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SUMÁRIO

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RESUMO: Afim de tecer esta discussão é imprescindível corroborar que a arte tem sido um
conceito, uma noção ou ainda uma categoria controversa para a teoria antropológica desde
a sua formulação e (re)formulação e posterior engajamento epistemológico. Mediante isto,
a Antropologia ficou muitas vezes entre o reconhecimento da singularidade cultural de
objetos e práticas que não poderia qualificar como arte sem cair no etnocentrismo,
reducionismo e esforço para compor tão amplas que incluem uma variedade de práticas
humanas e não-humanas sobre os quadros comparativos da experiência estética. Para sair do
espaço definido por estes dois discursos, Alfred Gell o principal propulsor da Antropologia
da Arte moderna, sugeriu que a experiência da arte tem a ver com uma forma especial de
atribuição de agência a objetos e imagens. Assim, podemos considerar que este fenômeno
pode ser o ponto de partida para desenvolver uma verdadeira teoria antropológica da arte,
construída sobre a especificidade e particularidade da disciplina e suas ferramentas
conceituais. Por assim dizer, a abordagem levanta questões sobre a definição dos conceitos
de agência, personalidade e materialidade que comprometem outras versões de análise
crítica cultural. Portanto, o presente capítulo buscar realizar uma investigação histórica do
desenvolvimento da disciplina Antropologia da Arte, perpassando por diferentes teorias,
tradições e perspectivas tendo como eixo propulsor a cultura material, arte e cosmologia
Guarani de Mato Grosso do Sul.

Palavras-chave: Epistemologia da Arte, História disciplinar, Cultura material, perspectivas


teóricas, Guarani de Mato Grosso do Sul.

1. As nuances históricas: dialogando com diferentes autores e perspectivas

Nas últimas décadas e sobretudo, a partir da chamada virada ontológica,


antropologia reversa ou ainda antropologia compreensiva e cruzada- a antropologia
ultrapassou concepções dominanteV GH UHSUHVHQWDomR SDUD ³HYRFDomR´ ³ILJXUDomR´
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conhecimento aberto e, muitas vezes, improvisatório, a envolver emoções, materiais, corpo
e sentido. Toda essa perspicácia e mudança foi acompanhada por um interesse em novas
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conhecimento de uma dada etnia, sociedade ou ainda cultura. Mediante isso, campos como
estudos da cultura material, antropologia visual e arte contemporânea foram frequentemente
recrutados para oferecer novos insights sobre pesquisa antropológica e novos caminhos para

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o estudo de respostas emocionais, sensoriais e cinestésicas, ao lado de respostas
interpretativas, que ganhou grande notoriedade a partir do antropólogo norte-americano
Clifford Geertz. Portanto, esses desenvolvimentos aproximaram ainda mais a Antropologia
da Arte e está se tornando cada vez mais óbvio que a arte ameríndia tem muito a nos oferecer,
não apenas como objeto de estudo, mas também como interlocutora, colaboradora e
mediadora, a fomentar novas ideias e posteriormente possibilitar novas formas de
abordagens históricas, sociológicas, antropológicas e filosóficas na contemporaneidade.

Partindo do pressuposto acima- as dilatadas relações que envolvem arte e


antropologia são antigas e na atualidade contemporânea ainda é marcada por diversos
quebra-cabeças epistemológicos, paradigmáticos ou mesmo ontológicos, onde as maiorias
referem-se sobre a própria noção ou termo "arte", ou seja, o que seria arte e o que não seria
arte? como corrobora em seu artigo o antropólogo da Universidade de São Paulo Pedro
Niemayer Cesarino (2017). Mediante isso, dois elementos serão fundamentais nesse viés
histórico: (i) a noção de objeto propriamente dito e (ii) do sujeito produtor ou artesão, como
muitos preferem. Essas indagações remontam tanto à constituição da antropologia como
ciência quanto à formação das iconografias de distinção do mundo Ocidental moderno com
díspares comunidades, sociedades ou ainda estruturas sociais vigentes de outrora a
atualidade contemporânea.

Em se tratando de Brasil- um dos primeiros estudiosos da arte indígena foi Darcy


Ribeiro- praticamente um pioneiro- realizou pesquisa acerca das artes Kadiwéu (povos
indígenas pertencente ao tronco linguístico Guaicuru, habita principalmente o Estado de
Mato Grosso do Sul no Brasil e uma pequena porção no Paraguai- originou-se dos antigos
Embaiás) ainda na década de 1940, onde percebeu que havia uma diferenciação de gênero,
onde os homens eram responsáveis pelas artes naturalistas (esculturas em madeiras e
modelagens); já as mulheres elaboravam as figuras geométricas (pinturas). O autor corrobora
TXH³DDUWHPHOKRUTXHTXDOTXHURXWURDVSHFWRGDFXOWXUDH[SULPHDH[SHULrQFLDGRSRYR
que a produziu e somente dentro de sua configuração cultural ela pode ser plenamente
FRPSUHHQGLGDHDSUHFLDGD´ 5,%(,52S  Dessa forma, fica evidente que a arte
indígena mais estudada no Brasil é a arte Kadiwéu, iniciou com Lévi-Strauss, Boggiani,
passando por Darcy e Berta Ribeiro- e mais recentemente Vinha, Duran e Muller, para citar
alguns.

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Assim dentro da Antropologia Sociocultural a cultura material de modo geral tem se
mostrado como uma temática de grande valia no mundo contemporâneo, ficando evidente
nas produções acadêmicas nas últimas décadas, no Brasil, Europa e Estados Unidos, onde
vários pesquisadores tem se dedicado a ele. Mas sabemos, que nem sempre foi assim. Em
outrora e, não muito remoto a cultura material era entendida apenas como um elo ilustrativo
de pesquisa, onde o elemento centralizador era a organização social dos povos indígenas, ou
seja, a essência epistemológica era o simbolismo cosmológico. Mas ao longo da história,
foram sendo construído fundamento teórico que modelaram o campo da cultura material
como um campo novo- uma engrenagem nova foi postulada, sobretudo um espaço para
novas abordagem antropológica. Mas a pergunta principal que emerge é a seguinte: quando
surge o interesse em interpretar os povos com base nos objetos propriamente materiais ou
artísticos?

Para que possamos contextualizar essa problematização referentes aos pressupostos,


é necessário rememorar alguns conceitos fundamentais, sobretudo, atrelado a trajetória de
formação ao longo da história como enfatiza o referido pesquisador. Dito isso, sabe-se que
a instituição dessas imagens é coletada de díspares dicotomias, que no entender de Cesarino
(2017), ainda marca profundamente a episteme ocidental contemporâneo, tais como:
escrita/oralidade, mito/história, natureza/cultura, simples/complexos e arte/artefato- esse
último utilizada ao longo do século XIX, sobretudo, para delinear a separação entre museus
de belas artes e outras instituições dedicados aos artefatos de cunhos etnográficos,
etnológicos e históricos, aparentemente destituídas de beleza e provida apenas de função
utilitária.

Como destaca Aline Maria Muller em sua tese de doutoramento defendida


recentemente na Universidade de Coimbra (2018), coleções etnográficas são instituídas e
prosseguidas desde tempos longínquas. Traz o exemplo de Musaeum, templo dedica às
musas de Alexandria, no Antigo Egito, era vista com a casa das artes da filosofia, que abrigou
textos e materiais que foram confeccionados por diferentes aventureiros mundos afora. Os
romanos também coletavam objetos vindos de toda a expansão do seu império, embasado
em dois princípios fundamentais: o poder e o prestígio. Ainda na Europa, sobretudo, na
época do Renascimento, os gabinetes de curiosidades se tornaram moda, onde abrigavam
artefatos etnográficos, réplicas de animais, fósseis ou mesmo amostras geológicas. Podemos
enfatizar que nesse período colecionar objetos ou materiais de outros povos se tornou uma
pratica frequente em todo o continente europeu, enriquecendo ainda mais os gabinetes.

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Do ponto de vista de Cesarino e Muller (2017 e 2018 respectivamente), não tardou,
entretanto, para que os objetos vindouros das sociedades ditas primitivas fossem também
levados a categoria de arte, principalmente pelas eminências unilaterais de critérios de beleza
e técnica complexa, voltado para a cosmovisão de determinada sociedade. Um exemplo
considerado clássico nesse processo tratam-se das artes das civilizações Maias, Astecas e os
Incas, que a partir do século XIX passaram a ser consideradas obras de artes, como enfatiza
Braun (1993).

A partir dos postulados anteriores, destacamos que seja através do ponto de vista
científico, onde merece destaque a evolução humana com base de séries de artefatos, à
maneira de Pitt-Rivers e de sua singular coleção hoje concentrada na Universidade de
Oxford- Inglaterra (ver Muller, 2018), ou ainda, seja pelo ponto de vista propriamente
estético (Ver Cesarino 2017), no qual o colonialismo ocidental era responsável não somente
por deslocar ou destoar objetos de suas sociedades e contextos, onde merece destaque a
famosa expedição de Griaule e Leiris a Dakar-Djibouti, no qual emergiu inicialmente o
termo arte/artefato de maneira arbitrária, dicotômica ou ainda diferenciada.

Em meado do século XX o antropólogo Alfred Kroeber, começou a alçar


determinadas peças arqueológicas, principalmente aquelas vindas das culturas Chavín,
Mochica, e Marajoara aos graus/categorias de história da arte por indagar que esses
artefatos destacavam-se pelas belezas suntuosas artísticas ou decorativas com relação as
outras culturas elencados por ele como "inferiores", destituídas de fluidez, expressão,
fluência e outras qualidades capazes de ocasionar ou gerar obras-primas de viés
contemplativos, como entende Cesarino (2017). Entretanto, com base na inferência de
Hegel, Kroeber acreditava que obras eram feitas de maneiras individualizados por diversos
autores, a proporcionar apogeu em diferentes sociedades, onde se projetava atraso e avanço,
no qual era possível medir o grau de desenvolvimento. Essa maneira de enxergar as
sociedades já está em desuso, pois é impossível medir o grau desenvolvimento de uma
sociedade com bases em artefatos.

Ainda neste sentido, é importante destacar que essas apropriações unilaterais de


manifestações ou exibições materiais alheias na interpretação de Cesarino (2017), seriam
responsáveis direta e indiretamente, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX,
pela abertura de arranjos institucionais e posteriormente de discursos alternativos à
idealização clássica tradicional da noção de arte. Por assim dizer, essas análises e descrições

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foram de grande relevância tanto para a (re)formulação da Antropologia como ciência ou
epistemologia (e aqui cabe enfatizar a destruição do Evolucionismo elaborada por Franz
Boas e, isso do ponto de vista teórico, metodológico e expográfico- ver Jacknis, 1985) quanto
ao realçamento da própria estética ocidental, que a posteriori passaria por significativas
transformações através das experiências modernistas contemporâneas.

Nesse viés o antropólogo estadunidense James Clifford ao referir-se sobre Paris- no


início do século XX intitula-o de "surrealismo etnográfico", ambiente artístico e intelectual
em efervescência oportuno para a formação e reformulação de variados elementos e
conceitos históricos e atuais. Dito isso, Cesarino (2017), compreende ainda que esse contexto
como fragmentação e justaposição de valores culturais marcado pela espiritualidade crítica.
Ainda nesse processo destaca-se a coleção heteróclita do Musée du Trocadéro e a atividade
intelectual de figuras como Marcel Mauss possuíam um papel de grande relevância e a
rebaixar os famosos cânones, as desconstruções de costumes consideradas racistas e
preconceituosas, a desfamiliarização, etc.

A partir daí, as produções vindas de vários cantos do mundo, de culturas ou


sociedades consideradas primitivas ou ágrafas, começaram cada vez mais ganhar espaço e
notoriedade em diversos lugares do globo, principalmente na Europa em formatos de
coleções etnográficas, históricas e arqueológicas, onde autores como Mauss, Métraux e
outros se destacaram. Esses acervos raros foram estudas por pensadores como Georges
Bataille. Desta formD ³HVVDV SRVVLELOLGDGHV´ LQWHUSUHWD &OLIIRUG ³EDVHDYDP-se em algo
PDLVGRTXHXPYHOKRµRULHQWDOLVPR¶HODVUHTXHULDPDHWQRJUDILDPRGHUQD´ S-
125). Isso em outra linguagem significa uma etnografia ou metodologia dispare de pesquisa
empírica que por muito tempo serviram de base para as três escolas antropológicas mais
conhecidas: a Antropologia cultural estadunidense, a Antropologia Social britânica e pôr fim
a Etnologia Francesa.

O chamado surrealismo etnográfico se aproximaria de elementos comuns ou


semelhantes a antropologia e às artes ocidentais do século passado. Isso ganharia vida com
a desfamiliarização ancorado no estranhamento produzidas de acordo com o pensador pelos
trabalhos de campos em diferentes sociedades. Podemos dizer que essa dinâmica complexa
causou um certo encantamento no antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, que em
determinado momento disse ter encontrado em Marx Ernst a eficácia de revelar estranha
recíproca dos fragmentos, sobretudo, tratando-se dos mitos ameríndios idealizados nas

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famosas Mitológicas, que até o presente momento causa um mal estar nos antropólogos pela
sua complexidade heterogênea de trazer as dinâmica a envolver cosmologias tão dilatadas e
emaranhadas.

Fica claro que o mesmo surrealismo etnográfico a época não se demonstrava


totalmente eficiente para desmantelar as configurações estéticas e as refutações vinculados
nas dicotomias que permaneceram nos estudos que envolviam direta e indiretamente as artes
em diferentes esferas. Assim, o ressentimento a respeito de sua origem e potencialidade
levaram a organização de similaridades sociais e elaboração de encantamentos individuais.
Dessa forma, autores como Joaquín Torres-García, Alberto Giacometti, Joseph Albers e
Constantin Brancusi se destacaram por tentar compreender as dinâmicas estéticas e
artísticas. Cesarino (2017) em sua argumentação corrobora que as questões e invenções de
cunhos modernistas do chamado Ouro e seus instrumentos não estavam, entretanto,
precisamente direcionadas para neutralizar as ditas dicotomias, mesmo que pretendessem
certificar o status DVVHUWLYR³DQFHVWUDO´HPVXDVHVWpWLFDVGHOLEHUDWLYDV'LWRLVVRRSHQVDGRU
enfatiza sobre as exposições os seguintes postulados:

Tampouco as exibições e as instituições de arte conseguiriam superá-las ao


longo do século XX, apesar de esforços diversos e sempre submetidos a
polêmicas, feito as que envolveram exposições como Magiciens de la Terre
(Paris, Centre Georges Pompidou, 1989, curada por Jean-Hubert Martin),
Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Modern and the Tribal
(Nova York, MoMA, 1984, curada por William Rubin) e Art and Artifact
(Buffalo Museum of Science, 1989, curada por Susan Vogel), entre outras
(CESARINO, 2017, p. 2-3).

Partindo deste pressuposto, um autor que se preocupou com artes e povos


tradicionais, desde um viés antropológico propriamente dito, como citado anteriormente
trata-se do britânico Alfred Gell (1998), falecido precocemente, onde destacou que a partir
do momento em que os objetos são inseridos nas condições de atores/personagens sociais
em diferentes sociedades e contextos, acabam influenciando diretamente o fluxo da vida
social e produzindo um encantamento tecnológico nos indivíduos/sujeitos da história. O
autor ainda destaca que as artes levam a abduções, ou seja, inferências com relação às
intenções e ações de outro agente. Dessa forma, são carregados de emoções, relações, ações
e sentidos diversos (agencias), como destaca Lagrous (2010). Por mais que haja crítica sobre
a obra de Gell, o autor continua sendo fundamental para estudo da cultura material.
Complementando Gell ideia de que em certas sociedades os objetos são equiparados aos
humanos ou plantas, ou seja, dotados de essência, intencionalidade e agências, algo esse que

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ganha dimensão no perspectivismo ameríndio e multinaturalismo, Viveiros de Castro
(2002), Descola (2006).

Já o autor britânico Robert Layton (1991), através de seu livro intitulado


³$QWURSRORJLDGD$UWH´GHVWDFDTXHDUWHVHPDQLIHVWDSRUGLVWLQWRVSURFHVVRVWDLVFRPR
movimentos corporais, uso de pigmentos ou modelagem tridimensional, mas que acima de
tudo elas precisam seguir regras e expectativas mediadas pela audiência, processo esse que
já era desenvolvido na pré-história, como destaca Bradley (2002) e, sobretudo, por meios de
signos compartilhados, para que esses objetos ou artefatos possam ser reconhecidos como
artes. Isso porque nem todos os movimentos corporais, pinturas, confecções de objetos
podem ser considerados artes. Desta forma, Aguiar (2015), enfatiza que arte ao mesmo
temSRVmRLGHLDHUHSUHVHQWDomR$VVLP³HOHYD-se no transcurso da vida social de grupos
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2015, p. 4).

Mas antes de Gell, Tilley (1990), afirmava através do conceito ³HWQRJUDILDHFXOWXUD


PDWHULDO´ TXH R VLJQLILFDGR GH XP REMHWR QDVFH TXDQGR HVVH REMHWR p XWLOL]DGR SDUD XP
propósito por um determinado grupo. Destarte, o autor deixa evidente que o significado é
criado a partir de uma ação social contextualizada e situada, em uma interação dialética com
estruturas permanente e dinâmica baseadas em regras para um meio com objetivo de alcançar
um resultado. Portanto, para Tilley, um objeto adquire agência, quando é usado para um
meio específico e necessariamente precisa-se um sujeito.
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corporais, uso de pigmentos ou modelagem tridimensional, mas que acima de tudo elas
precisam seguir regras e expectativas mediadas pela audiência, processo esse que já era
desenvolvido na pré-história, como destaca Bradley (2002) e, sobretudo, por meios de signos
compartilhados, para que esses objetos ou artefatos possam ser reconhecidos como artes.
Isso porque nem todos os movimentos corporais, pinturas, confecções de objetos podem ser
considerados artes. Desta forma, Aguiar (2015), enfatiza que arte ao mesmo tempo são ideia
H UHSUHVHQWDomR $VVLP ³HOHYD-se no transcurso da vida social de grupos humanos para
PHGLDUjUHODomRHQWUHRSODQRPDWHULDOHRXQLYHUVRFRVPROyJLFR´ $*8,$5S 
Outra obra de fundamental importância para a elaboração desta dissertação é a de
autoria Kasfir (1999), que por sua vez enfatiza que as adequações às novas realidades sociais,
culturais, políticas, econômicas, simbólicas e ideológicas conduzem a produção da cultura

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material em híbrida vertente. Um exemplo disso e a mercantilização da produção artística
entre os Samburu no Quênia, adaptando-se as demandas turísticas por meio miniaturização
dos objetos tradicionais.
Já Lux Vidal (2007), destaca que, por muito tempo, as artes indígenas foram
relegadas a segundo plano, por serem consideradas residuais e pouca atrelada a contextos
étnicos específicos. Entretanto, a mesma pensadora argumenta que essa ideia vem sendo
repensada e revisitada, onde estudos artísticos e estéticos no que tangem aos povos indígenas
estão a começar a ganhar espaço, apesar de ainda serem poucos explorados pela
Antropologia e pela História da Arte. Assim, na palavra da autora, a arte gráfica é um
³PDWHULDOYLVXDOTXHH[SULPHDFRQFHSomRWULEDOGDSHVVRDKXPDQD´ 9,'$/S 
Outro pensador que contribuirá para esta tese é Kopytoff (2008), com sua ideia de
que os objetos possuem biografias, ou seja, esses artefatos possuem histórias que se formam
desde a origem até seu destino final. Dessa maneira, para esse estudioso, os objetos possuem
múltiplas histórias e, isso desde a sua manufaturação até seu destino ou descarte final. Por
assim dizer, os objetos possuem diversos valores e significados distintos em diferentes
contextos.
Já, Morphy (1994), propõe uma interpretação dualista à arte. Assim, destaca que os
objetos de arte possuem propriedade semânticas/estéticas, utilizadas para fins de
apresentação ou representação, ou seja, os artefatos artísticos são signos-veículos
(significados) ou tem por finalidade provocar uma resposta estética no indivíduo. Mas ainda
informa que é possível ocorrer à combinação de duas coisas ao mesmo tempo, como foi
possível perceber em dados preliminares encontrado durante a visita a Aldeia Pirajuí em
novembro de 2017, durante o XXIII Encontros dos Professores Indígenas Guarani e Kaiowá.
Portanto, a estrutura da pesquisa envolveu arte, memória cosmologia Guarani, e neste
sentido Gamble (2001) corrobora que os objetos étnicos são carregados de ideias, valores e
VLVWHPDVGHFUHQoDVFRQFHLWRHVVHTXHGHQRPLQDGH³LGHDFLRQDO´'HVVDPDQHLUDDJUDQGH
contribuição do autor britânico está na análise de três elementos fundamentais para a
realização da pesquisa, primeiro os objetos, segundo as paisagens e terceiro os resultados da
interação entre as duas coisas. Por conseguinte, Gamble sustenta que o mais importante no
estudo de cultura material não são os objetos, mas sim as pessoas, ou seja, a própria condição
humana.
Por fim, ratificamos que os objetos de povos ameríndios possuem ações, valores ou
ideias, indo além das questões estéticas e contemplativas. São essas ideias que fundamentam
nossa pesquisa sobre os artefatos de origem Guarani na Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó,

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VREUHWXGRDQFRUDGRQDVLGHLDVGH³ELRJUDILDVFXOWXUDLV´H³YLGDVVRFLDLV´ .RS\WRII
Appadurai 1986).
Outro pensador que contribuiu diretamente para a dissertação trata-se do antropólogo
chinês Ygor Kopytoff (2008), com sua ideia de que os objetos possuem biografias, ou seja,
esses artefatos possuem histórias que se formam desde a origem até seu destino final. Dessa
maneira, para esse estudioso, os objetos possuem múltiplas histórias e, isso desde a sua
manufaturação até seu destino ou descarte final. Por assim dizer, os objetos possuem
diversos valores e significados distintos em diferentes contextos. Kopytoff inicia sua obra
examinando a mercantilização de uma das coisas mais complexas: um escravo. Escravos são
pessoas, mas tratadas como coisas e mercadorias. Depois que um escravo é trocado, ele perde
seu status de mercadoria enquanto tenta construir uma vida como pessoa. Mesmo assim, um
escravo é sempre uma mercadoria em potencial, porque tem um valor de troca potencial que
pode ser realizado pela revenda.
A vida de um escravo exibe um processo de comoditização, decommoditização, que
Kopytoff denomina singularização e recomodificação. O pensador argumenta que esse
processo não é específico dos escravos como pessoas/coisas, mas descreve as mercadorias
de forma geral. Assim, o pensador pede aos historiadores que examinem a biografia cultural
das coisas para entender seus processos de mercantilização e singularização. Kopytoff define
XPD PHUFDGRULD FRPR ³XPDFRLVD TXHWHP YDORU GH XVR H TXH SRGH VHU WURFDGD HP XPD
transação discreta por uma contraparte, o próprio fato da troca indica que a contraparte tem,
QR FRQWH[WR LPHGLDWR XP YDORU HTXLYDOHQWH´ $VVLm, a contrapartida também é uma
PHUFDGRULD1HVVDWURFD³DWURFDSRGHVHUGLUHWDRXLQGLUHWDSRUPHLRGHGLQKHLURHXPDGDV
IXQo}HVpXPPHLRGHWURFD´.RS\WRIIQmRFRQVLGHUDRVSUHVHQWHVFRPRPHUFDGRULDVSRUTXH
não são transações discretas, onde os presentes assumem a abertura de alguma outra
transação ou exigem um presente recíproco. Presentes podem ser commodities, mas quando
trocados como presentes, não são commodities para a Kopytoff porque a transação não é
terminal.
Portanto, commodities podem experimentar singularização no processo de
comoditização. A singularização torna uma mercadoria sagrada ou especial. É dessa forma,
.RS\WRII REVHUYD ³( VH FRPR 'XUNKHLP YLX DV VRFLHGDGHV SUHFLVDP VHSDUDU XPDFHUWD
porção de seu ambiente, marcando-a como 'sagrada', a singularização é um meio para esse
ILP´$VLQJXODUL]DomRQRHQWDQWRQmRJDUDQWHVDFUDOL]DomR6ySRGHSX[DULWHQVSDUDIRUD
de uma esfera de troca. Assim, os Guarani Nhandeva foco de nossa pesquisa, quase que

ɷɺ

unanimes ao dizer que seus objetos possui uma história ou memória atrelado a ela, que seria
a biografia.

2. Associação entre cultura e arte: Boas, Geertz e Gell

Nesta parte pretendemos trazer à tona algumas discussões a envolver importantes


pensadores acerca da teoria antropológica, que contribuíram direta e diretamente para a
formulação da noção de Antropologia da Arte propriamente dita como epistemologia ou
teoria de conhecimento, que por sua vez indagaram diretamente sobre os modernos e
tradicionais. Nesse sentido, três autores inicialmente tornam-se fundamentais: Franz Uri
Boas (1947 e 1955), Clifford James Geertz (1997) e Alfred Antony Francis Gell (1998).
Boas foi pioneiro no que tange a elaborar conceitos sobre arte e antropologia, onde a partir
de uma vasta e complexa etnografia trouxe elementos nunca antes discutidos, sobretudo a
questionar os teóricos evolucionistas: Morgan, Tylor e Frazer sobre cultura. No século XXI,
o estudo de Moura (2004) merece destaque, no qual fez uma tentativa intensa de interpretar
as obras de Boas a partir de artes. Os dois últimos pensadores contribuíram efetivamente no
que concerne metodologia de pesquisa em arte e antropologia, assim o autor estadunidense
guiou-se pela semiótica, já o autor britânico falecido precocemente enveredou-se pela noção
de agência social.

Iniciamos com a contribuição clássica de Franz Boas (1947, 1955), dito por muito
como o fundador principal do culturalismo norte americano, sobre a noção de arte primitiva.
Assim, a performance cultural do autor leva em consideração a mudança histórica,
analisando seu percurso, ora mais lento, ora mais acelerado. Nesse viés emerge o
particularismo metodológico, onde Boas pretendia ter um grande alcance a partir da relação
arte e cultura de uma determinada sociedade. Na sapiência de Moura (2004), intérprete de
Boas, o autor supostamente teria retornando ao historicismo particular, afim de interrogar a
história em primeiro lugar, sobretudo, para entender como as coisas são na realidade.
Portanto, isso do ponto de vista de Bueno (2007) indica que a história é um dos elementos
primordiais na interpretação da arte e antropologia- QDSDODYUDGHOD³YDLGDKLVWyULDDKLVWyULD
SDVVDQGRSHODHVWUXWXUD´ '$6,/9$S 

Ainda de acordo com a pesquisadora da Universidade de São Paulo Margarida Maria


Moura (2004), é viável indagar que, enquanto Claude Lévi-Strauss procurou trazer à tona a
análise da lógica compreensiva da etnologia, Boas teria optado pela via da compreensão

ɷɻ

histórica. Isso quer dizer que para realizar-se comparações seria necessário o material ou
artefatos ser testado e a posteriori comprovado. Da Silva em sua dissertação de mestrado,
defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (2008) entende que a Antropologia
bosiana procurou formular uma teoria da cultura apoiando-se na estética comparativa. Isso
quer dizer, que com base no estudo de arte, não se chega somente à interpretação de objetos
artísticos, mas principalmente as díspares culturas, a entender que as artes tradicionais tem
muito a falar sobre a sociedade no qual elas foram produzidas ou confeccionadas.

Boas em sua obra El Arte Primitiva (1947, p. 15), corrobora o seguinte postulado
³WRGRVRVPHPEURVGDKXPDQLGDGHJR]DPGRSUD]HUHVWpWLFRLQGHSHQGHQWHPHQWHGRTXmR
diverso seja o ideal de beleza ± o caráter geral do gozo que ela produz é, em todas as partes,
GDPHVPDRUGHP´$SDUWLUGLVVRSRGHPRVGL]HUTXHDDUWHpXPGRVHOHPHQWRVPDLVQRWyULRV
da humanidade em todos os sentidos, embasadas em dois princípios fundamentais: a
semelhança atrelada aos processos psicossociais/mentais e a compreensão um a um dos
principais fenômenos sociais, culturais, políticas, econômicas e ideológicas que surgem em
todas as sociedades existentes, nunca esquecendo-se da histórica. Dessa maneira, Moura
(2004) nos ajuda a entender que no que tange ao raciocínio teórico, o estímulo ancora-se na
compreensão da cultura para o viés histórico tangível e, aqui não estamos a dizer do
particular para o universal, muito pelo contrário, mas vele ressaltar o geral como referência
e o específico como textura viva.

Em sua pesquisa Da Silva (2008), indaga que a arte é a mais alta confirmação da
consideração de Boas aos estudos representacionais humanas. O autor entende que a arte
emerge a partir do reflexo da mente em formular formato intersubjetivo e, posteriormente
essa forma gerada no pensamento assume um segmento valorativo estético. Podemos dizer,
que esse processo transcorre tanta em sociedades tradicionais (indígenas ou ameríndios),
quanto em sociedades urbanas industriais (grandes cidades ou metrópoles). Ainda de acordo
com Franz Boas todas as culturas são capazes de produzir formas que consequentemente
irão desaguar em esteticismo.

3. Arte e estilo: a contribuição de Boas e Lévi-Strauss

Franz Boas (1957), ao referir-se sobre a noção de estilo, demonstra uma estabilidade
de padrão, que pode ser visualizada ou perceptível nas obras de artes. Isso quer dizer que
quando se alcança o objetivo inicial- definido, estabelecido e padronizado, buscam-se umas

ɷɼ

novas formulações artísticas a partir dos mesmos, fazendo com que as tendências sempre
possam renovar-se em deixar de receber influencias direta e indiretamente dos antigos, sem
esquecer-se que há uma distinção significativa entre a noção de padrão e a noção de estilo
ou técnica. Assim, Moura (2004) compreenda que a primeira se ancora na interpretação e
continuidade diacrónica e a segunda reformulação sincrônica. Moura destaca assim:

A permanência da essência implica uma seleção num arsenal de idéias nos


modelos conscientes ou inconscientes fornecidos pela cultura do artista,
levando-se em conta as estruturas elementares bem como os eventos
culturais que estão à sua disposição, como os mitos por exemplo. O artista
sofre, portanto, influências de natureza técnica e representacional
(MOURA, 2004, p. 312).

A intérprete de Boas chama atenção para o conceito de grau obscuro, onde a


singularidade e individualização da técnica assemelham-se em diferentes sociedades, assim
SRGHUtDPRVGL]HUTXHKi³SHUPDQrQFLD´RXPHOKRU³FRQWLQXLGDGH´GHDOJXQVVLQDLVHORVDR
longo história, sobretudo, o que tange ao gosto estético, atuando como elementos diacríticos
de uma determinada sociedade e, sempre passando por processos de reformulações ou
ressignificações. A pensadora enfatiza que os processos de diferenciações podem se
estruturar num processo específico de seleção, principalmente a envolver o papel do
indivíduo dentro de uma GHWHUPLQDGD FXOWXUDVRFLHGDGH QR TXDO ³REULJDULD´ HOH D
desenvolver ou aclarar um novo estilo artístico:

Temos de dirigir nossa atenção ao próprio artista. Até esse ponto


consideramos somente a obra de arte sem nenhuma referência ao autor (the
maker). (...) esperamos, portanto, que na questão mais ampla, também
contribuirão o conhecimento da atitude e das ações que o artista exercerá
para a compreensão mais clara da história dos estilos artísticos.
Infelizmente, as observações neste assunto são muito raras e insatisfatórias,
pois se requer um conhecimento íntimo do povo para compreender o
pensamento e sentimentos mais íntimos do artista (BOAS, 1927 apud
MOURA, 2004, p. 314).

A partir disso podemos dizer, que Boas se preocupava diretamente na noção de


sujeito, como produtora de uma mente capaz de produzir algo diferente e grandioso com
bases em visões, experiencias, sonhos e diversos tipos de pensamentos injetados nas obras
de artes, seria isso um fenômeno de inspiração de acordo com Moura (2004). Dito isso, a
pesquisadora chama atenção para outra coisa, tratando-se do processo de auto-identificação,
que segundo a mesma seria a chamada seleção temática e autoria presentes em sociedades
tradicionais, camponesas e urbanas, independentemente.

ɷɽ

Portanto, fica claro que em Boas as obras de artes não expressam apenas elementos
lúcidos ou conscientes, mas também inconscientes, sobretudo. Isso significa que a origem
da arte se dá diretamente no subconsciente interno e eterno do sujeito, onde emerge uma
forma e posteriormente ela ganha vida na produção, diferentemente da impressão visual,
onde há uma força motriz particular, mais intensa que a própria forma já estruturada
internamente, que segundo o pensador imprime um referencial cultural. Nas palavras de
Moura (2004, p ³)RUPDHFRQWH~GRVHHQWUHODoDPUXPRDRHQWHQGLPHQWRGRHVWLORH
GRVLPEROLVPRGDDUWH´

Uma certificação se refere de maneira paralelo de acordo com Da Silva (2008) nos
que tangem as artes Maori e Guaicuru, sobretudo a importância atribuída à tatuagem
elaborada. Ao corroborar sobre as iconografias desses grupos étnicos, o lendário antropólogo
belga Claude Levi-Strauss fundador do estruturalismo etnológico, afirma que na cosmologia
³VHOYDJHP´RDGHUHoRpRURVWRRXDQWHVGHWXGRHOHRSURGX]Assim, o sistema de desenhos
gráficos ou estéticos da dupla representação simboliza um desdobramento mais atenuado e
EDVLODUTXHQDVSDODYUDVGH'D6LOYD S ³RGR LQGLYtGXRELROyJLFR³HVW~SLGR´
SRLVDTXHOHTXHQmRpSLQWDGRpWLGRFRPR³HVW~SLGR´) e do personagem social que ele tem
SRUPLVVmRHQFDUQDU´

Levi-Strauss (2003) enfatiza que o processo de desdobramento interpretativo


elaborado por seu colega Boas (1927), deveria ser remodelada e a posteriori completada,
principalmente porque o primeiro autor entendia a teoria sociológica da personalidade- a
chamada split representation nas pinturas e demais iconografias seria meramente dilatação
das superfícies planas de uma técnica que se institui espontaneamente nos objetos em três
dimensões. PortantRRHWQyORJRGR³SHQVDPHQWRVHOYDJHP´FRPSUHHQGHTXHDVTXDOLGDGHV
iconográficas, estéticas e artísticas de qualidades é moldada por dois elementos
fundamentais: elegância e simplicidade. Assim, o clássico pensador elabora as seguintes
indagações:

Considerando a decoração das superfícies planas e das superfícies curvas


como casos particulares da decoração das superfícies angulosas, não se traz
demonstrações válidas para estas últimas. E sobretudo não há, a priori¸
ligação necessária que implique que o artista deva permanecer fiel ao
mesmo princípio passando das primeiras às segundas e das segundas às
terceiras. Numerosas culturas decoraram caixas com figuras humanas e
animais sem desconjuntá-las nem dividi-las. Uma pulseira pode ser ornada
com frisos, ou de cem outras maneiras. Deve, pois, haver algum elemento
fundamental da arte da costa noroeste (e da arte Guaikurú, da arte Maori,

ɷɾ

e da arte da China arcaica) que explique a continuidade e a rigidez com as
quais o processo do desdobramento da representação encontra-se aí
aplicado (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 296-297).

Isso no entendimento de Da Silva (2008), é uma forma de união entre o elemento


plástico e elemento gráfico. Por assim dizer, os elementos não são indissociáveis, mas possui
uma vinculação ambivalente, que ao mesmo tempo pode ser visualizado como relação de
oposição e relação funcional. A oposição está ancorada nas decorações, que se engendram e
transformam a estrutura, que resultaria de acordo com a referida autora, desdobramento e
disjunção. Já no TXHVHWUDWDDIXQFLRQDOLGDGHDGXSOLFLGDGHpIXQGDPHQWDORQGH³RVREMHWRV
DGTXLUHPVXDH[LVWrQFLDGHILQLWLYDDWUDYpVGDLQWHJUDomRGRRUQDWRHGHVXDIXQomRXWLOLWiULD´
(DA SLVA, 2008, p. 21).

4. A agência: incorporação, objetos e sujeitos

Alfred Gell (1998), inicia tecendo uma discussão sobre a percepção de corpus de
REUDGHDUWHRQGHHQ[HUJDVHQGRXPD³SRSXODomRGHREUDV´HPHVSDoR-temporal dilatados
ou diversificados. Da silva (2008) corrobora que o pensador britânico encontrou uma
singularidade na arte marquesã de forma bem distribuída. Isso significa que a despeito de
transformações de contexto, a arte reserva uma plenitude interior/própria/específica/única,
um todo abrangente, sendo mais que uns elos fragmentados de unicidade. Nas palavras de
BueQR S ³FDGDIUDJPHQWRUHVVRDFRPRRXWURSRUTXHFDGDXPSDVVRXSRUXPD
mente marquesã e foi direcionado para uma mente marquesã. O que não quer dizer que a
artHPDUTXHVmpSURGXWRGHXPD³PHQWHJUXSDO´RXFRQVFLrQFLDFROHWLYD´0HGLDQWHLVVR
Gell (1998) elabora o conceito de isomorfia de estrutura entre os procedimentos
cognitivistas ancoradas nas consciências estruturais espaços-temporais. Portanto, a
isomorfia estrutural está vinculada diretamente a mente e a consciência psicossociais
(interna); e atrelados as belas artes, segregação, espacialidade-temporal e coerência
(externo).

Na interpretação de Gell (1998), a disparidade entre o interno e eterno é sempre


poderá ser percebida como algo mais relativo que propriamente absoluto ou concreto. Por
assim dizer, a discrepância entre os conceitos elaborados, apesar de aparecer real/verdadeiro,
não passa de relativismo interpretativo. Para nos ajudar a pensar melhor sobre sua tese, o
autor dialoga com Strathern (1988), onde dá ideia de Homunculi de Dennet, onde enfatiza
que os indivíduos são coletivos e externos, posteriormente entendida como reprodução
aumentada nas palavras do autor. Isso se levarmos em conta a categoria de pessoa e, não

ɷɿ

como um organismo de cunho biológico definido, mas como algum objeto/episódio na
natureza, no qual a agência e personalidade consiga ser abduzida. Para compreendermos
melhor essa ideia, o autor corrobora:

Visto sob essa luz, a mente de uma pessoa não está confinada a
coordenadas espaço-temporais específicas, mas consiste em uma
disseminação de eventos biográficos e memórias de eventos, e uma
categoria dispersa de objetos materiais, traços e aparas, que podem ser
atribuída a uma pessoa e que, em conjunto, testemunha a agência e a
paciência durante uma carreira biográfica que pode, de fato, prolongar-se
por muito tempo após a morte biológica (GELL, 1998, p. 222 [Tradução
nosso]).

Desta forma, para o pensador britânico o sujeito é compreendido primeiramente e a


posteriori percebida como o produto final dos índices e códigos que evidenciam na vida
social e na vida biológica no ambiente que está inserida. Assim, a agência individual
GHVDJXDULDQRVGLWRV³REMHWRVGLVWULEXtGRV´TXHVHULDHxclusivamente objetos de arte, onde
as agências são abduzidas conforme as demandas internas e externas, não seguindo umas
regras gerais ou universais, mas sempre a depender da situação do tempo e espaço.

Outro importante pensador que contribuiu muito para a nossa investigação trata-se
de Mitchell (2005), muito próximo de Gell- recuperou elementos artísticos e artefatuais que
já foram discutidas em outrora por outros pensadores. Este autor prefere usar o termo
³YLWDOLGDGHVGDVLPDJHQV´TXH³DJrQFLD´SUHIHUtvel por seu colega Gell (1998). Dessa forma,
FRUURERUDTXH³DVDWLWXGHVPiJLFDVGiante das imagens são tão poderosas no mundo moderno
quanto elas foram nas assim chamadas idades da fé, que, aliás, eram um pouco mais céticas
GRTXHLPDJLQDPRV´ ,GHPS  Portanto, isso me fez pensar e refletir sobre os elementos
mágicos que estão nos Xirú, Mbaraká e Mymby Guarani Nhandeva levadas as categorias de
humanidades, almas e espiritualidades na Reserva Indígena de Dourados.

Nesse viés é fundamental abordar a ideia filosófica de Deleuze e Guattarri, sobretudo


ao projetar um universo distante da terra- onde a categoria Utupë é central. Dessa forma, os
ameríndios das terras baixas da América do Sul presumem sujeitos múltiplos e
diversificados, destruição (cataclisma ou apocalipse) - uma verdadeira virada ontológica.
Sobre o Xamanismo e agenciamentos Yanomami &HVDULQR  HQIDWL]D³GHYHWHUVHXV
olhos (sua visão) mortos pela experiência de ingestão do psicoativo Vãkoana, a fim de que
seja adquirido outro sentido proveniente de sua proliferação na multiplicidade infinitesimal
das imagens-espírito Xapiripë (idem, p. 11). Muitos pesquisadores de todo o mundo,
consideram que o antropólogo marroquino Bruce Albert e o Xamã Davi Kopenawa são os

ɸɶ

grandes responsáveis por essa virada ontológica- pois os dois mantém uma amizade de mais
de três décadas- a confrontar as ideias ocidentais e ameríndios- um ponto de encontro de
pensares e saberes.

Ainda neste sentido, ao refletir sobre o pressuposto da Antropologia da Arte, Pedro


Cesarino (2017), também leva em consideração três importantes pensadores: Holbraad,
Henare e Wastell com base em sua obra Thinking through things  ³XPDPHWRGRORJLD
na qual as µFRLVDV¶SURSULDPHQWHGLWDVSRGHPLPSRUXPDSOXUDOLGDGHGHRQWRORJLDVRXXma
PHWRGRORJLD FDSD] GH JHUDU XPD PXOWLSOLFLGDGH GH WHRULDV´ LGHP S   $ SDUWLU GLVVR
autores como Eduardo Viveiros de Castro (2002), Roy Wagner (1975) e Marilyn Strathern
(2014) SURS}HPXPUDGLFDOLVPRRQWROyJLFRUDGLFDOLQWLWXODGR³FRQVWUXWLYLVPR´- estabelecer
XPDDWLYLGDGHKHXUtVWLFDQRTXHWDQJHPDVUHODo}HVHQWUH³FRLVDV´HFRQFHLWRVVREUHWXGR
abandonar a ideia de fixidez que imperou por décadas no fazer antropológico.

Já de acordo com o filósofo argelino Henri Atlan (1974) entre os Dagara- grupo
étnico do norte de Gana na África, por exemplo, quando uma estátua ancestral desaparece
da comunidade- posterior a um assalto, recomenda-se que se esculpa uma estátua de acordo
com as características exatas daquele que desapareceu, qual delas vai instalar novamente no
altar. Essa prática restaurará a ordem conturbada e, assim, demonstra que o valor real do
objeto deve ser buscado dentro do grupo social como um todo. É porque o corpo social
constitui uma totalidade autônoma que um fato social só tem sentido em relação aos demais
fatos que nele ocorrem. É também graças a essa interação entre os fatos que se justifica a
relevância de uma analogia entre o funcionamento dos sistemas e o princípio do método
etnológico. Portanto, de fato, o corpo social é um sistema vivo dotado de uma organização
interna. Pode ser que ao subtrair um objeto de uma determinada etnia, a sua ausência cause
disfunção nas estruturas sociais. Será desorganizado e poderá, portanto, arriscar sua
existência como um grupo social autônomo. Para salvar esta existência ameaçada, o grupo é
forçado a restaurar a ordem problemática. É obrigado a reorganizar-se considerando a
desordem causada pela ausência de um dos elementos do sistema- entre os Guarani
Nhandeva por exemplo, além de punir gravemente o guardião irá trazer uma desgraça para
toda a comunidade.

5. A Antropologia da imagem

Apesar de Alfred Gell ter formulado uma categoria conceitual para a Antropologia
da Arte primeiramente, outros pensadores que se preocuparam ou se preocupam atualmente

ɸɷ

se afastaram gradualmente desta forma de pensar artes, sujeitos e povos tradicionais em
diferentes contextos. Dito isto o etnólogo francês e pesquisador do College du France
Philippe Descola, se refere sobre aos impasses proporcionados pela mimetização (imitação),
que seria um certo modus operandi propriamente da história da arte. Assim Descola (2010),
FRUURERUDTXHDVLQYHVWLJDo}HVDWpDTXHOHPRPHQWRHUDPJHULGRVSHODV³DQiOLVHGDVIXQo}HV
de tais objetos, do simbolismo a eles associado, das exigências formais às quais devem
responder, das evoluções estilísticas que sofreram, das alterações de sentido que os afetam
TXDQGRVmRGHVORFDGRVGHVHXVDPELHQWHVGHRULJHP´ S 

A partir de suas ideias descola (2010) propõe em vez de uma Antropologia da Arte
uma Antropologia da Figuração, que segundo Cesarino (2017), que seria habilitado em
ultrapassar os pressupostos e problemas relativo à arte em diferente sociedades e contextos.
O etnólogo francês compreende que a figuração, diferentemente da arte é uma ação
XQLYHUVDO ³pela qual um objeto material qualquer é investido ostensivamente de uma
µDJrQFLD¶VRFLDOPHQWHGHILQLGD´ '(6&2/$S 3RUILP'HVFROD  VHDIDVWD
dos elementos atrelados a Antropologia da Arte, é inegável que teve influência do pensador
britânico, sobretudo do conceito agencyPDVSRUVXDYH]SUHIHUHDV³YDULDo}HVGRVPRGRV
de figuração em distintos regimes ontológicos a que se dedica de maneira mais detalhada em
Par-delà nature et culture  ´ &(6$5,12S 

Já o antropólogo italiano e pesquisador da Ecole des Hautes Etudes en Sciences


Sociales (EHESS) em Paris- França Carlos Severi, prefere utilizar o termo Antropologia da
memória, com objetivo principal de superar os contrastes provenientes da fragmentação que
envolvem as tradições orais e antropologia da arte. O autor dialoga com o historiador e crítico
de arte alemão Aby Warburg, sobretudo para encontrar caminho para uma Antropologia da
memória propriamente dita, que no limiar se aproxima dos pressupostos de Descola a
envolver uma Antropologia da imagem. Cesarino (2017) compreende que Severi se
SUHRFXSDHP HQWHQGHU DV LFRQRJUDILDVFRPSRVWDV GH LQWHQVLGDGH HVSHFLDO ³D SRQWR GH VH
WRUQDUHP WUDQVPLVVtYHLV GLVVHPLQiYHLV H SHUVLVWHQWHV´ &(6$5,12  S   'HVta
forma, o teórico italiano embasada em sua obra Le principe de la chimère (2007) traz à tona
a psicologia social de cada cultura, na ânsia de interpretar as operações cognitivas vinculadas
de práticas, técnicas, ordenação e funcionamento.

De acordo com Pedro Cesarino, esse assunto é bastante emblemático porque envolve
diversos assuntos e personagens, onde a história é fundamental:

ɸɸ

Ambos os projetos apontam para essa tendência de uma antropologia da
imagem que, não por acaso, tem também definido as reflexões recentes de
Hans Belting ([2001] 2011, p. 32), para quem qualquer pergunta pelo
estatuto da imagem se torna insuficiente quando não considera noções de
imagem provenientes de outras culturas, capazes de problematizar
definições realizadas no interior da tradição ocidental (CESARINO, 2007,
p. 7).

Cesarino nos ajuda a entender que isso torna a episteme da Antropologia mais
complexas, sobretudo, a envolver as interpretações dos formatos de relações entre três
elementos fundamentais: imagens, corpos e imagens investigadas em sua obra An
Anthropology of Images (2007). Assim de acordo com o historiador alemão, dito como
especialista em arte medieval e arte renascentista Hans Belting deu ênfase as fórmulas
imagéticas no ritual de serpentes de Pueblos influenciou Warburg, sobretudo para
desenvolver a noção de nachleben.

Portanto, autores como Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour, Carlos Fausto,
Roy Wagner e Aparecida Vilaça nos últimos anos vem a discutir um outro mundo possível
ou viável. Muitos antropólogos da nova geração intitulam esse período que ainda se estende
na atualidade contemporânea como virada ontológica, antropologia compreensiva,
antropologia assimétrica ou ainda antropologia cruzada. Isso seria uma mudança teórica e
metodológica histórica na epistemologia antropológica, muitos dizem que seria a maior
mudança ou transformação da Antropologia desde o seu surgimento como ciência ou
epistemologia (teoria de conhecimento). Esta virada ontológica no entender de Viveiros de
Castro seria o chamado perspectivismo e multinaturalismo, onde tudo deve ser levado em
consideração- desde os pensamentos ameríndio ou tradicionais, as artefatos, os objetos, as
plantas e animais sem delimitar como algo supositório, inverídico ou falso.

Fica evidente que ao longo da história muitas pesquisas foram empreendidas acerca
dos povos indígenas, mas as suas cosmologias sempre eram vistas como conceituais, não
eram levados em consideração seriamente- como uma verdadeira essência ou gênese do
saber. Mas nas palavras de Viveiros de Castro- ³o pensamento indígena deve ser levado em
consideração, literalmente´. Isso não quer dizer que nunca houve antropólogos que se
preocuparam com essa perspectivas, um exemplo claro trata-se do etnólogo marroquino
Bruce Albert e o líder Xamã David Copenawa, com os povos Yanomami na região
amazônica, que segundo os mesmos a natureza está sendo destruída pelos homens brancos,
sobretudo em decorrência da exploração de minerais sem precedentes.

ɸɹ

Outra perspectiva que vem ganhando grande espaço na Antropologia trata-se da
autobiografia indígena, onde muitos indígenas estão acessando a academia, sobretudo,
programas de pós-graduação em Antropologia e estão a escrever sobre seus povos, suas
cosmologias. É importante frisar que isso não diminui a antropologia desenvolvida pelos não
indígenas, muito pelo contrário acrescentam novos elementos a ela, a enriquecer ainda mais
o seu campo epistemológico, teórico e metodológico. Em entrevista realizada com o colega
Lourenço Rodrigues Mamedes- pertencente aos povos Terena, que atualmente está a realizar
uma pesquisa sobre a sua aldeia Tereré em Sidrolândia em Mato Grosso do Sul, afirma que
aparentemente parece super fácil, mas é muito mais difícil descrever sobre o local onde está
inserido- requer ir além dos horizontes físicos, buscar os códigos subjetivos.

Por fim, se levarmos em consideração os pensamentos dos seguintes autores:


Viveiros de Castro, Gow, Severi, Descola, Latour, Strathern e Gell, de acordo com Cesarino
(2017) não faria mais sentido falar em arte ameríndia, indígena, melanésia, quilombola ou
africana, se levarmos em consideração o principal programa da Antropologia da Arte? Pedro
&HVDULQR UHVSRQGH FRP RV VHJXLQWHV SRVWXODGRV ³7HUtDPRV DSHQDV IRUPDV H[SUHVVLYDV
ameríndias, regimes visuais distintoV RXFRLVD VLPLODU"´ &(6$5,12 , p. 9). Desta
PDQHLUD LVVR VLJQLILFD QmR H[DWDPHQWH GHL[DU GH ODGR D FDWHJRULD ³DUWH´ PXLWR PHQRV
englobar num processo de generalização. A importância estaria mais em delimitar um campo
de acoplamento pela dissimilitude entre díspares pressupostos e produções de significação,
analogias teóricas e metodológicas. Cesarino (2007) corrobora que conceitos ou noções
FRPR³DUWH´³LPDJHP´H³ILJXUDomR´SRGHPVHUUHLQYHQWDGDVRXUHVVLJQLILFDGDVGHQRYRV
espíritos, embasadas em conexão comparativa e conexão de tradução, assim o ponto de
partida sempre será incerta, não havendo uma pre-encaminhamento.

Já de acordo com a pensadora Lagrou (2012), fica que entre os ameríndios existe uma
continuidade entre modos de figuração, de um lado, e gráficos, de outro. Frequentemente,
estas são conceitualmente diferentes, mas dentro da estrutura da ontologia transformacional,
a relação entre gráfico e figura também é uma relação de claro transformabilidade, com a
arte gráfica sendo um caminho visual para a visualização de imagens virtuais. Por assim
dizer, a autora procura propor a hipótese de que o uso muito comum do abstracionismo que
evita a representação figurativa dentro de expressões bidimensionais é explicado pelo fato
de que os motivos são aplicados a superfícies ou ajudam a constituir superfícies que contêm
corpos em vez de representar corpos. Desta forma, o fato de vários mitos de origem dos
sistemas gráficos ameríndios fazerem a aprendizagem coincidir ou a aparência dos motivos

ɸɺ

gráficos com a técnica do tecido sugere que o desenho é um elemento constituinte da
fabricação da pele ou da superfície do artefato em geral.

Por fim, a pensadora ao dialogar com Lévi-Strauss (1964), enfatiza que a figuração
na arte dos indígenas das terras baixas emerge, na grande maioria dos casos, na forma
tridimensional e é muitas vezes minimalista, desenvolvendo ao extremo a lógica do "modelo
reduzido", como se pode ver nos zoomorfismos antropo- e discretos das margens do
Xinguanos e Tukano, os bonecos Karajá, os jarros mais antigos de Shipibo-Konon, a efigia
Assurini e as maracas Araweté, para dar alguns exemplos. Todos esses artefatos são
considerados quase corpos. Portanto, para a pesquisadora as indicações da distinção do corpo
são, ao mesmo tempo, índices extremamente sutis.

6. Contextualizando: Bruno Latour e a teoria ator-rede com artes

A teoria ator-rede, também chamada de "sociologia da tradução", foi desenvolvida


por pesquisadores do Centro de Sociologia da Inovação na École des Mines, em Paris, no
início dos anos 80 por Bruno Latour, Michel Callon e Madeleine Akrich que pretendiam
destacar as condições de produção de conhecimento, analisando a gênese dos objetos
científicos e técnicos e seu papel na ação (ver Objeto Técnico e Construção Social das
Tecnologias). Michel Callon, em um artigo fundador, mostrou que os objetos técnicos
emergem abrangendo os interesses de um conjunto de atores, humanos e não humanos, e
também os componentes materiais associados a eles (ver Infraestrutura Sociotécnica).
Assim, essa teoria redefiniu o social inserindo categorias até então fortemente diferenciadas
pela epistemologia clássica, como humanos e não-humanos. Todos podem ser considerados
simetricamente como "actantes" interagindo em redes híbridas, uma simetria que é uma
condição essencial da dinâmica sociotécnica.

Ao favorecer uma abordagem etnográfica, os autores da teoria ator-rede estão menos


interessados na verdade nos resultados da ciência do que na análise do processo de onde
derivam estes resultados, apostando na simetria entre os actantes. Esta simetria possibilita
tratar no mesmo nível conceitual: todos os fatores contextuais; causas sociais e causas
técnicas; o discurso de todos os atores; humanos e não humanos; e a imparcialidade em
registrar o contexto. Todos os componentes da rede sociotécnica se misturam sem hierarquia
ou distinção quanto à sua natureza. Assim, a técnica emerge com a constituição de uma
complexa rede de actantes, escapando à lógica do a priori e alimentando muitas
controvérsias.

ɸɻ

A fórmula de "rede ator" refere-se tanto uma rede heterogénea de interesses alinhados
uns com os outros, e o processo que finalmente leva à produção de um artefato sóciotécnico.
Este quadro teórico baseia-se em certos conceitos-chave. Um deles é a própria distinção
entre o conceito de "ator" Central, no qual outros elementos que reflete à vontade em sua
própria língua, e que de "actante" designar ambos os seres humanos e não- humanos da
mesma rede. Outro conceito fundamental é a "controvérsia", que é uma condição necessária
para a criação da rede e sua tradução pelo ator: o termo refere-se a um debate sobre ciência
ou conhecimento técnico que ainda não estão cobertos, e cuja contribuição é, portanto, para
complicar, em vez de simplificar, as incertezas ambientais (sociais, políticas, morais).

O momento central na produção da rede é o da "tradução", um processo que envolve


três momentos. A primeira é a "construção do problema", ou seja, uma situação que deve
ocorrer para que todos os atores satisfaçam os interesses que lhes são atribuídos. O segundo
e terceiro momentos são "engajamento" e "adesão", em que outros atores aceitam a definição
do ator central e os interesses que lhes são atribuídos.

O processo de construção sócio técnico dos objetos técnicos é, portanto, marcado


pela controvérsia entre a rede actantes e jogos de negociação, produzindo uma convergência
de interesses de rede, a fim de chegar, em última análise a um objeto técnico consensual. A
criação deste artefato consensual, isto é, que assegura a proteção dos interesses de cada ator,
é denominado "registro". Isso leva a um limiar de "irreversibilidade" além do qual se torna
impossível voltar a um ponto em que houvesse uma escolha de várias possibilidades. O
referencial teórico enfoca a estrutura sociocultural que envolve a produção de fatos e a
interpretação do ambiente cultural.

Portanto, a teoria ator-rede valoriza a lexibilidade interpretativa, a controvérsia e,


especialmente, o papel das redes e dos grupos sociais na análise do surgimento de uma
técnica. É, portanto, parte de um todo complementar, organizado e não obedecendo a
nenhuma hierarquia: a tecnologia e a sociedade são delineadas e construídas ao mesmo
tempo e a distinção entre os dois é dissolvida. Daí a construção simultânea do material e do
social, e a coexistência de humanos e não-humanos em redes complexas, coerentes e
igualitárias.

7. Determinismo social e cultura material

ɸɼ

A atitude fundamental subjacente ao estudo da cultura material é, como acontece
com a maioria dos estudos contemporâneos, um determinante difundido. Esta afirmação
pode parecer enfatizar o óbvio, mas um determinismo estrito não apenas subjaz aos outros
aspectos teóricos do estudo da cultura material, mas também dita os procedimentos
metodológicos descritos abaixo, pelos quais, através de uma variedade de técnicas, um
objeto é descompactado. A premissa básica é que todo efeito observável ou induzido pelo
objeto tem uma causa. Portanto, o modo de entender a causa (algum aspecto da cultura) é o
estudo cuidadoso e imaginativo do efeito (o objeto). Em teoria, se pudéssemos perceber
todos os efeitos, poderíamos entender todas as causas; todo um universo cultural está no
objeto esperando para ser descoberto. A abordagem teórica aqui é modificada, no entanto,
pela convicção de que, na prática, a onipercepção que leva à onisciência não é uma
possibilidade real. Informações externas - ou seja, evidências extraídas de fora do objeto,
incluindo informações sobre o propósito ou a intenção do criador - desempenham um papel
essencial no processo. Tal abordagem é inclusiva, não exclusiva.

Embora a preocupação fundamental da cultura material seja com o artefato como a


incorporação de estruturas mentais, ou padrões de crença, também é de interesse que a
fabricação do objeto seja uma manifestação de comportamento, de ato humano. Como
observado acima na discussão sobre cultura e sociedade, crença e comportamento estão
inextricavelmente interligados. O culturalista material está, portanto, necessariamente
interessado nas forças motivadoras que condicionam o comportamento, especificamente a
fabricação, a distribuição e o uso de artefatos. Há uma suposição subjacente de que todo ser
vivo age de modo a gratificar seu próprio interesse enquanto determina que esse interesse
esteja em determinado momento. Este é um subproduto inevitável da preocupação
fundamental com causa e efeito. Assim, questões como a disponibilidade de materiais, as
demandas de mecenato, canais de distribuição, promoção, tecnologia disponível e meios de
troca, que requerem a investigação de evidências externas, são pertinentes.

8. Humanos e não-KXPDQRVDUWHSDUDVHWRUQDU³RXWUR´DJHQWHGDKLVWyULD

De acordo com Da Silva (2008), para os ameríndios das Terras Baixas das Américas
do Sul, a arte é um elemento de transformação, mudança histórica, manutenção e sobretudo,
(re)significação cosmológica. Neste contexto a arte pode ser interpretado como um meio de
conduzir as diversas relações que há entre agentes humanos e não-humanos. Entre os
*XDUDQLGH0DWR*URVVRGR6XORV³REMHWRV´VHPDWHm justamente na interrelação recíproca

ɸɽ

TXH VH GHWHUPLQD HQWUH RV ³REMHWRV´ VDJUDGRV DWUHODGRV DR VREUHQDWXUDO DWULEXtGDV GH
mudanças no tempo-espaço. Desta forma, Overing (1991), através de sua obra intitulada ³A
estética da produção: o senso da comunidade entre os cubeo e os piaroa´FRUURERUDTXHD
ideia da falta de organização social e hierarquias entre os indígenas é extremamente falaciosa
e falsa, pois a estética representa um senso de comunidade político, onde a moralidade é
fundamental- moldada por uma lógica de compreensão. Em nossa etnografia, elaborado
melhor nos capítulos posteriores, pude constatar que o perspectivismo e multinaturalismo é
marcante entre o povo pertencente ao Tronco Linguístico Guarani, onde a animalidade faz
parte de todo o repertório cosmológico, desde o surgimento do universo, relação
sociocultural no Tekohá, até as múltiplas relações e inter-relacionamentos que existem com
os artefatos sagrados e ritualísticos. PortantoRV³REMHWRV´VDJUDGRVLQWHUDJHPGLUHWDPHQWH
no convício social, cultural, político, econômico, simbólico e ideológico Guarani.

9. Outros olhares sobre a Arte e Antropologia

A partir dos diferentes conceitos desenvolvidos por Cesarino, Gell, Aguiar, Muller,
Morphy, Moura, Desola, Layton, Latour e os demais autores, que pesquisaram ou pesquisam
atualmente Antropologia da Arte ou Cultura Material em distintos contextos, podemos
enfatizar que a arte é um elemento central em qualquer cultura. Isso é demonstrado desde
pré-história, por grandes construções que foram erguidas em outrora, que serviram como
espaços de rituais, contemplações, defesas, etc. Levanta outra questão acerca da
Antropologia brasileira, que ao longo dos anos, consolidou-se como estudos do simbolismo
e, muitas vezes deixando de lado os elementos artísticos ou materiais.

Observamos que os elementos materiais são de grande valia para essa cultura.
Durante a minha pesquisa, um respeitado líder Guarani disse-me, que sem as artes a cultura
Guarani é rasa, ou seja, incompleta. É aqui quando me refiro às artes, estou a dizer de
adornos, objetos em madeiras (miniaturas), os objetos sagrados como Ambá, Xirú e
Mbaraká. Ainda em campo, pela minha surpresa, uma liderança feminina corroborou-me,
que também há máscaras fabricadas na reserva indígenas de Dourados.

Desta forma, o pensado Latour (1979), nos ajudou interpretar alguns elementos, tais
como relação entre objetos e humanos, todos são atores e possuem suas importâncias. Fica
evidente, que em diferentes culturas, os objetos possuem histórias, memórias, comparadas
aos humanos e, em certas ocasiões tendo até mais importâncias. Assim esses objetos, falam,

ɸɾ

participam das relações sociais, políticas, econômicas, ideológicas, etc. Portanto, os objetos
possuem biografia, desde sua produção, inserção e descarte, onde no fim são ressignificados.

Portanto, não há arte inferior ou superior, há arte diferente, tanto em sociedades


tradicionais e sociedades consideradas industrializadas. Independente qual termo usar: seja
ela arte, imagem, figuração, configuração, iconografia, estética, coisas, artefatos,
artesanatos, etc. Compreendemos que os conceitos, noções ou categorias sobre a
materialidade da cultura servem exclusivamente para contribuir as inúmeras discussões na
atualidade contemporânea.

A antropóloga britânica e professora emérita da University of Cambridge no Reino


Unido Marilyn Strathern- ao realizar etnografia nas Terras Altas da Papua Nova Guiné-
levantou diversas questões a envolver gênero e estética, principalmente- dentre eles,
destacamos o que a pesquLVDGRUD LQWLWXORX GH ³PRPHQWRV GH UHYHODomR´ ± que seria uma
maneira de revelar o que um sujeito de uma determinada clã tribal na Melanésia produzira,
onde de acordo com a autora, isso posteriormente irá revelar uma série de performances
cosmológicas e históricas da cultura. Uma da grande contribuição da consagrada antropóloga
para a nossa investigação- trata-se quando a mesma indaga que há artefatos ou objetos que
podem ser visualizados, mas que também existem os que não podem ser vistos (restrição).

Outra ideia que surgiu no decorrer de nossa pesquisa se refere o que a pesquisadora
fala sobre mudança ou nova geração de personagens ou atores, que emergem dentro de uma
determinada sociedade ou cultura, sobretudo embasados pelas dinâmicas locais a modificar
os fundamentos que ali se encontram- a trazer novos modelos de pensar, coabitar e viver.
$VVLPPXLWDVSHVVRDVGD³QRYDJHUDomR´*XDUDQL- me relataram em campo- dentre os quais
mencionamos a Jaqueline Guarani- que os artefatos sagrados e ritualísticos estão a passar
por um processo de transformação, na palavra dela- ressignificação. Portanto, nesse viés de
pensar, Marilyn Strathern corrobora, diferente de seu colega Alfred Gell, sobre o elemento
de intencionalidade dos objetos em diferentes escalas- pois para a autora acredita que muitas
coisas emergem naturalmente mediante as demandas externas e internas das culturas pelo
mundo- disse que adentrar num contexto novo sempre é desafiador e impossível não criar
novas ferramentas e isso não e dispares como relação aos objetos culturais. Strathern também
se apoiou na metáfora do Ciborgue- que por sua vez realiza seu epicentro através do
hibridismo corporal- desenvolvida ou mantida por compatibilidades entre possibilidades
dicotômicas, e não por afastamento ou comparação. Assim, a autora corrobora o seu

ɸɿ

SHQVDPHQWR³DYLVWDGHXPFRUSRDRLQYpVGDYLVWDGHXPFXPH´ the view from a body
rather than the view from above) ([1991] 2004, p. 32). Assim, para Cesarino (2017)- o foco
da autora britânica ao contextualizar as imagens, corpos e artes justamente seria a
compatibilidade e não comparabilidade temporal e não ficar ancorada na categoria interno e
externo- a elaborar futuramente um corpo conectivo gerenciada através de afetação e
configuração cercadas de elementos distintos e subjetivos.

Marilyn Strathern finaliza a dizer que a Antropologia da Arte por muitos anos ficou
no esquecimento- que justamente por isso Gell, se preocupou em reinventar esse campo
epistemológico- disse que praticamente todos os países, onde a antropologia é forte
esqueceram-se dela, exceto seria a França. A antropóloga disse ainda que ela sempre foi
SRVWXODGDFRPRXP³OL[RUHVLGXDO´- onde tudo era inserido sem quaisquer questionamentos
prévios como: esculturas, potes e estatuetas, artes decorativas, adornamentos, etc. Concluiu
a enfatizar que esse campo, agora aberto- está a fazer uma nova história, a reformular
conceitos, elaborar novas tendências, trilhar novos caminhos metodológicos- nas palavras
da pensadora- ³HSDUWHVGHOHIRUDPDSURSULDGas por pessoas interessadas em arte, pessoas
interessadas em coisas, pessoas interessadas em materialidade, pessoas interessadas em
substância (SIMONI, A. T & CARDOSO, G. R. & OLIVEIRA, L. P. & BULAMAH. R. C,
2010, p. 11).

Portanto, antropologia e arte são dois campos disciplinares diferentes.


Aparentemente dicotômica. Enquanto a antropologia é dedicada à pesquisar os processos de
mudanças e continuidades de tradições e costumes em diferentes culturas ao longo do
processo histórico, sendo, portanto, uma disciplina que constitui as ciências sociais e
humanas, já Arte é o campo do conhecimento humano dedicado à produção e criação de
obras artísticas, objetos e objetos ações estéticas, mas não necessariamente belas. A
definição da arte em si é complexa e paradigmática, e até hoje, discussões em torno de sua
epistemologia eles não conseguem formular respostas conclusivas e definitivas. A este
respeito, uma vez que tanto a arte quanto a antropologia mudam de acordo com os fenômenos
que são experimentados no mundo periodicamente.

Partindo da ideia anterior, cabe destacar a pesquisa de Thomas Fillitz, que por sua
vez trabalhou extensivamente em bienais de arte e, mais genericamente, em discursos em
torno do conceito de arte global, e se preocupa com o encontro entre o antropólogo e os
protagonistas do mundo das artes, artistas, curadores e exposições, especificamente quando

ɹɶ

o último intervir em um contexto culturalmente diferente do que o definido pela história da
arte ocidental- tratando-se de artes tradicionais. Embora o pensador reconheça a importância
de atividades interdisciplinares, multidisciplinares ou transdisciplinares no campo das artes,
ele continua convencido das diferenças de práticas entre artistas, curadores e antropólogos.
Assim, Fillitz apresenta dois exemplos de sua pesquisa etnográfica a longo prazo na África
Ocidental: um diálogo com a artista marfinense Mathilde Moro e as atividades curatoriais
da Bienal de Dakar no Senegal. Ele argumenta que quando um antropólogo encontra um
artista a questão não pGH³LQWHUSUHWDomR´GHXPDREUDGHDUWHPDVGDFULDomRGLVFXUVLYDGH
XPFDPSRFRPXPGHUHIOH[mRTXHWRUQDYLVtYHLVGLIHUHQWHVIDFHWDVGR³UHDO´2PHVPRp
verdade para práticas curatoriais, que, embora diversas em suas perspectivas, podem
funcionar como catalisadores das alternativas imaginativas da vida social. Assim, emerge
um espaço comum de reflexão sobre a cultura, produzido entre o antropólogo durante o
processo de pesquisa, os artistas e os curadores com quem trabalham.

Já o antropólogo escocês, Timothy Ingold, que tem sistematicamente trabalhado com


DFDWHJRULDGH³ID]HU´HQWUHDQWURSRORJLDDUTXHRORJLDDUWHHDUTXLWHWXUDFRQWULEXLDRVXJHULU
que a antropologia poderia fazer bem seguindo o exemplo da arte em todo o contexto global.
Isto é, não procurar responsabilizar o mundo, ou extrair seus segredos através da força, mas
acompanhá-lo, entrando em suas relações e processos diacrônicos e sincrônicos. Desta
maneira, o pensador compreende que a investigação deve ser processual e aberta, ou seja,
³XPDVHJXQGDSHVTXLVD´TXHQmRYLVDGHVFREULUGHXPDYH]SRUWRGDVRVVHJUHGRVGHXP
mundo já formado e objetivamente decifrável, mas em se unir aos caminhos de um universo
de relações e processos que está mudando constantemente. Portanto, a pesquisa para ele não
p ³XPD RSHUDomR WpFQLFD´FRPR HOH GL] PDV XP PRGR GH YLYHU FXULRVDPHQWH GR ODWLP
curare), com cuidado e atenção. Este modo de vida está intimamente ligado não apenas ao
que fazemos, mas também ao que experimentamos ao procurar interpretar uma obra
elaborado por um povo- seja ela tradicional ou contemporânea.

Uma pesquisadora que nos chamou atenção apesar de tratar da arte grega é Eleana
Yalouri- sobretudo por utilizar-VHGDQRomRRXFDWHJRULD³LQGLVFLSOLQD´DRID]HUDERUGDJHP
antropológica e arqueológica das obras de artes investigadas- como pontos de referência para
uma discussão mais ampla sobre as vantagens e desvantagens de ser indisciplinado. Dessa
forma, a outra problematiza oposições binárias entre o real e o irreal, o literal e a metafórica,
que são comumente associadas à antropologia e à arte, respectivamente, e as situaram
estereotipadamente nos dois lados opostos da cerca científica como uma forma de repensar

ɹɷ

as certezas estabelecidas da ciência e destacar uma possível economia de conhecimento que
reconhece a potencialidade de incerteza e ambiguidade. Portanto, compreendemos que
³LQGLVFLSOLQD´SRGHJHUDUXPDREUDGHDUWHLPSRUWDQWHRXDUWHIDWRVDJUDGRFRPRSXGHFRQVWDU
em minha pesquisa com os Guarani.

No entanto, as artes estão empenhadas em pensar a experiência estética como


fenômeno perceptível e vivido por diferentes culturas e indivíduos, mas finalmente, o que a
arte e a antropologia têm em comum? É possível? que os artistas conduzam pesquisas e
incorporem práticas antropológicas em seu processo artístico? E, ao mesmo tempo, a arte
pode contribuir para investigações sociais? Que tipo de pesquisa seriam? A antropologia
contribui para a poética visual contemporânea? Como as duas disciplinas olham para seus
objetos de estudo? Posso responder que noções analíticas tais como: Yochin (Pano), Utupë
(Yanomami), Karon (Jê), Taangá (Guarani), em hipóteses se traduzem em imagens, artes ou
figurações- estão muito além, há uma relação com o universo, com a divindades, com os
espíritos, com os sonhos, com as memórias, com as histórias, com os animais, com as
plantas, com o ar que respiram, com os rios, com os pássaros, com as florestas, etc. Portanto,
posso tecer, sobretudo no caso Guarani, com os quais empreendi uma relação bastante
recíproco, saudável e amigável que Taangá vai muito além da própria percepção cognitiva
e linguística- a ancorar- se, se é que podemos dizer assim- num mundo subjetivo. Nesse
sentido- pude observar a limitação da gramática ocidental- ³LQFDSD]´ GH WUDGX]LU XPD
linguagem nativa- ou melhor a gramática ou simplesmente a oralidade nativa ou ameríndia
é tão rica que ao meu ver é intraduzível ao mundo ocidental colonizador, devastador e
exterminador. Tudo isso tornam-se as artes indígenas ou povos autóctones incomparáveis,
indirimíveis e indeléveis.

Segundo Malysse (2006), quanto ao objeto e a abordagem metodologia, tanto a arte


(visual) como a antropologia (cultural ou social), partilham alguns interesses em comuns: as
formas de representação do outro. Por isso, ambos tomam posse de diferentes culturas, no
entanto, o uso que cada um dará a essa apropriação será diferente e gerará produtos
igualmente diferentes: enquanto o primeiro produz série de objetos e ações estéticas e/ou
artísticas a serem expostas em algum espaço público, o segundo se preocupa em divulgar os
achados para através do texto etnográfico ou, na melhor das hipóteses, através de
documentários e fotografias etnográficas. Enquanto o artista faz anotações em seus cadernos
de esboços, o antropólogo faz isso em seu diário de campo; enquanto o artista realiza

ɹɸ

residências artísticas para certos períodos de tempo, o antropólogo realiza a prática do
trabalho de campo.

Da união entre estas duas áreas, Arte + Antropologia, existe uma nova subdisciplina
conhecida como Antropologia da Arte e este fato acontece quando a antropologia cultural
começa a se interessar por arte no início do século XX, disposta a investigar especialmente
a arte primitiva, as produções plásticas tradicionais e pré-históricas de as civilizações
antigas. Antropólogos viram a arte como um sistema simbólico, dotado de significado e além
de meros objetos estéticos. Neste sentido, quando nos referimos as artes indígenas estávamos
a nos envolver nuns universos e dilemas totalmente complexos a perpassar diversas nuances,
dentre os quais interpreto ser essenciais as premissas cognitivas, estéticas, linguísticas,
filosóficas, sociológicas e ambientais.

A relação entre antropologia e arte também levará a uma segunda sub-especialidade,


mas focada na pesquisa antropológica: a Antropologia Visual, apesar de não ser o nosso
foco- cabe a observação, sobretudo a não deixar confuso o leitor. Dessa forma, de uma
maneira generalizada, pode-se dizer que esse novo paradigma se importa com uso de
materialidade visual na pesquisa antropológica, e também a estudo de sistemas visuais e
cultura visível onde, em ambos os casos, textos visuais são produzidos. Atualmente ainda é
visto como uma subdisciplina nascida da antropologia social, com base em imagens
fotográficas, como instrumentos adequado para a observação, descrição e análise da
realidade pesquisa social como o nome sugere, ele depende do uso de técnicas audiovisuais
como base para a sua investigação, bem como o estudo da imagem em um sentido amplo. A
particularidade da antropologia visual é justamente seu caráter interdisciplinar: aborda
estudos culturais, arte, sociologia visual, teoria do cinema e fotografia, para citar alguns.

Ao tentarmos transgredir fronteiras entre diferentes campos de pensamento e prática,


surgem algumas questões relacionadas à questão mais geral da transdisciplinaridade da arte
HQYROWRHPGLYHUVDVLQWHUFRQH[}HVRQWROyJLFDV0HVPRTXHDDUWHQmRVHMDFRQVLGHUDGD³XPD
GLVFLSOLQD´DLQGDLQIHOL]PHQWe por muitos, ela possui suas próprias disciplinas, derivadas de
tradições, princípios e cânones específicos- isso é inegável. Deve-se, portanto, perguntar:
qual é o objetivo de um projeto transdisciplinar entre arte e antropologia? É a criação de um
novo campo acadêmico definido por suas próprias fronteiras e disciplinas? Está orientada
para a busca de uma utopia ligada a um tempo antes da fragmentação do conhecimento em
disciplinas? Aspira ao colapso das fronteiras disciplinares existentes e à facilitação da

ɹɹ

comunicação entre diferentes campos de pensamento? Tais questões não são apenas de
relevância epistemológica. O que também está em jogo é a abertura de caminhos e
possibilidades para uma abordagem dinâmica, coletiva e socialmente comprometida de
importantes questões sociais e políticas, quando a arte e a antropologia se encontram. Fica
tangível que existem muitos mais perguntas que respostas- mas cada vez mais tangível que
arte não se resume em beleza contemplativa, mas sim em memória, história, biografia,
humanidade, sonho, ideologia, etc.

Diante de tudo que citados anteriormente- fica claro que um diálogo entre arte e
antropologia, no entanto, pode não apenas promover e levar a colaborações e intercâmbios
em diversas esferas sociais ou culturais, mas pode, por outro lado, provocar resistências,
críticas e contestações de ambos os lados, a evidenciar diferenças entre esses dois campos-
bem como a necessidade de considerar os aspectos políticos da promoção de comunicação
ou colaboração. Torna-se evidente, que RV DUWHIDWRV RX ³REMHWRV´ *XDUDQL perpassam por
toda a comunidade a entrelaçar caminhos múltiplos, onde há sujeito que apesar de residir na
parentela, praticamente não leva em consideração os artefatos- mas sempre há um ator que
utilizando-VHGHOHV³REMHWRV´UHVSRQGHPSRUWRGDRJUXSR

Por conseguinte, há muito a se fazer e investigar no campo da antropologia da arte-


principalmente a partir três elementos: oralidade, imagem e materialidade. Por assim dizer,
as representações icônicas, objetos e artefatos estão cheias de discursos polifônicos, cuja
visualidade constrói representações e versões da realidade. Por esse motivo, pensar com
cuidado e criticamente as imagens disseminadas na mídia e outros veículos de comunicação,
deve ser o papel de todo antropólogo, interessado ou não, por materialidade culturais, a
permitir que outras maneiras de fazer antropologia e pensar sobre o visual hoje possa
emergir. Também há muito a investigar sobre o papel cada vez mais presente nas abordagens
antropológicas no campo artístico, conseguindo repensar parecer mais crítico e reflexivo
sobre as formas de construir o produto atualmente, e especialmente as formas de
apresentação dos materiais coletados em campos, seja por meio da Antropologia,
Arqueologia, História, Filosofia e outra epistemologia que tem por finalidade interpretar a
arte- jamais a dissociar do perspectivismo e multinaturalismo humanos e não-humanos,
sobretudo quando se tratam de povos originários, ameríndios ou indígenas e em hipóteses
DOJXQV VH UHIHULU DV HOHV FRPR VHQGR ³FRLVDV´- isso é uma ofensa grave para os Guarani
Nhandeva, SRUH[HPSOR3RUWDQWRKiUHDOPHQWHPXLWDVFRLVDVSDUD³GHVFREULU´DFHUFDGDV
artes ameríndias- é um universo extremamente apaixonante e misteriosa- acreditamos que o

ɹɺ

dialogar entre um/a Xamã e um pesquisador não-indígenas bem intencionado é um ótimo
caminho para trazer da melhor maneira possível os saberes vinculados aos artefatos,
sobretudo, os sagrados afim de revelar os ethos étnico ou cultural.

Deixo em evidência que a palavra arte varia de uma sociedade para outra, também o
que podemos definir ou contextualizar como arte. Assim, uma coisa é certa não cabe mais
nos ocidentais definir o que é arte indígena ou que não é arte indígena. Mas para elaboramos
uma pesquisa antropológica, sobretudo quando se trata de uma monografia sobre uma cultura
específica- é fundamental assumir uma posição não ficando com receio ou medo de receber
crítica posterior. Neste sentido- a arte existe desde da pré-história- ela sempre fez parte da
cultura humana independente do tempo e do espaço.

Tudo isso está relacionado ao patrimônio cultural- que mudou ao longo dos anos, a
HVWHUHVSHLWR³  RIDWRUGHWHUPLQDQWHGHILQLRTXHcompreendemos por herança, hoje, é a
sua natureza simbólica e subjetiva, sua capacidade de representar simbolicamente uma
idenWLGDGHXPDSUi[LVRXDLQGDXPDRQWRORJLD´ 35$76S $VVLPDSDUWLUGH
uma visão estática tem vindo a estabelecer-VHFRPRXPHOHPHQWRYLYRGDFXOWXUDTXHp³QmR
só no aspecto monumental arquitetônico, mas também em elementos substanciais e de vida
cobertos por tradições orais, idiomas e dialetos, memória coletiva e outros valores chamados
LQWDQJtYHLV´ (63,126$ 3HUFHEemos que entre os Guarani não há uma assimetria
clara entre os elementos tangíveis e intangíveis, por exemplo para os artefatos sagrados
ganhar vidas ou complementar-se precisa estar imbricado nesses elos.

Portanto, para os Guarani de Mato Grosso do Sul, por exemplo, arte ultrapassa
FULDomR GH ³REMHWRV´ DUWHIDWRV grafismos, cestarias, colares, pulseiras ou miniaturas de
animais- a roça, as técnicas de plantação, as colheitas, os fazer alimentares, relatos de
memórias e o Jeroky Puku (danças rituais) são consideradas artes. Desta forma, as
elaborações artísticas dos ameríndios são recheadas de herméticas cosmológicas, onde
signos complexos fazem parte dos repertórios identitários. Por fim, apesar de jamais
desvendarmos totalmente uma determinada obra arte, também de uma determinada cultura
e sociedade ele pode relevar muitas coisas, tais como: intercâmbios, políticas, conflitos,
simbolismos, dominações, etc. Assim, os Guarani falam em fH¶HJXDWi0EDUDNi (as palavras
que caminham no Mbaraká)- onde os artefatos sagrados são utilizados principalmente no
fHPER¶H (reza), Guahú (canto de lamentação) e Kotyhú (canto de encontro), nesses
processos ritualísticos são imprescindíveis os usos de Xirú, Mbaraká, Mymby e Takuapú.

ɹɻ

Por assim dizer, no entender de Dona Tereza Guarani os artefatos faz parte da sincronia, sem
elas os espíritos jamais irão manifestar-se nos rituais, assim seriam receptáculos de almas e
espíritos- fica claro os artefatos são rimas, sons e melodias místicas.

Para finalizar minimamente o decorrente artigo cabe ressaltar que estudar, pesquisar,
investigar e a posteriori interpretar as artes, objetos ou artefatos indígenas, ameríndias,
tradicionais ou ainda autóctones é viável a partir de diferentes epistemologias, mas é
privilegiado principalmente com base na Antropologia, mas também é viável através da
História, Arqueologia, Etno-arqueologia, Etno-musicologia, Linguística, Filosofia,
Geografia, Demografia, Biologia, Botânica, Música, Matemática, Psicologia e Literatura.
Dito isso, nossa intenção foi realizar uma investigação etnográfica etnológica e um pouco
histórica acerca das artes Guarani de Dourados- Mato Grosso do Sul. Assim, acreditamos
ser fundamental mencionar as outras ciências ou teorias de conhecimentos para falar da
etnoarte, mas jamais esgotar essa discussão.

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$3$32.89$(0'285$'260$72*52662'268/
$57(675$',&,21$,62%-(7265,78$/Ë67,&26(
&2602/2*,$*8$5$1,

RESUMO: O presente capítulo traz informações sobre a Aldeia Jaguapirú e a Aldeia


Bororó- localizada no município de Dourados, Estado de Mato Grosso do Sul (Centro-Oeste
do Brasil). A investigação foi desenvolvida entre os anos de 2017, 2018 e 2019. Dessa forma,
perpassamos por questões que envolvem arqueologia, história, organização social, política,
econômica até adentrar nas produções de artes, artefatos e objetos sagrados e ritualísticos
Guarani (conhecida historicamente como Apapokuva). Portanto, o nosso objetivo é realizar
uma análise, descrição e posterior interpretação das múltiplas nuances, conceitos ou
categorias que envolvem esse coletivo acerca da relação que há entre cultura material e
cosmovisão, que na atualidade contemporânea encontram-se numa situação extremamente
emblemática, sobretudo a envolver o Yvy (terra).

PALAVRAS-CHAVE: História, Etnografia, Cosmologia, Cultura material, Guarani.

Cada coletivo de seres vegetais, animais ou minerais tem um senhor, um


dono, que é uma entidade, uma deidade, uma divindade, que possui sobre
ele uma série de relações de proteção. Assim, estamos falando de uma
cosmologia que integra e articula os seus vários domínios, concebendo-os
como imbricados e interdependentes. Desta forma, toda vez que um
*XDUDQLIL]HUXVRGDTXLORTXHQR³RFLGHQWH´GLUtDPRV³QDWXUH]D´XVDUXP
³UHFXUVRGDQDWXUH]D´VHMDDWDTXDUDVHMDDFDoDGHXPDQLPDOVHMDRXVR
dDViJXDVHOHSUHFLVDSHGLUSHUPLVVmRDRVHX-i UD VHX³VHUSURWHWRU´XPD
DWLWXGHGHUHVSHLWRDRVHQKRUGDiJXDDRVHQKRUGHVVHV³UHFXUVRVQDWXUDLV´
para que eles possam ser utilizados. (Sérgio Baptista da Silva-2011).

1. O Guarani: gênese arqueológica e histórica.


A origem da etnia Guarani é extremamente emblemático em todos os sentidos- não
há uma linearidade ou uma verdade absoluta a respeito, mas as maiorias das investigações
arqueológicas e históricas apontam que a etnia ainda como Tupiguarani emergiu nas
florestas tropicais dos afluentes do Alto Paraná, Alto Uruguai e nas margens do planalto
meridional (SCHMITZ, 1982, p. 57). Assim, no entender de Susnik (1982) - no século V
(anos 400 d.C), provavelmente a cultura Guarani teria se separado do Tupi- seguindo uma
lógica própria de existência. Ainda no entender de Susnik (1982), as populações chamadas
de proto-guarani que resultaram nos Guarani atuais, vista pela primeira vez no século XVI
por não-indígenas- tratando-se dos colonizadores europeus, sobretudo os portugueses. Dessa

ɺɷ

forma, os principais estudiosos corroboram que desde do princípio os Guarani eram
analisados como um povo que não ficam muito tempo num lugar específico- sempre a
perambular e migrar-se pelas densas florestas que aqui se encontravam em outrora.

De acordo com o arqueólogo jesuíta Pedro Ignácio Schmitz (1982, p. 57), certamente
o arqueólogo mais importante e influente no Brasil- quando os colonizadores europeus
FKHJDUDPD³1RYD7HUUD´RSRYR*XDUDQLRFXSDYDPXPDH[WHQVDIDL[a litorânea que iria
desde de Cananeia em São Paulo até o atual Estado de Rio Grande do Sul, adentrando-se
pelas bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Assim, na convergência dos rios Paraguai
e Paraná entornavam-se pelas bordas oriental do primeiro e duas margens do Paraná-
fronteira com São Paulo- dessa forma, o rio Tietê localizava- se, ao norte e o rio Paraguai
ficava a oeste, a demarcar os limites de seus alcances territoriais.

Ainda no entender de Schmitz (1982, p. 57) - os dados arqueológicos mostram que


nos anos 1000 e 1200 (d. C) estendendo-se a proporção sul, desde das cabeceiras dos rios
Paraguai, Araguaia, Xingu e Arinos no oeste do território brasileiro- os Guarani ocupavam
o sul do Brasil, norte da Argentina e porção oriental do território paraguaio. Por assim dizer,
a partir das chegadas dos colonizadores, especialmente os portugueses e posteriores os
espanhóis- a história do povo Guarani foi profundamente marcada pela missão jesuítica,
sobretudo a submeter os Guarani ao processo de catequização e doutrinação- onde também
marcou o processo que ficou conhecido por encomienda- TXH HUD XPD IRUPD ³OHJDO´ GH
escravizar os indígenas que se encontravam nas Terra Baixas das Américas.

ɺɸ

FIGURA I. Localização da Reserva Indígenas de Dourados (Aldeia Jaguapirú e Aldeia
Bororó) em Mato Grosso do Sul. Fonte: Google, 2019.

&RP R DGHQWUDPHQWR GRV FRORQL]DGRUHV QD ³1RYD 7HUUD´ - os Tekohá


(território/morada Guarani) se tornaram um verdadeiro palco de disputas, onde milhares de
vidas foram ceifadas, sangue foram derramados entre as pedras a colorir os rios e riachos,
histórias se perderam no tempo, florestas foram devastadas, animais foram aniquiladas,
almas de perderam pelos bosques, memórias extinguiram-se para sempre- por fim as farturas
se transformam em misérias, fomes e violências. A fauna e a flora que sempre ficaram aos
cuidados dos Guarani- agora eram espaços de matança e disputas sangrentas- não somente,
pois também eram enxergados pelos colonizadores com estratégias militares, pois a
geografia era excelente para coibir a chegada de outro agente ou sociedade- vinda
SULQFLSDOPHQWHGR³9HOKR&RQWLQHQWH´TXHHUDPYLVWDVFRPRLQLPLJDV

Ainda em dialogo com Schmitz (1982, p. 57), em 1603 o governador do Paraguai


enviou uma carta a solicitar as presenças dos missionários da Companhia de Jesus- com
interesse de catequizar os Guarani que ali se encontravam a época, na intenção de inserir na
sociedade paraguaia como trabalhador. Na interpretação de Thomaz de Almeida (1996) esse
processo trouxe uma consequência terrível, onde houveram dispersões, inserir os Guarani
IRUoDGDPHQWHHPGLYHUVRVDOGHDPHQWRVFRQVWUXtGDVSHOD³&RPSDQKLD$QLTXLODGRUD´- isso

ɺɹ

fez com que a população Guarani dessa proporção praticamente fosse aniquilada, onde
pouquíssimas resistiram esses cercos. Mas entendo, que nem tudo os que os padres dessa
companhia fizeram foram equivocados, pois eles não permitiram que os Guarani fossem
escravizados pelos encomenderos de Assunção- posso ainda dizer que uma luz no fim do
túnel começou a brilhar. Nesse sentido, Gadelha (1999) indaga que de 1608 a 1768, se
constituíram dezenas de reduções jesuíticas, na época intitulada de Províncias Paraguaias de
Guairá- que abrangeu na época os seguintes territórios: Paraguai, São Paulo e Paraná; Itatim
(Mato Grosso do Sul e Paraguai oriental); Paraná (Paraná e Santa Catarina) e a região de
Tapés (Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraguai ocidental e norte da Argentina)- isso
demonstram que a ocupação Guarani era gigantesco- fico a imaginar, quantas coisas se
perderam e como o esse povo são resistentes- capaz de suportar tantas adversidades.

2. A Organização social Nhandeva da Reserva Indígena de Dourados-MS.

Em minha investigação, sobretudo com bases em diálogos com várias lideranças


como Dona Tereza Guarani , Almires Martins Machado, Dona Maria Guarani, Karai Avá
Renato Guarani, Dona Rosangela Guarani, pude confrontar as inúmeras pesquisas que já
foram realizadas acerca do povo Guarani com novos dados etnográficos. Dito isso, logo
percebi que sua organização social é similar as dos Kaiowá e Mbyá. Dessa forma, os
Guarani, ou simplesmente Apapokuva possui sua organização social, política e econômica a
família extensa- grupo macro-familiar- constituída por um casal, filhos, irmãos, netos,
genros no qual a relação de sanguinidade e afinidade predominam em seu Tekohá (onde os
Guarani Nhandeva vivem), onde geralmente cada parentela possui uma unidade própria de
consumo e produção.

Almires Martins Machado (filho de Guarani com o grupo Aruak Terena),


provavelmente o inteleFWXDO ³FLHQWLILFR´ mais importante dessa etnia na atualidade
contemporânea, com o qual em várias oportunidade dialoguei e tirei minhas dúvidas,
inquietações de dramas do campo, me relatou que os Apapokuva talvez seja o Guarani mais
pacífico, pois de acordo com o mesmo sempre age com inteligência, pensa muito antes de
fazer ou falar- por isso mesmo em outrora era denominado de filósofo da floresta. Almires
me disse que cada grupo ou parentela ou ainda família extensa como a academia intitula, é
representada por uma liderança geralmente homem- chamado de Tamoy (avô), mas caso seja
uma mulher recebe o nome de Jary (avó). Nesse sentido a minha principal interlocutora

ɺɺ

Guarani dentro da aldeia Jaguapirú e Bororó é justamente uma Jary, tratando-se de Dona
Tereza Guarani- uma liderança histórica de acordo o professor e historiador Antônio Dari
Ramos. Em minha pesquisa, descobri algo realmente incríveis e fascinante, que jamais
pensei em vivenciar em minha vida, onde apesar de possuir sangue Nhandeva por parte de
minha mãe Vitorina Ivarra, minha educação foi distante do Tekohá, mergulhar nesse
universo Guarani é único, um verdadeiro sonho, surreal.

A Kunã Karai Guarani Nhandeva- como é chamada na Aldeia, Dona Tereza me


ensinou muitas coisas- uma experiencia inesquecível, que levarei para a minha vida inteira.
Assim a Xamã, me disse em sua residência, conhecida como Ogapisy, que cabe aos pais e
filhos o papel de distribuir as famílias pela comunidade, plantar suas roças, utilizar os
recursos disponíveis no ambiente natural- esse contexto familiar é denominado por estudo
de parentesco de família nuclear. Portanto, durante a minha estadia na casa de Dona Tereza
*XDUDQL 1KDQGHYD FRQVWDWHL TXH PXLWDV IDPtOLDV DLQGD PDQWpP YLYDV D WUDGLomR ³SXUD´
Nhandeva de ser e viver no Tekohá, onde geralmente em cada comunidade há uma casa de
UH]DFRPXPDOWDUFKDPDGDGH0ED¶H0DUDQJDW~SDUDDUHDOL]DomRGR-HURN\3XN~H-HURN\
Mimky (dança ou ritual longa e curta), de acorda com Dona Maria Guarani Nhandeva, outra
importante liderança pode ser interpretada como os rituais mais importantes e sagrados dos
Nhandeva, onde os artefatos sagrados são imprescindíveis.

Já Karai Renato Guarani Nhandeva- outra liderança política de grande relevância


para os Nhandeva da Reserva Indígena de Dourados (RID) me disse que antigamente os
homens (Rajero) casavam- entre 15 e 20 anos, enquanto as mulheres (Kunã) casavam-se a
partir da terceira menstruação, por volta de 13 e 15 anos- mas o mesmo me relatou também
que esse processo sofreu grande alteração nos últimos anos, sobretudo por influência da
sociedade ocidental. De acordo com Dona Rosangela Guarani Nhandeva- uma importante
liderança da nova geração, a tradição Nhandeva de outrora, mas ainda mantida viva na
atualidade faz que a menina (Mitã Kunã), na primeira menstruação cortasse ou corta o cabelo
e mantém resguardada dentro de sua casa (Oga), por volta de um mês, onde fica
impossibilitada de sair, nesse contexto recebe alimento e agua.

No que tangem ao casamento, os Guarani Nhandeva, de acordo com Dona Maria e


Dona Tereza, hão variações a depender exclusivamente da parentela- mas uma coisa é certa,
cabe aos pais do rapaz (Ymenarã) entrar em contato e posteriormente se dirigir a residência
dos pais da moça (Kunãtãy), pedindo a mão de sua filha (Tajira). Dessa forma, Jaqueline

ɺɻ

Guarani Nhandeva, que há pouco tempo havia passado por esse processo matrimonial, me
indagou que os pais da moça somente aceitam o pedido, caso julga adequado a maturidade
do pretendente, sobretudo, ser capaz de gerir uma casa. Jaqueline ainda me disse que para
ser aceito, o rapaz jamais pode ter sido reprovado por outros pais anteriormente e nem ser
reprovado por má conduta (Tekó Vay) dentro da comunidade Guarani Nhandeva. Para
finalizar, me disse que caso, uma Nhandeva vier casar-se com um Kaiowá seria a condenação
da família, uma verdadeira desgraça, indagou. Portanto, vejo que há uma relação de
perversidade muito representativo entre os Guarani Nhandeva e Guarani Kaiowá, poucas
vezes debatidos e nas maiorias das vezes ignorados pelos antropólogos, historiadores,
geógrafos- os ditos guaraniólogos. Meu objetivo aqui não é fazer uma descrição precisa
GHVVHSURFHVVRPXLWRSHORFRQWUiULRID]HUXPDSHVTXLVDHWQRJUiILFDVDSDUWLUGRV³REMHWRV´
sagrados Nhandeva, mas essas questões precisam urgentemente ser debatidos na academia.

De acordo com Almires Martins Machado há uma clarividência entre a divisão do


trabalho entre homens e mulheres Guarani Nhandeva- assim cabem aos homens (Rajero ou
Karai) preparar a terra, plantar, caçar, pescar; enquanto as mulheres (Kunã) ajudar na roça a
escolher sementes, colher os produtos, cuidar da casa, cuidar dos filhos, fazer cestarias,
colares, pulseiras, banhar as crianças, dentre outros. Mas muitas coisas no entender de
Almires mudaram, sobretudo pela dinâmica da sociedade capitalista de produção. De acordo
com o mesmo, posterior ao matrimônio (Omendáhá), o casal vem a constituir uma moradia
uxorilocal- isso significa que o conjugues vem a viver na residência dos pais da moça, onde
no primeiro ano, os pais do rapaz passe a ajudar diretamente o filho, sobretudo ajuda
econômica- até o mesmo se estruturar no grupo macro familiar e assim passar a constituir
uma nova parentela e seguir com a cultura.

Em minha etnografia também percebi um item relevante, onde os conjugues


obrigatoriamente devem pertencer as diferentes famílias extensas dispersas pelas
comunidades Guarani Nhandeva, ou seja, as regras exogâmicas predominam, no qual há uma
proibição veemente relacionar- se com a mesma parentela ou grupo familiar. Assim, de
acordo com Dona Tereza, caso ocorra o incesto conhecida pela denominação de Mbora'u no
Tekohá, no futuro irá gerar uma maldição- punição rigorosa de Nhanderú Vussú (Deus
criador na cosmologia Guarani Nhandeva), que poderá condenar a parentela por milhares de
anos- com doenças, má formação congênita, onde Mitã (criança) irão nascer com sequelas,
deficiências, sem falar, sem audição, sem órgãos sexuais, sem visão, etc. Seria uma
verdadeira destruição de acordo com a Xamã Guarani Nhandeva, que seria o fim da

ɺɼ

parentela. Já no caso dos Kaiowá, em conversa com Karai Getúlio Avá Guarani Kaiowá, que
foi a primeira liderança a me receber em sua residência em 2017- o que mais preocupa a
etnia é a poligamia, que caso ocorra, posteriormente irá destruir seu Tekohá, voltando aos
Nhandeva- a poligamia não é proibida- muitos ainda mantém essa tradição.

Portanto, finalizo minimante essa situação falando principalmente do parentesco


Guarani Nhandeva- que é um sistema extremamente heterogêneo, dinâmico e complexo,
pois envolvem muitas categorias analíticas, que no meu entender, para compreendemos
melhor- seria necessária uma monografia de mestrado ou doutorado estritamente sobre o
tema. Mas voltando a falar genericamente sobre assunto, entendo que o Tamoy (avô) e Jary
(avó), Nhanderú (guia espiritual homem), Nhandesy (guia espiritual mulher) são os mais
importantes, pois através deles que sem mantém a tradição e oralidade Nhandeva ao longo
da história. Também verifiquei em minha pesquisa, que os Nhandeva não precisam
exclusivamente viver todos juntos, é importante, mas muitos lembram constantemente dos
parentes que residem distantes- dessa forma, os vínculos familiares não se perdem, muito
pelo contrário, são realçados o tempo inteiro, onde a terminologia Oguatá (caminhar/andar)
sempre requisitados entre os Guarani Nhandeva da Aldeias Jaguapirú e Bororó.

3. Atividades de produção Guarani Nhandeva na RID

Em minha pesquisa, sobretudo, a realizada em 2018, pude perceber que a principal


atividade econômica produtiva dos Guarani Nhandeva é a agricultura de coivara, mas como
mesmo Karai Renato me disse- ³WDPEpPDJHQWHDPDFDoDUHSHVFDUPDVLQIHOL]PHQWHKRMH
GLDKiSRXFRVUHFXUVRVQDQDWXUH]D´ILQDOL]RXQDRFDVLmR-i$OPLUHV0DUWLQV0DFKDGRPH
disse que que os Nhandeva realizam, principalmente uma atividade de subsistência, onde a
distribuição e redistribuição são marcantes nesses processos- pois se trata de um vínculo
sanguíneo e consanguíneo. Assim, a parentela distribui os recursos extraídos da produção
por todas as comunidades, sobretudo, por aquelas que não obtiveram tantos sucessos em suas
colheitas- isso faz com que os Nhandeva sejam vistos como um povo solidário, os Kaiowá
já são diferentes me indagou Dona Tereza Guarani Nhandeva. Dessa forma, os Nhandeva
compreendem que há Jara (dono) para todos os recursos disponíveis na natureza, por isso
mesmo não pode em hipótese algum mesquinhar, me intrigou Jaqueline Guarani Nhandeva.

ɺɽ

Em dezembro de 2017, em companhia de Dona Tereza, Almires Martins Machado,
Jaqueline Guarani Nhandeva e demais parentes, tive a oportunidade, mais que isso julgo-
um verdadeiro privilégio em visitar as plantações no Tekohá Nhandeva- onde percebi que
são bastante significativos, pois eu compreendia ser bem pequenas, mas pelo que vi são
bastante expressivos. Na oportunidade Almires me falou sobre a marcação e delimitação-
disse que a roça geralmente possui de 1 a 6 ha (hectares) por cada parentela ou unidade
familiar. É plantam principalmente milho (Avatí), batata (Jety), mandioca (Mandió), cana
(TaQJXDQUH¶H DEyERUD $QGDt PDPmR 0DPRQH , laranja (Naranrra), banana (Paková),
amendoim (Manduví), feijão (Kumandá), arroz (arró), fumo (Penty), remédios (Pohã
Nhanã). Dona Tereza me disse na oportunidade ao apontar para a roça ali está a nossa vida,
a nossa existência, a nossa história, a nossa memória, e por que não- a nossa arte. Almires
ainda me relatou, que o Avatí Morontí (milho branco) é diferente do Avatí Sayjú (milho
amarelo) - o primeiro é sagrado para os Guarani Nhandeva, em que jamais poderá ser
comercializada- é um elemento centralizador no ritual Avatí Kiry (batismo do milho).

Mais do que uma atividade ritual religiosa, a festa do milho novo condiz em um
momento de congraçamento e união entre os povos indígenas e membros convidados e uma
maneira de apresentar uma cultura de resistência aos modelos impostos pela sociedade não
LQGtJHQD 'H RXWUR PRGR *HHUW]  S   QRV GL] TXH ³SRGHPRV FKDPDU HVVDV
cerimônias totais de "realizações culturais" e observar que elas representam não apenas o
ponto no qual os aspectos deposicionais e conceptuais da vida religiosa convergem para o
crente, mas também o ponto no qual pode ser melhor examinada pelo observador a interação
HQWUHHOHV´O ritual Avatí Kiry foi pesquisado por Raul Claudio Lima Falcão no Mestrado
em Antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados, cujo título é Avatikyry: o
ritual do milho saboró entre os Kaiowa de Panambizinho-Dourados-MS, defendida em 2018.

Por fim, Dona Tereza Guarani Nhandeva me disse na presença de sua filha-
FRQKHFLGDSRU1KDQGHV\¶L SHTXHQDUH]DGRra), que nesse processo cabe a Kunã (mulheres)
a tarefa de pilar o milho e consequentemente preparar a tão famosa Chicha, fazer o Xipákuera
(chipa). O milho é um item fundamental, pois através dela pode ser feitos muitas coisas
como: farinha (Avatikuí), faULQKD GH PLOKR DFRPSDQKDGD GH EDQKD GH SRUFR +X¶LN\UD
.XUp IDULQKDGHPLOKRPLVWXUDGDFRPPDQGLRFD +X¶L5RYDMD0DQGLy FKLSDHPEUXOKDGD
com folhas (Xipá Mbixi), farinha de milho misturada na panela quente (Mbeju), milho
assado (Avatí Mbixi), milho assado em formato de bolo (Xipa Perõ), milho misturado com

ɺɾ

batata (Xipa Jetyiru), mingau (Mbaipy), milho ralado (Kãguyjy Miri), pipoca (Avati Pororó),
resto de milho (Avatí Kuerreguaré), etc.

4. Os Nhandeva Guarani: manejo dos recursos ambientais e antrópicos.

Em minha estada na Reserva Indígena de Dourados (RID), sobretudo, em ambientes


Guarani Nhandeva, pude comprovar que relação que esse povo- chamado de povo Mbaraká
Jú possui com a natureza é intrínseca, marcante e histórica- fiquei muito impressionado como
HOHV³PDQLSXODP´RVUHFXUVRVH[LVWHQWHVQRVDPELHQWHVQDWXUDLV'HVVDIRUPDRTXHPDLV
me chamou atenção de imediato, foi o cuidado em manusear a terra, chamado por eles de
Ivy. De acordo com Kari Renato Guarani Nhandeva- os Nhandeva usufruem do Tekohá com
cautela, pois se caso ofende a terra, Nhanderú não irá gostar, porque ele mesmo deixou a
terra para a boa convivência- em hipótese algum poderá judiar dela, me indagou Almires
finalizou a me dizer, há algum tempo vários agrônomos passaram por aqui- fazendo vários
perguntas e se surpreenderam com nós Guarani Nhandeva, principalmente pela nossa
organização a envolver o Ivy- bem dinâmico e estruturado, não faltando absolutamente nada-
chamou a nossa técnica de atividade ou manejo Agroflorestal- interligar caça, pesca e coleta
ao mesmo tempo, sempre tomando em cuidado em não destruir permanentemente os
recursos disponíveis, corroborou.

Por fim, visualizei que muitos Nhandeva trabalham com vendas-além de vendas de
artes como pulseiras, colares, brincos, cestarias coloridas, miniaturas de animais; também
comercializam produtos oriundos de rosas como mandioca, milho, batata, ovos, frutas- assim
comercializam em mercados locais, fora da aldeia de forma ambulantes em carroças e
entregas, onde as crianças vão juntas- sempre na presença e um ou mais Jaguá (cachorro)
pelas ruas de Dourados/MS. Muitos ainda trabalham em fazendas em arredores dos Tekohá,
outros trabalham em prefeituras de cidades vizinhas- além de Dourados, Douradina, Fátima
do Sul, Rio Brilhante, Ponta Porã- em muitos casos em situação de vulnerabilidade extrema
TXHDRPHXYHUSDVVDGHVSHUFHELGRSHODVDXWRULGDGHV³FRPSHWHQWHV´

5. Produção e confecção de artes Nhandeva Guarani em Dourados

Através de etnografias realizadas na Reserva Indígena de Dourados (RID),


sobretudo, a partir de conversas direta e indiretamente com meus interlocutores e

ɺɿ

protagonistas Nhandeva Guarani, onde tive a oportunidade de acompanhar as coletas,
produção e confecção das artes dessa etnia- que também é parte de mim por parte de minha
mãe Vitorina Ivarra- que ainda criança fora retirada dessa comunidade por familiares
gaúchas e paraguaias. Destaco que quando criança sempre ouvia a minha mãe mencionar o
seu povo, de como eram feitos os objetos de utilização do dia-a-dia e processamento de
artefatos sagrados, como os casos do Xirú, Mbaraká, Ambá e Takuapú.

FIGURA II. Miniaturas de animais (ressignificações cosmológicas- seguindo uma lógica


mercadológica). Fonte: Índia Vanure-Museu Histórico e Pedagógico, 2019.

Partindo desses pressupostos, gostaria de deixar claro que não concordo com alguns
pesquisadores/as que intitulam a produção artística Guarani Nhandeva de apenas
³DUWHVDQDWRV´$VDUWHVDUWHIDWRVHREMHWRVVDJUDGRV1KDQGHYDXOtrapassam essa barreira, vão
muito além de ser apenas um elo contemplativo e embelezamento, estão nas memórias,
esperanças, sonhos e cosmologia. Dito isso, apresentarei algumas maneiras de
desenvolvimento das artes Guarani Nhandeva na Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó, que são
trançados, tecidos, armas, instrumentos musicais, miniaturas e adornos.

I. Os trançados Nhandeva Guarani- -i %HUWD 5LEHLUR   FRUURERUDUD TXH ³RV
trançados se classificam, segundo suas finalidades, em objetos de uso e conforto doméstico,
objetos de caça e pesca, objetos para processamento da mandioca, objetos de transporte de
carga e de adorno pessoal (RIBEIRO, 1988, p. 197). Até agora os trançados possuem

ɻɶ

presenças marcante na comunidade- Dona Tereza me diz que elas são os caminhos
percorridos por Nhanderú e Nhandesy rumo ao paraíso celestial. Já (PASCHOALICK,
2008), enfatiza que o abano servia para atiçar o Tatá (fogo)- o cesto possuía a finalidade de
inserir frutas como Paková (banana), Araçá (goiaba), Kumandá (feijão), Jety (batata),
Manduví (amendoim) e de sementes para plantação, como é o caso de Andaí (abobora).
Nesse processo ainda cabe mencionar os cestos-armadilhas para capturar os Pirá (peixes)
nos rios que cortam a comunidade, e a peneira chamada de Tipiti, era usada para preparação
de Mandió (mandioca), também havia o cesto-cargueiro, usada principalmente nos Oguatá
Pukú (longa caminhada). Ainda de acordo com a historiadora, os trançados também serviam
de adorno em chapéus, braçadeiras e cintos (idem).

Já no entender de Darcy Ribeiro (1987), os produtos eram confeccionados com


matérias-primas diversas, como a palha, a tala do buriti, as gramíneas, os marantáceos como
arumã, as fasquias de cipó e as palmeiras como babaçu e bacaba. É para o antropólogo e
historiador suíço Alfred Métraux (2012), o povo Guarani (Kaiowá, Mbyá, Nhandeva e
Chiriguanos e Tapiatés) eram por excelência especialistas na produção e confecção de
cestarias. Utilizavam como matérias-primas o cipó Guaimbé (Philodendron selloum, Koch)
e a taquara (PASCHOALICK, 2008). Em minha última pesquisa realizada na RID (março
de 2019), pude observar que há poucos objetos a serem desenvolvidos pela comunidade-
visualizei, sobretudo, abanos para atiçar o fogo, as peneiras, os cestos.

Em minha investigação, notei que as matérias-primas mais utilizadas são de


procedência de Takuara (bambu), cipó, folhas de palmeiras, fibras de caule, embira de
bananeira, sementes de urucum, sangue de animais, sobretudo, aves e animais de caças. Na
residência do Nhanderú Karai Avá Jorge da Silva e Kuña Karai Nhandesy Antonia
Aparecida, pude observar que eles cultivam as matérias-primas no próprio quintal,
principalmente pela ausência na RID- causada pela expansão do agrobanditismo, como ele
mesmo me disse. Ainda me disse, que muitos artesãos e artesãs sempre buscam recursos de
outras aldeias como: Limão Verde, Laranjeira Nhanderú, Panambizinho, Pirakuá, etc. O
NhanderúY Alex Souza da Silva que é filho de Jorge da Silva, me disse que utiliza o embira
da bananeira produzida na casa de seus pais, para confeccionar cestos afim de comercializá-
los. É Nhanderú Roberto Arce, me relatou que usa o bambu e cipó Guaimbé na produção de
trançados, trazida da Aldeia Pirakuá (Bela Vista- MS) - frisou que somente terá sentido se
for de Pirakuá- verdadeiro e original, concluiu.

ɻɷ

Em minha pesquisa também pude entender que muitas artes ou objetos deixaram de
ser produzidas na Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó, não por falta de interesse, mas
sobretudo, pela escassez gerada pelo desmatamento da mata ou floresta que ali estavam- isso
já foi retratada pela historiadora Paschoalick:

A cestaria não é muito praticada no momento pelos Kaiowá e isto se deve,


sobretudo, pelo fato de não ter mais utilidade no novo modo de ser,
tekoyahu, visto que está diretamente relacionada ao transporte por terra de
crianças e carga, para uso e conforto doméstico como suporte de cabaça,
abanador, esteira, entre outros (PASCHOALICK, 2008, p. 66).

Durante os dois anos que empreendi etnografia entre os Nhandeva Guarani de


Dourados, notabilizei que artes e objetos como cestos-armadilhas, cestos-cargueiros, gaiolas,
tipiti, chapéus, tipoias não foram encontrados. Almires Martins Machado me disse que é
imprescindível realizar pesquisa sobre arte e cosmologia, antes que acaba de vez toda essa
história milenar- que se mantem viva, apesar do ataque etnocida dos colonizadores.

II. A tecelagem Nhandeva Guarani- 1DVDSLrQFLDGH'DUF\5LEHLURWHFHODJHP³pDWpFQLFD


GHLQWHUSRUUHJXODUPHQWHRVILRVFRPRXVHPRXVRGHLPSOHPHQWRVHDSDUHOKRV´ 5,%(IRO,
1988, p. 92). Já para Egon Schaden (1974), os Guarani em outrora usam o algodão para
confeccionar tecidos. Dessa forma, com o uso do tear, teciam e produziam vestuários
PDVFXOLQRVHIHPLQLQRV3RUWDQWR³ILDUWLQJLUHWHFHUHUDPWDUHIDVDWULEXtGDVjV PXOKHUHV´
(MARQUES; ALVES, 2019, p. 2004). Ao descrever o processo de tecelagem entre as
*XDUDQL$OIUHG0pWUD[QRWRXTXHDVPXOKHUHVWHFLDP³VHPDMXGDGHQHQKXPLQVWUXPHQWR
passando simplesmente os fios da trama entre aqueles da urdidura como se elas
rHPHQGDVVHP´ 0e75$;S 322).

Sobre o processo de tecelagem Berta Ribeiro corrobora:

A arte de tecer admite duas macro-divisões: trabalho em trama e trabalho


em malha. A primeira pressupõe o uso de um dispositivo para a tensão dos
fios da urdidura: o tear. E o uso de dois elementos, urdidura e trama ou dois
conjuntos de elementos que se entrecruzam formando o tecido. A segunda
se processa pelo emprego de um único elemento contínuo de tamanho
finito ou infinito, e o uso ou não de um implemento, agulha de ponta (tricô),
agulha de gancho (crochê) ou agulha de orifício (enlace), ou simplesmente
um gabarito (RIBEIRO, 1988, p. 92).

ɻɸ

Conforme descreve Shaden (1962), com a confecção de tecelagem o povo Guarani
produzia tecidos para fazer roupas. A indumentária masculina era formada por ponchito
(poncho pequeno), o Txumbé (faixa de algodão usada em torno da cintura) e o Txiripá, pano
de algodão de forma retangular, com três lados de franja que desce até abaixo dos joelhos
(MARQUES; ALVES, 2019, p. 205). Já a indumentaria feminino era composto do Váta, que
corresponde a uma blusa, e o Tupái, semelhante a uma saia (idem). Conforme postula
Paschoalick (2008), com o uso das fibras de caraguatá (Bromelia antiancatha), planta da
família das bromeliáceas, as mulheres Guarani Nhandeva também confeccionavam fios, no
qual produziam redes, utilizadas para as crianças dormirem dentro de casa e, também, para
o descanso dos homens vindas da roça, caça, pesca e encontros.

Uma coisa que eu percebi em minha investigação, já tinha sido também observada
pela hiVWRULDGRUD 3DVFKRDOLFN   TXH ³SHOD DXVrQFLD GR DOJRGmR H GR FDUDJXDWi
abandonaram a prática de fiar, Povã, [...] [mas] continuam tecendo com barbante, lã, fios de
tecidos desfiados, estopa, linha, utilizando a mesma técniFD GRV VHXV DQWHSDVVDGRV´
(PASCHOALICK, 2008, p. 68). A artista Guarani Antonia Aparecida faz uso de tear
produzido por ela e pelo esposo, o artista Karai Avá Guarani Nhandeva Admiro Arce- que
na ocasião que disse que produz em seu quintal o pariri, a cabaça e a bananeira. Assim, com
barbante, produzem redes. Já a artista Marilda Duarte elabora faixas e tapetes com o recurso
do tear. Portanto, para substituir o algodão, ela utiliza o barbante e a lã, comprados em casas
comerciais na cidade de Dourados, como também identificou as pesquisadoras Marques e
Alves (2019). Em minha última investigação, pude observar o trabalho de Marilda Duarte
Guarani Nhandeva, onde me disse que as faixas confeccionadas, servem principalmente para
produzir saias- ela aplica uma série de sementes nativas- finaOL]RXDGL]HU³LVVRYDLSDUDR
PHUFDGRPDVOHYDFRQVLJRQRVVDVPHPyULDVQRVVDVKLVWyULDVQRVVRVVRQKRV´

III. As armas Nhandeva Guarani- De acordo com antropóloga, etnóloga e museóloga


brasileira, autoridade significativa em cultura material dos povos indígenas do Brasil Berta
5LEHLUR  ³RFRQMXQWRGHREMHWRVHPSUHJDGRVLQGLVFULPLQDGDPHQWHSDUDDVIXQo}HVGH
JXHUUD H SDUD DV WDUHIDV GH SURYLPHQWR GD VXEVLVWrQFLD WDLV FRPR D FDoD H D SHVFD´
(RIBEIRO, 1988, p. 239). A pensadora também identificou três modelos de armas: armas de
arremesso, armas de choque e armas de sopro. Dessa maneira, as armas de arremesso, como
a lança, a boleadeira, o arco e a flecha, fornecem subsídios para ataque a pequena, média ou
grandes distâncias- usadas, sobretudo para caçar paca, tatu, peixe, quati. Já a armas de
choque, como a borduna, se aplicam ao combate próximo ou à caça a animais de grande

ɻɹ

porte- como anta, veado, queixada, porco-do-mato. É por fim, as armas de sopro são aquelas
que contêm dardos envenenados- usadas para matar animais ou seres possuídos por espíritos
diabólicos (RIBEIRO, 1988).

1R HQWHQGHU GH 6HJXQGR &KLDUD  S   ³DV DUPDV PDLV FRQYHQFLRQDLV
utilizadas pelos índios são: sarabatana, propulsor de dardos, boleadeiras, borduna (conhecida
tambpPFRPRFODYDRXPDFDQD ODQoDHDUFRHIOHFKD´3HUFHELHPPLQKDSHVTXLVDTXHSRU
unanimidades os Nhanderú e Nhandesy, ao lembrar de sua cosmologia sempre se rementem
ao passado- por isso mesmo adotei o termo memória para situar essa problemática. Senhor
Renato Guarani me disse que as armas praticamente perderam suas importâncias em termos
de utilidades, mas não em importâncias históricas e cosmológicas. Já Kuña Karai Tereza
Guarani Nhandeva me relatou que a caça e a pesca é própria vida Guarani- disse que
Nhanderú Tenondé (Deus principal na cosmologia Guarani Nhandeva) deixou a floresta e
os rios para os Guarani viverem em harmonia e em paz, mas que os Karai estão a destruir
tudo- relatou ainda que o fim está próximo, que Nhanderú Tenondé Eté já cansou de ver seu
mundo desvastado.

A produção de arco e flecha ainda é marcante na RID (Reserva Indígena de


Dourados), sobretudo, como mercadoria- sendo assim ressignificado em uma nova dinâmica,
sem perder a sua essência- principalmente para os compradores que aos adquirem não se
importam se foram esses objetos remodelados em uma outra esfera, mas por possui uma
ancestralidade tribal étnico. É as maiorias dos artistas Guarani Nhandeva tem consciência
GHVVHIDWRRQGHGL]HP³SUHFLVDPRVFRQWLQXDUYLYHQGR´eQRHQtender de Marques e Alves
(2019), o processo de miniaturização é feito justamente para facilitar acomodações doa
abjetos nas bagagens dos compradores, predominantemente, turistas. Já em relação às
matérias-primas utilizadas na produção do arco e da flecha, Métraux (1987, p. 140) corrobora
que ambos eram confeccionados com variados tipos de madeira, como a aroeira (Astronium
VSS RSDXG¶DUFR 7HFRPDDI&RQVStFXD'& RLSr 7DEHEXLDVS DFDUD~ED -DFDUDQGD
copaia) e a pupunha (Bactris speciosa), dentre outros.

Com base na publicação recente de Marques e Alves (2019), podemos perceber a


complexidade da produção atreladas as matérias-primas dos objetos Guarani, assim as
pesquisadoras sintetizam os seguintes postulados:

ɻɺ

Em relação às matérias-primas utilizadas, no presente, os artesãos
informaram que se servem de madeiras como o aguaí (Thevetia peruviana),
o cipó guaimbé (Philodendron bipinnatifidum) e a taquara. Para o trançado
do arco são utilizados, além do cipó, o capim braquiária, a linha e o
barbante. Já foi mencionado que o cipó guaimbé está extinto na reserva e
só é utilizado quando trazido de outras aldeias da região. O caraguatá,
quando encontrado, é utilizado para fazer o cordão dos arcos. Na falta do
caraguatá, é empregado o barbante. As penas que adornam as peças são de
galinhas, tingidas com papel crepom, anilina e outras tintas compradas em
casas comerciais da cidade (MARQUES; ALVES, 2019, p. 207).

Em minha investigação também pude perceber que caule de palmeira, bambu, cordão
de caraguatá, cipó e penas coloridas são as principais matérias-primas encontradas na Aldeia
Jaguapirú e Aldeia Bororó- as flechas possuem tamanho aproximado de 150 cm como me
mostrou a Nhandesy Dona Floriza Guarani Kaiowá no interior de sua casa de reza
(Oga/Opy).

IV. O fim da cerâmica Nhandeva Guarani- Berta Ribeiro também corroborou que a
FHUkPLFD p D ³DUWH GH FRQIHFFLRQDU DUWHIDWRV FRP DUJLOD VXEPHWLGRV j FRPEXVWmR H DOWD
WHPSHUDWXUD´ 5,%(,52S (PUHODomRjVIXQo}HVGRVDrtefatos cerâmicos na
vida dos povos indígenas, Willey (1987) enfatiza que eram confeccionados pelas etnias
indígenas como utensílios para conservar, preparar e a posteriori consumir alimentos sólidos
e líquidos. Muitas peças também tinham função cosmológica e ritualística, como aquelas
empregadas como urnas mortuárias. É de acordo com Paschoalick (2008), a cerâmica foi
imensamente produzida em outrora pelos Guarani, e na atualidade contemporânea tem sido
um recurso de grande relevância para identificação étnica em sítios arqueológicos.
Atualmente muitos sítios vêm sendo identificados em Mato Grosso do Sul, como demostram
os pesquisadores Kashimoto e Martins (2008):

Datações arqueológicas obtidas a partir de amostras coletadas na margem


sul-mato-grossense do rio Paraná, o baixo curso do Ivinhema, na atual
reserva dos índios Kadiwéu, ou ainda na margem do córrego Lalima,
pequeno afluente do rio Miranda, são evidências incontestes da produção
de cerâmica arqueológica, Tupiguarani ou Guarani em Mato Grosso do
Sul, nos séculos XVI, XVII e XVIII, as quais estratigraficamente, atestam
as sequências ocupacionais a partir de horizontes deposicionais pré-
coloniais (KASHIMOTO; MARTINS, 2008, p. 153).

ɻɻ

Em minha pesquisa na Reserva Indígena de Dourados (RID), não encontrei nenhuma
cerâmica e, isso me chamou bastante atenção- no início acreditava que os Guarani Nhandeva
ainda produziam cerâmicas como antigamente, sobretudo, por que outras etnias as produzem
na atualidade como os Kadiwéu e os Kinikinau. Mediante isso, fui procurar saber- o por quê
dos Guarani não produzirem mais esses objetos milenar. Almires me disse que os Nhandeva
não encontram mais facilidades para produzi-las e, atualmente possuem outros prioridade,
sobretudo, pelo contexto de violências e violações que se encontram. Já o artista Karai
Guarani Nhandeva Jorge da Silva me relatou que ainda há várias pessoas na RID que sabem
todos os processos de produção da cerâmica. Frisou ainda que não existem mais madeiras
apropriadas ou adequadas para ser retiradas da mata para queimar e posteriormente produzir
a cerâmica. Disse que ser for confeccionado de qualquer maneira, a comunidade ou
parentela pode ser punido por Nhanderú Eté Tenondé. Já Karai Renato Guarani Nhandeva
me disse que na RID não há lugares adequados para guardar os materiais. Por fim, a
KLVWRULDGRUD 3DVFKRDOLFN WDPEpP SHUFHEHX LVVR HP  ³DOJXQV DVSHFWRV SRGHP WHU
contribuído para esse fato, como o conhecimento do metal, o deslocamento dos indígenas de
suas aldeias tradicionais e o confinamento em reservas- o novo modo de viver imposto aos
*XDUDQL SHOD VRFLHGDGH FDSLWDOLVWD FRQWULEXLX SDUD R DEDQGRQR GD SUiWLFD ROHLUD´
(PASCHOALICK, 2008, p. 94).

V. Os adornamentos Nhandeva Guarani: dentro e fora da RID- Para Berta Ribeiro


(1988) adornos são objetos utilizados para ornamentar o corpo indígena. Esse processo
envolve diversas matérias-primas, como recursos vinda da flora, da fauna, minerais e,
inclusive, produtos industrializados. Já no que tange a característica étnica, Paschoalick
(2008) corrobora:

São adereços de uso ritual ou cotidiano e indicadores da condição etária,


sexual, social e étnica. São elaborados com materiais de origem vegetal,
cabaça, castanhas, bambu, lágrima de Nossa Senhora; animal, pêlos,
dentes, ossos, penas; mineral, granito, sílex, entre outros
(PASCHOALICK, 2008, p. 55).

No entender de Marques e Alves (2019, p. 2019), com esses materiais, são


produzidos objetos e artes como os colares, os cocares, os Tembetás, as pulseiras, as

ɻɼ

braçadeiras, as tornozeleiras, as saias, os cintos e os brincos. Ainda nesse sentido as
pesquisadoras postulam:

De acordo com os artesãos guarani da reserva de Dourados, entre os


adornos mais produzidos atualmente estão os colares, as pulseiras, os
palitos para cabelo e os brincos. Na confecção desses objetos são
empregados a casca de coco, a taquara e variados tipos de sementes de
plantas nativas. Podem ser referidas as sementes de pau-brasil (Caesalpinia
echinata), de lágrima de nossa senhora (Coix lacryma-job), de pariri
(Arrabidaea Chica), de olho de cabra (Ormosia arbórea), de leucena
(Leucaena leucocephala), de saboneteira (Sapindus saponária) e de açaí
(Euterpe oleracea Mart.). (MARQUES; ALVES, 2019, p. 209).

Sobre à substituição de matérias-primas para a confecção de colares, Paschoalick


(20 S   DILUPD TXH ³R FRUdão no qual passam sementes era, tradicionalmente,
FRQIHFFLRQDGRGHILRGHFDUDJXDWiDJRUDVXEVWLWXtGRSHORILRGHQ\ORQRXOLQKD´3HQDVGH
Riguassú (galinha) também são utilizadas para dar variedades de cores, acrescentadas a
anilina e papel crepom. Sobre isso Dona Tereza, Dona Floriza, Dona Antonia, Dona Maria
foram unanimes de corroborar que no passado, que as tintas retiradas de plantas nativas- uma
delas trata-se de Catiguá (Trichilia emarginata). De acordo com Marques e Silva (ibidem),
o cacique Jorge da Silva cultiva matérias-primas como a cabaça (Crescentia cujete), utilizada
para fazer chocalhos, e o pariri (Arrabidaea chica), empregado na confecção de colares e
pulseiras. Quanto às sementes, o artista Guarani explica que todas devem ser colhidas na lua
cheia para não carunchar (MARQUES; ALVES, 2019, p. 2010). Nesse sentido, a artista
Guarani Nhandeva, que eu encontrei próximo ao Banco do Brasil- área adjacência a praça
Antônio João em Dourados-MS, que ela procura produzir muitos brincos- isso porque é a
arte mais procuradas pelas mulheres da cidade. Ainda me disse que até há encomenda.

VI. Instrumentos musicais Nhandeva Guarani- No entender de Anthony Seeger, celebre


etnomusicólogo, antropólogo norte-americano (1987), a musica ou cantar sempre fez parte
GRUHSHUWRULRLQGtJHQDVHPWRGRVRVVHQWLGRV-iSDUD'DUF\5LEHLUR S ³DP~VLFD
e os instrumentos musicais se relacionam a aspectos da organização social e da cosmologia.
O rito é invariavelmente, um evento mXVLFDO´ e %HUWD 5LEHLUR 88), classifica as
músicas/sons indígenas em quatro grupos: aerofones, cordofones, idiofones e
membranofones. Dessa forma, os aerofones são instrumentos que produzem som ou

ɻɽ

harmonia conforme vibração do ar soprado no interior de um receptáculo, onde há
participação marcante dos instrumentos de sopro. Já os cordofones são instrumentos que
produzem som mediante a vibração de cordas. É os idiofones são instrumentos sonoros entre
os quais se classificam o Mbaraká e o bastão oco de ritmo. É por fim, os membranofones
são instrumentos dotados de caixa de ressonância (MARQUES; ALVES, 2019, p. 212).
Mediante isso Seeger indaga:

Os instrumentos musicais na América do Sul compartilham da importância


da música. São tidos, frequentemente, pelos nativos como objetos que
incorporam um poder identificado com diversas espécies de espíritos, seres
ou grupos de pessoas (SEEGER, 1987, p. 174).

Em minha investigação pude notar que as matérias-primas usadas para a elaboração


de instrumentos musicais são de origem vegetal, animal e mineral, dentre quais deparei com
a madeira, a taquara, o bambu, a cabaça e as sementes nativas. Dona Tereza Guarani
Nhandeva me disse que há duas maneiras de se fazer o Mbaraká (chocalho, bastão de ritmo,
cabaça) - primeiramente para utilizar-se nos rituais e posterior como objetos de vendas ou
comercialização. Sobre os cantos Guarani Nhandeva os texto clássico de Jakobson (1959) e
Severi (2014) me auxiliaram de maneira significativa- sobretudo os três elementos
vinculados a tradução: intralinguística, interlinguística e a transmutada. Dessa forma, os
autores postulam:

$ WUDGXomR LQWUDOLQJXtVWLFD RX ³UHIRUPXODomR´ p XPD LQWHUSUHWDomR GH


VLJQRV YHUEDLV SRU PHLR GH RXWURV VLJQRV GD PHVPD OLQJXDJHP ´³ D
tradução interlingual ou tradução adequada é uma interpretação de signos
YHUEDLVSRUPHLRGHDOJXPDRXWUDOLQJXDJHP´H³WUDGXomRLQWHUVHPLyWLFD
ou transmutação é uma interpretação de signos verbais por meio de sinais
de sistemas de signos não verbais (JAKOBSON, 1959, 233, apud SEVERI,
2014, p. 46).

Apesar de não ser meu objetivo realizar uma investigação acerca da etnomusicologia
Nhandeva Guarani, compreendo que seja importante destacar, mesmo que seja de maneira
conceitual. Já no entender de Deise Lucy Oliveira Montardo (2018) - a principal
pesquisadora da HWQRPXVLFRORJLD *XDUDQL QD DWXDOLGDGH ³RV FDQWRV H GDQoDV FRQVWLWXHP

ɻɾ

caminhos que permitem aos Guarani o encontro com os seres espirituais, com seus heróis
FULDGRUHVHYLVLWDVDDOGHLDVGLYLQDV´ 0217$5'2S $SHVquisadora ainda
corrobora que os Guarani Nhandeva cantam muitas vogais, o que foi percebido por diversos
estudiosos, como cantos sem letras- que seria um grande equívoco. Portanto, numa
interpretação mais detalhada, dos mesmos cantos executados em dias distintos, percebe-se
TXHRV³DVHVLVHRV´HVWmRVHPSUHQRPHVPRPRPHQWRGDPHORGLD LGHP 3RUILPFDEH
destacar o relato de Dona Tereza Guarani Nhandeva, que o cantar para os Guarani significa
renovar a alma, o espirito, conectar-se com as divindades e entidades cosmológicas em
múltiplas possibilidades, sobretudo de sonhos, esperanças e memórias. Assim em minha
pesquisa, pude deparar em diversos momentos, que na hora da produção das artes, artefatos
e objetos os Nhandeva cantam.

5. Olhares (in) conclusos sobre arte e cosmovisão ameríndia

Nos dias atuais o poder econômico das famílias tem outra fonte geradora de recursos,
não se concentram mais nas roças, na produção de alimentos. Hoje está diretamente ligada
a um trabalho assalariado de um ou mais membros da família. O homem e a mulher
geralmente trabalham fora e, por conseguinte, todos os demais membros da casa que estão
aptos a vender sua força de trabalho, nas fazendas ou usinas de álcool, prefeitura e empresas
prestadoras de serviços. Os programas de assistência social do governo, assim como o
auferido pelos aposentados, contribuem para a renda das famílias. Nesse quadro, muitas
mulheres assumiram a chefia da família.

A superpopulação tem inviabilizado a agricultura de subsistência, por falta de espaço


físico. A terra se tornou pequena, escassa, ainda há o agravante de que a mesma (e)praguejou
e só produzindo se usar as novas tecnologias, como os maquinários agrícolas. As atividades
remuneradas têm enfraquecido a rede de solidariedade nas relações de parentesco, já não há
reciprocidade, mas sim que parentes próximos trabalham nas roças dos outros parentes que
são assalariados, em troca de pagamento, potencializando o uso do dinheiro e do consumo.
Hoje formando uma classe dos que têm muito bens ou oVSDUHQWHV³ULFRV´HVWHVSRVVXHP
um bom emprego, são mais escolarizados, têm estabilidade no emprego e que passam a ser
DVVHGLDGRVSHORVTXHQmRWrPTXDVHQDGDRXRVFKDPDGRVSDUHQWHV³SREUHV´2FDSLWDOHR
acúmulo de riquezas se convertem em poder político, fomentando intrigas, inimizades,
fuxicos, podendo criar um poder paralelo e quase sempre o faz. Isso pode significar o

ɻɿ

rompimento com lideranças locais, marcado pela avidez do poder aquisitivo, na incessante
imitação do modo de vida do não indígena, para parecer moderno e interligado com o mundo
exterior, querendo demonstrar prestígio dentro e fora da aldeia.

Hoje a comunidade vive inúmeros problemas, entre os quais a proximidade com a


cidade, que propiciou o aparecimento de bocas de fumo, vendas de drogas. Cada vez mais
adolescentes são viciados, aliciados para o tráfico; os casos de violência doméstica se
acentuam; falta saneamento básico, atendimento de saúde de qualidade; educação de
qualidade nas escolas da aldeia; o fornecimento de água é insuficiente; as vias de
comunicação quase intransitáveis. Enfim, o descaso do poder público para com as aldeias é
gritante.

Almeja-se autonomia e penso que ela se concretiza em dois momentos distintos: a)


do ponto de vista legal nasce com a previsão Constitucional inserida nos textos da
Constituição Federal de 1988, em especial o art. 231, onde se insere os dispositivos basilares
promovedores do princípio e do reconhecimento da autonomia. Em tela destacam-se as
previsões delineadoras do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças
e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente são ocupados pelos povos
indígenas. Cabendo ao Estado o dever de demarcar e proteger essas terras indígenas que
pertencem à União; b) ao reconhecer e determinar o respeito à organização social e às terras
de cada povo, reconhece também a pluralidade jurídica, mais que isso valida os efeitos do
Direito vigente internamente, em cada comunidade.

Nessa fronte de lutas, cada povo se valerá da Constituição Federal para fazer valer o
seu Direito, interpretando de acordo com os seus valores culturais e pelo que dita a sua
cosmologia. Nesse âmbito o Direito deve ser buscado nas mais diversas frentes de luta, seja
no campo da saúde, alimentação, educação, proteção e preservação da natureza, seja no
âmbito dos ecossistemas e biomas quase sempre ameaçados pela ocupação desordenada do
entorno das terras indígenas.

Assim, a alteridade deve ser entendida como a capacidade de conviver com o


diferente, permitindo olhar a partir das diferenças e reconhecendo o outro como sujeito de
pleno direito. É qualificar-se para o diálogo intercultural, entendendo que o ser humano vive
e age a partir de um determinado código, numa rede de símbolos, caminhos e possibilidades.
Entender que toda cultura é dinâmica, que a vida social é imbricada a ponto de que não é
possível análises isoladas, pois aí existe uma rede de totalidades. Não basta o

ɼɶ

reconhecimento da diferença, é necessário prover formas de coexistência considerando a
alteridade: a ideia do relativismo, multiculturalismo, direitos humanos, remete às identidades
coletivas na perspectiva da construção de novos paradigmas que, de fato, construa a
cidadania, efetivando o reconhecimento da diferença e do direito à diferença e de ser
diferente.

Assim o indígena não se resigna mais a ser objeto de especulações epistemológicas,


acadêmicas e sim reclama o protagonismo político, sua participação no momento de discutir
as políticas públicas, é o empoderamento e entendimento de epistemologias para solução de
seus novos/velhos problemas.

2³YHOKR´HR³QRYR´FRQYLYHPQDVUHVHUYDVLQGtJHQDVDWHLDGHVLJQLILFDGRVHQUHGD-
se no saber local (GEERTZ, 2000), dando forma, fluidez, porosidade, permeabilidade,
flexibilidade as fronteiras culturais, reinterpretando, ressignificando, reelaborando a sua
cultura, rede social, modo de pensar, ver e agir, conforme a situação o exigir, legitimando-a
ou não. Não está passivo, aceitando o papel de vítima, o paradigma da aculturação, de visões
estereotipadas, de sujeitos de segunda categoria, de incapaz. O século XXI permite ir muito
DOpPGRLPDJLQDGRWDQWRTXHR³tQGLRGHYHUGDGH´KRMHHVWiQDVXQLYHUVLGDGHVID]SDUWH
das redes sociais da internet, twitando e trocando informações via facebook, netizado.
Continuamos na luta com a esperança de dias melhores são possíveis e estes podem estar
próximos, estamos nos empoderando de armas muito mais poderosas do que o velho e bom
arco e flecha, que o diga o poder das palavras.

Antropologia da arte, etno-estética, arte etnológico ou ainda histórico etnológico


artístico ameríndio são todos os termos usados para descrever o que constitui um estudo
antropológico das criações humanas, principalmente de viés plástica, visual, gestual,
musical, histórico e iconográfico (CÓQUET, 2001). Por assim dizer, o delineamento deste
campo particular da antropologia tem imediatamente problemas de definição que revela a
variedade de termos que têm sido usados até agora para definir ou contextualizar, e que afeta
o objeto de sua reflexão chamada torre por sua vez, e de acordo com os tempos, arte "tribal",
"primitiva", "tradicional", "etnológica", "popular"; tais qualificativos trancaram, no passado.
O termo "antropologia da arte" chama duas questões complementares, uma relativa aos
domínios da expressão considerada, a outra ao que entendemos por arte. Na linguagem
cotidiana, a palavra "arte" é geralmente usada para designar imagens figurativas ou não-
figurativas, em duas ou três dimensões e conjuntos, de todos os povos do mundo; ele

ɼɷ

inscreveu uma diferença entre os artefatos utilitários pertencentes à indústria artesanal e
outros, onde a marca de uma significação adicional social, simbólica, religiosa, estética, etc.

Acredito que a origem maussiana da proposição de que a antropologia da arte é uma


teoria da arte que considera objetos como pessoas. Em sua teoria da troca, Mauss analisa
benefícios ou presentes como pessoas, ou como suas extensões. Dessa forma, podemos
muito bem imaginar que é possível considerar objetos de arte como pessoas. Na verdade,
pode-se argumentar que, desde a teoria da troca de Mauss é a referência ou o protótipo da
teoria antropológica, que seria suficiente para a teoria antropológica da arte edifício uma
teoria semelhante à de Mauss, mas que se relacionaria com objetos de arte e não com
benefícios. A teoria do parentesco de Lévi-Strauss é semelhante à de Mauss; bastaria
substituir o termo serviço por mulheres; a teoria antropológica da arte seria semelhante à de
Mauss, onde benefícios seriam substituídos por objetos de arte. A ideia não é parodiar a
teoria que me proponho explicar, mas faço esse paralelo para orientar o leitor sobre minhas
intenções. Desejo simplesmente mostrar que uma teoria antropológica, qualquer que seja seu
objeto, é antropológica apenas na medida em que se assemelhe, em certos pontos
fundamentais, a outras teorias antropológicas; caso contrário, o termo antropológico não
teria sentido. Meu propósito é fazer avançar uma teoria antropológica da arte que se
assemelhe a outras teorias antropológicas, não apenas a de Mauss, mas também de muitas
outras. Minha principal crítica às teorias da estética intercultural e semiótica da arte
etnográfica é que seus princípios são questões da estética ocidental e da teoria da arte, e não
de forma de antropologia autônoma. Talvez não exista uma teoria da arte realmente útil que
possa ser baseada ou derivada de uma teoria antropológica existente, mas desde que
nenhuma tentativa tenha sido feita para construir uma verdadeira teoria antropológica da
arte. arte, a questão não pode ser resolvida.

6. O ritual Guarani: relações com os artefatos sagrados

A compreensão de um universo de relações sociais indígenas por meio da análise da


pratica de rituais religiosos, nos remete a pensar não apenas em uma direção e sim em uma
pluralidade de sentidos, signos, símbolos e conceitos que estão em constante suspensão e
que referem a própria experiência vivida representada em sua execução; sistemas são
construídos e junções entre saberes são necessárias para perpetuação de tradições e
conhecimentos, e neste universo de construções e dinamicidades onde vários atores

ɼɸ

participam no sentido de conectar sentidos, experiências, praticas, que se constituirão em
modelos a serem seguidos pelas futuras gerações, a educação se faz presente como uma
necessidade de se fazer sentir e se fazer ser social e pertencer a coletividade e para esta
contribuir para sua existência. Nesta acepção, conseguimos perceber o ritual como uma
espécie de linguagem coletiva, um símbolo representativo de algumas verdades
transcendentais, que incorporam uma pratica dinamizada que permeia por uma rede
complexa de ações significativas capazes de unir um grupo e convencê-lo por meio de sua
eficácia (MAUSS, 2003). Mais do que um movimento cosmológico de ordem reflexiva e ou
contePSODWLYD ³RV ULWXDLV GH XPD VRFLHGDGH DPpliam, focalizam, põem em relevo e
MXVWLILFDPRTXHMipXVXDOQHOD´ 3(,5$12S 

FIGURA III. Xirú Kurussú Ambá Guarani em frente de Oga/Opy (casa de reza ou casa ritual).
Recentemente esta casa de reza foi queimada. Fonte: Thailla Torres, 2019.

Dessa forma, começo discussão trazendo à tona as palavras de minha guia espiritual
Dona Tereza Guarani Nhandeva. Disse para ela, a senhora poderia me contar um pouco sobre
o Jeroky (a dança ritual). Ela me disse, claro que posso, mas cuidado é longo (risos), eu disse
será um prazer- acima de tudo uma honra. Ai ela, então vai. O trecho a seguir é uma
adaptação do que a Nhandesy me relatou em sua residência. O Sol vai se pondo no Tekohá,
membros de várias parentelas vão chegando com seus apetrechos (Xirú, Mbaraká, Mymby
e Takuapú) para passar a noite a dançar no ritmo do Jeroky Pukú (canto-longo),
acompanhados de seus filhos vão acomodando-se pela Nhanderogaii (residência Nhandeva),
a gritaria/tumulto é total, com as crianças a correr, a rir, outras a chorar; os Jaguá (cachorro)

ɼɹ

se encontram e se estranham, a provocar em seus donos gritaria para que cada animal retorna
a casa. Enquanto não chega a hora, os homens preparam a roda de Teréréiii (bebida típica
do Mato Grosso do Sul-similar ao mate gaúcho, mas com adaptação Nhandeva) e as
PXOKHUHVVHMXQWDPDRVPHVPRVRXIRUPDPRXWUDURGDGH.Di¶\ FKLPDUUmRRXPDWHPDLV
utilizadas pelas mulheres Guarani).

Os Nhandeva intitulam a categoria aldeia de Tekohá (também denominados pelos


Kaiowá e Pay Tavyterã de Mato Grosso do Sul e Paraguai; Mbyá do Pará, Paraná e São
Paulo e o Chiriguano da Bolívia), que é assim que os denominamos, significando para nós
lugar para se viver conforme a percepção de Guarani, embora seja do livre arbítrio de cada
um viver ou não, conforme tais preceitos; o modo correto de viver conforme ensinado e
aprendido nas caminhadas educativas, assim como nas noites de Jeroky (dançar). É o lugar
da vida; é a interação do espaço físico com o social, resultando em vida de forma o mais
próximo possível ao Raeháxa (tradicional) e não importa onde se esteja, se na terra
³WUDGLFLRQDO´RXQmRRQGHVHHVWLYHUDtSRGerá sê-lo; é ali que sua vida literalmente caiu,
então deve ser exercitado o ser, para isso não é preciso de um lugar especifico, basta
evidenciar o ser, se vai exercitar o Teko Vay (vida má, proceder ruim) ou se o Teko Porã
(vida boa, conduta condizente com o modo religioso), isso é com cada um, a vida lhe
pertence, cabendo somente a ele ou ela conduzir o seu ser, como pude percebe em diversos
diálogos.

0DVYROWDQGRD1KDQGHDUDRX2JD*XDVVXVHOiMiKRXYHU<Y\UDt¶Mi SRUWDGRUGR
bastão ritual), este já se adianta ao Nhanderú e vai verificando as condições dos instrumentos
rituais, se a casa já foi toda varrida, verificado se o pote com casca de cedro vermelho, está
cheio de água. Em dado momento o Nhanderú e Nhandesy se levantam, pegam o seu
Mbaraká, pigarreia, olha para todos e começa o Jerovassá (abençoar, limpar o corpo), para
dar início a dança ritual. Quase sempre acontece de exercitar o seu Mbaraká por um certo
WHPSRGLDQWHGR<Y\UD0DUDQJDWX DOWDU HR1KHPER¶H RUDomRHQFDQWDPHQWR SRGHVHURX
não audível a todos. Caminha-se pelo terreiro da casa, em círculo, terminando na frente do
altar, fechando o formalismo inicial do ritual.

Durante a minha participação do Jeroky Pukú da parentela de Dona Tereza Guarani


Nhandeva, que foi realizada em outubro de 2018, percebi que os cantos e as danças
executados no ritual Guarani, abrem os caminhos através dos quais os mesmos viajam por e
para outras dimensões onde se encontram as aldeias celestes, lá conversam com os

ɼɺ

ancestrais, com Nhanderú Vussú (nosso Pai/Deus maior), e todos os seres que porventura
possam encontrar no caminho dos espíritos, o visível e o invisível se visitam, iniciando o
estabelecimento de um futuro parentesco, uma rede social espiritual é formatada.

Almires corrobora que é justamente por meio do poder/conhecimento armazenado


no Mbaraká ancestral (como um pendrive), é que o dançarino mestre é guiado por caminhos
antes não trilhados ou já conhecidos, dependendo da finalidade da dança ritual, os caminhos
pelos quais passará permitem o aperfeiçoamento espiritual. Se for ritual de cura ou ainda
para desmanchar feitiços, o proceder ritualístico toma rumos diferentes, conforme o
Nhemboe (fala/encantamento/oração) exigido. Empunhado pelo mestre da cerimônia o
Mbaraká se transforma em cetro do poder e o Nhanderú o saber/fazer/caminhar, exercita-o,
fundem-se em um só corpo espiritual, é a agencia que o transporta ao universo não-humano.

Ao participar de vários Nhemboé (rezas), diálogos com as lideranças Nhandeva,


pescas no verão, percebi que o canto e a dança são as linguagens determinadas pelo ritmo
dos Mbaraká, que estabelecem o elo espiritual com os lugares celestes, morada de Nhanderu
Vussu. As danças seguem marcações rítmicas do maestro Mbaraka Jú aos seus dançarinos,
acompanhados pela batida dos Takuapú (bastão rítmico feito de bambu) utilizadas
exclusivamente pelas mulheres Guarani. São basicamente dois ritmos na melodia dos
Nhanderú/Nhandesy e dos Yvyraija, a primeira acelerada e com forte marcação rítmica,
marcações para simulações de lutas corporais (como se fora artes marciais); a dança exprime
o fervor e fortalecimento religioso; ficar leve facilita a caminhada ao mundo da
imaterialidade, é denominada de Jeroky Hatã (dança com marcação acelerada); a segunda é
mais lenta, límpida, formal, solene, é denominada de Nheëngaraí ou Jeroky Mbegue, tem a
premissa de encantamento, invocação, reverencia, respeito, lamento. No caso das mulheres
a movimento do corpo é comumente denominado de Syryry (deslizar) ou Kunã Jeroky
(dança feminina Nhandeva); o movimento corporal dos homens produz uma performance
pelo terreiro do Ogapysy, é chamado em dXDVGDVVXDVHWDSDVPDLVXVXDLVGH1KHPRQJX¶r
(movimentar-se), e a outra Nhemomisy (agachar-se).

Ao longo de minha jornada juntamente com os Guarani Nhandeva da RID (Reserva


Indígena de Dourados), compreendi que se o objetivo é alcançar o Aguyje (perfeição,
plenitude), o Kandiré (imortalidade/iluminação), o modo de proceder aqui na terra deve ser
irrepreensível, com dedicação ao Purahei (cântico) constante e ao Jeroky; se alcança o Yvã
(céu, cosmos), que é em última instancia a morada desejada na eternidade. O grande cuidado

ɼɻ

é para não errar o caminho que leva ao destino desejado durante o ritual ou a subida, pode
ser sem volta; as palavras denotam o seu poder de agir, fazer, transformar, trocar de estado
da matéria para o do espírito. Enquanto o Nhanderú (rezador)ou Nhandesy (rezadora) vai
seguindo a sua viagem, orientado pelo Mbaraká, ele vai fazendo as suas orações e
encantamentos, abrindo as passagens e caminhos, considerando que muitas são as Tava
(aldeia de pedra) na terra que não se morre mais, sempre haverá a possibilidade de estar indo
a um novo Tekohá. Por vezes o cântico/encantamento é audível a todos os presentes no ritual,
significando que o caminho é fácil, conhecido, já trilhado, em outros momentos é apenas
grunhidos, em razão de estarem sendo usados os encantamentos mais secretos recebidos de
Nhanderu Vussú, pois há perigo constante a vista, espíritos malignos à espreita.

Na caminhada em direçmRD<Y\PDUDQH¶\ ,9$55$257,=0$&+$'2 


pode ter agregado a si outros Guarani, que por ali estejam caminhando rumo a determinado
Tekoha; assim como na caminhada terrena no Oguatá (caminhada com intencionalidades),
grupos vão sendo constituídos e desfeitos até o ponto de chegada. O mesmo ocorre na viagem
espiritual, pode ser que seja acompanhado de outros Nhanderu ou de espíritos amigos. Esse
caminhar define todo um modo de vida e comportamento, dedicação e esforço em estar leve
para chegar rápido à rota que conduz ao local almejado. Essa mobilidade tem implicações
religiosas, sociológicas e jurídicas, enfatizando a horizontalidade e a verticalidade desses
movimentos, considerando a vida terrena e a espiritual.

A Kunã Karai Tereza Guarani Nhandeva, relatou-me que o Guarani precisa cuidar
da alma e do corpo, ambas se alimentam e precisam de cuidados, considerando a crença que
se possui duas almas: a humana e a animal, deve-se estar sempre atento ao equilíbrio das
mesmas, a primeira é lugar da esperança, bondade, realizações profícuas, a segunda é o lugar
do mal, do receio, do medo, do desequilíbrio. Assim, na primeira repousa a divindade, razão
do esforço para que a mesma tenha garantido o seu lugar na terra, onde não se morre mais,
alcançado pelo estado de alma chamado de Aguyjê; na segunda reside maldade, perigo, o
risco de ser condenado a ser um espectro que vaga na noite em forma de Anguere ou ser
transformado em Jepota.

Agora, Karai Renato Avá Guarani, me disse que o Mbaraká precisa ser exercitado
nos locais de origem, os cânticos necessitam alçar os caminhos do céu, a alma precisa ficar
leve. Se antes se acreditava que poderia alcançá-la pela via terrestre, rumando-se a leste ou
oeste e atravessando o mar, hoje já se partilha o pensamento que o caminho é o espiritual,

ɼɼ

para tanto é primordial que tudo volte ao seu lugar de princípio, o território tradicional,
juntamente com todos os seus objetos sagrados, de perto e os de longe. Os que tem poder
associado ao Mbaraká, os homens-deuses que percorrem constantemente os caminhos do
que é designado como Yvã Rapê Jara (caminho do céu), dia após dia persistem no Jeroky,
com Takuá e MbarakaY, nesse caminho onde humanos e divindades repousam sob o mesmo
teto no Ambá (aldeia celeste), onde exercitam o Ayvu 1KH¶s IDODGDDOPD FRQVLGHUDQGR
os caminhos do céu é possível ver os seus rastos, do leste (Nhandehovái) ao oeste
(Nhandekupê).

Para Almires Martins Machado, o grande risco para os iniciantes na caminhada


espiritual é se desumanizar, nos confrontos que podem ocorrer nesse meio tempo, em que
estão na terra e a caminho do céu. Esses caminhos não são trilhados por qualquer pessoa, é
preciso estar de acordo com o Nhandeteko (nosso modo de vida), nesse caso esclareço que
o nosso modo de ser é distinto dos demais, abarcando uma ampla gama de elementos
constitutivos de vida individual e coletiva, sendo que nessa perspectiva do mundo real,
terreno, é manifestamente uma dimensão do que se pode ver, apalpar, medir, sopesar,
atitudes, comportamentos coletivos ou não, incluindo regimes alimentares, a esteticidade,
redundando na maneira de ver e pensar o mundo e as coisas que nele há. Por essa razão o
Guarani considera que seu modo de vida é o correto, porque frequentemente se empodera
do modo de ser e viver dos divinos, nas moradas celestes estando em pé e de frente aos
mesmos.

Interpretei que proceder expressa-se em ser comedido, calmo, tranquilo, ponderado,


solidarizando-se com seu próximo, sempre exercitando a reciprocidade, a temperança, com
isso aperfeiçoam os sentidos do corpo como o ouvir, falar, sentir e ver, no entanto o que os
diferencia dos demais, é a capacidade de percepção em como proceder para estar cada vez
mais próximo de alcançar a perfeição, o Tekó Aguyjê. O cuidado que os Yvyraijá tem
durante o Jeroky, se explica porque assim como essências aromáticas se fundem a pele, a
essência ruim dos invisíveis que estão no caminho espiritual, podem ojá (grudar) na pele do
Nhanderú e com ele se fazer presente no Tekohá, a causar males súbitos, doenças, desgraças,
a razão de estar alerta e saber o momento certo de passar do Jeroky Hatã, para o Jeroky
Mbegüe.

Desviar-se dos caminhos ensinados por este segundo o ensinamento Guarani,


manifesta-se em condutas como adquirir os modos dos animais em ser feroz, briguento,

ɼɽ

avarento, raivoso. Os homens apresentam condutas dos animais, que por sua vez o espírito
animal toma a forma de homens. Nessa situação a alma animal sobrepuja a humana.
Aprendendo o bem viver e exercitando-o, agrada os que moram no Ambá (Xirú em tamanho
maior), dessa forma com as constantes visitações a suas moradas, logo reconhece o Guarani
como seu parente e com este estabelece a solidariedade e reciprocidade, indo e vindo
descendo e subindo ao Ambá. O visitante então é revestido do Arandu Porã (bom
entendimento), essencial para um dia ir de vez para a terra sem mal, sem que para isso passe
pela experiência da morte física.

Vejo que nessa terra, o exercício é o de viver o mais correto possível, para não se
deixar levar pela animalidade da alma, em contraste o que vale é o exercício da humanidade,
que aproxima do modo de vida dos que estão na terra onde não se morre. Lembrando que
esse modo de ser não é exercitado por todos, com dito acima, faz parte do livre arbítrio. A
viagem em que o Mbaraka é o guia ou o marcador da condição da alma no caminho trilhado,
une o humano e o divino, nessa superação que é possível somente como a boa conduta, o
bom viver, ter boas maneiras de conduzir o ser, implica em ter acesso na presença do divino.
É a superação de limites de mundos que um dia não terão mais separações, um estará
imbricado no outro.

Fica evidente que todo o esforço físico desprendido no Jeroky, resultam nos sonhos
que Nhanderu Vussu (Deus criador Nhandeva) envia ao Guarani, para que o mesmo saiba,
como proceder no dia de amanhã, mostrando as coisas que irão acontecer, é o futuro sendo
revelado por meio dos sonhos. Assim, uma caminhada ou visita a uma parentela distante
pode e quase sempre se inicia com um sonho. Nas caminhadas exercita-se um saber fazer,
um conhecer, um aprendizado, pois como dito no início, o Mbaraká é guardião de
conhecimentos, a agencia orientadora por onde seguir nos caminhos espirituais. Dessa
forma, caminha-se por diferentes lugares, adentram-se segredos da botânica, fauna e flora
são esquadrinhados, no caso de danças para cura, diferentes essências assomam-se para
compor o conjunto de um conhecer para saber fazer.

De acordo com Karai Renato Guarani Nhandeva- com os primeiros sinais da alvorada
impulsionada pelo Mbaraká Jú termina o Purahei Pukú (cântico-longo), o corpo extenuado,
suado, pela longa caminhada de ida e volta aos Tekohá celestes, o/a Nhanderú/Nhandesy e
todos os que participaram do ritual se sentam para saudar o Kuarahí (Sol), não que ele seja
mais divino que qualquer um dos que ali estão sentados, mas porque ele é o irmão gêmeo de

ɼɾ

Jacy (Lua), o parente que está no céu, marcando uma trajetória que pode ser seguida por
qualquer um de seus irmãos terrenos e por ser segundo as histórias que são contadas, ele é
que trouxe DR PXQGR D KDUPRQLD 3RUWDQWR p MXVWDPHQWH GHVVH DPELHQWH TXH R ³REMHWR´
sagrado que está no exílio, sente saudades, da sua vida social, o exercitar a reciprocidade,
fraternidade, reverencia e respeito tanto a humanos e não humanos. É preciso liberta-se da
prisão de vidro e unir-se aos seus, ainda que demore um pouco mais de tempo.

Dessa forma, nos rituais religiosos e festivos, como em outros eventos sociais onde
se reúnem grandes coletivos, existem conexões e transformações múltiplas e estas estão
vinculadas as variadas formas de se pensar a cultura como um sistema de significados que é
transmitido e se comunicam historicamente, incorporado por meio de símbolos ± sagrados
ou não ± em um sistema de concepções herdadas e expressas em formas simbólicas por meio
das quais os homens e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida e
a sua práxis. Pensando um viés social de magnitude extensiva Nhandeva, para além de sua
simples forma de viver em grupo e se comunicar, esses sujeitos se constituem em atores
capazes de dinamizar sua vida individual e coletiva, porém, sempre necessitando de
elementos capazes de entrelaçar seu sentimento aos do grupo social do qual está imerso.

Por conseguinte, pensar em analisar conexões e comunicações em uma dimensão


dual que externa a experiência de coabitar em mundos e lógicas totalmente diferentes e
pensar como essas relações ocorrem distintamente e simultaneamente em nossa vida social,
problematizando imaginários cosmológicos dos Guarani Nhandeva, na análise ritual a
envolver os artefatos sagrados, e interligando-os a vivência cotidiana do seu povo, nos
remete a pensar em um cenário educacional onde atores importantes realizam suas atividades
por meio de suas práticas e ensinamentos em um conjunto em que está alicerçada a educação:
seja ela no seio da família, na comunidade ou na escola; neste sentido podemos evidenciar a
abordagem apresentada por Baniwa (2006) em que conecta educação à socialização de
indivíduos e suas práticas coletivas.

Perante a problemática que envolve o processo de interpretação cultural da nação


Guarani, mais especificamente, a nação Nhandeva, entendendo que as práticas rituais se
configuram em uma das principais manifestações de um povo, e que a partir destas, podemos
caminhar para uma possível construção de uma reflexão sobre o universo das relações sociais
formalizadas entre os membros deste grupo- e até mesmo com outros grupos- espaços e
posições sociais, pretendi com a realização desta investigação, apresentar apontamento

ɼɿ

fundamental no tocante aos conhecimentos tradicionais, cosmologia e discutir os artefatos
sagrados em diversos contextos acerca desse povo milenar que mantém sua cultura viva ao
longo dessa trágica história de violações.

Corroboro ainda que povo Guarani Nhandeva possui muitos saberes míticos que
orientam sua organização social, dos quais são transmitidos há outras gerações por meio das
histórias contadas e cantadas- o canto exerce importância primaz para sua existência e para
a perpetuação de suas tradições, além de garantir a reprodução cultural de sua sociedade.
Este é ensinado desde a maturidade e realizado para que seja propagado e não haja o fim
terreno do povo. Outro elemento importante para entender a organização social Nhandeva e
conectar ao processo educacional familiar são os princípios cosmológicos, pois estes se
constituem como fator essencial para se entender a origem e a própria concepção de
existência do povo Guarani, que mantém relações múltiplas e intrínsecas com os artefatos
sagrados e ritualísticos.

FIGURA IV. Nhanderú e Nhandesy Guarani portando objetos sagrados em Brasília. Fonte: Tiago
Miotto/CIMI, 2017.

Digo ainda que em atenção ao que preconiza Baniwa (2006), percebo que esse
processo educacional desenvolvido nas práticas rituais e ampliado pelos mitos e nas
tradições orais passadas pelas gerações anteriores é fundamental para a transmissão e
produção dos conhecimentos tradicionais indígenas além de se constituir em um importante

ɽɶ

instrumento de fortalecimento de culturas e das identidades individuais e coletivas. Nesse
sentido- cabe falar dos Ivyrá Ijá Kuera (xamã em processo de iniciação, ajudante de
Nhanderú e Nhandesy nos rituais). Sendo também um forte elemento constituinte para o
estabelecimento de direitos e busca por outros não conquistados ainda ou violados por náo-
indígenas ao longo da história. É ao falar de arte, artefato, objeto, agência, eficácia Guarani
Nhandeva é trazer à tona as memórias que ainda estão vivas através da materialidade. Ao
findar, gostaria de mencionar- por qual motivo utilizei a terminologia ou categoria
³RQWRJUDILD *XDUDQL 1KDQGHYD´- principalmente pelos fatos de os artefatoV RX ³REMHWRV
sagrados fazer parte intimamente da vida em comunidade- assim embasa-se na experiencia
através das diversas representações que eles são capazes de proporcionar aos grupos ou ainda
parentela. Evidentemente que meu objetivo não é fazer uma investigação filosófica- talvez,
no máximo uma etnografia ontológica ameríndia.

Portanto, para finalizar este artigo falarei da relação que há entre cosmologia e
³REMHWRV´ VDJUDGRV 1KDQGHYD TXH HP  Mi KDYLD SXEOLFDGR XP DUWLJR FXMR WtWXOR p
Mbaraká Ju: arte, memória e fala sagrada Guarani juntamente com meu colega e amigo
Almires, mas na ocasião era exclusivamente sobre o Mbaraká (chocalho). Dessa forma,
tratando-se de processos específicos e particulares, os artefatos sagrados Nhandeva são
usadas, sobretudo nos seguintes processos ritualísticos: Jerosy Puku (canto-dança longo),
-HURV\0E\N\ FDQWRFXUWR fHPER¶H.XQXPL0ERUR¶\KD ULWXDOGHSHUIXUDomRGHPHQLQRV
afim de acalmar), Ñevanga (ritual doméstico- um dos mais antigo que ainda se praticam
entre oV1KDQGHYD 3RURPRWƭKD ID]HUUHWURFHGHUDOJRRXDOJXpP- afim de resolver conflitos
internos nas comunidades ou parentelas), Poromondoha (conduzir o/a Nhanderú e Nhandesy
para o plano ou terreno espiritual), Ñemoeondeha (palavra bem sucedida- encontrar algo
EXVFDGR FRPR DQLPDLV FDoD H SHVFD  fHPER¶H fHKRYDLWƭ ULWXDO GH HQIUHWDPHQWR-
SULQFLSDOPHQWH DILP GH HYLWDU R VXLFtGLR QD FRPXQLGDGH  fH¶×HQJDUDL SDODYUD Pi RX
maldição- ritual de conhecer os espíritos malignos para posterior evitar)- sempre guiado por
um ou uma líder espiritual diferentemente dos Kaiowá e Mbyá. Para concluir- gostaria de
enfatizar que Umberto Eco e Charles Sanders Peirce foram fundamentais para a finalização
desta investigação, sobretudo ao corroborar que os artefatos sagrados Nhandeva podem ser
interpretados como mantenedores de ordem dentro da comunidade (Tekohá). Dessa forma,
RV³REMHWRV´*XDUDQLGHQWURGDFRPXQLGDGHSRGHLQGLFDUGHVLJQDomRVHPHOKDQoDDQDORJLD
alegoria, metonímia, metáfora, simbolismo, significação e principalmente comunicação-
indo muito além da linguagem, onde signos se entrelaçam nessa complexidade. Peirce

ɽɷ

(1983), embasado em sua obra intitulado Estudos coligidos fala da concepção tríade do
homem- isso também transcorrem entre as artes Nhandeva que passam pela primeiridade,
secundidade e terceiridade. Na primeira está a mentalidade do seu produtor/artesão, na
segunda está a representatividade e pertencimento e no terceiro está o significado real afim
de representar efetivamente o Tekohá Guarani. Dito isso- os artefatos ganham vidas e
biografias nos ícones (proximidade sensorial e emotiva), índices (representação subjetivo e
intersubjetivo) e símbolo (ideias- uma verdadeira lei para a etnia).

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RESUMO: Arte é um assunto que a antropologia ocupa há bastante tempo, onde diversos
pensadores trouxeram suas visões- a perpassar por diferentes escolas ou tradições:
evolucionismo, funcionalismo, culturalismo, funcional-estruturalismo, estruturalismo, pós-
estruturalismo até adentrar na antropologia pós-moderna. Assim, a antropologia
propriamente dita foi criada pela eliminação do conceito ocidental de arte para perceber mais
claramente a relação entre arte e vida social. Desta maneira facilitou o estudo das
manifestações artísticas das sociedades tradicionais em diferentes tempos e espaços. Assim,
o presente capítulo traz uma visão ameríndia Guarani acerca dos objetos sagrados- a partir
de etnografia realizada na Aldeia Jaguapirú/Bororó em Dourados, Mato Grosso do Sul-
região Centro-Oeste do Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Olhar Guarani; Arte; Cosmologia.

1. A Antropologia da Arte: múltiplas perspectivas

As dilatadas relações que envolvem arte e antropologia são antigas e na atualidade


contemporânea ainda é marcada por diversos quebra-cabeças epistemológicos,
paradigmáticos ou mesmo filosóficos, onde as maiorias referem-se sobre a própria categoria,
QRomRHFRQFHLWR³arte´, ou seja, o que seria arte e o que não seria arte? Certamente responder
estas questões não é fácil, como corrobora Cesarino (2017). Mediante isso, dois elementos
serão fundamentais nesta análise, compreensão e posterior interpretação: (i) a noção de
objeto propriamente dito e (ii) do sujeito produtor ou artesão. Estas indagações remontam
tanto à constituição da antropologia como ciência, quanto à formação das iconografias de
distinção do mundo Ocidental moderno em diferentes contextos e tempos.

Partindo desta visão- um autor que se preocupou com artes e povos tradicionais,
desde um viés antropológico propriamente dito foi o britânico Alfred Gel (1998), onde
destacou que a partir do momento em que os objetos são inseridos nas condições de atores
sociais em diferentes sociedades e contextos, acabam influenciando diretamente o fluxo da
vida social e produzindo um encantamento tecnológico nos indivíduos. O autor ainda destaca
que as artes levam a abduções, ou seja, inferências com relação às intenções e ações de outro
agente. Desta forma, são carregados de emoções, relações, ações e sentidos diversos, como

ɽɽ

destaca Lagrous (2010). Por mais que haja crítica sobre a obra de Gell, o autor continua
sendo fundamental para estudo da cultura material. Complementando Gell ideia de que em
certas sociedades os objetos são equiparados aos humanos, ou seja, dotados de essência,
intencionalidade e agências, algo que ganha dimensão no perspectivismo ameríndio e
multinaturalismo (VIVEIROS DE CASTRO, 1996).

Mas antes de Gell, Tilley (1990), eQIDWL]RXDWUDYpVGRFRQFHLWR³HWQRJUDILDHFXOWXUD


PDWHULDO´ TXH R VLJQLILFDGR GH XP REMHWR QDVFH TXDQGR HVVH REMHWR p XWLOL]DGR SDUD XP
propósito por um determinado grupo específico. Dito isto, o autor deixa evidente que o
significado é criado a partir de uma ação social contextualizada e situada, em uma interação
dialética com estruturas permanente e dinâmica baseadas em regras para um meio com
objetivo de alcançar um resultado final. Portanto, para Tilley, um objeto adquire agência,
quando é usado para um meio específico por ser humano.

-iDXWRUEULWkQLFR5REHUW/D\WRQ  DWUDYpVGHVHXOLYURLQWLWXODGR³$QWURSRORJLD


GD $UWH´ GHVWDFD TXH DUWH VH PDQLIHVWD SRU GLVWLQWRV VHJPHQWRV WDLV FRPR PRYLPHQWRV
corporais, uso de pigmentos ou modelagem tridimensional, mas que acima de tudo elas
precisam seguir regras e expectativas mediadas pela audiência, processo esse que já era
desenvolvido na pré-história, como destaca Bradley (2002) e, sobretudo, por meios de signos
compartilhados, para que esses objetos ou artefatos possam ser reconhecidos como artes.
Isso porque nem todos os movimentos corporais, pinturas, confecções de objetos podem ser
considerados artes. Por assim dizer, Aguiar (2015) enfatiza que arte ao mesmo tempo são
ideia e representação. Assim, ³HOHYD-se no transcurso da vida social de grupos humanos para
PHGLDUjUHODomRHQWUHRSODQRPDWHULDOHRXQLYHUVRFRVPROyJLFR´ $*8,$5S 

Outra obra de fundamental importância sobre artes e povos tradicionais é de autoria


Kasfir (1999), que por sua vez enfatiza que as adequações às novas realidades sociais,
culturais, políticas, econômicas, simbólicas e ideológicas conduzem a produção da cultura
material em híbrida vertente. Um exemplo disso e a mercantilização da produção artística
entre os Samburu no Quênia, adaptando-se as demandas turísticas por meio miniaturização
dos objetos tradicionais.

Já Lux Vidal (2007), destaca que, por muito tempo, as artes indígenas foram
relegadas a segundo plano, por serem consideradas residuais e pouca atrelada a contextos
étnicos específicos. Entretanto, a mesma pensadora argumenta que essa ideia vem sendo
repensada e revisitada, onde estudos artísticos e estéticos acerca dos povos indígenas estão

ɽɾ

a começar a ganhar espaço, apesar de ainda serem poucos explorados pela Antropologia.
$VVLPQDSDODYUDGDDXWRUDDDUWHJUiILFDpXP³PDWHULDOYLVXDOTXHH[SULPHDFRQFHSomR
WULEDOGDSHVVRDKXPDQD´ 9,'$/S 

Já, Morphy (1994), propõe uma interpretação dualista à arte. Assim, destaca que os
objetos de arte possuem propriedade semânticas/estéticas, utilizadas para fins de
apresentação ou representação, ou seja, os artefatos artísticos são signos-veículos
(significados) ou tem por finalidade provocar uma resposta estética no indivíduo. Mas ainda
informa que é possível ocorrer à combinação de duas coisas ao mesmo tempo.

Gamble (2001) por sua vez, corrobora que os objetos étnicos são carregados de
LGHLDVYDORUHVHVLVWHPDVGHFUHQoDVFRQFHLWRHVVHTXHGHQRPLQDGH³LGHDFLRQDO´Por assim
corroborar, a grande contribuição do autor britânico está na análise de três elementos
fundamentais para a realização da pesquisa, primeiro os objetos, segundo as paisagens e
terceiro os resultados da interação entre as duas coisas. Por conseguinte, Gamble sustenta
que o mais importante no estudo de cultura material não são os objetos, mas sim as pessoas,
ou seja, a própria condição humana.

Ratificamos ainda que os objetos de povos tradicionais ou ameríndios possuem


ações, valores ou ideias- indo muito além das questões estéticas e contemplativas. São essas
ideias que fundamentam nossa pesquisa sobre os objetos de origem Guarani na Aldeia
Jaguapirú e Aldeia Bororó, também perpassando por outras localidades Guarani, sobretudo
DQFRUDGR QDV LGHLDV GH ³ELRJUDILDV FXOWXUDLV´ H ³YLGDV VRFLDLV´ .23<72)) 
APPADURAI, 2008).

Portanto, de acordo com Haselberger (1961), para realizarmos uma investigação


etnológica da arte, quatros elementos tornam-se fundamentais. Primeiro, realizar um estudo
sistemático e detalhado de objetos de artes individuais, assim sendo, a pesquisa sobre o
Guarani deve descrever a gênese e a estrutura dos objetos, estabelecer sua classificação
espacial e temporal e, sobretudo, analisar o seu lugar dentro da cultura/comunidade. Segundo
a biografia do artista, e isso deve incluir um relato cronológico de todos os eventos
importantes na vida do artesão, ou seja, a história e a memória desse artesão. Também deve
traçar o desenvolvimento de seu estilo e caracterizar a sua capacidade criativa. Assim a
autora norte americDQD ³UHFRPHQGD´ XPD GHVFULomR GD LQIOXrQFLD H[HUFLGD SHOR DUWHVmR
através de seu trabalho. Terceiro estudo da arte em toda a estrutura cosmológica. Qual é o
papel e a influência da arte e do artista? Neste sentido, quais objetos são contemplativos e

ɽɿ

estéticos para essa comunidade, quais objetos são essencialmente utilitários ou ambos estão
associados? Em quarto está a história desta arte, onde pretende estabelecer datas para esses
objetos e também procura atribui-los a uma determinada localidade. Além disso, procurar
identificar períodos e tendências através do tempo e espaço.

Por fim, DaMatta (1981), destaca que é fundamental o pesquisador procurar


ultrapassar as objeções, onde torna-se possível formular novos conceitos e experimentar
novas metodologias, não se restringindo aos conceitos, valores, normas e arranjos arraigados
ou estruturados. Portanto, um exercício constante afim transformar o nosso ponto de vista e,
posteriormente alcançamos uma nova visão acerca do indivíduo e da própria sociedade no
qual estamos inseridos.

2. Ontografia Guarani: Arte, memória e cosmologia

Em dialogo com Almires Martins Machado (intelectual indígena Guarani e Terena),


onde estava a nos apresentar a totalidade geográfica da Aldeia Jaguapirú e Bororó no verão
de 2018, na oportunidade nos disse que existe uma narrativa mítica narrado(a) por alguns
Tamõi (avô) e Jarí (avó), que na serra de Maracaju- que se estende do atual Estado de Mato
Grosso do Sul- Brasil, até o Paraguai, foi o local onde o maior de todos os Ñanderusi
terrenos, chamado Guyra Ju (Pássaro dourado), subiu ao Yvy Ju (terra dourada) e deixou o
seu Mbaraka Ju (Mbaraka sagrado/religioso) escondido no topo desta serra. Este com
saudades de sua vida cerimonial/ritualístico, em determinada época toca sozinho, com a
LQWHQomRGHVHU³HQFRQWUDGR´HPSXQKDGRSRU RXWURPHVWUHGHFHULP{QLDVLG{QHRVTXHR
próprio escolherá para ser seu companheiro de danças, cânticos rituais e assim sair da
invisibilidade e voltar a viver com os seus parentes terrenos. Por essa razão a serra recebeu
o nome de Maracaju.

A posteriori- esta narrativa também foi confirmada pela Senhora Vitorina,


descendente de Guarani, que foi retirada ainda criança da Aldeia por uma família gaúcha,
mas teve a oportunidade de participar de vários fogos domésticos (onde histórias eram
contados por mais velhos as crianças e jovens Guarani) da comunidade. Assim, Vitorina
acrescenta que esse Rei do Ñanderú e Ñandesy um dia voltaria para ver como estás suas
terras, plantas, rios, animais, florestas que aqui havia deixado. Ela ainda disse, que
praticamente impossível o Xirú ter força sem o Mbaraká, pois ela que acorda os espíritos do
outro lado do universo- universo de divindades/deidades. Desta forma, Mbaraká poderia ser

ɾɶ

traduzida como violão de Ñanderú, o principal papel dela é difundir sons e melodias. Não
somente uma, mas várias- seguir uma frequência carregada de notas musicais, uma
verdadeira harmonia sinfônica.


Figura I. Mapa da Reserva Indígenas de Dourados (Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó) em Mato Grosso do
Sul- onde a maior parte da pesquisa foi realizada. Fonte: Google, 2019.

O povo Guarani são os únicos que se reconhecem como tal, embora chamados de
forma pejorativa de Ñandeva por muitos estudiosos- mesmo que seja indiretamente, o
desenvolvimento das considerações ao logo do texto, segue o modo de pensar Guarani, sua
lógica, cosmovisão, particularidades do mundo holístico. A escrita caminha por sobre a trilha
de um afastamento forçado ou não, da convivência com os seus familiares ou com quem se
tem afinidade, tendo como foco os objetos que foram levados desta etnia e se encontram
hoje em vários museus.

Iniciamos a dizer que quando está a caminho do exílio (museu e outros), a


inquietação, tristeza, dor, insatisfação, predominam como estado de espírito, em quem
naquele momento não sabe para onde está sendo levado e qual será o seu destino. Os sentidos
de sua existência, pertencimento, identidade, alteridade, convivência social, tudo que lhe era
caro e imbuído de significados, passam a existir como memória, lembrança de um passado
bem presente nas suas recordações, pois agora no exílio o que o cerca, não faz nenhum
sentido. Provavelmente nasce nesse momento o instinto da resistência, sobrevivência,
resiliência, pois não tem como se ocultar, tornar-se invisível. O stress se faz presente em

ɾɷ

razão da ausência do bem viver, o artefato precisa ajudar a sua comunidade, por isso longe
perde totalmente sua essência natural.

Se considerarmos que uma das possibilidades de estudo de um povo ou uma


sociedade, perpassa pela enfatização de sua cultura material, especialmente os objetos por
ela confeccionados, esses por sua vez podem estar revestidos de uma agencia, cuja finalidade
é transmitir, guardar, mediar, preservar, comunicar toda uma memória social, bem como a
identidade e pertencimento a determinado povo ou sociedade, este então está investido de
uma representatividade que nem sempre é visível nas exposições museológicas. Foi obrigado
a calar-se, resignar-se com a condição de exilado, submeter-se a vontade do colonizador.
Desta maneira, os objetos podem punir seus algozes com pragas, onde são mais comuns:
falta de água, dores de cabeça, mal-estar, cegueiras, infortúnios, desmemorilização, e até
mesmo a morte.

Figura II. Morro do Chapéu (Serra de Maracaju) - Aquidauana/MS. Fonte: Mapio.net (2019).

Façamos o uso do termo objeto, a evitar a utilização de artefato ou mercadoria, em


razão de estar ciente que este pode estar imbuído de uma humanidade, reciprocidade,
responsável de estabelecer relações sociais, de uma dádiva, uma alteridade, uma cosmologia,
a extensão material de corpos, observar e ser observado (GELL, 1998). Destacamos, que
poderíamos fazer um texto autobiográfico, como muitos colegas indígenas vem a
ɾɸ

desenvolver nos últimos tempo, mas compreendemos ser fundamental dialogar com outros
pensamentos e autores, mas nesta parte especifica iremos utilizar poucos autores,
acreditamos ser primordial expor a nossa experiencia de pesquisador-atuante-participativo.

Nesta pesquisa, no que tangem a escrita, há um esforço particular de nossa parte,


sobretudo a trilhar caminhos perscrutados, pelo olhar aguçado e crítico em relação a forma
como são organizadas as exposições de objetos da cultura material, quando essas mencionam
ou perscrutam sobre o passado-presente, com foco em algum povo indígena; se pensarmos
que o museu tem a missão de educar, especialmente a profícua missão de descolonizar as
³YHUGDGHV´GLWDVRILFLDLVGRYHQFHGRULQYDVRUSRGHQGRWRUQi-la humana, ética e socialmente
justa, procurando beneficiar os povos indígenas retratados, com o ponto de vista do mesmo,
entendido como vencido, culturalmente inferior, bárbaro, selvagem, primitivo, isto ainda é
o peso e a medida sob a óptica do dominador.

Pensamos que na prática museológica, ao mesmo tempo em que recebe os seus


visitantes, em razão de uma exposição da cultura material, deveria enfatizar o sentido das
práticas indígenas, podendo perfeitamente, desconstruir a visão preconceituosa sempre
relatada sobre os mesmos, tem a missão de (re) educar o seu público visitante, se pautar por
uma visão crítica, pelo sentido da resistência, resiliência, luta, representação dos povos e
culturas indígenas que lá estão expostas. Assim, os museus tem a missão de influenciar,
educar e induzir a repensar a história do etnocídio, vivida no passado e presente dos seus
retratados. A queixa está em que nem sempre transparece as suas epistemologias, suas
filosofias de vida, autonomia e autodeterminação enquanto povos que são. Corroboramos
ainda, que não estamos a desmerecer museus ou exposições, mas trazer a visão do povo
Guarani sobre esta lógica.

Não desenvolve uma visão crítica sobre o caminho do exilio sofrido pelos objetos
sagrados, no processo de coleta livre ou forçada, da exposição obrigada, que resvala na
própria representação da cultura, considerando que na luta pela sobrevivência os povos
indígenas reformulam, reinterpretam, ressignificam suas culturas e sociedades para manter-
se vivos. Acreditamos que os Guarani são um povo extremamente resistente, onde ao longo
da história passou por tantas coisas ruins, violências horripilantes sem precedentes. Neste
sentido, Vitorina Ivarra narra- que seus irmãos foram levados de suas comunidades para ser
escravos de fazendeiros, frisou que sua mãe Eulalia deu um Mbaraká para cada um dele,

ɾɹ

forma de proteção- ir cantada pelo caminho, que poderá um dia poderá retornar, fazer uma
nova história.

Dona Tereza Guarani- nos disse que as amostras de arco e flecha, zarabatana, tacapes,
bordunas entre outras, induz a ideia de uma inferioridade tecnológica, bélica, se confrontada
com as armas de fogo do colonizador, uma primitividade, frente a uma ideia de civilização,
ou um estágio de barbárie ou mesmo outros objetos da cultura material, representados no
mais das vezes como algo exótico. O trato dos achados arqueológicos e antropológicos, tem
o cuidado, mas não exatamente o respeito a toda simbologia do sagrado, de um universo
intangível. Este cuidado é para que a memória ali presente, não seja apenas uma relíquia a
mais ou simplesmente prova material de um passado tradicional ou ainda ser categorizado
como patrimônio cultural. Por assim dizer, há tensões e disputas nesse trilhar caminhos de
uma representatividade, espaços mesmo de poder, especialmente se considerarmos que não
há uma continuidade da vida dos objetos, mas sim um congelamento no tempo.

Nesta pesquisa- abrimos mão de utilizar-se da categoria coisas- imagina, por


exemplo, tratar elementos sagrados de uma cultura de apenas uma coisa (remetendo-se uma
coisa qualquer, sem validade). Nesse sentido Almires Martins Machado nos disse algo muito
interessante- Se nos questionarmos ou perguntarmos se de fato essa produção da cultura
PDWHULDOVmR³FRLVDV´"&RQVLGHUDQGRTXHRROKDUODQoDGRpVHPSUHDOyJLFDGRORFDORQGH
está chegando (o museu) e não de onde ele(s) saíram o Tekohá (a terra indígena). Não se
OHYDHPFRQWDRVHXSDVVDGRRVHXKLVWyULFRRVHOIUHSUHVHQWDWLYRVHX³VWDWXV´DVXDYLGD
social local, sua espiritualidade no contexto do saber local, de onde está sendo arrancado e
dependendo do objeto, está saindo contra a sua vontade, para um local que provavelmente
não pretende deslocar-se. Portanto, pode-se falar até mesmo em condução forçada,
sequestrada, pois esses objetos sagrados e ritualísticos possuem biografias- há alma neles,
memórias de outrora, pensamentos, ideias, sonhos, esperanças, etc.

Nesse sentido- compreendemos que é praticamente possível que a agência existente


no objeto funcione como um dinamizador espiritual para o povo Guarani, do qual os
habitantes do mundo subjetivo (que pode ser parte de sua parentela), daquele território de
onde está saindo, tenha a essência presa ao objeto, transferidos distantes de suas moradas,
de seu povo, dos qual é amigos e companheiros. Caso os objetos sejam violados ou roubados,
irá recair diretamente sobre o seu protetor, punindo-o de forma exemplar, mas que o maior
prejudicado será mesmo o Tekohá (lugar de morar). Dona Tereza Guarani- disse que em

ɾɺ

1998 um importante Xirú foi roubado e posteriormente recaiu uma praga sobre a Reserva
Indígena de Dourados (RID), onde um espírito maligno se apropriou do artefato e quase
gerou uma guerra entre os Guarani e os Kaiowá, mas muitos Nhanderú e Nhandesy rezaram
dias e noites e os mal espíritos se retiraram, mas mesmo assim deixou sequelas na
comunidade, que segundo o mesmo até o presente momento se sentem.

Em nossa convivência fora da aldeia e posteriormente na inserção nesse universo,


observamos que frequentemente as cosmologias ameríndias são desvalorizadas ou renegadas
por conhecimentos que não consideram outra epistemologia, senão for a ocidental, por essa
razão os valores, os hábitos, os costumes, as práticas espirituais locais, desenvolvidas e
mantidas por longo tempo em interação com a natureza, por povos que formataram um
conjunto de informações, entendimentos, modos de vida, interpretações, significações e
ressignificações, compondo o complexo cultural-ontológico, onde se insere a linguagem,
rituais, narrativas e o seu lugar no cosmos, imbricados na sua espiritualidade, cultura e as
PXLWDVQDWXUH]DVWXGRLVVRpGHVFRQVLGHUDGR'LWRLVVRSDVVDDVHUDSHQDVXP³WURIpX´RX
XPD³UHOtTXLD´GHFRORQL]DGRUSDUDH[LELomRDRVVHXVGDVcoisas exóticas de outras terras,
outros povos, outras culturas, outras sociedades, desprovidas de ³FLYLOL]DomR´- vista ainda
como selvagens ou bárbaras embasadas, sobretudo, nos ideais evolucionistas.

A posteriori a nossa inserção na Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó, acreditamos que


seja importante observar na atualidade que, dada à visibilidade política que os povos
indígenas vêm conquistando, novas reflexões devem e estão sendo feitas, essas perpassam
cada vez mais pela necessidade de se reconsiderar a maneira de pensar o outro- buscar uma
nova forma de enxergar o mundo. Portanto, os velhos estigmas devem ser superados, para
somente assim se ter novos marcos de como conceituar o outro. Assim, o pressuposto para
se pensar a questão indígena (questão- e não temática, como outros pesquisadores postulam)
e seus pertences materiais, produtos de sua cultura material, vão além das oposições entre
vencedores ou vencidos, dominantes e dominados, simples e complexos, natureza e cultura,
que acabam reservando para os povos indígenas apenas dois papéis: o de vítimas de
aniquilação ou de mártires culturais.

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Figura III. Artes Guarani em variadas formas. Fonte: Moraes, 2012.

A partir dos postulados anterior, compreendemos que os objetos expostos nos museus
sofrem inicialmente dois sintomas do trauma de estar no exílio: a) o silencio do concreto e
do aço; b) as indiferenças de quem os visitam, em sua prisão de vidro. Desta maneira, os
objetos têm uma identidade e alteridade, que caminham lado a lado, assim como a
semelhança/diferença; assim quem visita a exposição, direciona o seu olhar sempre se
acercando de comparações entre uma cultura e outra, o que quase sempre redunda em
conflitos de olhares, juízo de valores dissonantes, mesmo porque as pessoas são diferentes.
Portanto, a comparação é uma imprudência metodológica, podendo se apresentar ingênua,
enganosa e corromper quem está a observar, quando o que se quer de imediato é encontrar
diferenças ou contrastes, como nos ajuda a pensar Moreira (2005).

O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1987) - entende que o problema reside


em que a expressão cultural quando se aproxima de alguma forma de comportamento e de
pensamento diferente, imediatamente traz a classificação dessa diferença por meio da
hierarquia, e por consequência vem o isolamento ou mesmo de exclusão. Mediante isso, a
cultura do outro passa a ser entendida, visualizada pelas lentes da discriminação ou pior
ainda, como atraso, tão somente pelo fato de se ter tradições diferentes e desconhecidas ainda
nos dias de hoje.

ɾɼ

Neste contexto- os objetos sagrados Guarani nos museus ou exposições, muito
provavelmente começam a sofrer de saudades, de sua vida social, de seus companheiros
humanos, das conversas, das danças rituais dos quais faziam parte inicialmente. A partir de
diálogo com várias lideranças, percebemos que certamente por sentirem-se sozinhos os
objetos começam a sentir a pressão dos olhares estranhos, de pessoas que não falam a sua
linguagem, não o entendem, não são amigas, não há comunicação, entendimento neste
processo tão doloroso. Esse ser/objeto ouve apenas ecos de sons insignificantes e a cena se
repete diariamente, anos após anos, então chega o stress. Portanto, sente falta do seu Tekohá,
do seu povo, dos seus animais, das suas plantas, pois ele é parte desse ambiente.

Figura IV: Xirú Ambá Guarani em frente da casa de reza. Detalhe este Xirú é mais conhecido pela terminologia
Ambá Celestial ou Kurusú Ambá Kuera (onde repousam as almas/espíritos de Nhanderú e Nhandesy). Fonte:
arquivo pessoal, 2018.

Compreendemos que o objeto é considerado um ser vivo, é como um Guarani, ele


pensa como tal, sua mente está atrelada ao seu Tekohá de origem, que tem a ver com seu
espaço existencial, no qual assinala a natureza criador da sua identidade, das suas relações
sociais, onde vive ou tenta viver plenamente a uma cultura, desenvolvendo a sua política, os
seus meios econômicos, culturais e religiosos, com seus parentes de carne e osso. Assim,
não é apenas o lugar que serve para morar, plantar roças, caçar, pescar. É também o espaço
da construção de redes, laços e parentesco. É o local onde estão constantemente (re)vivendo,
(re)interpretando e (re)significando os seus hábitos, a corroborar aspectos importantes da sua
cosmovisão. Desta forma, esse é o relacionamento do objeto sagrado com os humanos, não-
humanos e os seus múltiplos territórios.

No decorrer de nossa investigação, também pudemos notar que onde estão enterrados
os seus antepassados, representando o seu poder sócio- cultural, as artes Guarani reinventam
a sua cosmologia, no qual cada planta, animal, pedra, tem a sua importância para a

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comunidade. É o ambiente onde desenvolvem as suas epistemologias, formas de pensar, agir
e ver o mundo- onde os objetos participam direta e indiretamente nas multiplicas relações
imbricadas no Tekohá. Assim, não restam dúvidas que o território é todo o conjunto de seres,
espíritos, bens, conhecimentos, usos e tradições. É onde se articula, define e mobiliza as
pessoas em torno de um bem comum, garantindo a vida individual e coletiva. Portanto, é
sempre a referência à ancestralidade, à formação de sua cosmologia e de sua rede de
significações, onde passado e presente estão em constante sintonia, vivos e mortos habitam
o mesmo espaço, onde estão os heróis que povoam as histórias e as memórias.

Dizemos que o território Guarani compreende todo o espaço de suas caminhadas de


contatos com natureza- aí inclusos a área de caça, pesca, coleta, acampamentos temporários,
casa, roça e o lugar onde dormem os antepassados intitulados de cemitérios por Karai Kuera
(senhor-ou simplesmente os não-indígenas). Portanto, para os Guarani, na natureza os
visíveis e invisíveis se entrelaçam e posteriormente se comunicam, e estão sempre
associados, assim como humanos e não-humanos, e estão em constante comunicação-
presente principalmente nos Xirú, é nesse sentido que o outro instrumento, o Mbaraká se
torna uma ferramenta fundamental, pois ela possui o papel de guiar o líder espiritual pelas
veredas do tempo e da história, sempre a ensinar os caminhos a percorrer, (MACHADO,
2009 e 2015).

O antropólogo ítalo-argentino Fabio Mura (2010), corrobora que se na perspectiva


Guarani, Kaiowá e Mbyá- o artefato possui vida, é igual a si mesmo, com vida social dentro
de um Tekohá, seja ele terreno ou espiritual, a vida no exílio lhe faz esquentar/rememorar
as lembranças de outrora, onde as memórias se tornam como águas revoltas de um mar
enfurecido. Destarte, toda essa situação os faz ficar nervosos e irritados, começam a
percorrer os caminhos da ira e da revolta, a deixar a alma, o espírito, a natureza maligna ser
potencializada com reflexos no local de sua produção.

Em 2018 já havíamos percebidos que a natureza de relacionamento do Guarani com


o Yvy (a terra) é de filiação (paternidade e maternidade), onde os objetos possuem uma
grande relevância, sobretudo a ser um intercessor de múltiplas relações sociais. Dito isso- a
terra é sua mãe generosa que tudo oferece às suas proles, em troca requer respeito e
honestidade, que é uma inferência (premissa) da vida. Assim, a terra é sagrada, nela está a
morada celeste dos espíritos de seus ancestrais, ela não é somente meio de produção de
alimentos, mas é parte do próprio universo Guarani. Dona Tereza nos disse, que por ser

ɾɾ

provido de alma, a terra também adoece e somente um/a verdadeiro/a Ñanderú ou Ñandesy
poderá curá-la; sua doença é um mal espiritual e quando ela se torna enferma, todos os que
dependem dela adoecem juntos- a causar um efeito dominó, por isso mesmo é fundamental
que os líderes espirituais dotados dos objetos sagrados precisam se mobilizar sempre,
principalmente promover o Jeroky Puku (dança ritualística mais longa).

Figura V. Mymby Guarani (também conhecida por Mimbiretá, Mïmbïretá, Mymbyretá, Mimbi-reta,
Mimbireta). Esta flauta é composta de tubos e poros em geral tocados por mulheres com jogos de 3 a 4,
estabelecendo uma diafonia com um ostinato e uma melodia de frases muitos breves imitando pelo canto geral
das aves. Fonte: Instrumundo, 2013.

Retornando a discussão que envolve a retiradas dos objetos do Tekohá- fica evidente
que esses objetos sagrados são obrigado a manter-se afastado dos seus pares, com os quais
o relacionamento pode ser sucursal e pela razão de viver uma inercia existencial na
exposição, uma verdadeira melancolia social, não ter se (re) significado no local onde foi
suplantado, sua risibilidade se altera em razão de todos os seus direitos serem entravados,
desconfigurada sua condição de agencia ativa e desprezadas as suas intencionalidades, assim
como a sua benevolência, sensibilidade e essência também transformam-se bruscamente.

Figura VI. Meninas Guarani tocando Mymby. Fonte: Blog Bitácora, 2013.

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Entendemos que todos esses objetos considerados sagrados pela cosmologia Guarani,
tais como: Xirú, Mbaraká, Mymby, Takuapú, Ambá são extremamente importantes,
possamos dizer que eles dão os ritmos do Tekó Porã (modo correto de ser Guarani) dentro
do Tekohá. Desta forma perguntamos para Dona Tereza, o que realmente acontece, caso os
objetos estejam no exílio- ela nos respondeu: eles param de trilhar o caminho de luz, o
caminho de esperança, o caminho da renovação, se está preso, distante- se torna apenas um
objeto à toa, corrobora. Nele se transfiguram os desejos de uma terra pródiga com seus filhos
e com suas filhas, terra que seja fértil, dê fartura e seja propícia para as boas palavras, o bem
viver. Assim, Almires nos disVH³pFRPRVHIRVVHSRVVtYHODOFDQçar a perfeição, sem precisar
UHVROYHU R FRQIOLWR FRP RV QRYRV FRORQL]DGRUHV RV YLVLWDQWHV GR PXVHX´ 3RUWDQWR
consideramos a cultura como um conjunto de experiências vivenciadas, assim como
respostas aos desafios enfrentados no cotidiano, onde haverá uma constante
(re)contextualização a considerar a dinâmica espacial-temporal e o modo de ser, mas o
exilado está impossibilitado de tal ação, pois foi bloqueado na sua embalagem protetora.

3. O fogo Jepeéhá Guarani: onde as histórias ganham vidas, sonhos e esperanças

Em nossa vivencia realizada nos anos de 2017, 2018 e 2019, na comunidade de Dona
Tereza- nos faz compreender que esse modo de ser ensina não exclusivamente a austeridade,
mas, principalmente ser/tornar pessoa agradável, satisfeito, fadada, prestativa, onde tudo é
motivo de riso, graça; não sem singeleza somos também o povo do sorridente e caridoso,
como me disse a Xamã. As Oga (casas) ou em qualquer lugar, onde os Guarani ficam
reunidos a cantar com seus instrumentos sagrados, sempre alguém representa algo, faz rir,
faz o disforme torna-se exuberante/belo, o desagradável ser benévolo/humano, as memórias
de outrora ganhar vidas novas, vidas de esperanças, reviver sonhos antigos. Assim, o
Mbaraka Ju faz uma alma que perambula pelos esconderijos da deslembrança e sofrimento,
regredir a si e se recordar que é Guarani, que mesmo a fazer uso de metáfora, ela tem a sua
dádiva. Portanto, os líderes Guarani ensinam as crianças e jovens que a vida também é
humor, é rir, afetos, compartilhar, sonhar, estar junto, ser um povo, ainda que diferente, no
entanto que conhece os caminhos da alegria, sobretudo, acreditam que os diferentes moldam
o universo. Desta maneira, entendemos que a filosofia de vida e arte Guarani é caminhar,
percorrer a estrada do destino, guiado sempre pelo Ayvú (som/falar-advinda do plano
imaterial/subjetivo) - ³QRVVRHVWLORGHYLYHUpVHUHHVWDUVHPSUHEHPGLYHUWLGRV´FRPRQRV
relatou a artesã Guarani Dona Maria Avá Guarani. Destarte, isso significa que os artefatos

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exilados não conseguem atingir e, por isso mesmo traz consequências graves para as
parentelas Guarani, dentro e fora da comunidade.

Não poderíamos deixar de mencionar que ao participamos do Jepeéhá Guarani da


parentela de Dona Tereza Guarani no inverno de 2018, onde pudemos perceber que quando
os objetos ficam aborrecidos começam a estressar-se, e posteriormente libera sua ira em
forma de magia, poder oculto na sua essência, na sua agencia e atingir em cheio o povo a
qual pertence, com isso provocando catástrofes, doenças, má colheita, desequilíbrio social,
mudanças de um lugar bom de viver para um lugar com péssimas condições ecológicas de
viver. No caso dos Guarani, seria o Teko Vay (maneira errada de viver; má conduta), é o
maior entrave para alcançar a perfeição enquanto humanos, entretanto o mal não é inerente
somente aos humanos, pode ser algo trazido por outros humanos de lugares distantes, como
se fora uma doença contagiosa, uma vez presente vai sendo transmitido a todos, podendo ir
de um Tekohá para outro Tekohá, razão da proibição de certas pessoas não terem acesso aos
locais de habitação dos Guarani, podendo ainda despertar o Jepotahá (mutação corporal
humana em animal), isso por conta da raiva expressada pelo objeto sagrado exilado.
Portanto, vemos que os objetos estás em toda parte, entendemos que é praticamente
impossível realizar uma investigação a envolver cosmologia Guarani ou qualquer outro
grupo étnico, sem levar em consideração a cultura material. Assim, defendemos que
pesquisas futuras acerca dos povos indígenas devem minimamente mencionar ou abordar a
materialidade da cultura, pois compreendemos que deixar de lado a cultura material e
também deixar de lado elementos extremamente importantes.

Na contemporaneidade, os Guarani, ou simplesmente o povo do Mbaraka Jú,


identifica que a maldade também se apresenta na forma de estar acomodado, encarcerado,
exposto, aglomerado e confinado em diminutas nas reservas indígenas, onde as cercas de
arames farpados delimitam as grandes fazendas ou latifúndios que cercam os Tekohá. No
entender de nossa interlocutora Tereza, todo esse percalço contaminam e ceifam os
caminhos- as grandes caminhadas, a circulação, a movimentação pelo território, limitando a
quase a zero que um dia foi o Tekó Guassú Guarani (grande território).

Por assim dizer, no entender de Almires Martins Machado (pesquisador Guarani), o


mal na terra exacerbou-se com o início do processo de colonização, a intensificar com força
atípica e formas invulgar, como as doenças (gripe, peste bubônica, varíola, papeira, febre
amarela, tosse convulsa entre outros), a escravidão, o cativeiro e as perseguições pelas

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florestas densas, no qual o Xirú em formato de cruz chamou muito atenção dos europeus,
muito chegando a entender que os Guarani eram católicos, mas cabe destacar que esse objeto
não tem absolutamente nada a ver com o crucifixo, enfatiza.

Fica bastante tangível que a história colonial significou/significa para os Guarani,


uma cadeia de infortúnios, com atmosferas de infinitude e atrocidade sem precedente, mas
por conseguinte, o mal acentuado a potência máxima é rejeitar a terra ao Guarani. Desta
maneira, o 0ED¶H0HJXi (os males), oculta tudo, orienta tudo, alastrou-se pelo Tekohá. Dito
isso, todo esse processo é constatado em decorrência de o Guarani jamais antes encontra-se
numa situação de (des)terrado, tornar-se estrangeiro em seu próprio Tekohá, o maior temor
é que viva e presencie o dia em que só haverá o mal e o mesmo um sem-terra, nada poderá
fazer. Portanto, os Ñemboé (os rituais), os Jeroky (as danças), os Purahéy (os cânticos), o
Vyá (a felicidade), o Aykohára (a esperança) findará, haverá somente o silencio do fim, isso
porque já não existirá mais o Ñeë (palavra), a fala da alma desvaneceu-se, retirou-se a sua
origem, assim como no espaço aprisionado da exposição dos objetos.

Percebemos em nossa pesquisa que uma aflição sempre presente flutua sobre e/na
prescrição de limites territoriais com a demarcação de território para o Guarani e a posteriori
acompanhada de marcos limítrofes, da intimidação constantes. Não obstante, a sua lógica
está ancorada na concepção de liberdade e o território, sem limites que impossibilitam o
Oguatá (caminhada para o futuro). Sem embargo, aparente uma antítese, as fronteiras e as
cercas não são parâmetro de/para a configuração de um Ñandé Aikóhara (onde Guarani
vivem), se as mesmas são necessárias, não impedem a caminhada, apenas dificultam, sendo
ignoradas e transpostas o tempo inteiro, pois o que determina o limite do Tekohá são as
relações de afinidade ou inimizade, dado que as linhas étnicas são fluidas.

Retornando a organização social, a integração, o equilíbrio, a relação com a natureza,


o universo terreno e o mundo de divindades Guarani- fica evidente que os rituais são os elos
mais importantes nesses processos históricos. Desta forma, manter-se estável, onde os
mundos é viver de acordo com o Ñandereko (forma de ser), entendido como os pressupostos
éticos e morais do Teko Porã (conduta boa), que permite a consolidação de um Teko
Marangatu (forma sagrada de viver), expressa através das ações e modo de proceder para
evitar que a terra sofra males que, em última instância, poderiam antecipar o cataclisma que
destruirá o mundo.

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Por assim dizer, as metáforas usadas para assinalar as características da mãe terra,
são geralmente ligadas ao Reté (corpo Guarani), relacionadas as funções primárias de
alimentação, descanso e trabalho diário. Assim, os rituais ligados aos Ñemongarai (batismo)
e os Jeroky (danças) têm por função mantê-la com a saúde equilibrada, livre de doenças ou
qualquer outro mal, razão das longas ÑHPER¶H (orações) e os Purahei/Mboraei (cânticos de
invocação), que atravessam a noite, onde os objetos sagrados como Xirú, Mbaraká e Mymby
são extremamente fundamentais. Fica evidente que o Xirú é o objeto mais sagrado dos
Guarani, porém não podemos dizer que ele é o mais importante, pois todos os objetos
possuem suas importâncias- como se fosse um elo conectados, dotadas de essências,
fragrâncias.

Portanto, o principal propósito a envolver os objetos sagrados e ritualísticos é manter


a proporcionalidade cósmica, embora a proeminência da catástrofe norteie os discursos com
ares de advertência moral, a rememorar que há uma ética no Ñanderekohára (modo de ser
Guarani)- que deve ser estritamente observada ou se terá não só a terra adoecida,
enfraquecida, corroída de dores, como também os seus habitantes Guarani. Mediante isso, o
Mbaraka Ju necessita do ritual, pois é parte do mesmo, ele é o guia que leva os Ñanderú e
Ñandesy até a primeira terra por caminhos determinados e seguros, defensor e guardião de
muitos segredos de sortilégios (magias), por isso sente falta dos Jeroky, no qual ele é o guia-
mestre. Recapitulando, no exílio os objetos Guarani vivem a condenação da solitude,
insulação e (in)comunicação (solidão) e quer ao menos mais uma vez compartilhar a
solidariedade, reciprocidade, convívio social, no cotidiano da terra de onde foi sequestrado.
Destarte, caso o Guarani e o Mbaraka Ju pararem de cantar, dançar, a terra poderá parar a
sua caminhada celeste e o sol poderá se escurecer, estabelecendo o princípio do fim de todas
as coisas, um verdadeiro cataclisma ou apocalipse.

3.. O ritual Guarani: relações com os objetos sagrados

A compreensão de um universo de relações sociais indígenas por meio da análise da


pratica de rituais religiosos, nos remete a pensar não apenas em uma direção e sim em uma
pluralidade de sentidos, signos, símbolos e conceitos que estão em constante suspensão e
que referem a própria experiência vivida e representada em sua execução- sistemas são
construídos e junções entre saberes são necessárias para perpetuação de tradições e
conhecimentos, e neste universo de construções e dinamicidades onde vários atores
participam no sentido de conectar sentidos, experiências, praticas, que se constituirão em

ɿɹ

modelos a serem seguidos pelas futuras gerações, a educação se faz presente como uma
necessidade de se fazer sentir e se fazer ser social e pertencer a coletividade e para esta
contribuir para sua existência.

Partindo desta acepção, conseguimos perceber o ritual como uma espécie de


linguagem coletiva, um símbolo representativo de algumas verdades transcendentais, que
incorporam uma pratica dinamizada que permeia por uma rede complexa de ações
significativas capazes de unir um grupo e convencê-lo por meio de sua eficácia (MAUSS,
 0DLVGRTXHXPPRYLPHQWRFRVPROyJLFRGHRUGHPUHIOH[LYDHRXFRQWHPSODWLYD³RV
rituais de uma sociedade ampliam, focalizam, põem em relevo e justificam o que já é usual
QHOD´ 3(,5$12p. 8).

Dessa forma, começamos a discussão trazendo à tona as palavras de nossa guia


espiritual Dona Tereza Guarani. Dissemos para ela, a senhora poderia nos contar um pouco
sobre o Jeroky (a dança ritual). Ela nos disse, claro que posso, mas cuidado é longo (risos).
É dissemos será um prazer- acima de tudo uma honra- o trecho a seguir é uma adaptação do
que a Nhandesy nos relatou em sua residência. O Sol vai se pondo no Tekohá, membros de
várias parentelas vão chegando com seus apetrechos (Xirú, Mbaraká, Mymby e Takuapú)
para passar a noite a dançar no ritmo do Jeroky Pukú (canto-longo), acompanhados de seus
filhos vão acomodando-se pela Ñanderogaii (residência Guarani), a gritaria/tumulto é total,
com as crianças a correr, a rir, outras a chorar; os Jaguá (cachorro) se encontram e se
estranham, a provocar em seus donos gritaria para que cada animal retorna a casa. Enquanto
não chega a hora, os homens preparam a roda de Teréréiii (bebida típica do Mato Grosso do
Sul-similar ao mate gaúcho, mas com adaptação Guarani) e as mulheres se juntam aos
mesmos ou formam outra roda de .Di¶\ (chimarrão ou mate, mais utilizadas pelas mulheres
Guarani).

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Figura VII: Fotografia histórica de Guarani portando os objetos sagrados, tais como: Mbaraká, Xirú,
Takuapú/Taquarapukuera, onde percebe-se que um Mitã (menino) carrega um Mbaraká. É importante destacar
que o Xirú em formato de crucifixo não é uma influência do Catolicismo, o Xirú muito antes das chegadas dos
colonizadores já era utilizado pelos Tupi-Guarani. Fonte: Egon Shaden, 1949.

Os Guarani intitulam a categoria aldeia de Tekohá (também denominados pelos


Kaiowá e Pay Tavyterã de Mato Grosso do Sul e Paraguai; Mbyá do Pará, Paraná e São
Paulo e o Chiriguano da Bolívia), que é assim que os denominamos, significando lugar para
se viver conforme a percepção de Guarani, embora seja do livre arbítrio de cada um viver
ou não, conforme tais preceitos; o modo correto de viver conforme ensinado e aprendido nas
caminhadas educativas, assim como nas noites de Jeroky (dançar). É o lugar da vida; é a
interação do espaço físico com o social, resultando em vida de forma o mais próximo
possível ao Raeháxa WUDGLFLRQDO HQmRLPSRUWDRQGHVHHVWHMDVHQDWHUUD³WUDGLFLRQDO´RX
não, onde se estiver, aí poderá sê-lo; é ali que sua vida literalmente caiu, então deve ser
exercitado o ser, para isso não é preciso de um lugar especifico, basta evidenciar o ser, se
vai exercitar o Teko Vay (vida má, proceder ruim) ou se o Teko Porã (vida boa, conduta
condizente com o modo religioso), isso é com cada um, a vida lhe pertence, cabendo somente
a ele ou ela conduzir o seu ser, como pude percebe em diversos diálogos.

Mas voltando a Ñanderoga ou Oga Guassu, se lá já houver <Y\UDt¶Mi(portador do


bastão ritual), este já se adianta ao Ñanderú e vai verificando as condições dos instrumentos
rituais, se a casa já foi toda varrida, verificado se o pote com casca de cedro vermelho, está
cheio de água. Em dado momento o Ñanderú e Ñandesy se levantam, pegam o seu Mbaraká,
pigarreia, olha para todos e começa o Jerovassá (abençoar, limpar o corpo), para dar início

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a dança ritual. Quase sempre acontece de exercitar o seu Mbaraká por um certo tempo diante
do Yvyra Marangatu (altar) e o ÑHPER¶H (oração, encantamento) pode ser ou não audível a
todos. Portanto, caminha-se pelo terreiro da casa, em círculo, terminando na frente do altar,
fechando o formalismo inicial do ritual.

Durante a nossa participação do Jeroky Pukú da parentela de Dona Tereza Guarani,


que foi realizada em outubro de 2018, observamos que os cantos e as danças executados no
ritual Guarani, abrem os caminhos através dos quais os mesmos viajam por e para outras
dimensões onde se encontram as aldeias celestes, lá conversam com os ancestrais, com
Ñanderú Vussú (nosso Pai/Deus maior), e todos os seres que porventura possam encontrar
no caminho dos espíritos, o visível e o invisível se visitam, iniciando o estabelecimento de
um futuro parentesco, uma rede social espiritual é formatada.

Almires corrobora que é justamente por meio do poder/conhecimento armazenado


no Mbaraká ancestral (como um pendrive), é que o dançarino mestre é guiado por caminhos
antes não trilhados ou já conhecidos, dependendo da finalidade da dança ritual, os caminhos
pelos quais passará permitem o aperfeiçoamento espiritual. Se for ritual de cura ou ainda
para desmanchar feitiços, o proceder ritualístico toma rumos diferentes, conforme o Ñemboe
(fala/encantamento/oração) exigido. Empunhado pelo mestre da cerimônia o Mbaraká se
transforma em cetro do poder e o Ñanderú o saber/fazer/caminhar, exercita-o, fundem-se em
um só corpo espiritual, é a agencia que o transporta ao universo não-humano.

Ao participamos de vários Ñemboé (rezas), diálogos com as lideranças Guarani,


pescas no verão, percebemos que o canto e a dança são as linguagens determinadas pelo
ritmo dos Mbaraká, que estabelecem o elo espiritual com os lugares celestes, morada de
Ñanderu Vussu. As danças seguem marcações rítmicas do maestro Mbaraka Jú aos seus
dançarinos, acompanhados pela batida dos Takuapú (bastão rítmico feito de Takuara-
bambu) utilizadas exclusivamente pelas mulheres Guarani. São basicamente dois ritmos na
melodia dos Ñanderú/Ñandesy e dos Yvyraija, a primeira acelerada e com forte marcação
rítmica, marcações para simulações de lutas corporais (como se fora artes marciais); a dança
exprime o fervor e fortalecimento religioso; ficar leve facilita a caminhada ao mundo da
imaterialidade, é denominada de Jeroky Hatã (dança com marcação acelerada); a segunda é
mais lenta, límpida, formal, solene, é denominada de Ñeëngaraí ou Jeroky Mbegue, tem a
premissa de encantamento, invocação, reverencia, respeito, lamento. No caso das mulheres
a movimento do corpo é comumente denominado de Syryry (deslizar) ou Kunã Jeroky (dança

ɿɼ

feminina); o movimento corporal dos homens produz uma performance pelo terreiro do
Ogapysy, é chamado em duas das suas etapas mais usuais de ÑHPRQJX¶r (movimentar-se),
e a outra Ñemomisy (agachar-se).

Ao longo de nossa jornada juntamente com os Guarani da RID (Reserva Indígena de


Dourados), compreendemos que se o objetivo é alcançar o Aguyje (perfeição, plenitude), o
Kandiré (imortalidade/iluminação), o modo de proceder aqui na terra deve ser irrepreensível,
com dedicação ao Purahei (cântico) constante e ao Jeroky; se alcança o Yvã (céu, cosmos),
que é em última instancia a morada desejada na eternidade. O grande cuidado é para não
errar o caminho que leva ao destino desejado durante o ritual ou a subida, pode ser sem volta;
as palavras denotam o seu poder de agir, fazer, transformar, trocar de estado da matéria para
o do espírito. Enquanto o Ñanderú (rezador) ou Ñandesy (rezadora) vai seguindo a sua
viagem, orientado pelo Mbaraká, ele vai fazendo as suas orações e encantamentos, abrindo
as passagens e caminhos, considerando que muitas são as Tava (aldeia de pedra) na terra que
não se morre mais, sempre haverá a possibilidade de estar indo a um novo Tekohá. Por vezes
o cântico/encantamento é audível a todos os presentes no ritual, significando que o caminho
é fácil, conhecido, já trilhado, em outros momentos é apenas grunhidos, em razão de estarem
sendo usados os encantamentos mais secretos recebidos de Ñanderu Vussú, pois há perigo
constante a vista, espíritos malignos à espreita.

Na caminhada em direção a <Y\PDUDQH¶\ pode ter agregado a si outros Guarani, que


por ali estejam caminhando rumo a determinado Tekoha- assim como na caminhada terrena
no Oguatá (caminhada com intencionalidade), grupos vão sendo constituídos e desfeitos até
o ponto de chegada. O mesmo ocorre na viagem espiritual, pode ser que seja acompanhado
de outros Ñanderu ou de espíritos amigos. Este caminhar define todo um modo de vida e
comportamento, dedicação e esforço em estar leve para chegar rápido à rota que conduz ao
local almejado. Esta mobilidade tem implicações religiosas, sociológicas e jurídicas,
enfatizando a horizontalidade e a verticalidade desses movimentos, considerando a vida
terrena e a espiritual.

A Kunã Karai Tereza Guarani, relatou-nos que o Guarani precisa cuidar da alma e
do corpo, ambas se alimentam e precisam de cuidados, considerando a crença que se possui
duas almas: a humana e a animal, deve-se estar sempre atento ao equilíbrio das mesmas, a
primeira é lugar da esperança, bondade, realizações profícuas, a segunda é o lugar do mal,
do receio, do medo, do desequilíbrio. Assim, na primeira repousa a divindade, razão do

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esforço para que a mesma tenha garantido o seu lugar na terra, onde não se morre mais,
alcançado pelo estado de alma chamado de Aguyjê; na segunda reside maldade, perigo, o
risco de ser condenado a ser um espectro que vaga na noite em forma de Anguere ou ser
transformado em Jepota- que na atualidade as crianças e os jovens Guarani intitulam de
espiritus kué.

O Mbaraká precisa ser exercitado nos locais de origem, os cânticos necessitam alçar
os caminhos do céu, a alma precisa ficar leve- afim de flutuar no espaço e a posteriori
deslocar-se para o local de destino. Se antes acreditava-se que poderia alcançá-la pela via
terrestre, rumando-se a leste ou oeste e atravessando o mar, hoje já se partilha o pensamento
que o caminho é o espiritual, para tanto é primordial que tudo volte ao seu lugar de princípio,
o território tradicional, juntamente com todos os seus objetos sagrados, de perto e os de
longe. Os que tem poder associado ao Mbaraká, os homens-deuses que percorrem
constantemente os caminhos do que é designado como Yvã Rapê Jara (caminho do céu), dia
após dia persistem no Jeroky, com Takuá e MbarakaY, nesse caminho onde humanos e
divindades repousam sob o mesmo teto no Ambá (aldeia celeste), onde exercitam o Ayvu
ÑH¶s (fala da alma), considerando os caminhos do céu é possível ver os seus rastos, do leste
(Ñandehovái) ao oeste (Ñandekupê).

Partindo desta premissa- o grande risco ou ameaça para os iniciantes/iniciados na


caminhada espiritual é se desumanizar, nos confrontos que podem ocorrer nesse meio tempo,
em que estão na terra e a caminho do céu. Esses caminhos não são trilhados por qualquer
pessoa, é preciso estar de acordo com o Ñandeteko (modo de vida Guarani), nesse caso
esclareço que o nosso modo de ser é distinto dos demais, abarcando uma ampla gama de
elementos constitutivos de vida individual e coletiva, sendo que nessa perspectiva do mundo
real, terreno, é manifestamente uma dimensão do que se pode ver, apalpar, medir, sopesar,
atitudes, comportamentos coletivos ou não, incluindo regimes alimentares, a esteticidade,
redundando na maneira de ver e pensar o mundo e as coisas que nele há. Por essa razão o
Guarani considera que seu modo de vida é o correto, porque frequentemente se empodera
do modo de ser e viver dos divinos, nas moradas celestes estando em pé e de frente aos
mesmos.

Interpretamos que proceder expressa-se em ser comedido, calmo, tranquilo,


ponderado, solidarizando-se com seu próximo, sempre exercitando a reciprocidade, a
temperança, com isso aperfeiçoam os sentidos do corpo como o ouvir, falar, sentir e ver, no

ɿɾ

entanto o que os diferencia dos demais, é a capacidade de percepção em como proceder para
estar cada vez mais próximo de alcançar a perfeição, o Tekó Aguyjê. O cuidado que os
Yvyraijá tem durante o Jeroky, se explica porque assim como essências aromáticas se
fundem a pele, a essência ruim dos invisíveis que estão no caminho espiritual, podem ojá
(grudar) na pele do Ñanderú e com ele se fazer presente no Tekohá, a causar males súbitos,
doenças, desgraças, a razão de estar alerta e saber o momento certo de passar do Jeroky Hatã,
para o Jeroky Mbegüe.

Desviar-se dos caminhos ensinados por este segundo o ensinamento Guarani,


manifesta-se em condutas como adquirir os modos dos animais em ser feroz, briguento,
avarento, raivoso. Os homens apresentam condutas dos animais, que por sua vez o espírito
animal toma a forma de homens. Nesta situação a alma animal sobrepuja a humana.
Aprendendo o bem viver e exercitando-o, agrada os que moram no Ambá (Xirú em tamanho
maior)- assim, com as constantes visitações a suas moradas, logo reconhece o Guarani como
seu parente e com este estabelece a solidariedade e reciprocidade, indo e vindo descendo e
subindo ao Ambá. O visitante então é revestido do Arandu Porã (bom entendimento),
essencial para um dia ir de vez para a terra sem mal, sem que para isso passe pela experiência
da morte física.

Vejamos que nesta terra- o exercício é o de viver o mais correto possível, para não
se deixar levar pela animalidade da alma, em contraste o que vale é o exercício da
humanidade, que aproxima do modo de vida dos que estão na terra onde não se morre.
Lembrando que esse modo de ser não é exercitado por todos, com dito acima, faz parte do
livre arbítrio. A viagem em que o Mbaraka é o guia ou o marcador da condição da alma no
caminho trilhado, une o humano e o divino, nessa superação que é possível somente como a
boa conduta, o bom viver, ter boas maneiras de conduzir o ser, implica em ter acesso na
presença do divino. É a superação de limites de mundos que um dia não terão mais
separações- estará imbricado no outro.

Torna-se evidente que todo o esforço físico desprendido no Jeroky, resultam nos
sonhos que Ñanderu Vussu (Deus criador) envia ao Guarani, para que o mesmo saiba, como
proceder no dia de amanhã- mostrando as coisas que irão acontecer, é o futuro sendo
revelado por meio dos sonhos. Assim, uma caminhada ou visita a uma parentela distante
pode e quase sempre se inicia com um sonho. Nas caminhadas exercita-se um saber fazer,
um conhecer, um aprendizado, pois como dito no início, o Mbaraká é guardião de

ɿɿ

conhecimentos, a agencia orientadora por onde seguir nos caminhos espirituais. Desta
maneira, caminha-se por diferentes lugares, adentram-se segredos da botânica, fauna e flora
são esquadrinhados, no caso de danças para cura, diferentes essências assomam-se para
compor o conjunto de um conhecer para saber fazer.

De acordo com Karai Renato Guarani- com os primeiros sinais da alvorada


impulsionada pelo Mbaraká Jú termina o Purahei Pukú (cântico-longo), o corpo extenuado,
suado, pela longa caminhada de ida e volta aos Tekohá celestes, o/a Ñanderú/Ñandesy e
todos os que participaram do ritual se sentam para saudar o Kuarahí (Sol), não que ele seja
mais divino que qualquer um dos que ali estão sentados, mas porque ele é o irmão gêmeo de
Jacy (Lua), o parente que está no céu- marcando uma trajetória que pode ser seguida por
qualquer um de seus irmãos terrenos e por ser segundo as histórias que são contadas, ele é
que trouxe ao mundo a harmonia e a paz. Portanto, é justamente desse ambiente que o objeto
sagrado que está no exílio, sente saudades, da sua vida social, o exercitar a reciprocidade,
fraternidade, reverencia e respeito tanto a humanos e não-humanos. É preciso liberta-se da
prisão de vidro e unir-se aos seus, ainda que isso requer uma delonga maior.

Desta forma, nos rituais religiosos e festivos, como em outros eventos sociais onde
se reúnem grandes coletivos, existem conexões e transformações múltiplas e estas estão
vinculadas as variadas formas de se pensar a cultura como um sistema de significados que é
transmitido e se comunicam historicamente, incorporado por meio de símbolos- sagrados ou
não- em um sistema de concepções herdadas e expressas em formas simbólicas por meio das
quais os homens desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida e a sua
práxis. Pensando um viés social de magnitude extensiva Guarani, para além de sua simples
forma de viver em grupo e se comunicar, esses sujeitos se constituem em atores capazes de
dinamizar sua vida individual e coletiva, porém, sempre necessitando de elementos capazes
de entrelaçar seu sentimento aos do grupo social do qual está imerso.

Por conseguinte, pensar em compreender conexões e comunicações em uma


dimensão dual que externa a experiência de coabitar em mundos e lógicas totalmente
diferentes e refletir como essas relações transcorrem distintamente e simultaneamente em
nossa vida social, problematizando imaginários cosmológicos dos Guarani, na análise ritual
a envolver os objetos sagrados, e interligando-os a vivência cotidiana do seu povo, nos
remete a pensar em um cenário educacional onde atores importantes realizam suas atividades
por meio de suas práticas e ensinamentos em um conjunto em que está alicerçada a educação:

ɷɶɶ

seja ela no seio da família, na comunidade ou na escola- neste sentido podemos evidenciar
a abordagem apresentada por Baniwa (2006) em que conecta educação à socialização de
indivíduos e suas práticas coletivas.

Perante a problemática que envolve o processo de interpretação cultural da nação


Guarani, mais especificamente, a nação dos Apapokuva, entendendo que as práticas rituais
se configuram em uma das principais manifestações de um povo- de uma cultura- ou ainda
uma civilização, e que a partir destas, podem caminhar para uma possível construção de uma
reflexão sobre o universo das relações sociais formalizadas entre os membros deste grupo-
e até mesmo com outros grupos- espaços e posições sociais, pretendemos com a realização
desta investigação, apresentar apontamento fundamental no tocante aos conhecimentos
tradicionais, cosmologia e discutir os objetos sagrados em diversos contextos- acerca desse
povo milenar que mantém sua cultura viva ao longo dessa trágica história de violação,
extermínio e etnocídio.

Corroboramos ainda que povo Guarani possui muitos saberes míticos que orientam
sua organização social, dos quais são transmitidos há outras gerações por meio das histórias
contadas e cantadas- por assim dizer, o canto exerce importância primaz para sua existência
e para a perpetuação de suas tradições, além de garantir a reprodução cultural de sua
sociedade ou cultura. Este é ensinado desde a maturidade e realizado para que seja propagado
e não haja o fim terreno do povo. Outro elemento importante para entender a organização
social propriamente Guarani é conectar ao processo educacional familiar- que são os
princípios cosmológicos, pois estes se constituem como fator essencial para se entender a
origem e a própria concepção de existência do povo Guarani, que mantém relações múltiplas
e intrínsecas com os objetos sagrados-ritualísticos.

ɷɶɷ

Figura VIII. Rezadores Guarani em Brasília- portanto objetos sagrados (Xirú, Mbaraká e Takuapú). Fonte:
CIMI, 2019.

Digamos ainda que em atenção ao que preconiza Baniwa (2006), percebemos que
esse processo educacional desenvolvido nas práticas rituais e ampliado pelos mitos e nas
tradições orais passadas pelas gerações anteriores é fundamental para a transmissão e
produção dos conhecimentos tradicionais indígenas, além de se constituir em um importante
instrumento de fortalecimento de culturas e das identidades individuais e coletivas. Neste
sentido- cabe falar dos Ivyrá Ijá Kuera (xamã em processo de iniciação, ajudante de Ñanderú
e Ñandesy nos rituais). Sendo também um forte elemento constituinte para o estabelecimento
de direitos e busca por outros não conquistados ainda ou violados por não-indígenas ao longo
da história. É ao falar de arte, artefato, objeto, agência, eficácia Guarani é trazer à tona as
memórias que ainda estão vivas através do simbolismo, mas também presente na
materialidade. No limiar, gostaríamos de mencionar- por qual motivo utilizamos a
terminologia ou categoria ontografia Guarani- principalmente, pelos fatos de objetos
sagrados fazer parte intimamente da vida em comunidade, assim embasa-se na experiencia
através das diversas representações que eles são capazes de proporcionar aos grupos ou ainda
há uma parentela. Evidentemente que nosso objetivo não é fazer uma investigação filosófica-
talvez, no máximo uma etnografia ontológica ameríndia da arte.

ɷɶɸ

Portanto, para finalizar este artigo falaremos da relação que há entre cosmologia e
³REMHWRV´ VDJUDGRV *XDUDQL 'HVVD IRUPD WUDWDQGR-se de processos específicos e
particulares, os artefatos sagrados Guarani são usadas, sobretudo nos seguintes processos
ritualísticos: Jerosy Puku (canto-dança longo), Jerosy Mbyky (canto curto), fHPER¶H
.XQXPL 0ERUR¶\KD (ritual de perfuração de meninos afim de acalmar), Ñevanga (ritual
doméstico- um dos mais antigo que ainda se praticam entre os Guarani), 3RURPRWƭKD (fazer
retroceder algo ou alguém- afim de resolver conflitos internos nas comunidades ou
parentelas), Poromondoha (conduzir o/a Ñanderú e Ñandesy para o plano ou terreno
espiritual), Ñemoeondeha (palavra bem sucedida- encontrar algo buscado como animais,
caça e pesca), fHPER¶H fHKRYDLWƭ (ritual de enfretamento- principalmente afim de evitar o
suicídio na comunidade), fH¶×HQJDUDL (palavra má ou maldição- ritual de conhecer os
espíritos malignos para posterior evitar)- sempre guiado por um ou uma líder espiritual
diferentemente dos Kaiowá e Mbyá.

Para concluir- gostaríamos de enfatizar que Umberto Eco (1988) e Charles Sanders
Peirce (1983) foram fundamentais para a finalização desta investigação, sobretudo ao
corroborar que os artefatos sagrados Guarani podem ser interpretados como mantenedores
de ordem dentro da comunidade (Tekohá  'HVVD IRUPD RV ³REMHWRV´ *XDUDQL GHQWUR GD
comunidade pode indicar designação, semelhança, analogia, alegoria, metonímia, metáfora,
simbolismo, significação e principalmente comunicação- indo muito além da linguagem,
onde signos se entrelaçam nessa complexidade. Peirce (1983), embasado em sua obra
intitulado Estudos coligidos fala da concepção tríade do homem- isso também transcorrem
entre as artes Guarani que passam pela primeiridade, secundidade e terceiridade. Na
primeira está a mentalidade do seu produtor/artesão, na segunda está a representatividade e
pertencimento e no terceiro está o significado real afim de representar efetivamente o Tekohá
Guarani. Dito isso- os artefatos ganham vidas e biografias nos ícones (proximidade sensorial
e emotiva), índices (representação subjetivo e intersubjetivo) e símbolo (ideias- uma
verdadeira lei para a etnia).

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352'8d­2'($57(6*8$5$1,



Resumo: O presente artigo traz informações sobre a Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó-
localizada no município de Dourados, Estado de Mato Grosso do Sul (Centro-Oeste do
Brasil). A investigação foi desenvolvida no Mestrado em Antropologia da Universidade
Federal da Grande Dourados entre os anos de 2017, 2018 e 2019. Dessa forma, perpassamos
por questões que envolvem história, organização social, política, econômica até adentrar nas
produções de artes, artefatos e objetos sagrados e ritualísticos Guarani. Portanto, o nosso
objetivo é realizar uma análise, descrição e posterior interpretação das múltiplas nuances,
conceitos ou categorias que envolvem esse coletivo, que na atualidade contemporânea
encontram-se numa situação extremamente emblemática, sobretudo a envolver o Yvy (terra).

Palavras-chave: História, Etnografia, Cosmologia, Cultura material, Guarani.

1. A Reserva Indígena de Dourados (RID): um século de histórias e memórias.

Instituída no ano de 1917, pelo Decreto 401 do Presidente do então Estado do Mato
Grosso, obtendo o título definitivo em 1965. Mas a concessão foi feita pelo governo federal
junto a Companhia Matte Laranjeira, já no ano de 1883. Sobre esse evento histórico,
Monteiro postulam os seguintes itens:

As terras compreendem 3.539 ha e estão tituladas de acordo com o Decreto


nº 404 de 03/09/1917 e registradas às folhas 82, do livro nº 23, em-89-
14/02/1965, no Cartório de Registro de Imóveis; na Delegacia Especial de
Terras e Colonização de Campo Grande em 26/11/1965, conforme
despacho do Secretário de Agricultura do Estado de Mato Grosso de
23/11/1965 (MONTEIRO, 2003, p. 39).
No entender do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1976), um dos pioneiros
a investigar os povos indígenas em Mato Grosso do Sul- na década de 1950, havia na RID
quatro comunidades, uma terena e outras três Kaiowá, cada grupo vivendo autonomamente,
sendo a família extensa de mais prestígio a Fernandes, seguida pela dos Snards, ambas da
etnia Guarani e Kaiowá. Com a chegada de inúmeras outras famílias Kaiowá, Guarani e
Terena na década de 1960 e 1970, deu ensejo a um acirrado dissenso, entre os que habitavam
a RID e os recém-chegados. Formataram-se novas alianças e oposições, considerando que
muitas dessas novas famílias eram inimigas entre si, o que Thomaz Almeida (2001) cunhou
de faccionalismo; na RID, denominado de cacicada. Muito embora fossem parentes

ɷɶɼ

consanguíneos, não levaram em consideração quem os ofereceu hospitalidade, não
respeitando quem tinha o poder de decisão, no local onde estavam sendo aceitos ainda que
temporariamente.

Nesse sentido toma vulto acusações de feitiçaria, insultos, ameaças, tudo em razão
de controlar o poder político, muito embora as interferências externas potencializassem o
fato e pessoas (mediadores) de uma representatividade que não possuem, carecendo de
legitimidade, pois quem conhece a aldeia e seus bastidores são os que nela vivem e exploram
possibilidades práticas de mediação e as relações de poder, que envolve o econômico, o
político, o prestígio, idoneidade, dependência ou subordinação, dilemas não resolvidos nessa
teia de significações.

Todas essas acusações e sobreposição de famílias extensas numa mesma área,


criando os campos de concentração, amontoados de indígenas, como na RID, deram origem
ao grande conflito interno ocorrido em meados de 1984. De um lado estavam Terena,
Kaiowá e Guarani e do outro lado, Terena, Kaiowá e Guarani, em ambas aldeias, parentes
consanguíneos em posições opostas, cada qual com seus Nhanderu ou feiticeiros. No
confronto muitos morreram, e no ápice do conflito, muitas famílias foram expulsas da
convivência na aldeia, outras retornaram para seus locais de origem, outras foram para as
margens de rodovias, outras para o espaço urbano e outras ficaram, com a promessa de não
se interpor nas questões internas. O dissenso se arrefeceu, não foram resolvidas todas as
questões, mas houve uma relativa paz por 14 anos.

Sobre a RID em sua tese de doutoramento defendido na UFPA (2015), Almires


Martins Machado corrobora:

A RID possui duas aldeias hoje nominadas de: Bororó e Jaguapiru. A


segunda passou a ser chamada assim, em decorrência do conflito armado
que lá ocorreu pela posse da terra na década de 20 do século passado. Foi
ai que aconteceu o confronto com os fazendeiros e a polícia chamada de
captura na época, contra os Guatekas (Guarani, Terena e Kaiowá),
habitantes da RID. Quando houve o confronto, a estratégia adotada foi de
um primeiro grupo dar combate ao invasor branco na parte oeste do tekoha
e depois fingir debandada e levar o invasor para uma armadilha, onde
estava a outra metade da força de resistência. No entanto, quando os
LQGuJHQDV TXH ³EDWLDP HP UHWLUDGD´ FKHJDUDP DR ORFDO FRPELQDGR QmR
encontraram ninguém, os aliados haviam fugido. Enfrentaram, resistiram
e venceram a batalha, expulsando os fazendeiros. O capitão (meu bisavo)
que liderava a força de resistência ordenou a um dos seus verificar o que
houve com os aliados que deveriam estar ali; este retornando disse:
³QGDLSRUH PDெDYH DKRSDPD 2S\WDQWH SHWHtQ MDJXiSLUXெu RMHOLDYD
KRUFRQெSH´ QmRKiPDLVQLQJXpPIRUDPWRGRVHPERUD)LFRXVomente

ɷɶɽ

um cachorrinho magro amarrado no esteio do acampamento), a partir de
então recebeu o nome de Jaguapirú. Esse relato sempre ouvia de meu avô
paterno. 3 Quando ainda pequeno, uns três anos de idade, passei muito mal,
os médicos da missão caiuás, não sabiam o que eu tinha, de certeza era que
estava morrendo, com doença de índio como diziam. Meus pais, segundo
FRQWDPLQKDPmHMiVH³GHVSHGLDP´GHPLPHVSHUDQGRVRPHQWHRFRUSR
esfriar. Então, a xe jary (avó) chega da changa (trabalho temporario em
fazendas). Ela foi avisada em sonhos que eu estava muito mal, saiu a pé da
ID]HQGDRQGHHVWDYDHODH[HUDP}L DY{ FKHJDUDPHQWRDQGRDQKHPERெH
QKHெHQJDUDu VXSOLFDV FDQWDGDV HP ULWPR OHQWR RX ODPHQWR  HQTXDQWR
cantava e dançava, ordenou que xe ramõi (avô), fosse colher ervas com as
quais me banharam e me deram de beber. Curado completamente, fui
batizado, recebi o meu ayvu rera (nome alma), mas é o nome que não se
pronuncia e no outro dia já brincava no oká (terreiro). Talvez em razão
GLVVRSDVVHLDVHUR³SUHIHULGR´GD[HMDU\ DYyPDWHUQD 2EVHUYRTXHDR
referir uma expressão em guarani, farei entre parênteses a possivel
tradução. Considerando a impossibilidade de traduzi-la faço anotação de
rodapé, dada as muitas possibilidades de tradução e/ou compreensão. Não
grafo as expressões Guarani em itálico, por ser falante da linguagem.
(MACHADO, 2015, p. 16).
Com o surgimento de 22 caciques no âmbito da RID, reclamando influência e poder
político, em contraponto aos capitães, novamente o conflito emerge em 1998, nas mesmas
proporções. Felizmente ninguém morreu dessa feita, mas muitas famílias foram expulsas da
convivência na aldeia, outras ficaram por jurarem não fazer política na comunidade.
Novamente as divergências não foram totalmente resolvidas, os dissensos persistem, a
aparente paz subjaz, o conflito se avizinha, é um barril de pólvora com pavio curto. Até onde
se conseguirá conviver, somente o tempo dirá.

2. As inúmeras angustias em campo

Chegar em campo literalmente é um grande desafio, antes de dialogar


antecipadamente com alguns conhecidos que residem no território, onde serão realizadas a
pesquisa, expectativas tomam conta da gente- sobretudo, a imaginar que apesar de não haver
uma receita como nos ajuda a pensar Mariza Peirano (2014), tudo irá ocorrer bem.

Fui conhecer a RID pela primeira vez no ano de 2016 na companhia do experiente
professor Levi Marques Pereira, através da disciplina ministrada pelo meu atual orientador
SURIHVVRU5RGULJR/XL]6LPDVGH$JXLDUFRPEDVHQDGLVFLSOLQDLQWLWXODGD³DUWHFXOWXUD
PDWHULDO H DJHQFLD´ TXH QD RFDVLmR HUD PLQLVWUDGD SHOR professor Rodrigo, no curso de
graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal da Grande Dourados. Confesso que
até então meu interesse era seguir para Ciência Política, mas ao adentrar na Aldeia Jaguapirú
na presença de meus colegas e professor Levi, onde o mesmo nos levou para conhecer a casa

ɷɶɾ

de reza do Senhor Getúlio Guarani Kaiowá- que a época nos recebeu com boas vindas,
sorridente e feliz a nos receber juntamente com sua família.

A partir disso, um episódio marcou a minha vida para sempre, onde havia juntos com
DJHQWHXPDFROHJDHYDQJpOLFD³UDGLFDO´TXHGHVGHGRLQtFLRQmRTXHULDLUQDDOGHLDDSHVDU
de residir muito próximo da comunidade, me lembro como se fosse hoje, eu insistindo para
ela a nos acompanhar, frisando será um momento único em sua vida, que provavelmente
será inesquecível, mas mesmo assim a mesma mantinha resistência, mas no fim depois de
muitas insistências acabou topando em ir com a gente e professor Levi.

(OD IRLFRPPXLWR PHGR VHPSUH PH GL]LD ³VHUi TXH HOHV YmR UH]DUHP PLP, que
poderá me fazer muito mal, meu pastor diz que se eu for lá, poderei ser condenada a ir no
inferno, me disse que eles usam artefatos diabólicos, me parece que se chama Xirú e outro
0EDUDNiVmRIHLRVHFDUUHJDGRVGHPDJLDVQHJUDV´(HXVHPSUHGL]LDD ela, acalma-se, a
gente precisa abrir a nossa mente, sobretudo, vislumbrar novos horizontes de possibilidades,
mas ela sempre com muito medo, tremia muito.

Assim, ao chegar na casa do Karai Getúlio Avá, ela foi sentar bem longe dos demais,
onde chamou atenção do experiente Nhanderú, onde parecia que o mesmo sentia que a nossa
colega o incomodava com seu olhar desesperador. Assim o Xamã começou a dizer se acalma
moça, todos nós somos filhos de Nhanderú que nada mais significa Deus. A partir daí ela
começou a perder o medo inicial, mas ainda com receio- posteriormente o experiente
Guarani Kaiowá nos convidou para entramos na casa de reza chamada de Ogapysy recheadas
de artefatos tais como: (;LU~0EDUDNi7DNXDS~9DQFR,¶*XLUiNXHUD9LFKRNXHUD.XUXV~
Ambá Kuera, Po'y, Mbo'y, Poapykwaha, Jegwaka e outros).

Dito isso, confesso que os objetos ou artefatos que se encontravam ali me chamou
muito atenção, imediatamente comecei a indagar- seu Getúlio, me diz uma coisa se for
possível fazendo favor- já teve alguém interessados em pesquisar os conjuntos de artes que
aqui se encontram, e o mesmo me disse- para te falar bem a verdade, quase ninguém, no
máximo eles querem saber do Xirú e do Mbaraká, mas bem relativo. Realmente há pouca
procura e, julgo que precisa ser mais investigado, disse-me na oportunidade. Isso me chamou
atenção de verdade, antes já havia lido várias monografias de mestrado e doutorado e alguns
artigos a envolver o universo Guarani, mas sempre os artefatos eram tratadas de formas
contextuais e, cabe destacar que não estou a reduzir a importância do imenso trabalhos que
foram elaborados ao longo da história sobre os Guarani, entendia talvez que algo precisa ser

ɷɶɿ

feito, sobretudo investigar a dinâmica que diferenciam os Guarani do Kaiowá com bases em
dados artísticos, mas no final de minha pesquisa, vejo que isso pode ser irracional, pois é
quase impossível segregar famílias, onde há pessoa que possui ascendência materna Guarani
e ascendência paterna Kaiowá- só depois de mergulhar no mundo Guarani pude perceber o
quão complexos e dilatados essas nuances de diferenciação.

3. A Organização social Guarani da Reserva Indígena de Dourados.

Em minha investigação, sobretudo com bases em diálogos com várias lideranças


como Dona Tereza Guarani, Almires Martins Machado, Dona Maria Guarani, Karai Avá
Renato Guarani, Dona Rosangela Guarani, pude confrontar as inúmeras pesquisas que já
foram realizadas acerca do povo Guarani com novos dados etnográficos. Dito isso, logo
percebi que sua organização social é similar as dos Kaiowá e Mbyá. Dessa forma, os Guarani,
ou simplesmente Apapokuva possui sua organização social, política e econômica a família
extensa- grupo macro familiar- constituída por um casal, filhos, irmãos, netos, genros no
qual a relação de sanguinidade e afinidade predominam em seu Tekohá (onde os Guarani
vivem), onde geralmente cada parentela possui uma unidade própria de consumo e produção.

Almires Martins Machado (filho de Guarani com o grupo Aruak Terena),


SURYDYHOPHQWH R LQWHOHFWXDO ³FLHQWLILFR´ PDLs importante dessa etnia na atualidade
contemporânea, com o qual em várias oportunidade dialoguei e tirei minhas dúvidas,
inquietações de dramas do campo, me relatou que os Guarani talvez seja o Guarani mais
pacífico, pois de acordo com o mesmo sempre age com inteligência, pensa muito antes de
fazer ou falar- por isso mesmo em outrora era denominado de filósofo da floresta. Almires
me disse que cada grupo ou parentela ou ainda família extensa como a academia intitula, é
representada por uma liderança geralmente homem- chamado de Tamoy (avô), mas caso seja
uma mulher recebe o nome de Jary (avó). Nesse sentido a minha principal interlocutora
Guarani dentro da aldeia Jaguapirú e Bororó é justamente uma Jary, tratando-se de Dona
Tereza Guarani- uma liderança histórica de acordo o professor e historiador Antônio Dari
Ramos. Em minha pesquisa, descobrir algo realmente incríveis e fascinante, que jamais
pensei em vivenciar em minha vida, onde apesar de possuir sangue Guarani por parte de
minha mãe Vitorina Ivarra, minha educação foi distante do Tekohá, mergulhar nesse
universo Guarani é único, um verdadeiro sonho, surreal.

Kunã Karai Guarani- como é chamada na Aldeia, Dona Tereza me ensinou muitas
coisas- uma experiencia inesquecível, que levarei para a minha vida inteira. Assim a Xamã,

ɷɷɶ

me disse em sua residência, conhecida como Ogapisy, que cabe aos pais e filhos o papel de
distribuir as famílias pela comunidade, plantar suas roças, utilizar os recursos disponíveis no
ambiente natural- esse contexto familiar é denominado por estudo de parentesco de família
nuclear. Portanto, durante a minha estadia na casa de Dona Tereza Guarani, percebi que
PXLWDVIDPtOLDVDLQGDPDQWpPYLYDVDWUDGLomR³SXUD´ Guarani de ser e viver no Tekohá,
onde geralmente em cada comunidade há uma casa de reza com um altar chamada de 0ED¶H
Marangatú, para a realização do Jeroky Pukú e Jeroky Mimky (dança ou ritual longa e curta),
de acorda com Dona Maria Guarani, outra importante liderança pode ser interpretada como
os rituais mais importantes e sagrados dos Guarani, onde os artefatos sagrados são
imprescindíveis.

Karai Renato Guarani- outra liderança política de grande relevância para os Guarani
da Reserva Indígena de Dourados (RID) me disse que antigamente os homens (Rajero)
casavam- entre 15 e 20 anos, enquanto as mulheres (Kunã) casavam-se a partir da terceira
menstruação, por volta de 13 e 15 anos- mas o mesmo me relatou também que esse processo
sofreu grande alteração nos últimos anos, sobretudo por influência da sociedade ocidental.
De acordo com Dona Rosangela Guarani- uma importante liderança da nova geração, a
tradição Guarani de outrora, mas ainda mantida viva na atualidade faz que a menina (Mitã
Kunã), na primeira menstruação cortasse ou corta o cabelo e mantém resguardada dentro de
sua casa (Oga), por volta de um mês, onde fica impossibilitada de sair, nesse contexto recebe
alimento e agua.

No que tangem ao casamento, os Guarani, de acordo com Dona Maria e Dona Tereza,
hão variações a depender exclusivamente da parentela- mas uma coisa é certa, cabe aos pais
do rapaz (Ymenarã) entrar em contato e posteriormente se dirigir a residência dos pais da
moça (Kunãtãy), pedindo a mão de sua filha (Tajira). Dessa forma, Jaqueline Guarani, que
há pouco tempo havia passado por esse processo matrimonial, me indagou que os pais da
moça somente aceitam o pedido, caso julga adequado a maturidade do pretendente,
sobretudo, ser capaz de gerir uma casa. Jaqueline ainda me disse que para ser aceito, o rapaz
jamais pode ter sido reprovado por outros pais anteriormente e nem ser reprovado por má
conduta (Tekó Vay) dentro da comunidade Guarani. Para finalizar, me disse que caso, uma
Guarani vier casar-se com um Kaiowá seria a condenação da família, uma verdadeira
desgraça, indagou. Portanto, vejo que há uma relação de perversidade muito representativo
entre os Guarani e Kaiowá, poucas vezes debatidos e nas maiorias das vezes ignorados pelos
antropólogos, historiadores, geógrafos- os ditos guaraniólogos. Meu objetivo aqui não é

ɷɷɷ

fazer uma descrição precisa desse processo, muito pelo contrário, fazer uma pesquisa
HWQRJUiILFDV D SDUWLU GRV ³REMHWRV´ VDJUados Guarani, mas essas questões precisam
urgentemente ser debatidos na academia.

De acordo com Almires Martins Machado há uma clarividência entre a divisão do


trabalho entre homens e mulheres Guarani- assim cabem aos homens (Rajero ou Karai)
preparar a terra, plantar, caçar, pescar; enquanto as mulheres (Kunã) ajudar na roça a
escolher sementes, colher os produtos, cuidar da casa, cuidar dos filhos, fazer cestarias,
colares, pulseiras, banhar as crianças, dentre outros. Mas muitas coisas no entender de
Almires mudaram, sobretudo pela dinâmica da sociedade capitalista de produção. De acordo
com o mesmo, posterior ao matrimônio (Omendáhá), o casal vem a constituir uma moradia
uxorilocal- isso significa que o conjugues vem a viver na residência dos pais da moça, onde
no primeiro ano, os pais do rapaz passe a ajudar diretamente o filho, sobretudo ajuda
econômica- até o mesmo se estruturar no grupo macro familiar e assim passar a constituir
uma nova parentela e seguir com a cultura.

Em minha etnografia também percebi um item relevante, onde os conjugues


obrigatoriamente devem pertencer as diferentes famílias extensas dispersas pelas
comunidades Guarani, ou seja, as regras exogâmicas predominam, no qual há uma proibição
veemente relacionar- se com a mesma parentela ou grupo familiar. Assim, de acordo com
Dona Tereza, caso ocorra o incesto conhecida pela denominação de Mbora'u no Tekohá, no
futuro irá gerar uma maldição- punição rigorosa de Nhanderú Vussú (Deus criador na
cosmologia Guarani Nhandeva), que poderá condenar a parentela por milhares de anos- com
doenças, má formação congênita, onde Mitã (criança) irão nascer com sequelas, deficiências,
sem falar, sem audição, sem órgãos sexuais, sem visão, etc. Seria uma verdadeira destruição
de acordo com a Xamã Guarani Nhandeva, que seria o fim da parentela. Já no caso dos
Kaiowá, em conversa com Karai Getúlio Avá Guarani Kaiowá, que foi a primeira liderança
a me receber em sua residência em 2017- o que mais preocupa a etnia é a poligamia, que
caso ocorra, posteriormente irá destruir seu Tekohá, voltando aos Nhandeva- a poligamia
não é proibida- muitos ainda mantém essa tradição.

Portanto, finalizo minimante essa situação falando principalmente do parentesco


Guarani Nhandeva- que é um sistema extremamente heterogêneo, dinâmico e complexo,
pois envolvem muitas categorias analíticas, que no meu entender, para compreendemos
melhor- seria necessária uma monografia de mestrado ou doutorado estritamente sobre o

ɷɷɸ

tema. Mas voltando a falar genericamente sobre assunto, entendo que o Tamoy (avô) e Jary
(avó), Nhanderú (guia espiritual homem), Nhandesy (guia espiritual mulher) são os mais
importantes, pois através deles que sem mantém a tradição e oralidade Nhandeva ao longo
da história. Também verifiquei em minha pesquisa, que os Nhandeva não precisam
exclusivamente viver todos juntos, é importante, mas muitos lembram constantemente dos
parentes que residem distantes- dessa forma, os vínculos familiares não se perdem, muito
pelo contrário, são realçados o tempo inteiro, onde a terminologia Oguatá (caminhar/andar)
sempre requisitados entre os Guarani Nhandeva da Aldeias Jaguapirú e Bororó.

4. A organização política Guarani

Ao adentrar na comunidade Guarani Nhandeva, inicialmente entendia que a


organização política seria de fácil entendimento, pois julgava se tratar de uma sociedade
EDVWDQWH³OLPLWDGD´RX³UHGX]LGD´QmRVRPHQWHHPQ~PHURSRSXODFLRQDOPDVWDPEpPHP
termo de geografia. Mas logo percebi que não era bem assim, a política Nhandeva é muito
complexo, precisa de uma etnografia densa para minimamente compreender, onde os
interesses são diversos- a tratar desde de contexto familiar, de comunidade, de parentela, de
punição, de leis que regem a sociedade, de novas políticas que foram inseridas posterior ao
processo de colonização.

Dito isso, cada Tekohá (território Guarani Nhandeva), é constituída por uma
OLGHUDQoDRXVLPSOHVPHQWH³FKHIH´³FDSLWmRRXDLQGD³FDFLTXH´pLPSRUWDQWHPHQFLRQDU
que todas essas categorias analíticas tratam-se de termos gerados pelos colonizadores ao
longo da história, sobretudo, para se referir a pessoa que ditam leis, regras ou normas, não
somente em sociedades Nhandeva, mas em todas as etnias indígenas presentes no Brasil,
mas fica claro que essa terminologia ganhou mais força ou notoriedade em território Guarani,
principalmente por tratar- se de interesse do Estado brasileiro em explorar em essa região.

Os Nhandeva para se referir ao líder de sua comunidade prefere utilizar o termo


Mboruvichá, Ruvichákuera ou ainda Omandahá, que seria traduzido para o português como
FKHIHSROtWLFRORFDOeLPSRUWDQWHUHVVDOWDUTXHRSRGHUGRD³FKHIH´QRVGLYHUVRV Tekohá
nunca é/será total, centralizador ou inteiro. Almires me disse que a liderança tem poder, mas
praticamente não ganha nada por isso, pelo contrário, tem que buscar recursos para sua
comunidade. Portanto, é um grande equívoco pensar que um Mboruvichá ganha dinheiro por
estar a frete a comunidade- assim o poder e prestígio é grande, mas o trabalho a desenvolver
é maior ainda.

ɷɷɹ

O espaço de discussão dos Guarani Nhandeva e também Kaiowá e mais recentemente
os poucos Terena que residem nas Aldeias Jaguapirú e Bororó é o Aty Guassú (grande
assembleia), encontros de lideranças, onde as demandas são levadas para as pautas. Essa
assembleia foi amplamente discutida e elaborada pela tese de doutorado de Spensy Kmitta
Pimentel intitulado Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani (2012). Onde o
pesquisador percebeu que o Aty Guassú mobiliza todas as comunidades existentes na
Reserva Indígena de Dourados (RID), se tornou o evento mais importante para os Nhandeva
e os Kaiowá nos últimos tempos. Dessa forma, muitos políticos de Dourados, Mato Grosso
do Sul e da União participam do evento. Em minha investigação e ao participar desse evento,
pude perceber que há muitas negociações entre as lideranças locais e os de fora, vi também
que há subgrupos Nhandeva, onde cada um é responsável por um setor- como saúde,
educação, saneamento básico, religião, construção, equipamentos no Tekohá, punição, etc.

5. Atividades de produção Guarani

Em minha pesquisa, sobretudo, a realizada em 2018, pude perceber que a principal


atividade econômica produtiva dos Guarani é a agricultura de coivara, mas como mesmo
Karai Renato me disse- ³WDPEpPDJHQWHDPDFDoDUHSHVFDUPDVLQIHOL]PHQWHKRMHGLDKi
SRXFRVUHFXUVRVQDQDWXUH]D´ILQDOL]RXQDRFDVLmR-i$OPLUHV0DUWLQV0DFKDGRPHGLVVH
que que os Nhandeva realizam, principalmente uma atividade de subsistência, onde a
distribuição e redistribuição são marcantes nesses processos- pois se trata de um vínculo
sanguíneo e consanguíneo. Assim, a parentela distribui os recursos extraídos da produção
por todas as comunidades, sobretudo, por aquelas que não obtiveram tantos sucessos em suas
colheitas- isso faz com que os Nhandeva sejam vistos como um povo solidário, os Kaiowá
já são diferentes me indagou Dona Tereza Guarani Nhandeva. Dessa forma, os Nhandeva
compreendem que há Jara (dono) para todos os recursos disponíveis na natureza, por isso
mesmo não pode em hipótese algum mesquinhar, me intrigou Jaqueline Guarani Nhandeva.

Em dezembro de 2017, em companhia de Dona Tereza, Almires Martins Machado,


Jaqueline Guarani Nhandeva e demais parentes, tive a oportunidade, mais que isso julgo-
um verdadeiro privilégio em visitar as plantações no Tekohá Nhandeva- onde percebi que
são bastante significativos, pois eu compreendia ser bem pequenas, mas pelo que vi são
bastante expressivos. Na oportunidade Almires me falou sobre a marcação e delimitação-
disse que a roça geralmente possui de 1 a 6 ha (hectares) por cada parentela ou unidade
familiar. É plantam principalmente milho (Avatí), batata (Jety), mandioca (Mandió), cana

ɷɷɺ

(7DQJXDQUH¶H), abóbora (Andaí), mamão (Mamone), laranja (Naranrra), banana (Paková),
amendoim (Manduví), feijão (Kumandá), arroz (arró), fumo (Penty), remédios (Pohã
Nhanã). Dona Tereza me disse na oportunidade ao apontar para a roça ali está a nossa vida,
a nossa existência, a nossa história, a nossa memória, e por que não- a nossa arte. Almires
ainda me relatou, que o Avatí Morontí (milho branco) é diferente do Avatí Sayjú (milho
amarelo) - o primeiro é sagrado para os Guarani Nhandeva, em que jamais poderá ser
comercializada- é um elemento centralizador no ritual Avatí Kiry (batismo do milho).

Mais do que uma atividade ritual religiosa, a festa do milho novo condiz em um
momento de congraçamento e união entre os povos indígenas e membros convidados e uma
maneira de apresentar uma cultura de resistência aos modelos impostos pela sociedade não
indtJHQD 'H RXWUR PRGR *HHUW]  S   QRV GL] TXH ³SRGHPRV FKDPDU HVVDV
cerimônias totais de "realizações culturais" e observar que elas representam não apenas o
ponto no qual os aspectos deposicionais e conceptuais da vida religiosa convergem para o
crente, mas também o ponto no qual pode ser melhor examinada pelo observador a interação
HQWUHHOHV´O ritual Avatí Kiry foi pesquisado por Raul Claudio Lima Falcão no Mestrado
em Antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados, cujo título é Avatikyry: o
ritual do milho saboró entre os Kaiowa de Panambizinho-Dourados-MS, defendida em 2018.

Por fim, Dona Tereza Guarani Nhandeva me disse na presença de sua filha-
conhecida por 1KDQGHV\¶L (pequena rezadora), que nesse processo cabe a Kunã (mulheres)
a tarefa de pilar o milho e consequentemente preparar a tão famosa Chicha, fazer o Xipákuera
(chipa). O milho é um item fundamental, pois através dela pode ser feitos muitas coisas
como: farinha (Avatikuí), farinha de milho acompanhada de banha de porco (HX¶LN\UD.XUp),
farinha de milho misturada com mandioca (+X¶L5RYDMD0DQGLy), chipa embrulhada com
folhas (Xipá Mbixi), farinha de milho misturada na panela quente (Mbeju), milho assado
(Avatí Mbixi), milho assado em formato de bolo (Xipa Perõ), milho misturado com batata
(Xipa Jetyiru), mingau (Mbaipy), milho ralado (Kãguyjy Miri), pipoca (Avati Pororó), resto
de milho (Avatí Kuerreguaré), etc.

6. Os Guarani: manejo dos recursos ambientais e antrópicos

Em minha estada na Reserva Indígena de Dourados (RID), sobretudo, em ambientes


Guarani, pude comprovar que relação que esse povo- chamado de povo Mbaraká Jú possui
com a natureza é intrínseca, marcante e histórica- fiquei muito impressionado como eles

ɷɷɻ

³PDQLSXODP´RVUHFXUVRVH[LVWHQWHVQRVDPELHQWHVQDWXUDLV. Dessa forma, o que mais me
chamou atenção de imediato, foi o cuidado em manusear a terra, chamado por eles de Ivy.
De acordo com Kari Renato Guarani- os Guarani usufruem do Tekohá com cautela, pois se
caso ofende a terra, Nhanderú não irá gostar, porque ele mesmo deixou a terra para a boa
convivência- em hipótese algum poderá judiar dela, me indagou. Almires finalizou a me
dizer, há algum tempo vários agrônomos passaram por aqui- fazendo vários perguntas e se
surpreenderam com nós Guarani, principalmente pela nossa organização a envolver o Ivy-
bem dinâmico e estruturado, não faltando absolutamente nada- chamou a nossa técnica de
atividade ou manejo Agroflorestal- interligar caça, pesca e coleta ao mesmo tempo, sempre
tomando em cuidado em não destruir permanentemente os recursos disponíveis, corroborou.

Por fim, visualizei que muitos Guarani trabalham com vendas-além de vendas de
artes como pulseiras, colares, brincos, cestarias coloridas, miniaturas de animais; também
comercializam produtos oriundos de rosas como mandioca, milho, batata, ovos, frutas- assim
comercializam em mercados locais, fora da aldeia de forma ambulantes em carroças e
entregas, onde as crianças vão juntas- sempre na presença e um ou mais Jaguá (cachorro)
pelas ruas de Dourados/MS. Muitos ainda trabalham em fazendas em arredores dos Tekohá,
outros trabalham em prefeituras de cidades vizinhas- além de Dourados, Douradina, Fátima
do Sul, Rio Brilhante, Ponta Porã- em muitos casos em situação de vulnerabilidade extrema
TXHDRPHXYHUSDVVDGHVSHUFHELGRSHODVDXWRULGDGHV³FRPSHWHQWHV´

7. Situando a literatura Guarani de Mato Grosso do Sul

Ao abordar essa temática, busco interpretar de forma sintetizada, o que já fora


amplamente descrito por Pereira (2004) em sua tese de doutoramento- defendida na
Universidade de São Paulo- USP, acerca da organização social dos Kaiowá- é importante
enfatizar que muitas características se estendem aos Guarani Nhandeva, meu foco de
investigação. Alguns destes aspectos puderam ser observados nas Aldeia Jaguapirú e Aldeia
Bororó, por isso mencionamos alguns comentários a seguir. A principio parece ser fácil
distinguir os Nhandeva dos Kaiowá, mas em pesquisa pude observar o quando é complicado,
VREUHWXGRSHOD³PLVFLJHQDomR´GDVHWQLDVRQGHVHPSUHKiDOJXpPGHXPDSDUHQWHODTXH
pertence historicamente uma etnia diferente. Muitos negam a sua própria etnia por motivo
religioso ou político.

Partindo desses pressupostos, Inicialmente Pereira (2004), que no meu entender é o


principal estudioso do universo Guarani na atualidade, ao referir-se sobre a organização

ɷɷɼ

social Guarani e Kaiowá baseia-se em dois princípios metafísicos: ore e pavém. Estes se
constituem enquanto um mecanismo que dispõe os sujeitos em relação às outras de forma
diferente. Assim, para compreendê-los, é preciso primeiramente reconhecer algumas
unidades sociológicas ou até mesmo ontológicas para então reconhecer os princípios que as
regem posteriormente- a cosmovisão dessas etnias, depois de tudo que já foi pesquisado,
ainda é cercado de mistérios.

Um dos elementos fundamentais nesse processo, trata-se do Ñembrakú, intitulado de


fogo doméstico por Pereira (2004), também denominado pelos Guarani de Che Ypykykueraé-
DTXHOD XQLGDGH TXH VH DVVHPHOKD j ³IDPtOLD QXFOHDU´ RFLGHQWDO FRQWHPSRUkQHR RX VHMD
composta por um casal, seus filhas/os solteiras/os, filhos adotivos, de pais separados e/ou
órfãos, e em alguns casos, parentes próximos que tenham saído de algum outro fogo
espiritual. Dessa forma o pesquisador aborda o seguinte postulado:

Das variações quanto à composição acima enunciadas, infere-se que o fogo


doméstico reúne pessoas ligadas por três tipos de relações parentais:
descendência, aliança e uma relação pseudoparentesco, através da
instituição da adoção das crianças (PEREIRA, 2004, p. 52)

Agora no que tange a unidade sociológica mínima, o experiente autor enfatiza que o
pertencimento a um fogo doméstico é pré-condição de existência humana e espiritual entre
os Guarani, isso de um modo geral significa que somente há existência social se a pessoa
pertencer a um determinado fogo (2004, p. 51-52). Esse fogo remete aos princípios
sociológicos, ontológicos e cosmológicos, pois a conduta dos integrantes deve seguir a dos
fundadores da humanidade Guarani, principalmente o Tekó Porã (caminho do bem) que é a
do casal viver com os filhos ao redor de seus fogos a ressignificar a sua cosmovisão.

Ainda na sapiência do antropólogo e historiador- grande referência para


pesquisadores iniciantes como eu- o fogo doméstico é controlado pela alma Kunã (mulher),
³RTXHOKHVDVVHJXUDRSRGHUGHXQLUHDOLPHQWDUVHXVLQWHJUDQWHV6HPPXOKHUQmRKiIRJR
UHFRQKHFHPRV.DLRZi´ 3(5(,5$p. 54). Dessa maneira, a mulher desempenha um
papel fundamental para esta unidade microssociológica, através do princípio Oré Oiko Haxa
(como as mulheres Guarani vivem), pois é ela que se envolve mais diretamente nos arranjos
e separações matrimoniais, ou ainda aos desentendimentos políticos dentro da comunidade
e parentela (2004, p. 147). A partir disso, podemos corroborar que as mulheres possuem um
elo cosmológico de grande relevância dentro do mundo Guarani, a deixar de lado, os
estereótipos que reforçam que os mesmos são machistas ou ainda são reféns dos homens e

ɷɷɽ

sem autonomia. Isso de uma forma geral significa dizer que sem a presença das mulheres o
Tekohá inexiste completamente.

No limiar de sua argumentação, o pensador destaca, que por não ser totalmente
autônomo, na unidade do fogo doméstico existe a possibilidade, muito frequente, de
associação de vários fogos, que ao se associarem, formam um núcleo de produção e
consumo, denominado Jehuvy 3(5(,5$S ³Che jehuvy expressa a ideia da
convivência e autoajuda (Jehu = ajuda), ressaltando os laços de solidariedade presentes no
LQWHULRUGHVVDLQVWLWXLomR´ 3(5(,5$, p. 96). Esta é uma unidade intermediária entre
o fogo e a parentela, e é formada por parentes mais próximos e aliados. Nossa pesquisa
comprovou isso durante a nossa estadia na casa de Almires Martins Machado, onde várias
pessoas reuniram-se a demonstrar todos os repertórios, desde danças, cantos, comidas e
bebidas típicas.

Em minha investigação pude observar que, ao invés da do processo de ³DFXOWXUDomR´


amplamente defendida e difundida pelo célebre antropólogo Egon Schaden (1962) a respeito
GDVFDVDVFRPXQDLVTXH³GHVDSDUHFHUDP´DRORQJRGDKLVWyULDGRFRQWDWRLQWHUpWQLFRRTXH
o que pude analisar, ainda que em casas separadas, são os fogos associados que continuam
³HPYROWD´GRNhanderú e Nhandesy da comunidade Nhandeva Guarani. Tudo isso ao meu
ver significa que a prática Jehuvy, apesar de ser morfologicamente dicotômica, não destruiu
totalmente a sua dinâmica, funcionalidade e importância, apesar das situações caóticas que
o povo Guarani se encontra na atualidade contemporânea.

Apesar de ser mencionada ou citada em diversas pesquisas antropológicas, históricas,


geografias e educacionais, cabe destacar que a parentela intitulada de 7H¶\L (que a priori quer
dizer índio de verdade) é um código-rede de múltiplas relações. Por assim dizer, fica evidente
que o parentesco é um instrumento por excelência para iniciar-se numa pesquisa de cunho
etnográfico ou a envolver povos indígenas. Mediante isso, a solidariedade política e
econômica também é fundamental nesse processo- a distribuição das dádivas transcorre
assim:

A parentela combina diversos vetores de aproximação com a finalidade de


cimentar relações e formar grupos: 1) parentesco cognático; 2) alianças
matrimoniais; 3) alianças políticas, baseadas em amizade, redes de apoio
mútuo e relações de compadrio; 4) participação em uma mesma
comunidade religiosa, seja ela organizada pelo xamã, no modelo
tradicional, seja organizada pelo pastor pentecostal kaiowá, que ocupa no
modelo de organização social o mesmo papel estrutural do xamã. Todos

ɷɷɾ

estes vetores são acionados a partir da figura central do cabeça de parentela
(PEREIRA, 2004, p. 91).

Dito isso, pude perceber em vários momentos na Reserva Indígena de Dourados


(RID), que nem sempre o líder de uma comunidade ou parentela seja um ou uma Xamã,
historicamente há um senso comum que todos os ditos caciques são Nhanderú. Essa
problemática ainda gera grande discussão- carregados de conflitos, intrigas e simbolismos.
No inverno de 2018, tive a honra de participar do fogo doméstico de Dona Tereza Guarani
Nhandeva, onde ela falou do Tatá Rendi (fogo de Nhanderú Eté Tenondé), da criação de Yvy
(terra), da criação do Kaagui (mata ou floresta), da criação de Vixo Kuera (os animais),
Guirá Kuera (os pássaros), Pirá Kuera (os peixes), Ryo (rios e riachos), Ivã (as frutas) e
Ñande Kuera (os seres humanos.

Outro pensador que me guiou nesta investigação trata-se do antropólogo italiano e


professor da Universidade Federal da Paraíba em João Pessoa Fábio Mura (2006), que por
ser a família extensa a incluir (parentela/família-grande) composta por no mínimo três
gerações, são os avôs e/ou avós (Tamõi e Jary, respectivamente), os articuladores e
³SULQFLSDLVUHVSRQViYHLVSHODHGXFDomRPRUDOUHOLJLRVDHSUiWLFDGDVFULDQoDVUHSUHVHQWDQGR
o SRQWRGHUHIHUrQFLDSDUDWRGRVRVLQWHJUDQWHVGHVWDXQLGDGHVRFLROyJLFD´ S 
Em minha pesquisa pude comprovar que Mura (2006) já identificara, que a escolha de um
líder político (Mburuvicha) é, geralmente, filho ou neto de um Tamõi ou Tamõi Guasu
(bisavô) dotado de grande prestigio e poder no Tekohá ³FULDQGRDVFRQGLo}HVFRQWH[WXDLV- e
não formais- SDUD XPD WUDQVPLVVmR JHQpWLFD GH SRGHU´ R TXH FRQILJXUD XP ³PRGHOR GH
comunidade mais estável entre os Guarani e .DLRZi´  S -149). Outro item
importante que percebi nesse segmento se refere a formação de uma Nhandsy (guia espiritual
mulher), que de acordo com as maiorias de meus interlocutores e protagonistas- os Nhandeva
facilitam mais que os Kaiowá para se constituir uma Nhandesy, assim entre os Kaiowá há
Nhandesy, mas eles mesmos falam que é mais difícil.

Retornando ao pensamento do etnólogo Egon Schaden (1962), que por sua vez,
DILUPD TXH ³VHJXQGR RV SDGU}HV WUDGLFLRQDLV D FKHILD SROtWLFD GR JUXSR FRLQFLGH FRP D
liderança carismática do sacerdote ou médico-feiticeiro (conhecido como Pajesero). Esta
pode ou não coincidir com a autoridade do chefe de família-JUDQGH´ , p. 99). Este
importante estudioso realizou pesquisas fundamentais entre os Kaiowá e Nhandeva Guarani
do então Sul de Mato Grosso, entre 1949-1951. Schaden (1962) também percebeu que em
alguns Tekohá ou aldeias Indígenas, a ação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) teve um

ɷɷɿ

papel significativo. Ainda sobre esse importante papel atribuído ao capitão nesta época,
Egon Schaden (1962) corrobora TXH HVWH HUDHVFROKLGR SRU³TXDOLGDGHV ItVLFDVFRUDJHP
generosidade, talento de comando e de orador, e mantido no cargo enquanto não aborreça a
FRPXQLGDGH´ S a dizer ainda que ele era mão direita do encarregado do SPI,
cabia a ele representar a parentela ou comunidade de um modo geral. Enquanto a chefia
política tradLFLRQDOp³GHEDVHHVWULWDPHQWHORFDO´ 6&+$'(1S a atingir todo
o TekoháDFKHILDUHOLJLRVDVHULDPDLV³IDPLOLDO´DEUDQJHQGRXPJUXSRIRUPDGo por mais
de uma família ao redor do Nhanderú ou Nhandesy, que é a liderança religiosa (xamânica),
e constituindo uma proximidade:

Bem diferente é a situação do capitão da aldeia. A instituição não se


originou no seio da cultura Guaraní; foi-lhe imposta de fora. No entanto,
cabem-lhe hoje importantes funções na vida do grupo. O capitão representa
oficialmente os interesses da aldeia perante os moradores brasileiros, e é
ao mesmo tempo chefe de polícia no interior do grupo. É sua tarefa
restabelecer a ordem e castigar culposos, sempre que a desorganização
social e abuso do álcool façam surgir brigas e rixas no seio da comunidade
(SCHADEN, 1962, p. 101).

Já para Barbosa da Silva (2007), a criação da figura do capitão e de seu auxiliar,


FKDPDGRSRU³VDUJHQWR´ ³LJQRURXDRUJDQL]DomRVRFLDOHSROtWLFDGHFDGDJUXSRLQGtJHQDQR
SDtV´FRPRQRFDVRKaiowá e Guarani, a unidade sociológica da família extensa, liderada
por Tamõi e Jary ³FXMR FKHIH p VREHUDQR QDV GHFLV}HV TXH FRQFHUQHP HVWH JUXSR´
(BARBOSA DA SILVA, 2007, p. 53). Dessa forma, a consequência foi a concentração de
poder e autonomia, pois HPERUDRSUHVWtJLRGRFKHIHIRVVHPDLRUTXHDGR³FDSLWmR´DIRUoD
do último fazia-se prevalecer nas reservas, onde se encontram os Postos Indígenas. Destarte,
o que antes era decidido em nível comunitário, sobretudo através de consenso alcançado via
acordos, reuniões ou assembleias (Aty Guasu ), foi subvertido e controlado pela instituição
GRFDUJRGH³FDSLWmR´ %$5%26$'$6,/9$S Muitos de meus interlocutores
se lembram com pesar desses episódios trágicos- Almires Martins Machado por exemplo me
disse, que no final da década de 1990, quase houve uma guerra generalizada entre os Kaiowá
e Guarani. Disse ainda que casas de rezas foram construídas sem consentimentos dos
Guarani, e que algumas pessoas se autodeclararam Xamã ou Nhanderú de forma ilegal ou
ilícita. Relatou que um importante líder da atualidade, que aqui não irei mencionar nome
sobretudo pela sua importância na RID, se autoflagelou para denunciar possível ataque de
rival e ganhar notoriedade e reconhecimento.

ɷɸɶ

Com a Constituição de 1988, Mura (2006) corrobora que a redefinição institucional
da União (Estado Brasileiro ou poder federal) significou, nesse contexto, a atribuição da
defesa de minorias étnicas para o Ministério Público Federal. Para os Kaiowá e Guarani de
Mato Grosso do Sul, isso significou a extirpação formal do papel do chamado capitão
³IDYRUHFHQGR DVVLP R PDQLIHVWDU-se de uma pluralidade de lideranças tradicionais,
subjugadas durante as ~OWLPDVGpFDGDV´ 085$S Por conseguinte, em minha
pesquisa na RID pude perceber que a capitão ainda existe, mas não tem tanta importância
como em outrora recente. Mediante isso, Meyer (2014) através de sua dissertação de
mestrado corrobora os seguintes postulados:

Dinamizador das ações e gestões políticas realizadas na área de sua


jurisdição, estabelecendo relações com os agentes indigenistas e regionais
a fim de catalizar os interesses do grupo nos seus aspectos extra-
domésticos. Internamente, poderá intervir em contendas domésticas e
mesmo em brigas de marido e mulher (MEYER, 2014, p. 167).

Em sua abordagem etnográfica, Meyer (2014) descreve o jogo político e cosmológico


que o capitão está sujeito, a tornar-se, refém de seus parentes, na medida em que se espera
que ele use de seu poder em benefício da própria parentela, seja com recursos de programas
sociais (destinados às comunidades indígenas), seja contra grupos rivais (2014, p. 169).
Portanto, por mais que esteja extinto a figura histórica do capitão na Reserva Indígena de
Dourados, os Guarani encontraram alternativas legais para o reconhecimento desta nova
organização social, através da manutenção da divisão política e administrativa, tais como:
eleição com voto direto para a escolha de capitão; composição de uma diretoria
administrativa; e composição de patrulha indígena para segurança interna (MEYER, 2014,
p. 170). &DEHGHVWDFDUTXHR³QRYRFDSLWmR´HPXLWRGLIHUHQWHRGHDQWLJDPHQWHSRLVSDVVD
por processos vias legais e reconhecimentos, portanto não havendo uma intervenção de cima
para baixo- inquestionável.

De acordo com pesquisa recente realizada por Santos (2016), a formatação de chefia,
embasada na organização política tradicional (pelo reconhecimento da organização social da
família extensa e da liderança tradicional- Mburavicha), ou através do sistema da chamada
capitania (pois embora esta última tenha sido introduzida artificialmente de fora para dentro
da cultura Nhandeva e Kaiowá, transfigura nova forma de organização política
administrativa diferentes Tekohá, são modos diversos que expressam o princípio Pavêm. Já
para Pereira (2004, p. 147), esse fundamento, por sua vez, sintetiza a ³solidariedade
ampliada, geralmente exercida por homens (embora não exclusivamente), não diretamente

ɷɸɷ

ligada à parentela, e onde se exercita o contato com as divindades´. É por limiar, Santos
(2016), enxerga que a autoridade ritualística atua ou age diretamente na estrutura
cosmológica Guarani, principalmente com base na comunicação ou diálogos
(intercomunicação), ³onde se contradiz o ideal da união inspirada pelo Teko Katu (prática
de solidariedade e cooperação), por alguma rivalidade política dentro da parentela, onde
deveria haver a ampliação do horizonte social´ (SANTOS, 2016, p. 32).

Por fim, outra unidade sociológica, ainda mais ampliada, é o chamado Tekoha.
6HJXQGR 3HUHLUD   HWLPRORJLFDPHQWH D SDODYUD p IXVmR GH GRLV WHUPRV ³Teko´ -
sistema de valores éticos e morais que orientam a conduta social (...), - e ha, que como sufixo
nominadoULQGLFDDDomRTXHVHUHDOL]D´Dito isso, em uma tradução literal ou aos pés das
letras, pode ser interpretada como o lugar em que a comunidade Nhandeva e Kaiowá ³YLYH
GHDFRUGRFRPVXDRUJDQL]DomRVRFLDOHVHXVLVWHPDFXOWXUDO FXOWXUD ´ S . Além
disso, Pereira (2004) corrobora esta unidade sociológica como uma rede de relações
cosmológicas (político, econômico, social, ideológico), como uma articulação entre dispares
comunidades ou parentelas.

8. O xamanismo Guarani: do canibalismo ao Tekohárã contemporâneo

O que é significa xamã? O que faz um xamã? O que é xamanismo? Essas e outras
perguntas foram formuladas, reformuladas e respondidas nos últimos 500 anos. Eles foram
perguntados pela primeira vez por viajantes e missionários nos séculos XVI e XVII, quando
encontraram as figuras performativas ambíguas da Sibéria, que praticavam técnicas de
êxtase para seus voos mágicos. Dito isso, no limiar do século XIX, os antropólogos e
historiadores estavam profundamente envolvidos em um discurso que buscava compreendê-
lo como um fenômeno indígena praticado por grupos aborígenes ou ameríndios que
compartilhavam histórias geográficas e culturais. Dessa maneira, desde a década de 1950, o
discurso antropológico tem sido acompanhado por intelectuais de outras disciplinas, bem
como por buscadores de práticas espirituais alternativas, interessados em drogas psicoativas,
estados alterados de potencial conscientH H WHUDSrXWLFR 0DLV UHFHQWHPHQWH RV ³QDWLYRV´
tornaram-se agentes importantes na multiplicidade de vozes. Portanto, ao invés de servir
como interlocutores para os antropólogos e demais pesquisadores que fazem as perguntas,
eles realizam xamanismos em uma variedade de contextos, e xamanismo e xamãs,
³DXWrQWLFRV´ RX QmR HPHUJHP GHVVH LQWHUFkPELR GH H[SHFtativas e interações
contemporâneas múltiplas.

ɷɸɸ

Embora o fenômeno xamanismo tenha sido tratado na antropologia e na história
como especificamente uma categoria primitiva, indígena ou ameríndia, a ascensão de rituais
xamânicos praticados nas áreas urbanas ou cidades em todo o mundo, nos obrigaram a rever
nossos modelos, conceitos, noções ou ainda metodologias analíticas interpretativos acerca
do mesmo. Por assim explicitar a difusão do xamanismo para culturas não indígenas é parte
de um contexto mais amplo de intercâmbio entre o local e o global que está no centro das
questões atuais na investigação antropológica sobre noções de cultura, tradição,
continuidade, lugar e tempo. Portanto em síntese o xamanismo não pode ser considerado
como uma filosofia ou lógica isolada sem considerar os contextos sociais, políticos,
econômicos, históricos e ideológicos de suas práxis.

Os antropólogos não foram exceção ao fascínio dos europeus pelas práticas


xamânicas nos últimos 500 anos, como revelam (Narby e Huxley, 2001). Os primeiros
antropólogos, como Tylor, Frazer, Mauss e outros, incluíam o xamanismo em suas
discussões de categorias analíticas e oposições como primitivo/civilizado,
magia/ciência/religião e natural/sobrenatural. O comportamento extático e desviante dos
xamãs desencadeou debates sobre a veracidade e sanidade dessa figura exótica. Baseado nos
JUXSRVGHFDoDHFROHWDGD6LEpULDRWHUPR³[DPm´WRUQRX-se uma categoria antropológica
para as figuras ambíguas encontradas nas Américas e em outros lugares desempenhando
funções mágicas/sacerdotais ou de feiticeiro/curandeiro. O foco de Eliade (1951) sobre o
êxtase e os traços essenciais tornou-se um modelo importante para definir o fenômeno como
uma religião arcaica. Nos anos 60 e 70, o interesse popular por alucinógenos trouxe um
interesse renovado ao tema e uma renovação de pesquisas, simpósios e publicações
dedicadas a examinar formas de xamanismo. Alguns pesquisadores tentaram construir uma
definição de xamanismo como uma categoria analítica para fins comparativos; outros
estavam interessados em examinar a diversidade de cosmologias nativas e práticas
xamânicas. A investigação das técnicas de ecstasy como potencial humano, com foco
específico em substâncias psicoativas, tem sido marcada por interesses interdisciplinares,
bem como por um forte ethos experimental por parte dos pesquisadores/as.

O surgimento dos estudos simbólicos na década de 1960 ajudou os pesquisadores/as


a ir além das definições essenciais ou dicotomias que faziam parte das primeiras discussões.
Os sistemas xamânicos tornaram-se reconhecidos como sérias construções socioculturais do
mundo, e os antropólogos se esforçaram para documentar essas formas criativas e dinâmicas
em seus ambientes indígenas. Como observado por Viveiros de Castro (1996), o aumento

ɷɸɹ

quantitativo na pesquisa desde a década de 1960 permitiu o crescimento qualitativo de
modelos teórico-analíticos para a compreensão e comparação das culturas das terras baixas
da América do Sul. Estudos das concepções nativas da natureza e do corpo, da organização
social, da sociabilidade, do gênero, assim como da mitologia, cosmologia, estética e ritual,
contribuíram para o surgimento de modelos teórico-analíticos para a compreensão e
comparação dessas culturas. Eles, por sua vez, contribuíram de maneira importante para o
entendimento do xamanismo indígena.

Os financiamentos de estudos sobre as culturas ameríndias nos permitiram perceber


tanto as características subjacentes dos xamanismos amazônicos quanto a diversidade de
práticas e praticantes. O xamanismo é percebido como uma instituição coletiva, central para
as cosmologias e sociedades indígenas das terras baixas, que expressa os temas centrais de
uma cultura, como o princípio da transformação, a preocupação com o fluxo da energia vital
e a influência das forças ocultas na vida cotidiana. Como uma visão cosmológica, fornece a
base para a interpretação e compreensão dos eventos diários, bem como para a mediação
com as forças invisíveis que os afetam. Em seu sentido mais amplo, o xamanismo preocupa-
se com o bem-estar da sociedade e de seus membros, com a manutenção da harmonia social
e com o crescimento e os processos reprodutivos (Langdon, 1996). Abrange o sobrenatural,
assim como o social e o ecológico. Assim, o xamanismo é uma instituição cultural central
que, por meio do ritual, unifica a cosmovisão de uma cultura com seu passado mítico e a
projeta em atividades cotidianas.

Em 1979, um artigo seminal foi publicado propondo que o corpo e sua fabricação
deveriam servir como o paradigma organizador central para entender as culturas nativas da
planície sul-americana, ao invés de modelos de organização social emprestados do estudo
das sociedades africanas (SEEGER, 1987). O impacto desta proposta, que as cosmologias,
mitologias e rituais sejam reexaminados à luz da fabricação do corpo, é amplamente
evidenciado na etnologia contemporânea. Um dos temas importantes é o da
consubstancialidade, sugerida primeiramente por Roberto DaMatta (1976). Entre os grupos
das terras baixas, as práticas de socialidade, como os atos de comer juntos ou a
coparticipação em rituais, criam um corpo social que compartilha substâncias. O corpo do
xamã é fabricado através de pintura e adornos, dietas especiais e ingestão de tabaco,
ayahuasca ou outras substâncias psicoativas. Conhecimento, emoções, memória e
consciência não podem ser separados da experiência corporal. Nesse sentido, torna-se

ɷɸɺ

fundamental citar a participação dos artefatos sagrados e ritualísticos, muitas vezes
ignorados pelos pesquisadores, mas certamente sem elas não há práticas xamânicas.

Perspectivismo é outra contribuição recente para a visão antropológica do


xamanismo. É uma noção complexa que tenta sintetizar uma filosofia comum às culturas das
terras baixas da América do Sul e se desenvolveu a partir de discussões sobre a ecologia
simbólica, a fabricação do corpo e a noção de transformação que é característica das
cosmologias amazônicas evidenciados por (Viveiros de Castro 1998; Lima 1996).
Perspectivismo é uma síntese frutífera do que tem sido descrito por muitos como a percepção
amazônica da natureza e a multiplicidade de seres animados nas realidades visíveis e
invisíveis de um universo intencional.

Já Brunelli (1996) expressou a cosmologia xamânica como um universo que é


constituído por uma inextricável interpenetração dos mundos visível e invisível e por um
trânsito contínuo entre os seres e poderes da natureza em diferentes formas. Campbell, por
sua vez interpretou a qualidade xamânica como tendo principalmente a ver com conhecer e
ver, com todo um outro modo de compreensão, que permite ver além das aparências
cotidianas. É uma maneira de olhar o mundo em que a outra realidade é completamente
humanizada e seXV VHUHV DSDUHFHP FRPR VHUHV KXPDQRV ³2 FRUDomR GHVVD UHDOLGDGH
xamânica revela uma relação humana enWUHQyVHRPXQGRQDWXUDO´ &DPSEHOOS 

O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro e seus colegas enfatizaram a


predação e o canibalismo como metáforas fundamentais das cosmologias amazônicas, e
esses conceitos são particularmente úteis ao examinar o lado sombrio dos xamanismos
indígenas. Em uma discussão abrangente sobre a metáfora do canibalismo na etnografia das
terras baixas da América do Sul e seu potencial para pesquisas comparativas, sugeriu que o
xamanismo, no que se refere aos processos de saúde e doença nas culturas das terras baixas,
é uma expressão da metáfora da predação. Isso é mais evidente nos discursos sobre feitiçaria,
em que a vítima é equivalente à presa, o xamã escuro é o caçador e a metáfora do canibalismo
se aplica ao murchamento do corpo. Trabalhando com essas metáforas, publicações recentes
demonstram vividamente que o xamanismo amazônico não é um xamanismo gentil. Ao
enfocar os aspectos destrutivos do xamanismo, eles também demonstram que a feitiçaria
assume um papel importante na mediação com a situação colonial e a modernidade. É
importante destacar que o canibalismo ainda faz parte da linguagem Guarani Nhandeva

ɷɸɻ

como pude observar em minha investigação na RID- Dona Tereza fala que o principal Xamã
canibal Guarani foi Avá Roú Rapixá Kaaguire.

9. A lenda do Avá Guarani canibal: o Jaguaretê-Avá

A história começa assim- conta que antigamente existiam muitos Avá Guarani
Nhandeva canibal ou antropófago que viviam no Kaagui (mata ou floresta densa), mas esses
índios não comiam a carne de sua própria etnia, comunidade ou parentela, mas sim de outras
etnias ou principalmente dos não-indígenas chamadas de Raekuera (outros). Há diversos
relatos sobre a chegada dos Karai kuera (pessoas vindas de fora) no Tekohá (onde os
Nhandeva viviam ou vivem atualmente) - muitos chegaram com a intenção de fazer mal
exclusivamente, a incendiar os Ogapysy (casa ritual), molestarem Mitã Kuña (meninas),
alterarem os padrões culturais locais, modifiFDUDHVWUXWXUDSROtWLFDMXQWDUYHOKRV³LQLPLJRV´
locais, sem contar as inúmeras doenças, etc.

Mediante o que foi dito- vamos falar um pouco da matança ocasionado pelos Avá
Guarani Nhandeva canibais- um caminhão carregados de homens estavam a adentrar na
mata, trazendo mantimentos- os homens iam a conversar sobre tudo dentro da carroceria,
IDODYDPGRSHULJRHPHQWUDUHPWHUUDGH³tQGLRVIDPLQWRV´- que poderiam devorar a qualquer
PRPHQWR0XLWRVGL]LDPTXHHUDP³SLDGDV´SRUWDQWRQmRDFUHGLWDPPDVPXLWRVestavam
a sentir medo- falava da morte que em outros tempos já foram acometidos. Ao seguir pela
estrada de chão a beira do rio sob o luar da madrugada de primavera, que ora ficava escuro,
ora claro devido a mata, os homens começaram a escutar um grito no coração da floresta- a
princípio muitos de assustaram, mas falaram que eram outros homens a trabalhar ou residir
na região. Mas o velho caminhão de origem alemã marchavam lentamente pela estrada- ao
chegar no clarão- quase a amanhecer- o gerente da empreitada foi acordar os homens que
estavam no caminhão e posteriormente conferir se todos estavam lá, mas logo perceberam
que três faltavam- apenas encontraram sangue no caminhão e um rastro similar a pegada de
onça, porém misturada com pegada humana- isso começou a gerar comoção nos demais
trabalhadores- mas o motorista logo indagou- precisamos seguir até amanhecer totalmente,
caso contrário- iremos perder mais homens.

Seguindo a viagem a presa, ao amanhecer o motorista parou o caminhão a beira de


um rio, onde ao lado localizava-se uma casa chamada de ponto de encontro- onde servia café
e comidas caseiras- dois senhores velhinhos pediram para os homens a ocuparem o ambiente
aconchegante- no qual haviam flores de diversas cores. O ancião logo foi dizendo, vocês

ɷɸɼ

tiveram sorte por estarem vivos, passar por essa mata a noite é terrível, quase ninguém
sobrevive- há nela um homem-onça, que os paraguaios intitulam de Jaguaretê-Avá- uma
besta sanguinária, devoradora, monstruosa que vivem matando gados e cavalos dos
fazendeiros- inclusive comendo trabalhadores- mas somente come o coração o resto joga
fora. O experiente senhor continuou a dizer- essa espécie não é lobisomem- muito mais
perigoso e assustador- muitos falam que ela está a se vingar dos homens que vieram de fora
afim de aniquilar os Guarani- dizem ainda que seu espirito é muito forte- precisa batizar as
balas pata mata-lo, mas não é fácil- todos os que tentaram morreram.

10. Produção e confecção de artes Guarani em Dourados

Através de etnografias realizadas na Reserva Indígena de Dourados (RID),


sobretudo, a partir de conversas direta e indiretamente com meus interlocutores e
protagonistas Nhandeva Guarani, onde tive a oportunidade de acompanhar as coletas,
produção e confecção das artes dessa etnia- que também é parte de mim por parte de minha
mãe Vitorina Ivarra- que ainda criança fora retirada dessa comunidade por familiares
gaúchas e paraguaias. Destaco que quando criança sempre ouvia a minha mãe mencionar o
seu povo, de como eram feitos os objetos de utilização do dia-a-dia e processamento de
artefatos sagrados, como os casos do Xirú, Mbaraká, Ambá e Takuapú.

Partindo desses pressupostos, gostaria de deixar claro que não concordo com alguns
pesquisadores/as que intitulam a produção artística Guarani Nhandeva de apenas
³DUWHVDQDWRV´$VDUWHVDUWHIDWRs e objetos sagrados Nhandeva ultrapassam essa barreira, vão
muito além de ser apenas um elo contemplativo e embelezamento, estão nas memórias,
esperanças, sonhos e cosmologia. Dito isso, apresentarei algumas maneiras de
desenvolvimento das artes Guarani Nhandeva na Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó, que são
trançados, tecidos, armas, instrumentos musicais, miniaturas e adornos.

I. Os trançados Nhandeva Guarani- -i %HUWD 5LEHLUR   FRUURERUDUD TXH ³RV
trançados se classificam, segundo suas finalidades, em objetos de uso e conforto doméstico,
objetos de caça e pesca, objetos para processamento da mandioca, objetos de transporte de
carga e de adorno pessoal (RIBEIRO, 1988, P. 197). Até agora os trançados possuem
presenças marcante na comunidade- Dona Tereza me diz que elas são os caminhos
percorridos por Nhanderú e Nhandesy rumo ao paraíso celestial. Já (PASCHOALICK,
2008), enfatiza que o abano servia para atiçar o Tatá (fogo)- o cesto possuía a finalidade de
inserir frutas como Paková (banana), Araçá (goiaba), Kumandá (feijão), Jety (batata),

ɷɸɽ

Manduví (amendoim) e de sementes para plantação, como é o caso de Andaí (abobora).
Nesse processo ainda cabe mencionar os cestos-armadilhas para capturar os Pirá (peixes)
nos rios que cortam a comunidade, e a peneira chamada de Tipiti, era usada para preparação
de Mandió (mandioca), também havia o cesto-cargueiro, usada principalmente nos Oguatá
Pukú (longa caminhada). Ainda de acordo com a historiadora, os trançados também serviam
de adorno em chapéus, braçadeiras e cintos (idem).

Já no entender de Darcy Ribeiro (1987), os produtos eram confeccionados com


matérias-primas diversas, como a palha, a tala do buriti, as gramíneas, os marantáceos como
arumã, as fasquias de cipó e as palmeiras como babaçu e bacaba. É para o antropólogo e
historiador suíço Alfred Métraux (2012), o povo Guarani (Kaiowá, Mbyá, Nhandeva e
Chiriguanos e Tapiatés) eram por excelência especialistas na produção e confecção de
cestarias. Utilizavam como matérias-primas o cipó Guaimbé (Philodendron selloum, Koch)
e a taquara (PASCHOALICK, 2008). Em minha última pesquisa realizada na RID (março
de 2019), pude observar que há poucos objetos a ser desenvolvidos pela comunidade-
visualizei, sobretudo, abanos para atiçar o fogo, as peneiras, os cestos.

Em minha investigação, notei que as matérias-primas mais utilizadas são de


procedência de Takuara (bambu), cipó, folhas de palmeiras, fibras de caule, embira de
bananeira, sementes de urucum, sangue de animais, sobretudo, aves e animais de caças. Na
residência do Nhanderú Karai Avá Jorge da Silva e Kuña Karai Nhandesy Antonia
Aparecida, pude observar que eles cultivam as matérias-primas no próprio quintal,
principalmente pela ausência na RID- causada pela expansão do agrobanditismo, como ele
mesmo me disse. Ainda me disse, que muitos artesãos e artesãs sempre buscam recursos de
outras aldeias como: Limão Verde, Laranjeira Nhanderú, Panambizinho, Pirakuá, etc. O
NhanderúY Alex Souza da Silva que é filho de Jorge da Silva, me disse que utiliza o embira
da bananeira produzida na casa de seus pais, para confeccionar cestos afim de comercializá-
los. É Nhanderú Roberto Arce, me relatou que usa o bambu e cipó Guaimbé na produção de
trançados, trazida da Aldeia Pirakuá (Bela Vista- MS) - frisou que somente terá sentido se
for de Pirakuá- verdadeiro e original, concluiu.

Em minha pesquisa também pude entender que muitas artes ou objetos deixaram de
ser produzidas na Aldeia Jaguapirú e Aldeia Bororó, não por falta de interesse, mas
sobretudo, pela escassez gerada pelo desmatamento da mata ou floresta que ali estavam- isso
já foi retratada pela historiadora Paschoalick:

ɷɸɾ

A cestaria não é muito praticada no momento pelos Kaiowá e isto se deve,
sobretudo, pelo fato de não ter mais utilidade no novo modo de ser,
tekoyahu, visto que está diretamente relacionada ao transporte por terra de
crianças e carga, para uso e conforto doméstico como suporte de cabaça,
abanador, esteira, entre outros (PASCHOALICK, 2008, p. 66).

Durante os dois anos que empreendi etnografia entre os Nhandeva Guarani de


Dourados, notabilizei que artes e objetos como cestos-armadilhas, cestos-cargueiros, gaiolas,
tipiti, chapéus, tipoias não foram encontrados. Almires Martins Machado me disse que é
imprescindível realizar pesquisa sobre arte e cosmologia, antes que acaba de vez toda essa
história milenar- que se mantem viva, apesar do ataque etnocida dos colonizadores.

II. A tecelagem Nhandeva Guarani- Na sapiência de Darcy Ribeiro, WHFHODJHP³pDWpFQLFD


de interpor regularmente os fios, com ou sem o uso de imSOHPHQWRVHDSDUHOKRV´ 5,%(,52
1988, p. 92). Já para Egon Schaden (1974), os Guarani em outrora usam o algodão para
confeccionar tecidos. Dessa forma, com o uso do tear, teciam e produziam vestuários
masculinos e femininos. 3RUWDQWR³Iiar, tingir e tecer eram tarefas atribuídas às mulheres´
(MARQUES; ALVES, 2019, p. 2004). Ao descrever o processo de tecelagem entre as
Guarani, Alfred Métrax notou TXHDVPXOKHUHVWHFLDP³VHPDMXGDGHQHQKXPLQVWUXPHQWR
passando simplesmente os fios da trama entre aqueles da urdidura como se elas
UHPHQGDVVHP´ 0e75$;S 

Sobre o processo de tecelagem Berta Ribeiro corrobora:

a arte de tecer admite duas macro-divisões: trabalho em trama e trabalho


em malha. A primeira pressupõe o uso de um dispositivo para a tensão dos
fios da urdidura: o tear. E o uso de dois elementos, urdidura e trama ou dois
conjuntos de elementos que se entrecruzam formando o tecido. A segunda
se processa pelo emprego de um único elemento contínuo de tamanho
finito ou infinito, e o uso ou não de um implemento, agulha de ponta (tricô),
agulha de gancho (crochê) ou agulha de orifício (enlace), ou simplesmente
um gabarito (RIBEIRO, 1988, p. 92).

Conforme descreve Shaden (1962), com a confecção de tecelagem o povo Guarani


produzia tecidos para fazer roupas. A indumentária masculina era formada por ponchito
(poncho pequeno), o Txumbé (faixa de algodão usada em torno da cintura) e o Txiripá, pano
de algodão de forma retangular, com três lados de franja que desce até abaixo dos joelhos
(MARQUES; ALVES, 2019, p. 205). Já a indumentaria feminino era composto do Váta, que
corresponde a uma blusa, e o Tupái, semelhante a uma saia (idem). Conforme postula
Paschoalick (2008), com o uso das fibras de caraguatá (Bromelia antiancatha), planta da
família das bromeliáceas, as mulheres Guarani Nhandeva também confeccionavam fios, no

ɷɸɿ

qual produziam redes, utilizadas para as crianças dormirem dentro de casa e, também, para
o descanso dos homens vindas da roça, caça, pesca e encontros.

Uma coisa que eu percebi em minha investigação, já tinha sido também observada
pela historiadora Paschoalick (2008), que ³SHOD DXVrQFLD GR DOJRGmR H GR FDUDJXDWi
abandonaram a prática de fiar, Povã, [...] [mas] continuam tecendo com barbante, lã, fios de
tecidos desfiados, estopa, linhD XWLOL]DQGR D PHVPD WpFQLFD GRV VHXV DQWHSDVVDGRV´
(PASCHOALICK, 2008, p. 68). A artista Guarani Antonia Aparecida faz uso de tear
produzido por ela e pelo esposo, o artista Karai Avá Guarani Nhandeva Admiro Arce- que
na ocasião que disse que produz em seu quintal o pariri, a cabaça e a bananeira. Assim, com
barbante, produzem redes. Já a artista Marilda Duarte elabora faixas e tapetes com o recurso
do tear. Portanto, para substituir o algodão, ela utiliza o barbante e a lã, comprados em casas
comerciais na cidade de Dourados, como também identificou as pesquisadoras Marques e
Alves (2019). Em minha ultima investigação, pude observar o trabalho de Marilda Duarte
Guarani Nhandeva, onde me disse que as faixas confeccionadas, servem principalmente para
produzir saias- ela aplica uma série de sementes nativas- fLQDOL]RXDGL]HU³LVVRYDLSDUDR
PHUFDGRPDVOHYDFRQVLJRQRVVDVPHPyULDVQRVVDVKLVWyULDVQRVVRVVRQKRV´

III. As armas Guarani- De acordo com antropóloga, etnóloga e museóloga brasileira,


autoridade significativa em cultura material dos povos indígenas do Brasil Berta Ribeiro
 ³RFRQMXQWRGHREMHWRVHPSUHJDGRVLQGLVFULPLQDGDPHQWHSDUDDVIXQo}HVGHJXHUUD
HSDUDDVWDUHIDVGHSURYLPHQWRGDVXEVLVWrQFLDWDLVFRPRDFDoDHDSHVFD´ 5,%(,52 1988,
p. 239). A pensadora também identificou três modelos de armas: armas de arremesso, armas
de choque e armas de sopro. Dessa maneira, as armas de arremesso, como a lança, a
boleadeira, o arco e a flecha, fornecem subsídios para ataque a pequena, média ou grandes
distâncias- usadas, sobretudo para caçar paca, tatu, peixe, quati. Já a armas de choque, como
a borduna, se aplicam ao combate próximo ou à caça a animais de grande porte- como anta,
veado, queixada, porco-do-mato. É por fim, as armas de sopro são aquelas que contêm
dardos envenenados- usadas para matar animais ou seres possuídos por espíritos diabólicos
(RIBEIRO, 1988).

No entender de 6HJXQGR &KLDUD  S   ³DV DUPDV PDLV FRQYHQFLRQDLV
utilizadas pelos índios são: sarabatana, propulsor de dardos, boleadeiras, borduna (conhecida
também comRFODYDRXPDFDQD ODQoDHDUFRHIOHFKD´ Percebi em minha pesquisa que por
unanimidades os Nhanderú e Nhandesy, ao lembrar de sua cosmologia sempre se rementem

ɷɹɶ

ao passado- por isso mesmo adotei o termo memória para situar essa problemática. Senhor
Renato Guarani me disse que as armas praticamente perderam suas importâncias em termos
de utilidades, mas não em importâncias históricas e cosmológicas. Já Kuña Karai Tereza
Guarani Nhandeva me relatou que a caça e a pesca é própria vida Guarani- disse que
Nhanderú Tenondé (Deus principal na cosmologia Guarani Nhandeva) deixou a floresta e
os rios para os Guarani viverem em harmonia e em paz, mas que os Karai estão a destruir
tudo- relatou ainda que o fim está próximo, que Nhanderú Tenondé Eté já cansou de ver seu
mundo desvastado.

A produção de arco e flecha ainda é marcante na RID (Reserva Indígena de


Dourados), sobretudo, como mercadoria- sendo assim ressignificado em uma nova dinâmica,
sem perder a sua essência- principalmente para os compradores que aos adquirem não se
importam se foram esses objetos remodelados em uma outra esfera, mas por possui uma
ancestralidade tribal étnico. É as maiorias dos artistas Guarani Nhandeva tem consciência
desse fato, ondHGL]HP³SUHFLVDPRVFRQWLQXDUYLYHQGR´eQRHQWHQGHUGH0DUTXHVH$OYHV
(2019), o processo de miniaturização é feito justamente para facilitar acomodações doa
abjetos nas bagagens dos compradores, predominantemente, turistas. Já em relação às
matérias-primas utilizadas na produção do arco e da flecha, Métraux (1987, p. 140) corrobora
que ambos eram confeccionados com variados tipos de madeira, como a aroeira (Astronium
VSS RSDXG¶DUFR Tecoma af. Conspícua DC), o ipê (Tabebuia sp.), a caraúba (Jacaranda
copaia) e a pupunha (Bactris speciosa), dentre outros.

Com base na publicação recente de Marques e Alves (2019), podemos perceber a


complexidade da produção atreladas as matérias-primas dos objetos Guarani, assim as
pesquisadoras sintetizam os seguintes postulados:

Em relação às matérias-primas utilizadas, no presente, os artesãos


informaram que se servem de madeiras como o aguaí (Thevetia peruviana),
o cipó guaimbé (Philodendron bipinnatifidum) e a taquara. Para o trançado
do arco são utilizados, além do cipó, o capim braquiária, a linha e o
barbante. Já foi mencionado que o cipó guaimbé está extinto na reserva e
só é utilizado quando trazido de outras aldeias da região. O caraguatá,
quando encontrado, é utilizado para fazer o cordão dos arcos. Na falta do
caraguatá, é empregado o barbante. As penas que adornam as peças são de
galinhas, tingidas com papel crepom, anilina e outras tintas compradas em
casas comerciais da cidade (MARQUES; ALVES, 2019, p. 207).

Em minha investigação também pude perceber que caule de palmeira, bambu, cordão
de caraguatá, cipó e penas coloridas são as principais matérias-primas encontradas na Aldeia
Jaguapirú e Aldeia Bororó- as flechas possuem tamanho aproximado de 150 cm como me

ɷɹɷ

mostrou a Nhandesy Dona Floriza Guarani Kaiowá no interior de sua casa de reza
(Oga/Opy).

IV. O fim da cerâmica Nhandeva Guarani- Berta Ribeiro também corroborou que a
cerâmica é a ³DUWH GH FRQIHFFLRQDU DUWHIDWRV FRP DUJLOD VXEPHWLGRV j FRPEXVWmR H DOWD
WHPSHUDWXUD´ 5,%(,52S  Em relação às funções dos artefatos cerâmicos na
vida dos povos indígenas, Willey (1987) enfatiza que eram confeccionados pelas etnias
indígenas como utensílios para conservar, preparar e a posteriori consumir alimentos sólidos
e líquidos. Muitas peças também tinham função cosmológica e ritualística, como aquelas
empregadas como urnas mortuárias. É de acordo com Paschoalick (2008), a cerâmica foi
imensamente produzida em outrora pelos Guarani, e na atualidade contemporânea tem sido
um recurso de grande relevância para identificação étnica em sítios arqueológicos.
Atualmente muitos sítios vêm sendo identificados em Mato Grosso do Sul, como demostram
os pesquisadores Kashimoto e Martins (2008):

Datações arqueológicas obtidas a partir de amostras coletadas na margem


sul-mato-grossense do rio Paraná, o baixo curso do Ivinhema, na atual
reserva dos índios Kadiwéu, ou ainda na margem do córrego Lalima,
pequeno afluente do rio Miranda, são evidências incontestes da produção
de cerâmica arqueológica, Tupiguarani ou Guarani em Mato Grosso do
Sul, nos séculos XVI, XVII e XVIII, as quais estratigraficamente, atestam
as sequências ocupacionais a partir de horizontes deposicionais pré-
coloniais (KASHIMOTO; MARTINS, 2008, p. 153).

Em minha pesquisa na Reserva Indígena de Dourados (RID), não encontrei nenhuma


cerâmica e, isso me chamou bastante atenção- no inicio acreditava que os Guarani Nhandeva
ainda produziam cerâmicas como antigamente, sobretudo, por que outras etnias as produzem
na atualidade como os Kadiwéu e os Kinikinau. Mediante isso, fui procurar saber- o por quê
dos Guarani não produzirem mais esses objetos milenar. Almires me disse que os Nhandeva
não encontram mais facilidades para produzi-las e, atualmente possuem outros prioridade,
sobretudo, pelo contexto de violências e violações que se encontram. Já o artista Karai
Guarani Jorge da Silva me relatou que ainda há várias pessoas na RID que sabem todos os
processos de produção da cerâmica. Frisou ainda que não existem mais madeiras apropriadas
ou adequadas para ser retiradas da mata para queimar e posteriormente produzir a cerâmica.
Disse que ser for confeccionado de qualquer maneira, a comunidade ou parentela pode ser
punido por Nhanderú Eté Tenondé. Já Karai Renato Guarani me disse que na RID não há
lugares adequados para guardar os materiais. Por fim, a historiadora Paschoalick também
percebeu isso em 2008: ³DOJXQV DVSHFWRV SRGHP WHU FRQWULEXtGR SDUD HVVH IDWR FRPR R

ɷɹɸ

conhecimento do metal, o deslocamento dos indígenas de suas aldeias tradicionais e o
confinamento em reservas- o novo modo de viver imposto aos Guarani pela sociedade
FDSLWDOLVWDFRQWULEXLXSDUDRDEDQGRQRGDSUiWLFDROHLUD´ 3$6&+2$/,&.S 

V. Os adornamentos Guarani: dentro e fora da RID- Para Berta Ribeiro (1988) adornos
são objetos utilizados para ornamentar o corpo indígena. Esse processo envolve diversas
matérias-primas, como recursos vinda da flora, da fauna, minerais e, inclusive, produtos
industrializados. Já no que tange a característica étnica, Paschoalick (2008) corrobora:

São adereços de uso ritual ou cotidiano e indicadores da condição etária,


sexual, social e étnica. São elaborados com materiais de origem vegetal,
cabaça, castanhas, bambu, lágrima de Nossa Senhora; animal, pêlos,
dentes, ossos, penas; mineral, granito, sílex, entre outros
(PASCHOALICK, 2008, p. 55).

No entender de Marques e Alves (2019, p. 2019), com esses materiais, são


produzidos objetos e artes como os colares, os cocares, os Tembetás, as pulseiras, as
braçadeiras, as tornozeleiras, as saias, os cintos e os brincos. Ainda nesse sentido as
pesquisadoras postulam:

De acordo com os artesãos guarani da reserva de Dourados, entre os


adornos mais produzidos atualmente estão os colares, as pulseiras, os
palitos para cabelo e os brincos. Na confecção desses objetos são
empregados a casca de coco, a taquara e variados tipos de sementes de
plantas nativas. Podem ser referidas as sementes de pau-brasil (Caesalpinia
echinata), de lágrima de nossa senhora (Coix lacryma-job), de pariri
(Arrabidaea Chica), de olho de cabra (Ormosia arbórea), de leucena
(Leucaena leucocephala), de saboneteira (Sapindus saponária) e de açaí
(Euterpe oleracea Mart.). (MARQUES; ALVES, 2019, p. 209).

Sobre à substituição de matérias-primas para a confecção de colares, Paschoalick


(2008, p. 60) afirma TXH ³R FRUGmR QR TXDO SDVVDP VHPHQWes era, tradicionalmente,
FRQIHFFLRQDGRGHILRGHFDUDJXDWiDJRUDVXEVWLWXtGRSHORILRGHQ\ORQRXOLQKD´3HQDVGH
Riguassú (galinha) também são utilizadas para dar variedades de cores, acrescentadas a
anilina e papel crepom. Sobre isso Dona Tereza, Dona Floriza, Dona Antonia, Dona Maria
foram unanimes de corroborar que no passado, que as tintas retiradas de plantas nativas- uma
delas trata-se de Catiguá (Trichilia emarginata). De acordo com Marques e Silva (ibidem),
o cacique Jorge da Silva cultiva matérias-primas como a cabaça (Crescentia cujete), utilizada
para fazer chocalhos, e o pariri (Arrabidaea chica), empregado na confecção de colares e
pulseiras. Quanto às sementes, o artista Guarani explica que todas devem ser colhidas na lua
cheia para não carunchar (MARQUES; ALVES, 2019, p. 2010). Nesse sentido, a artista
Guarani Nhandeva, que eu encontrei próximo ao Banco do Brasil- área adjacência a praça

ɷɹɹ

Antônio João em Dourados-MS, que ela procura produzir muitos brincos- isso porque é a
arte mais procuradas pelas mulheres da cidade. Ainda me disse que até há encomenda.

VI. Instrumentos musicais Nhandeva Guarani- No entender de Anthony Seeger, celebre


etnomusicólogo, antropólogo norte-americano (1987), a musica ou cantar sempre fez parte
GRUHSHUWRULRLQGtJHQDVHPWRGRVRVVHQWLGRV-iSDUD'DUF\5LEHLUR S ³DP~VLFD
e os instrumentos musicais se relacionam a aspectos da organização social e da cosmologia.
2 ULWR p LQYDULDYHOPHQWH XP HYHQWR PXVLFDO´ e %HUWD 5ibeiro (1988), classifica as
músicas/sons indígenas em quatro grupos: aerofones, cordofones, idiofones e
membranofones. Dessa forma, os aerofones são instrumentos que produzem som ou
harmonia conforme vibração do ar soprado no interior de um receptáculo, onde há
participação marcante dos instrumentos de sopro. Já os cordofones são instrumentos que
produzem som mediante a vibração de cordas. É os idiofones são instrumentos sonoros entre
os quais se classificam o Mbaraká e o bastão oco de ritmo. É por fim, os membranofones
são instrumentos dotados de caixa de ressonância (MARQUES; ALVES, 2019, p. 212).
Mediante isso Seeger indaga:

Os instrumentos musicais na América do Sul compartilham da importância


da música. São tidos, frequentemente, pelos nativos como objetos que
incorporam um poder identificado com diversas espécies de espíritos, seres
ou grupos de pessoas (SEEGER, 1987, p. 174).

Em minha investigação pude notar que as matérias-primas usadas para a elaboração


de instrumentos musicais são de origem vegetal, animal e mineral, dentre quais deparei com
a madeira, a taquara, o bambu, a cabaça e as sementes nativas. Dona Tereza Guarani
Nhandeva me disse que há duas maneiras de se fazer o Mbaraká (chocalho, bastão de ritmo,
cabaça) - primeiramente para utilizar-se nos rituais e posterior como objetos de vendas ou
comercialização. Sobre os cantos Guarani Nhandeva os texto clássico de Jakobson (1959) e
Severi (2014) me auxiliaram de maneira significativa- sobretudo os três elementos
vinculados a tradução: intralinguística, interlinguística e a transmutada. Dessa forma, os
autores postulam:

$ WUDGXomR LQWUDOLQJXtVWLFD RX ³UHIRUPXODomR´ p XPD LQWHUSUHWDomR GH


VLJQRV YHUEDLV SRU PHLR GH RXWURV VLJQRV GD PHVPD OLQJXDJHP ´³ a
tradução interlingual ou tradução adequada é uma interpretação de signos
YHUEDLVSRUPHLRGHDOJXPDRXWUDOLQJXDJHP´H³Wradução intersemiótica
ou transmutação é uma interpretação de signos verbais por meio de sinais
de sistemas de signos não verbais (JAKOBSON, 1959, 233, apud SEVERI,
2014, p. 46).

ɷɹɺ

Apesar de não ser meu objetivo realizar uma investigação acerca da etnomusicologia
Guarani, compreendo que seja importante destacar, mesmo que seja de maneira conceitual.
Já no entender de Deise Lucy Oliveira Montardo (2018) - a principal pesquisadora da
etQRPXVLFRORJLD *XDUDQL QD DWXDOLGDGH ³Rs cantos e danças constituem caminhos que
permitem aos Guarani o encontro com os seres espirituais, com seus heróis criadores e visitas
a aldeias divinas´ 0217$5'2 S $SHVTXLVDGRUDDLQGDFRUURERUDTXHRs
Guarani cantam muitas vogais, o que foi percebido por diversos estudiosos, como cantos
sem letras- que seria um grande equívoco. Portanto, numa interpretação mais detalhada, dos
mesmos cantos executados em dias distintos, percebe-se TXHRV³DVHVLVH RV´HVWmRVHPSUH
no mesmo momento da melodia. (idem). Por fim, cabe destacar o relato de Dona Tereza
Guarani, que o cantar para os Guarani significa renovar a alma, o espirito, conectar-se com
as divindades e entidades cosmológicas em múltiplas possibilidades, sobretudo de sonhos,
esperanças e memórias. Assim em minha pesquisa, pude deparar em diversos momentos,
que na hora da produção das artes, artefatos e objetos os Guarani cantam.

11. Olhares (in) conclusos sobre arte e cosmovisão ameríndia

Nos dias atuais o poder econômico das famílias tem outra fonte geradora de recursos,
não se concentram mais nas roças, na produção de alimentos. Hoje está diretamente ligada
a um trabalho assalariado de um ou mais membros da família. O homem e a mulher
geralmente trabalham fora e, por conseguinte, todos os demais membros da casa que estão
aptos a vender sua força de trabalho, nas fazendas ou usinas de álcool, prefeitura e empresas
prestadoras de serviços. Os programas de assistência social do governo, assim como o
auferido pelos aposentados, contribuem para a renda das famílias. Nesse quadro, muitas
mulheres assumiram a chefia da família.

A superpopulação tem inviabilizado a agricultura de subsistência, por falta de espaço


físico. A terra se tornou pequena, escassa, ainda há o agravante de que a mesma (e)praguejou
e só produzindo se usar as novas tecnologias, como os maquinários agrícolas. As atividades
remuneradas têm enfraquecido a rede de solidariedade nas relações de parentesco, já não há
reciprocidade, mas sim que parentes próximos trabalham nas roças dos outros parentes que
são assalariados, em troca de pagamento, potencializando o uso do dinheiro e do consumo.
+RMHIRUPDQGRXPDFODVVHGRVTXHWrPPXLWREHQVRXRVSDUHQWHV³ULFRV´HVWHVSRssuem
um bom emprego, são mais escolarizados, têm estabilidade no emprego e que passam a ser
DVVHGLDGRVSHORVTXHQmRWrPTXDVHQDGDRXRVFKDPDGRVSDUHQWHV³SREUHV´2FDSLWDOHR

ɷɹɻ

acúmulo de riquezas se convertem em poder político, fomentando intrigas, inimizades,
fuxicos, podendo criar um poder paralelo e quase sempre o faz. Isso pode significar o
rompimento com lideranças locais, marcado pela avidez do poder aquisitivo, na incessante
imitação do modo de vida do não indígena, para parecer moderno e interligado com o mundo
exterior, querendo demonstrar prestígio dentro e fora da aldeia.

Hoje a comunidade vive inúmeros problemas, entre os quais a proximidade com a


cidade, que propiciou o aparecimento de bocas de fumo, vendas de drogas. Cada vez mais
adolescentes são viciados, aliciados para o tráfico; os casos de violência doméstica se
acentuam; falta saneamento básico, atendimento de saúde de qualidade; educação de
qualidade nas escolas da aldeia; o fornecimento de água é insuficiente; as vias de
comunicação quase intransitáveis. Enfim, o descaso do poder público para com as aldeias é
gritante.

Almeja-se autonomia e penso que ela se concretiza em dois momentos distintos: a)


do ponto de vista legal nasce com a previsão Constitucional inserida nos textos da
Constituição Federal de 1988, em especial o art. 231, onde se insere os dispositivos basilares
promovedores do princípio e do reconhecimento da autonomia. Em tela destacam-se as
previsões delineadoras do reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças
e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente são ocupados pelos povos
indígenas. Cabendo ao Estado o dever de demarcar e proteger essas terras indígenas que
pertencem à União; b) ao reconhecer e determinar o respeito à organização social e às terras
de cada povo, reconhece também a pluralidade jurídica, mais que isso valida os efeitos do
Direito vigente internamente, em cada comunidade.

Nessa fronte de lutas, cada povo se valerá da Constituição Federal para fazer valer o
seu Direito, interpretando de acordo com os seus valores culturais e pelo que dita a sua
cosmologia. Nesse âmbito o Direito deve ser buscado nas mais diversas frentes de luta, seja
no campo da saúde, alimentação, educação, proteção e preservação da natureza, seja no
âmbito dos ecossistemas e biomas quase sempre ameaçados pela ocupação desordenada do
entorno das terras indígenas.

Assim, a alteridade deve ser entendida como a capacidade de conviver com o


diferente, permitindo olhar a partir das diferenças e reconhecendo o outro como sujeito de
pleno direito. É qualificar-se para o diálogo intercultural, entendendo que o ser humano vive
e age a partir de um determinado código, numa rede de símbolos, caminhos e possibilidades.

ɷɹɼ

Entender que toda cultura é dinâmica, que a vida social é imbricada a ponto de que não é
possível análises isoladas, pois aí existe uma rede de totalidades. Não basta o
reconhecimento da diferença, é necessário prover formas de coexistência considerando a
alteridade: a ideia do relativismo, multiculturalismo, direitos humanos, remete às identidades
coletivas na perspectiva da construção de novos paradigmas que, de fato, construa a
cidadania, efetivando o reconhecimento da diferença e do direito à diferença e de ser
diferente.

Assim o indígena não se resigna mais a ser objeto de especulações epistemológicas,


acadêmicas e sim reclama o protagonismo político, sua participação no momento de discutir
as políticas públicas, é o empoderamento e entendimento de epistemologias para solução de
seus novos/ velhos problemas.

2³YHOKR´HR³QRYR´FRQYLYHPQDVUHVHUYDVLQGtJHQDVDWHLDGHVLJQLILFDGRVHQUHGD-
se no saber local (GEERTZ, 2000), dando forma, fluidez, porosidade, permeabilidade,
flexibilidade as fronteiras culturais, reinterpretando, ressignificando, reelaborando a sua
cultura, rede social, modo de pensar, ver e agir, conforme a situação o exigir, legitimando-a
ou não. Não está passivo, aceitando o papel de vítima, o paradigma da aculturação, de visões
estereotipadas, de sujeitos de segunda categoria, de incapaz. O século XXI permite ir muito
DOpPGRLPDJLQDGRWDQWRTXHR³tQGLRGHYHUGDGH´KRMHHVWiQDVXQLYHUVLGDGHVID]SDUWH
das redes sociais da internet, twitando e trocando informações via facebook, netizado.
Continuamos na luta com a esperança de dias melhores são possíveis e estes podem estar
próximos, estamos nos empoderando de armas muito mais poderosas do que o velho e bom
arco e flecha, que o diga o poder das palavras.

Antropologia da arte, etno-estética, arte etnológico ou ainda histórico etnológico


artístico ameríndio são todos os termos usados para descrever o que constitui um estudo
antropológico das criações humanas, principalmente de viés plástica, visual, gestual,
musical, histórico e iconográfico (CÓQUET, 2001). Por assim dizer, o delineamento deste
campo particular da antropologia tem imediatamente problemas de definição que revela a
variedade de termos que têm sido usados até agora para definir ou contextualizar, e que afeta
o objeto de sua reflexão chamada torre por sua vez, e de acordo com os tempos, arte "tribal",
"primitiva", "tradicional", "etnológica", "popular"; tais qualificativos trancaram, no passado.
O termo "antropologia da arte" chama duas questões complementares, uma relativa aos
domínios da expressão considerada, a outra ao que entendemos por arte. Na linguagem
cotidiana, a palavra "arte" é geralmente usada para designar imagens figurativas ou não-
ɷɹɽ

figurativas, em duas ou três dimensões e conjuntos, de todos os povos do mundo; ele
inscreveu uma diferença entre os artefatos utilitários pertencentes à indústria artesanal e
outros, onde a marca de uma significação adicional social, simbólica, religiosa, estética, etc.

Acredito que a origem maussiana da proposição de que a antropologia da arte é uma


teoria da arte que considera objetos como pessoas. Em sua teoria da troca, Mauss analisa
benefícios ou presentes como pessoas, ou como suas extensões. Dessa forma, podemos
muito bem imaginar que é possível considerar objetos de arte como pessoas. Na verdade,
pode-se argumentar que, desde a teoria da troca de Mauss é a referência ou o protótipo da
teoria antropológica, que seria suficiente para a teoria antropológica da arte edifício uma
teoria semelhante à de Mauss, mas que se relacionaria com objetos de arte e não com
benefícios. A teoria do parentesco de Lévi-Strauss é semelhante à de Mauss; bastaria
substituir o termo serviço por mulheres; a teoria antropológica da arte seria semelhante à de
Mauss, onde benefícios seriam substituídos por objetos de arte. A ideia não é parodiar a
teoria que me proponho explicar, mas faço esse paralelo para orientar o leitor sobre minhas
intenções. Desejo simplesmente mostrar que uma teoria antropológica, qualquer que seja seu
objeto, é antropológica apenas na medida em que se assemelhe, em certos pontos
fundamentais, a outras teorias antropológicas; caso contrário, o termo antropológico não
teria sentido. Meu propósito é fazer avançar uma teoria antropológica da arte que se
assemelhe a outras teorias antropológicas, não apenas a de Mauss, mas também de muitas
outras. Minha principal crítica às teorias da estética intercultural e semiótica da arte
etnográfica é que seus princípios são questões da estética ocidental e da teoria da arte, e não
de forma de antropologia autônoma. Talvez não exista uma teoria da arte realmente útil que
possa ser baseada ou derivada de uma teoria antropológica existente, mas desde que
nenhuma tentativa tenha sido feita para construir uma verdadeira teoria antropológica da
arte. arte, a questão não pode ser resolvida.

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