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Saberes e práticas da

corporeidade na Educação
Infantil e nos Anos Iniciais

Unidade 1:
História do corpo e da corporeidade
nas ciências: a Educação Física e a
cultura corporal

Objetivos
• Conhecer a história geral do corpo e da corporeidade nas
ciências;

• Reconhecer a Educação Física como uma área do conhecimento;

• Compreender os conceitos de corporeidade e de cultura


corporal, na perspectiva da Educação Física.
Unidade 1

Neste componente curricular, vamos ampliar o estudo acerca do corpo, da


cultura corporal e de práticas pedagógicas em Educação Física, considerando as
dimensões histórica, cultural e social da construção de práticas corporais. Para
tanto, nesta primeira unidade, buscaremos compreender tanto a corporeidade
quanto a cultura corporal e a Educação Física a partir de diferentes perspectivas
teórico-práticas.

Tal abordagem pode estar associada a muitos fatores que perpassam as


vivências do sujeito-docente, como as visões de educação, o entendimento de
ser humano e de mundo, as condições do trabalhador docente, a filosofia de
educação da comunidade escolar etc. Esses diferentes fatores, que entrelaçam
os modos de ser da educação escolar, da sociedade e dos sujeitos, convergem
para uma determinada perspectiva de vida (e de corporeidade) que fundamen-
ta as escolhas pedagógicas.

Outro objetivo deste componente é proporcionar conhecimentos dos


tópicos citados nos parágrafos anteriores, bem como explorar possibilidades de
práticas corporais, sem a intenção de se constituir como um manual de atividades.
De modo geral, nas duas primeiras unidades, estudaremos a Educação Física
e a corporeidade associando-as à Pedagogia num formato mais relativo aos
seus campos conceituais. Já a partir da terceira unidade, serão apresentadas
algumas propostas de práticas corporais fundamentadas nos conceitos teóricos
das unidades anteriores, visando à coerência entre a teoria e a prática.

Conceito
Corporeidade: O termo corporeidade relaciona-se a um estilo de vida, ao passo
que, cultura corporal diz respeito às práticas corporais que perpassam uma deter-
minada cultura, como danças, ginásticas, brincadeiras, lutas, atividades de aventura,
esportes, jogos, entre outros.

A história geral do corpo e das ciências


A história do corpo cuja perspectiva nossa sociedade está mais conectada é
oriunda da cultura ocidental. Segundo Mattos (2014), a Educação Física teve ori-
gem na Grécia Antiga, período em que o corpo era entendido como uma matéria
desconectada da sua mente, conforme o filósofo Sócrates (465-395 a.C.), de modo
que havia uma supremacia da mente sobre o corpo e, por isso, atividades físicas
excessivas eram coibidas em prol da alma dos sujeitos. Platão (428-348 a.C.), dis-
cípulo de Sócrates, também compreendia a dualidade entre corpo e alma em um
primeiro momento. Com o passar dos anos, mesmo mantendo essa dualidade, ele
começou a defender uma maior conexão entre corpo e alma, passando a indicar a
importância da prática de exercícios físicos no processo de formação do cidadão
(SALES, 2010).

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Para pensar
O texto desta unidade está mais relacionado com a história do corpo a partir da
cultura ocidental, entretanto, devemos saber que existem outras possibilidades
de conceber essa temática, já que cada cultura desenvolve sua própria forma de en-
tender a corporeidade. Devemos saber que, em nosso contexto sociocultural, as pers-
pectivas latinas, indígenas, africanas e orientais, dentre outras, também influenciam o
entendimento que temos em relação à cultura corporal.

Ainda durante o período Clássico grego, mais especificamente com a massi-


ficação das sociedades espartana e ateniense, a concepção de corpo foi sendo alte-
rada. Na cultura espartana, em virtude dos constantes conflitos e guerras, o corpo
do homem tinha que ser constantemente exercitado, sendo valorizadas a força
física e a destreza para a luta. Já os atenienses cultuavam um corpo com formas
proporcionais, associando-os à ideia de beleza e de sabedoria. A respeito desse
último caso, vejamos alguns exemplos nas figuras que seguem, que representam
algumas esculturas e/ou os Jogos Olímpicos da Era Antiga.

Fonte: Führ (2019). Fonte: JuanMa (2005).

Fonte: Führ (2019). Fonte: Shakko (2007).

Prosseguindo, na Era Cristã e na Idade Média, o corpo foi entendido de


outra forma, devido à extrema conexão com a religião. Os exercícios físicos já não
eram mais compreendidos como benéficos à alma e/ou ao espírito, nem se acredi-
tava em um corpo proporcional às suas formas. Na Idade Média, cultuar o corpo
mais “robusto” passou a ser entendido como pecado.

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A perspectiva de um corpo alinhado à ciência ganhou forças somente a par-


tir da Modernidade. Nesse período, a compreensão de corpo transitou da concep-
ção de pecado divino para uma ideia de maior liberdade relacionada à sua noção
de integralidade e/ou de autonomia. Um exemplo do corpo associado às ciências
e às artes, bem como ao seu (re)descobrimento anatômico, pode ser observado na
obra intitulada Homem vitruviano, de Leonardo Da Vinci (1452-1519). As des-
cobertas de Da Vinci, possibilitaram o desenvolvimento da Medicina e de outras
ciências por meio do conhecimento anatômico do corpo humano, como pode ser
observado nas imagens a seguir.

Fonte: Capelluto, Zappa e Aranha (2012).

Conceito
Modernidade: O termo “Modernidade” pode ser utilizado com distintos significa-
dos, de acordo o contexto e época, porém geralmente indica ruptura com o passado.
Foi um termo utilizado no pensamento medieval para se opor ao paganismo e, depois,
pelos renascentistas, para se opor ao pensamento medieval - eles, inclusive, cunharam
o próprio termo “Idade Média” e se autointitularam modernos. O termo “Modernida-
de” como sinônimo de “Idade Moderna” está mais relacionado com uma periodização
histórica que, nas narrativas tradicionais do ocidente, geralmente é situada a partir da
Queda de Constantinopla, em 1453, mas também existem outras propostas de datação
para essa periodização situada no século XVI. Além disso, usa-se o termo “Modernida-
de” para se referir aos processos históricos ocidentais de racionalização das estruturas
econômicas, sociais, políticas e culturais - sendo que, diferentes datações são propostas
nesses usos, geralmente situadas no século XVIII, com o desenvolvimento do Iluminis-
mo, do Liberalismo, de sistemas de pensamento que separam a ciência da religião e da
moral, do capitalismo na economia, entre outras questões (SILVA; SILVA, 2009).

Outra marca do período modernista foi a alusão ao corpo por meio de um


viés fragmentado, cartesiano e idealista, originário do filósofo e matemático René
Descartes (1596-1650), que projetou a hierarquização entre razão e corpo físico.
Uma de suas citações conhecida até nos dias de hoje é a expressão cogito ergo sum
(penso, logo existo), ou seja, a ação de pensar, a razão, é entendida como condição
da existência humana, sendo, portanto, superior ao corpo físico.

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Já conforme o filósofo francês Michel Foucault (2014), a Era moderna tam-


bém projetou técnicas de disciplinar e de controlar os corpos na sociedade, vigian-
do-os ou punindo-os. Para o autor, os corpos passam por um processo conhecido
como docilização, pois os corpos obedientes e adestrados sob a lógica do Estado
se enquadram como “úteis” à sociedade. Essa mesma noção de utilidade, discipli-
namento e docilidade dos corpos foi levada às escolas, às prisões, aos hospitais,
aos quartéis etc. Além disso, o processo de disciplinar, vigiar e docilizar os corpos
culminou na construção de um dispositivo denominado de panóptico, arquitetado
originalmente por Bentham, que orquestra certa noção de poder e de condutas
moralistas sobre outros corpos. Nas imagens que seguem, você pode visualizar um
exemplo do panóptico inserido em uma instituição.

Fonte: Amanda (2016).

Fonte: Maurer (2019).

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Observe que as imagens apresentam ambientes em que há uma estrutura


central que permite a vigilância e o controle de tudo o que ocorre no entorno, o
que denota uma arquitetura utilizada para exercer o controle sobre os corpos por
meio da observação de um vigia. Dessa forma, é exercida a violência psicológica e
os corpos são controlados por serem constantemente observados, vigiados.

Ao longo da Modernidade, a concepção de corpo modificou-se em decor-


rência das transformações industriais e econômicas. Com a massificação do ca-
pitalismo, conectado às ideias de lucro, de produção e de técnicas corporais, o
corpo passou a ser visto como uma máquina. Nesse sentido, o corpo teria que ser
treinado para exercer uma função rentável, em prol da sua própria sobrevivência.
Por tal razão, as discussões propostas pelo filósofo Karl Marx (1818-1883) foram
e ainda são importantes para analisar as relações de classe nas sociedades bur-
guesas, já que o filósofo referenciava e defendia o corpo constituído numa noção
histórico-social, relacionando-o com o sujeito trabalhador.

Para saber mais


Karl Marx foi um filósofo e economista do século XIX que problematizou as rela-
ções de classe em diferentes sociedades, especificamente na sociedade capitalista
em que vivia, e criou o método de análise do Materialismo Histórico Dialético. Depois
dele, outros autores e autoras se apropriaram desse método e desenvolveram diferen-
tes aspectos das teorias de Marx, concordando ou não com determinados pontos e
aprofundando as discussões.

Ao fazer esse breve resgate histórico, podemos perceber as mudanças da


compreensão do corpo (corpo primitivo; sábio e forte; espiritual; cartesiano; dó-
cil; corpo-máquina) e, portanto, de corporeidade, o que reflete os modos de ser e
de pensar em um contexto sociocultural. A seguir, vamos estudar a concepção de
corpo e de corporeidade contemporâneas, cujos fundamentos encontram-se na
concepção fenomenológica.

A corporeidade
Compreender o corpo a partir da abordagem fenomenológica implica, de
acordo com o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1969), romper com
a lógica cartesiana que separa a razão e o corpo físico, bem como com a visão
utilitarista de corpo. Nessa lógica pontyana de se pensar, não basta haver o corpo
físico, pois a nossa existência se configura também nas relações que, a partir de
nosso corpo, estabelecemos com os outros, com o meio em que vivemos e conosco
mesmos. Tal ação requer a compreensão da corporeidade em sua complexidade, a
partir da concepção de corpo-sujeito.

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Conceito
Corpo-sujeito: Esse conceito vincula-se à abordagem fenomenológica, buscando
compreender o ser humano na relação consigo próprio, com os outros e com o am-
biente em que vive. Tal percepção é tensionada junto ao conceito de corpo-objeto, que
está relacionado à perspectiva da fragmentação e dos dualismos que vem sendo discu-
tidos até o momento.

Dica de vídeo
Para aprofundar ainda mais alguns dos conceitos mostrados até aqui, pesquise no
YouTube e assista ao vídeo Corporeidade, do canal de Juliana Albuquerque. Nele
você pode assistir à discussão do professor Walter Correia acerca de como a corpo-
reidade se relaciona com a Educação Física.

Cabe ressaltar que a transição da compreensão de um corpo-objeto para


um corpo-sujeito (corpo-próprio) ocorre de forma diferente para cada pessoa, em
virtude das distintas influências que recebemos ao longo da vida. Isso significa que
cada sujeito compreende o corpo e constitui sua corporeidade a partir das experi-
ências que lhe são oportunizadas. Também, o termo corporeidade, de acordo com
o Dicionário crítico de educação física, pode ser compreendido como uma maneira
“abstrata de corpo, de ser corpóreo”, visto que a corporeidade constitui-se, para
além daquilo que eu faço com meu corpo, ao expressar também intersubjetiva-
mente, ou seja, é composta por práticas que transcendem o próprio corpo. Assim,
cada um de nós é a sua própria corporeidade (SANTIN, 2014).

“Corporeidade é voltar os sentidos para sentir a vida; olhar o belo


e respeitar o não tão belo; cheirar o odor agradável e batalhar para
não haver podridão; escutar palavras de incentivo, carinho, de odes,
ao encontro, e ao mesmo tempo buscar silenciar, ou pelo menos não
gritar, nos momentos de exacerbação da racionalidade e do confron-
to; tocar tudo com cuidado e a maneira como gostaria de ser tocado;
saborear temperos bem preparados, discernindo seus componentes
sem a preocupação de isolá-los, remetendo essa experiência a outras
no sentido de tornar a vida mais saborosa e daí transformar em sa-
ber” (MOREIRA; SIMÕES, 2006, p. 73).

A corporeidade é, portanto, elemento central da nossa existência e da nossa


condição humana. Dessa forma, pode-se até mesmo parafrasear Descartes, crian-
do a máxima “sou corpo, logo existo”.

De forma geral, a corporeidade corresponde a uma representação que faze-


mos de nós mesmos com o intuito de percebermos nossos corpos e, principalmen-
te, os compreendermos. Assim, podemos entender nosso corpo tanto na perspec-

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tiva concreta, ao realizar um determinado movimento, por exemplo, quanto em


situações mais abstratas como sentir determinado desejo. Por meio da uma corpo-
reidade bem compreendida e expressa, descobre-se e aprimora-se as maneiras de
se relacionar com os outros.

Educação Física: como era e é entendida?


Como você já leu anteriormente, a Educação Física é um campo de conheci-
mento que tem como um de seus objetos de estudo o corpo e a corporeidade. Mas
será que sempre foi assim? Da mesma forma que as concepções acerca de corpo
e de corporeidade foram (re)configuradas ao longo da história da humanidade,
também a compreensão sobre o que é e como se estrutura a Educação Física foi
alterada. Em alguns períodos históricos, a Educação Física foi marcada por uma
abordagem regulatória do corpo. Em outros, a área apoiou-se em processos peda-
gógicos mais emancipatórios, conforme veremos a seguir.

Durante o século XVIII, e em boa parte do século XIX, a Educação Física foi
muito conservadora, estando associada às ideias de cientistas e de classes médicas
e militares. A abordagem higienista (até por volta de 1930), por exemplo, projetou
uma noção de nação de “raça pura”, de “boa” biologia e de saúde com o intuito de
formar uma pátria moderna. Nessa época, a prática da Educação Física era marca-
da por ginásticas oriundas da cultura ocidental (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1989;
SOARES, 1994).

Já entre os anos de 1930 e 1945, o mundo viveu um dos momentos mais tris-
tes da humanidade, em decorrência do nazismo e do fascismo. Nesse mesmo pe-
ríodo, a abordagem pedagógica da Educação Física no Brasil era militarista, tendo
por objetivo preparar uma juventude robusta, disciplinada e corporalmente forte
para a defesa (utópica) da nação. Segundo Ghiraldelli Júnior (1989), essa aborda-
gem relacionava-se à ideia de um “cidadão-soldado” ou de um “aluno-soldado”.
Essa ideia pode ser observada na capa da revista Educação Physica, número 10, de
1937, em que é possível ver a conexão das ideias do nazismo e do fascismo com os
ideais do Brasil:

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Fonte: Revista Educação Physica (1937).

Outra abordagem que favorece o entendimento da proposta regulatória dos


corpos foi projetada na ditadura militar brasileira (1964-1985), por meio da con-
cepção competitivista. Na escola a Educação Física foi marcada pela mecanização
e pelo adestramento dos corpos, tendo como objetivo o desenvolvimento motor
ou esportivo, com vistas à preparação de atletas que pudessem defender as cores
da pátria em competições de nível nacional ou internacional, o que gerou muitas
exclusões de discentes durante as aulas, uma vez que não se enquadravam entre os
que eram julgados como melhores (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1989).

A partir da década de 1980, outras abordagens pedagógicas ressignifica-


das na Educação Física emergiram. Dentre elas, destacamos as críticas da saúde
renovada, psicomotora, desenvolvimentistas e culturais. Essas abordagens serão
estudadas nas próximas unidades, a partir de suas práticas pedagógicas.

Atualmente, a Educação Física é compreendida a partir da fenomenologia,


como um componente que lida com uma ampla gama de conhecimentos constru-
ídos historicamente pelo ser humano por suas práticas corporais e socioculturais.
Seu objetivo não é mais mecanizar ou fragmentar os corpos nem formar futuros
atletas, de modo que o conceito de Educação Física está intrinsecamente relacio-
nado às experiências pessoais, acadêmicas e profissionais de cada sujeito. Frente a
esse contexto, é possível reafirmar que a Educação Física escolar tem como objeti-
vos oportunizar uma gama variada de experiências corporais e auxiliar os estudan-
tes no processo de autoconhecimento e de conhecimento do outro e do mundo.

Por isso, as propostas de atividades de Educação Física, independentemente


da etapa escolar em que o aluno se encontra, devem conter uma intencionalidade
pedagógica por parte do docente, ou seja, toda e qualquer atividade proposta deve
conversar com aquilo que se quer que o aluno aprenda. Isso pode significar a dife-
rença entre uma aula e a atitude de simplesmente “largar” uma bola ou “entregar”

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algum brinquedo com o objetivo de ocupar o tempo dos estudantes. Além disso,
cabe ressaltar que a prática da Educação Física nas escolas não é unívoca, isto é,
não há uma única maneira de desenvolver as atividades dessa área no ambiente
escolar, pois existe uma diversidade de propostas pedagógicas fundamentadas em
abordagens distintas em diferentes instituições de ensino, mesmo que algumas já
sejam consideradas ultrapassadas.

Observe, abaixo, algumas situações que envolvem a Educação Física. Você consegue
identificar alguma intencionalidade nas práticas desenvolvidas? Que intencionalidade
é essa? Compartilhe suas descobertas no fórum da Unidade 1.

Fonte: Univates (2020).

Nesta seção, iniciamos a discussão sobre a Educação Física vinculada à cor-


poreidade e à cultura corporal. No próximo capítulo, vamos conhecer um pouco
melhor essa relação.

A cultura corporal interligada à corporeidade


e à Educação Física
Conceituar cultura nunca é simples, sendo que um dos motivos para essa
dificuldade é a constatação de que ela significa algo mutável na sua conjuntura. Ao
mesmo tempo, é preciso compreender que a cultura de um movimento corporal
representa muito mais do que um simples movimento. Não se trata unicamente
de se exercitar de acordo com um padrão exigido, mas sim de apropriar-se de ele-
mentos que perpassam uma determinada cultura. É preciso entender, por exem-
plo, que uma mesma brincadeira pode ter normas de funcionamento distintas,
tendo em vista as singularidades culturais de diferentes regiões. Tomemos como
exemplo a brincadeira infantil conhecida como “Amarelinha”. Essa brincadeira é
chamada de outros nomes, como sapata, macaco e academia em que algumas re-
giões do Brasil, mesmo que o seu funcionamento seja bastante similar. Além disso,
é possível afirmar que a amarelinha brasileira se diferencia da boliviana, da fran-

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cesa, da indiana, da norte-americana, da italiana, entre outras. Da mesma forma,


os gestos e as etiquetas corporais que se repetem em diversas sociedades podem
conter distintos significados em uma realidade específica.

Dica de site
Para tomar conhecimento de diversos tipos de brincadeiras que, embora tenham
nomes diferentes nas diversas regiões brasileiras, são bastante similares quanto
ao modo de brincar, acesse o site Mapa do brincar. Nele você pode acessar as brin-
cadeiras e ver os modos de jogar, ouvir audiodescrições, consultar um glossário sobre
as diferentes brincadeiras etc.]

Podemos também considerar a cultura corporal como algo universal e he-


gemônico? Ou seja, uma pessoa que possui determinado conhecimento contém
mais cultura do que uma que não o possui? Não podemos fazer essa classe de
afirmações, mesmo porque deve-se entender a cultura corporal de acordo com as
vivências de cada ser humano, aquilo que sentiu, que explorou etc., de modo que a
noção de cultura corporal também está conectada com a antropologia. Nesse caso,
Mauss (2003) dimensiona a corporeidade integrada à cultura, projetando o corpo
não apenas numa visão biológica e/ou física, mas também social. Sendo assim, a/o
docente formada/o em Educação Física ou em Pedagogia, ao projetar a cultura
corporal como centro do trabalho pedagógico, poderá ressignificar os conheci-
mentos corporais da realidade sobre a qual age independentemente da proposta
- brincadeiras, rodas cantadas, jogos, atividades rítmicas etc. (DAOLIO, 2010).

Dica de leitura
Dois artigos contextualizam o conceito de cultura proposto por Jocimar Daolio:
Antropologia, cultura e Educação Física escolar e Antropologia, cultura e Educação
Física escolar: considerações a respeito do artigo de Moura e Lovisolo. O primeiro deles é
uma crítica sobre o entendimento de cultura a partir de Daolio, enquanto o segundo é
a “réplica” do próprio Jocimar Daolio em relação ao estudo anterior.

Nesse sentido, Daolio (2010) defende a cultura corporal na Educação Física


não como algo secundário da área de conhecimento deste componente, mas sim
como um elemento central e/ou norteador da mediação e da construção dos seus
saberes. O professor, nessa lógica, parte do pressuposto da influência da corporei-
dade na e a partir da cultura do aluno e propõe diversas experiências e técnicas
de exploração corporal, ao longo do processo pedagógico, sejam elas expressivas,
rítmicas, físicas etc., o que ajuda a ressignificar a Educação Física e a corporeidade
na atualidade, cujo objetivo é pensar o corpo sem a lógica higienista, mecanizada
e padronizada (corpo-objeto) para a constituição de um corpo-sujeito (próprio).

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Uma proposta interessante de aula associada à cultura é a pesquisa comuni-


tária acerca da história do cotidiano dos alunos em relação ao dos seus responsá-
veis ou de diferentes gerações quando tinham a mesma idade, independentemente
da temática. Por exemplo, ao trabalhar com o tema das brincadeiras tradicionais
- aquelas repassadas de geração em geração - pode-se pedir que os alunos pesqui-
sem quais os nomes das brincadeiras, onde seus pais/familiares/conhecidos brin-
cavam, de que forma o faziam, com quem etc., relacionando a mesma brincadeira
com a maneira como o aluno brinca, ou levando as brincadeiras pesquisadas pelos
alunos para as aulas de Educação Física. Nesse caso, a cultura estará interligada
com a corporeidade, tornando o conteúdo mais significativo para o aluno.

Outro elemento importante da cultura do movimento são as técnicas cor-


porais. Elas são determinadas em virtude da cultura, podendo ser representadas
por gestos, posturas, movimentos, entre outros. O movimento da cultura corporal
não é unicamente biológico ou físico, mas também está envolvido em uma relação
social e psicológica (MAUSS, 2003). Um exemplo bastante interessante da prática
relacionando as técnicas corporais e cultura são as variações técnicas ao longo do
tempo, porque independentemente se o conteúdo trabalhado for rodas cantadas,
brincadeiras, jogos etc., essas técnicas provavelmente resultarão em diferentes ex-
periências por parte dos discentes, de modo que não necessariamente as crianças
brinquem sempre da mesma forma em uma mesma brincadeira, por exemplo.

Já no contexto dos movimentos relacionados ao atletismo, que também é


outra área com potencial de exploração, podemos visualizar variações de técnica,
conforme a imagem abaixo, referente à prova de salto em altura. Na imagem você
pode perceber que a orientação, muito provavelmente foi a mesma, mas as quatro
pessoas saltaram utilizando maneiras diferentes, devido à cultura e às técnicas cor-
porais que desenvolveram com o passar do tempo.

Fonte: ESAS (2020).

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Nesse sentido, o antropólogo francês Le Breton (2007) afirma que as técni-


cas corporais relacionadas a um determinado exercício, por exemplo, podem se
alterar ao longo do tempo, como no caso dos saltadores da imagem anterior, que
buscavam o mesmo fim (a transposição do sarrafo), porém com técnicas corpo-
rais bastante diferentes. Nessa perspectiva, podemos entender que há uma relação
dialógica entre corporeidade, Educação Física e cultura corporal, porém, não sabe-
mos exatamente quais transições, recriações e alterações podem vir a acontecer por
meio do diálogo entre essas três instâncias nas técnicas corporais, nas brincadeiras,
nos jogos, nas danças etc., uma vez que a Educação Física não é uma ciência exata.

Desafio
Os infográficos servem para facilitar o entendimento de uma temática e, para
isso, se valem da combinação entre palavras e imagens. Pensando nisso, crie um
infográfico que ilustre as principais dimensões do corpo no processo histórico e social,
como ele era visto, concebido etc. Após finalizar a construção de seu material, compar-
tilhe sua produção no Fórum: Concepções de corpo, no Ambiente Virtual. Para realizar
este desafio, você pode usar duas estratégias:

a. Organizar o infográfico utilizando imagens ou GIFs (animações)


b. Utilizar o Canvas, para criar o infográfico.

Nesta primeira unidade, aprendemos conceitos e aspectos históricos


em relação à corporeidade, à Educação Física escolar e à cultura corporal do
movimento. Além disso, pudemos conceber esses três elementos como um
tripé, devido à necessária relação entre eles, bem como a possibilidade de
eles servirem de fundamentação pedagógica para as nossas próximas uni-
dades de estudo. Esta unidade também buscou apresentar elementos gerais
da área de conhecimento da Educação Física, a fim de que o pedagogo possa
perceber a complexidade e a necessidade de conexão com o campo da cor-
poreidade e da cultura corporal.

Atividade
Depois de ter estudado a história do corpo e da corporeidade nas ciências,
com ênfase na Educação Física e na cultura corporal, vamos realizar a atividade
proposta para esta unidade de estudo. Para isso, acesse o Ambiente Virtual.

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