigação, como realizar as análises qualitativas e quantitativas, pesquisar os toxicantes presentes em
fluidos biológicos post-mortem durante a necropsia e interpretar os achados analíticos.

Podemos atrelar duas áreas da toxicologia que estão interligadas: a toxicologia forense e a
toxicologia analítica. A toxicologia analítica utiliza as bases da química analítica para as análises
quantitativas e qualitativas de substâncias químicas que possam causar efeitos adversos a organismos
vivos (KLAASSEN; WATKINS, 2012), enquanto a toxicologia forense tem como funções identificar
substâncias tóxicas nos organismos vivos através de amostras de sangue, urina, cabelo, saliva, entre
outras e analisa substâncias tóxicas no meio ambiente, como em amostras de água, ar ou solo.

Conforme apresentado anteriormente, as substâncias químicas e os agentes tóxicos são


classificados quanto à sua natureza, quanto ao órgão ou sistema em que atuam ou quanto às
características físicas. Quanto à natureza, são divididos em naturais ou sintéticos, e as de origem
natural podem ser minerais, vegetais ou derivados de animais.

Exemplo de aplicação

Pense em exemplos de agentes tóxicos de origem vegetal, mineral e derivados de animais.

Quanto ao órgão ou sistema em que atuam, você já viu na classificação dos agentes tóxicos alguns
exemplos de órgãos-alvo, porém é importante destacar que uma substância é chamada de nefrotóxica
quando é tóxica para os rins, de hepatotóxica quando afeta o fígado, de neurotóxica quando afeta o
SNC e de genotóxica quando causa mutações no DNA.

Em uma análise toxicológica, os toxicantes a serem pesquisados podem ser gases irritantes ou
asfixiantes. Para os irritantes, contaminantes da atmosfera, não há biomarcador; assim, deve-se fazer
a análise do ar. Mas em uma exposição a gases irritantes ou asfixiantes pode existir um biomarcador,
por exemplo, na exposição ao monóxido de carbono, em que o biomarcador será a dosagem de
carboxiemoglobina que pode ser determinada através de amostras de sangue e quantificada por
cromatografia, espectrofotometria ou gasometria.

Observação

O biomarcador é um indicador biológico, um parâmetro fisiológico


ligado a uma doença ou uma classe de doenças. Podem ser feitas medidas
físicas (peso, cor e pressão), medidas químicas (xenobióticos e metabólitos)
ou medidas biológicas (alterações fisiológicas ou celulares).

Na exposição a solventes orgânicos voláteis como n-hexano, podemos investigar a presença de


metabólitos na urina, como o 2,5-hexanodiona, que é um produto da biotransformação do hexano. No
caso de metais pesados, podemos avaliar a presença de contaminantes diretos em alimentos, como a

309
Unidade II

presença de mercúrio em peixes, ou realizar a monitorização terapêutica de pacientes que fazem uso
contínuo de sais de lítio.

Nas análises toxicológicas, podemos detectar os agentes tóxicos através de várias formas, como
substância química inalterada, produto de biotransformação, forma conjugada na urina ou alterações
bioquímicas e hematológicas (veja os quadros a seguir).

Quadro 15 – Substâncias químicas na forma inalterada

Substâncias Amostra a ser analisada


Chumbo Sangue ou urina
Aflatoxina Amendoim
Etanol Ar expirado (bafômetro)
Anfetamina Urina
Lidocaína Plasma
Cocaína Cabelo
Mercúrio Água

Quadro 16 – Produtos de biotransformação

Fonte de intoxicação Produto de biotransformação Amostra biológica


Tolueno Ácido hipúrico Urina
Cocaína Benzoilecgonina Urina
Heroína 6-acetilmorfina Sangue

Alguns agentes tóxicos são biotransformados, e os metabólitos podem ser detectados na urina ou no
sangue, porém algumas substâncias são excretadas na forma conjugada, como a morfina e a Cannabis,
que formam conjugados com ácido glicurônico.

Quadro 17 – Alterações bioquímicas e


hematológicas provocadas por agentes tóxicos

Xenobióticos Alteração
Chumbo Enzima delta-ALA desidratase – redução no sangue e aumento na urina
Organofosforados e carbamatos Inibição da enzima acetilcolinesterase
Anilina e nitrobenzeno Aumento da concentração de metemoglobina no sangue

Em uma investigação forense é necessária a seleção de amostras, e as considerações para a escolha


são a finalidade da análise, a natureza da substância e se há biomarcador.

Se você for realizar uma análise toxicológica post-mortem ou in vivo, quais amostras utilizaria?

310
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Para responder a essa pergunta, devemos fazer algumas considerações. As análises podem ser
in vivo ou post-mortem. Devemos levar em consideração que, se temos um paciente vivo, não
podemos utilizar qualquer amostra, pois temos algumas opções que podem ser utilizadas, as quais
podem ser convencionais ou não convencionais; já no caso post-mortem, podemos utilizar qualquer
tipo de amostra.

6.2.2 Características das amostras

Quando a análise toxicológica é realizada para avaliar intoxicações in vivo, podemos utilizar amostras
convencionais ou não convencionais. As convencionais são as amostras de sangue e urina. Porém, em
situações específicas, pode ser vantajoso o uso de amostras não convencionais como saliva, suor, cabelo
e unha. Cada tipo de amostra apresenta vantagens e desvantagens e é utilizada para determinadas
finalidades, conforme apresentado no quadro a seguir:

Quadro 18 – Vantagens e desvantagens das amostras utilizadas in vivo

Amostra Vantagens Desvantagens


Constituída por água (livre de proteínas) Dificuldade de coleta em paciente
inconsciente
Urina Maior concentração de xenobióticos
Determina somente substâncias utilizadas
Usada para triagem toxicológica a curto prazo
Em análises post-mortem, alguns
Possibilidade de identificação do momento do uso interferentes podem prejudicar o uso da
amostra como:
Sangue In vivo – Correlação do efeito do fármaco x - local da coleta
Concentração no sangue - formação de coágulos
- decomposição
Possibilita determinar drogas de abuso
Pouca quantidade de amostra
Permite paralelos com concentração no sangue
Saliva Somente determina substâncias utilizadas
Facilidade de obtenção por ser não invasivo a curto prazo
Coleta sem constrangimento
Coleta não invasiva e indolor
Suor
Sem constrangimento
Permite a identificação de metais pesados e
drogas ilícitas
Cabelo
Possibilita identificação de substâncias utilizadas a
longo prazo
Permite a identificação de metais pesados e drogas
ilícitas
Unha
Possibilita identificação de substâncias utilizadas a
longo prazo

Adaptado de: Moreau e Siqueira (2008).

Existem algumas características da droga que permitem sua passagem para a saliva. Assim, podemos
fazer a detecção nessa amostra, por exemplo, da lipossolubilidade, assim como identificar se está na
forma não ionizada e não ligada às proteínas plasmáticas.

311
Unidade II

Exemplo de aplicação

Quais drogas você acredita que podem ser detectadas na saliva?

Vamos auxiliá-lo nessa resposta: podem ser encontradas nessa matriz biológia os esteroides,
hormônios, benzodiazepínicos, Cannabis, cocaína, crack, LSD, ecstasy, anfetamina e metanfetamina,
morfina e opioides.

Para ser detectada no suor, a droga ou fármaco precisa ter as mesmas características citadas para
detecção na saliva. As amostras de suor são coletadas para acompanhamento de presos, detentos
e dependentes internados, assim como ocorre com a amostra de saliva.

As amostras de unha são utilizadas para avaliar a intoxicação em recém-nascidos com mães
usuárias de drogas; já as amostras de cabelo, para dopagem no esporte, acompanhamento de usuários
de drogas ilícitas e exposição ambiental. É possível avaliar o período em que ocorreu maior exposição
a determinados toxicantes.

Quando realizamos análises toxicológicas post-mortem, embora possamos utilizar qualquer amostra,
algumas são mais convencionais e outras não são convencionais. As convencionais são amostras de sangue,
órgãos e tecidos (como cérebro, pulmões e fígado), conteúdo gástrico, cabelo e unha. Porém em alguns
casos é necessária a coleta de amostras não convencionais, como a bile, o humor vítreo e as larvas do corpo
em decomposição. O quadro a seguir apresenta as vantagens e desvantagens de cada amostra.

Quadro 19 – Vantagens e desvantagens das amostras utilizados post-mortem

Amostra Vantagens Desvantagens


Permite a detecção de exposição a gases e
Cérebro e pulmões substâncias voláteis
Permite identificar intoxicações por via intravenosa
Tecido pulmonar Maior concentração de fármacos em comparação
com o fígado
Possui maior quantidade de substâncias alcalinas em
comparação com o sangue
Fígado Decompõe muito rápido
Nessa amostra, os agentes tóxicos não sofrem
alterações mesmo post-mortem
Maior concentração de substâncias tóxicas, 1000x
Bile mais comparado com o sangue

Adaptado de: Moreau e Siqueira (2008).

Algumas amostras utilizadas possuem características peculiares, como o humor vítreo, fluido
que se encontra na cavidade posterior do olho, preenchendo o espaço entre o cristalino e a retina.
A quantidade total de humor vítreo obtida gira em torno de 2,0 a 2,5 ml. Como esse líquido faz trocas
de substâncias com o sangue, pode ser usado para a identificação de etanol em corpos carbonizados ou
em decomposição. O conteúdo gástrico é usado para identificar substâncias administradas por via oral,
312
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

na forma inalterada, como o inseticida carbamato conhecido como “chumbinho”. As larvas são utilizadas
quando o corpo está em decomposição e possibilita a identificação de fármacos.

Outras amostras utilizadas em uma investigação criminal são os objetos encontrados na cena do
crime, como copos, xícaras, colheres, frascos, seringas e garrafas.

Exceto em situações em que a investigação é direcionada, existe um padrão na coleta das amostras
post-mortem, conforme o quadro a seguir, em que algumas matrizes sempre são coletadas, seja em
quantidade específica ou todo o conteúdo disponível.

Quadro 20 – Matrizes empregadas nas análises toxicológicas post-mortem

Em quantidade específica Todo o conteúdo disponível


Encéfalo – 50 g Humor vítreo
Fígado – 50 g Bile
Rim – 50 g Urina
Sangue cardíaco – 25 ml Conteúdo gástrico
Sangue periférico – 10 ml

6.2.3 Urgências no atendimento a paciente vivo com suspeita de intoxicação

Em situações em que se atende um paciente vivo, vítima de intoxicação, quando não temos evidências
nem relatos do ocorrido, realizamos uma triagem através de uma amostra de urina, mas também
pode-se utilizar o líquido da lavagem gástrica ou o vômito. Em caso de monitorização terapêutica,
coleta-se o sangue e/ou saliva. No controle de dopagem, as amostras mais comuns são urina, ar exalado
(etanol) e saliva.

A triagem é realizada quando não se conhece o agente tóxico e utiliza-se análise por método
cromatográfico. Para confirmação da intoxicação, utiliza-se outro método analítico, como a
espectrofotometria de massa. Métodos específicos são utilizados quando já existe forte suspeita sobre
o agente tóxico.

6.2.4 Procedimento nas análises post-mortem

As investigações médico-legais são essenciais no caso de mortes violentas como suicídios,


homicídios ou acidentes.

6.2.4.1 Cadeia de custódia

A cadeia de custódia é um documento que o laboratório mantém com o propósito de rastrear todas
as operações realizadas com cada amostra, desde sua coleta até a completa destruição do material. Tudo
deve ser detalhado, desde a sequência dos fatos pelos quais passou a amostra, a identificação de todos

313
Unidade II

que a manusearam, o tempo de manuseio e como a amostra foi rearmazenada ou dispensada. As etapas
seguidas na cadeia de custódia são apresentadas na figura a seguir:

Entrada do cadáver

Coleta das matrizes

Recebimento das amostras

Aliquotagem - Preparação

Testes realizados até a disposição final

Figura 141 – Fases registradas na cadeia de custódia

6.2.4.2 Coleta de amostras

Em uma análise toxicológica post-mortem, são muitas as opções de amostras que podem ser
coletadas, e a escolha está relacionada com o histórico do caso. Pode ser realizada a coleta de sangue,
do humor vítreo ou de amostras de tecido.

As amostras de sangue cadavérico são obtidas por meio de punção das veias subclávia e/ou femoral.
Quando se trata de humor vítreo, destaca-se a angulação de 45º sobre o eixo da seringa, em relação ao
eixo anteroposterior, para a adequada punção da câmara ocular, que deve ser direta. As amostras de
tecido são coletadas separadas (pulmonar, cerebral, renal, hepático etc.).

6.2.4.3 Preparação das amostras

Na preparação da amostra é essencial primeiro remover os interferentes endógenos e analitos


ligados às proteínas por meio de precipitação de proteínas. A liberação dos analitos da amostra
(extração) pode acontecer de três formas: por hidrólises ácida, alcalina ou enzimática, quando os
analitos forem conjugados, por processo de digestão em meio alcalino ou ácido, para liberação de
drogas de abuso do cabelo, ou por mineralização da matriz orgânica, para separação e complexação
de metais por agentes quelantes.

314
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

6.2.5 Clínica médica legal

6.2.5.1 Investigação criminal

Trata-se de perícias realizadas em vivos que acontecem para verificação de direção perigosa ou
investigação de drogas facilitadoras de abuso sexual, violência, roubos, extorsão de dinheiro e outros.
As amostras biológicas coletadas para análise são urina, sangue e ar expirado. As drogas de abuso mais
utilizadas em casos de agressão sexual costumam ser etanol, benzodiazepínicos, maconha, anfetamínicos
e opiáceos. Existem relatos do uso de uma bebida conhecida como ayahuasca, preparada pelo cipó
Banisteriopis caapi e pela planta Psycotria viridis, usada em rituais esotéricos também para abuso sexual.

6.2.5.2 Monitoramento da exposição ocupacional ou terapêutica

Quando o trabalhador é exposto em seu ambiente de trabalho a substâncias químicas que podem
promover toxicidade ao organismo, é necessária a realização de um monitoramento biológico da
exposição. Pode ser analisado o agente tóxico ou seu produto de biotransformação em fluidos
biológicos, cabelo, urina ou ar exalado. O uso prolongado de fármacos pode acarretar alterações na
concentração média do medicamento no organismo, que em alguns casos pode aumentar, gerando
toxicidade, ou diminuir, promovendo redução do efeito. Assim, é recomendado um monitoramento
para controle terapêutico.

6.2.6 Métodos de análise

6.2.6.1 Métodos de análises mais utilizados

Os métodos mais utilizados para identificação de drogas de abuso e xenobióticos em diversas


matrizes biológicas são a cromatografia gasosa (GC), a espectrometria de massas (MS) e a cromatografia
líquida de alta eficiência (HPLC). Porém a cromatografia em camada delgada, por ser um método mais
simples e barato, que permite a identificação de muitas substâncias, é utilizada em muitos laboratórios
de análises toxicológicas. Sendo assim, vale a pena estudarmos um pouco mais sobre o fundamento da
cromatografia e o método de cromatografia em camada delgada (CCD).

6.2.6.2 Técnica de cromatografia

A cromatografia é um método físico-químico de separação dos componentes de uma mistura,


realizada através da distribuição desses componentes entre duas fases, que estão em contato íntimo.
Uma das fases permanece estacionária, enquanto a outra move-se através dela.

Durante a passagem da fase móvel sobre a fase estacionária, os componentes da mistura são
distribuídos entre as duas fases, de forma que cada um dos componentes é seletivamente retido pela
fase estacionária, resultando em migrações diferenciais desses componentes.

A forma física do sistema de cromatografia que define a técnica geral é formada por uma fase
estacionária que pode ser composta de um tubo cilíndrico (cromatografia em coluna) ou uma superfície
315
Unidade II

planar (cromatografia planar) e uma fase móvel que pode ser composta por um gás (GC), um líquido
(HPLC) ou vapor pressurizado (cromatografia supercrítica).

Na fase móvel, a polaridade do sistema de eluentes deve ser aumentada lentamente, com o aumento
da concentração do solvente mais polar, sendo que em alguns casos pode-se usar um único solvente
para a eluição do sistema cromatográfico.

Em um sistema de cromatografia planar, a fase móvel, proveniente de um reservatório, passa


através dos pontos de partida da amostra e arrasta os componentes da amostra durante o processo
de desenvolvimento. Define-se por DR a distância percorrida pelos componentes e por DM a distância
percorrida pela fase móvel.

Os mesmos termos se aplicam a um processo cromatográfico realizado em coluna, desde que os


componentes permaneçam no tubo cromatográfico sem serem eluídos. Contudo, normalmente a
cromatografia em coluna procede com fluxo contínuo da fase móvel, até que todos os componentes
tenham saído da coluna e as suas presenças sejam detectadas pelo detector e indicadas graficamente.
Alternativamente, o eluato pode ser coletado em frações de volumes idênticos, as suas concentrações
medidas e o cromatograma construído, considerando o número do tubo de cada fração equivalente a uma
unidade de distância.

A cromatografia planar pode ser em papel ou em camada delgada. A cromatografia em papel é uma
técnica simples que utiliza pequena quantidade de amostra e tem uma boa capacidade de resolução.
É utilizada principalmente para separação e identificação de compostos polares como antibióticos
hidrossolúveis, ácidos orgânicos e íons metálicos.

Os componentes menos solúveis na fase estacionária têm uma movimentação mais rápida ao
longo do papel, enquanto os mais solúveis na fase estacionária serão seletivamente retidos, tendo uma
movimentação mais lenta.

Isso se explica da seguinte maneira: a celulose é constituída por 2.000 ou mais unidades de glicose
anidra ligadas por átomos de oxigênio, um líquido polar como a água que tem grande afinidade pelas
hidroxilas de cada glicose, formando pontes de hidrogênio, ficando retido e funcionando como fase
estacionária, e os líquidos menos polares (solventes orgânicos) são repelidos por esta estrutura e
funcionam como fase móvel.

A forma mais simples da cromatografia em papel é a cromatografia ascendente, que utiliza uma
tira de papel de comprimento e largura variáveis, em função da cuba cromatográfica a ser utilizada.
Marca-se com lápis o ponto de partida da amostra, a 2 cm de uma das bordas do papel, e marca-se
também a linha de chegada da fase móvel (ou frente do solvente), geralmente distando 10 cm do ponto
de partida. Dependendo da largura do papel, pode-se colocar apenas uma alíquota do padrão ou da
amostra, centralizando-se essa aplicação na linha de partida.

No caso da possibilidade de colocar-se mais de uma alíquota no ponto de partida, deixa-se 2 cm


de distância das bordas laterais e um intervalo entre os pontos de aplicação de 1,5 a 2,0 cm. A largura
316
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

da tira do papel, acima da linha de chegada da fase móvel, deve ser igual ao diâmetro interno da cuba,
de maneira que o papel fique suspenso na vertical, impedindo de deslizar-se para baixo. O nível da fase
móvel deve ficar abaixo do ponto de partida da substância, devendo sempre haver uma boa vedação da
cuba cromatográfica para que não se perca o vapor dessa fase.

Por capilaridade, a fase móvel começa a se movimentar em fluxo ascendente, rapidamente no início
e diminuindo gradativamente até parar por completo quando a força ascendente da capilaridade for
neutralizada pela ação da gravidade.

Quando a fase móvel atingir a linha de chegada, geralmente a 10 cm do ponto de partida, retira-se
o papel da cuba cromatográfica e seca-se a tira de papel com secador de cabelo com ar quente ou frio
até eliminar-se a fase móvel.

No caso de mistura de substâncias de componentes coloridos, à medida que ocorrer a separação, a cor
única se desdobrará em cores distintas em função do número de substâncias que a compõem. No caso de
misturas de substâncias incolores, pode-se detectar (revelar) esses componentes por técnicas diversas.

A análise qualitativa de uma substância realiza-se através de seu Rf determinado, utilizando-se


a expressão:

Rf = Distância (cm, mm) percorrida pela substância


Distância (cm, mm) percorrida pela frente da fase móvel

Mede-se a distância percorrida pelo soluto em um tempo determinado, desde o ponto de aplicação
ou ponto de partida da amostra até o centro da mancha, e a distância percorrida pela fase móvel, desde
o ponto de partida até o ponto extremo atingido por ela, Lc, a linha de chegada da fase móvel.

O Rf é uma constante física de uma determinada substância, desde que se observem as características
do papel, a quantidade e qualidade da fase móvel, a temperatura, o volume e a concentração da
substância aplicada.

Para a visualização da mancha formada pela amostra é necessária a utilização de um agente


cromogênico como revelador. Ele é borrifado sobre o papel usado na cromatografia, sendo cada amostra
uma mistura de substâncias como íons inorgânicos e inseticidas.

Existem na literatura fontes que informam qual deve ser a solução reveladora (agente cromogênico)
a ser empregada, qual a técnica de preparo e modo de conservação, qual a sensibilidade e quais as
substâncias detectadas por certos reveladores.

Muitas substâncias orgânicas absorvem radiações de luz ultravioleta e tornam-se fluorescentes. O


papel, quando tratado com solução de fluoresceína, frequentemente destaca as manchas, tornando-as
amarelo-esverdeadas, brancas ou azuis. Entretanto, as substâncias que absorvem a luz UV aparecem
como manchas escuras sobre um fundo fluorescente azulado, normalmente apresentado pelo papel.

317
Unidade II

Podem ser usadas lâmpadas UV de onda curta (240-260 nm) e onda larga (360 nm) para visualização da
mancha formada pela amostra.

Outro método de cromatografia planar é a cromatografia em camada delgada (CCD), que segue a
mesma técnica da cromatografia em papel, porém, a fase estacionária será uma placa de vidro, alumínio
ou outro suporte inerte tratado por uma camada fina formada por um sólido granulado, geralmente
sílica-gel. Essa técnica consiste na separação dos componentes de uma mistura através da migração
diferencial sobre uma camada delgada de adsorvente retido sobre uma superfície plana. Ela apresenta
vantagens por ser de fácil compreensão e execução, promover separações em breve espaço de tempo e
ser versátil, de grande reprodutibilidade e baixo custo. Os adsorventes mais usados são sílica (SiO2), terra
diatomácea, celulose ou poliamida.

6.2.6.2.1 Tipos de sílica

A sílica tem caráter fracamente ácido e é empregada na separação de compostos lipofílicos como
aldeídos, cetonas, fenóis, ácidos graxos, aminoácidos, alcaloides, terpenoides e esteroides, usando o
mecanismo de adsorção. Existem cinco tipos de sílica: sílica G (contém aglutinantes como gesso e amido
ou talco), sílica H (não contém aglutinantes), sílica P (para uso em camada preparativa), sílica F (contém
substâncias fluorescentes) e sílica R (adsorventes extra puros, sem aditivos).

6.2.6.2.2 Preparação das placas

Na preparação da placa, misturam-se cerca de 30 g de sílica com 60 a 70 ml de água destilada. Essa


quantidade de suspensão é suficiente para preparar cinco placas de 20 x 20 cm, com uma espessura da
camada ao redor de 0,3 mm.

A terra diatomácea é adsorvente neutro amplamente empregado como suporte nas separações por
partição. Pode ser encontrada com ou sem aglutinante. Na preparação de placas, utilizam-se as mesmas
proporções citadas para a sílica, ou seja, uma parte de adsorvente para duas partes de água destilada.

A celulose é empregada como suporte da fase estacionária líquida em cromatografia por partição ou
troca iônica. Para preparação de cinco placas de 20 x 20 cm, misturam-se 25 g de celulose com 90 ml de
água destilada, agitando-se em agitador por dois minutos antes de colocar na placa de vidro.

A poliamida é empregada com mais frequência na separação de fenóis e de ácidos carboxílicos. Sua
maior utilização é comprometida pela dificuldade em se preparar as cromatoplacas no laboratório, em
função de sua baixa aderência ao vidro. Para preparação das placas, recomenda-se fazer a suspensão de
15 g de pó em 60 ml de metanol, previamente purificado. Estas quantidades são suficientes para cinco
placas de 20 x 20 cm e 0,3 mm de espessura.

Para a aplicação das amostras nas cromatoplacas, as gotas devem ser aplicadas 1,5 a 2 cm acima do
bordo inferior, evitando-se que fiquem mergulhadas na fase móvel quando a placa for colocada na cuba.

A distância entre cada gota é de aproximadamente 1 cm, evitando-se sempre que haja contato entre
as gotas de soluções.

318
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Em placas preparativas, uma solução concentrada da amostra é aplicada na forma de faixa ou linha
horizontal, cerca de 2 cm acima do bordo inferior da placa.

A técnica de CCD é uma técnica muito utilizada para triagem em muitos centros de controle de
intoxicação. O mais comum é a utilização de urina como amostra biológica para triagem de fármacos
e drogas de abuso, visto que é uma amostra de fácil coleta, disponível em grandes volumes e com
concentrações altas de substâncias comparadas ao soro. Na urina, os fármacos, drogas de abuso e
xenobióticos podem ser excretados inalterados, na forma de metabólitos ou conjugados com ácido
glicurônico ou sulfato.

Quando o conteúdo gástrico é coletado nas análises post-mortem, é uma matriz que pode ser bem
interessante, já que nessa amostra podemos identificar as substâncias na sua forma inalterada. Já o
sangue (plasma ou soro) é utilizado para análises quantitativas pós-triagem na urina.

6.2.7 Análise de drogas no cabelo

Existem matrizes que não são convencionais nas análises toxicológicas, porém muito úteis e de fácil
coleta para detecção de algumas substâncias, como o cabelo. A incorporação de xenobióticos ao cabelo
ocorre por difusão passiva a partir do sangue, e algumas propriedades físico-químicas das substâncias
determinam o seu acúmulo no cabelo, como lipossolubilidade e se está na forma livre no plasma. Outro
mecanismo é a difusão por secreções corporais como sebo e suor durante a formação da haste do cabelo.

Estima-se que o cabelo cresce cerca de 1 cm ao mês, o que equivale à janela de detecção do uso
de drogas no período de 30 dias. Para que o exame detecte o uso de substâncias de um período de até
90 dias, necessitamos de uma amostra de 4 cm de cabelo, contando a partir da base do folículo. Se não
for possível a coleta de uma amostra nessa medida, retiramos amostras de pelos corporais, pois eles
apresentam um crescimento mais lento. O procedimento de coleta é rápido e prático. É imprescindível
realizar a descontaminação da amostra antes da análise para eliminar possíveis resíduos de drogas na
parte externa do cabelo ou pelo.

E qual técnica utilizamos para essa análise? Quais drogas podemos detectar através de amostras de
cabelo ou pelo?

O teste quantitativo é realizado por cromatografia líquida ou gasosa acoplado à espectrometria


de massa quando o resultado da triagem for positivo. Podemos detectar uma ampla
quantidade de substâncias como anfetaminas (mazindol, femproporex, anfepramona, ecstasy,
metilenodioxianfetamina), maconha (THC e metabólitos), cocaína, opiáceos (morfina, heroína),
hormônios e metais pesados.

Uma vantagem no uso de amostra de cabelo é que possibilita um histórico cronológico da exposição
ao agente tóxico, como em situações de acidentes ambientes. É possível avaliar se no período em que
ocorreu a exposição houve maior acúmulo de substâncias tóxicas. Sabendo que o cabelo cresce cerca
de 1 cm ao mês, é possível dividi-lo em partes de acordo com o tempo e dosar as concentrações
em cada parte.
319
Unidade II

Saiba mais

A Lei n. 13.103/15 determina que os motoristas devem submeter-se


a exame toxicológico com janela de detecção mínima de 90 dias e a
programa de controle de uso de drogas e de bebida alcoólica, instituído
pelo empregador, pelo menos a cada dois anos e seis meses.

Leia essa lei na íntegra em:

BRASIL. Lei n. 13.103, de 2 de março de 2015. Brasília, 2015. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13103.
htm. Acesso em: 2 dez. 2020.

6.2.8 Testes rápidos para identificação de drogas de abuso

Na apreensão de drogas ilícitas é comum a realização de testes por reagentes cromogênicos. Os


testes rápidos consistem em promover reações de coloração com a utilização de reativos específicos para
determinada classe de fármacos. Dessa maneira, é realizada uma triagem, sendo possível determinar a
classe farmacológica da droga suspeita.

Quando a droga é recebida pelo laboratório de investigação toxicológica, podemos identificá-la


inicialmente pela aparência. A maconha, por exemplo, é comercializada na forma de tabletes prensados
no formato de tijolos ou já fragmentado em porções pequenas. Já a cocaína é um pó branco, sendo
geralmente vendida fracionada em tubos tipo Eppendorf® ou em saquinhos. O LSD são papéis, geralmente
de seda, com diferentes figurinhas como desenhos coloridos. As anfetaminas como o ecstasy são
comprimidos. Por sua vez, o crack são pedrinhas amareladas, como apresentado na figura a seguir:

Figura 142 – Amostras de drogas ilícitas apreendidas

320
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Para identificação da THC, principal componente da maconha, é necessário primeiro fazer a extração
do THC com algum solvente orgânico, por exemplo, uma mistura de éter clorofórmio. Pingamos um
pouco desse extrato em um papel de filtro e uma quantidade de reativo fast blue diluída em água e
aplicada sobre a amostra. A reação produz uma coloração avermelhada.

Reativo Fast blue

Solvente éter
clorofórmio para
extração do princípio
ativo THC

Resultado: coloração avermelhada

Figura 143 – Teste colorimétrico para identificação de THC com reativo fast blue

Figura 144 – Kits para teste rápido

Existem kits de testes rápidos também utilizados por peritos para identificação rápida de drogas,
que podem ser utilizados no próprio local da apreensão. Um dos testes é uma ampola como a que
pode ser visualizada na foto, a partir da qual é realizado o teste de Duquenois-Levine. A ampola possui
uma solução composta por acetaldeído e vanilina em etanol 95%. Colocamos a amostra suspeita para
maconha dentro da ampola e misturamos nesse reagente. Logo em seguida, quebramos a tampa da
ampola na qual se localiza uma quantidade de ácido clorídrico fumegante que escorre pela parede do

321
Unidade II

tubo e, ao entrar em contato com o extrato obtido inicialmente, reage, promovendo uma coloração
violeta que indica positivo para droga.

Para a identificação de cocaína ou crack é utilizada a técnica de Scott e Mayer. O reagente de Scott é
composto por uma solução de tiocianato de cobalto 2% e glicerina. Pingamos esse reagente na amostra
suspeita e observamos a mudança de cor. A coloração azul indica que a amostra é cocaína ou crack,
porém é necessário fazer uma confirmação, pois pode ocorrer falso-positivo. Dessa forma, pingamos
uma gota de HCl 0,1N; se continuar azul, confirmamos o resultado positivo.

6.3 Dopagem no esporte

6.3.1 Histórico

O termo dopagem ou doping é utilizado quando o indivíduo usa substâncias químicas ou métodos
para obter vantagens sobre os outros em determinadas competições (YONAMINE; ALMEIDA, 2014). A
finalidade da dopagem é aumentar a força, resistência e tamanho, assim como obter maior velocidade
nas competições, porém o consumo excessivo pode resultar em toxicidade, gerando efeitos adversos e
em alguns casos pode levar ao óbito. A história apresenta vários registros sobre a prática da dopagem
com finalidade estimulante e para aumentar a capacidade no trabalho e nos esportes. Como podemos
ver no quadro a seguir, esses registros são muito antigos.

Quadro 21 – História da prática de dopagem

Tempo Lugar Dopagem


Plantas com efeitos estimulantes como a machuang para
Há 5000 anos China aumentar sua capacidade no trabalho
Atletas olímpicos já utilizavam ervas e cogumelos com
800 a.C. Grécia potencial entorpecente.
Data Incas consumiam folhas de coca (cocaína) misturadas com
América pré-colombiana
desconhecida café, guaraná, castanha e chá-mate (cafeína)
Século III d.C. Roma antiga Gladiadores utilizavam estimulantes misturados com álcool
Uso de “bolinhas” contendo estimulantes como cocaína e
1896 Atenas efedrina

Adaptado de: Comitê Olímpico Brasileiro (2006).

Em tempos mais recentes, muitos atletas foram suspensos ou perderam suas medalhas por acusarem
dopagem. Daiane dos Santos (2009) e Cesar Cielo (2011) foram suspensos pelo uso de furosemida
(diurético). O último alegou erro na manipulação do suplemento que utilizava. Ben Johnson, nas
Olimpíadas de Seul (1988), venceu os 100 m rasos, mas foi suspenso por dois anos, perdendo sua
medalha de ouro devido ao uso de estanozolol (anabolizante). Ele alegou que foi sabotado e que usava
esteroides nos treinos, mas que era orientado e estaria livre do anabolizante no período do exame de
doping, pois interrompia o uso antes das competições. Maradona, jogador de futebol argentino, foi
pego no exame antidoping pelo uso de cocaína (1991), sofrendo suspensão de 15 meses, e efedrina, na
Copa de 1994, com suspensão de 18 meses. O ciclista Lance Armstrong, que ganhou diversos troféus

322
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

e medalhas durante sua carreira, perdeu todos os títulos e foi banido do esporte após confessar em
um programa americano de televisão que utilizava eritropoetina, testosterona, cortisona e dopagem
sanguínea. Nas Olimpíadas de 2016, a nadadora chinesa Chen Xinyi (hidroclorotiazida), a atleta búlgara
Silvia Danekova (eritropoetina), o halterofilista quirguiz Izzat Artykov (estricnina), o ciclista brasileiro
Kleber Ramos (CERA) e, no levantamento de peso, os irmãos Tornaz e Adrian Zulinski (nandrolona) foram
pegos no exame de dopagem.

Nos esportes com torneios prolongados, como futebol, vôlei e basquete, os exames antidopagem são
realizados de forma aleatória por sorteio. Já nos esportes de temporada, como atletismo e natação, os
exames são realizados nos vencedores das provas ou quando o atleta está sob suspeita.

Nas grandes competições, todos os vencedores realizam os exames de dopagem, e as amostras ficam
guardadas para novas análises futuras caso surjam técnicas de detecção de dopagem. Outra análise que
tem sido cogitada é a genética, visto ser uma nova forma de dopagem.

O Comitê Olímpico Internacional (COI), que foi criado em 1967, elaborou uma lista de substâncias
e métodos proibidos no esporte, visto que o uso de substâncias estimulantes é uma prática comum
entre os atletas. O objetivo é proteger a vida dos atletas e garantir a igualdade entre os participantes
das competições.

A entidade que monitora e acompanha o código mundial antidopagem é a Wada – World


Anti-Doping Agency (Agência Mundial Antidopagem).

Quadro 22 – Substâncias e métodos proibidos no esporte

Categoria Substâncias e métodos proibidos


S0 – Substâncias não aprovadas
S1 – Agentes anabolizantes
Substâncias proibidas S2 – Hormônios peptídicos, fatores de crescimento, substâncias correlatas e miméticos
nas competições e fora
das competições S3 – Beta-2-agonistas
S4 – Moduladores hormonais e metabólitos
S5 – Diuréticos e mascarantes
M1 – Manipulação de sangue e componentes sanguíneos
Métodos proibidos nas
competições e fora das M2 – Manipulação química ou física
competições
M3 – Doping genético e celular
S6 – Estimulantes
Substâncias e S7 – Narcóticos
métodos proibidos em
competição S8 – Canabinoides
S9 – Glicocorticoides
Substâncias proibidas P1 – Betabloqueadores
em alguns esportes

Adaptado de: World Anti-Doping Agency (s.d.).

323
Unidade II

Saiba mais

Veja a lista completa de substâncias proibidas no doping:

WORLD ANTI-DOPING AGENCY. Código mundial antidoping. [s.d].


Disponível em: https://www.cob.org.br/pt/documentos/download/559d2e
6f27321/. Acesso em: 2 dez. 2020.

Substâncias não aprovadas

Esse item indica que substâncias que não forem aprovadas para uso humano são proibidas em
todos os períodos, isto é, nas competições e fora delas.

Incluem-se aqui as drogas em fase pré-clínica ou clínica do desenvolvimento, as drogas


descontinuadas, designer drugs (análogos estruturais) e substâncias aprovadas apenas para uso
veterinário.

As designer drugs são as drogas de abuso derivadas de opioides, anfetamínicos, triptamínicos,


piperazinas e canabinoides.

Saiba mais

Leia mais sobre o assunto no texto a seguir:

BULCÃO, R. et al. Designer drugs: aspectos analíticos e biológicos.


Química Nova, v. 35, n. 1, p. 149-158, 2012. Disponível em: https://www.
scielo.br/pdf/qn/v35n1/v35n1a27.pdf. Acesso em: 29 nov. 2020.

6.3.2 Substâncias proibidas nas competições e fora delas

6.3.2.1 Agentes anabolizantes

A finalidade é aumentar a massa muscular em esportes que exigem força e velocidade. Alguns
exemplos de esteroides anabolizantes androgênicos são clostebol, estanozolol, testosterona
(Durateston®), metiltestosterona, nandrolona (Deca-durabolin® e Durabolin®) e oxandrolona. Eles
podem produzir alguns efeitos tóxicos como hipertensão, infertilidade, aumento da chance de ataque
cardíaco, hipertrofia cardíaca, insuficiência cardíaca, neoplasias hepáticas, hepatite e hepatomas e
efeitos feminilizantes e virilizantes.

324
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

6.3.2.2 Hormônios peptídicos, fatores de crescimento, substâncias correlatas e miméticos

Vamos agora compreender melhor como os hormônios podem agir no organismo e conduzir a um
aumento na performance do atleta.

Eritropoietinas

A eritropoietina é um hormônio sintetizado e secretado pelos rins que estimula a medula óssea a
produzir eritrócitos e, consequentemente, aumenta a oxigenação nos músculos. Aqui temos dois tipos:
os agonistas do receptor de eritropoietina, como eritropoietinas (EPO), darbepoetinas (dEPO) e derivados
da Epo, como metoxipolietilenoglicol (CERA), e também os agentes ativadores do fator induzível por
hipóxia, como cobalto e daprodustat (GSK1278863).

Podem produzir efeitos tóxicos leves, como náuseas, ansiedade, dores de cabeça e febre, ou mais
graves, como hipertensão arterial, infarto do miocárdio e morte súbita.

Observação

As eritropoietinas são utilizadas principalmente por ciclistas.

Hormônios peptídicos e seus fatores de liberação

Você saberia dizer quem são esses hormônios e qual é a finalidade do uso nas práticas esportivas? E
o que podem causar de efeitos adversos?

Esses hormônios são utilizados por estimularem a síntese de proteínas, aumentando a massa muscular,
promoverem a hipertrofia, repararem dano muscular localizado e ativarem células musculares precursoras.

E afinal, quem são eles?

Você já deve conhecer a gonadotrofina coriônica (CG), o hormônio luteinizante (LH) e seus fatores de
liberação no homem, como busserelina, deslorelina, gosserelina e triptotorelina, as corticotrofinas e seus
fatores de liberação, como corticorelina, e os hormônios de crescimento (GH), fatores de crescimento e
moduladores de fatores de crescimento.

Alguns dos efeitos adversos e tóxicos produzidos pelas substâncias citadas são ginecomastia (CG),
gigantismo e acromegalia (GH), diabetes, reações alérgicas e hipertrofia miocárdica.

6.3.2.3 Beta 2-agonistas

Sua finalidade é aumentar a resistência e diminuir a fadiga muscular. São fármacos usados na
terapêutica para tratamento da asma e outras complicações respiratórias, como fenoterol, formoterol,
salbutamol e terbutalina.
325
Unidade II

Observação

Os agonistas beta-2 são broncodilatadores utilizados via inalatória para


o tratamento da asma. O uso oral desses fármacos aumenta a resistência
e diminui a fadiga. Para alcançar esse efeito, é necessária uma dose 10 a
20 vezes superior à usada para inalação. Todos os agonistas beta-2 são
proibidos nos esportes, e somente mediante apresentação de declaração
terapêutica o salbutamol, o salmeterol e o formoterol são permitidos na
forma inalatória.

6.3.2.4 Moduladores hormonais

Os modulares hormonais são agentes com atividade antiestrogênica utilizados para aumentar
a concentração de testosterona plasmática e diminuir a ginecomastia e a retenção de água. Alguns
exemplos são os inibidores da aromatase, como 2-androstenol, anastrozol e letrozol; os moduladores
seletivos do receptor de estrogênio, como tamoxifeno e raloxifeno; e outras substâncias antiestrogênicas,
como clomifeno.

6.3.2.5 Diuréticos e agentes mascarantes

Sua finalidade no esporte é a redução do peso corpóreo, mascarando o consumo de outros agentes
dopantes e reduzindo a sua concentração na urina.

Observação

Esses fármacos são utilizados no esporte principalmente para redução


do peso em modalidades de esportes onde há divisão por categoria de peso,
como boxe, judô, halterofilismo e outros.

Alguns exemplos são a clortalidona, a furosemida, a indapamida e a espironolactona, que podem


causar efeitos adversos e tóxicos como desidratação, cãimbras musculares, diminuição do volume
sanguíneo, doenças renais, hipotensão ortostática, alteração do ritmo cardíaco e perda acentuada de
sais minerais.

6.3.3 Métodos de dopagem

6.3.3.1 Manipulação de sangue e seus componentes

A transfusão sanguínea é uma forma de dopagem proibida. Tem como finalidade melhorar o
transporte de oxigênio no organismo, aumentar a capacidade de manter o pH muscular e auxiliar
no controle da temperatura corpórea, aumentando também a resistência do indivíduo, mas pode

326
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

gerar efeitos perigosos como formação de trombose venosa, flebite, septicemia, reações alérgicas
e doenças infecciosas.

6.3.3.2 Manipulação química ou física

É um método usado para adulterar ou tentar adulterar amostras coletadas durante o controle de
dopagem. Pode ser a substituição de amostras ou adição de proteases à amostra.

6.3.3.3 Dopagem genética ou celular

São formas de dopagem modernas e que ao longo do tempo tendem a progredir. Atualmente,
algumas técnicas já são conhecidas, mas a tendência é que, com o conhecimento de novas formas de
modificação genética e celular, novos itens sejam incorporados nesse quesito.

São exemplos o uso de ácidos nucleicos ou seus análogos que possam alterar a sequência genômica
e/ou alterar a expressão genética e o uso de células normais ou geneticamente modificadas. Qualquer
agente farmacológico ou biológico que possa alterar a expressão gênica e melhorar o desempenho do
atleta é proibido no esporte.

6.3.4 Outras substâncias proibidas

6.3.4.1 Estimulantes

Sua finalidade é aumentar o desempenho, o estado de alerta e a competitividade e reduzir o


cansaço. Alguns exemplos são os estimulantes não especificados, como anfepramona, anfetamina,
cocaína, fenproporex e metanfetamina, e os estimulantes especificados, como efedrina, epinefrina,
estricnina, metilfenidato e pseudoefedrina. Podem produzir efeitos adversos e tóxicos, como
alteração da temperatura, hipertensão, taquicardia e arritmias, midríase, ansiedade, crises convulsivas,
aumento da agressividade, delírios, efeitos cardiovasculares e morte súbita.

Os estimulantes são utilizados por jogadores de futebol americano para aumentar a concentração
(doses mais baixas) ou aumentar a agressividade (doses mais altas), em corredores e nadadores para
aumentar a energia e nos jóqueis para redução do apetite e do peso.

6.3.4.2 Narcóticos

São os analgésicos narcóticos usados para diminuir a dor, utilizados principalmente por ciclistas, no
boxe e em outros esportes de luta.

Você sabe quais são os analgésicos narcóticos?

São a morfina e derivados como fentanil, diamorfina (heroína), metadona, oxicodona e


oximorfona. Podem causar depressão respiratória e cardiovascular, redução da testosterona, alterações
gastrointestinais, confusão mental e dependência.
327
Unidade II

6.3.4.3 Canabinoides

Sua principal finalidade no esporte é a redução da ansiedade. O uso de canabinoides no esporte é


controversa, pois há mais evidências de prejuízo ao desempenho do atleta do que benefícios.

6.3.4.4 Glicocorticoides

Os glicocorticoides promovem efeitos neuroestimulatórios nos receptores cerebrais, como


atenuar sensação de fadiga e efeitos anti-inflamatórios e analgésicos. Alguns exemplos são
betametasona, budesonida, cortisona, dexametasona, hidrocortisona e prednisolona. Podem causar
efeitos adversos e tóxicos, como osteoporose, resistência à insulina e doenças cardiovasculares, o
que não é desejável para um atleta.

6.3.4.5 Betabloqueadores

Os betabloqueadores são utilizados para tratamento de doenças cardiovasculares como insuficiência


cardíaca, angina e hipertensão. Mas, então, por que é utilizado no esporte?

Para compreender melhor isso, vamos imaginar um arqueiro como Robin Hood, que precisa ter
precisão e tranquilidade para acertar as flechas. Imagina se ele começar a tremer e sentir taquicardia,
como seria o final da história? Da mesma forma, atletas que praticam modalidades como arco e flecha,
golfe, dardo, esportes de tiro e jogos de bilhar precisam de firmeza nas mãos e tranquilidade para melhorar
sua concentração e acertar seu alvo. Os betabloqueadores são utilizados nesse caso, por reduzirem o
tremor e o estresse e aumentarem a precisão e a exatidão, além de amenizarem sintomas de ansiedade,
como taquicardia. Você conhece essa classe de fármacos? São exemplos: atenolol, bisoprolol, carvedilol
e propranolol. Porém, essas substâncias podem provocar tontura, letargia, sonolência, distúrbios visuais,
insônia e depressão.

6.3.5 Controle antidopagem e métodos analíticos

Os controles seguem os códigos mundiais antidopagem e os padrões nacionais. O processo de


controle de dopagem segue cinco etapas:

• Seleção dos atletas

• Notificação dos atletas

• Coleta das amostras

• Análise das amostras

• Gestão dos resultados

328
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Os controles podem acontecer dentro ou fora de competição. Em competição por sorteio, acontecem
com base na classificação obtida ou segundo outro critério específico. Já os controles fora de competição
podem ser realizados a todo momento, em qualquer lugar e sem aviso prévio.

O atleta selecionado dentro de um grupo-alvo deverá informar sua localização em determinado


período. O atleta poderá ser submetido ao controle de dopagem em casa, em seu lugar de treinamento
ou em outros lugares apropriados. O processo de notificação é o mesmo em competição ou fora de
competição. Um agente mostrará suas credenciais para comprovar que está autorizado a fazer o teste.
Em seguida, mostrará os deveres e direitos do atleta e solicitará que assine a notificação.

Em competição, uma vez notificado, o atleta deve apresentar-se imediatamente à estação de


controle de dopagem. O atleta poderá solicitar adiamento do teste por uma razão válida, como participar
de uma cerimônia de entrega de medalhas, realizar uma entrevista com a imprensa ou necessitar de
cuidados médicos.

A partir da notificação, o oficial de controle ou escolta permanecerá com o atleta enquanto todo o
processo de controle tenha sido concluído. Durante o processo, o atleta tem direito ao acompanhamento
de um representante, que deverá cumprir também algumas responsabilidades. Primeiro, o agente irá
pedir ao atleta um documento de identidade válido com foto e em seguida solicitar o fornecimento de
amostras de urina, sangue ou ambas. Quando estiver pronto a fornecer a amostra, o agente do mesmo
sexo acompanhará todo o processo de coleta, até que o atleta tenha fornecido uma amostra válida.

Será pedido ao atleta que divida a amostra de urina em dois frascos (A e B), lacrando ambos. Ele será
a única pessoa a manipular o kit de coleta de amostras, a menos que peça ajuda.

Ao final, o atleta deverá conferir e assinar o formulário de controle de dopagem e as amostras


coletadas. Uma cópia do formulário que não revela sua identidade será enviada a um laboratório
acreditado pela agência mundial de antidopagem, e cópias serão encaminhadas a organizações
antidopagens responsáveis pelo teste e ao atleta.

Quando a amostra A chegar do laboratório, ela será aberta e analisada. A amostra B permanecerá
armazenada em um lugar seguro e só será analisada a pedido do atleta.

A análise das amostras para controle de dopagem deve ser realizada conforme os procedimentos
previstos no padrão internacional para laboratórios, e as amostras somente podem ser analisadas em
laboratórios credenciados e aprovados (WADA-AMA, 2020).

A amostra de urina é a mais comum nas análises antidopagem. Deve ser coletada uma amostra com
75 ml, sendo dividida em duas partes. A primeira parte corresponde a 50 ml e é utilizada nas análises,
enquanto a segunda corresponde a 25 ml e fica armazenada para uma contraprova. A contraprova é
feita a pedido do atleta e a análise deve ser paga por ele.

329
Unidade II

As técnicas mais utilizadas para análise das amostras são cromatografia gasosa, espectrometria de
massa e ensaios imunológicos para hormônio. Análises de sangue também são utilizadas, principalmente
para identificar EPO.

As análises toxicológicas na identificação de dopagem são divididas em duas etapas, a triagem e a


confirmatória. As amostras que acusam positivo na triagem passam para as análises confirmatórias, em
que poderão ser realizadas técnicas mais especificas.

O laboratório informará os resultados para a organização antidopagem responsável por sua gestão.
Uma cópia será enviada a uma agência mundial antidopagem para assegurar a integridade do processo.
Em caso de resultado analítico adverso, o atleta tem direito de solicitar a análise da amostra B nos
prazos definidos, apresentar defesa e apelar da decisão.

Os procedimentos de controle de dopagem são importantes para combater a dopagem, protegendo


o direito dos atletas e promovendo competições mais justas.

Resumo

A exposição a substâncias químicas presentes no ambiente de


trabalho pode ser responsável por significativos casos de intoxicação. No
Brasil, nos últimos anos, tem havido aumento no número de casos de
intoxicação ocupacional.

Um dos principais desafios da toxicologia ocupacional é prevenir a


intoxicação do trabalhador. Para isso, realiza-se a monitorização ambiental
e a biológica. Na monitorização ambiental, verifica-se a intensidade
de exposição do trabalhador à substância química que está presente
no ambiente de trabalho, e na monitorização biológica, verifica-se a
presença da substância química inalterada, produtos de biotransformação
ou alteração bioquímica precoce em matrizes biológicas, para estimar a
intensidade de exposição.

Os limites de exposição ocupacional no Brasil são delineados pelo


Ministério do Trabalho. Entretanto, essas informações são compiladas de
agências internacionais, como a ACGIH.

Dependendo da toxicidade da substância química produzida ou


utilizada no ambiente de trabalho, o monitoramento ocorre por parâmetros
distintos. Dessa forma, substâncias que apresentam risco de intoxicação
na exposição crônica são monitoradas pelo TLV-TWA, substâncias químicas
que apresentam risco de dano tecidual irreversível, irritação ou narcose
são monitoradas pelo TLV-STEL e, por fim, substâncias com importância na
toxicidade aguda são monitoradas pelo TLV-C (ceiling).
330
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

A escolha de bioindicador, matriz biológica, amostragem e técnica


analítica adequados são fundamentais para que haja resposta fidedigna
para os objetivos relacionados à prevenção da intoxicação.

A intoxicação por medicamentos assume, nos dias atuais, uma das


grandes causas de intoxicação ocorrentes. Por isso, exploramos nesta
unidade a incidência dessas intoxicações, bem como descrevemos as
principais classes de fármacos envolvidas nesses episódios.

Esta unidade também versou sobre alguns dos psicofármacos


envolvidos em intoxicações, bem como anti-inflamatórios não esteroidais,
além do manejo de tratamento para intoxicações medicamentosas, como
as medidas de suporte, medidas de descontaminação do TGI e medidas que
possam contribuir com a eliminação desses agentes.

Ainda trouxemos uma discussão acerca da conduta laboratorial


analítica, com os principais testes realizados e sua interpretação.
Apresentamos uma discussão sobre as diversas síndromes tóxicas que
exigem uma conduta clínica e manobras na tentativa de revertê-las, em
que destacamos as intoxicações de urgência (intoxicações agudas) com
suas condutas clínicas e práticas executadas.

Apresentamos um conteúdo bem detalhado sobre toxicologia clínica


voltado à monitorização terapêutica e suas práticas executadas na prevenção,
diagnóstico e tratamento das intoxicações envolvendo fármacos.

Encerramos com um detalhamento sobre os principais antídotos


empregados no tratamento às principais intoxicações.

Na toxicologia social, tivemos a oportunidade de compreender como


diferentes substâncias químicas agem na neuroquímica de um organismo,
condicionando seu comportamento.

Também tivemos a oportunidade de verificar por que algumas


substâncias químicas apresentam elevado potencial de reforço enquanto
outras apresentam baixo potencial de reforço, assim como as consequências
dessas características a quem se expõe a essas substâncias químicas.

Foi possível, ainda, contextualizarmos os principais bioindicadores


de exposição a algumas substâncias psicoativas e, consequentemente,
caracterizar a matriz biológica de escolha para a identificação e
quantificação dessas substâncias.

331
Unidade II

Exercícios

Questão 1. Leia o texto a seguir:

A toxicologia forense é a aplicação da toxicologia com propósitos legais, com o principal objetivo
de detectar e quantificar as substâncias tóxicas eventualmente presentes em situações criminais.
Portanto, toxicologia forense e legislação se sobrepõem. A toxicologia forense ainda é uma área em
desenvolvimento e está sempre incorporando as novas tecnologias disponíveis na área analítica. Além do
avanço tecnológico, a toxicologia forense também se moderniza constantemente, pois novos “venenos”
são descobertos diariamente. Observa-se que, a princípio, a confirmação de um crime baseava-se
apenas em suspeitas e indícios. Diante da necessidade de desvendar corretamente um caso, técnicas de
identificação foram estudadas, desenvolvidas e colocadas em prática. Partiram de níveis simples
de complexidade, chegando nos dias atuais aos mais avançados níveis moleculares. Com o dinamismo
dessa ciência, o aperfeiçoamento das técnicas tende a evoluir cada vez mais, acompanhando a evolução
tecnológica dos recursos disponíveis às pesquisas científicas.

Fonte: AIELLO, T. B.; PEÇANHA, M. P. Análise toxicológica forense: da ficção científica à realidade.
Revista Eletrônica de Biologia (REB). v. 4, n. 3, 2011. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/
reb/article/view/9833%26gt/0. Acesso em: 27 set. 2020.

O texto mostra claramente que a toxicologia forense é uma área em constante atualização. Analise
as afirmativas a seguir elaboradas sobre esse tema.

I – Os materiais disponíveis para análise forense são os mais diversos possíveis, o que aumenta muito o
grau de dificuldade de execução desse tipo de análise. As matrizes biológicas utilizadas na caracterização
da exposição humana, em testes in vivo, são urina, plasma, sangue, saliva e cabelo. Também podem ser
usadas matrizes alternativas, como suor, unha, mecônio, tecidos e cabelos de recém-nascidos.

II – As matrizes biológicas normalmente utilizadas na caracterização da exposição humana, em


análises post mortem, são sangue total (aorta, cavidade cardíaca e femoral), humor vítreo e vísceras,
como fígado, rins e cérebro.

III – As principais técnicas de análise toxicológica aplicáveis a esse contexto incluem métodos
clássicos não instrumentais, como os testes colorimétricos, e métodos mais sofisticados, como os
imunoensaios (testes imonulógicos) e a cromatografia: cromatografia em camada delgada (CCD),
cromatografia gasosa (CG) e cromatografia líquida de alta eficiência (HPLC ou CLAE).

332
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Assinale a alternativa correta:

A) Apenas a afirmativa I é correta.

B) Apenas a afirmativa II é correta.

C) Apenas as afirmativas I e III são corretas.

D) Todas as afirmativas são corretas.

E) Nenhuma afirmativa é correta.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: devemos ter atenção para o fato de que se trata de um material in vivo, o que faz com
que algumas matrizes ainda estejam disponíveis ou possam ser facilmente coletadas, sendo as principais
a urina, o plasma, o sangue, a saliva e o cabelo.

II – Afirmativa correta.

Justificativa: devemos ter atenção para o fato de que se trata de uma análise post mortem, ou seja,
feita a partir de um cadáver, e tal situação apresenta algumas limitações. Por isso, as principais matrizes
a serem coletadas são o sangue total (aorta, cavidade cardíaca e femoral), o humor vítreo e as vísceras
(fígado, rins e cérebro).

III – Afirmativa correta.

Justificativa: para a execução das análises toxicológicas, é fundamental que o laboratório ofereça
métodos analíticos simples e inequívocos, e isso pode variar de acordo com a disponibilidade de
recursos. Há métodos que usam procedimentos manuais e outros que mecanizam o processo.
De qualquer forma, há a requisição de técnicas de fácil execução e com respostas rápidas, como os
testes de triagem, e de técnicas mais específicas, baseadas em um princípio de detecção diferente
e que concretizam uma etapa confirmatória. Para que o resultado da análise seja considerado
positivo, o resultado da triagem e da confirmação devem ser positivos. Cabe ao toxicologista forense
escolher qual técnica é mais apropriada para a análise, baseando-se em critérios como aplicabilidade,
sensibilidade, seletividade, precisão e exatidão da técnica, além da disponibilidade e do custo da
análise. Todos os métodos apresentados na afirmativa são válidos.

333
Unidade II

Questão 2. Leia o texto a seguir:

O consumo de drogas segue aumentando no Brasil, tornando-se maior a preocupação da área


de segurança pública. Nesse contexto, a toxicologia forense utiliza cada vez mais as amostras não
convencionais como o cabelo, que apresenta vantagens como longa janela de detecção e viabilidade
de coleta em cadáveres com estágio avançado de decomposição. Assim, este estudo propõe
desenvolvimento, validação e aplicação de uma metodologia para quantificação de benzoilecgonina
em amostras de CB, empregando a cromatografia líquida de alta eficiência (CLAE) com detector de
arranjo de diodos (DAD).

Fonte: CRUZ, A. C. H. D. C. Quantificação de cocaína e seu produto de biotransformação, benzoilecgonina, em amostras de cabelo:
desenvolvimento, validação e aplicação de método. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Ciências Biológicas, Programa de Pós-Graduação em Farmacologia, Florianópolis, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
handle/123456789/189745. Acesso em: 27 set. 2020.

Com base nas informações apresentadas e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas.

I – A droga em questão é a cocaína, que apresenta marcante efeito depressor do sistema nervoso
central e é quase toda eliminada em sua forma original inalterada pela urina, cabendo à benzoilecgonina
acumular-se no cabelo.

II – A droga em questão é uma anfetamina de uso comum por profissionais que precisam ficar
acordados durante muito tempo (por exemplo, caminhoneiros e vigilantes), o que faz dela um potente
estimulante do sistema nervoso central.

III – A droga em questão é uma potente depressora do sistema nervoso central, e a intoxicação
por ela tem como possíveis efeitos taquicardia, aumento da pressão arterial, agitação, alucinações
e agressividade.

Assinale a alternativa correta.

A) Apenas a afirmativa I é correta.

B) Apenas a afirmativa II é correta.

C) Apenas as afirmativas I e III são corretas.

D) Todas as afirmativas são corretas.

E) Nenhuma afirmativa é correta.

Resposta correta: alternativa E.

334
TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a droga em questão é a cocaína, mas, ao contrário do que se afirma, ela não é depressora,
e sim estimuladora do SNC. Além disso, apenas uma pequena parte (cerca de 10%) é eliminada na forma
original inalterada pela urina.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: o erro está em considerar a droga em questão como a anfetamina. É possível


identificá-la como cocaína por meio de seu metabólito comum, a benzoilecgonina, conforme
mencionado no enunciado.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: os efeitos da intoxicação por cocaína estão corretos, mas a afirmativa peca ao
considerar que essa droga seja depressora do SNC.

335

Você também pode gostar