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Artigo
Publicado em
27/08/2020
Num inverno do início dos anos 1980, reencenava-se em uma família da região
metropolitana de Curitiba a tragédia da violência doméstica que
lamentavelmente nunca sai de cartaz. Nesse episódio, o marido espancou a
esposa e tentou matá-la a facadas. (Ele se enfurecera ao chegar em casa e
flagrá-la ouvindo a missa no rádio, acreditando que ela rezava para que ele
parasse de beber.) Quando recebeu a primeira punhalada, a mulher segurava o
bebê deles nos braços; conseguiu que o menino fosse salvo por uma filha mais
crescida, tentou fugir e, ao ser encurralada pelo marido, acabou matando-o a
golpes de enxada.
O caso foi noticiado no hoje extinto O Estado do Paraná, e a matéria ocupou três
colunas de uma página ímpar. A pessoa que a redigiu explorou recursos de
linguagem que se costuma encontrar mais na literatura do que no jornalismo
policial, com semântica e sintaxe pensadas não só para informar, mas também
para agradar.
Outro patamar
Não há muita novidade no fato de que o Vampiro (mas não só ele) bebe dos
gêneros textuais de periódicos — a fotonovela e as páginas policiais, em especial
— para escrever seus contos. Berta Waldman, estudiosa do autor, é uma das que
ressaltam isso em Ensaios Sobre a Obra de Dalton Trevisan. Miguel Sanches Neto
também, no prefácio à sua coletânea Biblioteca Trevisan, quando fala do
aproveitamento pelo escritor das linguagens estereotipadas ou endurecidas.
Fascinada por esse percurso, quis saber diretamente de Ignácio como tinha sido
o achado. Procurei seu nome no Facebook, enviei uma mensagem e ele
prontamente respondeu. Ignácio contou que, quando bolsista de um projeto de
iniciação científica, passava as tardes na Biblioteca Pública do Paraná folheando
jornais dos anos 1980 para uma pesquisa sobre o teatro curitibano daquela
década. Ao dar de cara com a notícia sobre o assassinato em legítima defesa,
pensou já tê-la visto antes, mas sabia que não. Caiu então a ficha: não era déjà-
vu, era lembrança do conto.
Humanidades
A história em si é deliciosa, mas é igualmente exemplar quanto a certos aspectos
da pesquisa acadêmica. Essa pesquisa, na área de humanidades, parece
dispensável porque não produz vacinas, nem novos equipamentos, nem
materiais de construção mais baratos. Pior ainda, se for de áreas como as artes e
a literatura, sua importância e relevância são especialmente postas em cheque,
subestimadas, esvaziadas. É difícil viver dela, e praticamente o único capital que
com ela se acumula é o simbólico, a reputação. Tal reputação se mede pelo
reconhecimento de que os produtos dessa pesquisa foram lidos, apreciados,
referenciados e citados, e que ajudaram a construir novas pesquisas,
publicações, fortunas críticas, maneiras de se ler e de se entender obras de arte,
artistas e mesmo o mundo.
Daí a importância de se dar crédito não apenas às obras que citamos, mas
também a outros fazeres constituintes da atividade de pesquisa. É justo e
generoso referenciar em nossos trabalhos aqueles por meio dos quais ficamos
sabendo de uma metodologia, de uma referência, de uma prova material de
intertextualidade, de uma preciosidade escondida em um arquivo. Ninguém paga
boleto com esse tipo de crédito, como muito bem sabe quem vive das
humanidades, mas nem por isso ele deixa de ser um débito de quem publica
suas pesquisas com base nas descobertas feitas por outros.
Eu, por exemplo, estou em débito com a inspirada pessoa que redigiu a notícia.
O fac-símile que tenho não traz seu nome.