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),
Reforma Política e Cidadania, São Paulo, Fundação Perseu Abramo,
2003]
ENGENHARIA E DECANTAÇÃO
1
Pippa Norris, “The Twilight of Westminster? Electoral Reform and its Consequences”,
trabalho apresentado à reunião anual da American Political Science Association,
Washington, DC, 31 de agosto a 2 de setembro de 2000, p. 4. Veja-se também, da
mesma autora, “Choosing Electoral Systems: Proportional, Majoritarian and Mixed
Systems”, International Political Science Review, vol. 18(3), julho de 1997, número
especial sobre o tema “Contrasting Political Institutions”, editado por Jean Laponce e
Bernard Saint-Jacques (www.pippanorris.com).
1
política mais ou menos recente, nas quais desaparecem até os custos sombrios
da longa ditadura de 1964). Cabe reconhecer a dialética que se dá entre o que
tenho chamado o “institucional como contexto”, em que os produtos da ação
política vêm a amadurecer com o transcurso do tempo, impregnando o
contexto social geral e condicionando, em conseqüência, as percepções e
disposições dos agentes em seu dia-a-dia, e o “institucional como objeto”,
onde se trata do fato de que vivemos fatalmente no presente (na conjuntura) e
de que é nas ações e nas apostas do dia-a-dia que construímos, quer
queiramos, quer não, os produtos que acabam por adquirir aquela
impregnação contextual e a transformar-se em instituições autênticas. O
reconhecimento da existência de automatismos e espontaneísmos, portanto,
não pode pretender dispensar-nos do empenho de reflexividade e de ação
lúcida – ação que será tanto mais lúcida justamente quanto mais tenha em
conta as complexidades e constrições do contexto.
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regime eleitoral e partidário demasiado apegado a um ideal representativo,
quando o desejável seria o bipartidismo...2
2
Hélio Jaguaribe, “Sistema Político e Governabilidade Democrática”, conferência
pronunciada na Escola Superior de Guerra em 5 de maio de 1999 e publicada no
mesmo ano na série Idéias & Debate do Instituto Teotônio Vilela, Brasília, no. 30.
3
Veja-se Luiz Carlos Bresser Pereira, “Cidadania e Res Publica: A Emergência dos
Direitos Republicanos”, Filosofia Política, Nova Série, vol. 1, 1997.
4
A discussão mais extensa do texto de Bresser se encontra em Fábio W. Reis, “O
Republicano e o Liberal: Comentários ao Artigo de L. C. Bresser Pereira”, Filosofia
Política, Nova Série, vol. 1, 1997.
3
quais todos os cidadãos de boa-vontade deveriam naturalmente convergir, e
reduzindo o problema político-administrativo à eficiência ou à boa
“governança”. Mas a tensão eficiência-democracia permeia, na verdade,
diferentes aspectos das indagações relacionadas com as reformas políticas, e o
mesmo unilateralismo quanto a ela pode ser apontado, em muitos casos, entre
aqueles cuja ênfase se dirige antes aos valores democráticos – com
consequências que, tudo somado, podem revelar-se negativas mesmo do
ponto de vista da democracia. Pois o objetivo de assegurar a democracia
enfrenta ele próprio, naturalmente, um desafio de eficiência, e o problema
geral é o de construir a aparelhagem institucional capaz de entronizar e
garantir o devido equilíbrio entre as duas perspectivas.
5
Vejam-se Samuel Huntington, Political Order in Changing Societies, New Haven, Yale
University Press, 1968, e Samuel Huntington, "The Democratic Distemper", em Nathan
Glazer e Irving Kristol (eds.), The American Commonwealth (Basic Books, Nova York,
1976), versão abreviada do capítulo de Huntington sobre os Estados Unidos no
relatório para a Comissão Trilateral preparado por ele em colaboração com Michel
Crozier e Joji Watanuki sob o título The Governability of Democracies.
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pretender contar com eficiência, ou seja, com um Estado capaz de fixar e
perseguir os seus próprios objetivos, enquanto a adaptabilidade não é senão
outra maneira de expressar o anseio pelo Estado aberto e democrático. Mas
como equilibrá-las? Instituições políticas demasiado autônomas não poderão
ser apropriadamente adaptáveis, enquanto excessiva adaptabilidade resultará
necessariamente na perda de autonomia. Não admira que Huntington,
“realista” propenso a se deixar sensibilizar sobretudo pelo grau de governo (ou
a capacidade efetiva de governar, por contraste com a forma mais ou menos
democrática de governo), tenha cometido erros dramáticos de avaliação que
revelam as dificuldades do assunto: sua propensão “realista” o leva a perder
de vista, no exame de casos concretos, a dimensão “burkeana” e o caráter
inevitavelmente moroso do processo de construção institucional, que envolve
certa “tradicionalização” e “sacralização” cívica dos mecanismos e
procedimentos criados, como condição de que possam vir a garantir o
compromisso estável (necessário para a observância do requisito de
adaptabilidade institucional) entre forças e interesses diversos. Daí que, em
seu erro mais espetacular, os esforços institucionais desenvolvidos no
Paquistão de Ayub Khan tenham sido tomados por Huntington como caso
exemplar de boa construção institucional – pouco tempo antes de que o país
fosse varrido por sangrentos conflitos em que até mesmo sua integridade
territorial terminou por ver-se comprometida.6
5
substituindo-a pela mediação realizada pelo jogo articulado de lideranças e
forças partidárias no âmbito do poder legislativo. Daí a ênfase dada pelos
parlamentaristas ao incremento da “função governativa”, ou da eficiência
governamental, destacando os inconvenientes envolvidos no “governo
dividido” (expressão crescentemente utilizada pelos próprios analistas
americanos a respeito de seu presidencialismo supostamente bem-sucedido)
que resulta da legitimação popular direta tanto do presidente quanto do
Congresso, com a correspondente autonomia dos poderes.
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fazendo piorar as coisas, pois se trataria de instaurar institucionalmente a
duplicidade de responsabilidades no próprio plano dos encargos e atribuições
tradicionalmente ligados ao poder executivo. Como quer que seja, no que se
refere à questão mais geral envolvida, cabem certamente muitas dúvidas
quanto a como equacionar, com os elementos que surgem do confronto entre
presidencialismo e parlamentarismo ou de sua possível combinação, a
eventual resposta adequada ao desafio de equilibrar representatividade
democrática e eficiência administrativa nas condições brasileiras.
7
autenticidade levaria a pulverizar os mecanismos de representação de maneira
que acabaria por chocar-se com a própria idéia de representação: por que não
representar as “tendências” dentro de cada pequeno partido – ou, no limite,
por que não “representar” cada indivíduo como tal? É provavelmente
desnecessário salientar a relevância de considerações como essas para a
mitologia que predomina no Brasil a respeito da natureza dos partidos, que,
para serem “autênticos”, são vistos como devendo ser também partidos
“ideológicos” e apegados a certa identidade referida a valores (a ponto de que
a própria Justiça Eleitoral se tenha sentido autorizada, em nome da
consistência e da autenticidade ideológica e com o apoio de muita gente, à
absurda imposição recente da “verticalização” quanto às coalizões eleitorais).
Naturalmente, essa mitologia remete a certo modelo de “política ideológica”
em que cada partido acena a parcelas específicas do eleitorado (especialmente
a diferentes classes sociais) e ocupa um lugar bem definido no espectro que
vai dos partidos de orientação socialista e revolucionária (os primeiros
“partidos de massas”, na terminologia de Maurice Duverger), num extremo, ao
radicalismo conservador ou de direita, no outro. Mas esse modelo, na verdade,
não se realizou senão fugazmente em certos países, com os partidos
revolucionários de massas aos poucos se “eleitoralizando” e assumindo traços
próprios dos “partidos de quadros” de origem parlamentar e orientação
pragmática (ainda que também estes últimos tenham assumido, por sua parte,
algumas características dos partidos de massas). É claro que essa reorientação
pragmática (que está longe de resultar em que os partidos sejam todos
transformados em meras “legendas de aluguel” ou em entidades de natureza
“fisiológica”) é a mesma que presenciamos atualmente na trajetória do
principal partido brasileiro de esquerda, o PT, marcada pelo esforço de
equilibrar a afirmação da identidade partidária e dos princípios ideológicos com
a atenção para os imperativos de eficiência tanto no plano eleitoral quanto no
eventual exercício do governo.
De todo modo, se a ênfase na identidade e na ideologia acarreta
dificuldades para os que se apegam ao valor da representatividade
democrática e à representação proporcional como expressão dela, os que
defendem as formas majoritárias de representação estão longe de se acharem
a salvo de dificuldades análogas. Além das conhecidas distorções produzidas
na representação dos partidos, mesmo presumidamente “autênticos”, é
obviamente possível questionar a consistência e realidade, em termos
sociopolíticos, dos próprios distritos nos quais se obtêm as supostas maiorias.
A experiência mais negativa a ser lembrada aqui é a das práticas que se
tornaram conhecidas, nos Estados Unidos, sob o nome de gerrymandering, em
que o território eleitoral é dividido de forma arbitrária e caprichosa para
atender a um ou outro partido ou foco de interesses (práticas estas que
emergiram de novo como tema saliente ainda há pouco, a propósito do peso
da população negra em certos distritos eleitorais). O que não significa,
naturalmente, que não se possa ter em distritos territoriais de porte municipal
ou análogo entidades socioeconomicamente homogêneas e politicamente
relevantes – capazes, talvez, como Luiz Felipe de Alencastro propôs em
debates sobre o assunto, de se articularem à margem dos espaços
representados pelos Estados, com conseqüências potencialmente importantes
se se trata de ter representação “autêntica”.
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Considerados os variados matizes dos problemas relacionados, creio que
a posição sensata a respeito das formas de representação levaria a que se
desse atenção especial à proposta de introdução do chamado voto “distrital
misto”. Pois o princípio que ele procura consagrar, bem ou mal, corresponde
justamente ao empenho de conciliar os valores de representatividade e
eficiência, os quais, diferentemente do que se pretende, não têm
correspondência necessária quer com a ênfase proporcionalista nos partidos,
quer com a ênfase majoritária em distritos definidos territorialmente.
Preservado espaço para a necessária discussão dos muitos pormenores
envolvidos (critérios apropriados na constituição das listas partidárias,
definição da unidade de cálculo da representação proporcional etc.), este é,
talvez, com todas as concessões necessárias ao espírito “burkeano” e ao
reconhecimento da necessidade da “decantação” tancrediana, um terreno
especialmente propício à experimentação institucional, envolvendo mudanças
menos dramáticas do que a da eventual implantação do parlamentarismo, por
exemplo, bem como a possibilidade de se atuar de maneira gradual e
prudente.
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O exame da tensão entre democracia e eficiência, com seus
desdobramentos em termos da agregação e da formação de maiorias em
contraposição à representatividade democrática e à expressão de identidades,
pode na verdade ser levado ao nível do alcance a ser dado à própria regra da
maioria como regra democrática supostamente fundamental. Se os parágrafos
anteriores nos sensibilizaram para as qualificações que a preocupação de
eficiência pode trazer ao empenho de afirmação democrática de identidades (e
dos interesses correspondentes), há aspectos do problema geral em que, ao
contrário, somos levados a atentar para os limites a serem impostos à
operação da regra da maioria em nome de valores afins à identidade e à
autonomia.
Tomemos o exemplo da questão da fragmentação partidária. O
empenho de conter essa fragmentação se tem traduzido em dispositivos legais
que deliberadamente favorecem os partidos maiores contra os menores:
“cláusulas de barreira”, exigindo que os partidos alcancem certos limiares na
votação obtida como condição de que venham a ter presença parlamentar, ou
regras como as que computam os votos em branco em favor dos partidos de
maior votação. Os que se opõem a dispositivos como esses às vezes recorrem
a argumentos que invocam a importância da expressão autêntica de certas
identidades partidárias (os pequenos partidos “históricos”, por exemplo),
argumentos estes que se expõem às dificuldades que vimos associarem-se em
geral com a ênfase na identidade. Mas às vezes invocam também a
impropriedade do tratamento desigual dos cidadãos pela lei que estaria
contido nos dispositivos em questão. Ora, essa objeção se aplica à
consagração legal da própria idéia de maioria.
Com efeito, bem ponderadas as coisas, o princípio verdadeiramente
democrático – o único de fato compatível com uma concepção intransigente da
autonomia dos cidadãos – é o princípio da unanimidade, em que as questões
sobre as quais cumpre decidir são objeto de discussão livre e eventual acordo
entre os interessados (o ideal da “democracia deliberativa”, como tem sido
chamado recentemente). Estamos tão habituados a conviver corriqueiramente
9
com a regra da maioria que tendemos a esquecer que ela não é senão um
expediente destinado a contornar as insuperáveis dificuldades práticas do
princípio da unanimidade. O fundamento do recurso a esse expediente consiste
no artifício de tomar a unanimidade como algo que poderia ocorrer em graus
diversos: mais votos em certa direção, “maior unanimidade”... Com isso se põe
de lado o fato de que as maiorias, tanto quanto as minorias, podem ser
tirânicas ou antidemocráticas – e que, se aderirmos a sério ao ideal
democrático, não caberá ver a opressão exercida sobre a minoria pela maioria,
não importa quão numerosa, como menos odiosa do que a opressão da maioria
pela minoria.
Assim, a sociedade democrática não poderia funcionar satisfatoriamente
se a regra da maioria fosse a única a aplicar-se. Em vez disso, em várias
esferas se privilegiam critérios que na verdade prescindem quase inteiramente
da idéia de representação e deixam as decisões a cargo de pessoas vistas
como competentes para ponderar com acuidade os argumentos relevantes –
ou seja, pessoas presumidas capazes de se envolver com sucesso num
eventual debate de desfecho unânime, como o juiz ou o especialista
qualificado (ainda que um componente de “representação” se faça presente
com a necessária suposição de que os peritos ou especialistas agem no
interesse dos afetados pelas decisões, ou mesmo com garantias institucionais
que o assegurem, sob pena de distorções “tecnocráticas” e assemelhadas). Em
outros casos, mesmo quando a idéia de representação é central, o recurso à
regra da maioria é atenuado pela consideração mais detida das identidades
envolvidas. É o que ocorre, em particular, com os mecanismos de tipo
“consociativo” ou “consensual”, de que especialmente Arend Lijphart se tem
ocupado em vários estudos, mecanismos estes baseados no reconhecimento
da existência de fatores que, por sua relevância na conformação da identidade
e dos interesses fundamentais das pessoas (como os Estados-membros de uma
federação, ou grupos étnicos ou religiosos de importância numa sociedade
dividida do ponto de vista étnico ou religioso), não podem ser tratados em
termos de maiorias ou minorias cambiantes – donde a decisão de dar
representação igualitária às próprias categorias conformadas por tais fatores
(os diversos Estados, os diferentes grupos étnicos ou religiosos), mesmo se tais
categorias são desiguais do ponto de vista do número de cidadãos que compõe
cada uma.7 Naturalmente, sendo o federalismo o exemplo mais clássico de
recurso ao princípio consociativo, em contraposição à adesão sem mais ao
princípio majoritário ou plebiscitário, tornam-se bem evidentes o simplismo e
os equívocos que têm caracterizado as discussões brasileiras sobre a
representação dos Estados, com o consenso criado em torno da idéia de
representação estritamente proporcional às populações envolvidas. Ainda que
não seja o caso de negar as importantes distorções introduzidas pelo regime
de 1964, empenhado em assegurar um Congresso dócil por meio do aumento
da representação especialmente dos Estados do Norte e do Centro-Oeste, é
patente que a dimensão federativa da questão tem sido ignorada no furor em
torno da tese proporcionalista (que se defendia, cabe lembrar, mesmo quando,
na tentativa recente de implantação do parlamentarismo, se propunha a
7
Para mencionar um texto acessível em português, veja-se, por exemplo, Arend
Lijphart, “Os Modelos Majoritário e Consociacional da Democracia: Contrastes e
Ilustrações”, em Bolivar Lamouner (org.), A Ciência Política nos Anos 80, Brasília,
Editora da Unversidade de Brasília, 1982.
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supressão do Senado, supostamente o principal lugar institucional da
representação federativa). Talvez se queira sustentar, de maneira análoga à
posição de Jaguaribe, que nosso federalismo não tem substrato real nas
identidades e legítimos interesses regionais e não merece sobreviver. Cabe
ponderar, contudo, os efeitos que assegurar a representação estritamente
proporcional poderia ter no sentido de reforçar a influência dos interesses
paulistas (que já é decisiva) sobre o governo central. Não creio que haja muita
gente fora de São Paulo (ou dentro, quem sabe) disposta a admitir que isso
fosse bom para o país como um todo.
Essas observações a respeito da representação de tipo consociativo
podem ser desdobradas numa direção especial. Trata-se de que, nas
experiências social-democráticas que deram forma à estabilidade da
democracia ao longo de várias décadas, sobretudo em países da Europa
ocidental, encontramos como traço crucial algo que pode ser visto como afim
ao consociativismo, a saber, a organicidade da representação corporativa
assegurada, com graus diversos de formalização institucional em diferentes
países, a categorias correspondentes aos interesses ocupacionais de
empresários e trabalhadores junto à aparelhagem do Estado. Vários analistas
apontam mesmo nessa organicidade “neocorporativa” o substrato social
decisivo do “compromisso democrático” em que se garantiu aquela
estabilidade, e que agora se vê solapado – com consequências incertas para a
própria democracia – pelos processos ligados à globalização e o
enfraquecimento consequente dos atores coletivos que foram anteriormente
seus protagonistas principais, incluindo os sindicatos e o próprio Estado. Ora, o
que observamos a respeito no Brasil é que, nutrindo-se das confusões
envolvidas tanto nas críticas tradicionais ao nosso próprio corporativismo
quanto na percepção mistificada das novas tendências mundiais, instaurou-se
no governo uma espécie de “ideologia do moderno” pronta a denunciar sem
mais a “era Vargas” e a acomodar-se preguiçosa e autocomplacentemente às
supostas bondades daquelas tendências novas. Há, é claro, um importante
elemento de manipulação autoritária no corporativismo varguista; mas ele se
acha também presente, por exemplo, na tese (que o ministro Paulo Paiva,
entre outros, andou sustentando explícita e reiteradamente) segundo a qual
seria necessário substituir os sindicatos de categorias por sindicatos de
empresas. E, em confronto com o autoritarismo varguista, que quando nada
redundou em que os trabalhadores se vissem equipados com o importante
instrumento organizacional que lhes permitiu progressiva autonomização, a
tese atual redunda no contra-senso de convidar os trabalhadores a se
desorganizarem. Ela esquece, naturalmente, que a existência de organização é
compatível com a eventual decisão de agir descentralizadamente, se e quando
as circunstâncias o exigirem, enquanto a desorganização não permite a
decisão de agir centralizada e coesamente. Do ponto de vista do movimento
trabalhista, portanto, tratar-se-ia pura e simplesmente de abrir mão de um
recurso. E é notável que aqui também encontremos grande consenso, com
setores de opinião diversos tomados pela perplexidade diante das novidades
do mundo globalizado e deixando-se penetrar pela ideologia do moderno. Há,
por certo, na atualidade, tendências reais com que se terá forçosamente de
lidar, embora sua consistência esteja longe de ser clara nas idas e vindas e nos
trambolhões do mundo novo que se vai formando. Mas cumpre ter em mente,
singelamente, que algumas dessas tendências são ruins, e que cabe lutar
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contra elas. Se os recursos para a luta aparentemente escasseiam, tanto pior:
isso não resulta em tornar mais desejáveis as tendências.
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Diferentemente da perspectiva adotada até aqui, em que a ênfase
consiste em alertar contra o simplismo de certas tomadas de posição, sem
dúvida há questões com respeito às quais se justifica que se tomem posições
firmes. Um deles, em que a posição que me parece merecer apoio tem
efetivamente sido sustentada com frequência, é a do financiamento público
das campanhas eleitorais. Se o direito ao voto se encontra assegurado de
maneira igualitária no país, é bem claro que o direito de ser votado sofre
enorme influência da desigualdade de riqueza ou do acesso privado a recursos
de qualquer natureza, e é imprescindível buscar formas de neutralizar ou
minimizar essa influência.
Mas há outra questão, a do voto obrigatório ou facultativo, em que a
posição dominante, a proposta de supressão da obrigatoriedade do voto, me
parece claramente equivocada. Os defensores da introdução do voto
facultativo têm recorrido, em termos de princípios doutrinários, ao argumento
de que o voto seria um direito do cidadão, e não um dever a ser cumprido por
ele. Essa posição, entretanto, carece de razões que a sustentem. Ela é
claramente tributária da tendência a conceber a própria cidadania como
envolvendo exclusivamente direitos (a concepção liberal ou “civil” da
cidadania), em detrimento de seu componente de deveres ou obrigações (a
concepção clássica ou “cívica” da cidadania). Naturalmente, é impossível falar
com propriedade dos direitos de alguém sem contemplar os deveres
correspondentes (até para assegurar os direitos como tal), e o desafio por
excelência da democracia contemporânea é justamente o de combinar a
garantia da afirmação de um ideal liberal ou civil de autonomia, atenta para os
direitos do cidadão, com o enraizamento e a difusão do civismo e do sentido de
responsabilidade pública. E não há por que negar ao voto o significado também
de dever cívico.
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Certamente, como se disse a propósito da eventual implantação do
parlamentarismo, pode-se pretender ver nessa provável renúncia um fator
favorável à estabilidade política: se as camadas destituídas e pouco educadas
(de novo, a “Índia” de nossa “Belíndia”) se auto-excluem, cabe talvez esperar
condições menos propícias ao populismo e suas seqüelas. Ocorre, porém, como
também se destacou acima, que o momento eleitoral é o grande momento de
afirmação popular em nossa sociedade dual – e é bem evidente o caráter
perverso de se pretender apostar numa forma adicional de exclusão popular
como eventual solução para os problemas político-institucionais do país.
Lembremos que a dificuldade de legitimação eleitoral do regime autoritário
recente, com sua marca nitidamente antipopular, figura com destaque entre as
razões de sua inviabilização e derrocada final, evidenciando a face positiva dos
próprios fatores que tornam nossa sociedade elitista eleitoralmente propensa
ao populismo.
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ligados à globalização, em que o cinismo das declarações recentes de George
Soros sobre a irrelevância do voto dos brasileiros diante das imposições do
mercado financeiro internacional certamente aponta um aspecto importante do
cenário em que as eleições se desenvolvem, com o risco de desdobramentos
funestos sobre os quais não teríamos controle e o assustador fantasma do
desastre argentino às nossas portas. Acresce o fato de que a dinâmica
mercantil do processo de globalização se faz acompanhar de uma face
inequivocamente imperial nas relações transnacionais, face esta agora
desinibida e afirmativa nas condições criadas no pós-11 de setembro de 2001.
Talvez haja razões “realistas” para a aposta de que esse componente imperial
venha eventualmente a atuar como agente decisivo da construção institucional
que se faz necessária em plano mundial, na medida em que os impactos
negativos da dinâmica mercantil espontânea alcancem a própria sede do
império (como vem acontecendo com o desinflar da bolha da nova economia e
a crescente desconfiança resultante da cascata de escândalos de
administração ineficiente e fraudulenta no coração empresarial e financeiro da
economia dos Estados Unidos). De toda maneira, se queremos que o resultado
da superação da desordem atual, em que nossas decisões políticas
supostamente soberanas são duramente condicionadas pelas percepções e
disposições de agentes remotos e dispersos, não seja apenas a consolidação
do império, é crucial que enfrentemos o desafio de, não obstante as
assimetrias na capacidade de ação dos diferentes Estados nacionais, fazer da
construção institucional em plano transnacional uma tarefa em algum grau
coletiva – ou pelo menos, como sugeriu Aldo Ferrer, que saibamos, mesmo se
em termos ainda unilaterais e com os precários recursos de bordo, dar
respostas mais adequadas à globalização e às vulnerabilidades que nos
impõe.8 Em qualquer caso, temos pela frente uma dimensão inédita e
certamente muito mais difícil do esforço de reformar e criar instituições.
8
Aldo Ferrer, “Argentina e a Globalização”, Estudos Avançados, vol. 16, no. 44,
janeiro/abril de 2002.
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