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Prólogo
Projetar o século XX
1
Segundo o IBGE, o Brasil começa o século XIX com 3.250.000 habitantes, chega a 1900 com 17.438.434 habitantes
e atinge o ano 2000 com 169.799.170 habitantes.
ritmo tan acelerado que no era fácil saturarlos de la cultura tradicional” 2. É relevante
atentar para os resultados desse evento ao redor do mundo, visivelmente mais
perverso nos países e cidades do denominado Terceiro Mundo.
“Talvez, o maior papel dos arquitetos nesta nossa época, seja construir os
novos espaços de encontro e convivência para as multidões das grandes cidades. De
repente, o desenho dos edifícios quase perde o sentido, se o edifício, isolado na
paisagem urbana, não comunicar a participação de todas as pessoas naquilo que
possa representar o viver melhor. E, certamente, os idéias de bem estar e a paz terão
de ser conquistados por toda a gente, também com a força e o poder da arte e da
beleza.” 5
2
ORTEGA Y GASSET, La rebelión de las masas. 44 ed. Madrid: Alianza Editorial, 1997 (1ª ed., 1937), p. 117.
3
“A cidade de São Paulo é um palimpsesto – um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos,
para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral.” TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades
em um século. 3. ed., São Paulo: Cosac Naify/Duas Cidades, 2004 (1ª ed. 1980), p.77.
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“O equipamento do país, destinado ao escoamento mais fácil e mais rápido dos produtos, serviu, ao modelo
econômico que o gerou, para a criação do modelo territorial correspondente: grandes e brutais migrações, muito mais
migrações de consumo que de trabalho, esvaziamento demográfico em inúmeras regiões, concentração da população
em crescimento em algumas poucas áreas, sobretudo urbanas, com a formação de grandes metrópoles e a
constituiç ão de uma verdadeira megalópole do tipo brasileiro no Sudeste”, SANTOS, Milton. A urbanização brasileira.
3. ed. São Paulo: Hucitec, 1996, (ed. Original 1993) p.27. Na virada do século XIX para o XX, segundo dados da
Sempla, São Paulo possuía 238.820 habitantes, em 1950 a população era de 2.198.096 pessoas e em 2000 atingia a
marca de 10.434.252, contando 17.878.703 considerando-se toda a região metropolitana.
5
PENTEADO, Fábio. Fábio Penteado. Ensaios de arquitetura. São Paulo: Empresa das Artes, 1998, escrito original de
1972.
6
“La masa arrolla todo lo diferente, egregio, individual, calific ado y selecto. Quien no sea como todo el mundo, quien no
piense como todo el mundo, corre el riesgo de ser eliminado. Y claro está que ese «todo el mundo» no es «todo el
mundo». «Todo el mundo» era, normalmente, la unidad compleja de masa y minorías discrepantes, especiales. Ahora
«todo el mundo» es sólo la masa. […] De aquí que llamemos masa a este modo de ser hombre, no tanto porque sea
multitudinario, cuanto porque es inerte.” ORTEGA Y GASSET, ORTEGA Y GASSET, op. cit, p. 82-130 passim.
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Conceituação geral baseada na teorização desenvolvida en HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitud. Guerra y
democracia en la era del Imperio. Barcelona: Random House Mondadori, 2004, p.16 seq.
uma posição acorde com sua importância na constituição da metrópole. O trabalho do
arquiteto reafirma a realidade metropolitana, essencialmente multitudinária, e propõe
oferecer à maioria de seus habitantes os espaços aos quais tem direito. Em sua obra,
os espaços e as construções da cidade passam por um redimensionamento, a fim de
acomodar fisicamente as massas humanas, respeitando a dimensão individual.
8
“O indivíduo plenamente desenvolvido é o resultado de uma sociedade plenamente desenvolvida. A emancipação do
indivíduo não é a emancipação da sociedade, mas a superação, pela sociedade, do ris co de atomização, uma
atomização que alcança o seu auge nos períodos de coletivização e cultura de massa”, HORKHEIMER, Max, 1974,
citado por SANTOS, Milton, O espaço do cidadão. 7. ed., São Paulo: Edusp, 2007 (1ª ed. 1987), p.102.
poucos, a arquitetura deve assumir para si a tarefa de atrair a massa e familiarizá-la
aos aspectos da arte e da ilustração, rompendo a barreira psicológica que caricaturiza
a cultura como algo inatingível e restrito. Essa dissolução de fronteiras proibitivas
passa pelo uso cotidiano dos equipamentos culturais por parte da população,
apagando a inibição e a resistência ao dotar a vida diária de arte e de cultura que,
como num discurso de arte engajada que a arquitetura quer concretizar, só atingem
seus fins verdadeiros quando servem a todos.
Não é até princípios do século XX, com a chegada das vanguardas, que se
resgata a dimensão popular da arte teatral, então impregnada de conteúdo político-
ideológico. O pioneiro diretor Erwin Piscator (1893-1966), em seu afã de doutrinar as
massas proletárias, propõe os ambientes cotidianos como cenários. Converteu
oficinas, fábricas e cervejarias em palcos da propagação dos ideais marxistas e
reconheceu na dramaturgia uma função social de papel relevante no destino das
massas. Esta concepção perde terreno na Europa do pós Segunda Guerra, mas
continua presente na América Latina, no Brasil especificamente no trabalho de
Guarnieri e Boal à frente do Teatro de Arena de São Paulo, “um teatro pobre, muito
próximo do público, e que apresentava problemas político-sociais”9. Também está na
raiz da dramaturgia de Bertold Brecht (1898-1956) e seu teatro épico. Vladimir
Maiakovski (1893-1930) mescla o espetáculo teatral e o ambiente dos comícios e do
clamor popular das ruas e praças, numa exaltação da atmosfera circense capaz de
divertir, assustar, mobilizar as massas russas através de uma arte futurista que não
deve deter-se diante das portas do teatro.
9
AMARAL, Aracy A. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930,1970: subsídios para uma história
social da arte no Brasil. 3ed., São Paulo: Studio Nobel, 2003, p.316.
da polis.” 10 Essa nova maneira de entender a arte é compartilhada pela arquitetura que
também atualiza o conteúdo social de sua ação, principalmente através do grupo que
surge em São Paulo a partir de mediados dos anos 50.
Essas concepções, ainda que representem uma busca pela “função” do teatro
e da arte no âmbito social, não excluem e nem poderiam excluir sua dimensão lúdica
essencial. A arte teatral é, conforme interpreta Ortega y Gasset, antes de tudo “jogo”,
algo que se situa fora dos ofícios “sérios” do homem, uma maneira de evadir-se de
uma realidade que o escraviza11. Essa relação ambivalente entre destino funcional e
recreativo se soluciona na intenção de construir uma arte onde se projeta uma
realidade não existente, o que não deixa de ser fantasia nem de ser projeto. O ócio é
um direito humano que ao ser tantas vezes negado contribui para a distorção
relacional e a histeria social características das metrópoles modernas. A obra de Fábio
Penteado requer a função da cultura na sociedade e reconhece o direito ao ócio como
um componente social que pode ser dirigido à construção de valores positivos para a
coletividade.
10
MARTINS, Carlos Estevam. Anteprojeto do manifesto do CPC, 1979. Apud: AMARAL, Aracy A. op.cit, p.323.
11
USCA TESCO, George. Teatro occidental contemporáneo. P.44-45
Culturalizar o cotidiano
12
PENTEA DO, Fábio. Entrevista concedida ao autor, Janeiro 2008. A loja Mappin é o atual
Shopping Ligth, situado a escassos metros do Municipal.
13
P. 92
e sugestiva que conduz o usuário a experimentar a arquitetura. Esse “passeio público”
termina - ou recomeça - em um anfiteatro situado na cobertura, expandindo a
possibilidade de utilização e coroando a obra com um símbolo da democratização da
cultura, que ganha o espaço público. A formalização diferente e inesperada
estabeleceria uma relação dialética especial com o entorno, dada em termos de
contraste e reverência; ao mesmo tempo em que respeita a escala da cidade,
apresenta-se como um potente marco arquitetônico localizado às margens do Rio
Piracicaba.
14
PENTEA DO, Fábio. Entrevista concedida ao autor, Janeiro 2008.
15
ROCHA, Paulo Mendes da. Entrevista concedida à S hnt v em novembro de 2006 em
Piracicaba. Disponível em http://www.yout ube.com/ watch?v=72CFradQ5B U des de 04/12/2006.
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relação de reciprocidade que converte o teatro em praça e a praça em teatro. A
proposta requer a união entre as dimensões cultural e popular para conferir sentido à
arquitetura. A simplicidade espontânea e a busca de uma forma sugestiva e
significativa refletem a essência do projeto arquitetônico de Penteado.
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O projet o do Teatro de Ópera de Campinas foi premiado com a Grande Medalha de Ouro da
I Quadrienal de Teatro de Praga, em 1967.
ordenador da composição espacial, abarcando o teatro de comédia e um terceiro
teatro ao ar livre implantado em meio à lagoa.
A opção por separar fisicamente os teatros cria uma composição que evoca e
se funde com a natureza circundante. As formas orgânicas e sensuais dialogam com o
entorno natural integrativamente, porém afirmam através da artificialidade
arquitetônica a preeminência da técnica como criadora e possibilitadora do estar
humano na Terra. A construção de um símbolo de urbanidade, como o teatro, parte da
preexistência do local ao sugerir uma relação dialética entre o construído e o natural, e
dela retira seu argumento essencial. Essa relação semântica com a esfera da natureza
proporciona uma formalização figurativa inclusiva que abre espaço a diversas
18
PENTEA DO, Fábio. Entrevista concedida ao autor, Janeiro 2008.
19
Memorial do projet o.
20
Memorial do projet o.
interpretações, - montanhas, vulcões, flor, tenda, circo, etc. – estabelecendo um jogo
lúdico entre os edifícios e os usuários. Esse jogo pertence, no entanto, ao universo
relacional dado pelo contato entre a imaginação humana e a matéria, ou seja, a forma
não busca uma caracterização definitiva; é autônoma em si mesma. “La forma tiene un
sentido que le es propio, un valor intrínseco y particular que no hay que confundir con
los atributos que se le añaden. Posee un significado y admite diversas acepciones.
Una masa arquitectónica, la relación existente entre tonos, una pincelada, un trazo
grabado tienen valor, en primer lugar, por sí mismos, poseen una cualidad fisionómica
que se puede parecer mucho a la de la naturaleza, pero que no se confunde con
ella.” 21
21
Focillon, Pp.11.
22
PENTEADO, Fábio. Entrevista concedida ao autor, Janeiro 2008.
A preferência por edifícios separados atende também a questões de ordem
financeira e política. Atento à realidade nacional da época, o arquiteto prevê a
possibilidade da construção dos teatros em etapas e projeta pensando na integridade
plástica da obra, ainda que não fosse executada totalmente. Nesse contexto o teatro
ao ar livre assume uma posição fundamental na composição e, mesmo que um dos
teatros não se construísse, a percepção do conjunto não se veria prejudicada. A
posição de Penteado afirma a opção por uma “utopia do possível” ao considerar os
fatores que condicionam a execução da obra sem sublevar a faceta poético-artística
da arquitetura; rastreia o contexto terrenal e a partir dele constrói a dimensão
fantástica da obra.
Penteado afirma que “Muitas vezes, o espaço que se abre para o encontro das
pessoas, para o contato com as coisas da cultura e do teatro, é mais importante que o
desenho do edifício” 23. O grande espaço de encontro alcançado em Campinas é fruto
direto do desenho, através dele se materializa e se constitui em zona franca de
convívio e cultura. O que o arquiteto parece querer dizer, com toda razão, é que o fim
é mais importante que o meio; que a arquitetura e o desenho devem servir como
instrumentos na construção dos espaços que representem e agreguem a sociedade.
24
O espaço do cidadão Pp. 71
25
PENTEADO, op. cit., p.100.
A praça-teatro externa desenvolve-se de maneira completamente autônoma
em relação aos equipamentos interiores, de tal modo que se perde a referência de um
quando se está no outro, tendo na praça circundante o elemento de conexão entre si.
Enquanto a praça aberta é monumental e eloqüente, a parte interna é discreta desde
as entradas ao nível da praça, incluindo-se o bar. A abertura escultural a partir do
centro desdobra-se em coberturas periféricas acolhedoras que se voltam para as ruas
circundantes. Além de propor uma nova interpretação programática, essa
característica dá forma a um espaço com duas escalas marcadas e distintas, que
convivem harmoniosamente bem com as atividades do cotidiano; acolhe tanto a
dimensão comemorativa, cultural, multitudinária quanto à esfera comunitária, íntima,
diária.
O acesso ao teatro situado sob o maior dos quatro volumes possui visibilidade
favorecida ao voltar-se externamente à praça, posicionando-se de maneira clara e
direta ao transeunte, de maneira independente ao grande teatro ao ar livre. Assim
como no bar que ocupa o bloco ao lado, o obstáculo psicológico que representa a
entrada é atenuado ao localizar-se sob uma cobertura que avança mais baixa, como
um avarandado, acolhendo e dirimindo qualquer possível retraimento. Internamente, a
conexão entre os quatro volumes pelo subsolo configura um grande passeio público
circular, pontuado ao longo de seu trajeto por espaços expositivos diversos. O
posicionamento e a forma dos acessos sugerem a entrada e, ainda que fosse para
pegar um atalho em seu caminho cotidiano, o cidadão se depararia com exposições
ou outras atividades ao longo da passagem.
Propor esses espaços significa, na realidade, propor uma cidade outra. Não
que a arquitetura de Fábio Penteado queira negar a existência da metrópole, ou que
reconheça nela um malefício inerente. Ao contrário, quer fazer aflorar a riqueza da
vida diversa que ela contém, mas que se esconde sob a deturpação causada pela falta
de planejamento, de oportunidades, de fruição, de humanidade, enfim. Por isso seu
trabalho é feito para a metrópole, lugar das multidões, e somente nela encontra seu
verdadeiro sentido.
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Fábio Moura Penteado desenvolveu mais de uma centena de projetos de arquitetura. Foi diretor da seção de
Arquitetura e Urbanismo da revis ta de variedades Visão entre 1956 e 1962, onde escreveu cerca de 150 artigos, diretor
responsável pelo periódico Arquiteto, de 1972 a 1977, além de participar da fundação da revis ta Projeto, na qual
permaneceu como presidente de honra até 1996. Foi presidente do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) no biênio
1966-1968, membro do comitê executiv o da UIA (União Internacional dos Arquitetos) de 1969 a 1975 e professor da
Universidade Presbiteriana Mackenzie entre 1961 e 1964, quando foi expuls o pelo regime militar.