Você está na página 1de 14

GÉNEROS, HEROÍSMOS, REPRESENTAÇÕES E

RECEPÇÕES NAS NARRATIVAS DE VIAGENS DO SÉCULO


XVI: OS CASOS D’ OS LUSÍADAS E DA PEREGRINAÇÃO

João Carlos Firmino Andrade de Carvalho


Faculdade de Ciências Humanas e Sociais / Centro de Estudos
Linguísticos e Literários1
Universidade do Algarve

Quero começar por felicitar os colegas organizadores de mais esta


iniciativa lusitanista que nos permite encontrar e debater a riqueza da língua,
literatura e cultura de expressão portuguesa no mundo, ao longo dos tempos.
Neste espírito, é com muito prazer que venho aqui falar-vos um pouco de
Literatura de Viagens dos Descobrimentos Portugueses. Não vos quero
enfastiar com questões teóricas que a designação genológica referida –
Literatura de Viagens (seguida da indicação do período: Descobrimentos) traz
sempre consigo. Mas há um mínimo que tenho de fazer, que é recordar-vos
algumas questões problemáticas em aberto e ainda explicar-vos porque, mesmo
assim, mantenho como válida esta designação.

A questão dos géneros


Como é sabido, a noção de Literatura é problemática porque é variável
sincronicamente (sobretudo, quando pensamos no século XIX e, seguramente,
no século XX. Porquê? Porque é plurissignificante) e diacronicamente - cada
época teve a sua noção de Literatura; se, nos nossos dias, as fronteiras entre o
seguramente literário e o seguramente não-literário se esbatem com alguma frequência
e se o conceito foi variando ao longo dos tempos, isso não significa que não
possamos traçar uma linha demarcadora entre a evolução do conceito até ao
século XVIII e a evolução do conceito depois do século XVIII. Até ao século
XVIII – com alguns reveses, é certo – podemos, genericamente, dizer que
domina uma concepção classicizante do fenómeno literário – o que esta
tradição fez foi tentar manter intacto um cânone que, explícita ou
implicitamente, tinha por referência as grandes autores antigos (como Homero,
Vergílio, etc.) e as Artes Poéticas Clássicas (textos programáticos estético
literários: Aristóteles, Horácio, Longino, etc.) e/ou as Retóricas da Antiguidade
greco-latina, ou as que lhes sucederam relendo/adaptando as antigas. E, nessa
linha classicizante, o fenómeno literário era dominado pelas teorias genológicas:
fazer literatura, nesses períodos, era, de uma forma ou de outra, ter em

1. Linha de Investigação sobre Retórica, Crítica e Teorização Literárias (Estudos Comparados).

1153
Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005

consideração os códigos estipulados para os diferentes géneros (fazer uma


epopeia, fazer uma tragédia, fazer uma comédia, fazer um ditirambo, etc., no
âmbito de uma escala de importância valorativa). Claro que os géneros foram
variando consoante as épocas: o cânone foi-se alargando (as Canções de Gesta
do Romance de Cavalaria – origens remotíssimas do género Romance que surgirá
com a configuração quase actual, a partir do século XVIII -, a Novela, o
próprio Romance ainda incipiente do século XVI e XVII). Mas, até ao século
XVIII, os géneros da prestigiosa tradição mantêm-se como referência (a obra
de maior referência da Literatura Portuguesa de todos os tempos – peço
desculpa aos pessoanos – é uma epopeia de imitação, ainda que também seja
de superação, ou seja, ainda que adaptada aos novos tempos (século XVI), é
uma epopeia que não esquece os modelos antigos). E Girolamo Vida2, na linha
aristotélica, é, no século XVI, uma referência teórica importante.
Dir-se-á: mas e o Barroco do século XVII? É verdade que o Barroco se
assume, programaticamente, como um anti-classicismo, mas atentemos mais
profundamente e descobriremos que o paradigma não mudou ainda para outro
paradigma, como acontecerá com o surgimento do Romantismo; o que se
passou foi que lhe foi introduzido um elemento perturbador – uma nova
atitude crítica patente no anti-classicismo e na afirmação de uma estética que
era, ao mesmo tempo, a negação de uma estética (talvez a denominação primeiros
formalistas da linguagem literária, para designar a atitude de distanciamento crítico
dos barrocos em relação a si mesmos, tenha algo a ver com o que atrás defendi).
Tal perturbação terá, é certo, mais tarde (século XVIII), os seus frutos: note-se
que o barroquismo tardio de alguns autores neoclássicos (compatibilização
reveladora, a vários níveis!), abrirá as portas à retórica dos afectos e da paixão
tipicamente romântica.
Mas deixemos os problemas da História Literária para outra ocasião.
Voltemos ao princípio: e que dizer da noção de Viagens, acoplado com o genitivo
de à noção de Literatura? O termo é muito (talvez demasiadamente) abrangente
(viagens e viajantes há muitos: viagens por terra, por mar, viagens reais, viagens
ficcionais/imaginárias; por outro lado, há toda uma tipologia de viajantes que
importava definir previamente, tendo em vista a sua educação/cultura, profissão,
classe social, para definir os contornos e objectivos da viagem). Enfim, Literatura
de Viagens é uma designação ambígua (ainda que se lhe defina a periodologia:
neste caso, dos Descobrimentos). E mesmo assim preferimos mantê-la como
operacional. Porquê? Porque ela obriga à definição de pressupostos de

2. Vida, Marco Girolamo, Arte Poética, col. “Biblioteca Euphrosyne – 9”, Centro de Estudos Clássicos da
Universidade de Lisboa / Instituto Nacional de Iinvestigação Científica, Lisboa, 1990, 1ª edição
(Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa por
Arnaldo Espírito Santo).

1154
GÉNEROS, HEROÍSMOS, REPRESENTAÇÕES E RECEPÇÕES NAS NARRATIVAS DE VIAGENS...
J O Ã O C A R L O S F I R M I N O A N D R A D E D E C A R VA L H O

interpretação, à clarificação do modo como pode ser possível o encontro


produtivo entre o olhar interrogador do hermeneuta dos nossos dias e uma obra
do século XVI, sem cair na armadilha do anacronismo, ou seja, sem projectar,
ingenuamente ou intencionalmente, no passado, o nosso presente, sabendo,
portanto, que há limites para toda a interpretação e se não podemos com toda a
segurança dizer quais as interpretações mais válidas, podemos com alguma
segurança dizer quais as más interpretações.
Muito provavelmente, será sensato pensar que a designação de Literatura
de Viagens dos Descobrimentos Portugueses (mais uma especificação
problemática: a da nacionalidade) tem as suas limitações, mas também tem as
suas potencialidades, sobretudo se estivermos a articulá-la com o modelo
cultural dos descobrimentos portugueses de um autor como Luís Filipe
Barreto3 (que estabelece uma escala de corpora textuais que vai do menos literário
ao mais literário, ou vice versa, consoante partirmos do mais técnico/pragmático
relativamente aos saberes ligados à marinharia ou partirmos do ideológico-
cultural (que se situa na periferia do modelo referido). Uma obra como os
Colóquios dos Simples e Drogas da Índia de Garcia da Orta ou o Esmeraldo de situ orbis
ou a Relação da Primeira Viagem de Vasco da Gama de Fernão Veloso, ou ainda, a
Carta do Achamento do Brasil de Caminha podem ser consideradas Literatura de
Viagens? Podem, mas com o cuidado de não as confundir com o cânone
literário da época ou de não esquecer o que significava tal fenómeno para as
Artes Poéticas da época. Entendendo-as na confluência do olhar aberto do
hermeneuta dos nossos dias (para o qual a designação pode ser confortável)
com o espírito aberto, em termos filosófico-culturais, do homem renascentista,
enquanto homem complexo, com uma vertente humanista-erudita-livresca
(com os olhos postos nos modelos antigos), mas também com uma vertente
experiencialista (com os olhos postos no real conhecido e, sobretudo, no real
exótico, estranho). Quero com isto dizer que não tendo sido produzidas
intencionalmente como obras literárias, a categoria da literariedade, da esteticidade
e ainda da retoricidade atravessam-nas constantemente, tenham os seus autores
maior ou menor consciência disso.
Hoje venho falar-vos de duas obras da literatura de viagens dos
descobrimentos que, felizmente para mim e para vós, dará um pouco menos de
trabalho a justificá-las enquanto tal. Refiro-me a Os Lusíadas4de Camões e à
Peregrinação5de Fernão Mendes Pinto. Referimos atrás a epopeia camoniana

3. Barreto, Luís Filipe, Portugal – Mensageiro do Mundo Renascentista, col. “Referências”, Quetzal Editores,
Lisboa, 1989.
4. Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas (edição organizada por Emanuel Paulo Ramos), Porto Editora, Porto,
s/d.
5. Fernam Mendez Pinto, Peregrinaçam (edição fac-similada da edição de 1614), Castoliva Editora Limitada,
Maia, 1995 (com Apresentação de José Manuel Garcia).

1155
Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005

como epopeia de imitação dos modelos antigos. Camões leu, de facto, os


mestres do passado (quer os literários quer os teóricos) e domina-lhes o
pensamento, o que tornaria fácil seguir-lhes cegamente os ensinamentos;
contudo, Os Lusíadas são mais do que isso; são uma epopeia de superação dos
Antigos e afirmação dos protagonistas do mundo moderno – os portugueses
que, na maior aventura dos tempos até então vista, abriram novos mundos ao mundo
(literal e metaforicamente falando). Portanto, quanto à obra épica de Camões
não parece haver qualquer dificuldade em justificá-la como literatura, literatura
de viagens (a sua espinha dorsal em termos de estrutura narrativa assenta como
é sabido na viagem de Vasco da Gama à Índia) e como literatura de viagens dos
descobrimentos portugueses. Já quanto à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto
importa justificar alguns aspectos, embora ela, hoje em dia, já não devesse
precisar deste meu zelo teórico (mas enfim, não vá o diabo tecê-las).
A pergunta que se impõe é a seguinte: como foi sendo lida esta obra de
Fernão Mendes ao longo dos tempos? Para responder rapidamente: por um
lado, como narrativa documental, isto é, como pretenso espelho do real mal
conhecido ou desconhecido (o Oriente, o Extremo Oriente), como relato
cronístico, no sentido em que Aristóteles, na sua Poética, define o discurso
histórico (registo do particular, registo do que realmente aconteceu e realmente
foi testemunhado presencialmente através da visão); esta tradição hermenêutica
terá começado cedo na história da recepção da Peregrinação, embora marque
sobretudo o século XIX e princípios do século XX; nesta perspectiva, a
narrativa quis ser documento, esforçou-se por tal, mas terá falhado, dado que
não resistiria ao confronto com uma suposta comprovação histórico-
geográfica; é, aliás, daqui que pode derivar a expressão “Fernão Mentes?
Minto.” Mas curiosamente esta expressão também pode ser lida ao contrário:
ou seja, como manifestação do seu carácter mais assumidamente ficcional – é
toda a problemática do fingimento. A perspectiva que hoje domina deve muito
à interpretação que, a partir de meados do século XX, os
formalismos/estruturalismos e pós-estruturalismos fizeram desta narrativa
singular, assente no entendimento desta como obra ficcional, se quisermos no
sentido em que Aristóteles definia a Poesia/Literatura – como relato do que
poderia ter acontecido ou ter sido vivido e visto (registo mais universal do que
o histórico e, por isso mesmo, considerado pelo estagirita, como superior a este
último). Isto não elimina, como é evidente, a ocorrência constante dos efeitos de
real, até porque a estética dominante é a de um certo realismo ingénuo.
De facto, se tivermos em consideração alguns dos factores essenciais do
circuito comunicacional, ou seja, a produção, a mensagem, a recepção, o
contexto e o código, não poderemos negar o pendor ficcional desta narrativa
de aventuras, a começar, desde logo, pela análise da sua natureza memorialística,
avant la lettre (não esqueçamos que a Peregrinação será escrita muito depois do

1156
GÉNEROS, HEROÍSMOS, REPRESENTAÇÕES E RECEPÇÕES NAS NARRATIVAS DE VIAGENS...
J O Ã O C A R L O S F I R M I N O A N D R A D E D E C A R VA L H O

regresso de FMP a Portugal, no recato familiar da sua quinta do Pragal (em


Almada), para onde se retirou cansado de esperar, em Lisboa, pela tença
merecida - muitos outros se queixarão dos atrasos ou esquecimentos por parte
do Paço Real, como Camões; por outro lado, não esqueçamos que a obra
demorou alguns anos a ser escrita, que ainda incompleta terá sido dada a ler a
amigos e conhecidos do círculo restrito do autor, que poderá ter sido mexida
com ou sem o consentimento do autor enquanto circulou manuscrita, e que
finalmente, só foi publicada em 1614?).
A memória é o mecanismo psíquico da reconstituição do passado que,
para além de ser falível em si mesmo, é permeável à imaginação criadora. Por
outro lado, a estrutura desta longa narrativa (incongruências flagrantes ou sub-
reptícias; episódios ditos como testemunhados e outros afirmados como
relatos em segunda ou terceira mão; as montagens estilísticas de que fala Óscar
Lopes, a propósito do modelo desdobrado quase ao infinito dos naufrágios;
etc.), a análise dos pontos de vista dos narradores e dos recursos retórico-
estilísticos (ao nível da elocutio: enumerações, amplificações, hiperbolizações,
condensações, processos comparativos/metafóricos ou metonímicos; ao nível
da inventio e dispositio –ver atrás exemplos– da memoria e até da própria pronuntiatio
–vejam-se, por exemplo, os efeitos exóticos e divertidos das cacofonias
presentes na suposta reprodução do discurso oral do Outro) dão-nos a ver a
construção de uma narrativa ficcional, ainda que, como é natural, preocupada
com a sua verosimilhança (insistência na autoridade da visão directa das coisas ou
acontecimentos, na suposta consulta de fontes escritas acerca da História do
Outro, etc.). Uma atenta análise textual não descurará os mil e um cuidados
com que o autor-narrador procurará rodear (proteger) os seus deslizes lendários e
fantásticos, sempre preocupado com a recepção-leitura como limitação da sua
escrita (FMP, como outros do seu tempo, “divide” os leitores em leitores
sedentários ou de secretária e leitores abertos à novidade, ao exótico, ávidos de
imaginação; contentar ambos os tipos de receptores da sua mensagem é
escrever constantemente no fio da navalha). Veja-se, a este propósito, a análise
dos exotemas na Peregrinação de um autor como Michel Korinman.
Para terminar esta leve abordagem genológica da Peregrinação, apenas uma
achega provocadora: do meu ponto de vista, esta narrativa (é curioso que todos
os teóricos mais recentes se limitam a esta singela categorização), enquanto
obra ficcional que é, deu um contributo não dispiciendo, para aquilo que
podemos designar como inauguração do romance moderno (aquele que
amadurecerá só no século XVIII, por exemplo, no contexto francês, ou, no
caso português, no século XIX). Não tenho aqui tempo ou espaço para um
desenvolvimento desta tese, mas algo já ficou dito atrás que pode ser um
começo de argumentação em seu abono.

1157
Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005

O problema do heroísmo
Temos, portanto, de um lado, uma epopeia das epopeias (imitação e
superação dos antigos) –Os Lusíadas– e, de outro lado, uma narrativa (um
romance?) de aventuras, dificilmente enquadrável nos sistemas genológicos das
Artes Poéticas, embora para ele confluam vários géneros de escrita em voga
desde o passado medieval ou no presente renascentista – a Peregrinação. Coloquei
ambas no plano do ficcional, embora ambas, de formas diferentes, tenham uma
relação com o real e com a veracidade histórica muito marcante. Vamos agora, e
até ao fim, ver, através da abordagem de dois tipos de questões, como as referidas
obras do século XVI, se opõem e, por isso, se complementam.
O primeiro tipo de questões prende-se com o chamado problema do
heroísmo.
N’ Os Lusíadas, como é sabido, temos um herói individual –Vasco da
Gama– e um herói colectivo –os Lusitanos.
Mas, talvez valha a pena perguntar-nos, o que é um herói? Um herói
representa um ideal humano que se exprime pela heroicidade, consubstanciado
num modelo que uma comunidade adopta.6 O género epopeia e a questão do
heroísmo camonianos têm de ser entendidos mais na esteira virgiliana (o herói
está ao serviço de um sistema de valores) do que na esteira homérica
(sobreposição da narrativa em que sobressai o herói individual).
No Canto VI (estâncias 95-99), Camões sugere que qualquer homem pode
ser herói. Ao contrário do modelo medieval de heroísmo dominado pela ideia
de élite colectiva (a Genealogia é determinante; veja-se o sacrifício de Egas
Moniz pela honra; exceptua-se o caso de D. Afonso Henriques, cujo
rompimento com a família, abrindo as portas à fundação da nacionalidade,
corta com o modelo medieval), o modelo de heroísmo em Camões,
representado pela uirtù renascentista, mostra-se no esforço individual, que não
se herda. Contudo, a fidalguia, se não é condição suficiente para se ser herói, é
condição necessária.
Mas atenção: o herói camoniano é um herói cultivado nas boas letras
humanísticas, que o Vate vai conciliar com uma outra característica do modelo
medieval, que é a da coragem e virilidade guerreiras, deslocada do espaço
simbólico da terra para o espaço do mar (pólo masculino da instabilidade e da
loucura) e ficando agora o espaço simbólico da terra como espaço da
estabilidade dominado pelo pólo feminino (o Portugal despovoado de homens
que partiram para o mar será ocupado pela figura predadora do castelhano
amante que surgirá, frequentemente, nos autos vicentinos).

6. Cf. Matos, Maria Vitalina Leal de, Introdução à poesia de Luís de Camões, Biblioteca Breve - Instituto de
Cultura Portuguesa, Lisboa, 1980.

1158
GÉNEROS, HEROÍSMOS, REPRESENTAÇÕES E RECEPÇÕES NAS NARRATIVAS DE VIAGENS...
J O Ã O C A R L O S F I R M I N O A N D R A D E D E C A R VA L H O

Entre o modelo e a realidade vai uma grande distância: a constatação que


os Portugueses não constituem um bom exemplo do ideal de heroísmo
camoniano (nem colectiva, nem individualmente: note-se que Vasco da Gama,
se consegue o que consegue, deve-o à intervenção divina – vitória de Vénus
sobre Baco).
Se o cepticismo (atávico ou contextualmente maneirista) está muito
presente no poema – veja-se a corrente de opinião minoritária e perdedora
representada pelo Velho do Restelo; note-se que a recompensa dada aos
portugueses coloca-a Camões no plano da ficção e não da realidade: Ilha dos
Amores, Contemplação do Cosmo; note-se, quase no final (Canto X, est. 145),
o cepticismo patente na imagem de Portugal desenhada na “austera, apagada e
vil tristeza” – não deixa de estar igualmente presente um certo optimismo
assente na inabalável fé religiosa cristã-católica. Contradições compatibilizadas
numa época caracterizada por isso mesmo.
Sem reflexo na prática, o modelo, no poema, torna-se um modelo
abstracto, teórico, com objectivos didáctico-pedagógicos. Afirma Maria Vitalina
Leal de Matos: “O objectivo do poema é menos contar uma história do que
ensinar um povo: mostrar-lhe em que consiste o heroísmo e o que deve ser um
homem.” (MVLM, p. 42).
E na Peregrinação como é tratado o problema do heroísmo?
Há uma tendência, muito arreigada no ensino, mas errónea, que lê este
texto de FMP como contraponto crítico da visão veiculada no texto de Camões.
Ora isso não corresponde a uma leitura comparativa atenta dos dois textos. Em
ambos, se quisermos, há alienação e desalienação identitária e ideológico-
religiosa, há afirmação de projectos, valores, e há, simultaneamente, crítica
desses projectos e valores. Só que o fazem de forma muito diferente, embora
complementar. FMP não é o escritor culto e erudito que é Camões, mas
também não é inculto ou simples registador de impressões de viagens.
Constróem ambos dois universos de ficção em que podemos reconhecer o
Portugal e o Mundo da época.
Segundo L. Stegagno Picchio7, a Peregrinação é o “antipoema, narrativa
fantástica e picaresca na primeira pessoa do anti-herói-indivíduo”. Se
deixarmos por ora de lado a noção de fantástico, retemos a ideia-força da
narrativa de aventuras de um sujeito indivídual deambulante/peregrinante pelas
longínquas regiões exóticas do Extremo Oriente que se destacaria pela sua
atitude anti-heróica de extracção picaresca. Ora, se é verdade que há no texto
de Mendes Pinto uma marca anti-heróica e mesmo picaresca (a deambulação de
um “pobre de mim” que muda de amo e deambula vertiginosamente, sempre
em busca de uma melhoria de vida e de saciar as necessidades básicas, mas que
7. Picchio, L. Stegagno, “Letteratura di viaggi e scoperte”, Quaderni Portoghesi, n.º 4, Pisa, 1978.

1159
Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005

sempre regressa ao fundo do abismo para, de novo, invariavelmente,


recomeçar), não nos parece que tal modalidade de narrador e personagem e tal
género de origem espanhola possam apoderar-se da totalidade desta narrativa.
Ao lado do anti-herói, também vemos a figura do herói (épico, guerreiro e
cavaleiresco) – p. ex., na figuração benigna inicial de um António de Faria (é
certo que o que se passará, posteriormente, desconstrói tal imagem) ou na
figuração do herói-mártir de um Padre Francisco Xavier (é certo que a sua
acção louvada é também apresentada como limitada nos efeitos da
evangelização).
E, como diria João David Pinto-Correia, temos ainda de considerar a
figura do não-herói – uma espécie de grau zero do heroísmo (note-se que FMP
personagem não age; é, sobretudo, co-agido pelas forças do destino que, dos
píncaros momentâneos da glória, o atiram para o fundo do abismo mais negro
(esquema da variação constante da euforia-disforia-euforia...).
Que sentidos ou significações podemos tirar da Peregrinação? Talvez se possa
dizer o seguinte: com o regresso do autor-narrador e personagem a Portugal,
assistimos a um homem transformado num outro homem mais experiente com
as coisas terrenas e com as coisas divinas. Se regressa cristão como partiu, temos
dúvidas que tenha regressado com uma crença arreigada na instituição Igreja
Católica (erasmismo, como referiu António José Saraiva?). Da sua peregrinação
regressou um crente no seu Deus e muito desconfiado dos homens.

A questão da representação-leitura do estranho/exótico/monstruoso


O segundo tipo de questões articula-se com a questão da representação-
leitura do estranho/exótico/monstruoso.
Camões gaba-se de ter criado uma epopeia superior às epopeias do
passado, entre outras razões, pela natureza experiencial, verídica, realista e
histórica do seu poema.
Mas, como sabemos, no seu texto está presente o universo da mitologia, o
maravilhoso e o fantasioso (o que levanta um problema de unidade de acção).
O fantasioso-lendário recuperado do passado está presente n’ Os Lusíadas, por
exemplo na veiculação de crenças dos Antigos, como a do carácter venenoso
do pêssego, ou na certificação experiencial pelo sujeito épico de crenças
religiosas de marinheiros, como é o caso do “fogo de santelmo”.
Ao nível mitológico, quem não se lembra do confronto entre os lusitanos
e a figura monstruosa do Adamastor, confronto de que os primeiros saem
vencedores, numa clara alusão à superioridade dos heróis lusitanos
relativamente à superstição, ao medo do desconhecido que inibiu outros
homens do mar em ir mais além do que os limites do mundo antigo e medieval.

1160
GÉNEROS, HEROÍSMOS, REPRESENTAÇÕES E RECEPÇÕES NAS NARRATIVAS DE VIAGENS...
J O Ã O C A R L O S F I R M I N O A N D R A D E D E C A R VA L H O

Por outro lado, Camões, segundo António José Saraiva, chegou a criar uma
autêntica comédia dos deuses; as figuras mitológicas seriam, assim, a expressão de
forças genesíacas que dão vida ao Cosmos (Maria Vitalina Leal de Matos).
Note-se que o mundo mitológico é o mundo da harmonização dos contrários,
dos opostos (onde podem surgir homens-deuses e deuses-homens). Quando
falamos de maravilhoso mitológico estamos aqui a referir-nos, quer ao Cristão,
quer ao Pagão, o que é compreensível apenas no plano do artifício poético.
Como explicar, então, a presença destes dois planos (o do Real/Factual e
o do Ficcional), sem colocar em causa o programa épico camoniano?
A resposta é esta: é que tais planos seguem em paralelo, não se misturam
(a não ser quando, propositadamente, se dá uma divinização dos homens (a
recompensa dada aos lusitanos com a possibilidade de contemplação do
Cosmos) ou uma humanização dos deuses (as deusas-mulheres da Ilha dos
Amores com que os portugueses se deparam constitui outra forma de
recompensa, desta vez ao nível do prazer sensual-erótico).
Na Peregrinação de Mendes Pinto, verdade factual e ficção surgem
mescladas de forma inextrincável. Nesta autobiografia romanceada, nem tudo
é verdade, nem tudo é mentira, mas distinguir os dois planos é tarefa impossível
e inútil.
Com certeza que Fernão Mendes Pinto quis ser fiel ao real que desfilou
perante os seus olhos espantados de europeu do século XVI, mas na sua
fidelidade está a sua traição a esse mesmo real: toda a representação é recriação,
e neste caso a memória favorece a imaginação criadora. Ora é aqui que se
coloca o drama da representação neste nosso autor. Como conseguir ser
credível perante os seus leitores não deixando de dar asas à imaginação? Para
responder a esta questão é necessário compreender o perfil dos seus leitores
coevos. O gosto pela descrição de lugares, gentes e costumes exóticos, pela
narração de aventuras reais de heróis nacionais, não afastava o gosto pelo
incrível, pelo fantástico. Todo o problema, para Mendes Pinto, estava em saber
dosear a verdade factual e a verdade ficcional, pois o seu texto não deveria ser
lido nem como texto fantástico (na linha de certa tradição medieval), nem como
texto histórico (a Peregrinação não quer ser uma Crónica do Extremo Oriente). A
leitura/recepção constitui, assim, um problema fundamental e mesmo
obsessivo na Peregrinação, condicionando o modo de representação.
Darei apenas três exemplos do que acabei de afirmar: um, no plano da
representação da natureza, outro, no plano de representação do religioso, e,
finalmente, outro, no plano da representação do humano.
A problemática hermenêutica da relação entre um “antes”
(preconceitos/prejuízos) e um “depois” (a novidade) pode surgir articulada
com a problemática da recepção-leitura, quando o diferente, o estranho, o

1161
Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005

admirável natural sofre uma auto-censura por parte de Fernão Mendes Pinto,
devido precisamente aos leitores sedentários (opostos aos nómadas),
egocêntricos e etnocêntricos, cuja visão enclausurada impede a abertura ao
Outro, ao Diferente. Neste contexto, torna-se impossível a fusão de horizontes
de expectativas (Popper, Jauss, Gadamer), o que tem consequências genológicas
(Jauss). Diz Fernão Mendes Pinto:

(...) vendo por entre o arvoredo do mato muito grande quantidade de cobras, e de
bichos de tão admiráveis grandezas e feições, que é muito para se arrecear contá-lo,
ao menos a gente que viu pouco do mundo, porque esta como viu pouco, também
costuma a dar pouco crédito ao muito que outros viram. (Capítulo XIIII, Folio 14)

A descrição de uma fauna admirável, estranha, insólita, exótica, não se fica


por aqui. Se atentarmos nos mecanismos da descrição de um animal
desconhecido ou mesmo conhecido, verificaremos que ela é feita recorrendo-
se a comparações com retalhos de outros animais conhecidos, o que provoca
consequências interpretativas, pois a imaginação do leitor não fica, decerto,
indiferente à heterogeneidade monstruosa/teratológica da configuração desta
fauna. A imagética (reino por excelência do monstruoso) sugerida ao leitor
pode desencadear certos efeitos fantásticos, dependendo as estratégias
interpretativas do intérprete e das condições de interpretação; mas as fronteiras
porosas, ambíguas, entre o real e o irreal estão lá, a possibilidade do leitor
incorporar a estranheza, o extra-natural, no real, no natural, também estão lá;
só falta o leitor deixar-se entrar no jogo, daí ser tão importante a identificação
do leitor (o nómada imaginativo). Instaura-se aqui toda a problemática da
subversão da Razão pela Imaginação no dealbar da nova época da ciência e não
tanto como resistência retrógada a esse novo espírito. Mas vejamos o que nos
diz Fernão Mendes Pinto:

Em todo este rio, que não era muito largo, havia muita quantidade de lagartos, aos
quais com mais próprio nome pudera chamar serpentes, por serem alguns do
tamanho de uma boa almadia, conchados por cima do lombo, com as bocas de mais
de dois palmos, e tão soltos e atrevidos no cometer, segundo aqui nos afirmaram os
naturais da terra, que muitas vezes arremetiam a uma almadia quando não levava
mais que três quatro negros, e assossobravam com o rabo, e um e um os comiam a
todos, e sem os espedaçarem os enguliam inteiros. Vimos aqui também uma muito
nova maneira, e estranha feição de bichos, a que os naturais da terra chamam
Caquesseitão, do tamanho de uma grande pata, muito pretos, conchados pelas
costas, com uma ordem de espinhos pelo fio do lombo do comprimento de uma
pena de escrever, e com asas da feição das do morcego, com o pescoço de cobra, e
uma unha a modo de esporão de galo na testa, com o rabo muito comprido pintado
de verde e preto, como são os lagartos desta terra. Estes bichos de vôo, a modo de
salto, caçam os bugios, e bichos por cima das árvores, dos quais se mantêm. Vimos
também aqui grande soma de cobras de capelo, da grossura da coxa de um homem,

1162
GÉNEROS, HEROÍSMOS, REPRESENTAÇÕES E RECEPÇÕES NAS NARRATIVAS DE VIAGENS...
J O Ã O C A R L O S F I R M I N O A N D R A D E D E C A R VA L H O

e tão peçonhentas em tanto extrêmo, que diziam os negros que se chegavam com a
baba da boca a qualquer coisa viva, logo em proviso caía morta em terra, sem haver
contrapeçonha, nem remédio algum que lhe aproveitasse. Vimos mais outras cobras
que não são de capelo, nem tão peçonhentas como estas, mas muito mais compridas
e grossas, e com as cabeças do tamanho de uma vitela, estas nos diziam eles, que
caçavam também de rapina no chão, por esta maneira sobem-se em cima das árvores
silvestres, de que toda a terra é assaz povoada, enroscando a ponta do rabo em um
ramo se descem abaixo, deixando sempre a presa feita em cima, e posta a cabeça, e
com a orelha por escuta pregada no chão, sentem com a calada da noite toda a coisa
que bole, e em perpassando o boi, o porco, o veado, ou qualquer outro animal, o
ferram com a boca, e como já tem feita a presa com o rabo lá em cima no ramo, em
nehuma coisa pregam que a não tragam a si, de maneira que coisa viva lhe não
escapa. Vimos aqui também muito grande quantidade de monos pardos e pretos, do
tamanho de grandes rafeiros, dos quais os negros têm muito maior medo que de
todos estes outros animais, porque cometem com tanto atrevimento, que ninguém
lhe pode resistir. (Cap. XIIII, folio 14 e 14 v.)

Mais ou menos conhecidos, todos estes animais se distinguem por uma ou


outra particularidade –física ou comportamental– exótica, que prendem a
atenção ou o olhar do narrador. Mas é através da linguagem que eles nos são
dados a conhecer/ver e a linguagem cria, quando retoricamente trabalhada,
factores de estranheza/surpresa máxima, acentuando a diferença insólita (caso
do “caquesseitão”), e, assim, conduzindo à monstruosidade (dependendo isso
também dos contextos de recepção). Nos casos de estranheza/surpresa mínima
(quando a espécie é conhecida), acentua-se a característica que a distingue: por
exemplo, a dimensão inusitada/extraordinária, articulada com a sua
agressividade/perigosidade para o homem.
Fernão Mendes Pinto consagra uma sequência considerável de capítulos
da sua narrativa ao Império e à Cidade Chineses (42 capítulos; 80-121),
impondo-se sintomaticamente aqui a Descrição. Mas descrever a China é
tarefa difícil, pois parece que “faltam palavras” para “tantas coisas”, a
linguagem e a escrita parecem ficar aquém de uma hiper-semiose, de um
universo excessivo, de composição variegada e notável.
A China seria perfeita (ou quase) se fosse cristã. A entusiástica adesão e
descentramento de Fernão Mendes Pinto não é, pois, inocente; visa, por acção
da ideologia religiosa, uma estratégia “imperialista” de redução do Outro ao
Mesmo-Cristão-Católico.
É, aliás, aquela falta/falha religiosa do Outro-Chinês que o leva a ser
estigmatizado como bárbaro, idólatra, infiel, desatinado e diabólico/satânico. A
religião do Outro-Chinês surge, ainda, aos olhos de Fernão Mendes Pinto,
como algo de radicalmente exuberante e como lugar do monstruoso (uma
prega rugosa na lisura da utopia chinesa). Daqui deriva a
reprovação/condenação por parte do Mesmo, mas também o prazer/deleite

1163
Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005

para os olhos que a sua espectacularidade provoca. O efeito teratológico,


resultante do heteróclito figurativo (humano e animal), do disforme (formas
retorcidas e desproporcionadas), do ambiente inquietante e suspensivo do real
e da preciosidade ofuscante dos metais, provoca, no narrador-personagem,
juízos de valor estético (positivos e negativos) e expressões de
prazer/desprazer:

(...) grande quantidade de ídolos de diferentes figuras, de homens, de serpentes, de


cavalos, de bois, de elefantes, de peixes, de cobras, e de outras muitas feições
monstruosas de bichos e alimárias nunca vistas em nenhuma parte (...) um ídolo de
prata em vulto de mulher que com ambas as mãos estava afogando uma serpente
muito bem pintada de verde e preto (...) estavam duas figuras de homens, cada um
com sua maça de ferro nas mãos, como que guardavam aquela entrada, cuja estatura
e grandeza era de cento e quarenta palmos, com uns rostos tão feios em tanta
maneira que quase tremiam as carnes a quem os olhava, aos quais os Chins
chamavam Xixipitau Xalicão, que quer dizer, assopradores da casa do fumo. (...) uma
cobra de bronze toda enroscada e armada por peças, que tinha em roda mais de
trinta braças, coisa de tamanho espanto que faltam palavras para o encarecer (...).
Esta monstruosa cobra, a que os Chins chamavam serpe tragadora da casa do fumo,
tinha metido na cabeça um pelouro de ferro coado de cinquenta e dois palmos,
como que lhe tinham tirado com ele. (...) uma figura de homem do mesmo bronze,
a modo de gigante, também assaz estranha e desascostumada, assim na grandeza do
corpo, como na grossura dos membros (...). // (...) estavam, em figuras muito
disformes, os dois porteiros do inferno, segundo eles dizem, um por nome
Bacharom, e outro Quagifau, ambos com maças de ferro nas mãos, e tão feios em
tanto extremo, que as carnes tremiam aos que olhavam para eles. (...) quatro fileiras
de gigantes de metal de quinze palmos cada um, e com alabardas nas mãos, e as
grenhas das cabeças, e as barbas douradas, o qual espectáculo, afora o
contentamento que dava aos olhos, mostrava também um real e assaz grandioso
aparato. (...) estava o Quiay Hujão Deus da chuva, encostado a um bordão, de mais
de setenta palmos de comprido, e ele tão alto que dava com a cabeça em cima nas
ameias da torre, que seria de mais de doze braças, o qual era também de metal, e
botava pela boca, pelas faces, pela testa e pelos peitos vinte e seis esguichos de água,
que a gente em baixo tomava por grande relíquia, a qual água lhe vinha de cima da
torre a que estava encostado por canos tão secretos que ninguém lhos enxergava. (...)
estava a estátua da Nacapirau, em figura de mulher muito fermosa, com os cabelos
soltos por cima dos ombros, e as mãos ambas levantadas ao céu, e ela em si tão
resplandecente por ser o ouro muito fino e muito brunhido, que não havia quem lhe
pudesse ter os olhos direitos, porque os raios que de si lançava cegava como os de
um espelho. (Cap. CIX, folio 128 v. – Cap. CX, folio 130 v.).

Note-se, de passagem, a confluência de certos tópicos aqui ao serviço de


uma retórica do teratológico: sensacionalismo cromático, visual e auditivo (os
sons ensurdecedores das múltiplas campainhas que acompanham a descrição
acima citada), a obsessão quantificadora e mensurável, a enumeração, os
exotemas positivos de valorização (espanto horrificado), de excripção

1164
GÉNEROS, HEROÍSMOS, REPRESENTAÇÕES E RECEPÇÕES NAS NARRATIVAS DE VIAGENS...
J O Ã O C A R L O S F I R M I N O A N D R A D E D E C A R VA L H O

(isolamento concorrencial) e o exotema negativo da imperícia (desproporção


entre o dizível e o visível). Relacionado ainda com a problemática da teratologia
religiosa do Outro-Chinês, estão os motivos difusos do espelho e da serpente.
O motivo do espelho prende-se, em termos gerais, com o problema da
representação e da ilusão especular do século XVI (aspecto central na
Peregrinação ...) e, em termos específicos, com o problema da teratologização
do Outro-Mesmo, ou seja, projecção sobre o Outro dos medos, fantasmas e
monstros do interior do Mesmo (o exotismo como pretexto para desnudar/de-
monstrar o Si Próprio). É exemplo disto o motivo da Cobra/Serpente e que
bem poderia ser o do Dragão, metáfora do poder político na civilização chinesa
(e não só), mas metáfora do Mal para o Cristianismo.8 De facto, não passa
despercebida a recorrente referência, no contexto chinês, à Tentação-Fascínio
exercida pela monstruosa Serpe Tragadora da Côncava Funda da Casa do Fumo.
Tentação-Fascínio pela utopia da Sociedade-Cidade chinesas e Tentação-
Fascínio pelo Pecado, na terminologia cristã, aqui exorcizado.
Contudo, o monstruoso também surge desligado da religiosidade do
Outro-Chinês, manifestando-se, no plano do humano, como
animalização/bestialização desse mesmo Outro. É o caso da “gente disforme”
e de “fala desentoada” que Fernão Mendes Pinto, ainda na companhia de
António de Faria, encontra dias antes de chegarem à enseada de Nanquim.
Aqui a construção do Outro como monstro passa pela sua inferiorização
enquanto animal não racional e selvagem, perceptível pelo seu habitat inóspito
e improdutivo (mato, floresta e serranias), pelos comportamentos agressivos e
animalescos (não são mamíferos; uivam e saltam; são carnívoros), pelas marcas
anatómicas (disformidade do corpo) e vestuário rústico, e, finalmente, pela
anomalia linguística (disformidade linguística/irracionalismo), em que o Outro
é dotado quando muito de uma infra-linguagem, fazendo-se igualmente a
comunicação com o Mesmo através de uma infra-linguagem gestual. Atente-se no
seguinte excerto:

(...) nas faldras debaixo habitava uma disforme gente, que se chamavam Gigauhos,
os quais vivendo selvaticamente se não sustentam de outra coisa senão só da caça
do mato, e de algum arroz que de certos lugares da China por mercancia lhe levavam
mercadores de que faziam resgate a troco de peles em cabelo (...). (...) estes Gigauhos
(...) assim por não mamarem no leite, como por sua natureza robusta e ferina os
inclinar a se manterem de carne e sangue como qualquer desses bichos do mato. (...)
respondeu com uma fala muito desentoada, quiteu parao fau fau, porém não se soube
o que queria dizer (...). E somente por acenos tratava o Similau a mercancia (...).
Vinha este moço vestido de umas peles de tigre (...). (...) assim machos como fêmeas
vinham vestidos de uma mesma maneira, sem haver diferença no trajo (...). (...) eram
todos de gestos grosseiros, e robustos, tinham os beiços grossos, os narizes baixos

8. Dubois, Claude-Gilbert, L’Imaginaire de la Renaissance, coll. “Écritures”, PUF, Paris, 1985.

1165
Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005

e aparrados, as ventas grandes, e são algum tanto disformes na grandeza do corpo


(...); mas todavia entendo que é gente muito rústica e agreste, e a mais fora de toda
a razão que quantas até agora se tem descoberto, nem nas nossas conquistas, nem
em outras nenhumas. (...) e despois de estarmos falando por acenos com eles (...) se
tornaram a meter no mato (...) uivando (...) e saltando (...). (Cap. LXXIII, folios 81,
81 v. 82)

Assinale-se que esta visão pormenorizada do Outro como primitivo-


bestial (o monstruoso sem ser por motivações religiosas) – se exceptuarmos
ainda um outro caso, embora noutro contexto geográfico (quando Fernão
Mendes Pinto regressa do Calaminhan para o Peguu, Cap. CLXVI) – é algo que
destoa dos tipos de encontro e respectivos relatos descritivos, relativos ao
Extremo Oriente, lembrando mais, pelo menos em algumas das suas
características, as descrições do encontro com o negro idólatra africano
(descontadas algumas diferenças), onde o Outro é visto como inferior bestial.
Seja como for, ambos os casos referidos acima, relativos ao monstruoso no
plano do humano, situam-se mais na periferia do império chinês (zonas
fronteiriças do Tibete ou da costa sul) do que propriamente no seu seio;
também o encontro inesperado de Fernão Mendes Pinto com o Outro-Tártaro
(1544), visto como “bárbara gente” invasora do policiado império chinês, nos
revela mais um Outro periférico da China.
Chegámos ao fim dos exemplos relacionados com esta específica
configuração da representação e sua recepção. Gostaria, para terminar, de
colocar a seguinte questão: acreditaria Fernão Mendes Pinto nos universos
monstruosos que representa (tal como acontece em certo tipo de narrativas
medievais)? A resposta, creio, que só pode ser esta: Fernão Mendes Pinto
acreditaria que a imaginação de certo tipo de leitores exigia tais procedimentos
narrativos. Tal como André Thevet ou Jean de Léry o fizeram relativamente ao
Brasil (embora com estes, levado ao extremo), Fernão Mendes Pinto,
relativamente ao Extremo Oriente, utilizou o monstruoso, o efabulatório, quiçá
o fantástico, como ingrediente retórico indispensável a toda a narrativa de
aventuras. Porém, o peso da regra da verosimilhança das Poéticas Clássicas
faz-se sentir a todo o momento, ao longo da narrativa,
condicionando/temperando o seu discurso e impedindo que se transforme
num texto assumidamente fantástico (que não parece ter estado nas intenções
do nosso autor).
E também, para terminar este confronto entre as duas obras da chamada
literatura de viagens dos descobrimentos portugueses, cremos ter dado a ver
como uma certa oposição e uma certa complementaridade entre elas nos
proporcionam uma abordagem mais completa e profunda do nosso século
XVI.

1166

Você também pode gostar