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Bruno Silva & Anna Coelho

(Organizadores)

O Ensino de História em foco:


narrativas, desafios e proposições

1ª edição

Xinguara-PA, 2021
© Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores) 2021.

A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio,


seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

Projeto Gráfico e Diagramação


Rosivan Diagramação & Artes Gráficas

Catalogação da Publicação na Fonte.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições [recurso


eletrônico] / Bruno Silva e Anna Coelho (organizadores). – Xinguara:
Rosivan Diagramação & Artes Gráficas, 2021.
1 PDF.

ISBN 978-65-993583-4-0

1. Ensino - História. 2. Prática docente. 3. Memórias. 4. Tecnologias.


I. Silva, Bruno. II. Coelho, Anna.

CDU 355.233.1:93/94
E59

Elaborada por Verônica Pinheiro da Silva CRB-15/692.


Sumário

Apresentação 7

PARTE 1
ENSINO DE HISTÓRIA: NARRATIVAS, REVISIONISMOS E
NEGACIONISMOS

Capítulo 1
História, narrativa e ensino: um campo de disputas 16
Erinaldo Cavalcanti

Capítulo 2
A prática docente frente ao uso da Internet ou De como ensinar
História diante dos revisionismos negacionistas 31
Alisson Lião

PARTE 2
MEMÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA NA AMAZÔNIA

Capítulo 3
Memórias do autoritarismo e o ensino de História: dramaturgia,
teatro e literatura em perspectiva 48
Arcângelo da Silva Ferreira & Heraldo Márcio Galvão Júnior

Capítulo 4
Jacundá digital: memória, cidade e Ensino de História 78
Dulcirene Valente Neta & Anna Carolina de Abreu Coelho

Capítulo 5
A Guerrilha do Araguaia entre a História e o ensino no Sul e
Sudeste do Pará: algumas considerações 97
Henildes S. Almeida Junior & Andrey Minin Martin

PARTE 3
O ENSINO DE HISTÓRIA EM PERSPECTIVA: TEORIAS E MÉTODOS

Capítulo 6
O ensino de História na 7ª Conferência Internacional Americana (1933) 116
Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior
Capítulo 7
A disciplina Estudos Amazônicos no contexto paraense:
o que deve conter na discussão regional? 138
Davison Hugo Rocha Alves

PARTE 4
HISTÓRIA LOCAL NO ENSINO DE HISTÓRIA

Capítulo 8
Ensino de História no Ensino Fundamental I na cidade de Xinguara/
PA: entre desafios, perspectivas docentes e manuais didáticos 158
Candida Lisboa Belmiro

Capítulo 9
Reflexões sobre a trajetória do ensino de História para os povos
indígenas 185
Ronny Pyterson Romano dos Santos

PARTE 5
ENSINO DE HISTÓRIA E TECNOLOGIAS

Capítulo 10
Ensino de História e Cinema: a Lei 13.006/14 e suas
possibilidades para a Educação Básica 204
Marcelino A. da Silva Assis & Andrey Minin Martin

Capítulo 11
Ensino de história: pelas ondas do rádio nas décadas de 1930 e
1940 ao uso de podcast na atualidade 225
Valéria Moraes
APRESENTAÇÃO

O
projeto de organização do presente livro digital nasceu das
nossas reflexões a respeito dos desdobramentos da pandemia
de Covid-19, que se alastrou pelo mundo no ano de 2020.
Foi pensando no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ensino
de História da UNIFESSPA, o PROFHISTÓRIA. Diante da situação
alarmante que atacou o país e, especialmente, a região amazônica,
em março do ano passado precisamos interromper o curso presencial
bem como todas as atividades referentes ao Programa. Foi um começo
desanimador. Era nossa primeira turma, com 14 alunos matriculados,
com disciplinas preparadas e uma recepção com evento que reuniria
docentes e discentes de diferentes instituições e instâncias acadêmicas.
A pandemia parou a terra; nosso mestrado também ficou paralisado.
O que faríamos dali para a frente?
Reuniões e mais reuniões para buscar uma saída. Nossos dis-
centes, todos professores do Ensino Básico em diferentes instituições
do norte do país, nos apoiaram, desde o momento inicial, na busca por
uma saída que mantivesse o contato entre nós, docentes do Programa, e
todos eles. Em maio de 2020, após muito diálogo – com apoio primor-
dial da Pró-Reitoria de Pesquisa da UNIFESSPA (PROPIT) – voltamos
ao trabalho no mestrado, em sistema de ensino remoto. Em uma estru-
tura pensada para atender da melhor maneira possível as demandas dos
nossos discentes, nos deparamos, enfim, com mais um desafio imposto
pela pandemia, ou seja, ministrar disciplinas, avaliações e o desenvol-
vimento de dissertações usando tecnologias e metodologias que, geral-
mente, nunca foram prioritários na lida do ensino de História, muito
embora não fossem desconhecidos de parte considerável dos profissio-
nais, principalmente dos docentes do Ensino Básico.
Frente aos desafios diariamente enfrentados pelos nossos mes-
trandos e por nós mesmos na academia, ou seja, o uso do livro didático, a
questão da Base Comum, a utilização das tecnologias, o debate a respeito

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 7


da maior aproximação entre a universidade e as escolas do Ensino Básico,
a disputa das narrativas frente aos negacionismos e revisionismos cres-
centes na atualidade – sobretudo por conta da miríade de informações
provenientes da Internet – somava-se o ensino remoto. Professores que,
transitando entre as turmas dos segmentos Fundamental e Médio, com
carga horária absurdamente “desumana”, trancados em casa por conta da
doença mortífera, precisaram dividir seus dias entre: ministrar aulas, cui-
dar da família, adaptar seus lares para se tornarem salas de aulas, driblar
as dificuldades tecnológicas e perder suas jornadas em âmbito privado a
favor de uma caminhada de atendimento aos seus alunos, diariamente e
quase que 24 horas por dia. Acrescentava-se a tudo isso caminhar com
uma pós-graduação stricto sensu que, como sabemos, cobra do candidato
ao título um nível de dedicação impressionante.
Mas a situação enfrentada por todos, no ano de 2020, também
abalou as estruturas do ensino acadêmico e seu status quo. Precisamos
rever posições. Foi necessário pelo menos discutir as nossas práticas.
Uns apoiando as atividades remotas; outros, contra. Em meio ao turbi-
lhão de proposituras e emoções, o mestrado profissional em ensino de
História continuou. Com perdas, com ganhos, aprendizagens e reava-
liações. Precisamos rever práticas, mas acima de tudo foram necessárias
ajudas mútuas. Pensar novas formas de aulas, de avaliações e de contato
com os nossos discentes. Enquanto todos clamavam pelo distanciamen-
to social, procurávamos maneiras para as aproximações. Mesmo que
através das telas frias dos computadores, desenhamos humanidade em
meio às máquinas. Precisamos realocar recursos e verbas que deveriam
ser usadas em atividades presenciais. Uma saída: o presente E-book.
O resultado pode ser conferido nas próximas páginas. Ele é fruto
da união entre docentes e discentes do Mestrado profissional em ensino
de História da UNIFESSPA, e da preciosa colaboração de professores
convidados que também se sentem atraídos pelo debate em torno do
ensino de História. Nossa ideia foi trazer nossos alunos para a produ-
ção, incentivando-os a publicarem suas reflexões iniciais sobre seus ob-
jetos de estudo. Também convidamos os colegas de outras instituições e

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de diferentes programas de pós-graduação, buscando ampliar o debate
com outros polos de produção de conhecimento a respeito do trabalho
dos nossos professores de História. Portanto, há uma miríade de textos
que expressam as diferentes possibilidades de se abordar o Ensino de
História como enfoque de trabalhos relevantes, originais e que desnu-
dam a importância da maior difusão do mestrado profissional em tela,
principalmente em regiões como a do norte do país.
Buscamos organizar os textos em cinco partes. Na primeira te-
mos Ensino de História: narrativas, revisionismos e negacionismos. Nesse
momento, Erinaldo Cavalcanti – em “História, narrativa e ensino: um
campo de disputas” – apresenta de forma instigante as disputas de narra-
tivas como um dos grandes desafios para o ensino de História. Nos leva
a pensar a respeito da centralidade da narrativa histórica como objeto
primordial de reflexão ao longo da aula de história, muito embora não
se possa esgotar em tal narrativa a única possibilidade de representação
do passado. A discussão colocada pelo autor parte de uma proposição
extremamente relevante e palpável, ou seja, um aluno do Ensino Básico,
munido de informações encontradas na Internet, questiona o conheci-
mento histórico apresentado pelo (a) professor (a) sobre determinado
tema. A partir dessa situação hipotética, o autor lança luz sobre a im-
portância do procedimento de se focar na maneira como as narrativas
históricas são construídas. Essa seria uma forma de prevenir os negacio-
nismos/revisionismos ou, como ressalta o texto “tão importante quanto
saber o que se narra, no livro, é compreender como se narra”.
Na sequência, o capítulo “A prática docente frente ao uso da In-
ternet ou de como ensinar História diante dos revisionismos negacio-
nistas”, assinado por Alisson Lião, vai ao encontro das discussões an-
teriores, apontando que durante uma aula no Ensino Básico, com base
em dados retirados do site Metapedia, um aluno teria questionado os
fatos consolidados a respeito da Shoah. Ou seja, que haveria exageros
em torno dos crimes cometidos pelos nazistas. A partir dessa premissa,
o autor constrói suas reflexões a respeito de questões como: ensino de
História e o uso da Internet e os desdobramentos da ocupação das redes

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 9


sociais pelos professores de História/historiadores, defendendo assim a
importância da chamada Public History. A hipótese levantada é de que
os professores de História precisam ocupar espaços como o das redes
sociais, algo fundamental para, através de pesquisas e apresentação mais
acessível, combater os negacionismos/revisionismos que questionam
narrativas históricas consolidadas.
Tema caro aos profissionais da área em apreço nesse livro, a
memória é tomada como tema na segunda parte do E-book em Memó-
ria e ensino de História na Amazônia. A seção se inicia com o capítulo
dos professores Arcângelo da Silva Ferreira & Heraldo Márcio Galvão
Júnior, intitulado “Memórias do autoritarismo e o ensino de História:
dramaturgia, teatro e literatura em perspectiva”. Nele, os autores apon-
tam de forma original e bem arquitetada, as possibilidades de abordar,
através da análise de obras literárias, os aspectos do regime militar
no Brasil. Seguindo vertente teórico-metodológica que coteja as obras
literárias com as memórias impressas nas mesmas, e apresentando for-
mas de se utilizar, em sala de aula, tais escritos como fontes históricas,
os autores desnudam impressionantes fragmentos das obras oswaldia-
na e de Milton Hatoum que são importantes para se compreender as
conjunturas de autoritarismo no Brasil.
No texto seguinte, assinado por Dulcirene Valente Neta & Anna
Carolina de Abreu Coelho, temos “Jacundá digital: memória, cidade e
ensino de História”. O capítulo nos coloca questões interessantes sobre
os diferentes espaços de memória na cidade de Jacundá, no estado do
Pará. Aponta a importância desses espaços quando apresentados como
objetos de reflexão nas salas de aula do Ensino Básico, considerando a
dinâmica das suas historicidades. As autoras buscam desnudar a histó-
ria da cidade paraense através das memórias de seus antigos moradores,
problematizando as dimensões locais e buscando apontar perspectivas
mais macro analíticas que poderiam trazer à tona resultados menos
condicionados a uma ideia de história local, sobretudo na sua relação
com dimensões nacionais etc. Assim, o texto busca apresentar “a histó-
ria da cidade de Jacundá e as memórias dos seus moradores” buscando

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compreendê-los “como um ponto de partida para uma reflexão sobre os
conceitos de memória e identidade no espaço urbano.”
Henildes S. Almeida Junior & Andrey Minin Martin, em “A
Guerrilha do Araguaia entre a História e o ensino no Sul e Sudeste do
Pará: algumas considerações”, também trilham o caminho da memó-
ria e destacam a importância de se discutir e apresentar a Guerrilha
do Araguaia como temática no Ensino Básico. Além de refinado de-
bate historiográfico, os autores apontam para a necessidade basilar do
tema da Guerrilha em espaços educacionais, sobretudo naqueles que
se desenvolvem nas regiões que abarcaram o conflito, considerando de
forma pormenorizada as práticas docentes regionais, cotejando-as com
as narrativas e a construção da memória, uma vez que, quase sempre,
o conteúdo em tela é abordado sob a ótica de uma memória oficial que
se projeta nos currículos escolares. A pesquisa então teria como foco
o questionamento desse espaço de memória que, oficialmente, reflete
o status quo sobre o conflito. Ou seja, a “ausência curricular não anula
as possibilidades de realização de debates pelos professores nestas dis-
ciplinas e nos espaços escolares, bem como a produção e uso de outros
materiais” a respeito da Guerrilha do Araguaia.
O terceiro bloco de textos aborda O ensino de História em pers-
pectiva: teorias e métodos. Nele, Alexandre Guilherme da Cruz Alves
Junior abre com o capítulo “O ensino de História na 7ª Conferência In-
ternacional Americana (1933)”, no qual o autor ilumina a reintrodução
da história política como possibilidade de se efetivar pesquisas a partir
de novos questionamentos tais como, a exemplo do presente texto, a
questão do ensino da História política na Educação Básica. Partindo
da análise dos documentos produzidos na 7ª Conferência Internacional
Americana, de 1933, o autor nos convida a pensarmos sobre as relações
interamericanas; mas, também levar os estudantes a refletirem sobre as
narrativas históricas – tendo como pano de fundo a documentação re-
ferente ao evento em tela – no sentido de entenderem como tais narra-
tivas podem ser compreendidas como “instrumentos de determinados
projetos políticos, ontem e hoje.” Ou seja, o estudo dessa Convenção e

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da papelada ali produzida, revelaria as preocupações dos representantes
políticos dos países americanos em torno das temáticas e das aborda-
gens do ensino de História das Américas na década de 1930.
Preocupações semelhantes àquelas apresentadas no parágrafo
acima também aparecem, só que em análise micro, no texto “A disci-
plina Estudos Amazônicos no contexto paraense: o que deve conter na
discussão regional?”, assinado por Davison Hugo Rocha Alves, e que
reflete – em consonância com pesquisas defendidas por ele em sua dis-
sertação de mestrado – sobre a importância da disciplina Estudos Ama-
zônicos, apresentando sua solidificação em perspectiva e destacando a
necessidade de pensar tal disciplina não como moeda de troca política,
mas como espaço de discussão que ilumine as relações sociais existentes
na região amazônica. O autor percorre, com cautela e maestria, as dis-
cussões que deram origem a tal disciplina. Traça um percurso que vem
desde os anos 1990, ampliando questões a respeito dos movimentos re-
gionalistas. Contudo, vai além e reflete a importância de a disciplina
Estudos Amazônicos ser vista não somente em perspectiva local, mas
em consonância com o nacional e o global. “A questão do aumento do
desmatamento na floresta amazônica, a perda da biodiversidade, a ques-
tão indígena e os usos do território, a relação sociedade-natureza dentro
do espaço amazônico são temas urgentes e necessários para o debate da
discussão regional no espaço escolar” e, para o autor, esses temas vão
além do regional, são de importância para toda a sociedade brasileira.
O quarto bloco de textos aborda a História Local no Ensino de Histó-
ria, nele, o capítulo de Candida Lisboa Belmiro, “Ensino de História no En-
sino Fundamental I na cidade de Xinguara/PA: entre desafios, perspectivas
docentes e manuais didáticos”, enfatiza o livro didático de História, as percep-
ções dos professores, as fundamentações legais e a construção dos planos de
ensino da disciplina História na cidade de Xinguara, no Sul do Pará. O foco
de análise recai sobre o Ensino Fundamental I. A autora lança luz sobre da-
dos quantitativos e qualitativos bem como as dificuldades elencadas, através
do método da chamada História Oral, apresentadas pelos professores desse
segmento em questão quando da aplicabilidade da disciplina história para os

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estudantes daquela cidade. Com análise verticalizada, a autora apresenta da-
dos que indicam a importância do ensino de História no Fundamental I, mas
que no caso microcósmico de Xinguara apontam para dificuldades que são
norteadas por carga horária, escolhas de livro didático, formação continuada
e material adequado que considere as especificidades locais na promoção do
conhecimento dos alunos de que eles são sujeitos históricos.
Em “Reflexões sobre a trajetória do ensino de História para os
povos indígenas”, capítulo seguinte, o autor Ronny Pyterson Romano
dos Santos segue perspectiva próxima daquelas apontadas pelo texto
anterior e aprofunda a análise ao refletir sobre práticas pedagógicas que
sejam inerentes aos conhecimentos indígenas. Santos discute a dico-
tomia entre Ensino indígena e não-indígena e defende que o conheci-
mento produzido pelos povos originários deve ser a base epistemológi-
ca para o ensino de História nas escolas indígenas. Ou seja, defende a
“construção de um modelo que valorize” cultura e trajetórias indígenas
e faz isso através da recuperação – debate historiográfico – de uma lar-
ga tradição de ensino que, desde a construção do Estado enquanto na-
ção, buscou invisibilizar o protagonismo dos índios enquanto partícipes
da história do Brasil. Para o autor, superada essa fase, é o momento de
pensarmos o conhecimento indígena como particular, ímpar; e também
como “ferramenta de resistência a imposições homogeneizantes, repres-
sivas e globalizantes”.
A última seção do livro digital aborda questão seminal na atua-
lidade: Ensino de História e Tecnologias. Marcelino A. da Silva Assis &
Andrey Minin Martin nos brindam com o texto “Ensino de História e
Cinema: a lei 13.006/14 e suas possibilidades para a Educação Básica”.
Nele, os autores apontam, partindo de um denso debate historiográfi-
co, as relações entre cinema e História, enfatizando a antiguidade des-
se enlace entre as obras cinematográficas e o registro histórico. Mas,
também ressaltando como e quando os filmes se tornaram importantes
enquanto recurso didático. O capítulo enfoca, de forma bem original,
as relações entre cinema e a educação brasileira, partindo da análise da
aplicabilidade da lei 13.006 de 2014, que deveria assegurar a presença

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 13


do cinema – como possibilidade didática – nas escolas brasileiras e que,
mesmo assim, enfrentam desafios de ordem varia como as estruturas
deficitárias e a falta de professores que estejam preparados com uma lin-
guagem cinematográfica. Os autores, no final das contas, observam que
“a existência de um dispositivo legal do cinema nas escolas integradas
ao desenho curricular não garante ações imediatas que contemplem os
requisitos legais da Lei 13.006/14”.
Por fim, encerrando esse quinto bloco, verificamos o capítulo
“Ensino de história: pelas ondas do rádio nas décadas de 1930 e 1940 ao
uso de podcast na atualidade”, no qual a autora Valéria Moraes aponta as
tecnologias que se puseram ao serviço da História e do ensino de His-
tória ao longo do século XX, refazendo tal percurso do ponto de vista
do estado da arte e comparando diferentes temporalidades históricas e
como, em cada uma delas, a tecnologia foi importante para expandir o
conhecimento histórico. Parte “do ensino realizado pela radiodifusão
nas décadas de 1930 e 1940” e caminha até os mais atuais podcast’s, de-
monstrando a importância desses para o debate de temas afins como
política e cultura. Por fim, evidencia a importância das mídias digitais
no currículo escolar que propõe o ensino de História, apontando as de-
ficiências inerentes ao acesso universal por parte dos alunos, mas, indi-
cando que tais tecnologias são fundamentais para diminuir a distância
entre uma história acadêmica cristalizada e a sociedade em geral.
Assim, com temas e amplos debates, o presente livro digital pro-
põe textos com indagações, desafios e proposições para o ensino de
História no Brasil de hoje, mais especificamente na região amazônica.
A tessitura do presente trabalho só foi capaz com o precioso financia-
mento da CAPES e com as valiosas ajudas do corpo docente e técnico
da PROPIT, PROEG e PROAD da UNIFESSPA para os quais deixamos
sinceros agradecimentos. Esperamos que a leitura seja bem prazerosa e
suscite novas pesquisas em ensino de História.

Os organizadores

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PARTE 1

ENSINO DE HISTÓRIA: NARRATIVAS,


REVISIONISMOS E NEGACIONISMOS

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 15


CAPÍTULO 1

História, narrativa e ensino: um campo


de disputas1

Erinaldo Cavalcanti2

I
maginemos a seguinte cena: um/a professor/a entra na sala de aula e
começa a explicar o conteúdo programado de sua disciplina. Poucos
minutos depois, um/a aluno/a questiona o professor e diz que viu
em seu celular um vídeo cuja narrativa é diferente da apresentada por
ele. Esse é um cenário cada vez mais comum nas escolas da Educação
Básica. O artigo tem como objetivo analisar alguns dos procedimentos
metodológicos pelos quais a narrativa histórica é produzida como uma
opção para enfrentar as diferentes disputas narrativas sobre o passado
ensinado em sala de aula.
Sabemos que o passado se tornou um instrumento de disputa e
objeto de uma verdadeira “guerra de narrativas” como destaca Chris-
thian Laville (1999). Sabemos que nossos alunos atualmente têm aces-
so a diferentes ferramentas que oferecem diferentes narrativas sobre o
passado. Com o aumento do acesso a plataformas, site e aplicativos de
interação, os alunos começam a consumir um grande e diversificado
número de narrativas sobre o passado histórico. Nesse sentido, parece
que as disputas narrativas em sala de aula também passam pela disputa
sobre quais passados ​​acessam e, sobretudo, como são validados e re-
conhecidos como legítimos e confiáveis. Assim, parece-me que focar
a atenção na narrativa, como foco de análise no ensino de História, é
1
Este texto é uma versão alterada do artigo originalmente publicado em espanhol: Historia,
narrativa y enseñanza: um campo de disputas. Revista Iber — Didáctica de las Ciencias So-
ciales, Geografía e Historia, n. 101, p. 69-74, 2020.
2
Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História (UNIFESSPA)

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uma estratégia plausível para enfrentar as disputas de narrativas que de-
lineiam o cotidiano da sala de aula.
A narrativa — sobretudo a escrita — é, talvez, o principal “pro-
duto” pelo qual estabelecemos diálogos. Produzimos narrativas textuais
em forma de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), dissertações e
teses, no âmbito estritamente acadêmico. Ainda, fabricamos narrativas
textuais em forma de artigos, ensaios, livros e capítulos de livros acadê-
micos. Igualmente, produzimos narrativas textuais em pareceres técni-
cos sobre projetos, livros, artigos. Em menor percentual, os profissionais
formados nessa área do conhecimento também escrevem livros ou tex-
tos didáticos em forma de narrativas. Não seria, portanto, inverossímil
afirmar que a narrativa é o principal produto pelo qual uma parte de
nosso trabalho é representado. É por ele, também, que estabelecemos
diálogos com outros sujeitos.
Essa constatação — bastante óbvia, até — não é recente nem foi
feita por mim. Como ressalta Jurandir Malerba, “[...] a maior parte dos
historiadores, durante a maior parte do tempo, mas sem muita cons-
ciência disso, pensa narrativamente e escreve narrativas.” (MALERBA,
2016, p. 25). Portanto, problematizar a narrativa é, sem dúvida, uma
questão permanente no processo de constituição dessa ciência.
O debate sobre a narrativa acompanhou o movimento pelo qual a
História se fez ciência, conforme analisou François Dosse (2012). Alguns
pesquisadores, como Paul Ricœur (2007), François Hartog (2011) e David
Carr (2016), em diferentes momentos, já enfrentaram o debate sobre a
narrativa e a problematizaram por distintas perspectivas. Alguns desses
autores são mobilizados neste texto, pois suas reflexões ajudam a proble-
matizar a tessitura constitutiva da narrativa historiográfica. De maneira
especial, as análises de Paul Ricœur são mobilizadas no presente texto e
ajudam a ampliar as possibilidades de apreensão e uso da narrativa como
produto fabricado nessa ciência. Sendo o ensino um dos usos a que essa
ciência se presta, as reflexões desses autores igualmente, podem contribuir
com o debate que tematiza a narrativa como elemento mobilizado na
História ensinada em sala de aula da educação básica.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 17


Nesse sentido, as considerações apresentadas se propõem a
problematizar algumas dimensões constitutivas da narrativa histórica
— acadêmica e didática — ao compreendê-la como representação do
passado e apresentação do presente. Nesse movimento interpretativo,
almeja-se analisar a narrativa para experienciá-la como uma ferramenta
que pode ser explorada no ensino de História. A proposta é explorar a
“tessitura da narrativa” para torná-la uma estratégia viável a ser mobili-
zada em sala de aula.

1.1 Disputas de narrativas: desafios para a História ensinada

Como lidar com as disputas de narrativas que passam a ocupar


um lugar cada vez mais denso e tenso nas aulas de História? Dizer que
essa ou aquela é uma narrativa histórica, por ter sido elaborada por um
especialista, parece não surtir mais os efeitos desejados. Registrar que
uma dada narrativa está presente nos livros didáticos de história e que,
portanto, é confiável, parece que também não tem sido suficiente para
enfrentar as disputas de narrativas. Dizer que certa narrativa se encon-
tra presente nos livros acadêmicos produzidos pela ciência histórica,
parece que, igualmente, não tem produzido os efeitos necessários para
garantir força na concorrência com outras narrativas.
Nesse sentido, talvez tenhamos que colocar a narrativa como ob-
jeto central de reflexão na aula de História e, por conseguinte, promover
uma reflexão para apresentar e entender o que afinal produz e atribui
sentido, reconhecimento e legitimidade para a narrativa histórica, seja
ela na versão científica ou didática. No entanto, essa problematização
não deve ter a pretensão de atribuir à narrativa histórica o estatuto de
única a ser capaz de representar o passado.
É sobre essa perspectiva que a discussão se coloca, almejando
ampliar as reflexões. Sabemos que, em nossa experiência de tempo presente,
avolumam-se a produção e a comercialização de diferentes narrativas sobre
as mais diversas temáticas. Sabemos, igualmente, que nossos estudantes
chegam aos bancos das escolas alimentados, cada vez mais, por distintas
narrativas produzidas pelas plataformas de interação e amplamente

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divulgadas pelas redes virtuais de comunicação. São narrativas produzidas
em diferentes lugares de enunciação, comercializadas e amplamente
circuladas nos aplicativos virtuais de comunicação.
Portanto, a discussão se propõe a ampliar esse debate por enten-
der que a devida clareza acerca dos elementos constitutivos da narrati-
va histórica é um caminho que pode ser percorrido. Por conseguinte,
mobilizar a reflexão sobre os procedimentos pelos quais se atribuem
reconhecimento e legitimidade ao relato narrativo, produzido pela His-
tória, pode ser um recurso acionado para lidar com a diversidade de
narrativas que nossos estudantes consomem e que, não raro, também
têm a pretensão de representar o passado. São narrativas que também
concorrem com aquela fabricada pela ciência histórica, e que entram na
disputa de representar o passado.
No texto, “Essa história é de verdade? a narrativa escolar e seus ma-
tizes”, Helenice Rocha faz uma importante reflexão sobre a centralidade da
narrativa, especialmente sobre a “narrativa escolar” no ensino de História.
Em diálogo com Jean Hébrard, Rocha afirma que, segundo o autor,
[...] precisamos da narrativa para entender o que
acontece em nosso mundo e atribuir sentido a ele,
asseverando ainda, que as narrativas ficcionais e
históricas têm papeis diferentes. A narrativa ficcional
possibilita a experimentação dos mundos possíveis e
a histórica dá sentido ao mundo em que vivemos em
relação ao passado. (ROCHA, 2015, p. 214).

Que precisamos das narrativas para entendermos o que acon-


tece no mundo, parece ser um ponto consensual, sobretudo, porque só
temos acesso às experiências passadas por meio das narrativas que de-
las são produzidas. Também parece não haver discordância de que as
narrativas ficcionais e históricas são distintas e desempenham papeis
igualmente distintos, como já mencionado no diálogo com Paul Ricœur
(2007). No entanto, afirmar que a narrativa de ficção possibilita experi-
mentar o mundo como possibilidade, ao passo que a narrativa histórica
permite dar sentido ao mundo em que vivemos em relação ao passado,
talvez não seja um consenso.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 19


Por essa linha de interpretação, apenas a narrativa histórica teria
poder para atribuir sentido ao “mundo real” (mundo em que vivemos),
uma vez que a ficcional apenas permitiria atribuir sentido a um mundo
imaginativo, ou seja, “um mundo não real”. A narrativa ficcional pode,
igualmente, atribuir sentido ao mundo em que vivemos, e narrar e repre-
sentar um acontecimento do “mundo real”. No entanto, o sentido que ela
é capaz de atribuir é distinto daquele oferecido pela narrativa histórica. É
diferente pelos procedimentos constitutivos de cada narrativa.
É necessário fazer um esforço para romper os vínculos que
tentam estabelecer uma sincronicidade entre o texto escrito e a história
do conteúdo ou acontecimento estudado. As conexões existentes entre o
conteúdo estudado e a narrativa escrita, presente nos livros, não podem
ser entendidas como se existisse uma relação de determinação e causali-
dade entre essas duas dimensões. Em outras palavras, a narrativa histórica
não é uma cópia do conteúdo estudado e, como tal, não há uma relação
de “absoluta fidelidade” entre a representação narrativa e o conteúdo re-
presentado no relato escrito. Nesse sentido, a narrativa não pode ser mo-
bilizada como se fosse capaz de oferecer uma representação fidedigna dos
acontecimentos narrados, como se fosse possível existir uma correspon-
dência, em termos de “encaixe”, entre a narrativa histórica e o fato narra-
do. É importante ressaltar que nenhuma narrativa é capaz de produzir um
relato fiel e inquestionável sobre o acontecimento relatado.
A relação de confiança pode ser fortalecida, também, ao recorrer-
-se ao fundamento pelo qual se apreende a escrita historiográfica — em
sua versão acadêmica ou didática — como uma narrativa produzida por
normas e regras reconhecidas por um corpo de profissionais qualificados.
Ou seja, não é construída de qualquer forma. Em se tratando da narrativa
produzida pelo livro didático, ainda é necessário explicitar algumas práti-
cas que singularizam e tornam possível que essa narrativa seja elaborada.
É importante ressaltar que esta reflexão não almeja transformar
a aula de História em um palco de disputas para definir qual narrativa
é ficcional e qual é histórica. Também não deve ter a pretensão de
atribuir à narrativa de ficção o estatuto de relato fantasioso, ao passo

20 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


que atribuir-se-ia à narrativa histórica o lugar do relato verdadeiro e
inquestionável. Deve-se pretender, com isso, compreender o estatuto
narrativo da escrita histórica para entender seus limites e possibilidades
acerca de sua pretensão em representar o passado e, dessa forma, ampliar
seu potencial para concorrer com outras narrativas. Afirmar que uma
narrativa é verídica, porque é produzida pela ciência histórica, e que a
outra é inverídica, porque não é fabricada pela ciência, talvez não seja o
melhor argumento nem o melhor caminho a ser percorrido.
É importante registrar que problematizar a narrativa, nas aulas de
História, não significa “perder tempo”. Sabemos que o tempo é um fator
matricial para os (as) professores (as) de História na educação básica,
sobretudo com o vasto cardápio de conteúdos a serem trabalhados duran-
te o ano. A sugestão não é trabalhar a narrativa desvinculada do conteúdo,
como se fosse um assunto ou conteúdo à parte. Não. A opção é trabalhar
o conteúdo, problematizando a narrativa pela qual ele é representado. O
que está se alterando é o percurso e o ângulo de percepção.
Ao invés de servir aos estudantes uma longa lista de conteúdos
distribuídos pelo sumário dos livros, por meio de uma exposição —
quase sempre descritiva, cronológica e linear — será oferecido um menu
sobre como os referidos conteúdos são construídos, como são fabrica-
dos e representados até chegarem a ser “degustados” em sala de aula.
Essa opção pode até contribuir para que os assuntos saboreados não
sejam esquecidos após serem experimentados em forma de atividades
de aprendizagens e/ou avaliativas. Dessa forma, busca-se problematizar
como os conteúdos são elaborados para ampliar o entendimento sobre
como eles representam os passados estudados.
Essa opção não almeja transformar os jovens da educação bási-
ca em pequenos historiadores. Pelo contrário. Objetiva contribuir com
a construção crítica do mundo em que vivem nossos alunos e alunas;
um lugar marcado pelas experiências das disputas narrativas cada vez
mais densas. Pretende ampliar as capacidades cognitivas pelas quais os
alunos consomem diferentes narrativas no cotidiano da vida. À medida
em que o estudante tiver a oportunidade de estudar os conteúdos, com-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 21


preendendo como são produzidos enquanto construção narrativa, po-
der-se-á ampliar a sua capacidade de problematizar as demais narrativas
que consome no dia a dia.
Nesse sentido, direcionar o foco de atenção para a narrativa pode
recolocar o debate para compreender que uma aula de História é um ato
narrativo. Mesmo quando a aula se resume a uma exposição cronológi-
ca, ela é apresentada por meio de uma narrativa que inventa, representa
e apresenta tempos, espaços e pessoas. Nessa perspectiva, o historiador
Durval Muniz de Albuquerque Júnior é enfático, e destaca que “[...] es-
quecemos, talvez, que dar aula é narrar, que a história é um relato, que a
historiografia é um gênero narrativo e, tal como o espaço da aula, depen-
dente da narrativa para existir.” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2016, p. 31).

1.2 Livro didático de história e disputas de narrativas

A principal narrativa consumida na sala de aula, na forma de con-


teúdos aprendidos e ensinados, é servida por meio dos livros didáticos. A
literatura especializada mostra que o livro didático ainda continua sendo
a principal — e, às vezes, a única — ferramenta disponível para o professor
na sala de aula.3 Nessa perspectiva, o livro didático pode ser apropriado
e mobilizado como uma “complexa narrativa” pela qual certos passados
são produzidos, apresentados e representados de forma escrita em nosso
presente. Contudo, atribuir ao livro didático de História a denominação
“narrativa complexa” não significa dizer que outras formas de narrativas
históricas, ficcionais ou literárias, sejam menos ou nada complexas.
Com essa categorização, deseja-se, tão somente, explicitar o pro-
cesso de produção da narrativa didática. Ou seja, para apreender o livro
didático como narrativa, faz-se necessário mostrar o percurso de pro-
dução dessa narrativa. Com isso, é preciso ressaltar que ela é construída
por diferentes profissionais de distintas áreas, desde o professor/pesqui-

Há uma significativa produção acadêmica que tematiza o livro didático como ferramenta de
3

trabalho docente na sala de aula. Sugere a leitura de Abud (2007); Miranda e Luca (2004) e
Oliveira e Stamatto (2007).

22 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


sador (que escreve o texto no computador), até os profissionais da área
de design gráfico, editores e revisores como destacam Cavalcanti (2016)
e Bittencourt (2009). Também é indispensável apresentar aos estudantes
as condições que tornam possível que determinada narrativa seja cons-
truída, sobretudo por meio de políticas públicas garantidas pelo Progra-
ma Nacional do Livro Didático (PNLD).4
É fundamental que professores e estudantes compreendam,
minimamente, o conjunto de relação que possibilita que tal narrativa
seja produzida. Assim, é preciso apresentar as etapas pelas quais a
narrativa vai ganhando corpo e existência; ou seja, deve-se mostrar os
procedimentos ligados à produção textual e à utilização dos recursos
documentais. Da mesma forma, é importante apresentar, mesmo que de
forma rápida, os procedimentos avaliativos e os critérios presentes no
PNLD, que permitem com que certos enunciados se façam presentes ao
passo que proíbem outros de aparecerem nas narrativas didáticas. Além
disso, é necessário mostrar os procedimentos para a escolha dos livros,
desde o momento que são aprovados, até sua chegada à escola.
Nesse sentido, a degustação dos conteúdos, em aula, será dada
de forma concomitante com a apresentação do processo de preparo, ex-
plicando, também, quais os ingredientes, os temperos, os sabores e as
formas de apresentação contidos naquela narrativa. Ou seja, ao invés de
servir uma narrativa seca, fria e sem sal sobre os conteúdos, essa é servi-
da, simultaneamente, à apresentação de seu processo de fabricação e de
seu percurso de preparo. A adição desses ingredientes poderá contribuir
para uma boa refeição e evitar, talvez, indigestão ou amnésia.
Assim, as reflexões sobre a narrativa de um determinado con-
teúdo podem ser ampliadas ao se explorar como os documentos são
usados e mobilizados na construção da escrita e como concorrem
para representar o acontecimento narrado. Tomando essa sugestão
como possibilidade de trabalho, o professor poderá escolher um

Há uma vasta e importante quantidade de referências sobre o PNLD como objeto de reflexão
4

para se problematizar o livro didático de História. Nesse sentido, sugere-se a obra produzida
e organizada por Rocha, Reznik e Magalhães (2017), Caimi (2018) e Munakata (2012).

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 23


conteúdo específico e estudar quais documentos os autores usaram
como fonte para elaborar as narrativas.
Uma vez experimentada essa proposta, pode-se começar o es-
tudo do capítulo (ou do conteúdo), fazendo um levantamento sobre os
tipos de fontes que os (as) autores (as) usaram para escrever a narrativa.
Nessa perspectiva, identificam-se quais fontes foram mobilizadas e qual
lugar ocupam no texto. O uso da fonte, na produção textual, pode ser
acionado para registrar as diferentes versões que o acontecimento estu-
dado desfruta. Esse registro é importante para compreender como cada
fonte utilizada pode mostrar, de distintas maneiras, certos aspectos ou
dimensões acerca de um mesmo assunto. Nesse sentido, é oportuno res-
saltar que as fontes mobilizadas não foram produzidas pelos autores da
narrativa didática, nem foram fabricadas com o objetivo de servirem de
fontes para um livro de História. Mostram, portanto, que a representa-
ção construída pela narrativa histórica não foi uma invenção fantasiosa
da cabeça de quem escreveu o texto/livro.
Essa leitura pode ser demasiado óbvia para professores/pesquisado-
res. No entanto, pode não ser para muitos estudantes da educação básica,
que podem se questionar por que a narrativa do livro didático é confiável e
outra que circula pelas redes sociais, por exemplo, não é. Essa reflexão pode
ser acionada, igualmente, para mostrar que o mesmo tema ou conteúdo
estudado também desfruta de diferentes versões narrativas a seu respeito, o
que também pode ser explorado para mostrar a importância de refletirmos
sobre as diversas narrativas que os acontecimentos produzem, e para refor-
çar os perigos de uma história única (ADICHIE, 2019).
Essas abordagens devem ser propostas para que os estudantes
compreendam que os documentos mobilizados não são os acontecimen-
tos representados. Assim sendo, acredito que, para professores e alunos,
tão importante como usar a narrativa textual dos livros para falar sobre
um dado acontecimento, é demonstrar os procedimentos constitutivos
pelos quais a narrativa foi produzida, ganhou materialidade e pôde ser
consumida. Em outras palavras, tão importante quanto saber o que se
narra, no livro, é compreender como se narra.

24 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Para ampliar a compreensão sobre como a narrativa apresenta
e representa o conteúdo narrado, uma possibilidade viável é direcionar
o ângulo de percepção para os elementos de sua composição. Assim,
caracteres semânticos e gramaticais são importantes elementos que per-
mitem que a narrativa histórica, como construção verbal, seja configu-
rada de forma inteligível.
Munidos com essas reflexões, é possível conduzir o ângulo de
percepção para certas áreas ou certos elementos do tecido da narrativa
didática. Como construção verbal, é possível identificar, na narrativa
histórica do livro didático, os sujeitos das orações gramaticais, os prono-
mes de tratamento, a flexão verbal e nominal, os adjetivos e as conjun-
ções para refletir como a História é quase sempre produzida e narrada
“no” gênero masculino. Esses elementos gramaticais aparecem quase
sempre flexionados para o sujeito masculino. São, portanto, indicativos
de uma determinada maneira de se apreender e escrever a História. No
texto principal da narrativa presente nos livros didáticos, a flexão verbal
e nominal é, predominantemente, do gênero masculino.
A representação produzida por essa narrativa nos livros didáti-
cos pode ser igualmente explorada, tematizando a presença do gênero
masculino nos conteúdos narrados. Ao direcionar o ângulo de percep-
ção para essa problemática, é possível identificar quais sujeitos apare-
cem como personagens na representação. Nesses termos, pode ser uma
variável interpretativa interessante identificar e catalogar quais são os
sujeitos-personagens que aparecem representados na narrativa didática.
Ao estudar o chamado Feudalismo ou a Grécia Antiga, por exemplo,
pode-se fazer um percurso analítico mostrando quais são os persona-
gens que aparecem na escrita, como aparecem e qual lugar ocupam no
acontecimento narrado. Também pode ser adicionado à reflexão o re-
gistro sobre quem são os sujeitos em termos de idade, cor, etnia e sexo.
Identificar esses e outros elementos, na representação das his-
tórias narradas, pode e deve contribuir para repensar como a História
ensinada é construída, narrada e produzida. Quais visibilidades ela per-
mite. Quais dizibilidades ela constrói. Essas reflexões podem, igualmen-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 25


te, contribuir para ampliar o entendimento acerca de como os jovens ou
os idosos são tratados pela História, seja ela escrita e pesquisada pela
ciência ou ensinada, aprendida e problematizada na sala de aula. Essa
reflexão também se aplica à problemática da “cor” como elemento iden-
tificador de um tipo de “raça” ou etnia na História. Como são tratados,
atualmente, crianças, mulheres e homens negros? Que lugar ocupam
nas narrativas que perfilam os mais variados meios de comunicação?
Refletir sobre essas questões pode ampliar o entendimento sobre o lugar
ocupado por esses grupos nas representações das narrativas didáticas e
no cotidiano das relações da vida prática.
Igualmente importante é refletir sobre a figura da mulher nas
narrativas presentes nos livros didáticos. As mulheres quase sempre
são invisibilizadas, e não apenas no lugar da autoria da produção das
narrativas. Elas são também ignoradas nas referências gramaticais,
quando expressões semânticas são flexionadas, na oração, apenas
para a concordância com o gênero masculino. As mulheres são es-
quecidas como personagens constituintes das histórias narradas. Os
acontecimentos sobre os quais se produzem diferentes narrativas nos
livros didáticos são protagonizados por homens. Problematizar es-
sas narrativas predominantemente masculinas é ampliar a interpre-
tação sobre o lugar que as mulheres ocuparam no tempo. É ampliar
as possibilidades de questionar as funções a elas atribuídas e, por
conseguinte, refletir sobre as posições desempenhadas por mulheres
e homens no cotidiano da vida prática.
Essas questões podem, também, ser exploradas nos docu-
mentos mobilizados na narrativa textual dos livros didáticos. Ou
seja, não se deve apenas questionar a ausência ou a presença des-
ses elementos no texto escrito do livro, mas também refletir como
essas dimensões ou esses temas aparecem nas fontes documentais
em cada capítulo. Explorar as fontes que se encontram usadas nas
narrativas didáticas permite ampliar as leituras sobre os conteúdos
estudados, como já sinalizado. Permite mostrar como é possível
produzir narrativas diferentes sobre um mesmo conteúdo.

26 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


As fontes documentais, usadas nas narrativas textuais presen-
tes nos livros didáticos, também podem ser acionadas para registar os
procedimentos que atribuem confiança e reconhecimento à narrativa
histórica, mostrando que aquela fonte tem valor de documento. De tal
modo, o recurso da fonte documental pode ser explorado para mostrar
e reforçar uma das fases que atribuem sentido e significado à narrativa
histórica, chamada por Paul Ricœur (2007) de fase documental. Esse
recurso contribui para atribuir confiança e reconhecimento à narrativa
histórica. É possível, pois, reforçar que a utilização de fontes documen-
tais faz parte dos procedimentos metodológicos e são reconhecidos e
validados pelos profissionais (professores/pesquisadores) que atuam
nessa área de conhecimento.
Assim, as fontes não estão inseridas nas narrativas didáticas ape-
nas para preencher espaço no layout do livro ou para servir de ilus-
tração, quando se trata de uma fonte imagética. Elas são consideradas
registros, produzidos pelas atividades de diferentes homens e mulheres,
acerca do conteúdo estudado e representado na narrativa textual. Dessa
forma, ao fazer uso das fontes que se encontram presentes nos livros
didáticos, os pesquisadores que escreveram a narrativa oferecem ao lei-
tor outros registros sobre o tema narrado. Esses registros fazem parte
dos procedimentos metodológicos, exigidos pela ciência histórica como
requisito necessário no processo de construção das narrativas, para que
essas sejam reconhecidas e consideradas válidas.

Considerações finais

Como indicado, a título de conclusão, notamos que as disputas


narrativas estão cada vez mais presentes na sala de aula. Os professo-
res frequentemente testemunham como os alunos usam plataformas de
interação e mídias sociais como uma forma de “consumir” diferentes
narrativas sobre o passado.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 27


As narrativas presentes nos livros didáticos são cada vez mais
questionadas sobre o tipo de representação que constroem sobre o pas-
sado narrado. Os alunos questionam sua legitimidade, principalmente
porque hoje possuem uma grande variedade de outras narrativas dispo-
níveis, principalmente nas redes sociais.
Como argumentado neste texto (e como os professores já per-
ceberam), afirmar que a narrativa do livro didático é confiável só por-
que está nos livros não parece ser suficiente. Portanto, acreditamos que
compreender como as narrativas históricas são construídas e em que
consiste a representação que elaboram sobre o passado pode ser uma
possibilidade viável para enfrentar as disputas narrativas em sala de aula.
Portanto, conforme demonstrado, enfocar os procedimentos de
produção da narrativa histórica permite compreender o processo que
a produz e a torna confiável. Assim, é possível estabelecer uma relação
de confiança com o que é narrado, entendendo como é narrado. Essa
relação de credibilidade não pretende dar à narrativa histórica o poder
de representar os eventos conforme eles ocorreram. No entanto, apre-
senta-se como uma narrativa confiável, pois oferece os elementos e os
procedimentos que a constituem. É uma narrativa “verificável”.
Problematizar a narrativa, seu processo de construção, suas for-
mas de representação e sua legitimidade não deve ser uma especialida-
de individual do professor (ou do historiador). Conforme argumentado
neste artigo, o objetivo desta reflexão é contribuir para uma compreen-
são crítica do mundo em que vivem nossos alunos; um lugar marcado
pelas vivências de disputas narrativas cada vez mais densas.

28 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Referências

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dêmico na sala de aula. In: MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO,
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O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 29


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30 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


CAPÍTULO 2

A prática docente frente ao uso da


Internet ou De como ensinar História
diante dos revisionismos negacionistas

Alisson Lião1

R
ecentemente, durante aula em uma turma do Ensino Médio,
introduzi o tema da Shoah. Na ocasião, em meio aos debates,
um aluno se manifestou destacando que a posição apresentada
por mim ia de encontro a outras fontes de conhecimento; a saber, no
caso em questão, uma página da internet a qual ele teria acesso – Me-
tapedia –, que deslocava a temática em tela para uma outra linha in-
terpretativa. Ou seja, de que haveria exageros no que tange aos dados
sobre a Shoah e quanto ao papel dos nazistas no genocídio.
Diante do apresentado – e ao verificar as informações e perce-
ber que a fala do meu aluno possuía respaldo; ou seja, o site realmen-
te existia –, um conjunto de questões me vieram à cabeça: primeiro,
como a assim chamada História do Tempo Presente nos coloco face
a face com um campo metodológico que se propõe a dar a história
novos caminhos e abordagens para os problemas do nosso tempo, que
faz referência a uma espécie de passado que é atual ou que se atuali-
za. Desta feita, o regime de historicidade do tempo presente possui
dimensões particulares, por exemplo: as tensões de curto prazo, ex-
periências ainda vivas, apontando um sentindo de tempo provisório;
com sujeitos ainda vivos e ativos; produções de fontes históricas em
formação (DELGADO; FERREIRA, 2013).
1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de História, PROFHISTÓRIA/UNI-
FESSPA.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 31


Segundo, a questão abordada pelo meu aluno em sala de aula
também me fez pensar sobre não ser a História somente um terreno
para os historiadores. Ao fim, trata-se de uma narrativa que se dá so-
bre o tempo e a experiência humana no tempo, ainda assim não é o
monopólio de uma categoria, sequer necessita, para a existência de sua
narrativa, de protocolos disciplinares, de rigores na escrita ou acordos
acadêmicos que regem a prática científica. Assim sendo, a história é
atravessada por diversos campos do saber como a literatura, o direito,
a teologia, a filosofia, o jornalismo e pelo campo dos falsários, dos dis-
cursos que não pretendem assumir compromissos éticos com a verdade
(BAUER; NICOLAZZI, 2016).
Em terceiro lugar, e em consonância com minhas inquietações que
nascem da experiência do “chão de sala”, duas questões se tornam caras: o
ensino de História e os desafios diante do uso da internet, cada vez mais,
como fonte de informação alternativa e a discussão a respeito do papel
e da importância do historiador/professor nesse contexto. Diante disso,
propõe-se uma análise que permita compreender os desafios de ensinar
história em tempos de internet, mas não somente, percebe-se que esse
debate envolve a questão da história digital e a história pública. O pano de
fundo que guiará minha análise se ancora na negação da Shoah – inter-
pelação colocada em sala de aula – para a partir daí discutir o ensino de
História na sua relação com o uso da net e o papel, se é que assim se pode
interpretá-la, da História Pública na função de combater negacionismos
que se consubstanciam em posições que remetem a espaços de interpre-
tações, discursos, disputas e narrativas que, a princípio, rivalizam com
aquelas oficiais e baseados em pesquisa histórica.

2.1 Ensino de história: a internet e suas possibilidades

O ensino de História envolve uma complexidade de elementos


que vão desde os Planos Educacionais até o espaço de maior autonomia
do professor que é a sala de aula. Envolvido no contexto de cultura es-
colar que se relaciona com a formação dos planos curriculares, os con-

32 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


teúdos curriculares, os materiais disponíveis, os agentes escolares inter-
nos e externos; neste sentido, a escola integra um conjunto de objetivos
determinados pela sociedade que a cerca e articula-se com eles, além de
toda uma dinâmica econômica e política (BITTENCOURT, 2008).
A propósito diante de todos esses espaços de construção de sabe-
res que envolvem o ensino de História, voltamos a sala de aula e ao ato
de “dar aula” que, segundo Bittencourt, abarca o domínio de diversos
saberes particulares e dessemelhantes, os saberes de formação profissio-
nal; os saberes de experiência; saberes das disciplinas saberes curriculares;
em conjuntos esses saberes formam o “saber docente”. Nesta ação o pro-
fessor está envolvido com uma pluralidade e na sala de aula sua força
está no conjunto que ele representa e é representado por ele (BITTEN-
COURT, 2008, p. 51).
Nesse contexto, as metodologias para o ensino de História tam-
bém estão incluídas, os modelos que variam entre as formas e técnicas
tradicionais e as metodologias ativas2 utilizadas; e de seus principais mé-
todos estão, atualmente, o uso da internet. Assim, sendo inserido no con-
texto de uso como metodologia ou como produção histórica, a relação
entre o ensino de História e a internet se faz presente (SILVA, 2017, p. 10).
Visto que a relação entre as tecnologias digitais e o conhecimento
demandam uma série de adaptações e mudanças no cotidiano dos envolvi-
dos, esses recursos aproximaram bilhões de pessoas, possibilitando acesso a
várias informações, mensagens, memes, prints, notícias, incorporando uma
diversidade de dados. A impossibilidade de mapeamento dos dados, deixa
clara a produção em larga escala, que alcança números altíssimos, como um
“dilúvio de dados 3” (MAYNARD, apud SILVA, 2017, p. 10).
2
Para Sobral e Campos (2012), as metodologias ativas são uma concepção educativa que incen-
tiva os processos educacionais crítico-reflexivos, por meio dos quais o educando participa de
modo compromissado com o processo de aprendizado. Considerando o papel do professor,
observasse que a responsabilidade principal se centra no planejamento, na orientação, no acom-
panhamento do processo de ensino para que a aprendizagem aconteça (PEIXOTO, 2016).
3
O uso do termo “Dilúvio” remete a uma metáfora sobre uma verdadeira enxurrada de infor-
mações e dados presentes na Internet. Em seu artigo “Memórias do Segundo Dilúvio: uma
Introdução à História da Internet”, Dilton Maynard aborda o que seria o “Segundo Dilúvio”.
Para acessar o artigo consultar: MAYNARD, Dilton C. S. Memórias do Segundo Dilúvio: uma

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 33


O professor de história é partícipe deste processo, bem como as
escolas, estudantes e as metodologias de ensino que se desenvolvem.
As modificações a partir do uso da internet podem ser observadas em
adaptações: na leitura que por meio das telas acaba sendo descontinua-
da, resumida e que busca por palavras-chaves; no campo da pesquisa, a
longa produção de artigos e periódicos dificulta a organização e citação
dos autores; a escrita da história entra em choque com a sua tradição
acadêmica e encontra textos com autorias múltiplas e em alguns casos
anônimos, o que leva a um outro tema sensível na história que é narrati-
va que pode proporcionar, devido os múltiplos autores, narrativas mais
precisas, ricas e atrativas (ARAÚJO, 2014, p. 156-159).
Além disso, possibilita um novo campo de conhecimento, ainda
recente e que não tem definição concreta, sendo classificado como um
subcampo da história, uma metodologia específica, paradigma historio-
gráfico ou uma tendência historiográfica que é a história digital (LUC-
CHESI, 2014). A relação entre as metodologias ativas, a história digi-
tal, a comunicação acelerada, os meios digitais e os desafios na práxis
historiográfica ligada à internet, apontam e encontram-se no ensino de
História. Neste campo, promovem a coexistência de deslumbramento e
desinformação em relação às novas técnicas e mídias, devido a necessi-
dade de promover respostas a essas novas demandas (WOLTON, 2007).
Ao passo que, como caracteriza Lucchesi, entre as vantagens
encontramos questões como capacidade (de armazenamento), acessi-
bilidade, flexibilidade, diversidade, manipulabilidade, interatividade e
hipertextualidade (ou não-linearidade). Esta flexibilidade possibilita
reunir diferentes tipos de mídias (arquivos de sons, áudios, textos, ima-
gens, vídeos) em um mesmo espaço (LUCCHESI, 2013, p 11-12).
Assim sendo, no ato do ensino de História pode-se apresentar o
passado pelas suas múltiplas características, ampliando a possibilidade
de compreensão e apreensão dos conteúdos propostos. Some-se a isto,

Introdução à História da Internet. Cadernos do Tempo Presente. Edição número 04, 2011.
Disponível em: http://www.seer.ufs.br/index.php/tempo/article/view/2721/2374. Acesso em
28/06/2016 às 16 horas e 14 minutos. (SILVA, 2017).

34 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


no acesso em enorme quantidade há uma diversidade de públicos e de
informações e fontes promovendo a abertura de bibliotecas, arquivos,
museus ao grande público, incluindo potencial fonte de acesso para os
historiadores (LUCCHESI, 2013, p. 11-12).
Outra possibilidade que os historiadores encontram com o en-
sino de História, a partir da internet, é a interatividade instantânea que
pode ser desenvolvida, entre o professor e seus estudantes, estudantes e
estudantes ou qualquer com um interesse e com acesso à internet, crian-
do novas formas de interação e diálogos sociais, via blogs, posts em redes
sociais, fóruns online, transmissão ao vivo de imagens, uso de aplicati-
vos como o Kahoot! – uma plataforma de aprendizado baseada em jogos
que facilita a criação, o compartilhamento e a reprodução de jogos ou
testes em minutos. Estas novas formas de colaboração, debates e trocas
de aprendizagem são de grande valia no “chão da sala” para os historia-
dores que utilizam a internet como um dos meios de compreensão do
conhecimento histórico (LUCCHESI, 2013, p. 13).
Entretanto, os desafios enquadram-se à falta de uma formação
adequada, ainda na graduação, para se utilizar esses meios de comu-
nicação digitais; ou até nas escolas públicas e privadas, fator que com a
pandemia de Covid-19 ficou bastante aparente, e, ainda, a ampla divul-
gação de informação em sites, blogs, canais do Youtube que transmitem
de forma assaz narrativas e discursos que se pretendem “novos” ou “ver-
dadeiros” e pela grande quantidade de acessos gera a desinformação,
proposta muitas vezes ordenada e organizada com fins políticos, como
este artigo apontará mais adiante.
De todo modo, o futuro da relação entre o ensino de História e
da própria disciplina será fruto de debates nos anos que se seguem, o
historiador George Zeidan Araújo faz esse questionamento:
Do ponto onde estamos, como vislumbrar o presente e
o futuro da prática histórica? Para Cohen e Rosenzweig,
por exemplo, os historiadores devem enfrentar
os problemas relativos à qualidade, durabilidade,
legibilidade, confiabilidade e acessibilidade do

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 35


conteúdo histórico que continua a se  expandir na
internet. Segundo os autores, não é razoável deixá-los
a cargo de tecnólogos, legisladores e empresários, ou
mesmo se contentar que deles se ocupem os colegas
que trabalham em arquivos e bibliotecas (COHEN;
ROSENZWEIG, apud ARAÚJO, 2014).

Assim, a forma como os historiadores, a historiografia e os pro-


fessores de história se adaptarão e trabalharão está a desenvolver-se, as
possibilidades aqui apontadas são caminhos e metodologias para uma
educação adaptada à novas demandas digitais e, além disso, os desafios,
na leitura e produção. Para (Lucchesi, 2013): “apesar da forte corrente-
za, alguns ousarão se lançar neste mar de incertezas da verificação do
que vem a ser, afinal, fazer história através (Internet como ferramenta),
a partir (internet como Fonte) e com a Internet (a Internet como uma
matéria que engendra a possibilidade de um novo método)”.
A urgência deste debate não pode ser negada, o caso dos revi-
sionismos negacionistas deixa isso claro, criando narrativas que vão de
encontro a fatos históricos, como o caso da Shoah, e são produzidos na
maioria desses meios digitais. Sendo essa problemática uma das tan-
tas da História do Tempo Presente que como nos aponta J. P. Azema, a
atualidade caminhava por toda parte um pouco rápida demais, pedia-se
ao passado próximo que a decifrasse. Desde então, a prerrogativa da
História do Tempo Presente foi a pluralidade, dando ênfase a utilização
de outras áreas do conhecimento como parte integrante de sua identi-
dade. Neste sentido, o Tempo Presente não seria o que é, mas o que está
(SCHURSTER, 2009). Entre essas tantas demandas, a relação entre o en-
sino de História e a internet não se esgota neste debate, principalmente
após “a imposição” do uso da internet e as plataformas educacionais,
devido à Pandemia do Covid-19, por profissionais diversos, incluindo
professores e estudantes por todo o país.4

4
Para mais informações sobre o significativo crescimento das plataformas digitais:
https://veja.abril.com.br/educacao/pandemia-transforma-plurall-na-maior-plataforma-
de-ensino-digital-do-pais/. Acesso em: 09/07/2020 às 18 horas e 40 minutos.

36 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Além disso, a internet é um espaço privilegiado para a comuni-
cação pública da História, utilizado por diversos historiadores e não-his-
toriadores a partir das novas mídias. Assim, a História Pública – mesmo
que diferente da historiografia acadêmica –, necessariamente dotada de
métodos específicos para a reconstrução crítica e científica do passado,
podendo sobreviver à margem da academia em espaços como museus,
bibliotecas, arquivos, instituições culturais, praças públicas, encontros
em espaços de identidade e a Internet, e é um dos caminhos para se fa-
zer frente a esses Revisionismos Negacionistas que se apresentam; como
exemplo, já se tem a História Pública Digital (NOIRET, apud LUCCHE-
SI, 2013, p. 8). Analisar as relações entre a História Pública e a História
Acadêmica torna-se necessário.

2.2 A história pública e a história acadêmica

Na discussão sobre a História Pública teremos com base o texto


do professor Malerba. Nesse artigo o autor inicia falando sobre a histo-
ricidade do termo História Pública, que diz respeito ao mercado de tra-
balho alternativo para historiadores que não conseguiram adentrar nas
universidades. A produção dessa “História Pública” encontra em países
como a Austrália, Estados Unidos e no continente europeu os profissio-
nais que poderão trabalhar nesse ramo, têm algum tipo de formação, um
treinamento acadêmico para que possam exercer essa profissão, a grande
diferença entre os historiadores práticos e os historiadores acadêmicos es-
taria, então, no seu espaço de atuação (MALERBA, 2014, p. 28-31).
A partir disso, dois caminhos passam a ser destacáveis, primeira-
mente que esse campo no Brasil ainda é pouco discutido, como aponta
Malerba, e aqui esses historiadores públicos não possuem o treinamento
universitário, o trato com a fonte, os princípios utilizados para a pro-
dução de uma história com embasamento científico, trazendo ao gran-
de público, principalmente na figura de jornalistas, produções que vão
desde 1808 de Laurentino Gomes (obra que se tornou best-seller sen-
do elogiada e resenhada por Mary Del Priore) até o “extremo” como o

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 37


Guia politicamente incorreto da história do Brasil, de Leandro Narloch
(2009)(MALERBA, 2014, p. 32-39).
Neste sentindo, essas obras que – guardadas as devidas proporções –
mostraram uma história anedótica, pitoresca, de grandes personagens, gran-
des batalhas, heróis, modelo de produção do conhecimento histórico que
vai na contramão do que os historiadores acadêmicos propõem: uma histó-
ria social, crítica, interpretativa, analítica. Alguns desses autores jornalistas,
como Eduardo Bueno, qualificam os historiadores acadêmicos como “facções
mumificadas da classe acadêmica” e considera seus best-sellers como objetos
de orgulho, apesar de produzir a história évenementielle que tanto combateu
Lucien Febvre (MALERBA, 2014, p. 32-39).
O segundo fator observado é que há uma demanda social pela his-
tória que cresce (ROSENZWEIG 2000, p. 35); está no centro da propo-
sição deste artigo a relação entre a produção dessa “história pública” e o
papel dos historiadores acadêmicos nessa produção; é fato que guardadas
as formas de apresentação para leigos e acadêmicos5, a história popular/
pública que chega aos grandes públicos, que é veiculada nas grandes mí-
dias, por meio de livros, internet, cinema, museus, sites, blogs, precisa da
ocupação desses espaços por historiadores acadêmicos, ainda que numa
simplificação das suas obras acadêmicas (MALERBA, 2014, 42-43)6.
Esta participação em meios digitais para os grandes públicos
que, aparentemente, não tem sido uma prioridade para os centros de
pesquisas, grupos de estudos, departamentos e historiadores, que é de-
corrente de um estabelecimento da História nos planos escolares, nas
escolas e dos historiadores em relação aos seus pares nos congressos,
seminários, periódicos científicos, e essa divulgação ficou nas mãos de
profissionais de outras áreas (TEIXEIRA; LEAL, 2019).

5
Há, sim diferenças estruturais entre as formas de apresentação (RÜSEN 2007a) leigas
(quer exclusivamente narrativas, quer anedóticas) e as formas de apresentação acadêmicas
[complexas, que buscam fazer sentido do passado como história por meio da intelecção e de
um conjunto de protocolos intersubjetivamente regulados pela crítica (RÜSEN 2001; 2007b)];
(MALERBA, 2014, p.43).
6
Esse é um movimento que no Brasil, possivelmente, tem em seu maior expoente de alcance
digital o professor da UNICAMP Leandro Karnal.

38 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


E, muitas vezes com os historiadores da história pública, que
fogem as “regras” de títulos, especializações e pesquisas aprofundadas
possuindo apenas o domínio da técnica de comunicação nesses meios
digitais e, assim, divulgam uma história distante das problemáticas iden-
titárias, das tensões inerentes às relações sociais, associando a narrati-
va histórica a grandes personagens, a figuras que estão mais próximas
do mito do que da realidade de um processo composto de personagens
“humanos” com demandas e necessidade humanas, em suma, uma his-
tória que a historiografia já há muito superou (TEIXEIRA; LEAL, 2019).
Não obstante, observa-se desde a década de 70 narrativas
revisionistas com objetivos políticos, que se mascaram de apolíticos,
promovendo novas leituras, algumas delas direcionadas a Shoah. Esse
quadro deixa evidente que o trabalho dos historiadores e historiadoras
é importantíssimo, tem o seu espaço papel social, mas poderá contribuir
para melhorar a qualidade do debate público e promover uma socieda-
de mais livre, para isso se faz necessário encontrar novas estratégias e
parâmetros que se comuniquem mais e melhor com os diferentes públi-
cos (TEIXEIRA; LEAL, 2019).
Ademais, a função social do historiador tem um recorte eviden-
te segundo (Bauer; Nicolazzi, 2016): “[...] aquele que, exercendo um de-
terminado ofício, é reconhecido e legitimado pelas formas sociais, ins-
titucionais e epistemológicas que determinam este ofício: um diploma,
o respeito aos protocolos teórico-metodológicos que definem a prática
etc.”. Assim sendo, é fundamental que se possa ampliar e, como já dito,
potencializar o conhecimento que dispõe a atender a demanda social pela
história. Visto que a história enquanto função social, apontam (Bauer; Ni-
colazzi, 2016): “[...] é um objeto de uso de vários indivíduos ou grupos de
indivíduos que nem sempre se reconhecem ou são reconhecidos social,
institucional e epistemologicamente como historiadores”.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 39


2.3 Ensino de História de traumas coletivos: desafios e caminhos frente ao
avanço do negacionismo da Shoah na internet

Ao observar as novas demandas que o ensino digital trouxe, in-


cluindo a questão da história digital, que tem em seu enredo os revisio-
nismo supracitados, retorna-se à sala de aula do Pará e o site Metapédia
que serviu de fonte para o aluno, a narrativa proposta pelo site retira a
“industrialização para a morte” promovida pelo Regime Nazista, o ge-
nocídio, o sofrimento nos campos de concentração, culpando as doen-
ças, a infraestrutura danificada pela guerra e os ataques dos Aliados a
Alemanha, e justificando a falta dessa construção na narrativa histórica
oficial por ser parte de uma “propaganda” em favor dos sionistas que o
site e seus criadores buscam combater (SILVA, 2017, 52-54).
A Shoah compreendida como um dos maiores traumas coletivos
do século XX, evento-limite marcado por um esforço estrutural, burocrá-
tica e institucionalmente construído por um processo de extermínio de
um povo, denotando um ódio ao outro, a negação da alteridade, marcado
pela morte de mais de seis milhões de judeus, comprovado historicamen-
te, por um processo de desumanização: “humilhando, oprimindo, reti-
rando a intimidade, a individualidade, nomes, personalidades, conexões
familiares, reduzidas a seres caminhantes para a morte” (BAUER, 2013, p.
31). Não pode ser negada, é um crime contra a humanidade. É uma das
temáticas que envolvem o Ensino de História de Traumas Coletivos, que
em tempos de internet, segue sendo ameaçado por discursos, narrativas e
propostas destes revisionismos negacionistas.
Diante disto, problematizar a forma como o Ensino de História
no Tempo Presente tem tratado os eventos traumáticos é essencial,
o argumento baseado em uma fonte negacionista utilizado pelo alu-
no no instante da exposição sobre a Shoah é um sintoma da urgência
deste debate. Os desafios que se apresentam são diversificados e en-
volvem o currículo, os livros didáticos e tantas vezes a carga horária
que, de tão curta, não oferece condições para o aprofundamento des-
tas temáticas e que se no “chão da sala” não puderem ser trabalhados

40 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


com profundidade, abre espaços para essas narrativas negacionistas,
não obstante, compreender dentro dessa temática, as estruturas que
dentro da sociedade permitiram a permanência de condições para a
repetição desses eventos é fundamental.
Nesse sentido, a Shoah com sua condição de refletir sobre a con-
dição humana é ímpar, no que diz respeito ao que os seres humanos
foram capazes de fazer e que ainda são capazes o tornando universal,
mesmo que não se deixe de destacar as suas singularidades. Dessa feita,
se busca na escola e no Ensino de História, ao se repetir uma expressão
de Anísio Teixeira, e nas suas falhas e omissões, possibilidades de abor-
dar as continuidades e a ressurgência do ódio em seus diversos âmbitos
como: racial, de gênero, de classe, de grupo e todos que sejam identifi-
cados como o “outro”, atribuído por Peter Gay na sua obra O cultivo do
ódio como o “outro conveniente” (SILVA; SCHURSTER, 2016, p. 753).
Este outro conveniente, atribuído como “inimigo objetivo” pelo
regime ao ódio das massas que é uma escolha específica de cada regime,
em cada sociedade, tendo como traço comum e muito marcante em co-
mum a negação de qualquer alteridade, qualquer um pode ser apontado
ao ódio popular e a ação repressiva do Estado, como foram os judeus
na Alemanha, ou ainda, maçons em Portugal e na Espanha. Qualquer
um que, por infelicidade, se encaixe nas condições de “contratipo” está
em condições de tornar-se vítima (SILVA, MEDEIROS, VIANA, 2014).
Assim, a negação da alteridade tem diversos exemplos contemporâneos
que tem se multiplicados nos últimos anos: contra negros, mulheres,
gays, ciganos, nacionais emigrados ou em busca de refúgio político e
econômico (SILVA; SCHURSTER, 2016, p. 753).
Então esse também é o papel da escola e da educação em todas
as suas fases; como aponta Adorno que, pauta seu estudo a partir de
uma premissa: a de que Auschwitz não se repita, pois, toda a barbárie
se opõe à educação, apesar de o barbarismo estar no princípio da ci-
vilização. Além disso, é necessário ter clareza quanto aos mecanismos
capazes de tornar as pessoas genocidas, esclarecê-las e à sociedade em
geral sobre esses mecanismos, para despertar a consciência de todos e

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 41


impedir que funcionem novamente (ADORNO, 1995). Não obstante,
defende-se que a metodologia para temas que envolvam eventos trau-
máticos deva praticada à luz das experiências locais dos alunos, através
da História Comparada, metodologia que pode ajudar no entendimento
de questões caras a todos os indivíduos, como os Direitos Humanos e ao
partir dessas reflexões particulares se possa construir uma comunidade
de sentido que possa compreender como esses eventos se desenvolve-
ram e assim focar em uma cidadania que leve em conta a importância
da democracia e da convivência plural baseada no valor da alteridade,
contrária as ações do Estado ou da sociedade que excluam as pessoas
consideradas diferentes (GARRIDO VILARIÑO, 2020, p. 50).

Considerações finais

Este artigo se propôs a discutir, ainda que de forma introdutória,


a relação entre áreas do conhecimento envolvendo a disciplina histó-
ria, tais como: a História Digital e a História Pública, destacando a sua
relação com os desafios do ensino de história em tempos de internet, e
aplicando esse desafio a uma espécie de Revisionismo Negacionista da
Shoah inserido na História do Tempo Presente.
Destarte, a emergência do campo digital marcado pelo uso da in-
ternet pôde ser identificada, as suas diversas possibilidades no processo
de ensino e aprendizagem da história, além disso, as problemáticas
inseridas nesse contexto. Assim sendo, a ética na produção do
conhecimento histórico, a coerência, o cuidado no trato metodológico
são características do fazer historiográfico.
Mas este trato não é um valor utilizado por todos que produzem
história, que produzem narrativas sobre o passado, ou que entram nesse
espaço de construção, levando a um conhecimento que poderá ser me-
lhorado se os historiadores do meio acadêmico, para além de seu espaço
muito bem estabelecido, encontrarem caminhos e estratégias para um
alcance de uma maior público, que não implica em uma vulgarização
ou simplificação da produção de conhecimento, visto que não se pode
medir o conhecimento dos receptores.

42 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Ademais, a saída encontrada pelo professor em relação ao alu-
no focou-se em problematizar a fonte que o aluno citou, o que foi feito
ao longo deste artigo, trazendo a esse aluno outras formas de conheci-
mento como os museus do Holocausto em Washington, Curitiba, Rio
de Janeiro, e, principalmente o conhecimento do Yad Vashem que é o
Memorial oficial de Israel para lembrar das vítimas da Shoah, a partir
desses direcionamentos o aluno pôde fazer uma pesquisa e aprofundar
os seus conhecimentos sobre a Shoah, desde então o interesse do aluno
e da turma cresceu significativamente por essa temática indo para além
dos sites, chegando a livros, documentários e filmes. O professor, pôde
atender ao que cada vez mais parece o papel dos professores do Ensino
Básico: A curadoria de fontes nos diversos meios de acesso ao conheci-
mento disponíveis.

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46 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


PARTE 2

MEMÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA


NA AMAZÔNIA

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 47


CAPÍTULO 3

Memórias do autoritarismo e o ensino


de História:
dramaturgia, teatro e literatura em
perspectiva

Arcângelo da Silva Ferreira1


Heraldo Márcio Galvão Júnior2

É
consenso que o historiador e o professor de história trabalham
com múltiplas temporalidades (RÜSEN, 2001) e isso torna-se
mais amplo quando estes se prestam a analisar fontes artísticas
como a dramaturgia, o teatro e a literatura. Tais produções culturais,
além de poderem revelar a ótica de seu autor em relação às discussões
estéticas de seu tempo, sua visão de mundo, de sociedade, conflitos po-
lítico-sociais, costumes, economia e cultura, podem indicar a maneira
pela qual as memórias foram construídas e cristalizadas, seja em obras
inéditas ou adaptações. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é for-
necer subsídios sobre o uso da dramaturgia, do teatro e da literatura no
ensino de história a partir de discussões sobre a memória. Nesta em-
preitada, a temática do autoritarismo e da ditadura, tão em voga atual-
mente nas mídias e nas redes sociais, ganha relevo na medida em que
se faz necessário, tanto em âmbito acadêmico quanto no ensino básico,
discutir conceitos e preconceitos que avultam em diversas esferas.
Segundo Circe Bittencourt (2008), assim como os historiadores
das universidades, os professores de história do ensino básico também
se defrontam com conceitos e categorias. Para ambos, uma das tarefas
Docente efetivo da Universidade do Estado do Amazonas.
1

Docente efetivo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.


2

48 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


fundamentais é selecionar os conceitos-chave, contextualizá-los na or-
ganização e sistematização dos dados empíricos com o apoio de con-
ceituações. Entretanto, especificamente para o professor de história, o
problema se apresenta enquanto necessidade de domínio da natureza
específica do conhecimento histórico, “além do desafio de saber como
introduzir e encaminhar as tarefas de aprendizagem para alunos de di-
ferentes idades e condições culturais” (BITTENCOURT, 2008, p. 192).
Nesse sentido, para além das temáticas do autoritarismo e da ditadura
impressas neste capítulo, visa-se contribuir para o ensino de história na
medida em que reflete sobre diferentes maneiras de ensinar conceitos
históricos como memória, história, tempo, documento e anacronismo.
Assim, foram selecionados dois autores cujas obras são permeadas
por memórias do autoritarismo, Oswald de Andrade e Milton Hatoum.
Especificamente, as fontes que dão sustentação à narrativa deste artigo
podem ser divididas em dois grupos, tanto por questões estéticas quan-
to a partir da maneira pela qual a memória foi desenhada e organizada.
Em um primeiro momento é sugerido o ensino a partir da peça O Rei da
Vela, de Oswald de Andrade, enquanto dramaturgia – pois a peça não
pode ser apresentada em contexto ditatorial varguista – e enquanto teatro
resgatado por José Celso Martinez Corrêa um ano antes da promulgação
do Ato Institucional n° 5. Ambas são consagradas pela crítica e carregam,
claramente, suas memórias e experiências (BOAVENTURA, 1995; CAN-
DIDO, 2010, 1993; FONSECA, 2007), o que pode gerar indagações im-
portantes sobre sua modelagem em outro contexto. Com esta adaptação,
é possível discutir os dois principais contextos autoritários explícitos do
século XX no Brasil e trabalhar a consciência história dos discentes.
Além de ser uma fonte histórica que revela o sistema social
(WILLIANS, 1992) do contexto de sua produção e o ideal político do seu
autor em meio à sua rede de sociabilidade (SIRINELLI, 1996), o fato de
ser resgatada em outro contexto, por outro intelectual, revela algumas in-
dagações que são tanto acadêmicas quanto escolares, e que podem ser uti-
lizadas em discussões em sala de aula. Quais aspectos da peça de Oswald
de Andrade foram capazes de torná-la possível de ser apresentada em ou-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 49


tra realidade? Ela pode ter sido considerada “atemporal” em um contexto
de regime autoritário e ditatorial? Quais adaptações foram possíveis? O
que levou Zé Celso a reconhecer, em 1967, a atualidade de texto de 1933?
Quais eram as similaridades entre os dois contextos que tornou possível
a montagem da peça e seu reconhecimento pelo público? Quais aspectos
da obra de Oswald de Andrade foram mantidos e quais tiveram que ser
adaptados? Analisar histórico-comparativamente a obra e suas intenções
de apresentação ao público podem revelar, mesmo que de maneira inci-
piente no momento, aspectos importantes sobre a história das artes no
Brasil e sugerir novas metodologias do ensino de história.
Em um segundo momento, a atenção é dada profundamente à
maneira pela qual Milton Hatoum trabalha a memória sobre a ditadura
militar brasileira em diversos de seus romances, haja vista que a obra
do escritor amazonense assume uma peculiaridade: a relação dialógica
com a narrativa historiográfica. O vetor disso é a ênfase que o literato di-
reciona, talvez o seu principal mote criativo, para a memória: amálgama
das suas estruturas narrativas. O tempo do enunciado de seus romances
são prenhes de indícios históricos. A partir destes são possíveis proble-
matizações sobre o sentido da história impressas na obra do referido
escritor. A utilização da oralidade é outro vetor. Por meio da fala do
“outro”, Hatoum busca uma espécie de memória por tabela (POLLAK,
1992)3, a qual o literato utiliza para representar fragmentos do passado.
A literatura de ficção de Hatoum coloca a lume tensões entre a memória
oficial e outras memórias. Provoca, desta forma, ponderações e repre-
sentações sobre o jogo do poder. Ora, as memórias são fontes históricas,
por meio delas “é possível identificar a permanência de uma determina-
da leitura sobre o acontecimento, as contradições e as visões distintas,
os elos que ligam certos grupos e afastam os outros” (MOTTA, 2012,
p. 25). Nesse influxo, o escritor surge como um intelectual que procu-
3
De acordo com o referido historiador, nos elementos constitutivos da memória, individual
ou coletiva, estão os acontecimentos “vividos por tabela”: “São acontecimentos dos quais a
pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no
fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais
longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se
situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo.” (p. 201).

50 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


ra dignificar o anônimo, posto que sua prosa está comprometida com a
alteridade: em suas tessituras residem trajetórias de personagens fra-
turadas, silenciadas, escondidas nas ruínas de memórias soterradas no
tempo4, pois “a memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo
fica registrado” (POLLAK, 1992, p. 203). Por sinal, e isso é hipotético:
com Hatoum a memória vem como remédio: serve “para a libertação e
não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 1989, p. 4).
Através de suas narrativas, Hatoum exibe memórias subterrâ-
neas “que possuem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira
imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos
exagerados. A memória entra em disputa” (POLLAK, 1989, p. 4). Daí as
narrativas forjadas no imaginário do referido escritor tornarem-se lugar
de memória: “recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto
sobre a extensão de suas significações” (NORA, 1993, p. 27). E como
lugares de memória, trazem condições de possibilidade para a produção
do saber histórico e, por extensão, para o ensino da História.
Diante disso, procuramos cotejar alguns indícios históricos, ins-
critos na dramaturgia oswaldiana d’O Rei da Vela, no teatro de Zé Celso
Martinez Correa e nos romances Dois Irmãos, Cinzas do Norte, A noite
da Espera e Pontos de fuga, do escritor amazonense Milton Hatoum,
com o objetivo de analisar o valor dessas obras como fontes documen-
tais para se pensar, fazer e ensinar parte da história do Brasil: a conjun-
tura do regime militar.

3.1 A memória no “coração do capitalismo caboclo”

Em 4 de setembro de 1967, em pleno ensaio de sua nova peça,


José Celso Martinez Corrêa assina o “Manifesto do Oficina”. Nele, afir-
ma que procurava um texto para a inauguração de sua nova casa de
espetáculos que também consagrasse a comunicação ao público de toda
uma nova visão do teatro e da realidade brasileira, pois sua visão ante-
rior estava defasada depois de abril de 1964. O problema era o “Do ‘aqui
Em Órfãos do Eldorado está em jogo as memórias do protagonista narrador: Arminto Cordovil.
4

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 51


e agora’”, e o aqui e agora foi encontrado em 1933 n’O Rei da Vela, de
Oswald de Andrade. Este “aqui e agora” da década de 1960, buscado em
um texto da década de 1930, traz para o historiador e professor de his-
tória importantes questões relativas às temporalidades e construção da
consciência histórica entre os alunos, haja vista a existência de contextos
autoritários díspares em sentido histórico.
O Rei da Vela foi escrita a partir de 1933, publicada em 1937 e
proibida de ser apresentada pela censura empreendida por Getúlio Var-
gas até ser resgatada por Zé Celso, no Teatro Oficina, e ser encenada em
plena ditatura civil-militar de 1964. Em 1967, por ocasião da montagem
do Teatro Oficina de São Paulo, Procópio Ferreira justificou não ter inter-
pretado o texto na década de 1930, dizendo que nunca o poderia ter feito,
pois naquele momento a Censura impedia que se pronunciasse no palco a
mais simples palavra “amante” (FERREIRA apud MAGALDI, 2003, p. 7).
Sendo assim, supõe-se que a peça transgrida a lei entre a obra e
a contemporaneidade. Sábato Magaldi nos dá pistas sobre esta relação:
A eficácia de uma obra sobre o público está intimamente
ligada à sua contemporaneidade absoluta. As grandes
épocas do teatro se fizeram com peças criadas no
momento, na língua original de representação. Um
autor de gênio escreve para ser ouvido, naquele instante,
por um público ávido de reconhecer-se nos diálogos.
Fugir desta lei importa em trazer ao espetáculo outros
valores, que não são os da comunicação direta entre
texto e plateia. Essa verdade elementar não desmente
pelas antecipações da obra de arte, que muitas vezes só
pode ser plenamente apreciada no futuro (MAGALDI,
1999, p. 11).

Estas questões levantadas a partir da peça, além de serem leva-


das a cabo por pesquisadores da área das ciências humanas, em especial
literatura, artes e história, revelam a obra enquanto documento a ser
trabalhado metodologicamente em salas de aula de ensino médio e de
graduação – interdisciplinarmente –, pois pode contribuir para o desen-
volvimento do pensamento histórico e da consciência histórica dos alu-

52 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


nos (RÜSEN, 2001) ao trabalhar com múltiplas temporalidades. Além
disso, a estreita vinculação da peça com o movimento antropofágico
pode trazer uma nova visão às salas de aula que não apenas àquelas que
compreendem a antropofagia enquanto reflexo de um autor e de um
documento, isto é, de Oswald de Andrade e o Manifesto Antropófago.
A literatura acerca da história do teatro no Brasil, de modo ge-
ral, aponta que tal arte não conseguiu penetrar na vida social brasileira.
Sábato Magaldi (2004) argumenta que essa visão pessimista do teatro
nacional possui como deficiência o desconhecimento da perspectiva
histórica e da situação do teatro mundialmente.
No Brasil, a produção acadêmica sobre o teatro teve início a par-
tir da década de 1970 em virtude do deslocamento de diversos artistas
e intelectuais do gênero dramático para as universidades – em razão
da repressão e da censura instaurada pelo regime militar em 1964, e
aprofundada em 1968 com o AI-5 –, inaugurando uma nova etapa crí-
tico-reflexiva do teatro brasileiro, gerando pesquisas e aprofundamen-
tos teóricos em variados setores da atividade teatral. Em meio à predo-
minância da história política e econômica, tem início na historiografia
brasileira, a preocupação em utilizar a literatura como fonte de pesquisa
histórica – sobretudo com o trabalho pioneiro de Nicolau Sevcenko, Li-
teratura como Missão – porém, o que se percebe nestes estudos que con-
templaram a literatura, especialmente o romance e a poesia, é a pequena
inserção da temática teatral em uma perspectiva histórica.
A maioria das publicações acerca do assunto surge das mãos de
críticos teatrais, cujos trabalhos, na maioria das vezes, priorizam ques-
tões formais, estéticas, comparativas e descritivas, como História con-
cisa do teatro brasileiro, de Décio de Almeida Prado, e Panorama do
Teatro Brasileiro, de Sábato Magaldi. Os estudos históricos recentes que
tomam peças teatrais como objeto de análise priorizam certos autores,
temas e épocas, a exemplo de Nelson Rodrigues, da censura ao teatro no
Estado Novo e do período do regime militar de 1964, respectivamente.
Oswald de Andrade tem sido tema de diversas dissertações e teses, em
sua maioria na área de literatura, às quais primam por análises de juízos

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 53


estéticos e formais, distanciando-se de seus contextos socioculturais ou
restringindo-se a discutir a arte como reflexo da sociedade ou seu in-
verso, o que não é o foco em um estudo histórico (GALVÃO JÚNIOR,
2020). Quando se trata de Andrade e sua produção teatral, os estudos
priorizam três peças: O Rei da Vela, O Homem e o Cavalo e A Morta,
consideradas produções antropofágicas em que se devoram modelos li-
terários estrangeiros ao invés de imitá-los, atacando os códigos sociais,
morais e literários por meio da paródia e do sarcasmo a fim de se criar
uma linguagem literária brasileira e tratar dos problemas nacionais a
partir de um nacionalismo político e econômico. Nota-se que a escolha
destas obras, longe de ser aleatória, reflete o interesse em demonstrar
que, além da poesia e do romance, o autor possui características em sua
produção teatral de inovação radical, ruptura com um passado artístico
e a construção de uma linguagem nova.
Sábato Magaldi, em Teatro da Ruptura: Oswald de Andrade,
utiliza-se da análise das três peças supracitadas a fim de questionar o
consenso da crítica teatral que considerava Vestido de Noiva, de Nel-
son Rodrigues, como marco da literatura dramática moderna no Brasil,
promovendo o que chama de “justiça histórica” ao concluir que diver-
sas inovações encontradas nos textos do teatrólogo carioca já se faziam
presentes nas três peças escritas na década de 1930 por Oswald. Em O
Rei da Vela, Oswald retrata sua visão acerca da realidade brasileira e das
classes dominantes que “parasitavam” o Brasil em um momento que o
autor declarava sua adesão ao comunismo. Segundo Magaldi, a peça se-
guira os princípios do modernismo pois, ao invés de uma análise rósea
da realidade nacional, Oswald propôs uma visão desmistificadora do
país, utilizando a paródia em substituição da ficção construtiva e a cari-
catura evitando qualquer sentimento piegas; em lugar do culto reveren-
te ao passado, demolira valores e renegara “conscientemente” o tradicio-
nalismo cênico, para admitir a importância estética da descompostura.
O norte-americano David George (1985) analisa o teatro no con-
texto da antropofagia, considerando-o como arte autônoma e relacio-
nando-o nesta fase ao nacionalismo do Manifesto Antropofágico e a uma

54 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


das metas principais do Modernismo: “superar a dependência cultural
em todas as suas manifestações, através da renovação dos paradigmas
primitivos da ontologia e da linguagem; conquistar a independência po-
lítica, libertando a nação do legado do colonialismo”. O autor utiliza-se
de O Rei da Vela para demonstrar tais características, incluindo o nacio-
nalismo econômico presente na época.
Outro autor que se pauta nesta “trilogia da devoração”, como são
consideradas as peças, é Carlos Gardin (1995) – ator, diretor e pesquisa-
dor de teatro – que propõe observações e experimentações semióticas e
intertextuais, promovendo comparações entre outros contextos e obras,
e dialogando teoricamente com Brecht a fim de demonstrar a forma
canibalesca destes teatros, que considera de ação ética, estética e moral.
Por fim, há o trabalho de João José Cury (2003), no qual o autor analisa
a ideologia e a intertextualidade nas três peças, traçando uma evolução
ideológica em um movimento dialético que vai da denúncia da estratifi-
cação social capitalista na primeira, segue por um socialismo utópico na
segunda e chega ao lirismo anarquista na última, nas quais Oswald usa
como bases teóricas autores como Marx, Engels, Lênin, Stalin, Trotsky,
Rosa Luxemburgo, entre outros.
Em O Rei da Vela, o personagem principal é Abelardo I, um fa-
bricante de velas, agiota e noivo de Heloísa. Este objeto comercializado,
apesar de parecer irrisório, é representado como a garantia da manu-
tenção do comércio familiar, uma vez que é um dos principais resíduos
religiosos feudais e, portanto, está presente nos rituais fúnebres. Pode-se
compreender a vela enquanto objeto fálico uma vez que representa o
poder masculino na instituição familiar, isto é, provedor e único res-
ponsável pela tomada de decisões. Oswald toma de empréstimo uma
famosa história de amor do século XII, Heloise & Aberlardo, desespera-
da e romântica, vitimada pela sociedade, para devorá-la e transformá-la
em uma paródia do amor puro e perfeito, isto é, um casamento, uma
aliança entre a antiga elite rural empobrecida pela crise do café e uma
burguesia urbana em ascensão:

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 55


HELOÍSA – Em troca da minha liberdade. Chegamos
ao casamento... Que você no começo dizia ser a mais
imoral das instituições humanas.
ABERLARDO I – E a mais útil à nossa classe... A que
defende a herança...
HELOÍSA – Enfim... aqui estou... negociada. Como
uma mercadoria valiosa... Não nego, o meu ser mal-
educado nos pensionatos milionários da Suíça,
nos salões atapetados de São Paulo... vivendo entre
ressacas e preguiças, aventuras... não pôde suportar
por mais de dois anos a ronda da miséria... (Silêncio)
E a admiração que você causou em mim, com o seu
ar calculado e frio e a sua espantosa vitória no meio
da derrocada geral... O conhecimento que tive do seu
cinismo e da sua indiferença diante dos sofrimentos
humanos. (ANDRADE, 2003, p. 60)

A peça, dividida em três atos, inicia-se no escritório de Abelardo


I onde trabalha seu companheiro de negócios, Abelardo II, em uma São
Paulo símbolo da grande urbe subdesenvolvida, “coração do capitalismo
caboclo” (CORRÊA, 2003, p. 26). O mesmo nome os iguala enquanto
meros objetos de seu ambiente, peças do jogo, e não sujeitos do processo
histórico. Abelardo I representa o pensamento tradicional brasileiro en-
quanto Abelardo II é um socialista aliado à burguesia, sem consistência
ideológica. Os diálogos se resumem a discussões sobre os empréstimos
que Abelardo I havia feito para proprietários rurais que, após a crise de
1929 e a Revolução Constitucionalista de 1932, não tinham como pagar
e, por muitas vezes eram executados. Há uma discussão, de cunho mar-
xista, sobre o conceito de família enquanto perpetuadora da proprie-
dade e, consequentemente, da desigualdade e injustiça social: “Família
é uma coisa distinta. Prole é de proletariado”. A construção visual do
escritório dos Abelardos, com objetos penhorados, e da ilha tropical na
baía da Guanabara no segundo ato, segundo Magaldi (2004), foram se-
guidos de forma fiel e ao mesmo tempo criativa por José Celso em 1967,
em cuja parte visual foi concebida por Hélio Eichbauer. Em sua nova
modernidade, encenado pelo Teatro Oficina, a peça adquiriu o sentido

56 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


melancólico de obscurantismo e de regressão pelo qual passava o país,
uma vida brasileira que havia sido paralisada justamente na época em
que Oswald de Andrade teria escrito a peça.
Oswald prossegue construindo as personagens a partir da hi-
pocrisia de suas falas, em que identifica Heloísa como sendo de “Les-
bos”, masculinizada; sua irmã Joana, “João dos Divãs”; seu irmão Totó
Fruta-do-Conde; e seu outro irmão Perdigoto, que pensa em fazer uma
milícia rural, fascista, para combater a ascensão da esquerda no Brasil,
crítica facilmente encontrada nas intenções de Zé Celso durante a di-
tadura civil-militar brasileira. A mãe de Heloísa é mostrada caindo aos
encantos de Abelardo I e sua tia é chamada de Polaca, como eram cha-
madas as prostitutas da época. Com esta construção, afirma a composi-
ção hipócrita da formação da verdadeira elite e família cristã brasileira
da década de 1920/30 e que Zé Celso levou para a realidade de 1967,
após a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
O alinhamento econômico com os Estados Unidos também foi
assunto tratado na peça da década de 1930, em substituição ao relaciona-
mento com os ingleses. Mesmo sem esta ideia de substituição da Europa
pelos Estados Unidos na década de 1960, a peça traz ferrenhas críticas à
dominação econômica, política e militar do Brasil, que apenas mudara de
“dono” em um novo “colonialismo”, isto é, a dependência de um país tri-
butário do capital estrangeiro colonizador se fazia presente em ambas as
realidades, salvas suas especificidades. Em seu escritório de usura – usado
como metáfora de todo um país hipotecado ao imperialismo – Abelardo
I recusa receber diversos credores que desejavam renegociar suas dívidas,
mas atende de prontidão Mister Jones, dos EUA, ao qual se assume “um
simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me
queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você (Heloísa)...”
(ANDRADE, 2003, p. 64). Na obra, Abelardo I insinua que sua noiva deva
ter certa relação com o “americano”, haja vista que seu papel de lacaio em
um país feudal consiste também em conceder ao Mr. Jones o “direito de
pernada”, isto é, de noite de núpcias com Heloísa. Quando o “americano”
adentra a cena, Abelardo I curva-se até o chão. No terceiro ato, quando

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 57


Abelardo I atira em si mesmo por acreditar ter sido roubado por Abelardo
II e estar miserável, concede ao segundo o casamento com Heloísa, trata-
do de forma natural por todos da peça, ao que Mr. Jones concluiu: “Oh!
Good business!”(ANDRADE, 2003, p. 109).
Quando Zé Celso reabre o Teatro Oficina em 1967, o faz com a
apresentação de O Rei da Vela, que considera como um verdadeiro ma-
nifesto à nova visão e realidade brasileira teatral. Confessa, em depoi-
mento de setembro do mesmo ano, que havia lido a peça antes do golpe
de 1964, mas que naquela época ela parecia muda para ele, panorama
que mudou após “toda a festividade pré e pós-golpe esgotar as possibi-
lidades de cantar nossa terra” (CORRÊA, 2003, p. 22). Percebendo nela
uma síntese brasileira que havia existido na década de 1930 e que os
militares estavam trazendo de volta para a década de 1960, regredin-
do, concebeu a peça como uma revolução de forma e de conteúdo para
exprimir uma não revolução através do teatro e do antiteatro. Tendo
Oswald compreendido, por meio do movimento antropofágico, a fal-
ta de uma história verdadeiramente brasileira, sugere Corrêa, escreveu
a peça para demonstrar os motivos pelos quais até aquele momento a
escrita da história nacional não ocorrera, isto é, pela existência do “ho-
mem recalcado do Brasil! Produto do clima, da economia escrava e da
moral desumana que faz milhões de onanistas desesperados e de pede-
rastas (...) para manter o imperialismo e a família revolucionária” por
meio de um oportunismo autóctone.
Esta ausência de história, a grande modernidade da peça, a ca-
racterização do brasileiro e o combate às bases da ditadura civil-militar
que se instaurava no Brasil por meio do triângulo Deus, Pátria e Família,
seriam justamente os pontos chaves que ligariam o passado ao presente
de Zé Celso por meio da peça:
Oswald, através de uma simbologia rica, nos mostra o
rei da vela se mantendo na base da exploração (“Herdo
um tostão em cada morto nacional”) e da Frente Única
Sexual, isto é, do conchavo com tudo e com todos (a
vela como falus). Conchavo com a burguesia rural,
com o imperialismo, com o operariado etc., para

58 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


manter um pequeno privilégio (não é o rei do petróleo,
do aço, mas simplesmente o da mixuruca vela). Toda
essa simbologia procura conhecer a realidade de um
país sem história, preso a determinados coágulos
que não permitem que essa história possa fluir. E faz
desses personagens emanações, formas mortas, sem
movimento, mas tendo como substituto toda a sua falsa
agitação, uma falsa euforia e um delírio verde-amarelo,
ora ufanista, ora desenvolvimentista, ora esquerdista,
ora defensor da segurança da pátria, mas sempre
teatro, sempre mise-en-scène, sempre brincadeira
de verdade, baile do Municipal, procissão, desfile
patriótico, marchas da família, Brasílias de cenário de
óperas. A peça é a mesma, trocando-se as plumas. A
história real somente se fará com a devoração total da
estrutura. (CORRÊA, 2003, p. 25)

Sem tentar promover uma cópia de Oswald de Andrade, Zé Cel-


so propõe uma leitura própria em um contexto de ditadura militar, haja
vista que considera a fidelidade ao autor um contrassenso com a própria
figura criativa de Oswald. Nesse sentido, traçadas incipientemente as
intenções de Zé Celso em resgatar O Rei da Vela, estas questões abrem
novas perspectivas para se compreender os dois contextos em ambiente
escolar, o que se torna ainda mais plausível com uma futura análise da
encenação da peça a partir dos preceitos aqui expostos.

3.2 “[...] sem a memória dos outros eu não poderia escrever” (HATOUM,
2017, 71)

É sabido que Milton Hatoum utiliza a memória como amálgama


de seus enredos. Desta forma, o autor costura o seu imaginário e en-
tretece determinados espaços, paisagens, personagens que atravessam
seus poemas, romances, novelas, contos, crônicas. Perceptíveis são os
percursos que suas personagens fazem entre as narrativas onde estabe-
lecem relações dialógicas. Isto nos leva à seguinte conjectura: desde seu
primeiro livro, Hatoum pretende suscitar a história a contrapelo, aque-
la dos sujeitos subsumidos, silenciados na historiografia oficial, apesar

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 59


de terem participado da história. Partindo da oralidade e da memória,
recortando um período que abarca os anos finais do século XIX até a
oitava década do século XX (levando-se em consideração toda sua obra,
inclusive a mais recente trilogia, a qual abarca as décadas de 60, 70 e 80
do século passado), tal conjectura pode ser comprovada. Impossível
debruçar-se sobre toda a obra produzida por Hatoum. Não haveria es-
paço para esse percurso. Nesta seção, buscamos observar, contudo, essa
peculiaridade: dialógica e intertextual inscrita nas narrativas de Ha-
toum (os conectores entre literatura e história), visto que, ao que parece,
também na obra do literato amazonense, “[...]. Tudo é meio, o diálogo
é o fim. Uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o mí-
nimo de vida, o mínimo de existência” (BAKHTIN, 2008, p. 293). Dito
corretamente, os diálogos inerentes às narrativas de Hatoum suscitam
uma constante relação entre seus enredos desde o primeiro livro até o
mais recente. Histórias se interpenetram, personagens migram de um
romance a outro [no plano do enunciado] e o tempo histórico dialoga
com o tempo histórico [no plano da escrituração de suas obras].
Uma técnica frequentemente usada por Hatoum é a utilização de
relatos fraturados em seus romances por meio de cartas, fragmentos de
diários etc., fontes para a composição de seus enredos.5 Assim, em seu
terceiro romance, o diálogo, a partir da inserção de uma missiva, estabe-
lece uma intertextualidade com o romance A noite da Espera e Pontos de
Fuga, ambos inscritos na trilogia O lugar mais sombrio. Mundo é uma
personagem que, indiretamente, está na narrativa dos dois primeiros
volumes da mencionada trilogia. Por meio de um esforço interpretativo
e argumentativo é possível tecer essa conjectura: a construção minucio-
sa das personagens e os diálogos estabelecidos entre elas, proporcionam
elos entre as narrativas que, desta forma, armam e amarram o dialogis-
mo entre os romances de Milton Hatoum. Ora, a trajetória de Mundo
se entrelaça à trajetória da personagem-narradora, dos dois volumes da
trilogia Um lugar mais sombrio. Pois, a personagem de Cinzas do Norte
Fecundas fontes de história, por sinal. Nesse sentido, a representação desse tipo de gênero nas
5

narrativas, por si só, já sugere essa implícita percepção de Hatoum sobre o saber histórico.
Saber que, também, se faz entre fissuras, fragmentos e silêncios deixados no tempo.

60 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


assume especificidades corroborantes às adversidades da segunda per-
sonagem: Martin, narrador do romance O lugar mais sombrio. Como se
este fosse a representação daquele e vice-versa.
Cinzas do norte, através dos dilemas de um jovem artista, deixa
patente que “a vida é cruel e que viver não é um prêmio, mas um castigo”
(ALEIXO, 2006, p. 212). Mundo é um artista em autoexílio, viajando
por várias cidades europeias. Sai de Manaus, primeiro por questões re-
lacionadas à estrutura e à ordem familiar: seu pai, Jano (o qual, de fato,
não é o pai de Mundo, pois, no final do romance, as pessoas leitoras
ficam sabendo que o pai do jovem artista é outra personagem), é um
opressor, discorda das escolhas do filho, essencialmente, das concepções
de arte deste, nas quais se ancoram as convicções da personagem, mas
também por Mundo ser visto como um transgressor da ordem social,
política e cultural, no contexto do regime militar brasileiro (as pessoas
que conhecem a obra de Hatoum sabem que esse chão histórico, que
serve de pano de fundo para o referido romance, também se faz presen-
te em Dois irmãos, um aspecto a mais para verificar a relação dialógica
entre os dois romances, portanto).
Já Martin, personagem narrador em A noite da espera e Pon-
tos de fuga (volumes 1 e 2 da aludida trilogia) é um estudante, ar-
tista – aspirante a escritor – que, por conta de o regime militar
brasileiro perseguir jovens estudantes da USP, considerados sub-
versivos, é obrigado a passar um período de sua vida em Paris. O
dilema das duas personagens é semelhante. Assim, as narrativas
são fronteiriças e se encontram através de elos.
O gênero narrativo é outro elo, pois tanto nos dois volumes da
trilogia como em determinadas partes, significativas à estrutura narra-
tiva de Cinzas do Norte, surgem cartas, fragmentos de diários, que reve-
lam os ecos de vozes das outras personagens através dessa relação dia-
lógica, inscritas nos romances mencionados. Não sem sentido, assim,
inicia o A noite da Espera:

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 61


Inverno e silêncio. Nenhuma carta do Brasil.
Paris, dezembro, 1977
Cidade gelada, nem sempre silenciosa: algazarra de
turistas na travessia de uma ponte sobre o Sena. Somos
do mesmo país, andamos para margens opostas. Essas
gargalhadas e vozes são verdadeiras? (HATOUM,
2017, p. 11).

Nessa esteira, assim, finaliza o romance Pontos de Fuga: Rue de


la Goutte-d’Or, Paris, primavera, 1980 A memória só faz sentido depois
do esquecimento? (HATOUM, 2019, p. 310).
Quando se recorre às narrativas inscritas nesses dois relatos fra-
turados acima citados (A noite da Espera, Pontos de Fuga), mas também
noutro (Cinzas do Norte), percebe-se uma determinada continuidade,
emitida pelas vozes das personagens, pela voz do autor-criador. Vozes
plasmadas pelo tempo histórico. Este que, na polifonia inscrita na obra
de Hatoum, também jacula sua fala. Mas, com o literato amazonense, a
fala é avessa a ordem do discurso opressor, vem a contrapelo. Mundo
e Martin, dessa forma, tornam-se a representação alegórica da busca
da liberdade, face à clausura amarga de uma temporalidade opaca. E
Hatoum, no tempo da escrituração, recorre à memória de um tempo
passado, a partir das angústias que ele começa a viver no presente, pois
aquele tempo pretérito se assemelha como o tempo da urdidura, princi-
palmente, de quando elabora os dois volumes de O lugar mais sombrio.
A memória, portanto, faz sentido diante de inúmeros indivíduos que
ficaram esquecidos nas sombras desse tempo sombrio. Tempo que in-
siste em dissimular sua Voz [em maiúsculas porque autoritária, opresso-
ra], atrás do forjado esquecimento. Pois: “A incompreensão do presente
nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos
vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente.”
(BLOCH, 2001, p. 65). Afinal, o passado tem vozes, muitas dessas quase
sempre silenciadas. Como afirmamos, Hatoum busca, por meio de suas
narrativas entretecidas, dignificar os rastros, os ruídos, as ruínas, os bra-
dos. Enfim, vozes das personagens anônimas.

62 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Ainda falando sobre a relação dialógica entre Cinzas do Norte
e a trilogia O lugar mais sombrio, vale colocar em destaque a figura da
personagem do coronel Zanda, o fato desta personagem vazar as duas
narrativas suscita, obviamente, algumas conjecturas.
O coronel Zanda aparece umas poucas vezes em A noite da Es-
pera e Pontos de Fuga. Isso tem um propósito no dialogismo inscrito na
obra do escritor amazonense, portanto: representar as redes de ligações
existentes entre os militares, desde Amazônia (Manaus) até o restante
do Brasil (mais especificamente, Brasília). Nos traços do relato emitido
por Lavo, narrador de Cinzas do Norte, Hatoum faz uma espécie de cari-
catura da elite que, provavelmente, compunha o poder social, econômi-
co e político na cidade de Manaus. Aí, portanto, estão três personagens,
dentre os quais iremos nos ater no coronel Zanda:
Mundo me puxou para um canto da cozinha, apontou
os convidados e cochichou: “Aquele grandalhão ali
é o Albino Palha... amigo e conselheiro do meu pai,
Exporta juta, castanha e borracha. Se dependesse dele,
exportaria até os empregados de Vila Amazônia. Palha
é um solteirão... se derrete todo na frente dos militares.
Olha como bajula os caras. Só falta pentear o bigode do
mais alto, o coronel Zanda, que o Jano vive dizendo que
é o preferido do Comando Militar da Amazônia. O
outro é o tenente Galvo, ajudante-de-ordem do Zanda.
Aquele esqueleto corcunda é presidente da Associação
Comercial. Tem vários apelidos: Caveira de Bigode,
Heródoto... Sabe de cor as datas dos grandes feitos da
história. Quando fala, parece que está numa tribuna.
O leso se considera um historiador, e a mulher dele,
aquela vassoura torta, manga o tempo todo do seu
amado Heródoto. Os outros são cupinchas e penetras.
Minha mãe odeia essa gente. Já está bebendo...
(HATOUM, 2005, p. 46)

Jano, coronel Zanda e o Caveira de Bigode ou Heródoto são per-


sonagens centrais dessa chacota, a propósito, inscrita no enredo de Cin-
zas do Norte, feita para contar sobre determinadas trajetórias de sujeitos
que se “destacaram” como pessoas influentes e poderosas na cidade de

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 63


Manaus. Mas também para representar o absurdo de um tempo ainda
opaco aos olhos da historiografia contemporânea, porque obstado é, de
fato, o acesso aos arquivos da ditadura militar brasileira: guardados si-
gilosamente, a sete chaves. Portanto, a ironia de Mundo, na imaginação
do escritor-criador do referido romance, traz aproximações com esse
tempo pretérito (1964-1985). Pois “as melhores vias de acesso, numa
tentativa de penetrar uma cultura estranha6 podem ser aquelas em que
ela parece opaca” (DARNTON, 1986, p. 106).
A personagem do coronel Zanda, no referido romance, é a re-
presentação de Jorge Teixeira de Oliveira. “Ambos, o homem da ficção
e o ‘personagem real’ devastaram a cidade de Manaus, em sonho alu-
cinado de progresso” (ALEIXO, 2006, p. 211). Natural do Rio Grande
do Sul (1921), mais especificamente do município de General Câmara.
Em 1942, inicia a carreira militar, passando pela Academia das Agulhas
Negras. Em 1947, torna-se aspirante do Exército. Em 1966, tenente-co-
ronel. Frequentou a Escola das Américas, nos EUA. Também no ano de
1966, na cidade de Manaus, foi o responsável pela criação do Centro
de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), comandou-o até 1971. Nessa
conjuntura, atuou na ofensiva contra a Guerrilha do Araguaia (1967-
1974), propósito essencial do CIGS. Teixeira também fundou o Colégio
Militar de Manaus, dirigindo-o até 1973.7 As fontes, por nós visitadas,
demonstram que Jorge Teixeira, na Amazônia, assumiu papel estratégi-
co durante o regime militar brasileiro:
Em 1974, foi nomeado pelo presidente da República
Ernesto Geisel (1974-1979) prefeito de Manaus. Em
1979, foi nomeado pelo presidente João Figueiredo
(1979-1985), por meio da indicação do ministro
6
No que se refere ao romance Cinzas do Norte, diríamos obscura, como uma cultura estranha,
por ser tão abstrusa, pela força das circunstâncias políticas, no passado, mas também, no mo-
mento da urdidura desse romance. Talvez essa imagem elaborada por Milton Hatoum, nela,
seus diálogos, emitam vozes, dizendo: as informações sobre as ações opressoras e violentas
dos gestores do regime militar brasileiro nem sempre foram revelados (o que é verossímil e
verdadeiro, pois, tais agentes foram/são protegidos por um silêncio seletivo. Neste, consta
uma memória, oficial, a qual dissimulada eventos. Daí a ironia, o propósito desse diálogo de
Mundo e Lavo, elaborado pela literatura de Milton Hatoum.
7
Sobre a trajetória política de Jorge Teixeira recomendamos a leitura do artigo de Cátia Fran-
ciele Sanfelice de Paula, inclusive, a ele nos reportamos nas linhas que se seguem.

64 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


do Interior Mario Andreazza, para o governo do
território de Rondônia pela legenda do Partido
Democrático Social (PDS). Assumindo o cargo,
recebeu a missão de transformar o território em
Estado (PAULA, 2019, p. 276).

Durante sua atuação como prefeito da cidade de Manaus, à luz


do projeto desenvolvimentista, Jorge Teixeira lançou o plano urbanísti-
co, conhecido e propalado pelos jornais mais influentes da urbe como
“Grande Manaus”. Na esteira do que afirmou Marcos Frederico Krüger
Aleixo, anteriormente citado, o referido plano de metas urbano-admi-
nistrativo almejava a “modernização da capital amazonense” (como o
grifo elucida) através do fragmento do discurso inscrito na fonte im-
pressa, abaixo mencionado:
[...] promovendo um ‘rush’ de trabalho que se vê em
todos os quadrantes da cidade no centro e nos bairros.
As Praças da Matriz, da Bola João Coelho e a da
Saudade marcaram essa arrancada pela modernização
da capital amazonense. A conclusão e a inauguração
da nova ponte de Educandos, iniciada na administração
Frank Lima, foi outra meta imediatamente atingida
pelo atual prefeito. Ruas novas estão sendo abertas
nos bairros mais pobres da cidade e avenidas vêm
sendo asfaltadas no objetivo conjugado de favorecer
a população, embelezar a cidade saneando-a e de
permitir maior normalidade e desafogo no trânsito
(COMÉRCIO..., 1976a, p. 1).8

Para corroborar tal relato, reproduzimos uma imagem bastante


emblemática, referente às transformações urbanísticas que ocorreram
nos anos de 1970. É, portanto, reminiscente à ponte de Educandos – um
dos símbolos dessa acepção de modernidade, alavancada à urbe, a qual
grifamos no indício aí extraído como prova histórica, qual a fotografia
que agora nos apropriamos e reproduzimos adiante:

8
Jornal do Comércio. “Um ano de governo Jorge Teixeira”. Manaus – quinta-feira, 15 de abril de
1976, p.1.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 65


Figura 1: Ponte de Educandos, anos de 1970.
Fonte: Acervo Digital do Centro Cultural Povos da Amazônia (ADCCPA).

A imagem captura, do alto, o processo de construção da menciona-


da obra de engenharia que, de certa forma, corrobora a ideia norteadora da
ideologia desenvolvimentista, em voga na conjuntura do regime militar bra-
sileiro: conectar geograficamente um espaço a outro, tanto no interior das
cidades (propósito da ponte de Educandos na cidade de Manaus) quanto
entre as regiões brasileiras (pois, a palavra de ordem era: “integrar para não
entregar”). Por isso, algumas rodovias foram construídas. A mais eloquente
foi a Belém-Brasília [também projetada para desarticular o conflito entre
guerrilhas a partir do campo como, por exemplo, a Guerrilha do Araguaia].
No romance Dois irmãos, Hatoum, através da personagem
Nael, lembra das peculiaridades do bairro de Educandos antes desse
“processo urbanístico modernizador”, mas também devastador, trazi-
do pelos militares:
Ele me levava para um boteco na ponta da Cidade
Flutuante. Dali podíamos ver os barrancos dos
Educandos, o imenso igarapé que separa o bairro
anfíbio do centro de Manaus. Era a hora do alvoroço.
O labirinto de casas erguidas sobre troncos fervilhava:
um enxame de canoas navegava ao redor das casas
flutuantes, os moradores chegavam do trabalho,

66 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


caminhavam em fila sobre as tábuas estreitas, que
formavam uma teia de circulação. Os mais ousados
carregavam um botijão, uma criança, sacos de farinha;
se não fossem equilibristas, cairiam no Negro. Um
outro sumia na escuridão do rio e virava notícia
(HATOUM, 2000, p. 120).

Como se percebe, o citado imaginário da cidade elucida a Cidade


Flutuante, paralela ao bairro de Educandos, desativada, historicamente,
no início do regime militar brasileiro. Deste foi construída uma pon-
te para ligar o referido bairro ao centro da cidade, como é visível na
fotografia supra. Contudo, o governo de Teixeira, ao redesenhar urba-
nisticamente a cidade, rompeu, de certa forma, com uma determina-
da transmissão da experiência inscrita na memória e na arte de viver,
principalmente, referente às classes populares da cidade de Manaus.9 As
mesmas que, ao longo do tempo, montaram suas casas nas águas do
rio Negro: o fazer-se da cidade em uma ambiência anfíbia. Morar no
centro da cidade foi/é, historicamente, oneroso. Daí a explicação para
o desenho arquitetônico de uma cidade sob as águas. Nesse contexto,
o projeto “Grande Manaus” mantém uma peculiaridade ambígua: en-
quanto alguns lugares centrais da cidade de Manaus estavam recebendo
a inserção de obras de infraestrutura, outros ficaram esquecidos. Ocorre
que no ano de 1976, a fonte impressa a que estamos utilizando registra:
o crescimento urbanístico desordenado de Manaus
durante longo tempo e sua explosão demográfica
que surpreendeu até mesmo as mais otimistas
previsões estatísticas, agravaram todos os problemas
da metrópole na decadência dos sistemas básicos
de sua infra-estrutura (infraestrutura). Bairros
inteiros nascem e crescem da noite para o dia, em
áreas sem arruamento, sem esgoto, sem drenagem
das águas pluviais; o número de novas construções
com surgimento dos grandes edifícios aumentou
consideravelmente (COMÉRCIO, 1976a, p. 1).

No Amazonas, na sua capital, isto é permanente. Testemunho histórico desta continuidade pode
9

ser observado através da implementação do projeto arquitetônico e habitacional que retirou


famílias de determinadas espacialidades urbanas através do projeto denominado Prosamim.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 67


Portanto, é uma questão de ordem social, cultural, política e his-
tórica. Ordem herdada de governos anteriores ao regime militar brasi-
leiro10. Tampouco projetos como “Grande Manaus” conseguiram resol-
ver, pois tais problemas de saneamento básico são históricos e, assim,
se espraiaram nos anos subsequentes. Coronel Zanda, da ficção e Jorge
Teixeira de Oliveira, da realidade social, são, de tal modo, agentes desse
processo de modernização da cidade.
Zanda, como frisamos anteriormente, transita entre alguns ro-
mances de Milton Hatoum. Leva sua representação, sua voz, que sur-
ge nas dobras, curvas, das narrativas. Contudo, significativa voz. Ora,
ele, no plano do enunciado dos romances Cinzas do Norte e nos dois
volumes da trilogia O lugar mais sombrio, é a incorporação do regime
militar brasileiro, em voga, como já elucidamos. Regime, que também
surge em Dois irmãos: “Eu não queria sair de casa, não entendia as ra-
zões da quartelada, mas sabia que havia tramas, movimento de tropas,
protestos por toda parte. Violência. Tudo me fez medo.” (HATOUM,
2000, p. 199). Como registra a voz de Nael. Ocorre que dezessete anos
depois da publicação do mencionado romance, o mesmo chão histórico
amalgama a estrutura do romance A noite da espera, ambientado essen-
cialmente em Brasília:
A primeira bomba de gás caiu perto do corpo de
Lázaro, a fumaça me cegou por um instante, consegui
tocar as costas de Dinah, mas fui empurrado e caí;
quando levantei, os estudantes se dispersavam aos
tropeções na fumaceira de outras bombas de gás, não
vi Dinah nem o Nortista, corri num ritmo tão veloz que
mal sentia minhas pernas. (Grifo nosso) (HATOUM,
2017, p. 123).

Asseveramos que esse chão histórico, inscrito nas experiências


e vivências de Hatoum, faz-se representar por meio do dialogismo de
sua obra, obviamente. Ouve-se, portanto, vozes extraídas do romance,
acima citado. De fato, um registro fictício: fecunda fonte, porque suscita
Sobre o contexto anterior, recomendamos o livro: “Na vaga claridade do luar”: História & Lite-
10

ratura do Movimento Madrugada na cidade de Manaus (1954-1967), do historiador Arcângelo


da Silva Ferreira, publicado pela editora Appris, Curitiba, 2020.

68 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


relação dialógica com a história do Brasil, no contexto do regime militar
brasileiro:
[...]
“Coronel Zanda...” disse o gaúcho. “Quem é esse
teu querido milico infalível?” Qual é a estirpe desse
machão? Ou será uma bichona enrustida?”
“É assim que tu tratas o futuro prefeito de Manaus?”
“Os golpistas de 64, civis e militares, Áurea. Machões
empertigados... e alguns psicopatas. O marechal Castelo
Branco era um macho letrado. Um intelectual carrancudo,
com um vago ideal democrático, mas foi garroteado pelos
truculentos da caserna. O marechal Costa e Silva era um
machão triste, de índole feroz e vingativa. Um verdadeiro
cavaleiro do Apocalipse da Ordem Militar de Cristo. E
esse general Médici, a matança... ele é capaz de mandar
arrancar os olhos dos torturados, só para impedir que eles
chorem de tanta dor”.
Cuidado, Galindo”, advertiu a Baronesa, “em Brasília
até os jarros escutam.”
[...]. (HATOUM, 2017, p. 142-143).

Não será tecida uma resenha do livro a partir do referido episó-


dio. Ter-se-ia que incorrer em uma digressão, talvez inútil, pois convém
remeter as pessoas à leitura do primeiro volume da referida trilogia. O
propósito aqui é reproduzir o diálogo entre as personagens que aí apa-
recem para corroborar nossos argumentos acerca do papel significativo
do dialogismo inscrito na obra de Milton Hatoum. Não sem sentido,
surge nesse diálogo a menção ao coronel Zanda, a mesma personagem
do romance Cinzas do Norte. Tal representação, por um lado, confirma
a perspectiva do projeto literário de Hatoum: elaborar narrativas que
entretecem seus romances [como ele já deixou patente desde seu pri-
meiro romance Relato de um certo oriente, quando utiliza técnica nar-
rativa análoga à obra clássica Mil e uma noites, reafirmando], por outro,
construir elos entre ficção e história, verossimilhança e realidade social.
Zanda é uma alegoria de Jorge Teixeira de Oliveira, portanto. O militar
gaúcho era prefeito interventor da cidade de Manaus nos anos de 1970.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 69


Usando novamente da ironia, o escritor-criador, por meio da estória/
história contada através da fala do jovem estudante Martim, desenha
um quadro verossímil da peculiaridade de Zanda (Jorge Teixeira) e dos
governos militares.
Outra personagem que, dentre tantas alcunhas, é conhecido
como Heródoto, corresponde, na realidade a Arthur César Ferreira
Reis, o primeiro interventor do regime militar brasileiro no Amazonas,
responsável por um episódio histórico, como afirmei linhas acima, re-
gistrado na memória coletiva e social da cidade de Manaus: a destruição
da Cidade Flutuante11. Inclusive, a representação desse acontecimento
aparece numa das cenas do romance Dois irmãos:
Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flutuante.
Os moradores xingavam os demolidores, não queriam
morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim
balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas
casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e
soltava uns palavrões, gritava “Por que estão fazendo
isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os policiais
impediam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado,
e começou a chorar quando viu as tabernas e o seu
bar predileto. A sereia do Rio, serem desmantelados a
golpes de machado. Chorou muito enquanto arrancava
os tabiques, cortavam as amarras dos troncos ficaram
flutuando, até serem engolidos pela noite. (HATOUM,
2000, p. 211).

Para elucidar o que se pretende expor, convém reproduzir uma


imagem da referida cidade:
É frequente a imagem da Cidade Flutuante nos romances de Hatoum. Conjecturamos que a
11

trajetória histórica do referido espaço urbano, alternativo, é marcante também na trajetória


histórica da família de Hatoum. Outra conjectura é que as imagens elaboradas pelo autor, por
meio de sua literatura do urbano, são relativas à “memória por tabela”, a qual o escritor ama-
zonense recupera dos relatos contados e recontados por seus ancestrais. Adiante, reproduzi-
mos uma imagem da Cidade Flutuante – e a sugestão de sua importância à existência, à vida
cotidiana dos ancestrais do autor amazonense, representados na personagem descrita nesse
fragmento - , inscrita no romance de estreia de Hatoum, Relato...(2008, p. 31, da edição de
bolso. – Companhia das Letras): “Todos se reuniam na copa do casarão rosado, com a exceção
de meu pai, que se ilhava no quarto ou ia passear na Cidade Flutuante, onde ele entrava nas
palafitas para conversar com os compadres conhecidos, com os caboclos recém-chegados do
interior, e depois caminhavam até o porto para visitar armazéns e navios”. (grifo nosso).

70 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Figura 2: “Detalhe da Cidade Flutuante” (1953).
Fonte: Acervo Digital do Centro Cultural do Povos da Amazônia (ADCCPA).

É possível o entretecer das duas narrativas, a fotográfica e a li-


terária, pois, nestas parece residir a representação dos sentimentos de
sujeitos que construíram suas trajetórias, na ambiência da mencionada
Cidade Flutuante. A lembrança de Halim sobre o episódio supracitado,
descrito por Nael, é, decerto, uma vereda que Hatoum trilhou através da
ficção para que a literatura dialogasse com a realidade. O imaginário da
cidade elaborado por Hatoum, lá inscrito como parte do capítulo sete
do romance Dois irmãos, é fecundo para se verificar e analisar a necessi-
dade de uma determinada política habitacional aplicada, radicalmente,
pelo regime militar brasileiro na cidade de Manaus. Ora, a desativação
daquela estrutura habitacional elaborada a partir das peculiaridades
de uma determinada geografia e cultura popular, portanto, marginal
aos olhos da nova ordem que começava a se estabelecer na cidade, no
Amazonas, no Brasil, foi um projeto planejado e concretizado durante
o governo de Arthur César Ferreira Reis, o qual “chefiou o governo do
Amazonas, em junho de 1964, iniciado pelo marechal-presidente Hum-
berto de Alencar Castelo Branco, após a instalação do regime militar”

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 71


(UGARTE, 2019, p. 166), personagem real que, na obra de Hatoum, ga-
nha a alcunha de Heródoto. É sabido, na envergadura do pensamento
social e da historiografia, acerca da Amazônia que: “Não esquecendo
a postura autoritária de Arthur Reis, fica nosso compromisso, menos
em julgá-lo, o que já foi feito por seus contemporâneos, desafetos ou
não, mas compreendê-lo como um homem de ideias e homem de ação”
(UGARTE, 2019, p. 173). Nessa medida, representante, na sua geração,
da concepção tradicional da história da Amazônia/Amazonas.
Por isso, talvez a ironia inscrita na fala da personagem de Ha-
toum: as datas das efemérides, Heródoto sabia de cor.12 O mandato de
Reis, como governador interventor do Amazonas, “se realizou no perío-
do de 27 de junho de 1964 a 31 de janeiro de 1967” (UGARTE, 2019,
p. 166). O período faz verificar: com Hatoum, ficção e fato guardam
relações fronteiriças. Corroboramos isto, lançando mão de um determi-
nado documento histórico, oficial:
Dentro dos grandes objetivos do Plano de
Desenvolvimento Econômico e Social para o biênio
1965/1966, inseriu-se a política habitacional, que
visa estimular a construção de moradias próprias,
destinadas a abrigar classes menos favorecidas.
O problema habitacional mais se fazia sentir na
capital do Estado, através da Cidade Flutuante, que se
localizava nas proximidades do porto de Manaus, ou
seja, na entrada da cidade. Levantamentos efetuados,
revelaram a existência de 2.500 casa flutuantes. Essas
habitações não apresentavam as mínimas condições de
conforto e higiene aos seus usuários, além de constituírem
um grave problema de ordem social.

Isto parece uma ironia barata. Contudo, não é. Pois torna-se um indício significativo da acep-
12

ção de história do escritor amazonense. Esse pequeno fragmento localiza Hatoum como um
contundente crítico da história como mestra da vida, por exemplo, elucidando que, sua nar-
rativa se aproxima da perspectiva da história vista de baixo. Daí ele, elucidar o Outro, este
anônimo da História oficial. Nessa medida, não deixando de considerar que literatura almeja
a verossimilhança e, a história, a busca da verdade, é possível dizer que a obra de Hatoum é
profusa para se pensar e fazer um saber relativo à perspectiva da história social da cultura.
Portanto, não sem sentido, Mundo, através do narrador Lavo (Cinzas do Norte), e, por exten-
são, do escritor-criador, Milton Hatoum, tem um propósito ao ironizar as peculiaridades da
personagem Heródoto: sugerir uma ferrenha crítica a história laudatória.

72 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Sentindo a necessidade de resolver esse difícil problema,
o Governo Revolucionário extinguiu a cidade flutuante e,
ao mesmo tempo, elaborou um programa de construção
de 2.000 casa populares, a cargo da Secretaria de Viação
e Obras públicas, dos quais concluiu 130 unidades (REIS,
1967, p. 121).

O documento revela a justificativa da extinção da Cidade Flu-


tuante: o desconforto e a falta de higiene dos seus habitantes; o proble-
ma nascido no centro da cidade, o qual ameaçava a ordem social vigen-
te. Assim, Arthur Reis, usando de seu perfil autoritário, representante
fiel do “Governo Revolucionário”, coloca abaixo aquela cidade improvi-
sada na ambiência da cultura popular. Relembrar esse evento por meio
de seus registros históricos suscita remover dos arquivos da memória
os registros historiográficos. Estes que revelam as adversidades de um
sujeito, o qual assume um caráter, segundo o historiador abaixo citado,
um tanto quanto ambíguo. Por um ângulo, intelectual defensor da cul-
tura, a partir de suas concepções tradicionais, obviamente; por outro,
autoritário, devotado que foi, ao sistema político que representava, pois:
Na qualidade de servidor público e pesquisador já
consagrado, Reis proporciona uma dupla contribuição
à nova ordem que pretendia se instituir no país: seja
fazendo parte do processo de modernização através
da execução dos grandes projetos desenvolvimentistas
previstos para a Amazônia, seja conferindo legitimidade
intelectual ao regime através das medidas culturais
que concebeu e aplicou tanto na chefia do Estado do
Amazonas como na presidência do Conselho Federal
de Cultura (AMARAL, 2013, p. 126).

Aquela imagem, inscrita em Dois Irmãos, a qual nos remeteu à


figura de Reis, por sinal, um episódio cruel aos olhos de Halim, emble-
mática personagem de Hatoum, guardião de uma memória que nasce
na realidade e alimenta a imaginação do escritor, faz, como já afirma-
mos, observar o elo dialógico entre Clio e Calíope13. Reside aí, portanto,
alguns indícios do dialogismo na obra do referido escritor amazonense.

Na mitologia grega, Clio configura a deusa da História e Calíope, deusa da Literatura.


13

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 73


De tal modo, reportando-se à riqueza crítica, pode-se afirmar
que por meio dos poemas, romances, novelas e crônicas, os narradores
de Hatoum [assim como este escritor-criador] parecem querer “puxar
conversa também conosco” (MENEZES, 2020, p. 16). Ocorre, assim, o
dialogismo endógeno e exógeno à obra do literato amazonense, como
buscamos desenhar aqui. Afinal, ao que parece, Milton Hatoum escuta
as vozes das palavras de Octávio Paz quando este afirma, no seu O arco
e a lira: “O diálogo é mais que um acordo: é um acorde.” (PAZ, 2012, p.
59). Nos acordes da narrativa do referido escritor amazonense, os diá-
logos são como rimas surgidas das brumas das lembranças, memórias
as quais o autor ressignifica. Motes para o pensar, fazer e ensinar uma
outra história acerca da ditadura militar brasileira.

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WILLIANS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 77


CAPÍTULO 4

Jacundá digital: memória, cidade e Ensino


de História

Dulcirene Valente Neta1


Anna Carolina de Abreu Coelho2

A
fim de dar continuidade às reflexões propostas pela discente
do Mestrado Profissional em Ensino de História-Profhistória,
Dulcirene Valente Neta, optamos por explorar a temática e re-
gistrar nossas discussões através deste artigo de forma que alguns pon-
tos, antes apresentados por meio de uma comunicação no XII Encontro
de História da Anpuh-PA, foram ampliados e reorganizados.

Para tanto, estruturamos o artigo em três partes. Na primeira e


na segunda, apresentamos aos leitores Jacundá, uma cidade amazônica
surgida no contexto que Rosa Acevedo Marin (2004, p.15-18) denomi-
na “civilização de estrada”, advinda de projetos de desenvolvimento e
integração iniciados nos anos 1950, cujo ponto fundamental foi a cons-
trução da Belém-Brasília. O projeto teve continuidade nas décadas pos-
teriores, em especial a partir de 1966, com implementação de planos
de desenvolvimento e do conjunto de políticas denominadas “Operação
Amazônica”. Na década de 1970, o Plano de Integração Nacional (1970)
organizava a ocupação da Amazônia e o desenvolvimento do nordeste,
cujo maior símbolo da inserção da Amazônia no Brasil foi a rodovia
Transamazônica. Na terceira parte, comentamos a respeito da possibili-
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ensino de História da UNIFESSPA. Professora
da Rede Pública no Ensino Básico, vinculada à Secretária de Educação do Estado do Pará
(SEDUC-PA) e à Secretária Municipal de Jacundá.
2
Doutora em História pela Universidade Federal do Pará. Docente da Universidade Federal do
Sul e Sudeste do Pará.

78 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


dade de criar um jogo digital sobre a cidade de Jacundá como estratégia
do ensino de História para as turmas de ensino fundamental.
A forte presença da tecnologia faz com que as sensibilidades dos
alunos sejam diferentes das dos professores. Diante desse problema,
muitos docentes passam a questionar-se sobre “os critérios de seleção
de conteúdos significativos para os alunos que vivenciam, e com inten-
sidade, o presente marcado pelos ritmos acelerados das tecnologias”
(BITTENCOURT, 2017, p. 07).
Devido a esses desafios, nos indagamos acerca dos diferentes es-
paços de memória na cidade e de como esses espaços podem ser objeto
de uma reflexão sobre sua historicidade na sala de aula. Enquanto pro-
fessores, sabemos o quão importante é a História na vida dos discentes
ao pensarmos em como ela pode ser uma “disciplina fundamentalmente
educativa, formativa, emancipatória e libertadora”, mas que a questão
sobre o porquê e como ensiná-la “processa-se, sempre no interior de
lutas políticas e culturais” (FONSECA, 2003, p. 89). Selva Guimarães
Fonseca ressalta que o docente de História não atua no “vazio”:
Os saberes históricos, os valores culturais e políticos
são transmitidos e reconstruídos na escola por sujeitos
históricos que trazem consigo um conjunto de crenças,
significados, valores, atitudes e comportamentos
adquiridos nos vários espaços. Isso implica a
necessidade de nós, professores, incorporarmos no
processo de ensino outras fontes de saber histórico,
tais como o cinema, a tv, os acontecimentos cotidianos.
[...] (FONSECA, 2004, p. 37).

Nessa busca pela aproximação ao cotidiano dos alunos, a rela-


ção entre a História e o local torna-se importante de ser pensada pelo
professor. Acerca desse tema, Circe Bittencourt observou que a História
Local consta nos currículos como necessária para o ensino possibili-
tar ao aluno a compreensão de vida no seu entorno e para identificar o
passado, sempre presente, nos vários espaços de convivência cotidiana.
Entretanto, a autora nos alerta para o risco de esse método limitar-se
à disciplina e “reproduzir a história do poder local e das classes domi-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 79


nantes...”, e complementa que é preciso identificar a abordagem de uma
história local que crie vínculos com a memória familiar, do trabalho, da
imigração, das festas” (BITTENCOURT, 2008, p. 168).
Erinaldo Cavalcanti, ao discutir a História Local como objeto de
estudo e como categoria conceitual para o ensino e para a historiografia,
aponta para as possibilidades que o “local” pode suscitar para os deba-
tes. Sendo o conceito muito relativo, o autor lembra que:
problematizar as “dimensões locais da história” pode
contribuir para evitarmos certos reducionismos.
Ou seja, o professor pode ensinar/estudar/pesquisar
a história do bairro, da rua e da cidade – onde se
encontra a escola, por exemplo –, sem a necessidade
de enquadrar os acontecimentos, ou compreendê-
los pelas lentes de uma “história local” como
convencionalmente costuma ser apreendida. Em
outras palavras, é possível ensinar os conteúdos que
representam as experiências históricas próximas ao
universo de vivência dos estudantes sem limitar as
reflexões a uma interpretação que compreenda os
acontecimentos da chamada “história local” como se
fossem determinados pelas dimensões espaciais ou
resultantes de uma “história maior”, ou nacional, se
quisermos (CAVALCANTI, 2018, p. 287-288).

Nesse sentido, ao olhar para a história da cidade paraense de


Jacundá por meio das memórias de seus antigos moradores, procu-
ramos justamente a problematização das dimensões locais buscando
uma perspectiva mais abrangente para lidar com o objeto de pesqui-
sa, sem limitar as reflexões a uma chamada “história local”, que seria
subordinada a uma “história nacional” ou outras dimensões consi-
deradas como “história maior”.
Ao trabalharmos com narrativas orais e com as lembranças dos
antigos moradores, tentaremos entender as percepções das temporali-
dades e espaços da memória sobre a cidade, sendo essencial atentar para
as relações de poder que se imbricam na memória como representação
do passado. De acordo com Le Goff (1999, p. 366), a memória “remete-

80 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às
quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou
que ele representa como passada”. Partindo dessa reflexão, entendemos
que é necessário que o historiador busque os significados complexos da
memória individual e da memória coletiva.
Sendo o ato de elaboração da memória formado igualmente pelo
lembrar e pelo esquecer, trata-se primeiramente de um ato solitário e
individual (HALBWACHS, 2007, p. 46-47). Ao lidar com essas subje-
tividades de trabalhar com registros orais, poderão ser trazidas à tona
lembranças agradáveis e algumas que, possivelmente para muitos, deve-
riam ficar no subterrâneo do esquecimento.
Porém, cabe considerar que existem diferenças nos registros da
memória individual da memória coletiva. Conforme Alessandro Portel-
li (2017, p. 127), a memória coletiva nada tem a ver com as memórias de
indivíduos, não sendo necessariamente uma expressão de emoções es-
pontâneas de sentimentos como a dor e o luto, pois só se torna memória
coletiva quando é abstraída e separada da individual, o que ocorrerá na
criação de um mito, na delegação de uma pessoa para muitas histórias
e nas instituições como “escola, igreja, estado, partido que organizam
memórias e rituais num todo diferente de suas partes”.
A questão da memória coletiva é algo complexo por ela ser ela-
borada no tempo histórico e por forjar uma mitologia fortemente im-
bricada pelo poder, que pode privilegiar a memória de determinados
grupos em detrimento de outros, sendo “uma formalização igualmente
legítima e significativa, mediada por ideologias, linguagens, senso co-
mum e instituições” (PORTELLI, 2017, p. 127).
Por se tratar de uma história das memórias da cidade, será ne-
cessário fazer algumas considerações sobre locais específicos, buscando
uma abordagem de historização da memória (MENESES, 1999, p. 27).
Nesse sentido, a estudiosa de teoria literária Aleida Assman (2011), em
seu livro “Espaços da Recordação”, fruto de uma longa pesquisa sobre
o campo da memória social, iniciada com sua tese de Livre-Docência,

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 81


defendida em 1992 na Faculdade de Filosofia da Universidade de Hei-
dlberg, nos ajuda a pensar sobre a memória dos locais ao entendê-los
como meios ou mídias que “fundamentam e flanqueiam a memória cul-
tural como suportes materiais dela, e que interagem com a memória
individual de cada um” (ASSMAN, 2011, p. 317- 361).
Assman menciona que os lugares fazem parte da construção signi-
ficativa de espaços culturais da recordação, seja por sua ligação duradoura
com histórias e “locais de famílias” ou de “locais de gerações”, por serem
espaços do sagrado ou do mito, locais exemplares por serem históricos e,
ao mesmo tempo, sagrados (a exemplo de Jerusalém ou Tebas), ou locais
honoríficos com ruínas e objetos de outros tempos e civilizações como
Roma e Atenas; sendo que as ruínas seriam tanto locais de lembranças ou
estruturas abandonadas ao esquecimento (2011, p. 317 - 361).
Considerar os “espaços culturais de recordação”, apontados por
Aleida Assman, é importante para refletir sobre a memória dos lugares na
cidade de Jacundá.3 As lembranças dos moradores nos possibilitarão pen-
sar as experiências e as representações de identidades individuais e coleti-
vas da cidade, que foi destruída e reconstruída em outro espaço devido a
uma inundação causada pela implantação do projeto da usina de energia
hidrelétrica de Tucuruí. Partiremos dessas abordagens sobre História e
memória desta cidade para propormos estratégias no ensino de História,
pelas quais os alunos sejam instigados a entender sua cidade.

4.1 Jacundá: memórias divididas entre o rio e estrada

O mês de junho do ano de 1973 seria um mês como outro qual-


quer. Não se sabe ao certo o dia, talvez fosse um dia de sol brilhante,
tal como muitos outros. As crianças se banhavam no rio tirando “pon-
tinha” da rampa, outras iam para a escola, mães colocavam roupas para
“quarar” nos pedrais, pais saíam para pescar, caçar ou mesmo se aventu-
rar no garimpo, possivelmente muitos bebês naquele dia nasciam pelas
3
A origem do nome Jacundá se deu por causa de um peixe, muito presente no Rio Tocantins.

82 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


mãos das parteiras. Seria um dia comum, se não fosse a data da grande
festa da quadrilha sertaneja.
Porém, nesse mesmo ano, nos escritórios de Brasília, para execu-
tar o projeto da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT) na cachoeira do
Itaboca, criava-se a empresa estatal Eletronorte (CASTRO, 1996). Os ja-
cundaenses, alheios ao que estava para acontecer, foram atingidos literal-
mente pela construção da barragem, haja vista que estavam no meio de
um grande projeto, criado para abastecer de energia, com total subsídio
do Estado, as indústrias de alumínio de capital japonês (em associação
com a então estatal Companhia Vale do Rio Doce), a Alumínio Brasileiro
SA (Albrás) e a Alumina do Norte do Brasil SA (Alunorte), em Barcarena,
no Pará, além do Consórcio de Alumínio do Maranhão (Alumar), forma-
do pela BHP Billiton e pela Alcoa, em São Luís (PINTO, 2012, p. 778).
Os impactos ambientais e humanos foram altos, sendo importante
ressaltar que esses grandes projetos atraíam imigrantes de forma desor-
denada. Era um dos objetivos dos governos militares, preenchimento de
espaços “vazios” de terra, mito que contribuiu e legitimou a ocupação da
Amazônia. De acordo com Edna Castro (2010, p. 107-108), a ideia da flo-
resta como desafio a ser vencido pela civilização iniciou com as primeiras
viagens exploratórias por meio da mítica do El Dorado, que foi constan-
temente reinventada e fundamentou a ideia de “um vazio demográfico a
preencher” através de frentes empresariais de madeireiras, produtos da
biodiversidade, pecuária, agronegócio, pesca e indústria farmacêutica.
Conforme as memórias dos remanejados ao final do ano de 1977,
eles foram surpreendidos pela chegada dos técnicos da firma contratada
pela Eletronorte para fazer o levantamento da área que seria inundada
pelo grande lago do reservatório da Usina Hidrelétrica de Tucuruí. A
partir desse primeiro contato com os técnicos, a vida desses sujeitos so-
ciais não seria mais a mesma.4

4
O parágrafo aborda de forma geral o teor de depoimentos colhidos na feitura da monografia
de conclusão de curso de graduação em História de Dulcirene Valente Neta intitulada “A
Terra da Intromissão: Experiências Sociais na remoção da cidade de Jacundá (1980-1990)”.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 83


Segundo os documentos e a memória dos remanejados, os le-
vantamentos das propriedades e a logística do deslocamento para a Vila
Arraias, antes de assinarem os contratos de transferência, aparentemen-
te seria vantajoso, entretanto, após as negociações, os técnicos mostra-
ram-se ríspidos, de acordo com o jornal “O Grito da PA-150,“muitos
expropriados foram obrigados, sobre pressão assinar as folhas do pro-
cesso de indenização em branco” (arquivo da CPT na pasta nº 01, ano
1980 a 1984). O autoritarismo da empresa é lembrado, por seu Euclides
da Silva Nunes:
As expectativas eram muito boas, eles chegaram a
fazer levantamento do tipo de alimentação que nós
tínhamos, como era todos os costumes nosso, então
havia uma expectativa muito boa, eles foram com
muitos papéis em branco e com uns recortizinho de
papel com o valor da indenização, vi sim, foi usado
um tipo de pressão mesmo, eles falavam assim: olha o
valor da sua indenização, é esse valor se você assinar,
vai receber agora, se não assinar você vai receber
daqui dois, três, anos esse mesmo valor”. (entrevista
concedida, 16/06/2003).

No início de 1980, os jacundaenses, acatando as ordens do Es-


tado, são remanejados forçadamente de sua cidade. Apesar de, inicial-
mente, esses sujeitos não terem participado do processo decisório do
deslocamento e estarem fragilizados, não aceitaram passivamente, e as
resistências ocorreram. Uma dessas resistências foi o fato, por exemplo,
de não aceitarem o deslocamento para as terras da região do Pitinga,
que no ano de 1984, não dispunha nem mesmo de estrada. Pela me-
mória dos remanejados jacundaenses, algumas famílias começaram a
ocupar espontaneamente a região do Lago de Tucuruí, com muita luta
resistiram e ainda hoje permanecem nesse espaço.
A despeito das narrativas de luta, enfrentamento e resistência,
plasmou-se entre os mais idosos uma memória de passividade e harmo-
nia com a natureza. Para os antigos moradores de Jacundá, ela é carac-
terizada como uma cidade pacata e mesmo idílica, formada por ribeiri-
nhos, pescadores, catadores de castanha e alguns poucos comerciantes,

84 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


cheia de fartura, de amizades duradouras, de uma beleza peculiar, com
um pôr-do-sol jamais visto em outros lugares, com pedrais e praias en-
cantadoras. Uma narrativa que pode ser associada aos discursos sobre a
região relacionados à natureza, ao exotismo e mesmo ao paraíso (PRES-
SLER, 2010, p. 162-163).
Jacundá foi descrita como uma cidade pequena com duas ruas,
a rua da frente, que ficava à margem direita do Rio Tocantins, e onde
ficava o comércio local, a Escola Cel. João Pinheiro, a Igreja de N. S. do
Perpétuo Socorro, então padroeira do município, o barracão da Santa,
o cemitério, o campo de futebol e as casas residenciais. Já na rua de trás,
tinha a prefeitura, a escola municipal Pequeno Príncipe, a caixa d’água e
apenas duas residências. A Jacundá dividia a outra margem do rio com a
Vila Jatobal, havendo uma rivalidade entre ambas que estendia do fute-
bol ao festejo das padroeiras. Com a criação da Hidrelétrica de Tucuruí,
os moradores foram obrigados a retirarem-se das margens do rio para
as margens da PA-150.
O novo espaço destinado aos desabrigados pela barragem de
Tucuruí foi a Vila Arraias. Aparentemente foi um encontro amistoso,
porém, na fala de alguns entrevistados, podemos perceber um silen-
ciamento. Os expropriados falam que se sentiam estranhos, invasores e
invadidos na Vila Arraias; já os arraienses sentiam-se invadidos, dado
ao fato de que ninguém conversou sobre a chegada desses novos sujeitos
que se instalaram “como se fossem os legítimos donos da cidade”.
Podemos pensar nessa tensão entre os arraienses, moradores
mais antigos (legítimos donos da terra), e os expropriados, recém che-
gados (invasores), como algo bastante semelhante ao comportamento
dos moradores da comunidade Wiston Parva (nome fictício de uma pe-
quena cidade inglesa), analisada por Norbert Elias e Jonh L. Scotson
(2000, p.20-21), onde os moradores de uma área na qual vivia o grupo
mais antigo e “estabelecido” na comunidade tratavam os recém-chega-
dos como um grupo com menos virtude, vistos como “os de fora” ou
“outsiders”. Assim, a antiguidade conseguia criar tanto uma coesão gru-
pal quanto uma identificação coletiva.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 85


4.2 Vila arraias: os arraienses e os expropriados

A Vila Arraias surge nas proximidades do Rio Arraia, ainda na


década de 70, a partir de ocupação de terras devolutas por fazendeiros.
Localizava-se acerca de 50 km de distância da sede da antiga cidade de
Jacundá, no km 88 da PA-150. Nas narrativas de antigos moradores, as
primeiras casas foram feitas no bairro Boa Esperança.
O crescimento da vila acelerou-se a partir de 1977 visto que, nes-
te período, o Departamento Estadual de Estrada e Rodagens montou
a estrutura próxima ao rio Arraias para dar início à construção da PA-
150, inclusive a primeira rua do referido bairro tem o mesmo nome do
departamento (DER). Com isso, a chegada dessa empresa foi um marco
para o crescimento da vila, haja vista que surgiram diversos comércios
e serrarias visando atender as necessidades do acampamento. No que
tange ao aumento de pessoas na vila, ela passa a ser predominantemente
ocupada por migrantes originários de diferentes regiões do Brasil, que
se organizaram ao longo da estrada.
De acordo com Edileuza Santos (2007, p. 101), na década de
1970, Arraias era predominantemente ocupada, sobretudo pelos ma-
ranhenses e baianos, mas também por paranaenses, mineiros, cearen-
ses, pernambucanos, capixabas, entre outros, atraídos para a Amazônia
com promessas de empregos e terras. As ruas da vila vão se delineando
próximo ao rio e principalmente às margens da estrada. Constam na
memória dos antigos arraienses dias muito difíceis, muitos conflitos de
terras. O fluxo de pessoas era intenso e os problemas com falta de hospi-
tal, escolas, energia e segurança só aumentavam conforme intensificava
a chegada de mais pessoas.
Já na década de 1980, a vila Arraias recebeu parte dos expropria-
dos da velha Jacundá. Onde hoje localiza-se o Bairro Centro e Eletronor-
te, foram construídas algumas casas e, para além das casas, também foram
trazidos para a Vila Arraias, todos os órgãos públicos. Assim, as ruas da
vila Arraias aos poucos vão sendo abertas e novas ocupações, espontanea-
mente urbanas, vão acontecendo. No entanto, na memória desses sujei-

86 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


tos sociais, este processo migratório não foi muito fácil, pois se mudaram
para um espaço já habitado, e com uma população completamente dife-
rente em relação à cultura, às práticas do cotidiano, às práticas religiosas e
ao modo de vida. Além do mais, foram obrigados a viverem num espaço
marcado por conflitos de terras e longe do Rio Tocantins.
As mudanças ocorridas transformaram completamente as suas
relações sociais e culturais, haja vista que com a saída compulsória do
seu lugar de moradia, perderam a vida ribeirinha e suas relações com
os seus pares, já que muitos não conseguiram adaptar-se à nova condi-
ção de vida, tão distante do que estavam acostumados, e, como forma
de resistência, foram buscar moradia em cidades mais parecidas com a
antiga Jacundá. Marabá, Itupiranga e Tucuruí foram algumas das cida-
des escolhidas para tentar a nova vida, uma vez que, estão localizadas
às margens do rio Tocantins. Não apenas os lugares buscados pelos re-
manejados sugere o distanciamento dos grupos estabelecidos, mas os
nomes “expropriado”, “invasor”, “intruso” e “remanejados” podem ser
entendidos como termos que estigmatizam por não deixar o grupo out-
sider à altura do grupo superior (ELIAS, SCOTSON; 2000, p. 27).
Apesar da dispersão, a memória dos remanejados revela várias
formas de resistências social e cultural mantidas pelos remanejados.
Entre os anos de 1982 até meados dos anos de 1990, eram presentes os
encontros memoráveis durante o festejo da Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, na Nova Jacundá. Para eles, era um momento de fazer a Jacun-
dá emergir das profundezas do lago de Tucuruí através de suas memó-
rias e reprodução das suas práticas nesse novo espaço de convivência. A
afirmação de sua origem, da identidade e da espacialidade perdida surge
simbolizada na padroeira.
Porém, a santa também pode ser entendida como outsider, ela,
assim como seus fiéis, perdeu o lugar e o status que possuía de “santa
padroeira oficial”. Assim, as lembranças, em alguns momentos, mani-
festam o sentimento de perda e revolta. Esses sentimentos velados vêm
à tona quando se lembram da maneira como foi imposta a transferência
dos moradores para a vila Arraias. Isso pode ser notado, igualmente,

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 87


quando falam da perda da padroeira do município, haja vista que a vila
Arraias já tinha S. João Batista (santo estabelecido) como padroeiro e a
padroeira da antiga Jacundá não poderia ocupar esse lugar. A religião
exemplifica essas disputas identitárias dos dois grupos.
A Nova Jacundá ou Arraias, na memória de seus moradores, era
muito ‘‘perigosa’’, porém muito animada. Os festejos de São João Batista,
festejos da N. S. do Perpétuo Socorro, o Charles Club, Cine Marrocos e
Cine Guajará, o clube do Piriá, dentre outros, ainda hoje são lembrados
por muitos como um espaço de memória que terão seus espaços e
temporalidades discutidos na proposta de produto da dissertação.
Partir de um lugar concreto e de sua história através das análises
das memórias dos moradores de Jacundá, antes e após a construção da
Hidrelétrica de Tucuruí, contribuirá para reflexões pelas quais os alunos
do Ensino Fundamental da rede pública estadual e municipal de Jacun-
dá possam valorizar e compreender sua cidade de forma contextualiza-
da e que não se dão isoladas do mundo, e sim como parte dos processos
históricos, refletindo sobre as identidades dessa sociedade.
Nesse contexto, é valido destacar que o estudo histórico desem-
penha um papel importante na medida em que contempla pesquisa e
reflexões que valorizam a atitude intelectual do aluno no desenvol-
vimento de sua autonomia para aprender. Desse modo, no contex-
to da educação, o ensino de História, quando aborda as memórias e
identidades partindo de um espaço concreto da vivência dos alunos,
poderá provocar uma maior visibilidade das trajetórias, vivências e
dificuldades desses sujeitos. Assim, “as fontes orais são indispensáveis
à situação limite e deixam aflorar vozes que por tanto tempo ficaram
esmagadas” (VILANOVA, 1996, p. 14).
Compartilhamos desse pensamento por acreditar que o enfoque
na história e memória da cidade nos permite trabalhar com a memória
individual e coletiva de grupos que nunca tiveram a oportunidade para
se expressar, percebendo sua importância enquanto agentes históricos e
que, apesar da sua invisibilidade, são sujeitos importantes.

88 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


4.3 Jacundá digital: estratégia de ensino e possibilidades futuras

A possibilidade de fazer com que muitos alunos se interessem


pela história de sua cidade por se verem representados na história do
seu próprio grupo incita uma reflexão sobre identidade e memória. A
memória individual e coletiva é um elemento constituinte da identida-
de, fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de
coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si
(POLLAK, 1989). Constituir uma maneira de sensibilizar os alunos e le-
vá-los a pensar sobre a memória desses espaços da cidade, antes e depois
da construção da Hidrelétrica de Tucuruí, busca atentar para os “luga-
res de recordação” da cidade para cada grupo, abordando também as
identidades que se desenvolvem especificamente em vila Arraias entre
o grupo estabelecido dos arraienses e o grupo outsider dos remanejados
devido ao projeto da hidrelétrica de Tucuruí.
Um dos princípios contidos nos PCNs de História é a possibili-
dade de os estudantes aprenderem a realidade dentro de um contexto de
diferentes temporalidades, reconhecendo-se como construtores de sua
própria história, ou seja, sujeitos históricos e agentes de ações sociais,
sendo elas individuais, em grupos ou em classes. A preocupação com
os estudos de história local é a de que os alunos ampliem a capacidade
de observar o seu entorno para compreensão de relações sociais e eco-
nômicas existentes no seu próprio tempo e reconheçam a presença de
outros tempos no seu dia a dia (BRASIL/MEC/SEF, p. 40).
A estratégia pensada para apresentar os temas cidade, identidade
e memória em Jacundá contribui para que os estudantes possam criar
suas próprias narrativas e atuar de forma participativa contribuindo
para o desenvolvimento do saber histórico através da ludicidade, consi-
derando o brincar como:
uma atividade fundamental no ser humano, a
começar porque funda o humano em nós: aquilo
que o define – inteligência, criatividade, simbolismo,
emoção e imaginação, para listar apenas alguns de

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 89


seus atributos – constitui-se pelo jogo e pelo jogo se
expressa. Mesmo não sendo exclusiva do ser humano,
dado que é compartilhada com outras espécies,
marcadamente pelos demais mamíferos, nele adquire
especial sentido por ser uma forma de comunicação.
Enquanto forma de comunicação, o brincar abrange
tanto a expressão de conteúdos inconscientes quanto
a apreensão da realidade, de onde provém sua
condição de linguagem. Assim, a um só tempo, o
jogo é uma linguagem em sentido próprio e também
engendra a linguagem, já que, sem ser uma linguagem
verbal, é condição para que esta venha a desenvolver-
se, beneficiando-se dela, após contribuir para a sua
construção (FORTUNA, 2018, p. 54)

Ao mencionar o jogo como uma das possibilidades para o ensino,


devemos ressaltar que o termo gamificação ou gamification ganhou visi-
bilidade ultimamente e refere-se à aprendizagem através de jogos por pro-
porcionarem diversão e imersão enquanto trabalham conteúdos, compe-
tências ou habilidades específicas (MARTINS; et al, 2016, p.309).
Nesse sentido, destacamos o projeto “Jogo Urbano”, apresentado
na dissertação de mestrado de Bruno Cunha, que buscou apresentar a
cidade de Niterói para os alunos problematizando os pontos de coesão
e as fronteiras sociais da cidade, a paisagem urbana e sua interlocução
com a história social da cidade e a construção das identidades em alusão
a um passado indígena ou ligado a um projeto de cidade contempo-
rânea, discutindo os “diferentes projetos de memória que permeiam a
história da cidade Niterói” (CUNHA, 2016, p. 23-24).
Além da utilização do jogo digital como metodologia, jogos his-
tóricos começam a ser objetos de trabalho no campo historiográfico.
Para Bello (2017), é preciso analisar os jogos digitais que buscam repre-
sentar ou reconstituir a historicidade dos tempos diversos, pois precisa-
-se entender a contextualização, as referências, as técnicas, as intenções
e o público indicativo; tal como no cinema a narrativa do jogo impõe
uma interpretação do passado; sendo possível dividi-los em dois gêne-
ros distintos: os jogos de performance e os jogos de gerenciamento.

90 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Os jogos de performance impõem ao jogador que controle um
ou mais personagens dentro de uma narrativa contada através de “fases”
ou “quests” em um ambiente de imersão histórica que centraliza as deci-
sões na perspectiva individual. Jogos de estratégia pretendem propor o
gerenciamento e o controle de coletivos e estruturas de uma determina-
da sociedade. Seu foco está na construção das cidades e no planejamen-
to urbano e, nestes jogos de civilização, o jogador simula estar à frente
da administração de um estado. Assim, os jogos históricos
estabelecem espaços que evocam narrativas e permitem
um novo olhar a espaços históricos, contribuindo
para um certo desenvolvimento do imaginário sobre
tempos passados. É na estruturação dos conteúdos em
suas formas que é possível compreender o conteúdo
ideológico dos jogos (BELLO, 2017).

A escolha de um jogo histórico como proposição ocorreu no in-


tuito de propor para os alunos do Ensino Fundamental a discussão da
temática da memória e da identidade de uma maneira dinâmica e fácil
de entendimento, valorizando o patrimônio histórico cultural da cidade.
Pretende-se, fundamentalmente, aproximar a história da cidade
com a comunidade através de uma proposição de um jogo digital his-
tórico que demonstre, estrategicamente, as memórias sobre a cidade de
Jacundá ressaltadas na pesquisa. A escolha do jogo como estratégia de
ensino busca aproximação com as sensibilidades dos alunos mais jo-
vens. Como nos lembra Nilton Pereira e Marcello Giacomoni (2018, p.
9), jogar é um deslocamento do espaço das imposições disciplinares:
Jogar na aula de História é um belo exercício amoroso. Uma vez
que o jogo pressupõe uma entrega ao movimento absoluto da brincadei-
ra e que jogar implica um deslocamento. Um deslocamento do espaço,
da ordem, das medidas, dos horários, das imposições disciplinares, da
avaliação, das provas, numa palavra, da obrigação.
Pretende-se que o jogo digital possibilite muitas pessoas a ter o
contato com a história da cidade de maneira interativa, o que contri-
buirá para desenvolver reflexões articuladas com o presente, passado e

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 91


futuro. Além disso, poderão compreender que fazem parte ativamente
da construção social da sua comunidade (CUNHA, 2016, p. 77-78).
A estratégias foi pensada como um jogo de performance que terá
uma dinâmica de perguntas e desafios no qual, a cada acerto, o aluno
se deparará com um lugar de memória de Jacundá. No cenário do jogo,
pretendo mostrar a cidade ainda às margens do Rio Tocantins, depois
da transferência, já na Vila Arraias e por último, a Jacundá atual.
Uma das inspirações para essa proposição é o game Marabá, que
apresenta a fundação da cidade de Marabá abordando especificamente
a primeira casa comercial e a economia do caucho no início do século
XX, fase áurea da economia gomífera na Amazônia. O jogo foi desen-
volvido pelo Laboratório de Games Educativos (LAGE) da Universida-
de Federal do Sul e Sudeste do Pará. Houve um contato inicial, seguido
de uma reunião com o professor Manoel Ribeiro Filho, coordenador do
LAGE, para a posterior materialização do jogo.5
Os procedimentos metodológicos usados inicialmente na pes-
quisa até o presente momento estão estruturados em uma primeira fase
de entrevistas junto aos moradores mais antigos da cidade (divididos
em ex-moradores da antiga Jacundá e moradores da Vila Arraias), algu-
mas consultas bibliográficas, levantamentos de fotografias e fontes orais,
todos de suma importância para esta pesquisa. Na segunda parte da dis-
sertação, será apresentada a proposição do jogo digital sobre a história
da cidade de Jacundá voltada para o ensino fundamental.

Considerações finais

O cotidiano e a história de um lugar podem ser um ponto de parti-


da significativo para o Ensino de História. Através deles é importante evi-
denciar a problematização das dimensões locais buscando uma perspectiva
mais abrangente, sem limitar as reflexões a uma chamada “história local”.

5
As especificações sobre o Laboratório de Games Educativos (LAGE) da Universidade Federal
do Sul e Sudeste do Pará podem ser encontradas na página: https://lage.unifesspa.edu.br

92 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Nesse sentido, a história da cidade de Jacundá e as memórias dos
seus moradores são entendidas como um ponto de partida para uma
reflexão sobre os conceitos de memória e identidade no espaço urbano.
Jacundá e, mais especificamente, a vila Arraias são espaços marcados
pela civilização da estrada que se impôs na Amazônia na perspectiva
do desenvolvimentismo e da integração do espaço nacional iniciado na
segunda metade do século XX.
Os grandes projetos foram fundamentais para a configuração das
cidades que surgiam ao longo das estradas, sendo importante destacar o
aumento do fluxo migratório nas décadas de 70 e 80 do século XX. Um
desses projetos foi a usina hidrelétrica de Tucuruí, que gerou impactos
ambientais e humanos significativos.
As marcas da expropriação do espaço passaram a fazer parte da
identidade das pessoas que foram remanejadas para vila Arraias, for-
mando uma divisão e, ao mesmo tempo, a criação de identidades espe-
cíficas entre o grupo de remanejados, considerado “invasor”, e o grupo
dos arraienses, os moradores mais antigos que se consideram “invadi-
dos”, partindo do critério da antiguidade no lugar.
Essa tensão pode ser visualizada nos festejos dos santos de am-
bos os grupos que foram mantidas separadamente: o padroeiro oficial
S. João Batista é patrono dos moradores antigos e a padroeira dos rema-
nejados é N. S. do Perpétuo Socorro.
Através da pesquisa sobre os espaços da cidade e sobre as identi-
dades dos grupos através das narrativas orais dos moradores, será apre-
sentada uma proposta de um jogo digital sobre Jacundá para alunos do
Ensino Fundamental visando um contato mais lúdico e interativo com
a história da cidade. Através dele, poderão ser trabalhados também os
conceitos de memória e identidades individuais e coletivas de forma que
será necessário fazer algumas considerações sobre locais específicos,
buscando uma abordagem de historização da memória. Nessa estraté-
gia, tenta-se uma aproximação maior com os alunos tanto pela escolha
dos conteúdos quanto pela metodologia da gamificação.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 93


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96 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


CAPÍTULO 5

A Guerrilha do Araguaia entre a História


e o ensino no Sul e Sudeste do Pará:
algumas considerações

Henildes S. Almeida Junior1


Andrey Minin Martin2

O
processo brasileiro de abertura política, ocorrido no início da
década de 1980, representou um dos momentos mais signi-
ficativos na democracia contemporânea, e marcou um duplo
movimento: o findar de um dos períodos mais emblemáticos de nossa
história e o início de um revisionismo que marca as trincheiras de deba-
tes políticos e sociais em diferentes espaços na atualidade.
E dentre a miríade de eventos latentes ocorridos na ditadura
miliar , a Guerrilha do Araguaia ainda suscita debates e interpretações,
3

seja nos meandros das pesquisas ou mesmo emaranhadas em questões


cotidianas sempre que a ditadura militar é posta como pano de fundo
para determinados posicionamentos. Sua complexidade está longe de
findar os debates, sendo justamente uma temática muito debatida entre
jornalistas, antropólogos e historiadores.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História PROFHISTÓRIA/UNI-
FESSPA.
2
Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
3
Na atualidade, podemos encontrar uma diversidade de terminologias utilizadas para desig-
nar este período histórico, de acordo com as concepções e posicionamentos historiográficos
adotados. Neste trabalho utilizaremos Ditadura Militar, entendendo e concordando com as
outras utilizações adotadas por autores usados nesta pesquisa. Para saber mais ver: FICO,
Carlos. Ditadura Militar Brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista Tempo e
Argumento. Florianópolis, vol. 9, n⁰ 20, 2017.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 97


E nas últimas décadas a criação de novos espaços para este de-
bate tem estimulado novas possibilidades para ampliação e revelar de
questões que ainda se encontram nos porões destes acontecimentos. Es-
paços como a Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, contri-
buíram significantemente para isto, possibilitando, dentre outras ações,
a ampliação documental e construção de novas narrativas a partir de
sujeitos e grupos envoltos no acontecimento.
E dentre os espaços que ainda merecem um olhar mais atento,
os caminhos curriculares do Ensino Básico podem revelar um fér-
til exame de seu atual momento. Campo privilegiado para o enten-
dimento de como as trajetórias e memórias de fatos históricos são
debatidos, analisar como a Guerrilha do Araguaia está presente nos
currículos básicos na região do conflito torna-se campo privilegia-
do para entender como este acontecimento se engendra em diferen-
tes lugares de memória. Logo, examinar o atual estado da arte, bem
como as permanências e ausências destes conteúdos podem contri-
buir para observarmos como fato e memória podem ser constante-
mente apropriados e reelaborados dentro das matrizes do ensino em
disciplinas como História e Estudos Amazônicos.

5.1 A Guerrilha do Araguaia: trajetórias e memórias do maior conflito


armado brasileiro

A Guerrilha do Araguaia correspondeu ao conflito armado


ocorrido na porção norte do Brasil, na divisa dos estados do Maranhão
e Pará, englobando atualmente uma parte do estado de Tocantins. Sua
ocorrência entre 1972 e 1974, na região conhecida como Bico do Pa-
pagaio, foi centrada no desmonte da luta armada organizada por gru-
pos opositores ao regime instaurado em 1964, ligados, dentre outros, ao
Partido Comunista do Brasil (PC do B). Ao longo destes anos, o cenário
que já estava emaranhado em problemáticas como os conflitos agrários,
fez deste espaço um dos mais violentos do Brasil.

98 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Como analisado na historiografia sobre este período,4 a luta ar-
mada durante a ditadura militar não teve início com o advento da guer-
rilha, mas encontramos ações instauradas desde meados da década de
1960, como a chegada dos primeiros militantes do Partido Comunista
do Brasil - PC do B na região do Araguaia, bem como uma pluralida-
de de manifestações ocorridas em grandes centros urbanos, que gra-
dualmente se expandiram por todo país.5 A ditadura militar e seu claro
posicionamento anticomunista ampliaram este espectro de polarização,
que se intensificaria, principalmente a partir do governo de Emilio Gar-
rastazu Médici, na esteira do aprovado Ato Institucional n⁰ 5.6 Dentre
outros resultados, os partidos de esquerda foram postos na clandestini-
dade, levando à busca de novas formas de organização de luta e combate
ante as ações do regime. Assim, entendemos que o advento da Guerri-
lha não instituiu um novo sistema de cerceamento e perseguição, mas
intensificou o aparato de segurança e inteligência gradualmente adota-
dos desde 1964, com claro e direto objetivo de findar com qualquer ação
de guerrilha, urbana ou rural, gestada no período.
Mesmo sendo uma região de baixo índice populacional no perío-
do analisado, o que não significa estar desabitado como constava para
o governo à época, as décadas de 1960 e 1970 assistiam à intensificação
migratória, proveniente de um processo de “migração espontânea”, por
meio da ocupação de terras devolutas (IANNI, 1979) ou mesmo pelos
novos programas expansionistas promovidos pelo governo, na esteira
da instalação de grandes projetos de setores de transporte, energia e
mineração. E a chegada destes guerrilheiros de diversas partes do país
ocorre na esteira da instalação de bases militares na região, centralmente
4
Podemos destacar, dentre autores, FICO (1996); REIS (2000); GASPARI (2002); CAMPOS
(2012).
5
No primeiro caso, a chegada em 1966 de Osvaldo Orlando da Costa, conhecido como “Os-
valdão”, daria início a presença de integrantes do PC do B na região, posteriormente marcado
pela presença de jovens estudantes que haviam participado de manifestações em grandes cen-
tros entre 1966 e 1972.
6
Implementado pela Junta Militar em dezembro de 1968, o AI-5 ampliava os poderes diretos
de execução presidencial sobre estados e municípios, retirando, dentre outras ações, as ga-
rantias constitucionais, como habeas corpus de qualquer cidadão acusado de crimes contra a
segurança nacional, como seria o caso utilizado contra a guerrilha.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 99


entre 1966 e 1969 (MEDEIROS, 2013). Este cenário em transformação
era visualizado pelos guerrilheiros como propício para a organização e
treinamento, interpretado como distante do poder público e perto de
necessidades latentes de um espaço em conflito.
A estrutura montada na organização da guerrilha contou com
três destacamentos (bases): o primeiro próximo à vila de São Domin-
gos (PA), outro às margens do rio Gameleira (PA) e o último em local
chamado Caianos, entre as cidades de São Geraldo do Araguaia (PA) e
Xambioá, hoje pertencente ao Tocantins. Essa quase “triangulação” con-
tava ainda com comando que, quando necessário, centralizava as ações
(CAMPOS FILHO, 2012). As dificuldades em comunicação não impe-
diam contatos regulares com outros centros, principalmente o Sudeste,
onde ficava o comitê central do partido. Dentre alguns nomes centrais
para tal tarefa destacaram-se João Amazonas e Elza Monerat, que tam-
bém tinham a incumbência de trazer novos recrutados.7

Figura 1: Mapa da região da Guerrilha do Araguaia. SANTOS, 2004.

7
Ainda durante a primeira campanha, ocorrida em 1972, ao regressarem do Sudeste em di-
reção as bases no Araguaia, souberam da presença de militares à sua espera. Chegaram até
Anápolis-GO e retornaram ao Sudeste, não voltando mais a região.

100 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Os números oficiais indicados pelo partido à época, apontam
que cerca de sessenta e nove pessoas formaram o grupo participante
da guerrilha, variando para alguns autores para uma média de setenta
e três combatentes, sendo sua grande maioria homens (SOUZA, 2002;
GASPARI, 2002; CORRÊA, 2013). Ao longo das três operações realiza-
das, o exército destacou cerca de três mil militares, dentre polícia fede-
ral, rodoviária, civis e militares. Ao longo do evento grande parte dos
combatentes foram executados nas próprias bases montadas pelo exér-
cito na região, questão até hoje debatida devida à procura de ossadas e
coleta de informações com a população local.
As dificuldades de comunicação permearam todo o aconteci-
mento, sejam para os militares quanto para os guerrilheiros, projetando
com que as relações com a população local fossem centrais para o su-
cesso ou fracasso das campanhas, tornando-se uma questão importante
para esta compreensão. Desde sua chegada os guerrilheiros possuíam
proximidade com a população local, em maioria posseiros e trabalha-
dores extrativistas, como da Castanha do Pará. Como apresenta Barbosa
(2016) pode se observar pela documentação, principalmente depoimen-
tos, a realização de trabalhos de parto, alfabetização e mesmo serviços
gerais prestados pelos guerrilheiros durante seu período de treinamen-
to. Percorriam a região realizando a função de auxílio local ao mesmo
tempo que afinavam sua aproximação e confiança, mantendo o sigilo
mínimo para suas ações. Assim, entre a suposta revolução socialista a
caminho e a esperada pelos militares, o Bico do Papagaio e sua popula-
ção foram os que ficaram nos meandros do combate.
Foram três grandes campanhas ocorridas entre 1972 e 1974. A
primeira delas denominada “Operação Papagaio”, ocorrida no início
de 1972, mesmo possuindo alto contingente de militares, oitocentos
nos números oficiais, não alçou o objetivo de desmonte da guerrilha.
Conforme analisou Gaspari (2002), seu caráter não sigiloso deu van-
tagem aos guerrilheiros, que por meio de informações obtida junto à
população local se mobilizaram previamente, conseguindo inclusive
surpreender os militares, especialmente nos entornos de Xambioá. Au-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 101


tores como Peixoto (2011) pontuam que estes primeiros movimentos
realizados pelo exército não foram bem recebidos pela população, que
possuía previamente um contato maior com os guerrilheiros, e assim
não contribuíram com informações mais significativas para o exérci-
to, ao menos em seu início. Isso porque ao longo do evento um “jogo
de narrativas” era posto à prova para a população, em que os militares
propagavam informações e ocorridos, nem sempre verdadeiros, sobre
os guerrilheiros, visando promover a desconfiança e medo em relação a
sua presença. Em contrapartida, alguns guerrilheiros passaram a fazer
desta aproximação uma forma de convencimento sobre a presença mili-
tar e o descaso governamental em relação a serviços prestados na região.
Logo as operações seguintes buscaram uma nova estratégia de ação.
As operações “Sucurí” e “Marajoara”, respectivamente ocorridas em abril e
outubro de 1973, tiveram caráter de sigilo, se aproveitando de novas informa-
ções coletadas pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE)8 e promoven-
do a infiltração de militares em vilas próximas, como compradores de arroz,
vendedores ou funcionários do Instituto de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA). Este momento pode ser considerado decisivo para o desfecho do
evento, pois foi o momento de aproximação do exército com a população,
conseguindo quebrar grande parte das redes de contato e comunicação, resul-
tando na captura, prisão e execução da maioria dos guerrilheiros.
A captura de Walquíria, em Xambioá no ano de 1974, marca o
desfecho do conflito, que ficaria marcado nos próximos anos pela pre-
sença dos militares com a finalidade, segundo Peixoto (2011), da estru-
turação de um sistema de repressão e silenciamento sobre os ocorridos.
Logo, pensar sobre os caminhos da Guerrilha do Araguaia não se limita
a debates sobre militares e guerrilheiros, mas a todo um conjunto de su-
jeitos que foram diretamente impactados, como camponeses, posseiros,
trabalhadores liberais e indígenas, como os Aikewara/Suruí, cuja terras
foram ocupadas ao longo do conflito.
8
Segundo Moraes e Silva (2005), o CIE obteve informações específicas sobre localização
e próximas ações dos guerrilheiros ainda no ano de 1972, a partir por meio de inter-
ceptações ocorridas entre os guerrilheiros e membros presos em outros espaços, como
Fortaleza e São Paulo.

102 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


5.2 Guerrilha do Araguaia nos caminhos do Ensino Básico

Como já destacado, nas últimas duas décadas o período da dita-


dura militar tem tido cada vez mais repercussão e destaque no que tange
a seus caminhos e acontecimentos, dentro e fora da academia. Diferentes
aspectos deste contexto têm sido “reivindicados” e apropriados em muitas
esferas sociais, atrelados a distintos posicionamentos, que têm contribuí-
do para instigar a novas possibilidades de ampliação do debate e mesmo
da produção historiográfica. Longe de esgotar sua complexidade e cen-
tralidade do período em questão, a Guerrilha do Araguaia tem acompa-
nhado este movimento revisionista, na esteira da consolidação de novos
movimentos e comissões de luta e reivindicação sobre atos cometidos du-
rante estes regimes, bem como para a quebra de sigilo documental.
Na perspectiva de autores como Neves e Liebel:
Os fatores que levam a essas ondas são ainda motivo de
debate e de análise, mas a literatura aponta para uma
preponderância de aspectos externos, como políticas
imperialistas, políticas pelos direitos humanos, grau de
estabilidade dos países vizinhos, o momento da Guerra
Fria, atores e agências internacionais, conjunturas
exteriores, etc. [...] Na historiografia recente, o trabalho
de James Green (2005) sobre o caso brasileiro pode
ser apontado como um exemplo que se aproxima
dessa vertente, localizando na mudança de olhar
da política externa norte americana em direção aos
direitos humanos, durante o governo Carter, um ponto
esclarecedor para o recrudescimento da ditadura.
Essa aproximação explicativa dos fatores externos
nega, entretanto, a teoria da modernização, que prega
uma percepção evolutiva determinista, ligando o
desenvolvimento econômico ao crescimento dos valores
democráticos (NEVES; LIEBEL, 2015, p. 06).

E na esteira da centralidade deste período histórico nos debates


atuais, o desenvolvimento e ampliação do campo do Ensino de História
nas últimas décadas também proporcionou a realização de novas análi-
ses sobre a ditatura militar nos caminhos do Ensino Básico. Seja no exa-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 103


me de materiais didáticos, mudanças legislativas, experiências docentes
durante e após este período, os acontecimentos envoltos neste contexto
constroem uma temática profícua na produção atual (REZNIK, 2004;
ROCHA, 2008; LOURENÇO, 2010).
A partir da década de 1980, nos caminhos da reabertura políti-
ca, novas perspectivas se abriram para se pensar o período em questão,
em que, como pontua Carlos Fico (2004), gradualmente mitos e este-
reótipos vão sendo superados, na esteira do distanciamento histórico,
que resultaram ao longo das primeiras décadas do século XXI na efetiva
consolidações de ações como a própria criação da Comissão Nacional
da Verdade (CNV). No caso da região amazônica, a centralidade dos
trabalhos nas últimas décadas ainda recai sobre as relações da ditadura
militar e os grandes projetos de desenvolvimento, especialmente os de
mineração e energéticos (MARTIN, 2019).
E dentro do mote de problemáticas levantadas no ensino de Histó-
ria na região Amazônia, e no caso de nosso objeto específico a Guerrilha
do Araguaia, ainda permanecem aquém de suas potencialidades enquanto
objeto de pesquisa. De uma forma geral, a historiografia existente tem se
dedicado ao entendimento das narrativas e memórias construídas sobre a
guerrilha em diferentes espaços, entre ressonâncias e silenciamentos, da po-
pulação local aos militares. E entendendo o currículo escolar como campo
de disputas e tensões (GOODSON, 1997) o exame sobre sua presença nos
espaços educacionais ainda é um campo aberto de interpretações.
A presença da guerrilha em manuais, livros didáticos e mesmo
em debates em salas de aula ainda é uma temática da qual podemos
dizer que seja tratada de forma superficial. Sua abordagem ainda se
encontra atrelada a questões exógenas a seu espaço de ocorrência, se
destacando, de forma rápida, como uma extensão das ações do regime
militar e guerrilha que se espalharam pelo país na década de 1970. Este
exame se torna mais sensível quando abordamos sua presença nas re-
giões sul e sudeste do Pará, local de sua ocorrência, em que entendemos
que sua trajetória compôs, e ainda compõem, um evento carregado de
lembranças, ressentimentos e medos, que influem na construção de nar-

104 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


rativas e mesmo de sua presença oficialmente nos currículos escolares.
Conjuntamente, a própria trajetória historiográfica nos revela como o
tema desde o fim do conflito, oficialmente em 1974, até hoje compõe
uma verdadeira “batalha de narrativas” que poderia ter dificultado a
consolidação e organização de conteúdos escolares,9 problemática ainda
não abordada e analisada em produções acadêmicas.
E sobre esta produção ainda existem muitos aspectos a serem
pesquisados. Examinando, por exemplo, trabalhos realizados no Mes-
trado Profissional em Ensino de História, o ProfHistória,10 encontramos
dois trabalhos dedicados a Guerrilha do Araguaia, sendo um deles di-
recionado para análise do acontecimento nos caminhos do ensino de
história. Dedicando-se a analisar as memórias de professores da rede es-
tadual e municipal de ensino, especialmente das cidades de Araguatins,
Xambioá (TO) e São Geraldo (PA) procura elucidar como este acon-
tecimento possui repercussão dentro das práticas educacionais nestes
espaços (BARBOSA, 2016).
Mesmo antes das reformas legislativas que marcariam a década
de 1990, observa-se um movimento na década de 1980 de reestrutu-
ração da educação, centrados na guisa do programa de âmbito federal
“Educação Para todos - caminho para mudança”, do MEC. No estado
do Pará, este programa inicia um movimento visando introduzir maior
centralidade em estudos regionais e amazônicos no currículo. Segundo
Barros (2016), a construção gradual destes conteúdos contou com a rea-
lização de encontros para debate entre docentes, visando diagnosticar o
quadro sobre a realidade e problemas amazônicos e seus possíveis con-
9
Ainda em fins da década de 1970 e 1980 encontramos algumas publicações realizadas como
“A Guerrilha do Araguaia: a história Imediata”, organizado por Palmério Dória e “Araguaia:
o partido e a guerrilha”, dentre outros. A partir das últimas décadas tem se intensificado a
publicações de memórias e relatos de ex-militares sobre o conflito, como “Xambioá: guerrilha
no Araguaia”, do capitão-aviador Pedro Corrêa Cabral, de 1993 e “A guerrilha do Araguaia-
-revanchismo: a grande verdade”, do coronel Aluísio Madruga de Moura e Souza, de 2002,
intensificando a guerra de narrativas sobre o conflito.
10
O ProfHistória corresponde a um programa de pós-graduação stricto senso ofertado em rede
nacional liderado pela UFRJ, tendo como objetivo a formação contínua de docentes atuantes
na rede Básica de Ensino. Sua atuação já se encontra presente em trinta e oito instituições
superiores, estando em mais de vinte e três estados federativos.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 105


teúdos. Uma das primeiras constatações foi a falta de materiais sobre a
região e mesmo o conhecimento específico sobre estes conteúdos. Logo,
entre 1987 e 1994 foi produzido coletânea direcionada para rede esta-
dual, a partir de parceria entre a SEDUC e IDESP (Instituto de Desen-
volvimento Econômico-social do Pará), contando com a participação
direta de professores da rede estadual de ensino.
A partir da década de 1990, em cumprimento a novas demandas
curriculares federais, postas principalmente pela então aprovada Leis
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB/1996, os estudos
regionais ganhariam novas possibilidades em seu artigo 26 que trata da
inclusão de conteúdos regionais em seu currículo. E para o atendimento
desta demanda, o Conselho Estadual de Educação do Pará aprovaria a
resolução número 630/97 criando a disciplina Estudos Amazônicos, em
substituição a disciplina Estudos Paraenses, componente que atendia
diretamente a parte diversificada do currículo estadual.
Buscando atender a esta nova dinâmica, o conjunto de pesqui-
sadores realizaram um levantamento de problemáticas centradas em
analisar os processos históricos e geográficos da região paraense em sua
conexão com a Amazônia, tendo destaque as dinâmicas de formação
de cidades como Belém e Manaus, a centralidade econômica da flores-
ta amazônica e novas dinâmicas territoriais gestadas durante o período
militar. Sua proposta foi organizada para introdução no Ensino Funda-
mental II, contendo duas aulas semanais para os dois anos iniciais e três
para os dois finais. A interdisciplinaridade marcaria a guisa de organi-
zação de seus conteúdos, de forma que a dinâmica que seria observada
e sua prática não teriam uma “uniformidade” curricular, variando em
diferentes espaços dentro do estado. Um dos fatores que marcaria a tra-
jetória desta disciplina, entendemos ser a não-existência de um livro
didático direcionado e específico destes conteúdos, ao menos não no
sentido usual de processo de elaboração e aprovação. Encontraremos
assim a tessitura de materiais paradidáticos transpostos de diferentes

106 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


concepções e conteúdos, variando em suas práticas de acordo com os
docentes ministrantes e as secretarias de educação municipais.11
Muitos trabalhos realizados apontaram as muitas dificuldades
existentes em suas trajetórias. A falta de materiais para seu desenvolvi-
mento, a forma como muitas secretarias e docentes encararam sua prá-
tica, inclusive como conteúdos “complementares ao ensino” (BARROS,
2016; ALVES, 2016). Logo, muitos conteúdos acabaram não sendo postos
neste processo ou mesmo quando em destaque não foram debatidos em
sala devido a estes motivos. No caso da Guerrilha do Araguaia, sua au-
sência pode ser tida como constante ao menos oficialmente, variando, em
alguns casos observados em materiais paradidáticos com pequenas men-
ções nos últimos anos. Seja pelos motivos destacados acima ou mesmo
por ainda compor uma temática sensível, seu debate ainda não alçou este
espaço de debate. E se o componente regional ainda exerce um campo de
possibilidades para debates deste conteúdo, sua limitação no Ensino Mé-
dio é ainda maior, visto que não se encontra presente nesta fase de ensino.
Em grande parte dos materiais utilizados entre fins da década de
1990 e 2010, especificamente em municípios da região do conflito, como
São Domingos do Araguaia, Marabá, Itupiranga e São Geraldo, a centra-
lidade regional se insere mais por discussões de caracterizações geográfi-
cas, problemas socioambientais e sobre as relações entre a região amazô-
nica no processo de desenvolvimento nacional. São temáticas pertinentes
e necessárias, mas que não anulam a possibilidade de debates de outros
acontecimentos centrais nestes espaços, como a própria guerrilha.
Em trabalhos desenvolvidos sobre o ensino na região do confli-
to, podemos observar as intermitências deste conteúdo em alguns mo-
mentos. Barros (2016), analisando os materiais sugeridos pela SEMDE
para educação infantil e fundamental em Marabá no ano de 2006, ob-
serva que a Guerrilha do Araguaia tem inserção entre os conteúdos do
9º ano, quando debatida sobre a presença militar na Amazônia. Em sua

Devemos ressaltar que algumas iniciativas foram criadas ao longo de seu desenvolvimento
11

para atender estas demais, tais como o projeto Estante Amazônica, de 1996, que lançaria,
dentre outros materiais, obras como “História do Pará”, de Gerald Prost.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 107


análise, fica claro que mesmo com a indicações deste conteúdo, a falta
de materiais bem com de direcionamentos curriculares para disciplina
contribuem para que o tema não seja posto e debatido nos espaços es-
colares no município. Por meio das entrevistas realizadas pelo autor fica
evidente como em alguns momentos existem inclusive resistência por
parte das secretarias na liberação de carga horária para o desenvolvi-
mento de disciplinas como Estudos Amazônicos, sendo em muitos ca-
sos ofertadas por docentes formados em outras áreas, como Pedagogia e
Geografia, o que pode influir na ausência deste conteúdo.
Outros autores como Mourão; Airoza; Santana (2013) pontuam
que a falta de uniformidade entre as secretarias municipais e conjun-
tamente em relação as estaduais acabam deixando a presença destes
conteúdos regionais de acordo com a formação dos docentes atuantes,
bem como a existência de recursos didáticos para estes conteúdos. No
caso da Guerrilha, em uma análise documental ainda em processo nesta
pesquisa, observamos que em grande parte das escolas em consulta este
é um dos pontos mais apontados pelos docentes para sua ausência nas
aulas, sejam em História ou Estudos Amazônicos.
Em pesquisa desenvolvida por Barbosa (2016) em algumas es-
colas da região sul e sudeste do Pará, grande parte dos docentes entre-
vistados indicou que teve contato na graduação com a temática a partir
de materiais produzidos por seus professores e que no Ensino Básico
a temática tem sido melhor desenvolvida nos últimos anos a partir de
algumas iniciativas dos professores. Em alguns relatos se pontua que a
partir de 2014, quando, dentre outros motivos, a presença do Ministério
Público se fez mais ativa na região, a população tem relatado mais sobre
os ocorridos, que despertam em alguns alunos o interesse dentro de sala
de aula. O distanciamento do tempo ocorrido, somado a um novo cená-
rio de reparações em processo nesta região indicam novas possibilidade
da temática adentrar os conteúdos em sala de aula.
A partir de 2010 podemos observar a ampliação do interesse edi-
torial no estado do Pará em desenvolver materiais didáticos voltados jus-
tamente para atender às demandas de conteúdos regionais. Esta amplia-

108 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


ção, por sinal significativa e pertinente, também deve ser problematizada,
pois entendemos que a ideia de “preencher lacunas” de conteúdos regio-
nais influi na construção de uma narrativa sobre identidade regional, que
pode também influenciar nas relações desta história regional ao pertenci-
mento a uma dita história nacional. Examinar as intermitências e formas
de abordagem da Guerrilha do Araguaia nos conteúdos trabalhados na
região sul e sudeste do Pará contribuem justamente para esta observação.
Suas presenças e ausências podem assim revelar os plurais interesses e
forças do processo histórico de uma região, revelando marcas e silencia-
mentos de um estado anterior ao próprio momento histórico analisado.
Entre os anos de 2011 e 2014 foram produzidos materiais didá-
ticos pela editora Estudos Amazônicos12, centrados em conteúdos sobre
a Amazônia e direcionados para o Ensino Fundamental II. Apesar das
críticas direcionadas a este material e a forma como ele foi utilizado em
sala, a Guerrilha do Araguaia se insere como um dos conteúdos a se-
rem ministrado no 3º bimestre do 9º ano, conjuntamente com o debate
sobre a Ditadura Militar. Outras editoras criadas neste contexto, como
a Samauma em 2012, também elaboraram materiais com a proposta de
atender as demandas de conteúdos regionais.
Examinando o currículo proposto pela Secretaria de Educação
do Estado do Pará em sua última versão de 2019, este documento já se
encontra afinado com a organização curricular proposta pela Base Na-
cional Comum Curricular, a BNCC, distribuindo os conteúdos em eixos
estruturantes, subeixos e objetivos de aprendizagem, não pontuando di-
retamente os conteúdos a serem abordados. Assim, encontramos vários
trechos da BNCC postos na DCEP, propondo assim, como se assume a
BNCC, mais como uma base referencial para autonomia dos estados em
propor novos componentes para seus currículos. Autores como Macha-
do (2018) entendem justamente ao contrário, de que suas prescrições
acabam por limitar a autonomia docente na inserção de conteúdos re-
gionais, inviabilizando pressupostos tidos no artigo 26 da LDB/1996.
Localizada em Belém, PA, contando com a participação de professores como Mauro César
12

Coelho, Luana Guedes e Márcia Pimentel, dentre outros, a editora produziu coleção em qua-
tro volumes dedica a questões regionais e de estudos amazônicos.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 109


E no caso do Pará, dentro do campo das Ciências Humanas
nas disciplinas de História e Estudos Amazônicos, nos eixos curri-
culares propostos para 9º ano do fundamental, a temática da Guer-
rilha não aparece diretamente como proposta, deixando como possi-
bilidades de debate em objetivos de aprendizagem como: “Descrever
e analisar as experiências ditatoriais na América Latina, seus proce-
dimentos e vínculos com o poder, em nível nacional e internacional,
e a atuação de movimentos de contestação às ditaduras” (DCEP, p.
253) e “Discutir os processos de resistência e as propostas de reor-
ganização da sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar”
(DCEP, p. 254). No caso das diretrizes para Estudos Amazônicos,
esta possibilidade encontra-se no eixo “Valores à vida social”, por
meio do objetivo “Compreender a importância dos movimentos so-
ciais, culturais e ecológicos nas cidades e no campo na Amazônia e
no Pará, na tentativa de resolução de problemas afins” (p. 273).
Entendemos que sua ausência curricular não anula as possibili-
dades de realização de debates pelos professores nestas disciplinas e nos
espaços escolares, bem como a produção e uso de outros materiais. Mas,
observando análises realizadas em trabalho consultados, bem como a
partir de um levantamento nesta pesquisa em desenvolvimento, sua
ausência posta oficialmente em um espaço permeado de tensões e si-
lenciamentos para com o tema, somado a baixa produção de materiais
didáticos tende a corroborar para o próprio estímulo de debates e acom-
panhamento das narrativas e memória construídas nas últimas décadas
em outros espaços de produção.
Logo, mesmo que este documento já esteja afinado com a nova
proposta estabelecida pela BNCC, de trabalho a partir de linguagens
e eixos englobando todas as disciplinas de Ciências Humanas, não há
garantias que sua presenta adentrará os debates em sala de aula, princi-
palmente em espaços escolares da região do conflito.

110 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Considerações finais

Longe de findar este debate, as considerações alçadas neste tra-


balho têm o sentido de provocar e proporcionar uma teia de proble-
máticas para justamente elucidarmos as relações entre o Ensino Básico
e a presença deste conteúdo, no caso a Guerrilha do Araguaia. Assim,
muitas das questões aqui alçadas tem contribuído justamente para (re)
pensarmos os caminhos de uma pesquisa em desenvolvimento.
Entendemos que pensar as relações entre a Guerrilha do Ara-
guaia e sua presença nos espaços educacionais, principalmente na re-
gião foco do conflito, não podem ser realizadas sem um exame mi-
nucioso das práticas educacionais em cada um destes municípios, no
conjunto de escolas e docentes em atuação. Suas lacunas e ausências
neste processo curricular tendem a reforçar o diálogo com a histo-
riografia e com a forma como este conteúdo tem sido marcado por
disputas de narrativas e construção de memórias, que, como bem já
pontuou Bittencourt, (2018) encontram também no Ensino Básico um
campo de conflito de interesses e disputas por uma memória oficial
projetadas nos currículos escolares.

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114 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


PARTE 3

O ENSINO DE HISTÓRIA EM PERSPECTIVA:


TEORIAS E MÉTODOS

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 115


CAPÍTULO 6

O ensino de História na 7ª Conferência


Internacional Americana (1933)

Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior1

O
uso de fontes históricas e suas possibilidades como instru-
mento de produção de conhecimento histórico na Educação
Básica tem sido objeto de importantes reflexões e discussões
teórico-metodológicas entre historiadores e professores de história
atualmente. Grosso modo, estas pesquisas convergem para a necessi-
dade de superação da incorporação de fontes históricas como meras
ilustrações reforçadoras de uma determinada narrativa histórica.
Seja presentes em livros didáticos, seja através do cotejamento e
seleção individual de docentes, a utilização de fontes históricas em sala
de aula impõe-se como um recurso didático inerente ao próprio ensino
da História, devendo ser instrumentalizadas como espaço para a refle-
xão e construção de sentidos. Como muito bem salienta Saviani (2006,
p. 29 – 30) “As fontes históricas não são a fonte da história, ou seja, não
é delas que brota e flui a história. Elas, enquanto registros, enquanto tes-
temunhos dos atos históricos, são a fonte do nosso conhecimento histó-
rico, isto é, é delas que brota, é nelas que se apoia o conhecimento que
produzimos a respeito da história”.
Nesse sentido, a utilização didática de fontes históricas como
reforçadoras de uma determinada narrativa historiográfica não só em-
pobreceria as reflexões e questionamentos possíveis, que poderiam des-
Docente de História da América na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e coordena-
1

dor do Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA - UNIFAP).

116 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


pertar entre os estudantes novas construções de sentido sobre o pas-
sado, como também estimularia erroneamente a noção de que fontes
históricas são repositórios de verdades observáveis de modo acrítico.
Por outro lado,
o trabalho com documentos históricos [em sala de
aula] desde cedo pode ser justamente uma fórmula para
não adiarmos as tarefas que o mundo contemporâneo
exige da escola – que o aluno compreenda a lógica
dos meios de comunicação, especialmente os de
massa, para não ser agente passivo da manobra da
informação, reconhecendo outras visões de mundo,
desabsolutizando-as e demarcando a sua identidade
de sujeito da própria existência (KNAUSS, 1996, p. 47).

Embora não se pretenda dos estudantes da Educação básica os


pressupostos científicos exigidos nas universidades e centros de pes-
quisa para a análise de uma determinada fonte histórica, – reconhe-
cendo-se as especificidades do conhecimento histórico produzido nas
escolas –, é fundamental que possam compreender a historicidade dos
documentos, estabelecendo uma relação crítica com as diversas e dife-
rentes produções humanas ao longo do tempo.
Se por um lado a ampliação do conceito de fonte histórica ao longo
do século XX empreendeu importantes transformações na pesquisa e no
ensino da história, logrando superar a narrativa política tradicional, a reno-
vação da história política nas últimas décadas nos estimula a refletir sobre
as potencialidades de utilização no Ensino Básico de fontes consideradas
oficiais, ou seja, produzidas por Estados e instituições governamentais.
De fato, a renovação da história política ensejou novos olhares so-
bre as fontes oficiais, revitalizando-as a partir de novos questionamentos.
Tal renovação lançou, como aponta René Remond, “uma nova luz sobre
acontecimentos e fenômenos cujo segredo se julgava ter descoberto e cuja
significação se acreditava ter esgotado” (REMOND, 2003, p. 30).

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 117


Neste sentido, o presente capítulo tem como objetivo contribuir
para a revitalização do ensino da história política na Educação Básica, a
partir da análise do documento Convenção sobre o Ensino da História2,
assinado em 26 de dezembro de 1933 durante os trabalhos da 7ª Confe-
rência Internacional Americana3, em Montevidéu, Uruguai.
O texto da Convenção4 nos remete a um período específico das
relações interamericanas5, localizado no início dos anos de 1930; por
outro lado, também pode estimular reflexões entre os estudantes para
além do contexto de sua produção, incluindo o debate sobre usos e abu-
sos das narrativas históricas como instrumentos de determinados pro-
jetos políticos, ontem e hoje.
O documento, relativamente pequeno, nos releva as principais
preocupações dos representantes dos países americanos sobre as temá-
ticas e as abordagens no ensino de história das Américas no começo
dos anos 1930, consubstanciando-se em sugestões sobre como abordar
episódios e atores históricos complexos, relacionados às relações entre
os países do continente.

6.1 Ensino de História das Américas e as Relações Interamericanas

Embora diversas pesquisas acadêmicas6 sobre a História da


América Latina nas últimas décadas tenha logrado superar a visão de
um continente eternamente coadjuvante de interesses externos, na Edu-
cação Básica, grosso modo, esta marca ainda persiste.
2
Ver a íntegra do documento na tabela 1.
3
As Conferências Internacionais Americanas ocorreram em intervalos variados até serem
substituídas pelas sessões da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA), a partir dos anos de 1970.
4
Tratado multilateral que estabelece normas gerais a todos os estados signatários.
5
Embora o campo das relações diplomáticas entre os estados americanos tenha recebido diferentes
denominações ao longo do tempo, como americanismo, pan-americanismo, hemisfério ocidental
etc; cada qual possuindo sua historicidade, optamos na escrita do artigo pela utilização do termo
interamericano, mesmo ao tratar do século XIX, pela sua contemporaneidade nos livros didáticos
e na imprensa, mantendo-se os termos originais dos documentos e da bibliografia.
6
Cf. Anais dos Encontros da Associação de Pesquisadores e Professores de História das Amé-
ricas (ANPHLAC).

118 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Como aponta Fernandes e Morais
o espectro dessa marca parece conceder a todo o
continente uma imagem de sujeição, de autoritarismo
e de incapacidade de livrar-se da condição de colônia.
Em nossos manuais escolares aparece a terra onde o
massacre ocorreu; que culturas e sociedades foram
mortas a golpes de espada, lugar de veias abertas, pronto
para receber a violência e a dominação estrangeiras, o
continente vitimado. Terra de bons e maus, heróis e
covardes, santos e bandidos (FERNANDES; MORAIS,
2018, p. 145).

De modo geral, no período pós-independências substitui-se a


subserviência aos interesses das metrópoles europeias pelos interesses
de um coerente e uniforme Estados Unidos, mantendo-se a caracteriza-
ção de um continente homogêneo e dominado.7
Segundo Azevedo
Vale dizer que em nossa cultura escolar as relações
interamericanas são representadas ainda de forma
extremamente simplificada. Na maioria dos livros
escolares, a marcha dos norte-americanos sobre
o mundo, e sobre a América Latina em especial, é
descrita de tal forma que sugere ser ela inevitável,
irreversível e irresistível, quase como o cumprimento
de um destino, uma proferia bíblica, coincidindo,
portanto, com os mitos de origem propalados pelos
próprios norte-americanos. [...] De um Roosevelt
a outro, de Wilson a Bush, só uma coisa parece ter
importância e justificar qualquer investigação –
identificar as formas de dominação, de afirmação
unilateral dos interesses dos Estados Unidos
embutidos em todas as ações e discursos relativos a
seus vizinhos (AZEVEDO, 2011, p. 298).

Esta percepção torna-se ainda mais evidente quando observadas


as narrativas interpretativas sobre os anos 1930 e o período denomina-
do Política da Boa Vizinhança.
De fato, não se pretende negar a exploração e a violência ainda presentes nas sociedades la-
7

tino-americanas, empreendidas por interesses locais e internacionais, mas lançar luzes às di-
ferentes estratégias de resistência de grupos sociais, assim como de estados, observados de
modo plural, e com suas próprias contradições e objetivos.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 119


A Política de Boa Vizinhança, termo utilizado para designar a
política externa dos Estados Unidos para a América Latina, entre 1933
e 1945, tem sido um tema bastante visitado pela historiografia no Brasil
e em outros países do continente, sendo analisado a partir de diferentes
aportes teórico-metodológicos. Entretanto, percebe-se que no Ensino
Básico de História consagrou-se uma narrativa simplista e maniqueísta
sobre o período: grosso modo, os Estados Unidos aparecem como uma
potência imperialista, disfarçada “em pele de cordeiro”, utilizando-se da
retórica do “bom vizinho” apenas para consolidar sua hegemonia no
continente, e, por outro lado, os países Latino-americanos (retratados
como uma entidade unificada), surgem como atores passivos desse em-
preendimento, sem possibilidades para a negociação ou a resistência.8
Sendo assim, faz-se necessário apresentar as principais linhas de
interpretação historiográfica sobre Política de Boa Vizinhança, condição
importante para melhor analisarmos o documento diplomático em tela.
Dentre os autores que destacam o contexto internacional como
componente primordial para a promoção da Política de Boa Vizinhança
pelos Estados Unidos, podemos citar Peter Smiths, para quem a Política de
Boa Vizinhança seria um instrumento “prático visando promover a ideia de
hegemonia dos Estados Unidos sobre a América Latina” (SMITHS, 2000, p.
63-64). Ainda nesta linha, Alain Rouquié considera a então nova política
hemisférica como quase que simplesmente um esforço dos Estados Unidos
para garantir aliados em casos de guerra. Para este, “Os Estados Unidos
queriam unir em torno deles o conjunto de seus vizinhos meridionais assim
que a guerra explodisse na Europa” (ROUQUIÉ, 1991, p. 318).
Nestes casos encontramos interpretações que associam os con-
tornos das relações interamericanas diretamente relacionados ao con-

8
Vale ressaltar no Brasil os trabalhos de Gerson Moura e Pedro Tota que, sem minimizar a
influência direta e indireta do governo dos Estados Unidos nos assuntos internos de seus
vizinhos, ampliaram o espoco de análise, demonstrando espaços para a negociação e resistên-
cia dos países latino-americanos frente as pretensões norte-americanas. Ver: MOURA, Ger-
son. Estados Unidos e América Latina. São Paulo: Contexto, 1990. TOTA, Antônio Pedro. O
imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Grande Guerra. São
Paulo: Cia das Letras, 1990.

120 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


texto europeu. Rouquié, talvez influenciado pelos acontecimentos da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), exagera na interpretação, tan-
genciando perigosamente o anacronismo, posto que não havia evidên-
cias, nos inícios dos anos 1930, da iminência de uma guerra de grandes
proporções na Europa que pudessem envolver os Estados Unidos.
Para Cristina Pecequilo (2005, p.116), a implementação da Po-
lítica de Boa Vizinhança não representou uma mudança, de facto, nas
relações interamericanas, posto que seria apenas de uma mudança de
tática, visando manter a hegemonia norte-americana na região:
Às vésperas da Segunda Guerra, tentava-se conquistar
aliados, mas, principalmente, eliminar a influência das
forças do eixo na região, onde Brasil e Argentina são
os casos sempre mencionados da adesão a regimes
políticos de inspiração fascista. Posteriormente
com a Guerra em andamento, a ideia de cooperação
interamericana foi ainda mais incrementada pela
retórica da parceria e da cooperação (“fazer a guerra
juntos”), com ênfase na solidariedade e na segurança
hemisférica (PECEQUILO, 2005, p. 116).

Para a autora, a Política de Boa Vizinhança não teria alterado,


portanto, as preocupações básicas do governo dos Estados Unidos: ex-
clusão de ameaças externas e a estabilidade doméstica. Na verdade, enten-
demos que tais preocupações seriam básicas para a maioria dos países,
não só para os Estados Unidos. Mais uma vez encontramos uma visão
generalizante da Política de Boa Vizinhança. Pode-se apreender, inclu-
sive, a partir dessas interpretações que, indiretamente, as razões para a
implementação da solidariedade hemisférica teria surgido na Europa.
Lars Schoutz (2000), por outro lado, se distancia do contexto eu-
ropeu e nos apresenta uma análise a partir da política interna dos Esta-
dos Unidos. O autor aponta o presidente Herbert Hoover (1929-1933)
como o fundador da iniciativa de se construir relações diplomáticas
mais cordiais com a América Latina. Segundo Shoutz (2000), foi du-
rante a primeira viagem de Hoover à América Latina, em 1928, que, em
Honduras, o então recém-eleito presidente norte-americano destacou

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 121


as vantagens de ser um “bom vizinho”; o que na época significava, na
prática, encerrar a política de envio das forças armadas para defender
interesses de investidores privados em países latino-americanos, sobre-
tudo na América Central.
Para Shoutz (2000), um dos principais fatores que contribuem
para compreender as mudanças nas relações interamericanas, observa-
das durante os governos de Franklin D. Roosevelt, entre 1933 e 1945,
mesmo que para o autor não signifiquem mudanças nos interesses na-
cionais norte-americanos, relacionam-se menos ao contexto europeu e
mais ao fortalecimento das instituições políticas e da economia de al-
guns países latino-americanos.
Por outro lado, a Grande Depressão, a partir de 1929, acabou
por absorver completamente a administração Hoover para resolução
das questões domésticas, deixando-o relativamente pouco propenso a
implementar a nova política para o continente americano.
Hoover teria
entrado na Casa Branca com várias ideias para a
melhoria das relações com a América Latina, mas a
Depressão deixou várias questões relativas à política
externa em segundo plano. Sua segunda mensagem
anual [ao congresso] simplesmente trazia uma nova
política de reconhecimento e seu compromisso de
retirar-se do Haiti; em 1931 a região recebeu de Hoover
uma única curta frase (‘Nós continuamos nossa política
de retirada de nossos fuzileiros do Haiti e da Nicarágua’),
e, em sua mensagem final, o presidente nada disse sobre
a América Latina (SHOULTZ, 2000, p. 330).

Ou seja, a ideia de promover relações mais amistosas com os paí-


ses da América Latina já circulava no governo dos Estados Unidos antes
mesmo da ascensão do nazismo na Alemanha.9 De fato, não se deve

Em julho de 1928, em artigo intitulado Our Foreign Policy: a Democratic View, publicado na
9

Foreign Affairs, Franklin D. Roosevelt faz uma revisão da política externa norte-americana em
geral, e das relações interamericanas em particular, onde assume sua visão wilsoniana. Para
Roosevelt, a política externa norte-americana teria tido curtos períodos de má administração ao
longo de sua história, mas o suficiente para gerar ressentimentos pelo mundo. Cf. ROOSEVELT,
Franklin Delano. Our Foreign Policy: a Democratic View. Foreign Affairs. New York: Council Of
Foreing Relations, July, 1928.

122 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


dissociar a Política de Boa Vizinhança dos acontecimentos no cenário
internacional, mas é preciso compreender melhor a evolução dos acon-
tecimentos no plano interno norte-americano e latino-americano, o que
pode revelar outros fatores importantes, além da conjuntura europeia.
Para John Bratzel e John Leonard (2007), os interesses por trás da
Política de Boa Vizinhança não podem ser definidos abrangendo a totali-
dade do período (1933-1945). Os autores apontam dois momentos distin-
tos: o primeiro teria sido entre 1932 e 1935, antes mesmo de Franklin D.
Roosevelt chegar à presidência, onde o interesse prioritário seria melhorar
a imagem norte-americana na região, visando principalmente aumentar o
comércio, ganhando mercados para a produção industrial norte-america-
na, com vistas à recuperação da crise econômica pós crise de 1929.
No segundo período, entre 1935 e 1942, teria havido uma rede-
finição das prioridades da Política de Boa Vizinhança, baseada, aí sim,
no fortalecimento do Fascismo e do Nazismo na Europa, e no expansio-
nismo japonês na Ásia. “A Política de Boa Vizinhança seria agora com
base nos princípios de unificação do Novo Mundo contra inimigos es-
trangeiros” (BRATZEL; LEONARD, 2007, p. 30).
Os autores ainda apontam que a adesão de países latino-ameri-
canas à Política de Boa Vizinhança dependeu de inúmeros fatores, como
geografia, política interna, economia, história e outras variáveis. O que
geraria a necessidade de se analisar os países latino-americanos como
agentes ativos e complexos na dinâmica da Política de Boa Vizinhança.
Na mesma linha, Fred Fejes (1986) opta por localizar nos anos
1920 as bases para a mudança de perspectiva norte-americana na sua
relação a América Latina. Para Fejes, era perceptível que a América Lati-
na estava passando por mudanças socioeconômicas que acabariam por
inviabilizar as antigas políticas intervencionista dos Estados Unidos,
notadas através das crescentes críticas públicas em países latino-ameri-
canas sobre as intervenções armadas na região.
Fejes (1986) aponta a 6ª Conferência Internacional Americana,
realizada em 1928 na cidade de Havana, como um ponto de inflexão

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 123


relevante na relação que os países da América Latina pretendiam esta-
belecer com os Estados Unidos, quando este foi denunciado diplomati-
camente pelas invasões do Haiti e Nicarágua, além de receber pesadas
críticas públicas ao fato de se negarem a renunciar às intervenções mili-
tares como instrumento de pressão diplomática.
Para o autor, entre 1933 e 1936, a Política de Boa Vizinhança
visou ratificar a posição norte-americana de não-intervenção armada,
e estimular o comércio regional, além de reverter a imagem negativa
deixada pelos anos anteriores de invasões militares. Fejes termina com-
parando o New Deal à Política de Boa Vizinhança. Enquanto o primeiro
buscou reformular as bases do capitalismo norte-americano, a Política
de Boa Vizinhança redefiniu as bases das relações interamericanas, afas-
tando os Estados Unidos do modelo de imperialismo europeu do século
XIX. E, ainda segundo o autor, embora o New Deal e a Política de Boa
Vizinhança não tenham alcançado completamente seus objetivos, pre-
parou os Estados Unidos para o mundo pós-II Guerra Mundial.
Avaliando a revisão que os norte-americanos fizeram do termo
imperialismo nos anos 1930, George Black (1988) afirma que o termo,
antes utilizado correntemente nos livros escolares para classificar as
ações norte-americanas no Caribe e na América Central, foi gradual-
mente desaparecendo, até ser utilizado apenas para classificar a política
externa europeia, evitando associar as histórias das ações externas dos
Estados Unidos com o termo.
Para Black (1988), esta seria uma indicação de que a Política de
Boa Vizinhança também foi um instrumento para rever a narrativa his-
tórica das ações dos Estados Unidos no continente americano, marcan-
do uma diferença valorativa em relação as motivações europeias.
Tal interpretação é corroborada por Fredrik Pike:
A revisão de antigas suposições e atitudes tornaram-se a ordem
do dia. Os americanos, sob Roosevelt, começaram a rever suas avalia-
ções sobre vencedores e perdedores, agora que os antigos vencedores
pareciam ter jogado todo o sistema em desordem e desespero, e os gru-

124 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


pos empobrecidos dentro dos Estados Unidos e de todo o Hemisfério
Ocidental passaram a ser reavaliados10 (PIKE, 1995, p. 08).
Neste sentido, podemos perceber que a Política de Boa Vizinhan-
ça se apresenta como um objeto de estudo extremamente complexo.
Sem dúvidas, a dinâmica do contexto europeu contribui para moldar,
em diferentes momentos, as ações e projetos dos governos dos Estados
Unidos e da América Latina, mas deve-se valorizar também as motiva-
ções internas para o estabelecimento de uma nova política hemisférica,
assim como as motivações internas dos países latino-americanos em in-
teragir ou refutar tal projeto
As conferências internacionais americanas, realizadas no perío-
do, foram palcos privilegiados para a observação dessa acomodação de
interesses. Durante a 7ª Conferência Americana (1933), realizada em
Montevidéu, Cordel Hull, então recém-empossado Secretário de Estado
dos Estados Unidos, anunciou oficialmente o fim da política de inter-
venções militares em países do continente americano.

6.2 A 7ª Conferência Internacional Americana e a Convenção sobre o En-


sino da História

O contexto continental para a realização da Conferência foi ex-


tremamente complexo. Estados como o Brasil e a Argentina, por exem-
plo, experimentaram mudanças bruscas de governo. No contexto bilate-
ral, disputas fronteiriças entre o Peru e Colômbia, assim como Bolívia e
Paraguai, geravam graves tensões diplomáticas na América do Sul.
De fato, a data para a realização da conferência foi adiada em
quase um ano. “A ideia de celebrar a Sétima Conferência nos primei-
ros meses de 1933, não pode ser concretizada. Existia na comunidade

No original: “The revising of old assumptions and attitudes became the order of the Day. As
10

Americans under Roosevelt began to reassess their evaluations of winners and losers, now
that old-time winners seemed to have thrown the entire system into disarray and despair,
traditionally poverty-stricken groups within the United States itself and indeed within the
entire American hemisphere came in for reevaluation”

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 125


americana dúvidas sobre a manutenção da estabilidade política no Uru-
guai, principalmente pelas consequências sociais que se ocorriam pelo
golpe de Estado liderado por Gabriel Terra, em 31 de março de 1933”
(NÚÑEZ, 2010, p. 176).11
Na agenda da Conferência, confirmada para dezembro de 1933,
destacaram-se as discussões acerca de questões econômicas, refletindo o
impacto no continente da Grande Depressão nos Estados Unidos, e ques-
tões relacionadas à manutenção da paz entre os países, através da resolu-
ção de querelas por arbitragem internacional. Entretanto, pela primeira
vez, aspectos culturais foram incluídos nos trabalhos das comissões.12
A Sétima Conferência Internacional Americana
“inovou” em relação às reuniões anteriores porque
deu destaque à união continental baseada em laços
culturais. Esta situação se evidencia nas áreas temáticas
que fizeram parte do Programa e nas resoluções que
os delegados privilegiaram: propriedade intelectual,
promoção do intercâmbio de repertórios bibliográficos
americanos, criação de uma coleção bibliográfica
interamericana, intercâmbio de professores e alunos
dentro dos sistemas universitários do continente, além
do ensino da história americana entre seus membros.
O intercâmbio educacional, científico e cultural buscou
materializar-se através do funcionamento do Instituto
de Cooperação Intelectual (NÚÑEZ, 2010, p. 201).13
11
No original: “La idea de celebrar la Séptima Conferéncia en los primeros meses del año 1933,
no pudo ser concretada. Existía en la comunidad americana dudas com respecto al manteni-
miento de la estabilidad política em Uruguay, principalmente por las consecuencias sociales
que se desprendían del Golpe de Estado liderado por Gabril Terra, el 31 de marzo de 1933”.
12
A 7ª Conferência também se destaca pelo fato de ter sido a primeira da série a aceitar mulheres
nas delegações dos países. Ver: MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Entre o Igualitarismo
e a Reforma dos Direitos das Mulheres: Bertha Luz na Conferência Interamericana de Mon-
tevidéu, 1933. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 21(3): 496, setembro-dezembro/2013.
13
No original: “La Séptima Conferencia Internacional Americana ‘innovó’ con respecto a las
reuniones anteriores porque dio preponderancia a la unión continental fundamentada em
los vínculos culturales. Tal situación se evidencia en las áreas temáticas que formaron parte
del Programa y en las resoluciones que los delegados privilegiaron: propriedad intelectual,
promoción del intercambio de repertorios bibliográficos americanos, creación de un acer-
vo bibliográfico interamericano, intercambio de professores y estudiantes dentro de siste-
mas universitários del continente, además de la enseñanza de la história americana entre sus
miembros. El intercambio educativo, científico y cultural pretendió materializarse a través del
funcionamiento del Instituto de Cooperación Intelectual”.

126 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Neste contexto, delegados da Argentina, Brasil e Uruguai propu-
seram e lideraram os trabalhos de discussão e aprovação da Convenção
sobre o Ensino da História, trazendo para o âmbito da Conferência a
preocupação com a narrativa histórica presente nos manuais escolares e
no ensino dos “jovens” americanos.
Deve-se pontuar inciativas semelhantes anteriores ocorridas em
outros fóruns, como o Congreso de História Nacional de Montevideo
(1928); Congresso de História de Buenos Aires (1929); Congreso de His-
tória de Bogotá (1930); Segundo Congresso de História Nacional do Rio
de Janeiro (1931), sugerindo uma preocupação cada vez maior com o
ensino de História.
A Convenção foi organizada em 8 artigos, com o objetivo geral
de “Complementar a organização política e jurídica da paz com o desar-
mamento moral dos povos, revendo os textos didáticos utilizados nos
diversos países”14.
Logo nos primeiros artigos fica evidente a percepção da narra-
tiva histórica escolar como potencial instrumento de fomento para a
“amizade” ou “rivalidade” entre os povos americanos:
Artigo 1º. Efetuar a revisão dos textos adotados para o
ensino em seus respectivos países, a fim de depurá-los
de tudo quanto possa excitar, no ânimo desprevenido
da juventude, a aversão a qualquer povo americano.
Artigo 2º. Revisar periodicamente os testos adotados
para o ensino das diversas matérias, a fim de submetê-
lo as mais recentes informações estatísticas gerais, com
o objeto de oferecer neles uma noção mais aproximada
e exata da riqueza e da capacidade de produção das
Repúblicas Americanas.

Os artigos indicariam a necessidade de superação do desconhe-


cimento mútuo, e a promoção da circulação de informações entre os es-
tudantes americanos, inclinando-os a assumirem visões amistosas sobre

No original: “Complementar la organizacíon política y jurídica de la paz con el desarme mo-


14

ral de los pueblos, mediante la revision de los textos de enseñanza que se utilizan en los diver-
sos países.”

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 127


seus vizinhos através da informação. Entretanto, geralmente, a “história
patriótica” ensinada nas escolas americanas do começo do século XX
contribuía para a construção de identidades nacionais baseadas justa-
mente na superação de um Outro potencialmente desagregador.
Conforme Pamplona e Doyle (2008, p. 24) “com efeito, uma vez
formados os Estados-nação americanos, como os de qualquer outro lu-
gar, eles trataram de criar uma identidade nacional unificadora. Escre-
veram histórias heroicas e homenagearam heróis nacionais. Construí-
ram memoriais para as vitórias da nação e lamentaram suas derrotas”.
Nesse processo, heróis eram construídos e celebrados a partir da
valorização de suas ações para a manutenção da pretensa unidade na-
cional. Seja contra inimigos internos, como povos nativos de cultura
considerada degenerada, seja contra países vizinhos, após conflitos di-
plomáticos ou bélicos, o contraste com o Outro constituía as bases para
uma narrativa histórica uniforme da identidade nacional.
Neste sentido, a pretensão de se fomentar uma instituição con-
tinental que orientasse os sistemas educacionais dos países americanos
somou-se à necessidade de superação das rivalidades entre os estados
presentes nas narrativas dos manuais escolares.
No artigo 3º. detalha-se com mais afinco os vieses que se preten-
dia superar:
Artigo 3º. Criar um “Instituto para o ensino da
História das Repúblicas Americanas”, com sede em
Buenos Aires, encarregado de coordenar a realização
interamericana dos propósitos enunciados e cujos fins
serão recomendar-se que se:
a) Fomente em cada uma das Repúblicas Americanas
o ensino da História das demais; b) Dedique maior
atenção a história da Espanha, Portugal, da Grã-
Bretanha e da França e de quaisquer outros países não
americanos, naqueles pontos de maior relação com a
história da América; c) Procures que os programas de
ensino e os Textos de História não contenham
apreciações hostis para outros Países ou erros que

128 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


tenham sido evidenciados pela crítica; d) Atenue o
espírito bélico nos manuais de história no estudo da
cultura dos povos e o desenvolvimento universal
da civilização para determinar a parte que coube na
civilização de cada país aos estrangeiros; e) Elimine
aos textos os paralelos fastidiosos entre as personagens
históricas nacionais e estrangeiras e os comentários e
conceitos ofensivos e deprimentes para outros países;
f) Evite que a narração das vitórias alcançadas sobre
outras nações possa servir de motivo para rebaixar o
conceito moral dos países vencidos; g) Não julguem
com ódio ou se adulterem os feitos na narração
de guerras ou batalhas cujo resultado haja sido
adverso e h) Destaque tudo quanto possa contribuir
construtivamente à inteligência e cooperação dos
países americanos. No desempenho das Altas funções
educativas que se lhe cometem, o Instituto para o
Ensino da História conservará estreitos vínculos com
o Instituto Pan-Americano de Geografia e História,
que funciona na cidade do México, estabelecido como
órgão de cooperação entre os Institutos Geográficos e
Históricos das Américas e com as demais entidades de
fins similares aos seus.

As recomendações acima elencadas revelam aspectos importan-


tes acerca da percepção que se tinha na Conferência sobre as mudan-
ças necessárias no ensino da História. Torna-se evidente a preocupação
em mitigar narrativas históricas calcadas na rivalidade entre os Estados,
outrora instrumentos privilegiados para construção das identidades na-
cionais e seus respectivos heróis.
Neste sentido, a presença de termos como “amizade”, “ódio”,
“ofensas” e “rivalidades”, conferindo aos Estados independentes sen-
timentos humanos, enseja interessante debate em sala de aula sobre
o processo de construção das identidades nacionais15 como entidades
uniformes, assim como a seleção do que deveria ser valorizado ou não
como expressão dessas identidades.
Cf. ANDERSON, B. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism.
15

New York: Verso, 1983. HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (Org.). A invenção das tradições. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 129


Sendo assim, a valorização do passado europeu, observado na
“maior atenção” que se deveria dar às histórias de Portugal, Espanha,
Grã-Bretanha e França, credenciando os países americanos a integra-
rem a ideia de progresso universal da civilização forjado na Europa,
ratificado posteriormente na explícita determinação da publicação da
Convenção nos idiomas espanhol, português, francês e inglês, é um im-
portante ponto de partida para lançar luzes sobre a pluralidade étnica,
cultural e linguística presente no continente, mas totalmente ausente no
documento em tela, reforçando o caráter seletivo e artificial das identi-
dades nacionais. Os demais artigos da Convenção trataram dos aspectos
legais para a ratificação do documento entre os congressos dos países
signatários, análise que escaparia aos objetivos deste artigo, embora in-
teressante objeto de pesquisa a ser realizado em rede.
Entretanto, cabe destacar que os representantes do governo dos
Estados Unidos, ainda que tenham elogiado a iniciativa, alegaram impe-
dimento constitucional para subscrever o documento, uma vez que seu
sistema de ensino seria de responsabilidade dos estados e municípios.
Uma indicação interessante do protagonismo de países latino-america-
nos no contexto da Política de Boa Vizinhança, ou seja, a promoção da
“amizade hemisférica” também interessava aos países latino-americanos.

6.3 Declaração dos Estados Unidos da América

Os Estados Unidos aplaudem calorosamente esta iniciativa e


quererá antes de tudo declarar a sua profunda simpatia por tudo quanto
propenda a fomentar o ensino da História das Repúblicas Americanas
e particularmente na depuração dos textos de História, corrigindo er-
ros, suprimindo toda parcialidade e preconceito e eliminando tudo que
puder provocar ódio entre as nações. A Delegação dos Estados Uni-
dos da América quer, entretanto, explicar que o sistema de educação
dos Estados Unidos é diferente dos outros países americanos, à que está
completamente fora do raio de ações do Governo Federal; é mantido
e dirigido pelos Estados, pelos municípios e por instituições e indiví-

130 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


duos particulares. A Conferência compreenderá por consequência, que
a Delegação dos Estados Unidos, por motivos constitucionais, não pode
assinar este Convênio.
Embora as relações interamericanas na segunda metade do sé-
culo XIX e início do século XX sejam marcadas pela crescente presença
militar dos Estados Unidos na América Latina, contabilizando mais de
30 intervenções entre 1898 e 1934, os países latino-americanos também
haviam protagonizado conflitos sangrentos entre si.
A guerra da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) con-
tra o Paraguai (1864 -1870), e a Guerra do Pacífico (1879-1883), quando
o Chile anexou territórios do Peru e da Bolívia, são exemplos de con-
flitos rememorados pelos vencedores para reificarem seus heróis, mas
também vetores de ressentimentos entre os derrotados.
Cabe destacar que se a história das relações interamericanas em
geral se estrutura comumente nas relações entre os Estados Unidos e a
América Latina, a reificação do conceito de América Latina muitas ve-
zes ignora que as identidades nacionais dos países que a constituiriam
se consolidaram ao longo do século XIX justamente potencializando di-
ferenças com os países vizinhos.
No caso dos países que emergiram do império espanhol, as am-
biguidades entre a identidade ‘americana’ e as diversas identidades na-
cionais resolveu-se em favor dessas últimas. Para criar e reforçar essas
novas identidades, era necessário dar ênfase às diferenças, reais ou in-
ventadas, entre as novas entidades políticas. Com o apoio de seus res-
pectivos Estados e de suas elites intelectuais, mitologias, culturas e tra-
dições distintas foram resgatadas ou, mesmo, inventadas em cada uma
dessas novas “nações”. A identidade comum, ‘americana’, era relegada
a um papel secundário em prol de reais ou imaginárias diferenças his-
tóricas, geográficas, culturais e raciais. Assim, as tentativas de criar as
distintas nacionalidades foram também um esforço de rejeição da iden-
tidade comum americana (SANTOS, 2004, p. 67).

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 131


Não deixa de ser intrigante o fato de que os representantes do
Paraguai e da Bolívia subscreveram a Convenção sobre o Ensino de
História, mesmo estando naquele momento protagonizando um sério
conflito militar, conhecido como a Guerra do Chaco (1932-1935). Sem
obviamente pretender minimizar a gravidade das ações militares dos
Estados Unidos em diversos países vizinhos, espectro ainda presente, é
fundamental compreender as próprias contradições entre os países que
compõem a chamada América Latina.
Não se pode afirmar que os representantes da Argentina, Brasil
e Uruguai propuseram a Convenção a partir de um alinhamento auto-
mático e subserviente ao governo dos Estados Unidos para a promoção
da Política de Boa Vizinhança, pois possuíam, eles mesmos, razões para
que o ensino de História minimizasse antigos rancores.
A guerra travada contra o Paraguai no século XIX, por exem-
plo, foi capitalizada para construção de heróis nacionais nas narrativas
históricas dos países vencedores, mas, vale ressaltar que, superada as
primeiras décadas após o fim do conflito, quando a derrota paraguaia
foi rapidamente instrumentalizada pelos opositores internos ao regime
de Francisco Solano Lopez, conhecidos, grosso modo, como Liberais
Positivistas, difundindo a interpretação de que as aspirações autoritárias
e expansionistas de López haviam jogado o país em uma guerra incon-
sequente, a figura do líder paraguaio foi recuperada e valorizada ainda
no final do século XIX, ganhando força no começo do século XX com as
publicações do jornalista e historiador Juan Emiliano O’Leary.
Como aponta Capdevila (2009), a simbologia da guerra contra a
“Triple Alianza” ainda invade o espaço público do país vizinho, conso-
lidando-se na memória coletiva ao longo do tempo como uma guerra
épica pela defesa da independência e da própria existência da nação,
sendo rememorada continuamente.

132 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Através da onipresença de figuras como Solano Lopez, Díaz, Ca-
balleros, da Residenta, das ruínas de Humaitá, Minas Cué, Vapor Cué, a
lembrança de Cerro Corá, Ytorocó etc., a representação é a de um povo
de heróis que aceitaram o sacrifício final para preservar sua identidade.
É a história de uma nação que se superou na derrota16 (CAPDEVILA,
2009, p. 34). Desse modo, reduzir a história da América Latina, em es-
pecial o período da Política de Boa Vizinhança, à uma história de su-
bordinação e sujeição à interesses externos, é perder de vista a própria
complexidade e historicidade dessas sociedades. Embora essa superação
passe por novas abordagens e métodos, é possível identificar e inferir tal
complexidade mesmo em documentos tradicionais, estimulando entre
os estudantes a leitura crítica, compreendendo e descontruindo o expli-
cito e o implícito contidos nesses registros.
Como aponta Fonseca “a utilização de documentos numa pers-
pectiva metodológica dialógica propicia o desenvolvimento do processo
de ensino e aprendizagem que tem como pressuposto a pesquisa, o deba-
te, a formação do espírito crítico e inventivo (FONSECA, 2003, p. 217).
Por último, a utilização de um documento que trata sobre o en-
sino de História, apontando claramente estratégias e objetivos a partir
de representantes de governos, contribui também para a desnaturali-
zação não só das fontes históricas, mas também a desmistificação de
narrativas históricas que os estudantes venham a encontrar nos livros
escolares, na imprensa, no cinema ou na internet; compreendendo que
a História, de modo geral, como disciplina escolar ou como debate pú-
blico, guarda em si interesses.

No original: “A través de la omnipresencia de las figuras de López, Díaz, Caballero, Minas


16

Cué, Vapor Cué, el recuerdo de Cerro Corá, Ytororó, etc, la representación és la de um Pueblo
de heróis que consintió el sacríficio último para preservar su identidade. És la história de uma
nación que se superó em la derrota”.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 133


Tabela 1
CONVENÇÃO SOBRE O ENSINO DA HISTÓRIA
7ª Conferência Internacional Americana (Montevideu, 1933)
Os Governos representados na Sétima Conferência Internacional America-
na, considerando:
Que é urgente complementar a organização política e jurídica da paz com o
desarme moral dos povos, mediante a revisão dos textos de ensino que se utili-
zam nos diversos países;
Que a necessidade de realizar esta obra depuradora foi reconhecida em
acordos do Congresso Científico Pan-Americano de Lima (1924), do Congresso
Nacional de História de Montevidéu (1928), do Congresso Nacional de História
de Buenos Aires (1929), do Congresso de História de Bogotá (1930), do Segun-
do Congresso de História Nacional do Rio de Janeiro (1931), do Congresso Uni-
versitário Americano de Montevidéu (1931) e com a adoção de medidas nesse
sentido por vários Governos Americanos, e
Que os Estados Unidos do Brasil e as Repúblicas Argentina e Oriental do
Uruguai, dando exemplo de seus elevados sentimentos de paz e inteligência in-
ternacionais, subscreveram a recentemente convênios para a revisão dos textos
de ensino da História e Geografia,
Os quais depois de haver exibido os seus Plenos Poderes, que foram encon-
trados em boa e devida forma, acordaram o seguinte:
Artigo 1º. Efetuar a revisão dos textos adotados para o ensino em seus res-
pectivos países, a fim de depurá-los de tudo quanto possa excitar, no ânimo des-
prevenido da juventude, a aversão a qualquer povo americano.
Artigo 2º. Revisar periodicamente os testos adotados para o ensino das di-
versas matérias, afim de submete-lo as mais recentes informações estatísticas
gerais, com o objeto de oferecer neles uma noção mais aproximada e exata da
riqueza e da capacidade de produção das Repúblicas Americanas.
Artigo 3º. Criar um “Instituto para o ensino da História das Repúblicas
Americanas”, com sede em Buenos Aires, encarregado de coordenar a realização
interamericana dos propósitos enunciados e cujos fins serão recomendar-se que se:
a) Fomente em cada uma das Repúblicas Americanas o ensino da História
das demais;
b) Dedique maior atenção a história da Espanha, Portugal, da Grã-Bretanha
e da França e de quaisquer outros países não americanos, naqueles pontos de
maior relação com a história da América;
c) Procures que os programas de ensino e os Textos de História não conte-
nham apreciações hostis para outros Países ou erros que tenham sido evidencia-
dos pela crítica;

134 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


d) Atenue o espírito bélico nos manuais de história no estudo da cultura dos
povos e o desenvolvimento universal da civilização para determinar a parte que
coube na civilização de cada país aos estrangeiros;
e) Elimine aos textos os paralelos fastidiosos ente as personagens históricas
nacionais e estrangeiras e os comentários e conceitos ofensivos e deprimentes para
outros países;
f) Evite que a narração das vitórias alcançadas sobre outras nações possam
servir de motivo para rebaixar o conceito moral dos países vencidos;
g) Não julguem com ódio ou se adulterem os feitos na narração de guerras ou
batalhas cujo resultado haja sido adverso e
h) Destaque tudo quanto possa contribuir construtivamente à inteligência e
cooperação dos países americanos.
No desempenho das Altas funções educativas que se lhe cometem, o Instituto
para o Ensino da História conservará estreitos vínculos com o Instituto Pan-Ame-
ricano de Geographia e História, que funciona na cidade do México, estabelecido
como órgão de cooperação entre os Institutos Geográficos e Históricos das Amé-
ricas e com as demais entidades de fins similares aos seus.
Artigo 4º. A presente Convenção não afeta os compromissos contraídos ante-
riormente pelas Altas Partes Contratantes em virtude de acôrdos internacionais.
Artigo 5º. A presente Convenção será ratificada pelas Altas Partes Contratan-
tes de acordo com as suas normas constitucionais.
O Ministério das Relações Exteriores da República Oriental do Uruguai fica
encarregado de enviar cópias registradas como autênticas aos Governos para o
referido fim. Os instrumentos de ratificação serão depositados nos arqui9vos da
União Pan-Americana, em Washington, que notificará de depósito aos Governos
signatários; e tal notificação servirá como troca de ratificação.
Artigo 6º. A presente Convenção entrará em vigor entre as Altas Partes Con-
tratantes na ordem em que forem depositando suas respectivas ratificações.
Artigo 7º. A presente Convenção vigorará indefinidamente, mas poderá ser
denunciada mediante aviso antecipado de um ano à União Pan-Americana que os
transmitira aos demais Governos signatários. Decorrido esse prazo a convenção
cessará em seus efeitos para o denunciante, ficando subsistente para as demais
Altas Partes Contratantes.
A presente Convenção ficará aberta à adesão e acessão dos Estados não sig-
natários.
Os instrumentos correspondentes serão depositados nos arquivos da União
Pan-americana, que os comunicará as outras Altas Partes Contratantes.
Em fé do qual, os Plenipotenciários que a continuação se indicam, assinam e
selam a presente Convenção em espanhol, inglês, português e francês, na cidade
de Montevidéu, República Oriental do Uruguai, no vigésimo sexto dia do mês de
dezembro do ano de mil novecentos e trinta e três.
Países signatários: Honduras, El Salvador, República Dominicana, Haiti, Ar-
gentina, Uruguai, Paraguai, México, Panamá, Bolívia, Guatemala, Brasil, Equa-
dor, Nicarágua, Colômbia, Chile, Peru e Cuba.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 135


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O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 137


CAPÍTULO 7

A disciplina Estudos Amazônicos no


contexto paraense:
o que deve conter na discussão regional?

Davison Hugo Rocha Alves1

N
o dia 6 de outubro de 2020 participei do I Seminário de Egressos
do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHS),
promovido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
entre os dias 5 a 7 de outubro de 2020 na modalidade on-line. Durante o
referido evento, apresentei algumas reflexões sobre a disciplina Estudos
Amazônicos, elas desenvolvidas durante o ano de 2016 nesta universi-
dade carioca2. A professora Helenice Rocha (UERJ/FFP) durante suas
argumentações sobre a disciplina regional, fez-me a seguinte pergunta:
o que deve conter na disciplina Estudos Amazônicos? O presente artigo
é uma resposta a seguinte indagação desenvolvida durante este evento
ocorrido em formato on-line.
O objeto de pesquisa do mestrado realizado no Programa de
Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Pro-
fessores (FFP) foi a história das disciplinas escolares. Havia no contexto
do início do século XXI um campo de pesquisa em construção no esta-
do do Pará, sobre a história das disciplinas escolares regionais. A linha
de pesquisa que a dissertação estava inserida, dentro deste programa
de pós-graduação, é a denominada Ensino de História e Historiografia.
1
Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA).
2
A dissertação defendida em fevereiro de 2016 foi denominada de Contando a História do
Pará: a história da disciplina Estudos Amazônicos e os livros didáticos (1990-2000).

138 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Os historiadores ainda não haviam realizado uma pesquisa so-
bre os materiais didáticos regionais para a disciplina escolar Estudos
Amazônicos. A dissertação defendida apresenta uma reflexão sobre o
ensino de história regional no Pará, ela tornou-se um espaço para de-
bater os materiais didáticos produzidos no Estado do Pará, e que foram
chancelados pela secretaria de estado de educação do Pará. O debate
sobre as questões sociais e econômicas estavam sendo desenvolvidas no
Estado do Pará por outras instituições públicas de pesquisas, como o
Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), a Universidade do Estado do
Pará (UEPA) e a Universidade Federal do Pará (UFPA)3. Os pesquisa-
dores amazônicos sensibilizados em construir um material escolar, que
versasse sobre Amazônia, produzem um livro-texto com 13 temas de-
batidos sobre o objeto em questão, ele foi resultado de uma produção
de pesquisa com autores nacionais e internacionais debatendo sobre
os Estudos e Problemas Amazônicos: A História Social e econômica da
Amazônia – e temas especiais4. O livro-texto publicado pelo Instituto de
Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Pará (IDESP), foi
lançado em 1989, foi uma parceria com a Secretaria de Estado de Edu-
cação do Pará (SEDUC/PA).
O livro-texto torna-se o ponto de partida das discussões em tor-
no da disciplina Estudos Amazônicos, foi bastante usado no ensino su-
perior dentro das discussões sobre a região amazônica e suas questões
específicas. Durante a apresentação destinada aos professores e alunos
das disciplinas que abordam a região amazônica nos cursos de 2º grau
3
Vale ressaltar que no contexto paraense dois espaços amazônicos de pesquisa como o Nú-
cleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) e o Núcleo de Estudos sobre Meio Ambiente
(NUMA).
4
Os capítulos presentes neste livro foram os seguintes: História Social e Econômica da Ama-
zônia (Violeta Refkalefsky Loureiro); A Amazônia: meio ambiente (Orlando Valverde); Os
recursos naturais (Clara Pandolfo); Um novo estilo de ocupação econômica da Amazônia: os
grandes projetos (Rosineide Bentes); A questão da terra (Jean Hébette); A questão ecológi-
ca na Amazônia (J. Márcio Ayres); Ainda a ecologia: a questão das queimadas (Christopher
Uhl; Robert Buschbacher); A questão indígena na Amazônia (Lux Vidal); A reorganização
econômica e demográfica da Amazônia (Donald Sawyer); A questão urbana na Amazônia
(Edna Maria Ramos de Castro); A questão cultural amazônica (João de Jesus Paes Loureiro);
A questão étnica: índios, brancos, negros e caboclos (Maria Angélica Motta Maués); A ques-
tão regional amazônica (Aluízio Tadeu Marques da Silva).

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 139


(Ensino Médio), a professora Therezinha Moraes Gueiros5 destaca que
as escolas públicas e particulares não tinham um livro-texto de qualida-
de que versasse sobre os problemas amazônicos. A dificuldade merca-
dológica é apresentada pela professora Therezinha Gueiros,
As dificuldades decorrentes dessa ausência são
facilmente enumeráveis. É difícil, com efeito, não apenas
reunir material de pesquisa e material informativo –
dispersos nas variáveis instituições públicas e privadas
– quando torná-los, uma vez localizados, matéria
acessível aos alunos no que concerne a linguagem, e
do ponto de vista de sua apresentação, reprodução
e distribuição aos usuários. Acrescente ainda a
dificuldade em definir as prioridades, dados variados,
complexos e importantes temas igualmente passíveis
de abordagem, que a imensa região enseja e reclama
(GUEIROS, 1989, p. 07).

A discussão regional era vista como apêndice das discussões


apresentadas dentro das disciplinas chamadas de referência, a conhe-
cer: História e Geografia. O debate sobre as especificidades ficava nas
margens do processo educativo paraense. O movimento regionalista no
estado do Pará estava reivindicando no período de redemocratização: o
lugar das questões amazônicas dentro do espaço escolar. Havia a neces-
sidade de colocar outros sujeitos, outras historicidades, outros espaços
sociais e suas vivências dentro do processo de ensino-aprendizagem.
O papel social da discussão sobre os problemas amazônicos
aprofunda-se na apresentação do referido livro-texto. A professora The-
rezinha Gueiros argumenta que os noticiários apresentam uma imagem
fragmentada sobre a região amazônica, não aprofundando as peculiari-
dades de viver e de ser do homem amazônica. Neste sentido, ela desta-
ca que havia uma representação negativa do espaço amazônico dentro
da sociedade brasileira. O livro-texto tinha a ideia-base de apresentar a
Amazônia real, aquela construída por autores que pensam as minucio-
sidades sociais da região amazônica, diante do papel assumido no pro-

A professora Therezinha Gueiros era secretária de educação do estado do Pará na gestão do


5

ex-governador Hélio Mota Gueiros (1987-1991).

140 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


cesso de mudança de colonização deste espaço após os anos 1960. Era
necessário desconstruir o imaginário presente na sociedade brasileira,
que a região amazônica era vista como o “resto do Brasil”, dentro dos
livros didáticos ou dos grandes noticiários. O professor na Amazônia
deveria construir uma relação com este espaço social.
Convém ressaltar, por outros, que o professor, no cotidiano de
uma sala de aula, ao enfrentar questionamentos, ao alimentar debates,
precisa manter-se informado sobre sua própria região, num contexto
sociocultural, em que a grande produção de livros, jornais, revistas, pro-
gramas de televisão e filmes, mesmos brasileiros, versam principalmen-
te, sobre os problemas que não especificamente os nossos, ressalvados, é
claro, as similaridades, sempre suscetíveis de serem encontradas quan-
do os problemas, ao reproduzirem nacionalmente, tornam-se comuns a
algumas ou todas as regiões.
Neste aspecto a professora Therezinha Gueiros, neste livro-texto,
ressalta a necessidade de invertermos a lógica de observação do espaço
amazônico, não somente as notícias negativas sobre o aumento do des-
matamento, a perda da biodiversidade, os conflitos agrários, a intensifi-
cação das queimadas, a relação conflituosa do homem-natureza, os ele-
mentos centrais quando se refere a região amazônica. Não somente isso!
Havia outros aspectos a serem evidenciados dentro do espaço escolar,
como: os costumes, a cultura diversa do povo amazônica, a identidade
multiétnica, a floresta amazônica e suas especificidades.
A aprendizagem significativa e crítica para ao aluno amazônida
já estava no centro do debate. Os temas recentes da região amazônica
estão sendo abordados de forma didática. Refiro-me aos grandes
projetos, a questão indígena, a questão floresta, a questão agrária, a
questão mineral. Era necessário construir um material didático regional,
onde o professor da educação básica pudesse encontrar sistematizado as
discussões sobre as questões amazônicas. A função que o livro didático
dos saberes de referência não tinha, o livro-texto da parceria firmada
entre a SEDUC e o IDESP, deveriam apresentar a questão regional
amazônica com profundidade.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 141


O debate que estava sendo posto no final dos anos 1980 era a se-
guinte: não é uma questão mercadológica a dificuldade existente sobre
a questão amazônica, mas a sistematização em um livro-texto a necessi-
dade pré-existente, era a produção de um material voltado para o espaço
escolar, que debatesse as especificidades da região amazônica. Diferente
da perspectiva apresentada pelo professor Itamar Freitas (2009), o proble-
ma não era mercadológico no Estado do Pará, pois, desde o final dos anos
1980 já haviam sido consolidados discussões na SEDUC e no IDESP na
tentativa de sistematizar as questões regionais no espaço escolar.
A professora de Geografia da Secretaria de Estado de Educação
do Pará (SEDUC/PA) Raí Borges, trabalhando no município de Belém
com a disciplina Estudos Amazônicos, argumenta o pioneirismo da
obra Estudos e Problemas Amazônicos: A História Social e econômica da
Amazônia – e temas especiais, ela nos diz que sobre a sua experiência
didática com a disciplina regional para os alunos do modular dentro da
rede estadual de educação, ela diz:6
Eu apliquei muito este livro, alguns textos dele. Ele
é muito bom em sala de aula. Inclusive de conteúdo.
Aplicando já no meu trabalho, no conteúdo de Estudos
Amazônicos com os meus alunos. Trabalhei com este
livro, quando eu trabalhava no modular. Trabalhei
muito com meus alunos, ele é um livro muito bom.
Apresentei trabalhos muitos bons com ele, inclusive
de dramatização, que eu trabalhei no interior e eles
apresentavam trabalhos excelentes de dramatização
(BORGES).

7.1. O currículo da disciplina Estudos Amazônicos: um mosaico regional


no espaço de sala de aula.

Durante os anos 1990, a configuração social e política modifica o


olhar sobre o ensino regional no estado do Pará, as discussões do Conse-
lho Estadual de Educação (CEE) durante o ano de 1997 e 1998 estão em
O Sistema Modular de Ensino (SOME) que garante é uma política pública para os interiores
6

do estado do Pará criado em 1980. Sobre isto ver, Costa; Oliveira; Nascimento (2020).

142 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


diálogos com os acontecimentos recentes, refiro-me a nova Constituição
Federal do Brasil publicada em 13 de dezembro de 1988, a nova Lei de
Diretrizes e Bases (LDB) publicada em 20 de dezembro de 1996 e aos
Parâmetros Curriculares Nacionais publicados em 15 de outubro de 1997.
A discussão regional também está presente na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação, quando afirma que
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e
médio devem ter uma base nacional comum, a
ser complementada, em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da
sociedade, da cultura, da economia e da clientela
(BRASIL, 1996).

A discussão sobre os temas regionais ganhou evidência dentro


das propostas curriculares durante os anos 1990. Podemos perceber
que após a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
para as diversas áreas de conhecimento, cresceu a possibilidade de cons-
trução de histórias locais, que demarcam uma historicidade do saber
e fazer histórico dentro do espaço escolar. O documento legal em sua
introdução nos diz que,
A escola, na perspectiva de construção de cidadania,
precisa assumir a valorização da cultura de sua própria
comunidade e, ao mesmo tempo, buscar ultrapassar
seus limites, propiciando às crianças pertencentes aos
diferentes grupos sociais o acesso ao saber, tanto no que
diz respeito aos conhecimentos socialmente relevantes
da cultura brasileira no âmbito nacional e regional,
como no que faz parte do patrimônio universal da
humanidade (BRASIL, 1997, p. 22).

O debate também está no Conselho Estadual de Educação do Es-


tado do Pará (CEE/PA), quando foi publicado o documento Orientações
para a implantação e estruturação do modelo curricular para o ensino
fundamental a partir de 1999. O debate estava baseado nas legislações
promulgadas pelo MEC e de acordo com o Conselho Nacional de Edu-
cação, sobre o ensino regional ele afirma: “inclusão da disciplina Estu-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 143


dos Amazônicos na Parte Diversificada, em lugar da disciplina Estudos
Paraenses, por ser a mesma, mais abrangente em seu conteúdo, que a
disciplina Estudos Paraenses, com duas aulas semanais nas 5ª e 6ª séries
e três aulas nas 7ª e 8ª séries (PARÁ, 1999, p. 3).
A justificativa apresentada para a inclusão desta disciplina no
currículo regional foi a seguinte,
A disciplina Estudos Amazônicos justifica-se pela
imperiosa necessidade de a escola contribuir para
a formação de uma consciência nos cidadãos sobre
a Amazônia como uma questão nacional, e ser a
Amazônia o maior e o mais rico sistema natural do
planeta (PARÁ, 1999, p. 3).

A professora Violeta Loureiro durante entrevista realizada para


a escrita do texto, argumenta que Estudos Paraenses não fazia o debate
sobre a Amazônia, ele limitava-se aos recortes temporais pré-estabele-
cidos dentro da História do Pará. A História da Amazônia não era vista
como uma questão regional,
Olha, muito pouco se falava da História do Pará, mais
os fatos históricos, só que a Amazônia como uma
região, não é apenas uma questão nacional, além de
ser uma questão regional e nacional, hoje em dia é uma
questão internacional, então os Estudos Paraenses para
o contexto em que a Amazônia ficou muito limitado,
uma disciplina muito limitada, ficou fora do contexto,
para ela (LOUREIRO, 2015).

Um debate que estava posto durante os anos 1990 no estado do


Pará: qual era a ideia construída sobre a região amazônica no espaço
escolar? Ela não poderia se limitar apenas aos noticiários, questões dos
conflitos agrários, sobre o aumento do desmatamento. A Amazônia não
era somente isso! Os professores do movimento regionalista no Pará
queriam ampliar os olhares e enfoques sobre a Amazônia, uma nova
consciência sobre viver na região amazônica,
Eu tenho interesse desde que seja para conscientizar
as pessoas sobre a Amazônia eu tenho um maior
interesse, independentemente de qualquer vantagem

144 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


financeira, de modo geral a gente não nenhum nessa
área, foi quando eu resolvi escrever os dois livros
didáticos na década de 90 (LOUREIRO, 2015).

A questão do desmatamento e a perspectiva de internacionali-


zação da Amazônia estavam no centro do debate. A professora Violeta
Loureiro reconhece que o campo disciplina Estudos Amazônicos preci-
sava estar sensível às questões consideradas “caras” para o homem e o
meio ambiente amazônico.
Nos anos 90, a Amazônia vinha passando por um processo de
desmatamento terrível, um índice de desatamento que girava em torno
de 24 mil km² por ano, isso era uma coisa verdadeiramente assustadora,
e aí havia protestos de agências internacionais como a OEA e outras,
órgãos ambientais e até os protestos aumentaram tanto que chegou a
ponto de propor a internacionalização da Amazônia, novamente coisa
que não se fazia desde os anos 1950, voltou à tona essa questão da inter-
nacionalização da Amazônia (LOUREIRO, 2015).
A professora Violeta Refkalefsky Loureiro7, durante apresen-
tação direcionado aos alunos e professores da disciplina Estudos
Amazônico, nos diz que a missão da escola passou a exigir do pro-
fessor no século XXI,
a) O aluno deve entender os processos econômicos,
sociais, ambientais e as condições históricas da
Amazônia no mundo; isto é mais importante do que
memorizar datas, fatos e nomes, se estes estiverem
descolados do contexto em que se passaram ou se
passam. b) A importância de valorizar o estudo, a
discussão em grupo e a exposição oral das ideias dos
alunos, estimulando a lerem livros e, a partir do que
foi lido, a exporem suas dúvidas, sus opiniões e críticas
(LOUREIRO, 2015, p. 3).

Percebemos que havia uma disputa pela disciplina regional no


Estado do Pará a ser verificada no documento da Secretaria do Estado
Estou usando neste artigo à edição mais recente do livro História da Amazônia: do período
7

da borracha aos dias atuais (2015). A edição que foi apresentada na escrita da dissertação de
mestrado em 2016 é análise da primeira edição publicada no ano 2000.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 145


de Educação, uma disputa de espaço político dentro das formações na
área das ciências humanas. Há uma clara defesa da disciplina Estudos
Amazônicos e uma repulsa ao Estudos Paraenses dentro do espaço es-
colar. De ordem teórico-metodológico, fica expresso que ao historiador
cabe a função social de estudar o passado, uma perspectiva metodoló-
gica que já vinha sendo descontruída desde os anos 1920, com a cria-
ção da Revista dos Annales. O movimento dos Annales tenta repensar a
prática do nosso ofício tanto no que se refere a pesquisa, como a que se
refere ao ensino de História.8 Podemos também fazer a defesa do En-
sino de História da Amazônia9 como ficou conhecido nos programas
curriculares dos cursos de História, especificamente na região Norte,
de debates em torno de história oral, memória e história do tempo pre-
sente. São discussões que estão presentes desde os anos 1990, desde a
reformulação da grade curricular dos cursos de História.
Apesar dessa separação entre o estudo dos historiadores e a his-
tória da Amazônia, como se não tivesse afinidades de discussões no âm-
bito acadêmico, o docente que era formado em História conseguiu ter a
sua habilitação para dar aulas de Estudos Amazônicos10, haja vista que
se entendia, à época, que a palavra “estudos” não era um limite para
definir um campo disciplinar, mas que qualquer ciência das humanida-
des que debatesse temas amazônicos pudesse lecionar nesta disciplinar.

8
Como exemplo, o historiador francês Marc Bloch no livro “História e Historiadores” (1995)
o texto foi publicado em 1937, ele destina um capítulo para debater necessidade de reno-
vação do ensino histórico, ele fez parte de edição do 9º ano, da revista de Analles d’histoire
économique et sociale. O historiador francês Fernand Braudel no livro Combates pela His-
tória (1989) também nesta mesma perspectiva nos diz que o pesquisador tanto o professor
tem que o compromisso com a objetividade, com a sua utilidade e a natureza epistemológica
(social) do conhecimento a ser construído.
9
Podemos ter como exemplo o caso do Estado do Pará, a grade curricular do curso de História
da Universidade Federal do Pará (UFPA) que desde 1989 já incluía disciplinas como História
da Amazônia I, História da Amazônia II e a História da Amazônia III. Recentemente, no ano
de 2006 a criação do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST/
UFPA) que desenvolveram teses e dissertações no que se refere ao contexto amazônico e até
mesmo pan-amazônico.
10
Segundo as reflexões apresentadas por Gabriel Barros (2016) percebemos que em alguns mu-
nicípios do Estado do Pará a disciplina Estudos Amazônicos fica sobre a tutela do diretor da
escola, ela acaba servindo como moeda de troca para que os professores que concordem com
a diretriz determinada consigam a carga horária desta disciplina.

146 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


As orientações para as escolas públicas definem que “as disciplinas de
Estudos Amazônicos devem ser ministradas por professores licencia-
dos em Sociologia, em História e Geografia pertencentes ao quadro de
servidores da SEDUC.
No caso específico da Amazônia, havia para além de valorizar
a cultura local, algo bastante diverso, os professores queriam debater
temas considerados “caros” para a história recente da Amazônia, refiro-
-me aos processos de transformações ocorridas desde os anos 1960 que
modificou o espaço amazônico. A disciplina Estudos Amazônicos re-
presentava neste contexto um debate sobre as ações dos governos diante
deste território. A escrita da História do tempo presente na Amazônia
será que não dá conta deste debate? O papel desenvolvido pelas pes-
quisas universitárias não contemplaria a necessidade de aproximação
dos temas considerados “em abertos” ou que debatem as questões de
memória dos governos militares, agora bastante usado desde os anos
1990, quando ocorre o “boom” do uso de memórias dentro das pesqui-
sas históricas no Brasil.
Os professores de História no contexto de redemocratização tor-
naram-se sujeitos importantes na construção de materiais didáticos so-
bre a região amazônica, como destaca o professor José Ribamar11,
Eu era convidado para servir como instrutor, por
exemplo, com carga horária de 15 dias que era 150
horas, que era a disciplina de História, então a gente
preparava o material, nós tínhamos por exemplo,
5 ou 6 polos no Estado do Pará, então reuniam
os 5 professores, dependendo do número de polo
e nós mesmos produzíamos o nosso material de
pesquisa com aquilo que tínhamos naquele momento
(RIBAMAR, 2015).

O professor José Ribamar destaca, durante a entrevista, a neces-


sidade de trabalhar temas amazônicos no espaço escolar, ele argumenta
que havia uma dificuldade de dialogar sobre Amazônia, devido a carga
O professor José Ribamar é docente de História da SEDUC e participou da elaboração de um
11

dos livros didáticos a serem usados na disciplina Estudos Amazônicos durante o final dos
anos 1990 e início dos anos 2000.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 147


horária ser muito pouca e o conteúdo extenso da disciplina História. Era
necessário criar um debate específico para discutir as especificidades
amazônicas. Foi neste contexto, que em 1989, ele conhece o professor
Gerard Prost12, que tinha escrito um livro didático sobre a História das
Guianas e havia, recentemente, chegado ao Brasil. A sua experiência
com este livro didático sobre as Guianas o credenciava a escrever um
livro sobre a História do Pará durante os anos 1990. Ele foi assessorado
por um grupo de professores de História da Seduc/Pará.13
A escrita didática do livro produzido pelos historiadores apre-
senta a tese de que há dois momentos que marcam a história da região
amazônica: a civilização dos rios que está presente em nosso contexto de
colonização; e a civilização da estrada que demarca o projeto de desen-
volvimento pensado a partir dos anos 1960.14 Uma perspectiva de Histó-
ria sobre a construção de cidades, de lutas e de resistências ao projeto do
Estado brasileiro. O uso de fontes históricas demarca uma característica
deste livro didático regional como destaca a professora Edilena Sousa,
O nosso interesse era a contextualização no sentido de
ver que ao interagir com o aluno em um determinado
assunto, ele pudesse sair daquele assunto para o outro,
mas com uma experiência. Percebemos que isso os
documentos possibilitavam fazer. Se você pegar o
livro você vai ver, que ele vai dizer assim: no texto tal
de parágrafo de tanto a tanto, o autor fulano de tal,
ele relatou isso, isso, isso, destaca-se isso como você,
e sempre usando como você poderia? O que você
poderia? Entendeu? A gente ria muito no momento
de fazer o livro que dizia assim, o que você acha que

12
O professor Gerard Prost foi um pesquisador-bolsista do Museu paraense Emílio Goeldi
(MPEG).
13
O grupo de professores de História da Seduc do Estado do Pará são os seguintes: Maria de
Fátima, José de Ribamar, Edilena Silva e William Junior.
14
Percebemos que esta perspectiva abordada na capa dos livros da disciplina História do Pará
(1998), produzido pelo historiador, evidenciam essa lógica de ocupação da região amazônica.
Os professores de História demarcam a civilização temporal a partir destes momentos. A
Amazônia dos rios como o passado e o processo de conquista representando pela entrada da
cidade de Cametá, a partir da obra de Alexandre Rodrigues Ferreira, a tela foi publicada em
1897, e a civilização da estrada com a abertura da transamazônica, a vista aérea retirada de
edição publicado na revista VEJA em 1970 para demarcar o nosso tempo presente.

148 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


o autor estava pensando quando, era sempre essa
palavra, como você que o autor estava pensando
quando ele fez o livro? A gente não vai poder fazer isso,
eu sei lá! Eu não vivi a época! Eu não sei o que o autor
estava pensando será que ele não era um mercenário,
de repente está pensando coisas loucas e deixar que
o aluno, não! Vamos trabalhar não em uma história
fictícia, mas mostrando que o documento está ali, e
isso demorou (SOUSA, 2015).

Para os professores de História, o uso de variadas fontes histó-


ricas dava um novo dinamismo para a disciplina Estudos Amazônicos.
Para o contexto dos anos 1990, era um aspecto bastante inovador, haja
vista que a literatura didática de História ainda não tinha um olhar so-
bre o potencial que deveria ser dado ao se utilizar fontes históricas em
sala de aula. Diferente do que ocorria com o livro da professora Violeta
Loureiro (2000)15, ela possui outra narrativa didática para a disciplina
Estudos Amazônicos, o seu recorte temporal evidencia isto,
Porque é uma disciplina que você não tem como estudar
a Amazônia desde o período colonial e ainda mesclar
temas de meio ambiente, temas de História dentro
de um único programa. Tinha que selecionar itens
importantes, então os itens que foram considerados
importantes pegava basicamente o século XX. Então, a
ênfase foi no século XX e alguns temas ligados ao meio
ambiente, mas a questão ambiental amazônica foi se
agravando e a repercussão do que vinha acontecendo
e do que vem acontecendo com a Amazônia e tão
grande, no mundo e no Brasil, que acabou exigindo a
elaboração de dois livros (LOUREIRO, 2015).

A professora Violeta Loureiro (2000), apesar de construir crono-


logicamente os temas abordos dentro de uma perspectiva temporal, foca

A perspectiva abordada pelos dois autores de História da Amazônia, tem como pano de fun-
15

do a relação sociedade e natureza, pode ser visualizada na capa dos materiais didáticos produ-
zidos por Loureiro (2000). A capa do primeiro volume evidencia a região amazônica a partir
da floresta e dos rios para entender as peculiaridades da natureza. A capa do segundo volume
apresenta uma pintura corporal feita no corpo de uma criança indígena, ela quer demarcar ao
longo de sua narrativa a crítica ao modelo de desenvolvimento, que teve perdas e danos tanto
para a floresta amazônica como para as sociedades indígenas.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 149


nas ações do Estado sobre a região amazônica, que ocasionaram uma
história de perdas e danos ao longo dos séculos de conquista (LOU-
REIRO, 2002, p. 107). Havia a necessidade de colocar em evidência as
urgências do presente, ela admite que os acontecimentos recentes da
Amazônia são mais importantes que sua historicidade. Como se a his-
tória das cidades amazônicas, ao longo dos séculos de colonização, não
estivesse presente nas praças, nas ruas, nos monumentos, nos nomes de
placas de ruas etc. A História está em todo o lugar, e por isso, precisa ser
contada, problematizada e pensada.
A perspectiva social e econômica acaba se sobressaindo no livro
de Loureiro (2000a; 2000b), diante de uma narrativa que ela considerava
como ultrapassada didaticamente, como podemos perceber na apresen-
tação do seu livro. Ela desconhece o papel do Ensino de História para a
formação da cidadania, e a discussão em torno da relação passado-pre-
sente para a sociedade amazônica, vivenciado no final dos anos 1990.
O livro lançado em 2000 possui uma marca dentro da cultura
escolar no Estado do Pará, naquela época a professora Violeta Loureiro
possuía um papel de agente de Estado, a posição que ela ocupava no
contexto de criação da disciplina Estudos Amazônicos apresenta um
sentido sobre o pensar o espaço amazônico, ela fazia parte do grupo
político que durante os anos 1995 a 2002 pensam a discussão educa-
cional no estado do Pará. A evidência para esta tomada de decisão re-
flete-se no seu lugar social, ela era diretora de ensino da Secretaria de
Estado de Educação do Pará, quando seu cônjuge se torna Secretário de
Educação do Estado do Pará na gestão do ex-governador Almir Gabriel
(1932-2013).16 A professora Violeta Loureiro também participava como
conselheira dos debates em torno da educação no Conselho Estadual de
Educação do Pará (CEE/PA). Portanto, ela transitava em diversos espa-
ços dentro do cenário político e educacional paraense. Seja na Univer-
sidade Federal do Pará (UFPA), seja no Museu paraense Emílio Goeldi
(MPEG), seja na Secretaria de Estado de Educação na função de direto-
Almir José de Oliveira Gabriel foi um médico e político brasileiro. Entre outros cargos, foi
16

prefeito de Belém, senador e governador do Estado do Pará. No período de 1995 a 2002 ele foi
governador do Estado do Pará pelo PSDB.

150 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


ra de ensino, seja como conselheira do Conselho Estadual de Educação
do Pará (CEE/PA).
Ela tenta não dar uma ênfase ao campo de estudo dos historia-
dores no mercado editorial de livros didáticos. O exemplo que posso
evidenciar sobre essa questão é a rejeição do livro de Benedito Monteiro
(1924-2008)17,ele foi produzido nos anos 1990, e teve grande presença no
mercado editorial paraense após a saída do grupo político do PSDB do
poder. Podemos citar como exemplo a compra pelo governo do Estado
do Pará, em 2007, com a entrega massiva de exemplares durante a Feira
Pan-Amazônica do Livro. Havia um jogo de poder dentro do mercado
editorial paraense pela compra e distribuição de livros didáticos regionais.
No estado do Pará configurou-se uma disputa pelo currículo
desta disciplina regional materializado pelos livros didáticos, lançados
para uso na disciplina Estudos Amazônicos. A questão da interdiscipli-
naridade é um aspecto interessante a ser levado em consideração quan-
do se fala da disciplina regional Estudos Amazônicos. Podemos traba-
lhar diversos temas amazônicos dentro do currículo escolar,
Eu acho que a interdisciplinaridade abre um leque
de raciocínio para as pessoas que é verdadeiramente
fantástico, entende, nada como um estudo
interdisciplinar. Hoje em dia as ciências estão, mais do
que claro, que você não pode estudar a sociedade sem
estudar a natureza, você não pode estudar a natureza
sem estudar a ação do homem sobre a natureza, há
sempre uma interdisciplinaridade, uma coisa preciosa
(LOUREIRO, 2015).

O livro didático, produzido pelos professores de História da Secre-


taria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA), apresenta sua narrativa
didática pautada no conhecimento histórico, eles adquirem na graduação
em História feita no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. A entrevis-
ta18 do professor William Junior demonstra uma pouco essa relação,
17
Benedicto Wilfred Monteiro foi um escritor, jornalista, advogado e político brasileiro. O es-
crito Benedito Monteiro publica em 2006 o livro “História do Pará”.
18
Parte do debate apresentado neste artigo são proveniente das entrevistas feitas para a escrita
da dissertação de mestrado intitulada “Contando a História do Pará: a disciplina ‘Estudos

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 151


Não, ele já escrevia alguma coisa em português, ela
já falava e já escrevia alguma coisa, então 95% é o
trabalho dele, eu venho como um revisor pedagógico,
do Português, da questão histórica, da como eu poderia
dizer, da metodologia, da questão das referências, o
trabalho dele consistia assim, eu vou escrever sobre
a Cabanagem quem é o especialista em Belém, sobre
Cabanagem nas universidades federais? Eu vou
conversar com o especialista, eu vou pegar a obra
do especialista, quais são os grandes clássicos sobre
a Cabanagem? Eu vou atrás desses clássicos sobre a
Cabanagem (WILLIAM JR, 2015).

A fonte de pesquisa para a construção do livro didático de His-


tória do Pará era a essencial para a escrita desta narrativa didática so-
bre os Estudos Amazônicos. Os pesquisadores queriam apresentar uma
legitimidade acadêmica ao livro que estava sendo escrito para uso em
sala de aula. O Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) tornou-se uma
peça-chave fundamental dentro desse processo,
O Goeldi tem uma biblioteca que fica ali perto da
UFRA, uma biblioteca fantástica, eu não o acompanhei
nessa biblioteca, mas ele trabalhou lá, porque era assim
ele ficava 20 dias fazendo a pesquisa, quando ele já
tinha o texto ou o esboço do texto, aí eu entrava ele
dizia eu já fiz isso assim, já tinha 3 a 4 capítulos, aí nós
sentávamos e íamos para a sintonia fina, põe isso, tira
isso, tá com excesso, está compreensível o que você,
aqui não está, isso aqui é, mas e não mais (WILLIAM
JR, 2015).

Pois bem, diante do exposto, cabe responder à pergunta feita


pela professora Helenice Rocha: o que deve conter na disciplina Es-
tudos Amazônicos? O professor deve ser sensível às questões de nós
amazônidas. A questão da interdisciplinaridade tem que ser o ponto de
partida para responder esta questão. Um debate curricular pensado a
partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e na Base Nacio-
nal Curricular Comum (BNCC) que está no centro da discussão sobre
Amazônicos’ e seus livros didáticos (1990-2000)” que foi defendido na Universidade do Esta-
do do Rio de Janeiro em 2016.

152 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


a disciplina analisada neste artigo. Uma espécie de conversa dentro do
campo de pesquisa da área das humanidades e das ciências da natureza
sobre o espaço amazônico. Portanto, compreendo que não se pode falar
de Amazônia sem fazer referência ao meio ambiente, os rios, a flores-
ta, a diversidade social e cultural presente neste espaço, a relação ho-
mem-natureza em diversos contextos históricos, as transformações no
espaço amazônico. Conceitos chaves como a relação passado-presente e
a urgência dos temas presentes dentro da sociedade brasileira (desma-
tamento, perda da biodiversidade, desenvolvimento sustentável, relação
sociedade-natureza) são questões presentes dentro do campo discipli-
nar Estudos Amazônicos.

Considerações finais

A questão do aumento do desmatamento na floresta amazônica,


a perda da biodiversidade, a questão indígena e os usos do território,
a relação sociedade-natureza dentro do espaço amazônico são temas
urgentes e necessários para o debate da discussão regional no espaço
escolar. A região amazônica não pode ser vista como algo distante do
cidadão brasileiro, muito menos do estudante que vive e mora na região
amazônica. Fazemos parte deste território e precisamos refletir sobre
sua importância na sociedade brasileira.
Recontar a história desta disciplina escolar 23 anos depois dos deba-
tes ocorridos no interior da Secretaria do Estado de Educação do Pará (SE-
DUC/PA), bem como no Conselho Estadual de Educação (CEE/PA), lan-
ça luz sobre o movimento regionalista que teve destaque no final dos anos
1990 e início dos anos 2000 neste Estado. É um processo recente, ou seja,
não tão distante dos eventos que estamos analisando, mas que demonstra a
importância de debater os temas amazônicos no contexto atual.
No momento em que as sociedades indígenas lutam por seus
direitos, a questão da terra e de manter as suas tradições e costumes,
tem-se o dever de memória de conhecer a nossa historicidade tanto para
os amazônidas quanto para os brasileiros sobre a suas necessidades. A

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 153


disciplina Estudos Amazônicos tem ligações com o tempo presente,
mas também tem sua relação com o passado, destas sociedades que vi-
veram neste ambiente, ela tem a função social de construir uma leitura
para esta historicidade de lutas, de resistência, de adesões ou não ao
projeto de poder instituído. A disciplina Estudos Amazônicos não pode
ser uma camisa de força com discussões, com conceitos impostos por
determinada área de conhecimento.
Diante dos desafios postos a esta disciplina regional, que a dis-
cussão sobre a Amazônia não fique apenas nos noticiários negativos,
nas matérias jornalísticas sempre vendo as questões de desmatamen-
to, de queimadas e dos conflitos agrários. Eles são debates importantes,
mas a disciplina não é somente isso. A disciplina Estudos Amazônicos
não pode ficar dentro dos espaços escolares servindo de moeda de tro-
ca dentro dos sistemas de ensino. As perspectivas demonstram que a
Secretaria de Estado de Educação ou as prefeituras municipais cons-
truam uma política de formação de professores, voltados para debater
as relações sociais existentes no espaço amazônico. Os professores da
disciplina Estudos Amazônicos precisam fazer conexões entre o local,
nacional e o global. Há uma necessidade urgente de repensar os mode-
los enraizados de colonização para o espaço amazônico.

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154 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


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156 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


PARTE 4

HISTÓRIA LOCAL NO ENSINO DE HISTÓRIA

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 157


CAPÍTULO 8

Ensino de História no Ensino


Fundamental I na cidade de Xinguara/PA:
entre desafios, perspectivas docentes e
manuais didáticos

Candida Lisboa Belmiro1

O
presente artigo é parte da Monografia2, pesquisa realizada com
o objetivo analisar o Ensino de História no Ensino Fundamen-
tal I na cidade de Xinguara/PA, tomando como objeto de refle-
xões o livro didático de História, as narrativas dos professores, as fun-
damentações legais, os planos de ensino municipal desta disciplina etc.
Ao abordar o Ensino de História em âmbito geral da educação Básica
se faz necessário analisar o Ensino de História no Ensino Fundamental
menor, ou seja, o ensino fundamental I na rede pública do Município de
Xinguara, pois sabe-se que, a educação básica é um processo que se ini-
cia com a educação infantil, ensino fundamental I e II, ao ensino Médio.
E o Ensino de História faz parte desse desenvolvimento educacional;
e de acordo com Fonseca (2012), as políticas públicas que envolvem o
currículo de História vêm ganhando força, provocando mudanças cir-
cunstanciais no campo do ensino e aprendizagem.
Para compreendermos como está sendo desenvolvido o ensino nas
escolas de ensino fundamental I na cidade de Xinguara, em específico na
área de História, foi realizado um levantamento sobre a educação no mu-
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História PROFHISTÓRIA/UNI-
FESSPA.
2
Orientada pela Profa. Ma. Lucilvana Ferreira Barros no Curso de História - Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará - UNIFESSPA.

158 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


nicípio. Fez-se necessário também a realização de análises dos livros didá-
ticos de História da coleção Buriti do 2º ao 5º ano, utilizados por professo-
res da rede pública, sendo que, os dois últimos vêm sendo utilizados desde
2010/2018, a prática docente foi observada através de entrevistas realizadas
com 05 professoras de ensino fundamental I de duas escolas de Xinguara.

8.1. Conhecendo a realidade educacional das escolas públicas

O Município de Xinguara contava, em 2018, com um total de 21


escolas públicas e um número de 139 professores lotados nas turmas de
Ensino Fundamental I, destas 13 estão localizadas na zona urbana, as
quais possuem 102 professores atuando nos anos iniciais. Na zona rural
são oito (08) escolas com 37 professores regentes nas turmas de 1º ao 5º
ano do Ensino Fundamental I.3 O público atendido nesta modalidade
de ensino é de aproximadamente 3.963 alunos e está na faixa etária en-
tre seis (06) e 10 anos de idade como assegura a Lei nº 11.274, de 06 de
fevereiro de 2006 que alterou a LDB e ampliou o Ensino Fundamental
para nove anos de duração, estabelecendo que devam ser matriculadas
as crianças a partir de seis anos de idade completo ou a completar até
o início do ano letivo, ou seja, fixando a data de corte em 31 do mês
de março, e o prazo estabelecido para a implantação pelos sistemas de
educação foi até o ano de 2010. Com exceção de alguns que estão em
distorção idade-série chegando até os 14 anos, o município oferece o
ensino fundamental nos anos iniciais com duração de cinco anos.
O Ensino de História em Xinguara possui uma carga de duas ho-
ras aulas semanais, é ministrado pelo (a) professor (a) de Educação Ge-
ral, sendo responsáveis pelo ensino de várias áreas de conhecimento e
que em sua maioria são efetivados e possuem formação em Licenciatura
plena em Pedagogia, e outras áreas como Letras, Matemática, Geografia
e alguns fizeram complementação em Pedagogia, outros cursaram Pe-
dagogia e fizeram complementação em Letras, História.

Informações obtidas através da Diretora de Ensino do Ensino Fundamental I (SEMED) Se-


3

cretaria Municipal de Educação e Desporto de Xinguara.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 159


8.2 Perfil do ensino e professores do município

O processo educacional de Xinguara, iniciado no ano de 1977,


foi subsidiado pela rede Estadual de Ensino até o ano de 1997; mas a
partir de 1998, os profissionais que atuavam de 1ª a 8ª série, o atual en-
sino fundamental I e II, assim como as matrículas desse público passa-
ram a ser responsabilidade do município devido à municipalização do
ensino através do Convênio n° 013/1998, entre a Prefeitura Municipal
de Xinguara e a SEDUC4, no exercício do prefeito Itamar Rodrigues
Mendonça e vice Francisco Jacinto Brandão e do governador do estado
Almir Gabriel – primeiro mandato – , no qual promoveu o processo de
municipalização no estado. Segundo Alves (2011, p. 67), a municipali-
zação no estado, iniciou em 1996 e se estendeu até 2010, abrangendo as
administrações de três governadores.
De acordo com Alves, na década de 70 foi retomada a discussão
entorno da descentralização do ensino por meio da municipalização, o
que já havia sido sugerido por Anísio Teixeira na década de 50:
Devemos entender que a política de municipalização
do ensino fundamental no Estado do Pará deve ser
analisada levando-se em consideração o contexto
nacional de política educacional e a sua Legislação, as
quais apresentam forte tendência para descentralização
de vertente municipalizadora, o que também foi
observado no contexto político e na legislação do
Estado do Pará. Essas ideias de descentralização
e autonomia dos municípios se fizeram presentes
nas disputas entre os setores organizados com
os seus representantes na Constituinte Federal.
Consequentemente, isso se refletiu posteriormente, na
elaboração das constituições estaduais e entre elas a do
Pará (ALVES, 2011, p. 69).

Na última década do século XX, o ensino no município passou


por diversas mudanças, concomitantemente com a municipalização co-
meçava a ser discutida a volta das disciplinas de História e Geografia,

Secretaria de Educação do Estado do Pará


4

160 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


o que segundo Selva Guimarães Fonseca, se deve as “lutas pela demo-
cracia nos anos 1980” (FONSECA, 2010, p.1). No lugar da disciplina
de Estudos Sociais, que passou a ser ministrada no período da ditadura
militar no ensino primário de 1ª a 4ª série o atual ensino fundamental I,
entraria as disciplinas de História e Geografia, o que já estava previsto
nos PCNs implantados em 1997; inicialmente sua adesão assumiu um
carácter burocrático, na prática essa mudança foi ocorrendo aos poucos,
só no início do século XXI, com a chegada dos quites dos PCNs na rede
municipal de ensino e com formações continuadas a partir de grupos
de estudos em todas as áreas de conhecimento para os profissionais da
educação, que as disciplinas de História e geografia passaram a assumir
seus lugares nos currículos escolares.
No momento, os professores de Xinguara que compõem o qua-
dro do ensino fundamental I estão na faixa etária entre 25 e 55 anos de
idade e 05 a 30 anos de profissão, muitos já estão em processo de apo-
sentadoria, a maioria dos profissionais são efetivos através do concurso
público realizado em 24 de maio de 20095, na época grande números
dos professores que atuavam de 1º ao 5º ano ainda estavam em processo
de formação e para suprir a necessidade dos profissionais que, por falta
de oportunidade ainda só tinha a formação profissional em nível Médio
o Magistério, mas todos já estavam cursando Licenciatura em Pedago-
gia, Letras e Matemática, foram oferecidas 104 vagas para Pedagogia
e 192 para Magistério nível Médio, para atuarem na educação infantil
e anos iniciais do ensino fundamental, hoje há uma grande parte dos
professores dos anos iniciais e educação infantil efetivado, porém se en-
contra em situação vulnerável, pois 50% de seus salários são atribuídos
por gratificação ao nível superior.
Atualmente todos os professores são graduados, a maior parte
com pós-graduação em lato sensu e alguns já estão vendo possibilida-
des de realizar o mestrado, das formações citadas acima um professor
é Mestre em Educação e outra é Mestrando em Geografia Ambiental.

Concurso Público - Edital N.º 001/2009.


5

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 161


8.3 Desafios do ensino de História na cidade de Xinguara/PA: o discurso
das professoras de 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental I

Para Alberti, a “História oral é uma metodologia de pesquisa e de


constituição de fontes para o estudo da história contemporânea” (2008).
O indivíduo entrevistado pode ser um testemunho ou participante de
determinados acontecimentos, no caso em questão os entrevistados são
personagens fundamentais na construção do processo ensino-aprendi-
zagem, através de seus depoimentos poderemos compreender melhor o
processo do ensino de História no Município de Xinguara. Foram en-
trevistadas cinco (05) professoras que atuam no ensino fundamental I
de duas (02) escolas da zona urbana. Para essa análise serão usados os
seguintes códigos ao nos referirmos a cada uma das professoras entre-
vistadas: P16, 1º ano, P27, do 2º ano, P38, 3º ano, P49, 4º ano, P510, 5º ano.
As professoras entrevistadas fazem parte do processo educacio-
nal da rede pública, e possuem entre 20 e trinta anos de profissão, como
podem ser observadas suas formações variam entre Pedagogia, Letras e
Matemática. Uma das problemáticas questionada junto às professoras foi:
“como é ser um professor polivalente? De que modo você lida com as
diversas disciplinas que você ministra, levando em conta que a forma-
ção do professor de ensino fundamental I não é específica em cada uma
dessas áreas de conhecimento?” De acordo com as análises, ser um pro-
fessor polivalente exige muito do docente, pois ele transita entre várias
áreas de conhecimento sem ter formação específica em nenhuma delas.
Para as professoras entrevistadas, ser um profissional polivalente é um

6
Professora: M.S.M. Formada em Pedagogia, especialização em Psicopedagogia, trabalho há
30 anos na educação com as séries iniciais, sempre 1º ano.
7
Professora: M.G.S. Formada em Matemática pela a UEPA e “fiz uma complementação em
Pedagogia pela COMPAC, trabalho atualmente com o 4º Ano e com o 2º Ano. Estou há 20
anos na Educação”.
8
Professora: N.F.A. Formada em Letras, “tenho 22 anos de trabalho”.
9
Professora: D.A.P. “Sou pedagoga também sou formada em Letras, trabalho há 30 anos na
educação no ensino fundamental menor e maior”.
10
Professora: I.S.S.R. “Tenho 25 anos de trabalho na educação, trabalho com o 5º Ano, sou
formada em Pedagogia com especialização em Psicopedagogia”.

162 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


dos maiores desafios a serem superados nos anos iniciais do ensino fun-
damental, pois há muitos obstáculos a serem ultrapassados, nesse caso os
livros didáticos são observados pelas entrevistadas como ponto positivo,
e que essa modalidade exige muito do docente. Portanto, trabalhar com a
educação geral não é uma tarefa fácil, para ser um bom professor é preciso
de tempo para pesquisas e todas possui uma jornada de trabalho com 40h
semanais, como podemos observar na narrativa a seguir:
Ser um professor polivalente é uma tarefa muito difícil,
é um desafio que a gente enfrenta diariamente nas
escolas, porque não é tão simples pegar um conteúdo
sobre meio ambiente, por exemplo, e trabalhar em
várias disciplinas com esse conteúdo, você tem que
fazer um planejamento muito bem feito, e nem sempre
o professor tem tempo para planejar realmente para
dar uma aula interdisciplinar, então é um desafio, nem
sempre não é todo conteúdo que a gente consegue
trabalhar dessa forma (P4. D. A. P. 2018).

Outro exemplo:
Na maioria das vezes a gente usa mesmo é o livro, o
livro didático do aluno e aí explica as aulas e usa os
mapas, o que a gente acha necessário e recurso que a
gente encontra na escola. Professor polivalente não é
fácil, porque você tem que ter um pouco de domínio
em todas as disciplinas e a gente tenta fazer o possível
(P,5, I.S.S.R. 2018).

Como podemos observar, existe certa dificuldade por parte das


professoras entrevistadas para o trabalho com a disciplina de História, o
que deve ser compreendido pela própria estrutura da modalidade de en-
sino constituído pelas várias áreas de conhecimento como obrigatórias
para um único profissional, a modalidade polivalente. Assim, torna-se
difícil para uma única professora ter formação em todas as disciplinas
para o exercício docente, especialmente com uma carga-horária que ex-
trapola a possibilidade de qualificação docente e as más estruturas da
educação pública no Brasil, em especial no Sul do Pará.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 163


8.4 Planejamento e materiais didáticos utilizados nas escolas municipais
de Xinguara

O Município não possui uma Matriz curricular própria para o


Ensino de História, a educação em geral se baseia pelas legislações vi-
gentes, federais, estaduais e municipais, Constituição Federal, Consti-
tuição Estadual, LDBN, PCNs, Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Básica, Regime Jurídico Único. E para os três primeiros anos
iniciais do Ensino Fundamental I, desde 2013, através do programa
de alfabetização na idade certa PNAIC, são assegurados os direitos de
aprendizagem em todas as áreas de conhecimento com formações para
os profissionais que atuam com turmas de 1º ao 3º ano.
O planejamento anual geralmente é construído a partir da aqui-
sição dos livros didáticos em períodos de um triênio, no início do ano
letivo, com a colaboração dos coordenadores de ensino de cada escola e
professores municipais de cada turma; após esse período, nos anos sub-
sequentes na primeira semana do ano letivo em cada escola, os profes-
sores se sentam com coordenadores de ensino para verem os conteúdos
trabalhados durante o ano e rever o planejamento. E o planejamento
individual é organizado em forma de rotinas semanais; cada professor
desenvolve sua rotina de acordo com sua disponibilidade nos horários
destinados as horas atividades, que são 04h40min por semana. As falas
relatadas a seguir são as respostas a este questionamento: De que forma
ocorre o planejamento anual e bimestral no município para a disciplina
de História? Como você desenvolve o seu planejamento?
1 – O planejamento anual geralmente se reúne no início
do ano letivo e pega os conteúdos que estão programados
dos anos anteriores, que a grade curricular e vai elabo-
rando as aulas de acordo com o livro didático, seguindo
o livro didático, a gente não costuma muito incorporar
coisas novas, é só seguindo mesmo o livro didático (P4.
D. A. P., 2018).

E
2 – Esse planejamento anual é feito assim, junta todos
os professores em uma determinada escola e cada um
fica com uma disciplina e ai vai discutindo os assuntos

164 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


que a gente ver que é mais necessário para crianças, e ai
faz o planejamento anual e aqui na escola a gente faz a
rotina é mais ou menos assim. Na realidade a gente faz
uma rotina semanal, cada dia da semana tem aquilo
que você vai trabalhar [...].” (P,5, I.S.S.R., 2018).

Nas escolas municipais o material mais acessível é o livro didáti-


co, Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, distribuído para os
alunos no início do ano letivo, para as turmas de 1º ano são adquiridos
somente os de Língua Portuguesa e Matemática, o que para a P1 como
não possui livro para a turma acaba dificultando o trabalho, é preciso
pesquisar em diversas fontes inclusive em outros livros como o do 2º
ano. Quando perguntamos as professoras durante as entrevistas, “O que
você pensa sobre o livro didático? A sua turma possui livro didático
na área de História?” Você gostaria de ter? Seria mais interessante se
tivessem? Ou você não sente falta desse instrumento de trabalho? Obti-
vemos as seguintes respostas:
Sim, eu sinto falta do livro porque seria mais
importante para trabalhar com eles, seria mais fácil
o desenvolvimento porque já vem com os conteúdos
todos programados, então tudo seria mais fácil para
gente, mas como não existe o livro do primeiro ano
de História para as crianças então nós trabalhamos
através de pesquisas (P1, M.S.M., 2018).

Durante as entrevistas notamos que os professores que utilizam


os livros didáticos têm conhecimento de que há pontos positivos e nega-
tivos que envolvem essas questões. Mas que é uma problemática que está
além de suas possibilidades, eles fazem o possível para desenvolver os
conteúdos das disciplinas nas quais não possuem formação específica.
Quando conversamos sobre a questão a seguir: e o Livro didático, o que
pensa sobre ele? Como você o utiliza? Os conteúdos presentes nele são
suficientes? Obtivemos respostas semelhantes para a mesma questão:
Bom o livro didático é importante pra nós até por
que assim não temos muitos recursos mesmo pra ser
trabalhado, a gente não trabalha com muitos recursos
mesmo, ele às vezes não consegue prender muito a

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 165


atenção dos alunos, porque conta uma realidade de
outros locais às vezes talvez seja histórias que não está
de acordo com a realidade do aluno com sua faixa
etária, às vezes eles não interessam, mas eu utilizo
bastante o livro, porque assim é um apoio que a gente
tem, os conteúdos que estão presentes nele é isso
que eu estou falando muitos não chegam a chamar a
atenção do aluno, mas a agente vai trabalhando como
pode (P2, M.G.S., 2018).

E
O livro didático, eu penso que ele deveria ser um livro
que fosse mais a realidade da gente, eu utilizo, como
eu utilizo ele, eu utilizo ele mais como eu falei, eu faço
muita pesquisa e vou me adequando a ele, porque ele
vem muito fora da nossa realidade e ele não é suficiente,
o professor que ficar preso só no livro didático é uma
pena por que ele não é suficiente para que a gente
possa tá trabalhando não só a História como as outras
disciplinas (P3, N.F.A., 2018).
As professoras P2 e P3 afirmam que gostariam que os livros didá-
ticos trouxessem mais a realidade local, assim iria contribui de forma mais
eficaz com o trabalho docente; devido aos conteúdos apresentarem outra
realidade, os alunos não conseguem aprofundar seus conhecimentos, nessa
perspectiva pode ser observada uma angústia por parte das docentes para
tentar suprir as lacunas deixadas pelos textos didáticos, acontece que esta
disciplina exige do professor habilidades específicas, as quais, a partir da
pesquisa realizada, não podem ser cobradas. O que indica como necessário
investimento em políticas públicas direcionadas a formações continuadas
para os professores (as) nas diferentes áreas de conhecimento.
Estas observações nos remetem mais uma vez ao autor Mu-
nakata (2007), no que se refere às reflexões acerca dos livros escolares e
professores; segundo o autor, os professores são acusados de não terem
formação adequada, mas devemos levar em consideração, a partir das
entrevistas realizadas, outras demandas da realidade docente na educa-
ção básica: má infraestrutura das escolas, carga horária alta de trabalho,
desvalorização da profissão docente, etc. o que se torna, de certa manei-
ra, inviável um trabalho mais profícuo em sala de aula. Assim, o livro

166 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


didático permanece como o material mais importante no processo de
ensino-aprendizagem, como podemos observar na narrativa abaixo:
O livro didático é o único instrumento que a gente
tem para trabalhar história, a gente só trabalha história
baseada nesses livros. É vago, o ensino de história
acaba sendo assim. Vago porque o que nós temos é o
livro didático e ele é importante porque se não tivesse
ele seria pior ainda, mas ele traz pouco da história
desses povos, eu acho que ele teria que falar mais da
realidade dessas comunidades (P4. D. A. P., 2018).

E
A gente pede para o aluno fazer a leitura do livro, cada
um ler um trechinho e a gente discute, faz o debate
sobre o assunto daquele dia, do tema da aula e assim
responde as atividades. Talvez não, mas também
como a gente não tem tanto tempo e o tempo é muito
corrido, por que tem muita intervenção na sala de aula,
então talvez os conteúdos não sejam suficientes, mas é
o que a gente pode fazer, que o tempo é muito pouco
para trabalhar todos os conteúdos, e ainda a gente não
consegue nem ver o conteúdo que tem no livro para
chegar ao final, as vezes fica sem a gente poder chegar
ao final do livro (P,5, I.S.S.R., 2018).

Durante a entrevista ao perguntar a P4, e a P5, sobre seu ponto


de vista em relação à problemática sobre o Livro didático, também é vi-
sível à preocupação em conseguir atender as necessidades educacionais
dos alunos em relação às questões étnico-raciais, o processo de coloni-
zação, a dificuldade na utilização de fontes em conseguir diversificar as
metodologias das aulas.

8.5 Livros didáticos de história: uma abordagem teórica

O livro didático tem sido comumente tomado como fonte de in-


vestigação, em especial no campo da História, segundo Choppin, nas
últimas décadas houve um interesse crescente por parte dos historiado-
res relacionado às diversas informações contidas nos manuais escola-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 167


res, e que, essas amplas funções desse objeto de pesquisa só podem ser
percebidas quando são olhadas a partir do lugar social que o sujeito está
ocupando em um determinado momento da vida, em relação ao con-
texto educacional, bem como as pesquisas são determinadas de acordo
com o papel desempenhado por cada um desses sujeitos na sociedade,
conforme indica Choppin:
os manuais representam para os historiadores uma
fonte privilegiada, seja qual for o interesse por questões
relativas à educação, à cultura ou às mentalidades, à
linguagem às ciências... ou ainda à economia do livro,
às técnicas de impressão ou à semiologia da imagem.
O manual é, realmente, um objeto complexo dotado
de múltiplas funções, a maioria, aliás, totalmente
desapercebidas aos olhos dos contemporâneos. É
fascinante - até mesmo inquietante - constatar que cada
um de nós tem um olhar parcial e parcializado sobre
o manual: depende da posição que nós ocupamos,
em um dado momento de nossa vida, no contexto
educativo; definitivamente, nós só percebemos do
livro de classe o que nosso próprio papel na sociedade
(aluno, professor, pais do aluno, editor, responsável
político, religioso, sindical ou associativo, ou simples
eleitor), nos instiga a ali pesquisá-lo (CHOPPIN, 2002,
p. 13-14).

Para Moreno (2014), os livros didáticos, como um produto que


também possui história “refletem valores, conflitos e limites do período
de sua produção e utilização. A propagação deste objeto cultural por
vários países faz dele algo reconhecível, familiar, tanto por seu aspecto
material quanto por seu conteúdo”.
De acordo com Choppin (2004), o livro didático desempenha
“quatro funções essenciais, que pode variar consideravelmente segundo
o ambiente sociocultural, à época, as disciplinas, os níveis de ensino, os
métodos as formas de utilização”. Para o autor, o livro funciona como
“tradução” do programa curricular, guia metodológico, veículo de dis-
seminação da “língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes”
e devido à diversidade de documentos contido nesse material didático

168 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


poderá contribuir para o desenvolvimento do “espírito crítico do aluno”.
Sendo que este última depende do ambiente escolar e de elementos pe-
dagógicos que visam oferecer às crianças uma educação que contribua
com o desenvolvimento pessoal e autônomo. Para que isso ocorra de-
penderá também da formação dos professores. Lembrando que o livro
didático, na atualidade, não está sozinho; ele faz parte de um conjunto
de instrumentos utilizados para construção da educação, conforme po-
demos observar nas suas funções a seguir:
1. Função referencial, também chamada de curricular
ou programática, desde que existam programas de
ensino: o livro didático é então apenas a fiel tradução
do programa ou, quando se exerce o livre jogo da
concorrência, uma de suas possíveis interpretações
[...].
2. Função instrumental: o livro didático põe
em prática métodos de aprendizagem, propõe
exercícios ou atividades que, segundo o contexto,
visam a facilitar a memorização dos conhecimentos,
favorecer a aquisição de competências disciplinares ou
transversais, a apropriação de habilidades, de métodos
de análise ou de resolução de problemas, etc.
3. Função ideológica e cultural: é a função mais
antiga. A partir do século XIX, com a constituição
dos estados nacionais e com o desenvolvimento, nesse
contexto, dos principais sistemas educativos, o livro
didático se afirmou como um dos vetores essenciais da
língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes.
Instrumento privilegiado de construção de identidade,
geralmente ele é reconhecido, assim como a moeda e
a bandeira, como um símbolo da soberania nacional e,
nesse sentido, assume um importante papel político.
4. Função documental: acredita-se que o livro
didático pode fornecer, sem que sua leitura seja
dirigida, um conjunto de documentos textuais ou
icônicos, cuja observação ou confrontação podem
vir a desenvolver o espírito crítico do aluno. [...]
(CHOPPIN, 2004, p. 553).

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 169


Bittencourt (2004) destaca que o livro didático é um produto e
que por assim ser, sofre interferência de vários sujeitos durante a sua
produção e, além disso, observa também a versatilidade do papel desem-
penhado por ele dentro da escola; alunos e professores o utilizam como
ferramenta na construção do ensino/aprendizagem, sua utilização é di-
versificada, podendo ser transformado de acordo com cada realidade,
adequando-o a necessidade do ensino. Por mais que o livro didático seja
um veículo à serviço da ideologia e de cunho econômico, não devemos
esquecer a importância do professor, o qual poderá lhe atribuir muitas
possibilidades de trabalho, pois cabe a ele decidir as formas de uso que
melhor contribuirá para o processo educacional:
é necessário enfatizar que o livro didático possui
vários sujeitos em seu processo de elaboração e passa
pela intervenção de professores e alunos que realizam
práticas diferentes de leitura e de trabalho escolar. Os
usos que professores e alunos fazem do livro didático são
variados e podem transformar esse veículo ideológico e
fonte de lucro das editoras em instrumento de trabalho
mais eficiente e adequado às necessidades de um ensino
autônomo (BITTENCOURT, 2004, p. 73).
Munakata (2012) em seu artigo “O livro didático: Alguns temas de
pesquisa”, traça um panorama sobre o aumento das pesquisas referentes
aos livros didáticos; segundo o autor, no Brasil essa iniciativa é represen-
tada pela a tese de doutorado de Circe Bittencourt (1993) que:
representou o impulso inicial da vasta produção das
décadas seguintes, na medida em que apresentou
um conjunto de temas e abordagens que o objeto
comportava para além da denúncia da ideologia.
A tese, publicada tardiamente como livro em 2008
(BITTENCOURT, 2008), tratava da questão do livro
didático como política pública educacional, mas
também enveredava em questões como a produção
editorial desse objeto para o mercado, a sua inserção
na escola como dispositivo constitutivo do saber e
da cultura escolar, a sua importância como suporte
de disciplinas escolares (em particular, de história
ensinada) e os usos e as práticas que incidem sobre
esse material (MUNAKATA, 2012, p. 183).

170 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Para Moreno (2014), os livros didáticos são produtos que tam-
bém possuem história “refletem valores, conflitos e limites do período
de sua produção e utilização. A propagação deste objeto cultural por
vários países faz dele algo reconhecível, familiar, tanto por seu aspecto
material quanto por seu conteúdo”.

8.6 Análise do livro de história do 2º ano: festas e tradições

No tópico a seguir faremos uma análise das representações acer-


ca das festas e tradições brasileiras apresentadas no livro didático de
História do segundo ano, buscando refletir sobre como as manifesta-
ções culturais no que se refere às festas são propostas aos docentes e
discentes para esta faixa etária de aprendizagem. A abertura da última
unidade deste livro, abordam as festas e tradições brasileiras, trazendo
uma representação da cultura deste país a partir de uma imagem folclo-
rizada e atemporal, valorizando as festas consideradas típicas de algu-
mas regiões brasileiras, na busca da reafirmação da identidade nacional.
Como afirma Albuquerque Júnior (2007) nos “discursos em tor-
no da cultura e da produção cultural é recorrente o uso da noção de
resgate”, pois:
É comum nestes discursos traçar-se a imagem de um
tempo mítico onde tudo era idêntico a si mesmo, onde
a tradição, outra noção usada e abusada, prevalecia.
Então surge o tempo da queda, onde a influência
deletéria vinda do exterior, normalmente nomeada hoje
de globalização, mercado, influência da vida urbana,
veio desorganizar, destruir, alterar estas tradições, que
surgem sempre naturalizadas, já que não pensadas
como inventadas historicamente (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2007, p. 16).

Nesta mesma perspectiva, Hobsbawm (1997) em A invenção das


tradições afirma que, “Muitas vezes, “tradições” que parecem ou são
consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”.
O objetivo e característica da tradição são a invariabilidade e imposição
de práticas fixas elaboradas por normas formais:

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 171


[...] O termo tradição inventada é utilizado em um
sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto
as tradições realmente inventadas, construídas e
formalmente institucionalizadas, quanto as que
surgiram de maneira mais difícil de localizar num
período limitado e determinado de tempo – às vezes
coisa de poucos anos apenas – e se estabelecem com
enorme rapidez [...] Por “tradição inventada” entende-
se um conjunto de práticas, normalmente reguladas
por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas,
de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar
certos valores e normas de comportamento através
da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade, em relação ao passado. Aliás, sempre
que possível, tenta-se estabelecer uma continuidade
com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM,
1997, p.09).

As tradições estão sempre em conexão com o passado que possi-


bilita as novas formas de existência, para Albuquerque Júnior (2007)
esse contato é um meio necessário para a construção da identidade, a
cultura está sendo continuamente elaborada pelos os sujeitos, sendo
estes os responsáveis por confrontá-la e construir um novo propósito
a partir dessa transformação. Para compreendermos melhor toda essa
abordagem acerca da cultura, Chartier (1995) afirma que as culturas
caracterizadas como mais populares tendem a ser sufocadas, contudo,
continuam sempre se reinventando, se elaborando e renascendo, o que
nos possibilita interpretar como ocorrem as diversas manifestações cul-
turais dos diferentes povos que constituem a nação brasileira:
o destino historiográfico da cultura popular é, portanto
ser sempre abafada, recalcada, arrasada, e, ao mesmo
tempo, sempre renascer das cinzas. Isto indica, sem
dúvida, que o verdadeiro problema não é tanto datar
seu desaparecimento, supostamente irremediável, e
sim reconsiderar, para cada época como se elaboram
as relações complexas entre formas impostas, mais ou
menos constrangedoras e imperativas, e identidades
afirmadas, mais ou menos desenvolvidas ou reprimidas
(CHARTIER, 1995, p. 181).

172 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Os elementos que envolvem as tradições estão entrelaçados
às festas populares, sejam elas de cunho religioso ou não, o que
dificulta saber o que é tradição, religioso ou popular. Hobsbawm
(1997) diz que a utilização desses elementos é fundamental para a
invenção de novas tradições:
Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer
sociedade, um amplo repertório destes elementos;
e sempre há uma linguagem elaborada, composta
de práticas e comunicações simbólicas. Às vezes, as
novas tradições podiam ser prontamente enxertadas
nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com
empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos
do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais -
religião e pompa principesca, folclore e maçonaria que,
por sua vez, é uma tradição inventada mais antiga, de
grande poder simbólico (HOBSBAWM, 1997, p. 14).
O que pode ser percebido é que as festas locais são abordadas
de forma superficial sem serem problematizadas junto às crianças, os
eventos locais devem ser abordados de forma que as crianças possam
ter conhecimento e compreensão das questões políticas, socioculturais,
e econômicos em que estão envolvidos, no município não têm a tra-
dicional festa de carnaval, mas a cavalgada é esperada pela população
com tamanho entusiasmo, assim como a festa agropecuária devem ser
trabalhados juntos a outros temas da história local.
Como podemos constatar, o trabalho com a História Local e a
História Regional possuem datas específicas para acontecer no Ensino
de História no Fundamental I no município, e quando ocorrem nota-se
uma centralidade em uma história de cunho positivista (cronológica,
factual, biográfica, heroicizante, descritiva, etc.), enquanto que, a segun-
da está voltada para a cultura indígena, talvez porque as duas são traba-
lhadas no segundo bimestre durante os meses de abril e maio com as
datas comemorativas Dia do Índio 19 de abril, descobrimento do Brasil
22 de abril, 1º de maio Dia do Trabalho e 13 de maio Aniversário de
Xinguara e abolição da escravatura, mas por coincidirem esta última
(abolição da escravatura) se resume em pinturas de imagens com pes-
soas negras em condição de escravos.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 173


Ao analisarmos os planos de Ensino que compreendem os triê-
nios 2010/2012 e 2013/2015 nota-se que as falas das professoras estão
relacionadas aos planejamentos anuais elaborados e executados durante
esse período os quais privilegiam as comemorações cívicas do municí-
pio. Não estamos aqui para fazer juízo de valores, dizer o que está corre-
to ou não, o que propomos é que juntos possamos fazer reflexões sobre
o Ensino de História Local e Regional dentro de outras perspectivas, em
que professores e alunos possam sentir-se parte desta história, sujeitos
ativos na construção histórica de nosso Município e Região.
O que de acordo com Barros e Santos (2017) “ao refletir acerca
da História Regional e Local no ensino de História neste município, a
partir do diálogo sobre Migração para o Sul e Sudeste do Pará, pode-
-se demonstrar para os alunos que eles e seus familiares fazem parte da
História do município e região”, propomos que as questões regionais e
locais comecem a ser estudadas a partir da “participação popular”, sujei-
to advindos de vários outros estados brasileiros e que contribuíram na
formação desta região.

8.7 Representações étnico-raciais na Coleção Buriti

Buscando atender o edital do PNLD, alguns manuais didáticos


trazem textos, capítulos, imagens, atividades etc., com discussões per-
tinentes as representações étnico-raciais em sua composição, especial-
mente após a aprovação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, contudo, em
alguns livros e materiais didáticos estas representações são utilizadas
por formalidade, ou de forma problemática. A cultura afro-brasileira é
tratada no livro do 3º ano, na Unidade 4, no tópico em que é abordado
à música indígena, europeia e africana, nos temas seguintes são tratados
os diferentes estilos musicais do Brasil.
As formas de abordagem deixam clara a identidade eurocêntrica
onde ocorre a alteridade, o Outro e a sua cultura, é o diferente, neste caso
o diferente quase sempre se remete à cultura indígena, subtendendo-se
como exótica. O problema é que nem todos os professores conseguem ir

174 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


além do que é proposto nos livros didáticos, não por incompetência ou
falta de profissionalismo, mas por não ter formação específica nesta área
de conhecimento e acabam reproduzindo inconscientemente o “senso
comum” que está impregnado na sociedade em que as diferenças foram
naturalizadas através da “democracia racial”, ou só transmite as informa-
ções explícitas do material didático utilizado, o qual na maioria das vezes
precisa ser questionado e problematizado para que se transforme em fer-
ramentas para a produção do conhecimento. Conforme afirma Silva:
O texto curricular - o livro didático e paradidático,
as lições orais, as orientações curriculares oficiais, os
rituais escolares, as datas festivas e comemorativas -
está recheado de narrativas nacionais, étnicas e raciais.
Em geral, essas narrativas celebram os mitos de origem
nacional, confirmam o privilégio das identidades
dominadas como exóticas ou folclóricas. Em termos
de representação racial, o texto curricular conserva,
de forma evidente, as marcas da herança colonial. O
currículo é, sem dúvida, entre outras coisas, um texto
racial. A questão da raça e da etnia não é simplesmente
um “tema transversal”: ela é uma questão central de
conhecimento, poder e identidade. O conhecimento
sobre raça e etnia incorporado no currículo não pode ser
separado daquilo que as crianças e os jovens se tornarão
como saberes sociais. A questão torna-se, então,
como desconstruir o texto racial do currículo, como
questionar as narrativas hegemônicas de identidade que
constituem o currículo? (SILVA, 2011, pp. 101-102).

Entre os quatro volumes da coleção, o livro do 4º ano é o que


traz o maior número de informação sobre a questão étnico-racial; em
todas as unidades é possível discutir temas relacionados aos indíge-
nas e aos afrodescendentes, dando oportunidade para o professor tra-
balhar as contribuições dos diferentes povos na formação da nação
brasileira e a diversidade cultural existente no país de forma contex-
tualizada ao longo do ano letivo, sem dar ênfase em datas específicas,
correndo o risco de reafirmar estereótipos.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 175


No entanto, na seção “O que você aprendeu” é apresentado uma
imagem de crianças indígenas no estado do Mato Grosso, brincando de
salto com varas, atividade referente à imagem. Nesta representação te-
mos a retomada da associação da infância e brincadeiras indígenas a algo
artesanal, natural ou preso a práticas de experiências do passado, onde
as representações indígenas parecem sempre estar distante do presente
em específico o mundo material e tecnológico contemporâneo. Segundo
Santos et.al. (2017), existe um padrão bibliográfico específico para repre-
sentar os povos indígenas, isso colabora para que estes povos e sua cultura
sejam compreendidos fora da realidade, como podemos observar.
Dessa forma, temos um quadro geral já destacado pela
bibliografia sobre o tema: há um padrão que legitima e
oficializa esse tipo de conhecimento acerca da temática
indígena na escola, ainda existe uma mentalidade
sobre os povos indígenas que os representa por meio
de estereótipos, imagens ligadas apenas ao passado
colonial; os índios são tidos como sujeitos que não
fazem parte da sociedade nacional; desprovidos de sua
pluralidade cultural, como se todos os índios do Brasil
fossem um só, iguais; os povos indígenas são exóticos,
excêntricos e, não raro, comparados até com animais
(SANTOS, et. Al, 2017 pp. 674-175).

No capítulo 3, “Os povos que vieram da África” temos mais um


conjunto de reflexões sobre a História e formas de vida dos povos africa-
nos no Brasil. Assim como os povos indígenas os povos afro-brasileiros,
africanos e a África como continente são representados fora da con-
temporaneidade tanto nas produções textuais como pelas imagens. Esta
é outra realidade do Ensino de História. Ao serem questionadas sobre
como trabalhavam as diferentes culturas, as professoras dizem trabalhar
na maioria das vezes no dia do índio e da consciência negra. Algumas
através de projetos; outras de acordo com o que aparecem no livro didá-
tico. O que para Silva (2011), corre o risco de folclorizar ou de se tornar
exótica as diversidades culturais. Com base nessa reflexão e nas falas
das P5, e P3, devemos pesquisar em várias fontes para conseguirmos
preencher as lacunas deixadas pelos livros didáticos suprindo assim, as
necessidades de aprendizagem dos alunos:

176 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


A gente sempre usa, por exemplo, a Indígena a gente
usa mais trabalhar com textos e às vezes caracteriza o
aluno, algumas coisas assim. Agora a Africana, tirando
mesmo os textos dos livros que a gente encontra alguma
pesquisa que a gente faz na internet, não trabalho de
outra forma não, mais é sobre pesquisa mesmo essas
Histórias aí (P5, I.S.S.R, 2018).

E
É como eu falei também, isso aí é mais através das
pesquisas, através da arte que a gente vai trabalhar a
pintura né, nós vamos trabalhar e a gente vai fazendo,
trabalhando de forma interdisciplinar de história com
as outras disciplinas, através do teatro, através das
pesquisas que a gente pede para que eles possam tá
fazendo, das entrevistas, através também das imagens
da leitura de imagens, então tudo isso é trabalhada,
todas essas culturas que faz parte da nossa História
(P3, N.F.A., 2018).

Para Bittencourt (2009), a disciplina de História tem por fina-


lidade “formar um cidadão comum que necessita de ferramentas inte-
lectuais variadas para situar-se na sociedade e compreender o mundo
físico e social em que vive”. Segundo a autora, a “representação social ul-
trapassa essa atividade de conhecimento prático e preenche igualmente
uma função de comunicação”. Permitindo que as pessoas se insiram nos
grupos e assim possam promover trocas às quais intervêm na “definição
individual e social, na forma pela qual os grupos se expressa”.
Para o Ensino de História deve ser traçado como objetivo princi-
pal promover aos alunos a motivação em busca do conhecimento, pois
a história é uma disciplina que se baseia a partir de questionamentos,
promovendo através da dúvida a reflexão, dando ao professor abertura
para propor análises que promovam aos alunos reflexões críticas rela-
cionadas aos acontecimentos que permeiam o passado e o presente, en-
volvendo-os nos conteúdos trabalhados.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 177


Para Schmidt e Cainelli (2009), as experiências dos alunos devem
ser consideradas, isso possibilita melhor compreensão para o Ensino de
História, segundo as autoras; o diálogo que permite reflexões temporais
favorece a construção da consciência histórica, formando sujeitos aptos
a intervir e transformar a realidade em que vive. Sendo assim a pro-
blematização é o ponto de partida para a produção do conhecimento
histórico:
Em primeiro lugar, significa partir do pressuposto de
que ensinar História é constituir um diálogo entre o
presente e o passado, e não reproduzir conhecimentos
neutros e acabados sobre fatos que ocorreram em
outras sociedades e outras épocas. [...] problematizar
é, também, construir uma problemática relativa ao que
se passou com base em um objetivo ou um conteúdo
que está sendo estudado, tendo como referência
o cotidiano e a realidade presente dos alunos e do
professor (SCHMIDT; CAINELLI, 2009, p. 56).

Nessa perspectiva, Silva e Porto (2012) chamam a atenção para


esse ponto da discussão, que para os autores as “reflexões sobre o pre-
conceito e a discriminação sofrida pelos negros e afrodescendentes du-
rante o período colonial brasileiro podem ser extremamente ricos na
formação de valores nas aulas de História”. Através desta temática, os
discentes poderão problematizar em sala de aula como as representa-
ções sociais foram construídas ao longo da história:
O estudante pode ser convidado a discutir com sua turma
as relações de continuidade e rupturas, semelhanças e di-
ferenças entre o passado colonial brasileiro e o presente.
Neste contexto, pode se estabelecer um rico aprendiza-
do de atitudes de defesa de igualdade entre os homens e
combate ao preconceito e à discriminação ética e social
(SILVA; PORTO, 2012, p. 39).

Contribuindo com a análise, Lima e Villacorta (2015) lembram


que “o livro didático de História traz consigo diversas representações
imagéticas que são selecionadas e permeadas por diversas intenções, ne-
gociações, e concepções entre o (a)s confeccionadore (a)s do livro didá-
tico de História.” Portanto, podemos entender que os textos e imagens

178 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


utilizados nos materiais didáticos são carregados de intencionalidade, e
os professores (as) devem buscar sempre confrontá-las para que possa-
mos contribuir para a formação emancipadora de sujeitos conscientes
de sua produção histórica. Os professores são elos fundamentais para
romper com essa corrente ideológica que permeiam os livros didáticos
usando-o para problematizar e produzir conhecimento. Para Munanga
(2005) este tema interessa a todos os alunos, pois:
O resgate da memória coletiva e da história da
comunidade negra não interessa apenas aos alunos de
ascendência negra. Interessa também aos alunos de
outras ascendências étnicas, principalmente branca,
pois ao receber uma educação envenenada pelos
preconceitos, eles também tiveram suas estruturas
psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não
pertence somente aos negros. Ela pertence a todos,
tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos
quotidianamente é fruto de todos os segmentos
étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais
se desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo
na formação da riqueza econômica e social e da
identidade nacional (MUNANGA, 2005, p. 16).

Chartier (1991) observa a representação da relação de poder a


partir do conceito de liberdade o qual é interpretado de acordo com o
lugar social ocupado por cada indivíduo e a época em que ocorre cada
acontecimento, pois as representações e as apropriações culturais não
estão desconectadas das produções culturais dos grupos sociais.
Fundada sobre o primado da liberdade do sujeito,
pensado como livre de toda e qualquer determinação,
e privilegiando a oferta de ideias e a parte refletida
da ação, uma tal posição obstina-se numa dupla
importância: ignora as exigências não sabidas pelos
indivíduos e que no entanto regulam — aquém dos
pensamentos claros e muitas vezes apesar deles — as
representações e as ações; supõe uma eficácia própria
às ideias e aos discursos, separados das formas que
os comunicam, destacados das práticas que, ao se
apropriarem deles, os investem de significações plurais
e concorrentes. (CHARTIER, 1991, p.188)

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 179


Uma questão positiva a ser elencado em relação ao livro didático
da coleção Buriti 4º ano (2014), é a resistência à escravidão mesmo sen-
do abordada de forma rápida já representa um avanço para as questões
étnico-raciais, a partir dessa pequena inserção ao tema, alunos e profes-
sores podem buscar novas fontes de pesquisas para melhor compreen-
der as diversas formas de resistência utilizadas pelos povos africanos
trazidos para serem escravizados durante o período colonial.

Considerações finais

As análises da prática docente através de diálogos com professo-


ras do município trouxeram-nos a percepção do quão está sendo difícil
para professoras e professores do ensino fundamental I o trabalho com
esta disciplina, seus anseios e angústias estão claras nas falas de todas.
Sabem das suas responsabilidades como educadoras que compõem a
base de escolarização dessas crianças, que compreende uma faixa etária
entre seis (06) e 10 anos de idade a ferramenta mais utilizada na cons-
trução de conhecimento histórico está sendo os livros didáticos, embora
às vezes tenham dificuldades para compreendê-lo.
Compreendemos que as professoras consideram importante o
ensino de história para as crianças do ensino fundamental nos anos ini-
ciais, no entanto encontram obstáculos para concretizá-lo. Isso é enten-
dido quando ao perguntá-las: quais as importâncias do ensino de his-
tória para essa fase inicial da educação? Foram unânimes em dizer que
o Ensino de História é fundamental para os alunos se compreenderem
como sujeitos históricos, mas na prática, devido não terem formações
nesta área de conhecimento e não está sendo oferecida a elas formação
continuada, com estas finalidades se sentem frustradas por não conse-
guir desenvolver um trabalho significativo.
Observa-se nesta discussão que os livros didáticos estão para além
de uma simples ferramenta à disposição do ensino e da utilização entre
alunos e professores; com base nos autores citados, os materiais escolares
envolvem todo um sistema de interesses políticos, econômicos e cultu-

180 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


rais, levantando questões sociais relevantes para a educação, as quais são
discutidas em âmbito mundial. Quanto as representações étnicos-raciais
notamos que a coleção Buriti utilizada no município de 2010 a 2015 em
todas as turmas do ensino fundamental I e de 2016 á 2018 nas turmas de
4º e 5º ano, apresenta aspectos positivos e negativos, sendo o do 4º ano o
que mais contribui de forma significativa, pois traz várias abordagens em
possibilitar aos professores problematizar seu conteúdo.
O Ensino de História no Ensino Fundamental I em Xinguara
possui características positivistas, o que está claro nas listas dos con-
teúdos dos planos de ensino nos dois primeiros volumes da coleção
analisada, principalmente nos dois primeiros triênios de 2010/2015.
Nos planejamentos para o triênio 2016/2018 foram realizadas algumas
mudanças nas seleções de conteúdo, porém essas mudanças ainda não
ocorrem de forma efetiva na prática das salas de aulas para as turmas de
1º ao 5º ano. Não por falta de compromisso por parte dos profissionais
envolvidos, mas devido à falta de políticas públicas voltadas para a for-
mação de professores e as amplas cargas horárias de trabalho, todas as
professoras entrevistadas trabalham 40hs semanais, sendo que esta mo-
dalidade de ensino é ofertada nos turnos matutino e vespertinos, o que
corresponde que este profissional passa o dia nas instituições escolares
não sendo dedicado momentos destinados aos estudos.

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184 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


CAPÍTULO 9

Reflexões sobre a trajetória do ensino de


História para os povos indígenas

Ronny Pyterson Romano dos Santos1

O
Ensino de História tem sido alvo de investigação nos últimos anos,
mediante a criação de conceitos, problematização do seu currí-
culo, análise do seu percurso histórico e tensões que acabam por
moldar a disciplina em diversas temporalidades. As discussões historiográ-
ficas levantadas ao longo do texto são principalmente de autores que escre-
vem posteriormente à década de 1980, período no qual as discussões ga-
nham proporções significativas devido ao crescimento do ensino superior,
exemplo da difusão de programas de pós-graduação. No campo da História
da Educação, destacam-se práticas desenvolvidas pelos docentes, relações
entre matérias e alunos, legislações e posicionamentos coletivos aguçam a
curiosidade de pesquisadores em simpósios, monografias e encontros.
Pensar o universo escolar e suas práticas docentes é compreen-
der as especificidades, tensões e rupturas dentro da própria construção
do currículo. Em se tratando da disciplina de História, o currículo tem
se tornado um local de disputa, fazendo com que governantes, institui-
ções e setores da sociedade enxerguem nele o poder de moldar uma so-
ciedade, construir uma identidade nacional, solidificação de mitos fun-
dacionais e propagação de ideologias. Ainda acerca da visão do Estado
sobre a disciplina destacamos:

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História PROFHISTÓRIA/UNI-
FESSPA.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 185


É interessante notar quanto interesse, quanta
vigilância e quantas intervenções o ensino de história
suscita nos mais altos níveis. História é certamente
a única disciplina escolar que recebe intervenções
diretas dos altos dirigentes e a consideração ativa dos
parlamentares. Isso mostra quão importante é ela para
o poder (LAVILLE, 1999, p. 130).

Como percebemos na citação acima, o Estado demonstra um in-


teresse especial com a História, valorizando-a no processo de construção
coletiva, porém a valorização aqui citada não está voltada para o enriqueci-
mento no campo científico e metodológico, mas sim enquanto ferramen-
ta de propagação de ideais e representações pré-definidas pelo próprio
Estado. A escola passa a ter um objetivo específico, mudando conforme a
vontade de quem está no poder sendo assim as constantes mudanças no
Brasil geram uma instabilidade educacional, em um momento a educação
é pensada na construção cidadã em outro momento em uma formação
tecnicista o que inviabiliza uma construção a longo prazo.
A construção de heróis, mitos e ocultamentos são temáticas
riquíssimas de discussão. Dentro das narrativas destacamos como foi
construída a representação dos indígenas no Brasil. Ao longo das déca-
das, a educação no território nacional ganhou proporções emancipado-
ras e universalizantes, uma narrativa de um indígena dócil, selvagem e
inserido como elemento da natureza. Porém, hoje compreendemos que
recursos metodológicos e estruturais no ensino de História ao longo de
décadas foram desenvolvidos para trabalhar com a temática.
Alguns problemas estão na aplicabilidade das legislações como a
Lei nº 11.645/2008 que valoriza a trajetória de sujeitos históricos injusti-
çados por um ocultamento de sua participação na construção da nação,
ou se citada em trabalhos mesmo da academia aparece de maneira es-
tereotipada até poucas décadas atrás. Essa historiografia clássica2 e suas
representações problemáticas não é um problema vencido ou acabado
pela historiografia. Ainda nos anos 2000 foram encontrados problemas
semelhantes como percebemos na citação abaixo:
2
Entendemos aqui a grande maioria da historiografia anterior à década 1970, salvo raras
exceções.

186 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Mesmo assim, parecem prevalecer entre os historiadores
brasileiros ainda hoje duas noções fundamentais que
foram estabelecidas pelos pioneiros da historiografia
nacional. A primeira diz respeito à exclusão dos índios
enquanto legítimos atores históricos: são, antes, do
domínio da antropologia, mesmo porque a grande
maioria dos historiadores considera que não possui
as ferramentas analíticas para se chegar nesses povos
ágrafos que, portanto, se mostram pouco visíveis
enquanto sujeitos históricos. A segunda noção é mais
problemática ainda, por tratar os povos indígenas
como populações em vias de desaparecimento. Aliás, é
uma abordagem minimamente compreensível, diante
do triste registro de guerras, epidemias, massacres e
assassinatos atingindo populações nativas ao longo
dos últimos 500 anos (MONTEIRO, 2001, p. 7).

As narrativas devem ser pensadas com delicadeza pelo professor


em sala de aula, principalmente quando trabalha-se com povos indíge-
nas. A maneira que o mesmo levará sua discussão pode apenas reforçar
uma imagem distorcida criada a partir das impressões de viajantes, pin-
tores, escritores, representações encontradas em setores educacionais
como nos mostra as pesquisas da década de 1990 em que apontavam
para uma imagem cristalizada no livro didático remetendo a imaginá-
rios e representações de indígena de séculos anteriores.
Pensamos para nossa discussão dos aspectos centrais, primei-
ramente, um aporte metodológico e conceitual que o professor possa
utilizar em sala de aula, ou seja os desafios que o historiador/profes-
sor tem em utilizar conceitos acadêmicos para aproximar ou deslocar o
aluno para uma discussão reflexiva do passado; em segundo momento,
pensamos nos cuidados que se deve ter em trabalhar a temática indí-
gena. Como em nossa região muitos professores lidam com a presença
indígena em sala de aula, pensamos nela como um lugar de construção,
lidando com os preconceitos e estereótipos encontrados na sociedade e,
quanto aos materiais didáticos, propomos que sejam problematizados
através de em uma relação pedagógica entre aluno e professor e que
sejam revistos e desconstruídos à luz de novas abordagens.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 187


9.1 Os desafios do ensino de História: uma trajetória excludente

Os desafios do Ensino de História são diversos, dentre eles desta-


camos alguns como a própria compreensão da trajetória da disciplina, a
relação da mesma com o espaço escolar e o diálogo entre o conhecimen-
to científico e os muitos saberes gerados na escola. O conjunto de prá-
ticas e conhecimentos que são gerados dentro do âmbito escolar enten-
demos como Cultura Escolar. Silva nos apresenta a seguinte discussão:
É necessário, justamente, que eu me esforce em definir
o que entendo aqui por cultura escolar; tanto isso é
verdade que esta cultura escolar não pode ser estudada
sem a análise precisa das relações conflituosas ou
pacíficas que ela mantém, a cada período de sua
história, com o conjunto das culturas que lhe são
contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou
cultura popular (SILVA, 2010, p. 10).

O conceito de Cultura Escolar faz com que desconstruamos


qualquer lógica de linearidade que possa existir na trajetória educacio-
nal Brasileira, já que a partir das características encontradas em distin-
tas temporalidades evidenciam as intencionalidades de determinados
setores e governos, o que acaba por gerar reações e novas práticas como
mudanças na maneira de lecionar ou nas políticas educacionais de âm-
bito Nacional e local. A Educação indígena aparece como uma incógnita
em diversos períodos, podemos atribuir devido à falta ou incerteza do
objetivo de uma educação que leve em consideração as especificidades
e pluralidade indígena.
Para melhor contextualização das especificidades, destacamos a
características presentes no surgimento do Instituto Histórico e Geográfi-
co Brasileiro, que ditavam tendências, agendas e promoviam a produção
científica com um caráter unificador da nação, as suas características es-
tavam baseadas em diretrizes francesas, o que delimitava a maneira euro-
cêntrica de pensar a identidade nacional, privilegiando principalmente os
portugueses na construção de uma escrita de história nacional.

188 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


O surgimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), em 1838, tinha como finalidade a construção de uma His-
tória Nacional, em que tivesse um caráter unificador e baseava-se
em uma discussão científica que envolvia paradigmas nacionais e
internacionais. Vejamos que a preocupação do Estado permeia en-
tre distintos temas, porém caminha sempre visitando a discussão de
identitário nacional, como eventos posteriores e a reformulação de
práticas educacionais e curriculares.
O que devemos destacar é que por volta do século XIX, em ple-
na expansão do Estado, os indígenas aparecem com um teor negativo,
sendo um obstáculo a essa noção expansionista, gerando assim diversas
questões a serem problematizadas, daí destacamos o papel do Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro como principal propositor de soluções a
essas questões. A chancela de pensar e elaborar as políticas indigenistas
do Império e das províncias, a nosso ver, alavanca a proposta de “civili-
zar”, já que nesse presente século ainda pairava a noção de inaptidão dos
indígenas para as coisas intelectuais, o que deixava ideias vagas, em um
futuro incerto já que várias discussões percorriam a academia destacan-
do que somente a partir de 1910 que teremos uma educação indígena
totalmente voltada para o trabalho.
As políticas envolvendo educação no Brasil são resultados de lu-
tas que arrastam diversos setores, sejam eles nos espaços acadêmicos ou
escolares envolvendo professores e alunos. Embora as reivindicações por
melhores condições e mudanças no currículo por parte de pensadores e
profissionais da educação, a falta de planejamento a longo prazo e de parâ-
metros que levem em consideração a pluralidade étnica fragilizaram o
sistema educacional, as disciplinas de Humanas, principalmente História,
acabam ficando refém de intencionalidades dos governantes. Fonseca, ao
dissertar sobre a construção da História como disciplina escolar, destaca:
A afirmação de identidades nacionais e a legitimação
dos poderes políticos fizeram com que a História
ocupasse posição central no conjunto de disciplinas
escolares, pois cabia-lhe apresentar às crianças e aos

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 189


jovens o passado glorioso da nação e os feitos dos
grandes vultos da pátria. Esses eram os objetivos
da historiografia comprometida com o Estado e
sua produção alcançava os bancos das escolas por
meio dos programas oficiais e dos livros didáticos,
elaborados sob estreito controle dos detentores do
poder. Isso ocorreu na Europa e também na América,
ode os países recém-emancipados necessitavam da
construção de um passado comum e onde os grupos
que encabeçaram os processos de independência
lutavam por sua legitimação (FONSECA, 2004, p. 24).

Como percebemos na citação acima, a disciplina de História é


utilizada como ferramenta legitimadora de uma ideologia ou trajetória
de determinado setor da sociedade, a origem da disciplina tem um ca-
ráter elitista visto a tentativa de perpetuar uma narrativa de heróis na-
cionais que tem por objetivo exaltar os valores pátrios e as façanhas de
um seleto grupo de indivíduos que de maneira mitológica ajudaram na
trajetória de sua região ou nação. O grande problema está nos excluídos
ou silenciados dos processos históricos como o exemplo da participação
de indígenas, mulheres e negros na formação histórica, econômica, cul-
tural e sociopolítica do Brasil.
O Ensino de História no Brasil tem sido alvo de pesquisas é
envolto em diversas problemáticas no campo historiográfico deno-
minado de História da educação, discorreremos um pouco sobre o
percurso da disciplina no Brasil visto que nas mudanças educacio-
nais são riquíssimas para demonstrarmos a rupturas, permanên-
cias e ressignificações de ideais de nação. Mudanças de paradigmas
e de metodologias acabam por influenciar a maneira de lecionar, e
destacamos o papel fundamental do Instituto Histórico e Geográfi-
co Brasileiro (IHGB) na formação dos parâmetros de História Na-
cional que perpetuaria por décadas no campo científico e escolar.
A introdução da disciplina de História no Colégio Pedro II
no Rio de Janeiro, tem papel fundamental na formação curricular do
período, visto que ele foi a base de implantação e/ou modelo do sis-

190 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


tema escolar brasileiro, disseminando entre as elites brasileiras uma
representação de nação que legitimava os que detinham o poder po-
lítico, econômico e cultural.
A educação no Brasil no âmbito da História enquanto disciplina
escolar é fruto de diversos modelos educacionais que, ao longo do sécu-
los, tem construído um processo de ensino-aprendizagem nacionalista e
cívico, envolto de normas, padrões e de parâmetros religiosos de matri-
zes judaico-cristã, provavelmente ainda temos um leque de possibilida-
des para discussão sobre vestígios do ensino doutrinador desenvolvido
pelos padres jesuítas no período colonial, quando se trata de educação
indígena, devido à grande presença de instituições religiosas em aldeias
participando do processo de ensino-aprendizagem.
A tentativa de reformas e mudanças foram pensadas e imple-
mentadas em diversos períodos, como a Reforma Capanema. No perío-
do em que Vargas (1930-1945) esteve no poder, o caráter nacionalista
como ferramenta de embate com forças regionais durante a Primeira
República, ferramentas como o rádio, propaganda impressa e parâme-
tros educacionais ajudaram o governo na construção de uma Consciên-
cia Nacional. Minar as forças das oligarquias agrárias regionais median-
te a construção de um sentimento de pertencimento e união facilitaria a
implementação de políticas governamentais, inclusive parâmetros para
uma modernização que facilitaria a industrialização do Brasil.
Durante os anos da Era Vargas, a criação de Ministérios e De-
partamentos facilitariam na propagação da ideologia do Estado, além
da criação do DIP, Ministério da Educação e Saúde Pública, as reformas
educacionais que resultaram na criação de programas curriculares que,
grosso modo, tinham por objetivo exaltar o nacionalismo. Uma delas
que podemos destacar foi a reforma, em 1931, de Francisco Campos,
uma das características foi a centralização das políticas educacionais
agora com os parâmetros vindo do Governo Nacional, em que ditaria
as políticas educacionais em âmbito estaduais e municipais, ou seja a
diversidade de parâmetros formulada por cada Estado agora passa a ter
um sentido único. “Essa centralização significava, na prática, a unifica-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 191


ção de conteúdos e de metodologias, em detrimento de interesses regio-
nais.” (FONSECA, 2004, p. 52).
Podemos afirmar que agora a história do Brasil tem papel fun-
damental dentro da historiografia Brasileira, entretanto não podemos
desvincular da formação de professores que tem sua capacitação basea-
da pela ciência produzida pelo IHGB (Instituto Histórico e Geográfi-
co Brasileiro). Mudanças de paradigmas e parâmetros sempre geram
problemas e embates resultando em outras reformas, destacamos a de
Gustavo Capanema, em 1942, que “[...] restabeleceu a História do Brasil
como disciplina autônoma e confirmou como seu objetivo fundamental
a formação moral e patriótica” (FONSECA, 2004, p. 53).
Ressaltamos aqui que, apesar da preocupação de Vargas com os
indígenas, as reformas privilegiavam uma história de heróis brancos,
ainda por mais que a participação dos indígenas e negros ganhassem
forma no processo de formação/construção da sociedade/nação brasi-
leira, seu papel nesse enredo era de meros coadjuvantes como influên-
cias na cultura e vocabulário brasileiro. Em suma, os interesses políticos
no desenvolvimento dos currículos e na formação da disciplina de His-
tória no Brasil teve um caráter nacionalista com objetivo de formar um
cidadão segundo as ideologias do Estado.
Já no período da ditadura civil-militar (1964 – 1985), a luta por
liberdade de expressão e a repressão por parte do Estado moldou as po-
líticas educacionais do período, a disciplina de História continuou com
um teor conservador, baseando-se em uma história tradicional pautada
na formação de indivíduos “embriagados” em um sentimento patriótico
e nacional, por parte do Estado uma tentativa de definir o lugar na socie-
dade cumprindo com seus deveres perante o Estado e sua comunidade.
Vejamos aqui que mais uma vez teremos “mudanças” curricula-
res, já que o regime militar promoveu reformas no sistema de ensino da
época, sua ideologia agora pautada por tendências oriundas da Escola
Superior de Guerra do Exército Brasileiro. Segundo Fonseca, “o regime
militar, instalado em 1964, só fez aprofundar algumas das característi-

192 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


cas já presentes no ensino de História na escola fundamental e média do
país” (FONSECA, 2003, p. 55), como percebemos na citação, por mais
que o Estado proponha mudanças curriculares, permanências acabam
por perpetuar no ensino, destacamos que existem vários universos edu-
cacionais, cada escola, sala e região ressignifica as mudanças podendo
assimilar ou não as políticas propostas pelos governantes.
Embora não desprezemos a força imposta pelo Estado, visto que
mudanças estruturais imprimem uma violência significativa, exemplo
do surgimento das disciplinas Educação Moral e Cívica (EMC) e Orien-
tação Social e Política Brasileira (OSPB) e a extinção das disciplinas de
História e Geografia agora unificadas na Estudos Sociais, essas discipli-
nas só ressurgiram décadas depois já no período democrático, na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996. Vejamos
que a qualidade na formação dos professores e comprometida visto que
para suprir com as necessidades curriculares das disciplinas de Estudos
Sociais, EMC e OSPB desenvolve-se Licenciaturas Curtas.
Podemos afirmar que assim como a academia em determi-
nados setores militavam por liberdade para produzir ciência de
qualidade, no âmbito escolar havia um anseio por mudanças, novas
possibilidades e novas bandeiras que surgiram somente com a re-
democratização e novos parâmetros curriculares, embora a luta por
melhores qualidades de ensino destacamos que em diversas tempo-
ralidades aqui citadas, a Escola nunca esteve desassociada das dis-
cussões acadêmicas e políticas vigentes, produzindo assim um saber
único e representativo do que é educação.
Pensar como trabalhar as ações humanas ao longo do tempo em
comunidades indígenas, é caminhar em uma reflexão sobre a partici-
pação dos mesmos em processos históricos, desconstruindo e ressig-
nificando a prática docente, é fugir da dicotomia do encontro de duas
culturas, de narrativas entre vencidos e vencedores, de uma reparação
de um processo histórico em que os indígenas estivessem delimitados à
passividade em que um interlocutor agora em sala de aula está eviden-
ciando o seu protagonismo por meio do ensino.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 193


Estamos pensando em uma construção mútua entre alunos indí-
genas, não indígenas e professores em que a pluralidade étnica e cultu-
ral auxiliasse na construção de metodologias e práticas que propiciassem
uma desconstrução e reconstrução contínua que a partir de anseios locais
de comunidades possam ser aplicados em distintos universos escolares.
Os desafios aqui propostos não são somente aplicados ao ensino
em culturas distintas, porém desafios do próprio Ensino de História,
pensar a relação e os métodos de ensino é também uma obrigação do
professor, trabalhar conceitos acadêmicos de maneira em que haja uma
relação didática e eficaz cada vez mais está nas atribuições deste profis-
sional como percebemos na citação abaixo:
Assim, a afirmação de que “[...] o professor não faz a
transposição didática, mas trabalha na transposição
didática que se iniciou na noosfera” (CHEVALLARD,
1991, p. 20), e que esta transposição é dinâmica e se
renova continuamente, com fluxos do conhecimento
científico (GABRIEL; MORAES, 2014, p. 31-32),
produzido e atualizado a partir de contribuições da
comunidade disciplinar de referência e de diferentes
grupos sociais envolvidos, nos auxilia a compreender
e a buscar ferramentas teóricas para a investigação
de processo constituído historicamente em contextos
nos quais diferentes referências circulam e interagem
(MONTEIRO, 2015, p. 167).

Como destacamos na citação acima, ensinar História torna-se


um desafio em relação a construção de ferramentas teóricas. Pensar a
situação dos povos indígenas nos dias atuais é percorrer um campo de-
licado de uma memória coletiva, falar sobre percurso histórico parte
sempre de sentimentos coletivos encontrados em nossa região, que vai
desde a vontade de latifundiários e garimpeiros de explorar terras indí-
genas à revolta desses povos pelos crimes cometidos tanto por setores
da sociedade quando pelo governo, fazendo assim com que cada vez

194 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


mais seja necessário a formulação de métodos de ensino que diminuam
essas tensões encontradas em sala de aula.
Destacamos que o docente pode, a partir de sua experiência, me-
diante uma liberdade gerada por um empoderamento de metodologias,
construir processos de interação entre aluno e material didático/para-
didático, aluno e professor, professor e comunidade escolar, uma pro-
dução de um conhecimento epistemológico do conhecimento escolar e
perceber que a própria apropriação do professor de uma epistemologia
do conhecimento histórico está totalmente ligada a sua prática escolar,
daí um conhecimento de perspectivas e metodologias locais produzirá
um saber que diverge do modelo tradicional.
A partir da problematização de conceitos, o historiador/profes-
sor pode compreender as especificidades das práticas docentes, inten-
cionalidades nos currículos, livros e políticas educacionais. Dentre a
gama de conceitos que nos auxiliam na compreensão dinâmica da dis-
ciplina, o pertinente a ser problematizado aqui é o de “Cultura Escolar”
no qual destacamos que:
É necessário, justamente, que eu me esforce em definir
o que entendo aqui por cultura escolar; tanto isso é
verdade que esta cultura escolar não pode ser estudada
sem a análise precisa das relações conflituosas ou
pacíficas que ela mantém, a cada período de sua
história, com o conjunto das culturas que lhe são
contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou
cultura popular (SILVA, 2010, p. 10).

A noção de cultura destacada na citação é compreendida aqui


como tudo aquilo que envolve a gestão escolar. Nesse sentido, seria a
delimitação de materiais, práticas e tudo aquilo que é usado em sala
de aula no processo de ensino-aprendizagem. Já no campo intelectual e
reflexivo é compreendido como o conjunto de saberes ou a Produção de
Saberes produzidos por esse “professor pesquisador”.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 195


9.2 Educação dos povos indígenas: um olhar reflexivo

Os conceitos aqui demonstrados levam-nos a refletir sobre a re-


lação cultura escolar indígena3 e cultura escolar não-indígena, na possi-
bilidade de uma espécie de Etnogênese educacional em que temos uma
valorização de processos não habituais, formando distintas formas e
práticas de ensinar em que diversos modelos sejam criados a partir do
encontro do diferente, porém, sempre presente.
Outra maneira de trabalhar a aplicabilidade de conceitos em sala
de aula está ligada com a valorização de memórias coletivas, em que a
maneira de lecionar diverge mediante as especificidades de cada comuni-
dade. Tensões são geradas em localidades em que conflitos (ideológicos,
simbólicos e físicos) e a violência fazem parte do dia a dia. O professor
de História que ministra aula no morro no Rio de Janeiro, por exemplo,
desenvolve métodos diferentes do que trabalha na Aldeia dos Kayapó uti-
lizando, às vezes, de uma memória coletiva, fazendo com que trajetórias
de um bairro ou povo sejam destacadas para alavancar as discussões de
um determinado período. Ainda sobre a temática destacamos que:
A noção de memória social se destaca nos estudos
históricos, pois ela valoriza as disputas em torno do
passado, as condições de rememoração e os processos
nos quais o passado é chamado a ocupar um papel
fundamental. Assim, a noção de memória social
fornece complexidade à noção de memória coletiva, na
medida em que objetiva a dimensão de lugar onde essa
memória é gerada (MAUAD, 2018, p. 34).

Destacado na citação acima, trabalhar a memória dentro dos es-


tudos históricos acaba tendo um viés social, o que remete a trabalhá-la
também em sala de aula, porém não numa perspectiva de fragmenta-
ção e objeção de narrativas e sim na construção de uma percepção dos
Quando pensamos em cultura escolar indígena delimitamos que não é que a prática, me-
3

todologia e conteúdo se torne específico para o indígena, porém pensamos que a partir das
barreiras estruturais encontradas na prática docente, principalmente quando envolve povos
indígenas gera uma cultura específica já que a própria língua, cultura e currículo escolar se
tornam empecilhos no andamento do processo, fazendo com que escolas e docentes criem
uma cultura específica para a prática educacional.

196 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


alunos enquanto sujeitos históricos. Pensar os Povos Indígenas como
partícipes da história local, regional e nacional é transitar entre distintas
representações coletivas, especificamente diversas memórias coletivas
criadas ao longo de séculos de incertezas sobre a maneira de ensinar
esses povos devido a pluralidade do universo indígena no Brasil. Ainda
destacamos que trabalhar esse imaginário é tentar a partir da pluralida-
de desconstruir alguns estereótipos como destacamos:
Até os anos 1970, os índios, supunha-se, não tinham
nem futuro, nem passado. Vaticinava-se o fim dos
últimos grupos indígenas, deplorava-se sua assimilação
irreversível e a sua extinção tida por inelutável diante
do capital que se expandia nas fronteiras do país. A
ausência de passado, por sua vez, era corroborada
por uma dupla reticência, de historiadores e de
antropólogos. A reticência dos historiadores era
metodológica, e as dos antropólogos, teórica (CUNHA,
2009, p. 125).

A citação acima nos leva a pensar que o real objetivo da relação


entre ensino e povos indígenas será que a aquisição de um conhecimento
histórico as vezes europeizado é problemático para ajudar na descons-
trução de uma representatividade que permaneceu até as décadas de
1970, ou pensado em outras perspectivas, para oferecer uma construção
do conhecimento que seria a base de um cidadão brasileiro emancipado
pela educação? Acreditamos que não. Cabe ao professor proporcionar
métodos didáticos que propiciem a própria reflexão sobre os povos in-
dígenas sobre como eles são compreendidos pelos não indígenas a par-
tir daí cabe a eles gerar conhecimento a partir dessas reflexões.
Aqui nossa discussão está centrada no tipo de aula que deve ser
proposta para os povos indígenas, ou seja, é necessária uma proposta cur-
ricular que leve em consideração os aspectos culturais e conceituais das
diversas etnias, o que nos leva a refletir que não podemos falar em um
único currículo, método e prática e sim em criar várias possibilidades de
ensino, algo assegurado pelo artigo 210 da Constituição Federal de 1988 e
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 197


Para pensar educação para os povos indígenas e levar em conside-
ração sua cultura e seu interesse ressaltamos que não são os indígenas que
devem se adequar ao sistema educacional. Suas especificidades devem ser
evidenciadas mudando assim a forma de pensar a educação, algo já pensa-
do e assegurado pelo estado brasileiro como percebemos na citação abaixo.
Nessa perspectiva, as definições da Constituição
Brasileira de 1988 representam o marco mais
importante na legislação referente a questões
indígenas, pois possibilitam a reformulação de todos
os parâmetros legais e conceituais que presidem o
relacionamento do Estado brasileiro com esses povos
(BRASIL, 2007 p. 26).

A partir daí, nossa preocupação está na análise dos materiais que


estão sendo traduzidos para o processo de ensino-aprendizagem. Destaca-
mos aqui a carência de uma problematização desses materiais e a discussão
de como esse currículo tem sido pensado visto a necessidade de uma pro-
pagação das políticas educacionais em aldeias, já que a escola não pode ser
utilizada como uma ferramenta de dominação, o que for pensado para a
educação indígena deve ser conduzido como uma forma de emancipação.
Refletir sobre todas essas problemáticas é entender o crescimento de
uma demanda como nos demonstra o trabalho desenvolvido pelo governo
federal: Educação Escolar Indígena: diversidade sociocultural indígena ressig-
nificando a escola em que destacamos os dados obtido nesse trabalho:

Gráfico 1: Estudantes indígenas na Educação Básica – 2002-2006 encontrada em:


Educação Escolar Indígena: diversidade sociocultural indígena ressignificando a escola

198 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Essa pesquisa do governo federal aguça nossa curiosidade em
pensar no crescimento exponencial de alunos na rede básica, aqui en-
tendemos que não se trata de apenas fatores casuais e sim de legislações
afirmativas que cada vez mais propicia às comunidades indígenas con-
dições de ampliar seu programa educacional. Ainda para melhor pa-
norama destacamos a tabela que dividi em modalidades os alunos em
escolas indígenas:

Níveis / Modalidades Total de alunos % sobre total


Educação Infantil 18.583 11,3
Ensino Fundamental - 1º segmento 104.573 63,8
Ensino Fundamental - 2º segmento 24.251 14,9
Ensino Médio 4.749 2,9
Educação de Jovens e Adultos 11.862 7,2
Total 164.018 100
Tabela 1: Alunos indígenas em escolas indígenas, segundo o nível e modalidade de
ensino – 2005 encontrada em: Educação Escolar Indígena: diversidade sociocultural
indígena ressignificando a escola

Aqui podemos fazer a seguinte análise dos dados: como temos


apenas 2,9% dos alunos no Ensino Médio, podemos propor duas suposi-
ções: a primeira a taxa de evasão escolar é significativa devido a pequena
parcela de alunos que chegam a essa modalidade; a segunda, devido ainda
ao processo de difusão e ampliação do ensino, temos poucos alunos já na
reta final do ensino básico. Outro aspecto a ser mencionado aqui é a par-
cela de 7,2% dos alunos da EJA, ou seja, temos mais alunos nessa moda-
lidade do que no Ensino Médio regular, o que demonstra minimamente
uma valorização da educação por parte dos povos indígenas, devido a
parcela significativas de alunos que ingressaram tardiamente no ensino.
Ainda percebemos que 63,8% dos alunos estão no Ensino Fun-
damental I, o que ressaltamos é que pessoas que desenvolvem as me-
todologias devem pensar com carinho para esse segmento, visto que é
aqui que a maioria dos conceitos são inseridos quando se trata de ensi-
no de História. Pensar que as violências em se deparar com narrativas

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 199


não habituais devem ser levadas em consideração que é principalmente
aqui que o professor deve desenvolver métodos para facilitar o processo
visando diminuir a evasão escolar e propiciar aos alunos condições de
prosseguirem em suas trajetórias.
Em suma, os dados nos demonstram que cada vez mais professo-
res e pesquisadores devem procurar formações teóricas e metodológicas
para trabalhar em comunidades indígenas e que a academia, como vem
ocorrendo ao longo dos últimos anos, deve investir na formação de pro-
fessores da própria comunidade indígena, visto que a ligação cultural
tem relevância quando se trata de trabalhar nessas localidades.

Considerações finais

Pensar Educação Escolar Indígena leva-nos a uma refle-


xão sobre o passado, perceber como existe uma pluralidade étnica
e cultural no território nacional é que agentes não-indígenas prin-
cipalmente do campo historiográfico têm-se debruçado sobre essa
problemática, perceber que as legislações formuladas tanto na Cons-
tituição quanto posteriores são fruto de uma luta constante. Ainda
destacamos que, atualmente, não consideramos que o modelo oci-
dental de educação e de currículo conseguem dar conta das especi-
ficidades de ensinar nessas comunidades, as práticas monocráticas
e a simples transposição são entendidas como modelos arcaicos que
devem ser vencidos quando se trata de Educação Indígena.
Em suma, os desafios e ganhos colocados ao longo do texto tive-
ram o objetivo de pensar as práticas pedagógicas geradas pela própria
escola indígena, visando entender que o conhecimento gerado também
serve como ferramenta de resistência a imposições homogeneizantes,
repressivas e globalizantes. Não podemos ser imprudentes e caminhar
no entendimento que essa escola é uma construção indígena, sabendo
que os moldes pensados para ela vêm de uma cultura branca, entretanto
destacamos que eles podem apropriar-se e participar na construção de
um modelo que valorize sua cultura e trajetória histórica.

200 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


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202 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


PARTE 5

ENSINO DE HISTÓRIA E TECNOLOGIAS

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 203


CAPÍTULO 10

Ensino de História e Cinema:


a lei 13.006/14 e suas possibilidades para a
Educação Básica

Marcelino A. da Silva Assis1


Andrey Minin Martin2

A
relação entre cinema e história é quase tão antiga quanto a
própria construção científica da disciplina. Desde as primei-
ras experiências gestadas em fins do século XIX pensadores
tem se debruçado a analisar suas implicações dentro da sociedade. Dos
primeiros textos de Matuszewski (1898) e sua concepção das obras cine-
matográficas enquanto registo histórico até a renovação de análise pro-
duzida pela terceira geração dos Annales, com relação a fontes, objetos
e métodos, as produções audiovisuais se tornaram importante recurso
didático para o gestar de experiências sobre história.
E neste contexto, dentre as muitas transformações e possibi-
lidades gestadas entre este objeto de estudo e o ensino de história,
a aprovação da lei 13.006/14 e a obrigatoriedade de exibição de fil-
mes nas escolas abrem novas possibilidades para (re) pensar suas
relações com a aprendizagem de conteúdos históricos e o lugar no
cinema nacional neste processo.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História PROFHISTÓRIA/UNI-
FESSPA.
2
Docente da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

204 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


10.1 Cinema e História: algumas considerações

Marc Ferro nos lembrou ainda na década de 1970 que o cinema


nasceu posterior ao próprio surgimento da História, enquanto compo-
nente científico dotado de métodos e fontes. Ao longo do último século
encontramos em distintos momentos debates que versam sobre suas pos-
sibilidades e abordagens enquanto objeto de análise histórica. Ainda no
início do século XX, educadores e estudiosos reconheceram o potencial
das obras cinematográficas como ferramenta educacional. Walter Benja-
mim, em 1936, concebe de forma crítica as possibilidades narrativas que
o cinema possui como instrução de acesso e educação das massas, tendo
como mote o contexto história da primeira metade do século XX.
No caso do Brasil, autores como Circe Bittencourt (2011) apon-
tam que o uso de películas cinematográficas como recurso didático em
ensino de história já se encontrava em debate nos meandros do ensino
desde o início do século XX:
Introduzir as imagens cinematográficas como material
didático no ensino de História não é novidade.
Jonathas Serrano, professor do Colégio Pedro II e
conhecido autor de livros didáticos, procurava desde
1912 incentivar seus colegas a recorrer a filmes de
ficção ou documentários para facilitar o aprendizado
da disciplina. Segundo esse educador, os professores
teriam condições, pelos filmes, de abandonar o
tradicional método de memorização, mediante o
qual os alunos se limitavam a decorar páginas de
insuportável sequência de eventos. (BITTENCOURT,
2011, p. 371).

Na esteira deste mesmo contexto, as reformas educacionais promo-


vidas nas décadas de 1920 e 1930, dialogavam com possibilidades de reno-
vação das práticas e currículos visando apreender elementos como o cine-
ma dentro do Ensino Básico. Influenciados pelos ideários do movimento
escolanovista, intelectuais como Fernando Azevedo, Francisco Campos,
Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira e Edgard Roquete-Pinto, dentre outros, já
constatavam a capacidade do uso do cinema na educação.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 205


Jairo de Carvalho Almeida demostra que vários trabalhos foram
publicados ainda neste período visando demonstrar as possibilidades
do cinema dentro dos caminhos educacionais:
Até uma literatura específica sobre essa questão
despontou com certo vigor no período, como
podemos perceber nos livros de Joaquim Canuto
Mendes de Almeida, “Cinema contra cinema:
bases gerais para um esboço de organização do
cinema educativo no Brasil” e de Jonathas Serrano
e Francisco Venâncio Filho, “Cinema e educação”.
A revista Escola Nova (n. 3), uma publicação da
Diretoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo,
em julho de 1931, publicou um dossiê com diversos
artigos dos mais renomados educadores (Manuel
B. Lourenço Filho, Agenor de Roure, Jonathas
Serrano, Francisco Venâncio Filho, dentre outros)
todos enaltecendo as possibilidades didáticas e
pedagógicas do cinema (ALMEIDA, 2008 p. 03).

No contexto das reformas educacionais no período de Getúlio


Vargas, a educação adquire grau de destaque na administração do go-
verno. E o uso do cinema nas escolas ganha uma dimensão maior a
partir da atuação do Estado, que compreendia que o cinema como um
recurso propagandista de unificação do Estado com a cultura do país.
Vale ressaltar que este período é fundamentalmente marcado pela ideia
de unidade nacional e pela centralização do poder do Estado. A maior
prova disso foi a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saú-
de Pública3 em 1930. Devemos lembrar que este movimento não ocorria
unicamente no Brasil, mas era bastante presente junto ao efervescente
movimento de regimes autoritários deste período, que faziam o uso do
cinema enquanto propaganda e prática de organização ideológica.4
Katia Abud (2003) afirma que, visando estimular a educação e
controlar a juventude, o governo de Getúlio Vargas instigou o uso de
imagens no ensino secundário reconhecendo o poder de atração delas
nos jovens:
No dia 15 de janeiro de 1937, passou a se chamar Ministério da Educação e Saúde.
3

Cf. LENHARO, Alcir. Nazismo: o triunfo da vontade. São Paulo: Ática, 1986.
4

206 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


As Instruções Metodológicas elaboradas para auxiliar
a aplicação dos programas de História para a escola
secundária, impostos a todos os estabelecimentos
escolares brasileiros, logo após a Reforma Francisco
Campos (Decreto 19.890 de 1931), recomendavam a
utilização da iconografia. Alegavam que os adolescentes
tinham uma curiosidade natural pela imagem, e que
por este motivo os recursos tecnológicos deveriam ser
utilizados no ensino secundário. (ABUD, 2003, p. 186).

As diretrizes contidas nas Instruções Metodológicas de 1931 fo-


ram a primeira medida prática do governo enquanto políticas públicas a
nível nacional autenticando a utilização das imagens no ensino no Brasil.
Englobando metas educacionais, políticas e ideológicas, o regime varguis-
ta criou em 1937, através da Lei nº 378, o Instituto Nacional do Cine-
ma Educativo (INCE), sob a direção de Edgard Roquete Pinto, nomeado
pelo Ministro Gustavo Capanema. Este órgão submetido ao Ministério da
Educação e Saúde ficou encarregado de produzir e distribuir filmes nas
escolas. Nesse contexto de apropriação do cinema como veículo de comu-
nicação de massas pelo estado, durante sua existência até sua extinção em
1967, o INCE produziu centenas de obras cinematográficas com temáti-
cas, que exaltavam desde as riquezas naturais do país, o folclore, biografias
de personagens da história do Brasil. Sobre a participação do INCE na
produção e distribuição de películas históricas, Katia Abud afirma:
O INCE produziu, logo no início de seu funcionamento,
dois filmes sobre a História do Brasil: O descobrimento
do Brasil e Os bandeirantes, ambos dirigidos por
Humberto Mauro. As produções do cinema educativo,
que tinham como finalidade instruir a juventude sobre
a nossa história, acatavam os princípios da História
oficial, e se por um lado pareciam servir aos objetivos
da Escola Nova, por outro ajudavam a sacramentar
mitos nacionais. (ABUD, 2003, p. 186-187)

No entanto, como atesta Eduardo Morretin (1994), as funções do


órgão estavam para além de produzir e distribuir filmes para as escolas.
Ele também era responsável por vários tipos de ações como, coordenar
informações sobre filmes educativos entre as escolas que tinham proje-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 207


tores de cinema, organizar uma biblioteca especializada e publicação de
uma revista. De fato, o INCE coordenava todo o circuito, a produção, a
distribuição e a exibição das obras cinematográficas educativas.
Com a extinção do INCE em 1967, o controle da atividade foi su-
cedido pela criação do “Instituto Nacional do Cinema”, abandonando a
proposta de produzir e distribuir filmes educativos. Ocorre uma ligeira
paralisação das discussões no meio da iniciativa pública na década de
1970 (NASCIMENTO, 2008). Enquanto as ações governamentais ces-
sam durante esses anos, o debate sobre o cinema como recurso didático
foi se deslocando aos poucos para o meio acadêmico.
Ainda nos anos 1960, um dos trabalhos precursores ao abordar
a relação entre o uso do cinema na didática educacional foi o livro “Ci-
nema e educação”, de Irene Tavares de Sá, publicado em 1967. Nesta
obra a autora parte da ideia de que o cinema está inserido na cultura
jovem, trazendo indicações aos educadores para que dominassem a lin-
guagem cinematográfica e a utilizassem nas escolas com a finalidade de
compreender melhor o contexto da juventude. Seguindo essa lógica, a
autora afirma uma posição dos educadores para com o recurso cinema-
tográfico:
O verdadeiro educador é aquele que sabe trabalhar com
o material que se dispõe. Estamos, aliás, convencidos
de que a maioria os filmes apresentam elementos
(negativos ou positivos) passíveis de análise com jovens
e adolescentes. […] Um educador esclarecido e capaz
pode transformar qualquer película numa unidade
didática, dissecando os diferentes elementos técnicos,
sociais, artísticos, psicológicos etc. (SÁ, 1967, p. 29).

Contudo, foi a partir dos anos 1980 que o debate sobre o cinema
como recurso pedagógico ganhou força no Brasil, influenciado princi-
palmente pela historiografia francesa. Com relação ao ensino de Histó-
ria surgiram artigos, livros, revistas acadêmicas e orientações pedagó-
gicas que abordam sobre procedimentos metodológicos pertinentes ao
uso das obras cinematográficas em sala de aula. As novas possibilidades
abertas agora, gestando uma formação de docentes ligados a este debate,

208 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


possibilitaram nas décadas seguintes que o campo de ensino de História
produzisse importantes obras de autores como Jean-claude Bernadet,
Alcides Freire Ramos, Rosália Duarte e Marcos Napolitano, dentre ou-
tros. Esses autores constituíram obras de referência sobre a didática de
História e o uso do cinema como ferramenta pedagógica. Paralelamen-
te, no círculo acadêmico brasileiro apareceram diversas teses e disser-
tações que investigam os diversos aspectos das relações entre cinema e
História. Como destaca Francisco Santiago Junior (2018):
Na primeira metade dos anos 1990 surgiram
dissertações e teses que usavam o filme como objeto ou
fonte principal. As dissertações de Eduardo Morettin
(1994), Cláudio Aguiar Almeida (1993), e a tese de
Alcides Freire Ramos (1996), são algumas delas, todas
de autores ligados à USP. […] Alguns desses trabalhos
foram publicados na forma de livro mais tarde
(SANTIAGO JR, 2018 p. 158).

Outro núcleo acadêmico de destaque na pesquisa que relaciona ci-


nema e História surgiu na Universidade Federal da Bahia, em 1995, com a
publicação da revista acadêmica O olho da História. O primeiro número
traz o texto “Apologia da relação Cinema e História”, de Jorge Nóvoa (1995).
Desde então até a atualidade, a revista pode ser exemplificada como impor-
tante veículo de comunicação e pesquisa neste campo do conhecimento.
Voltando ao domínio da iniciativa pública na década de 1990,
a Fundação para o Desenvolvimento da Educação, da Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo publicou uma coletânea de textos em
dois volumes que abordam o uso do cinema em sala de aula de maneira
interdisciplinar, com a finalidade de possibilitar um apoio ao trabalho
dos professores. Nas palavras dos coordenadores do projeto, Antônio
Rebouças Falcão e Cristina Bruzzo, essa coletânea tinha o objetivo de:
Uma publicação sobre Cinema só pode interessar
àqueles que, apreciadores desta arte, querem entendê-
la ou têm curiosidade de conhecer as peculiaridades
de sua produção. Atendendo a esse desejo, estamos
colaborando para uma aproximação mais atenciosa entre
os professores e a arte cinematográfica e estimulando,

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 209


consequentemente, a decorrente familiarização dos
alunos com o cinema, o que, por si, tem um grande
valor na formação dos jovens: a possibilidade de, pelo
conhecimento mínimo das características de uma arte,
·ampliar o contato com a diversidade da produção
artística, assim como apreciar a sua riqueza. Estende-se
também à perspectiva de uso dos meios audiovisuais em
sala de aula, pela introdução de produções significativas
da arte cinematográfica, que representam, além de seu
valor artístico, uma contribuição na discussão de temas
fundamentais dos programas curriculares. (BRUZZO;
FALCÃO, 1993, p. 9)

Segundo Kamilla Silva Soares (2012), na década de 1990 a educação


brasileira ficou marcada pelas reformas educacionais. A Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Brasileira (LDB), Lei nº 9.394 de 1996, e os Parâme-
tros Curriculares Nacionais (PCN’s) de 1998 foram as grandes novidades
para esse período, propondo uma reformulação dos paradigmas e desafios
educacionais no ensino Fundamental e Médio no Brasil. Primeiramente,
os PCN’s possibilitaram a incorporação das linguagens artísticas (música,
cinema, teatro, literatura e artes plásticas) na disciplina escolar, ampliando
o campo de práticas pedagógicas do professor de História. Concebido pelo
prisma da interdisciplinaridade, avançou em oferecer o encontro entre o
saber histórico e imersão em linguagens artísticas presentes no repertório
social e cultural das crianças e jovens. Esse encontro de saberes busca apro-
ximar a vida cotidiana nas escolas e, para esse objetivo, foram concebidos
os Temas Transversais, com temáticas relacionadas a realidade brasileira e a
convivência em ambiente escolar para a formação de conteúdos disciplina-
res. Sobre a seleção de conteúdos os PCN’s apontam:
os conteúdos propostos estão constituídos a partir do
cotidiano da criança (o seu tempo e o seu espaço),
integra a um contexto mais amplo, que inclui os
contextos históricos. […] Os conteúdos foram
escolhidos, ainda, a partir da ideia de que conhecer
as muitas histórias, de outros tempos, relacionadas ao
espaço em que vivem, e de outros espaços, possibilita
aos alunos compreenderem a si mesmo e a vida
coletiva. (BRASIL, 1998, p. 43-44).

210 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


No PCN de história dos 3º e 4º ciclos, referentes às séries 5º ao 8º
ano do Ensino Fundamental, faz o uso das obras cinematográficas; elas
aparecem relacionadas aos tópicos orientações e métodos didáticos e
trabalho com documentos. Relativo a orientações e métodos didáticos e
o uso de obras fílmicas o PCN privilegia as seguintes situações didáticas:
Desenvolver atividades com diferentes fontes de infor-
mação (livros, jornais, revistas, filmes, fotografias, obje-
tos etc.) e confrontar dados e abordagens; trabalhar com
documentos variados como sítios arqueológicos, edifica-
ções, plantas urbanas, mapas, instrumentos de trabalho,
objetos cerimoniais e rituais, adornos, meios de comu-
nicação, vestimentas, textos, imagens e filmes; (BRASIL,
1998, p. 77).

Embora carente de orientações mais diversas, amplas e profun-


das sobre variadas formas de documento pelo professor em sala de aula,
consta nos PCN’s a possibilidade de desenvolvimento de atividades e
confronto de dados e abordagens utilizando o cinema como recurso.
Nesse sentido os filmes são fundamentais no trabalho de produção do
conhecimento histórico escolar. E cabe ao professor interrogar os docu-
mentos e orientar na busca de métodos mais adequados como “aqueles
que possibilitam extrair dos documentos informações de suas formas
(materiais, gráficas e discursivas) e de seus conteúdos (mensagens, sen-
tidos e significados) e que permitam compreendê-los no contexto de
uma produção” (BRASIL, 1998, p. 86).
Quanto ao trabalho com documentos os PCN’s de história
sugerem que os professores adotem sobre os filmes a seguinte con-
cepção no ensino:
Um filme abordando temas históricos ou de ficção pode
ser trabalhado como documento, se o professor tiver
a consciência de que as informações extraídas estão
mais diretamente ligadas à época em que a película foi
produzida do que à época que retrata. É preciso antes
de tudo ter em mente que a fita está impregnada de
valores, compreensões, visões de mundo, tentativas de
explicação, de reconstituição, de recriação, de criação
livre e artística, de inserção de cenários históricos

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 211


construídos intencionalmente ou não por seus autores,
diretores, produtores, pesquisadores, cenógrafos etc.
[...]Todo esforço do professor pode ser no sentido de
mostrar que, à maneira do conhecimento histórico,
o filme também é produzido, irradiando sentidos e
verdades plurais (BRASIL, 1998, p. 88-89).

A partir da introdução dos PCN’s, as obras cinematográficas adqui-


riram maior atenção como recurso didático pelos professores e educado-
res sugerindo abordagens, seleção de conteúdos e métodos para auxiliar e
orientar no trabalho em sala de aula, ao institucionalizar o uso do cinema
no ensino de História propondo uma abordagem interdisciplinar sobre os
documentos, incluindo as imagens cinematográficas. Os Parâmetros possi-
bilitaram alinhar o trabalho do professor de história ao campo das ideias da
História Cultural permitindo reflexões entre ensino de História e cinema
expandindo as dimensões entre métodos didáticos e obras cinematográfi-
cas. Portanto, por meio dos PCN’s as imagens cinematográficas assumem a
dupla função de conteúdo da disciplina e de recurso didático.
Ainda neste contexto, visando contemplar a melhoria das estruturas
das escolas para a exibição de películas, foram distribuídos durante o go-
verno Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) nas escolas, os conhecidos
Kit’s eletrônicos (aparelho de TV, vídeo cassete e depois DVD player). O
objetivo dessa ação era incentivar o uso das linguagens artísticas (cinema,
artes plásticas, teatro, entre outras) possibilitando a interdisciplinaridade no
saber escolar. Cabe ressaltar que mesmo com a distribuição dos Kit’s tecno-
lógicos, ainda persistem inúmeras dificuldades estruturais, de conservação
de equipamentos, conflitos de horários, entre outros, impossibilitando a
exibição de películas nas escolas de forma mais adequada.
As reformas educacionais encabeçadas pela LDB/96 e pelos
PCN’s nos anos 90, impulsionaram outras reformulações sobre ques-
tões sensíveis a educação no Brasil também nas primeiras décadas do
século XXI. As Leis nº 10.639/03 (que tornou obrigatório o ensino so-
bre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de Ensino
Fundamental e Médio) e 11.645/08 (que tornou obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de

212 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Ensino Fundamental e Médio) são exemplos dessas reformulações na
educação brasileira nos últimos anos.
E na esteira desta trajetória, o ano de 2014 marcaria uma nova
aprovação legislativa na ampliação da presença dos recursos audiovi-
suais nos meandros educacionais. E desde a publicação desta lei, pro-
fessores e outros profissionais da educação tem se debruçado para res-
ponder aos desafios para sua implementação em ambiente escolar. As
dificuldades encontradas quanto à execução da lei foram cercadas de
expectativas, mas que ainda estão abertas aos debates e exames.

10.2 Lei nº 13.006/14: possibilidades, potencialidades e limites

Em 26 de junho de 2014 foi sancionada pela presidente Dilma


Roussef a Lei nº 13.006/14 que torna obrigatória a exibição de filmes
nacionais como componente curricular complementar integrado à
proposta pedagógica das escolas de educação básica por no mínimo
2 (duas) horas mensais.
Sua criação tem origem no Projeto de Lei (PL 185/08) de au-
toria do senador do Distrito Federal Cristovam Buarque (na época
então no Partido Democrático Trabalhista, PDT, hoje está na sigla
Cidadania e sem mandato) que adicionava um inciso ao artigo 26 da
Lei º 9.394/96 de 20 de dezembro de 1996, a conhecida LDB. O inciso
indica diretamente quem “a exibição de filmes de produção nacional
constituirá componente curricular complementar integrado à pro-
posta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por no
mínimo duas horas mensais” (LDB). Os caminhos nestes seis anos,
entre a tramitação do projeto de lei até a sanção e publicação, foram
marcados por resistências e contestações.
Segundo Fresquet e Migliorin (2015), uma das disputas mais
simbólicas nesse processo foi sobre se exibição de filmes deveria ser
parte do currículo complementar integrado à proposta pedagógica da
escola ou como conteúdo curricular da disciplina de Artes. Ainda nessa

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 213


proposta de mudança de texto foi debatido que a exibição de filmes na-
cionais seria apenas sugestiva e não uma obrigatoriedade. Essa proposta
de substituição do texto do senador Cyro Miranda foi finalmente rejei-
tada em 5 de junho de 2014. E o texto original foi encaminhado para
sanção e transformar-se em lei no mesmo ano.
O texto da Lei 13.006/14, em suas poucas palavras, foi capaz
de alterar a legislação propondo novos desafios de ordem diversa
(programas curriculares, estruturais, formação de professores) para
educação no Brasil para que fosse possível a efetivação nas escolas.
Para adequar o cotidiano escolar às demandas impostas pela lei, os
agentes educacionais envolvidos têm o desafio de refletir além de
suas práticas pedagógicas, mas também sobre a adequação de horá-
rios e espaços, currículos, formação de professores, disponibilidade
de equipamentos para exibição de filmes, entre outros. Essas ques-
tões estão longe de serem esgotadas com a publicação da lei, sendo
assim logo surgiram diversas incertezas em torno dela.
Ciente de que não basta somente a publicação de uma Lei para que
essa possa de fato ser aplicada, vê-se que são necessários também o envol-
vimento e a vontade por parte dos agentes, assim como a supervisão do
poder público encarregado. Entende-se primeiramente que os grandes de-
safios para a viabilidade residem no fato, segundo o Censo Escolar de 2018,
que somente 35,73% das escolas detém infraestrutura para equipamentos
de apoio pedagógico adequadas. De certo, a maioria das escolas brasileiras
carecem de equipamentos mínimos e apresentam uma estrutura deficitária
para que permitam a exibição de filmes segundo o que determina a lei.
Vale ressaltar que, em se tratando-se de formulação de políticas
públicas educacionais e sua implementação deve-se destacar que estas
estão envoltas em interesses políticos, econômicos e ideológicos. Reco-
nhecendo os interesses e intenções pretendemos aprofundar os debates,
as possibilidades e limites sobre a implementação do cinema nas escolas.
Enquanto o trâmite do projeto de lei estava em sua fase de ini-
cial, o senador Cristovam Buarque justificou a sua proposta como uma

214 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


possibilidade de dar destaque a indústria cinematográfica nacional no
espaço escolar. O congressista afirma que:
A única forma de dar liberdade à indústria
cinematográfica é criar uma massa de cinéfilos que
invadam nossos cinemas, dando uma economia de
escala à manutenção da indústria cinematográfica.
Isso só acontecerá quando conseguirmos criar uma
geração com gosto pelo cinema, e o único caminho é a
escola (BUARQUE, 2008).

E complementa seu posicionamento em outra entrevista em 2012:


A arte deve ser parte fundamental do processo
educacional nas escolas. A ausência da arte na escola,
além de reduzir a formação dos alunos, impede que
eles, na vida adulta, sejam usuários dos bens e serviços
culturais; tira deles um dos objetivos da educação que
é o deslumbramento com as coisas belas. O cinema é a
arte que mais facilidade apresenta para ser levada aos
alunos nas escolas. O Brasil precisa de sala de cinema
como meio para atender o gosto dos brasileiros pela
arte e ao mesmo tempo precisa usar o cinema na escola
como instrumento de formação deste gosto. […] os
jovens que não têm acesso às obras cinematográficas
ficam privados de um dos objetivos fundamentais
da educação: o desenvolvimento do senso crítico.
(BUARQUE, 2012).

Ao analisar as justificativas do senador é evidente que, em am-


bas, ele acredita que ao implementar a exibição de filmes nacionais no
espaço escolar será possível formar um público consumidor de obras ci-
nematográficas brasileiras. No que tange à educação, o então parlamen-
tar acreditava que o potencial do cinema em ambiente escolar pudesse
favorecer o crescimento do senso crítico entre os estudantes, através do
acesso à cultura na tela. Partindo dessa justificativa, ao que tudo indica
a Lei 13.006/14 está mais voltada para as questões da indústria cinema-
tográfica nacional do que para seus potenciais pedagógicos. Outro pro-
blema na colocação do senador é o fato de acreditar que a experiência
com cinema seja em si positiva. Destacamos que o papel do professor

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 215


devidamente preparado no diálogo entre obra e aluno é de fundamen-
tal importância para a construção do conhecimento e do senso crítico.
Caso contrário, corre o risco de que a exibição de filmes em ambiente
escolar fique sem sentido, ou pior, que essa prática seja somente para
preencher o tempo ocioso.
Segundo a reportagem de Mariana Tokarnia para a Agência
Brasil de Comunicação, algumas semanas após a publicação da Lei
13.006/14, ficou claro que entre os cineastas entrevistados criou-se uma
expectativa positiva para indústria cinematográfica nacional com a san-
ção da Lei. Um exemplo é o depoimento do cineasta pernambucano
Claudio Assis afirmando que:
O maior gargalo do cinema brasileiro é a distribuição.
Fabricamos, fazemos filmes, mas eles não chegam às
salas, ficamos a ver navios. […] Nas escolas vamos
ter a possibilidade de contribuir culturalmente para
a formação social, a possibilidade de educar a criança
para um olhar sobre a realidade brasileira, sobre o
cinema brasileiro. O Brasil precisa de formação de
plateia (ASSIS, 2014).

Em partes, a afirmativa do cineasta entra em sintonia com a do par-


lamentar, autor do projeto de lei, na medida em que afirma a necessidade de
formação de “plateia”, de consumidores para as películas nacionais. Assim,
fica evidente uma preocupação primordial com os interesses econômicos e
comerciais do setor cinematográfico no Brasil. Nesse sentido, esses discur-
sos apostam que a escola teria a capacidade de criar consumidores para esse
segmento da indústria cultural. Enquanto isso, as questões potencialmente
pedagógicas ficam relegadas em nível secundário.
Chamam a atenção as críticas de educadores e professores ante a
lei no sentido em que notam uma ausência de consulta pública durante
trâmite nas casas legislativas. Após buscas no portal do Senado Federal
e em sites de pesquisa a fim de encontrar alguma chamada pública ao
PL 185/2008, não localizamos nenhuma informação relativa ao debate
público sobre esse tema.

216 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Há também inúmeros educadores e professores que interpretam
de forma positiva ações que contemplem a Lei nº 13.006/14. Em entre-
vista de 2015, a professora da PUC- RJ Rosália Duarte expôs questões
pertinentes sobre a criação e implementação da lei. Perguntada sobre a
força dela, responde:
Lei, no Brasil, infelizmente, não significa muito.
Neste caso, há grandes possibilidades dessa Lei não
ser cumprida. Primeiro porque não prevê sanções (o
que é correto, claro!), segundo porque as condições
necessárias para o seu cumprimento não estão
inteiramente satisfeitas. Vale lembrar que a Lei que
obriga o ensino de história da África, aprovada há mais
de dez anos, ainda não está sendo cumprida em todas
as escolas. (DUARTE, 2015).

Ao cogitar um possível fracasso na implementação e execução


da lei a professora aponta dois motivos. Um deles corresponde à falta de
condições para sua realização. Em outro trecho defende a regulamenta-
ção da Lei por meio de consultas a agentes e instituições educacionais.
Sobre essa questão afirma:
Acho que a regulamentação deveria passar por uma
consulta às secretarias municipais de educação, que são
responsáveis pelo ensino fundamental. Essa consulta
procuraria levantar condições para implementação da
Lei, prazos, estrutura e, acima de tudo, uma avaliação
da legitimidade da Lei – é importante analisar se os
gestores consideram a proposta legítima ou não, e por
quê (DUARTE, 2015).

Ao ser questionada como selecionar conteúdos, a professora su-


gere uma criação de um catálogo de filmes “semelhante ao IMDB” dis-
ponível ao público. Defende também a necessidade de “inserir cinema
na formação inicial e continuada dos professores, um tema a ser tratado
com o mesmo cuidado, preocupação e investimentos com que são tra-
tadas a literatura e a formação de leitores (DUARTE, 2015)”. Por fim, ao
ser perguntada sobre quais seriam os conflitos/possibilidades que sur-
gem a partir da publicação da lei, responde:

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 217


Possibilidades maiores que conflitos! Abrir a escola
ao cinema nacional é, pra mim, semelhante à
obrigatoriedade de ter biblioteca, com literatura
nacional, de qualidade. Então, tem tudo para dar
certo. Conflitos e problemas, talvez alguns: falta
de equipamentos, falta de condições adequadas de
exibição, dificuldades com direitos autorais (isso
precisa ser resolvido pelo MEC e pela Secretaria de
Audiovisual, junto a produtores e diretores); exibição
de obras de baixa qualidade estética e narrativa,
dificuldades na definição de critérios para a escolha
do que será exibido, pais reclamarem da exibição de
determinada obra, entre outros. Mas isso também
ocorreu com a literatura na escola.(DUARTE, 2015).

A professora revela-se confiante quanto às possibilidades de im-


plementação do cinema nacional nas escolas, fazendo um comparativo
com a situação da literatura nacional. Porém não minimiza as dificulda-
des e elenca uma série de problemas e desafios para a contemplação da
referida lei. Evidencia também a necessidade de diálogo entre as insti-
tuições envolvidas para a regulamentação das políticas públicas com a
finalidade de tornar viável a execução da lei em ambiente escolar supe-
rando os conflitos existentes.
Ao questionar os desafios para implementação da Lei nº
13.006/14 devemos primeiramente analisar seu texto base, e logo muitas
problematizações e polêmicas surgem neste exame. A primeira delas, de
acordo com Tiago Pimenta (2019), advém da “obrigatoriedade” da exi-
bição de conteúdos cinematográficos brasileiros nas escolas de educa-
ção básica, estabelecendo um mínimo de 2 horas mensais de conteúdo a
ser exibido. Nesse ponto, a medida mostra-se autoritária e contraditória,
principalmente por se tratar de uma manifestação artística. Também
concordam com essa visão Santos, Barbosa e Lazzareti, (2015) e ques-
tionam da seguinte maneira:
Até que ponto a experiência do cinema, como forja
do senso ético e estético de alunos e professores,
pode ser tratada como obrigatória? […] O quanto da
fruição, da reflexão e do prazer essencial da mágica

218 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


experiência de som e imagens na sala escura podem
ficar comprometidos com o senso de obrigatoriedade
e, jogados na escala macro do ensino básico brasileiro,
tendem a ser empobrecidos? (SANTOS; BARBOSA &
LAZZARETI, 2015, p. 38).

Essa obrigatoriedade revela um certo distanciamento ou falta de


diálogo entre o espaço da escola e o meio cinematográfico no processo
de elaboração da lei. Outra polêmica reside na escolha dos filmes de ori-
gem nacional, visto por muitos como uma questão limitadora na relação
cinema e educação. Ao excluir o “outro cinema” acaba por não reconhe-
cer e limitar os potenciais pedagógicos de inúmeras obras. Por outro
lado, é sabido que os alunos já têm contato com o cinema, principal-
mente o hollywoodiano. Se por um lado, o contato com obras cinema-
tográficas brasileiras aproxima-se com temáticas, conteúdos e experiên-
cias estéticas mais condizentes com a realidade dos alunos, por outro
exclui outras potencialidades em razão da nacionalidade dos filmes.
Segundo Ramalho (2019), outro fator limitante na lei nº
13.006/14 é que ela prevê somente a exibição de filmes, ignorando o
potencial de estudantes, professores e da comunidade escolar de criar
seus próprios filmes:
Se levarmos em conta o contexto no qual nossos jovens
estudantes (talvez a maioria deles) se encontram
inseridos no início deste século, poderíamos supor
que, esta lei, que aparentemente não estimulará a
participação prática dos estudantes pode vir a se tornar
(se não observado com cuidado alguns aspectos em sua
aplicação), talvez, mais um instrumento burocrático
e pouco efetivo. Esta reflexão cabe no momento em
que observamos que um grande número de jovens
atualmente já realiza pequenas produções mesmo fora
da escola. Bastaria um olhar superficial nos sites que
permitem compartilhamento de vídeos para constatar
que houve nos últimos anos uma mudança drástica
quando o assunto é produção audiovisual. Hoje,
munido de um aparelho acessível (até mesmo um
smartphone é capaz de capturar imagens com qualidade
antes inimaginável) qualquer pessoa pode produzir seu

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 219


próprio conteúdo e disponibilizá-lo na internet para
um número cada vez maior de espectadores. É o que
nos leva a crer que a escola não deve ficar à margem
destes acontecimentos sob pena de não se adequar
à realidade do estudante. Neste sentido, podemos
supor que a escola também pode ser um espaço de
realização audiovisual, até mesmo porque esta pode
ser uma forma de leitura da realidade, de expressão de
sentimentos e atividade política no sentido mais amplo
do termo (RAMALHO, 2019, p. 45).

Além de assistir e analisar obras cinematográficas, os alunos te-


riam a possibilidade de criar seus próprios filmes. Nesse sentido, a ex-
periência com o cinema na escola seria mais completa e proporcionaria
um reconhecimento do aluno como pessoa humana, dotada de emo-
ções e senso crítico.
Um enorme desafio que a Lei impõe está relacionada a forma-
ção de professores. Partindo da constatação de que muitos dos profes-
sores não têm familiaridade com obras cinematográficas brasileiras, sua
história e estética, ou até mesmo uma visão preconceituosa em relação
aos filmes nacionais. Além do mais, alguns ainda creem que a ação de
exibir filmes na escola está relacionada simplesmente à prática de en-
tretimento. Assim, se executada sem o devido cuidado e preparação do
professor, a empreitada assume um risco enorme e prejudicial ao pro-
cesso de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, o trabalho de capacitação
de professores frente essa nova demanda é fundamental para que haja
tanto o engajamento dos profissionais da educação, como também um
maior aproveitamento nos resultados pedagógicos. Também é necessá-
rio pensar a inserção dessa proposta no ensino superior no intuito de
preparar os alunos de licenciatura para trabalhar com filmes quando
forem exercer a profissão.
A estrutura física das escolas e a formação de professores para uso
da linguagem cinematográfica em sala são questões fundamentais. Tam-
bém se faz necessário pensar, segundo Fresquet e Migliorin (2015), sobre
a questão da acessibilidade como medida afirmativa para professores e

220 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


estudantes cegos ou de baixa visão bem como de surdos ou baixa audição
para de fato democratizar o acesso ao cinema na escola. Tal problemáti-
ca enfatiza a necessidade de articulação de políticas públicas entre ins-
tituições como o Ministério da Educação e a Secretária de Audiovisual
do governo federal. Cabe lembrar que uma pequena minoria de filmes
nacionais conta com a tecnologia Closed Caption ou audiodescrição. Tal
demanda por condições de acessibilidade nas escolas são reflexos de uma
necessidade de toda a sociedade e são poucas as iniciativas do poder pú-
blico nesse quesito, o que contribui para a exclusão desses cidadãos.
Por fim, A Lei nº 13.006/14, embora apresente problemas que
limitam seu viés pedagógico, tanto na sua concepção como no seu texto
original, representa um notável esforço de política pública cinemato-
gráfica articulada com a educação. Debater e pesquisar possibilidades e
problemas com base nela enriquece os horizontes além da determina-
ção legal, dando voz e vez a atores que foram ignorados no seu processo
de concepção e de tramitação. A participação de professores e pesquisa-
dores com suas experiências e pesquisas podem ser fundamentais para
uma futura regularização da Lei nº 13.006/14.

Considerações finais

Nesta breve análise buscamos abordar as relações entre cinema


e educação brasileira, mais especificamente na análise da Lei 13006 de
2014. Procuramos estabelecer um diálogo com pensadores das áreas en-
volvidas, no intuito de compreender os limites e desafios para sua apli-
cação no espaço escolar. São vários os fatores limitantes identificados,
entre os principais aqueles relacionados com a estrutura deficitária das
escolas e a falta de formação de professores com a linguagem cinemato-
gráfica aplicada no ensino. Assim a existência de um dispositivo legal do
cinema nas escolas integradas ao desenho curricular não garante ações
imediatas que contemplem os requisitos legais da Lei 13006/14.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 221


Verificamos também que a citada lei foi construída sem o devido
diálogo, principalmente com o campo da educação, refletindo em um
texto que não contempla em profundidade as expectativas da área. Foca-
da em defender a indústria cinematográfica nacional impõe-se novos e
maiores desafios a profissionais da educação. Por outro lado, considera-
mos também que há entusiastas da Lei 13006/14; sem perderem a crítica,
já desenvolvem pesquisas e ações para a sua aplicabilidade e clamam
pela sua regulamentação. Sobre esse aspecto faz necessário repensar a
proposta inicial da lei visando sua superação e aprimoramento.
Portanto, reconhecemos que o espaço escolar é fundamental
no fomentar o acesso à cultura por meio do cinema brasileiro, sendo
capaz de transpor a concepção tradicional de suporte pedagógico e
ser tratado como elemento gerador potencial de conteúdos, senso
crítico e acesso a bens culturais.

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222 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


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224 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


CAPÍTULO 11

Ensino de história:
pelas ondas do rádio nas décadas de 1930
e 1940 ao uso de podcast na atualidade

Valéria Moraes1

O
limiar do século XX vislumbrou o surgimento de novas con-
junturas no campo historiográfico em suas diversas esferas, na
escrita, na transmissão, discursos, nas bases legislativas e até
no senso comum, situação que se expandiu no século XXI. O Ensino
de História passou por essa gama de mudanças e intensificou-se nas
últimas décadas com o advento e popularização de computadores fi-
xos e portáteis, tablet’s, smartphones, Ambientes Virtuais de Aprendi-
zagem (AVAs), lousas digitais, projetores multimídia, para citar alguns
exemplos de novos artefatos que fazem parte de um conjunto maior que
denominamos de Novas Tecnologias Digitais de Informação e Comuni-
cação (NTDICs) e sua inserção no ensino escolar nas múltiplas áreas do
conhecimento científico.
A historiografia nos revela que o ensino de História no/do
Brasil se constituiu concatenado à jactância de feitos heroicos e seus
respectivos representantes, caracterizando-se por uma pedagogia na-
cionalista voltado para a uma educação elitista. Nas décadas de 1930 e
1940, período em que o líder estadista era Getúlio Vargas, e um proje-
to de golpear definitivamente as oligarquias que doravante ocupavam
o topo do poder se arrojou, esse nacionalismo nas “veias” educacio-
nais históricas mostrou-se varicoso.
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino de História PROFHISTÓRIA/
UNIFESSPA.

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 225


O presente texto discute inicialmente o ensino realizado pela ra-
diodifusão nas décadas de 1930 e 1940 cotejando-o com o realizado por
meio dos podcast’s dedicados à divulgação de conteúdos que compõem
o currículo da disciplina de história na atualidade, além de debaterem
temas afins, como política e cultura. Num segundo momento, teremos
uma análise sobre a atual conjuntura e, em conseguinte, um debate so-
bre a inserção de mídias no ensino do Brasil faz-se necessária com o
objetivo de esclarecer que o debate sobre o ensino, intermediado pelos
artefatos das tecnologias digitais de informação e comunicação, não é
algo recente, apesar de ter aflorado em decorrência do momento pandê-
mico que estamos vivendo.

11.1 A inserção de mídias no ensino do Brasil e o ensino de História

A internet surge, em meio às disputas ideológicas entre Estados


Unidos e a extinta União Soviética, no contexto da Guerra Fria, pelas
mãos de cientistas norte-americanos, em 1967; se expandido em seu
solo produtor para fins comerciais por volta de 1987 e chega ao Brasil
comercialmente somente em 1995. No ano seguinte, em 20 de dezem-
bro de 1996, era publicada e institucionalizada a Lei n. 9.394, a nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN que em seu
corpo jurídico determina uma educação de qualidade em todos os as-
pectos,  sendo a educação um direito social indispensável, assegurado
nos artigos 6 e 205 da legislação suprema do Brasil.
Entretanto, ao nos depararmos com a especificidade do ensino
mediado por tecnologias e o ensino remoto, que foram implantados na
maioria dos estados e municípios brasileiros devido a pandemia do Co-
vid-19 no ano de 2020, o que percebemos foi que ocorreu uma ausência
de democratização do ensino, um certo despreparo de grande parte dos
profissionais da educação para lidar com mídias digitais e um esqueci-
mento de grupos específicos como indígenas, comunidades periféricas
e ribeirinhas quilombolas e discentes da educação especial.

226 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


É inevitável salientar que a proposta e o uso de tecnologia no
ensino no Brasil não é algo novo. Traçando um breve percurso de 1972,
quando houve a criação do Programa Nacional de Teleducação - PRON-
TEL, até a atualidade, diversos projetos foram criados e até implantados
em algumas regiões de nosso país. Um simples olhar historiográfico
paro o período no qual ocorre a criação do programa de rádio governa-
mental, criado em 1935, durante o governo de Getúlio Vargas, por seu
amigo Armando Campos, intitulado de A Voz do Brasil – que perdura
até hoje com transmissão em dias uteis – no qual tem por objetivo divul-
gar a vida nacional e seus principais acontecimentos, incitando o sen-
timento nacionalista, corrobora com tal afirmativa. Observe o discurso
de Getúlio Vargas em virtude das comemorações da Independência do
Brasil e atente para o fato de que suas palavras, transmitidas via rádio,
tinham o claro intuito de sensibilizar a nação, aflorando o sentimento
patriótico e nacionalista:
A Semana da Pátria neste ano de 1942 assume o caráter
de um movimento de mobilização geral das forças
morais e materiais da nação. Serve para conclamar
os brasileiros ao cumprimento de obrigações penosas
impostas por circunstâncias incontroláveis para as
quais não concorremos, mas a que temos de fazer frente
com quantas energias possamos dispor (aplausos).
(...). Militarmente teremos de completar a mobilização
para fazer face às necessidades efetivas da guerra
(aplausos). No setor econômico, chefes de empresa
e operários cerram fileiras em torno do governo e,
estou certo, em benefício coletivo ninguém poupará
esforços ou bens (aplausos). (...). Seremos implacáveis
no combate aos invasores e aos seus agentes (aplausos)
infiltrados traiçoeiramente no meio das nossas
populações laboriosas…). Em relação aos criadores
de boatos e derrotistas de qualquer nacionalidade
nenhuma complacência existirá (aplausos), serão
segregados do meio social, reduzidos à condição de
suspeitos e declarados indignos da cidadania brasileira
(DÂNGELO, 1998, p. 6-7).

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 227


Em 6 de abril de 1919 aconteceu a primeira transmissão radio-
fônica civil do rádio, realizada pelas ondas da Rádio Clube de Pernam-
buco em Recife. Já em 1922, em alusão ao Centenário da Independên-
cia, a história do rádio no Brasil teve um momento marcante quando o
então presidente Epitácio Pessoa teve seu discurso oficial transmitido
por receptores para algumas regiões do Rio de Janeiro e São Paulo e, na
mesma noite, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro fundada por Edgar
Roquette-Pinto era inaugurada ao transmitir por autofalantes a ópera O
Guarani de Carlos Gomes, no Teatro Municipal.
Ao analisarmos sob o viés educativo, as diferenças entre o Ensino
de História divulgado por meio radiofônico e o transmitido por podcast
são ainda maiores. Dângelo (1998) nos conta que os programas educa-
tivos de rádio transmissores de conteúdos de história possuíam em sua
totalidade um caráter de projeto que moldasse os ouvintes a exaltarem
os símbolos nacionais; além de fornecer “absorção voluntária de valores
morais e imagens mentais de autodisciplina e de amor à pátria e ao tra-
balho”, e ainda destaca que
pleiteava-se, para a radiodifusão educativa, a elaboração
de cenas de uma multidão civilizada no presente, em
contraposição à desorganização de tempos passados.
Ficando em casa, os ouvintes, atingidos nacionalmente
por uma rede de rádio, juntar-se-iam a essa multidão,
recebendo impressões irradiadas das ruas e dos
estádios, em comemorações cívicas preparadas para
saldar os mitos fundadores da nação, os heróis que
realizaram os anseios de liberdade em nome do povo, o
07 de setembro, o 15 de novembro, o 19 de novembro,
o 13 de maio e o 1º de maio. Ocorre, portanto, uma
articulação dessas celebrações pelo rádio educativo
ao ensino de História, bem como à organização dos
dispositivos de censura e produção de manifestações
cívicas nos anos 30 e 40 (DÂNGELO, 1998, p. 3).

Da mesma forma que fizeram e fazem outros tantos líderes políticos


ao usar a educação no âmbito escolar, e fora dela, com o uso das mídias
tecnológicas de massa como o jornal, rádio, a TV e, hoje em dia, as redes

228 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


sociais como Twitter, Facebook, blogs, Instagram e afins para sua exaltação e
feitos políticos divulgando conteúdos sensacionalistas ou falsos.
Todavia para nosso objetivo ser alcançado é importante fa-
zermos uma analogia entre o ensino de História aberto que se fazia
nas décadas de 1930 e 40 através de programas radiofônicos e o
realizado atualmente pelos podcast’s, que no geral podemos concei-
tuar como arquivos de áudio.

11.2 Podcasts e o Ensino de História

Atualmente há uma infinidade de mídias tecnológicas que podem


ser instrumentos de auxílio educacional, os podcastings é uma delas. Apesar
de mídias parecidas já existirem desde os fins da década de 1980 nos Esta-
dos Unidos, a exemplo do RCS ( Radio Computing Services) ou a tecnóloga
desenvolvida por Carl Malamud em 1993, que já permitia que o ouvinte
pausasse o áudio quando tivesse necessidade ou interesse, entre outros sof-
twares de reprodução de áudio que surgiram nos anos seguintes como o
revolucionário Ipod da empresa Apple e outros tantos programas e trans-
missores; nos lares brasileiros o rádio era o principal recurso de áudio.
Em 2004, o jornalista inglês Bem Hammersley, em um artigo no
jornal The Guardian usou o termo “podcast”; e em 2006, o termo atinge
o seu primeiro pico entre os termos mais pesquisados em diversos luga-
res do mundo, incluindo o Brasil. Então essa mídia se populariza e hoje
existem centenas de canais reprodutores desse tipo de arquivo de áudio.
Um crescimento vertiginoso muito próximo do que aconteceu com o
advento do rádio desde que Lee de Forest  fez a primeira transmissão
radiofônica nos Estados Unidos em 1906, perpassando por sua inclusão
em diversas regiões até chegar no Brasil, ainda que esse advento em nos-
so país tenha sido sob a égide legislativa que estabelecia seu uso para ser
exclusivo de militares e governo.
Atualmente, segundo a Associação Brasileira de Emissoras de
Rádio e Televisão (Abert), o rádio está presente em 88,1% dos domicílios

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 229


do país, perdendo apenas para a televisão, que tem penetração de cerca
de 97%. Atualmente, há mais de 9 mil emissoras de rádio funcionando
no Brasil. Isso talvez ajude a explicar o sucesso dos podcastings que pos-
sui uma transmissão parecida.
A priori é importante conceituar o termo podcasting a fim de
que saibamos estabelecer sua diferenciação com o rádio. Para Barros e
Menta (2007):
Podcast é uma palavra que vem do laço criado entre
Ipod – aparelho produzido pela Apple que reproduz
mp3 e Broadcast (transmissão), podendo defini-lo
como sendo um programa de rádio personalizado
gravado nas extensões mp3, ogg ou mp4, que são
formatos digitais que permitem armazenar músicas
e arquivos de áudio em um espaço relativamente
pequeno, podendo ser armazenados no computador
e/ou disponibilizados na Internet, vinculado a um
arquivo de informação (feed) que permite que se assine
os programas recebendo as informações sem precisar
ir ao site do produtor (BARROS; MENTA, 2007, p. 2).

Entretanto, ainda que rádio e podcast se assemelhem a ponto de


algumas pessoas os classificarem erroneamente como iguais, é impor-
tante salientar que existem diferenças. Como nos mostra Freire (2013) o
podcast é uma mídia que não necessita ser transmitida em tempo real, o
que possibilita ao seu consumidor uma flexibilização de onde e quando
escutar, pois, é distribuído pela internet, fato este que ainda o concede
um raio de alcance muito maior que a radiodifusão. De acordo com
Kischinhevsky e Herschmann (2008), a mídia podcasting se apresenta
como uma redefinição do rádio.
Nos dias que correm com dedicação exclusiva ao ensino e dis-
seminação de conteúdos de História e temas afins, há diversos canais
de podcast entre eles o Escriba Café criado em 2014 pelo historiador
Christian Gurtner, classificado como o adventista na área de História
no ramo em nosso país. Icles Rodrigues, também historiador, admi-
nistra o canal ObrigaHistória que tem como objetivo tornar a história

230 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


acadêmica acessível a todos, usando para isso uma linguagem mais
palatável ao grande público. Ensinar História em trinta minutos de
forma informal, animada e com objetividade é a proposta do professor
de História Vitor Soares do podcast História Em Meia Hora que tam-
bém responde e tira dúvidas de seus seguidores do Instagram (uma
rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus
usuários, que permite aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma
variedade de serviços de redes sociais) e grupo fechado no Telegram
(serviço de mensagens instantâneas).
Em se tratando de linguagem informal, um grande destaque é
para o História no Cast que é uma extensão do História no Paint, perfil
existente em outras redes sociais e que contribuiu para disseminar me-
mes (a expressão “meme” é usada para se referir a qualquer informação
que viralize, sendo copiada ou imitada na rede) desenvolvidos a partir
de momentos, capítulos, fatos marcantes da história do Brasil e do mun-
do. História no Cast, diferente dos demais canais já citados, é de proprie-
dade e administração de Leandro Marin que ainda é estudante da área,
status que em nenhum momento o desclassifica ou o diminuiu diante da
concorrência com canais de personalidades já renomados na área, ainda
que não sejam historiadores como é o caso de Eduardo Bueno, escritor,
jornalista e criador de conteúdo no YouTube (plataforma de compar-
tilhamento de vídeos) em seu canal Buenos ideias, canal este fonte de
germinação de seu primeiro e demais episódios de podcast que no geral
contem episódios curtos de no máximo 20 minutos com dedicação qua-
se que exclusiva à história do Brasil. Esses podcasts estão disponíveis em
diversos meios streamings (distribuição de conteúdo multimídia pela
internet) gratuitos ou pagos, como Spotify. Apple, Anchor FM, Dezzer,
Castbox, SoundCloud e Google Poscasts.
O jornalismo que durante muito tempo teve como única fonte
de reprodução e disseminação o modo impresso, depois acompanhou
as mudanças tecnológicas ampliando-se para o rádio e posteriormente
TV e então a internet, também desenvolve seus conteúdos em forma de
podcast. O Jornal Folha de São Paulo, por exemplo, possui o canal de

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 231


podcast sob o título de Café da Manhã conduzido por Rodrigo Vizeu e
Magê flores, ambos jornalistas, no qual publicam episódios de segunda
a sexta-feira, nas primeiras horas da manhã, onde geralmente é expos-
to situações políticas e econômicas atuais do país e o canal Presidente
da Semana que se dedica a expor cronologicamente a vida e feitos dos
grandes chefes políticos de nossa nação. Seguindo esse fio há canais do
Grupo Globo, maior conglomerado de mídia e comunicação do Brasil
e América latina, estando portanto em um número exorbitante de lares
brasileiros, como o GloboNews Internacional, Hub Globonews e o Papo
de Política, este último apresentado pelas jornalistas Natuza Nery, Maju
Coutinho, Julia Dualibi e Andréia Sadi que antes era apenas uma pro-
grama de estúdio e desde seu esqueleto teve como objetivo informar ao
grande público informações exclusivas de Brasília e tecer análises sobre
acontecimentos internacionais.
Outros canais exclusivos de política que analisamos e destaca-
mos são: Politize!, fruto de uma Organização sem fins lucrativos (ONG),
que possui o mesmo nome e que busca contribuir para a formação de
cidadãos dotados de consciência política; o Politiquês, produzido pelo
Jornal Nexo; Nós Brigamos no War, que é de formato semanal; Justifican-
do, produzido semanalmente com a proposta de analisar temas relacio-
nados à justiça e política do momento; Temacast que foca em aconteci-
mentos históricos do Brasil e do mundo. Assim também como existem
canais como o Lado B do Rio que exibe o ponto de vista da periferia do
Rio de Janeiro e o Olhares Podcast que é definido como um projeto fe-
minista, ou seja, busca evidenciar as lutas, ações afirmativas, conquistas
e participações sob a ótica feminina.
O que é comum destes diversos canais de podcasting de Ensino
de História, transmissão de conteúdos atuais de política e assuntos di-
versos, é a quase ou total ausência de uma política controladora estatal
como era perceptível no Estado Novo sob a liderança de Getúlio Var-
gas ou em outras épocas em que os elementos norteadores do ensino
de história ainda eram conectados ao ensino de valorização da pátria,
seus símbolos engessados em feitos heroicos e datas comemorativas e a

232 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


censura era corriqueira. Não queremos ocultar ou negar que ainda exis-
tam produções, projetos, sistemas de ensino com um viés de pedagogia
nacionalista, entretanto observa-se que ainda que com passos lentos, ao
longo dos últimos anos, houve mudanças e conquistas de liberdade no
campo teórico e nas práticas educacionais.
Destarte, é importante frisar que os perfis de podcast também
possuem uma linguagem com menos rigor acadêmico, tornando os
conteúdos historiográficos ao grande público mais palatáveis e muitos
destes, ainda que exprimam uma linguagem coloquial, não cometem
anacronismos ou erros grotescos. Conseguem contar história de forma
plausível sem que seja necessário ser apelativo.

11.3 O ensino de História e os novos desafios

Desafio, substantivo masculino que indica a existência de algo


que deve ser ultrapassado, vencido. Recentemente os profissionais da
educação e a comunidade escolar em geral foram aguilhoados para uma
adaptação e inovação à sua rotina de trabalho e estudo devido à pan-
demia do Covid-19. Muitos viviam suas vidas tranquilas e suas rotinas
seguiam o roteiro proposto, as “águas de março estavam prestes a cair
para fechar o verão” e em muitas instituições de ensino o cronograma
apontava para o fechamento do primeiro bimestre.
Aulas transmitidas via internet em tempo real, alunos estudando
por smartphones, tablet’s e notebooks? Coisa do futuro. Eis que o vislum-
brado para um futuro distante chegou e com o “futuro presente” ultra-
passar e vencer novos desafios tem sido a única opção. Novos debates,
estudos e propostas para o ensino de história estão no centro das discus-
sões acadêmicas, assim como tem acontecido na esteira da história da
educação ao longo de sua trajetória como veremos a seguir.
Segundo Bittencourt (2011), as décadas finais do século XX,
principalmente a partir de 1980, foram palco de intensos debates, aná-
lises e pesquisas a respeito do Ensino de História, e o que era notório

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 233


é que o que se convencionou chamar de história tradicional ainda era
o principal meio de difusão do conhecimento histórico nos estabele-
cimentos de ensino superior e espaços escolares de ensino básico. Os
grandes heróis e seus feitos, a busca pela construção de uma identidade
nacional espelhado ao que fizeram os franceses, era o retrato do Ensino
de História em nosso país, dentro ou fora das paredes da sala de aula.
Com todas as transformações ocorridas, a Historiografia tor-
nou-se cada vez mais polissêmica e essa multiplicidade trouxe novos
desafios e campos de pesquisa para os profissionais da era, como por
exemplo a Historiografia ou História digital, ainda que segundo Ani-
ta Lucchesi (2014) não exista um consenso na historiografia sobre
a definição de Historiografia ou História Digital, é indiscutível que
este campo vinculado ao ciberespaço (espaço de comunicação vir-
tual) está presente em nosso dia a dia em todos os níveis de educação
em História e demais áreas.
O cenário atual nos incita a “ser tecnológicos” pois o nosso público,
em sua maioria, é formado por nativos digitais (termo criado pelo norte-a-
mericano Marc Prensky) e até as ciências auxiliares do campo historiográfi-
co ganhou novos parceiros como por exemplo: a tecnologia da informação,
com programadores de bancos de dados, desenvolvedores de softwares, es-
pecialistas em websites. Os diários são online, as tendências de gameficação
do/no ensino são reais, lecionamos de forma remota mediada por tecno-
logias, aplicamos testes, quizz e até o principal exame de acesso ao ensino
superior do Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM terá uma
versão digital em sua próxima edição. Ser e fazer parte desse mundo digital
já não é uma escolha, é imprescindível.
Segundo Lucchesi (2014), esse cenário “trata-se de uma intensi-
ficação das mudanças experimentadas na globalização” que nos inseriu
no já citado ciberespaço. Por ciberespaço (LÉVY, 2000) define ser “espa-
ço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computado-
res e das memórias dos computadores”.

234 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


Considerações finais

Diante do rol de canais de podcasts elencados é notório que essa


mídia digital, assim como o rádio, a TV, e as redes sociais no atual cená-
rio possui um papel respeitado e com grande potencial educativo, seja
para a História ou outras áreas do conhecimento. Ainda de acordo com
Rodrigues (2020):
No Brasil do total de 120 milhões de usuários da
internet, cerca de 50 milhões já ouviram algum podcast
pela internet. Os jovens são a maioria no uso desse
tipo de mídia. Segundo pesquisa do Ibope (2019) a
preferência pelo podcast esteve relacionada a suas
facilidades e funcionalidades de uso através do celular,
sendo o equipamento mais usado pelos brasileiros
para o acesso aos podcasts, além disso a possibilidade
de escolher aquilo que quer ouvir atrai os jovens
(RODRIGUES, 2020, p. 73).

É bem da verdade que há ainda uma parcela considerável de pes-


soas que sequer ouviram falar sobre podcast, e não possuem mídias tec-
nológicas contemporâneas, fato este que não diminuiu o seu lugar como
transmissor de conhecimento para a geração da web 2.0 e para os não
nascidos digitais ou para aqueles que estão se adequando a esse meio.
E partindo do que foi proposto para o artigo, é perceptível que,
diferentemente do que ocorria com o Ensino de História através de ra-
diodifusão nas décadas de 1930 e 1940, houve um avanço nas conquis-
tas de liberdade de expressão, conteúdos e métodos de ensinar histó-
ria. Creditamos parte desse avanço ideológico e prático às novas pautas
implementadas pelos escolanovistas, as mudanças socioeconômicas, ao
avanço e popularização da internet e ao aumento de poder de compra
das classes populares perceptíveis nos últimos quinze anos.
A tecnologia e as mídias, sejam elas oitocentistas ou atuais, exer-
cem um papel transformador para a sociedade de seu tempo e a Histó-
ria enquanto ciência tem por obrigatoriedade se inserir e se apropriar
intelectualmente das mudanças advindas de seu objeto de estudo: a hu-

O Ensino de História em foco: narrativas, desafios e proposições 235


manidade. E contribuir para a difusão e aprendizado dessas novas tec-
nologias e mídias digitais é uma das funções da escola como nos aponta
Bittencourt (2008):
Consideramos que a escola e em particular o ensino
de história tem um papel fundamental nesse processo.
É ela, em última instância o lócus privilegiado para
o exercício e formação da cidadania, que se traduz,
também, no conhecimento e valorização dos elementos
que compõem o nosso patrimônio cultural. Ao
socializar o conhecimento historicamente produzido e
preparar as atuais e futuras gerações para a construção
de novos conhecimentos, a escola está cumprindo seu
papel social (BITTENCOURT, 2008, p. 7).

A inclusão e o uso de tecnologias educacionais conectam-se à


uma questão fundamental do ensino que é a da qualidade deste ensino
e da aprendizagem. Isso porque novas tecnologias como uso da internet
para visitações em museus em tempo real, por exemplo, possibilitam
práticas pedagógicas inovadoras que envolvem os discentes e, como re-
sultado, podem derivar em um aprendizado significativo além de agre-
gar novos saberes aos profissionais da educação.
Obviamente é sabido que a realidade de muitas escolas brasilei-
ras possui uma estrutura de ensino quilometricamente distante da pos-
sibilidade do uso e da existência de tecnologias digitais seja no campo
material ou no preparo pedagógico. E para lidar com o desconhecimen-
to e/ou inexperiência dos profissionais da educação, cabe aos cursos de
formação superior no âmbito das licenciaturas e os governos munici-
pais, estaduais e federal prover aos professores a capacitação necessária
para inserir tecnológicas educacionais com metodologias ativas em suas
práticas pedagógicas cotidianas, incluindo o uso do podcast.
E é importante frisar o uso das tecnologias digitais auxiliadas
por metodologias ativas, caso contrário corre-se o risco de cair no
mesmo modelo tradicional de ensino onde a única novidade e dife-
rença é o uso da TV, do computador ou outro item tecnológico e o
resultado disso será pífio.

236 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)


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238 Bruno Silva & Anna Coelho (Organizadores)

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