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Pensata | Adriana Tulio Baggio

Artigo
Publicado em
27/08/2020

A coluna abre espaço para que escritores, tradutores, jornalistas e


pesquisadores reflitam sobre temas ligados à literatura, livro e leitura.
Nesta edição, Adriana Tulio Baggio mostra como a ficção pode se
alimentar do jornalismo e a importância de apontar as referências
utilizadas em trabalhos autorais.

Em débito com o crédito

Ilustração: Mário de Alencar

Num inverno do início dos anos 1980, reencenava-se em uma família da região
metropolitana de Curitiba a tragédia da violência doméstica que
lamentavelmente nunca sai de cartaz. Nesse episódio, o marido espancou a
esposa e tentou matá-la a facadas. (Ele se enfurecera ao chegar em casa e
flagrá-la ouvindo a missa no rádio, acreditando que ela rezava para que ele
parasse de beber.) Quando recebeu a primeira punhalada, a mulher segurava o
bebê deles nos braços; conseguiu que o menino fosse salvo por uma filha mais
crescida, tentou fugir e, ao ser encurralada pelo marido, acabou matando-o a
golpes de enxada.

O caso foi noticiado no hoje extinto O Estado do Paraná, e a matéria ocupou três
colunas de uma página ímpar. A pessoa que a redigiu explorou recursos de
linguagem que se costuma encontrar mais na literatura do que no jornalismo
policial, com semântica e sintaxe pensadas não só para informar, mas também
para agradar.

Não apenas pela antítese da manchete — “Parou a Missa para se Defender e


Matar” —, pois títulos construídos a partir de figuras de retórica são recorrentes
nas abordagens ditas sensacionalistas. A cor que se pode chamar de literária
tinge também o restante da matéria e resulta em maneiras de relatar os fatos
que podem provocar uma inoportuna satisfação. Afinal, como se permitir a
fruição estética de um texto que noticia episódio tão triste e violento? Mas é o
que acontece quando, por exemplo, lemos “Ele, dado a vício de embriaguez”,
como informação de que o marido agressor era alcoólatra.

Alguns anos depois, Dalton Trevisan publicou o conto “Morre, Desgraçado” (o


primeiro do livro Pão e Sangue, de 1988). Nessa história, um homem chega em
casa bêbado, fica com raiva da esposa que ouve a missa no rádio, tenta matá-la
e acaba sendo morto por ela. O golpe final que a mulher desfere é acompanhado
pela sentença do título. O texto é curto, a linguagem é seca, as frases são
enxutas. É um relato muito mais cru do que o da notícia de jornal, e muito menos
comovente. Como se fosse um escambo — talvez um tributo? — com a notícia
que o inspirou, o conto opera em alguns momentos um simulacro do gênero
jornalístico policial, assim como a notícia havia operado o estilo literário.

 
Outro patamar
Não há muita novidade no fato de que o Vampiro (mas não só ele) bebe dos
gêneros textuais de periódicos — a fotonovela e as páginas policiais, em especial
— para escrever seus contos. Berta Waldman, estudiosa do autor, é uma das que
ressaltam isso em Ensaios Sobre a Obra de Dalton Trevisan. Miguel Sanches Neto
também, no prefácio à sua coletânea Biblioteca Trevisan, quando fala do
aproveitamento pelo escritor das linguagens estereotipadas ou endurecidas.

O que há de novidade é conhecermos a exata notícia de jornal que teria


inspirado determinado conto. Isso poderia levar a outro patamar as análises a
respeito da imprensa marrom (Waldman) ou do estilo forense (Sanches Neto)
como fonte de inspiração daltoniana. Um achado como esse possibilita estudos
bastante produtivos a respeito de linguagem, efeitos de sentido, crítica genética,
recepção, processo criativo, intertextualidade, a literariedade no jornalismo e sua
contraparte, o ready made (Waldman) e a bricolagem (Sanches Neto)
jornalísticos na literatura, e por aí afora.

Então, qualquer uma dessas potenciais análises seria tributária, primeiramente,


da descoberta da relação entre os textos.

Fui apresentada à ligação genética entre “Morre, Desgraçado” e “Parou a Missa


para se Defender e Matar” em um curso sobre Dalton Trevisan ministrado na
Universidade Federal do Paraná pela professora Raquel Illescas Bueno, que tem
pesquisado as manifestações críticas do autor, especialmente no gênero
epistolar. Raquel, por sua vez, soube deles através do também professor Marcelo
Lima, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná; foi Marcelo quem indicou
o responsável pela descoberta, Ignácio Dotto Neto, e disse que teve essa
informação a partir de Ana Paula Peixoto, no final dos anos 1990.

Fascinada por esse percurso, quis saber diretamente de Ignácio como tinha sido
o achado. Procurei seu nome no Facebook, enviei uma mensagem e ele
prontamente respondeu. Ignácio contou que, quando bolsista de um projeto de
iniciação científica, passava as tardes na Biblioteca Pública do Paraná folheando
jornais dos anos 1980 para uma pesquisa sobre o teatro curitibano daquela
década. Ao dar de cara com a notícia sobre o assassinato em legítima defesa,
pensou já tê-la visto antes, mas sabia que não. Caiu então a ficha: não era déjà-
vu, era lembrança do conto.

Humanidades
A história em si é deliciosa, mas é igualmente exemplar quanto a certos aspectos
da pesquisa acadêmica. Essa pesquisa, na área de humanidades, parece
dispensável porque não produz vacinas, nem novos equipamentos, nem
materiais de construção mais baratos. Pior ainda, se for de áreas como as artes e
a literatura, sua importância e relevância são especialmente postas em cheque,
subestimadas, esvaziadas. É difícil viver dela, e praticamente o único capital que
com ela se acumula é o simbólico, a reputação. Tal reputação se mede pelo
reconhecimento de que os produtos dessa pesquisa foram lidos, apreciados,
referenciados e citados, e que ajudaram a construir novas pesquisas,
publicações, fortunas críticas, maneiras de se ler e de se entender obras de arte,
artistas e mesmo o mundo.

Daí a importância de se dar crédito não apenas às obras que citamos, mas
também a outros fazeres constituintes da atividade de pesquisa. É justo e
generoso referenciar em nossos trabalhos aqueles por meio dos quais ficamos
sabendo de uma metodologia, de uma referência, de uma prova material de
intertextualidade, de uma preciosidade escondida em um arquivo. Ninguém paga
boleto com esse tipo de crédito, como muito bem sabe quem vive das
humanidades, mas nem por isso ele deixa de ser um débito de quem publica
suas pesquisas com base nas descobertas feitas por outros.

Eu, por exemplo, estou em débito com a inspirada pessoa que redigiu a notícia.
O fac-símile que tenho não traz seu nome.

Post scriptum: “Morre, Desgraçado” é ficção; “Parou a Missa para se Defender e


Matar” fala de pessoas reais, que viveram uma imensa tragédia em suas vidas.
Essas merecem nada menos que respeito e privacidade.

ADRIANA TULIO BAGGIO é redatora, revisora, tradutora (italiano-português) e


editora. Graduada em Comunicação Social — Publicidade e Propaganda pela
Universidade Federal do Paraná, é mestre em Letras pela Universidade Federal
da Paraíba e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.

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