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Actas do VIII Congresso Internacional da Associação Internacional de Lusitanistas
Santiago de Compostela • Galiza • 18/23 de Julho • 2005
2. Vida, Marco Girolamo, Arte Poética, col. “Biblioteca Euphrosyne – 9”, Centro de Estudos Clássicos da
Universidade de Lisboa / Instituto Nacional de Iinvestigação Científica, Lisboa, 1990, 1ª edição
(Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa por
Arnaldo Espírito Santo).
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3. Barreto, Luís Filipe, Portugal – Mensageiro do Mundo Renascentista, col. “Referências”, Quetzal Editores,
Lisboa, 1989.
4. Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas (edição organizada por Emanuel Paulo Ramos), Porto Editora, Porto,
s/d.
5. Fernam Mendez Pinto, Peregrinaçam (edição fac-similada da edição de 1614), Castoliva Editora Limitada,
Maia, 1995 (com Apresentação de José Manuel Garcia).
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O problema do heroísmo
Temos, portanto, de um lado, uma epopeia das epopeias (imitação e
superação dos antigos) –Os Lusíadas– e, de outro lado, uma narrativa (um
romance?) de aventuras, dificilmente enquadrável nos sistemas genológicos das
Artes Poéticas, embora para ele confluam vários géneros de escrita em voga
desde o passado medieval ou no presente renascentista – a Peregrinação. Coloquei
ambas no plano do ficcional, embora ambas, de formas diferentes, tenham uma
relação com o real e com a veracidade histórica muito marcante. Vamos agora, e
até ao fim, ver, através da abordagem de dois tipos de questões, como as referidas
obras do século XVI, se opõem e, por isso, se complementam.
O primeiro tipo de questões prende-se com o chamado problema do
heroísmo.
N’ Os Lusíadas, como é sabido, temos um herói individual –Vasco da
Gama– e um herói colectivo –os Lusitanos.
Mas, talvez valha a pena perguntar-nos, o que é um herói? Um herói
representa um ideal humano que se exprime pela heroicidade, consubstanciado
num modelo que uma comunidade adopta.6 O género epopeia e a questão do
heroísmo camonianos têm de ser entendidos mais na esteira virgiliana (o herói
está ao serviço de um sistema de valores) do que na esteira homérica
(sobreposição da narrativa em que sobressai o herói individual).
No Canto VI (estâncias 95-99), Camões sugere que qualquer homem pode
ser herói. Ao contrário do modelo medieval de heroísmo dominado pela ideia
de élite colectiva (a Genealogia é determinante; veja-se o sacrifício de Egas
Moniz pela honra; exceptua-se o caso de D. Afonso Henriques, cujo
rompimento com a família, abrindo as portas à fundação da nacionalidade,
corta com o modelo medieval), o modelo de heroísmo em Camões,
representado pela uirtù renascentista, mostra-se no esforço individual, que não
se herda. Contudo, a fidalguia, se não é condição suficiente para se ser herói, é
condição necessária.
Mas atenção: o herói camoniano é um herói cultivado nas boas letras
humanísticas, que o Vate vai conciliar com uma outra característica do modelo
medieval, que é a da coragem e virilidade guerreiras, deslocada do espaço
simbólico da terra para o espaço do mar (pólo masculino da instabilidade e da
loucura) e ficando agora o espaço simbólico da terra como espaço da
estabilidade dominado pelo pólo feminino (o Portugal despovoado de homens
que partiram para o mar será ocupado pela figura predadora do castelhano
amante que surgirá, frequentemente, nos autos vicentinos).
6. Cf. Matos, Maria Vitalina Leal de, Introdução à poesia de Luís de Camões, Biblioteca Breve - Instituto de
Cultura Portuguesa, Lisboa, 1980.
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Por outro lado, Camões, segundo António José Saraiva, chegou a criar uma
autêntica comédia dos deuses; as figuras mitológicas seriam, assim, a expressão de
forças genesíacas que dão vida ao Cosmos (Maria Vitalina Leal de Matos).
Note-se que o mundo mitológico é o mundo da harmonização dos contrários,
dos opostos (onde podem surgir homens-deuses e deuses-homens). Quando
falamos de maravilhoso mitológico estamos aqui a referir-nos, quer ao Cristão,
quer ao Pagão, o que é compreensível apenas no plano do artifício poético.
Como explicar, então, a presença destes dois planos (o do Real/Factual e
o do Ficcional), sem colocar em causa o programa épico camoniano?
A resposta é esta: é que tais planos seguem em paralelo, não se misturam
(a não ser quando, propositadamente, se dá uma divinização dos homens (a
recompensa dada aos lusitanos com a possibilidade de contemplação do
Cosmos) ou uma humanização dos deuses (as deusas-mulheres da Ilha dos
Amores com que os portugueses se deparam constitui outra forma de
recompensa, desta vez ao nível do prazer sensual-erótico).
Na Peregrinação de Mendes Pinto, verdade factual e ficção surgem
mescladas de forma inextrincável. Nesta autobiografia romanceada, nem tudo
é verdade, nem tudo é mentira, mas distinguir os dois planos é tarefa impossível
e inútil.
Com certeza que Fernão Mendes Pinto quis ser fiel ao real que desfilou
perante os seus olhos espantados de europeu do século XVI, mas na sua
fidelidade está a sua traição a esse mesmo real: toda a representação é recriação,
e neste caso a memória favorece a imaginação criadora. Ora é aqui que se
coloca o drama da representação neste nosso autor. Como conseguir ser
credível perante os seus leitores não deixando de dar asas à imaginação? Para
responder a esta questão é necessário compreender o perfil dos seus leitores
coevos. O gosto pela descrição de lugares, gentes e costumes exóticos, pela
narração de aventuras reais de heróis nacionais, não afastava o gosto pelo
incrível, pelo fantástico. Todo o problema, para Mendes Pinto, estava em saber
dosear a verdade factual e a verdade ficcional, pois o seu texto não deveria ser
lido nem como texto fantástico (na linha de certa tradição medieval), nem como
texto histórico (a Peregrinação não quer ser uma Crónica do Extremo Oriente). A
leitura/recepção constitui, assim, um problema fundamental e mesmo
obsessivo na Peregrinação, condicionando o modo de representação.
Darei apenas três exemplos do que acabei de afirmar: um, no plano da
representação da natureza, outro, no plano de representação do religioso, e,
finalmente, outro, no plano da representação do humano.
A problemática hermenêutica da relação entre um “antes”
(preconceitos/prejuízos) e um “depois” (a novidade) pode surgir articulada
com a problemática da recepção-leitura, quando o diferente, o estranho, o
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admirável natural sofre uma auto-censura por parte de Fernão Mendes Pinto,
devido precisamente aos leitores sedentários (opostos aos nómadas),
egocêntricos e etnocêntricos, cuja visão enclausurada impede a abertura ao
Outro, ao Diferente. Neste contexto, torna-se impossível a fusão de horizontes
de expectativas (Popper, Jauss, Gadamer), o que tem consequências genológicas
(Jauss). Diz Fernão Mendes Pinto:
(...) vendo por entre o arvoredo do mato muito grande quantidade de cobras, e de
bichos de tão admiráveis grandezas e feições, que é muito para se arrecear contá-lo,
ao menos a gente que viu pouco do mundo, porque esta como viu pouco, também
costuma a dar pouco crédito ao muito que outros viram. (Capítulo XIIII, Folio 14)
Em todo este rio, que não era muito largo, havia muita quantidade de lagartos, aos
quais com mais próprio nome pudera chamar serpentes, por serem alguns do
tamanho de uma boa almadia, conchados por cima do lombo, com as bocas de mais
de dois palmos, e tão soltos e atrevidos no cometer, segundo aqui nos afirmaram os
naturais da terra, que muitas vezes arremetiam a uma almadia quando não levava
mais que três quatro negros, e assossobravam com o rabo, e um e um os comiam a
todos, e sem os espedaçarem os enguliam inteiros. Vimos aqui também uma muito
nova maneira, e estranha feição de bichos, a que os naturais da terra chamam
Caquesseitão, do tamanho de uma grande pata, muito pretos, conchados pelas
costas, com uma ordem de espinhos pelo fio do lombo do comprimento de uma
pena de escrever, e com asas da feição das do morcego, com o pescoço de cobra, e
uma unha a modo de esporão de galo na testa, com o rabo muito comprido pintado
de verde e preto, como são os lagartos desta terra. Estes bichos de vôo, a modo de
salto, caçam os bugios, e bichos por cima das árvores, dos quais se mantêm. Vimos
também aqui grande soma de cobras de capelo, da grossura da coxa de um homem,
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e tão peçonhentas em tanto extrêmo, que diziam os negros que se chegavam com a
baba da boca a qualquer coisa viva, logo em proviso caía morta em terra, sem haver
contrapeçonha, nem remédio algum que lhe aproveitasse. Vimos mais outras cobras
que não são de capelo, nem tão peçonhentas como estas, mas muito mais compridas
e grossas, e com as cabeças do tamanho de uma vitela, estas nos diziam eles, que
caçavam também de rapina no chão, por esta maneira sobem-se em cima das árvores
silvestres, de que toda a terra é assaz povoada, enroscando a ponta do rabo em um
ramo se descem abaixo, deixando sempre a presa feita em cima, e posta a cabeça, e
com a orelha por escuta pregada no chão, sentem com a calada da noite toda a coisa
que bole, e em perpassando o boi, o porco, o veado, ou qualquer outro animal, o
ferram com a boca, e como já tem feita a presa com o rabo lá em cima no ramo, em
nehuma coisa pregam que a não tragam a si, de maneira que coisa viva lhe não
escapa. Vimos aqui também muito grande quantidade de monos pardos e pretos, do
tamanho de grandes rafeiros, dos quais os negros têm muito maior medo que de
todos estes outros animais, porque cometem com tanto atrevimento, que ninguém
lhe pode resistir. (Cap. XIIII, folio 14 e 14 v.)
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(...) nas faldras debaixo habitava uma disforme gente, que se chamavam Gigauhos,
os quais vivendo selvaticamente se não sustentam de outra coisa senão só da caça
do mato, e de algum arroz que de certos lugares da China por mercancia lhe levavam
mercadores de que faziam resgate a troco de peles em cabelo (...). (...) estes Gigauhos
(...) assim por não mamarem no leite, como por sua natureza robusta e ferina os
inclinar a se manterem de carne e sangue como qualquer desses bichos do mato. (...)
respondeu com uma fala muito desentoada, quiteu parao fau fau, porém não se soube
o que queria dizer (...). E somente por acenos tratava o Similau a mercancia (...).
Vinha este moço vestido de umas peles de tigre (...). (...) assim machos como fêmeas
vinham vestidos de uma mesma maneira, sem haver diferença no trajo (...). (...) eram
todos de gestos grosseiros, e robustos, tinham os beiços grossos, os narizes baixos
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