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04/08/2021 Hugo e Ricardo de São Victor - Fórum Sapientia

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Autor Tópico:   Hugo e Ricardo de São Victor

Flavio Jose postado em 01-01-2001 08:30 IP: Logged


Lindolfo
Membro
Mensagens: 207

Hugo de São Victor junto com seu irmão [em Cristo] Ricardo, famosos
Registro: Jun 2000 mestres medievais, deixaram-nos esplêndidos comentários e sermões.

Colocarei em breve alguns comentários vitorinos, enquanto isto deixo-nos


em companhia do texto do professor Olavo de Carvalho.

Um abraço a todos!

----------------------

LIÇÃO DE TEOLOGIA

Um amigo meu, cristão devoto e estudioso, preparou uma caprichada


tradução dos Comentários de Ricardo de S. Vítor ao Apocalipse. Teólogos
e filósofos, Ricardo e seu confrade Hugo, ambos da abadia de S. Vítor na
França, escocês o primeiro, saxão o segundo, são daqueles pensadores
para os quais o qualificativo de “gênios” é micharia. Não há gênio pessoal
que explique os lampejos de pura sabedoria celeste. Os dois escreveram
pouco. Mas esse pouco está entre as jóias supremas do tesouro espiritual
da Igreja e da Humanidade. A tradução foi enviada a uma editora católica
e daí repassada a um teólogo para apreciação. Resposta do teólogo:

“Esta tradução tem a sua utilidade e importância como livro


documentário para fins de pesquisa por acadêmicos... Mas, como livro na
linha pastoral para o povo simples de hoje, infelizmente perdeu o seu
valor... É produto da mentalidade do século 12...”

E por aí vai, inclusive recomendando, em lugar do perempto Ricado de S.


Vítor, a obra Como Ler o Apocalipse: Resistir e Denunciar, escrita por um
sr. José Bortolini. Não li essa obra, mas, pelo título, atualidade não lhe
falta, já que a palavra “denunciar” faz vibrar a corda mais sensível dos
corações midiáticos, apelando àquilo que a militância do escândalo
considera o primeiro e mais alto dever moral do homem.

Esse parágrafo é cheio de ensinamentos, dos quais, até onde alcançam


as minhas luzes, pude apreender os seguintes:

1) A teologia católica, em vez de se desenvolver por acumulação,


somando as descobertas de hoje às dos séculos passados como o fazem
todas as demais teologias – muçulmana, judaica, vedantina ou budista –,
evolui por substituição, colocando o moderno no lugar do antigo,
exatamente como se faz na moda indumentária ou nos catálogos das
gravadoras de rock.

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2) O catolicismo também se distingue das demais religiões porque,


enquanto estas dão maior credibilidade às interpretações mais próximas
da fonte originária da revelação, os católicos, inspirados pelo espírito do
progresso, tanto mais se aprofundam na compreensão da mensagem de
Jesus Cristo quanto mais se afastam d’Ele no tempo e mais se esquecem
do que os santos disseram d’Ele no século 12, isto para não falar do 11,
do 10.º e de outros mais antigos ainda.

3) Por força talvez do avanço tecnológico, o habitante das grandes


cidades de hoje tornou-se mais “simples” do que os lavradores,
boiadeiros, artesãos e fiandeiras do século 12, todos eles sofisticados e
eruditíssimos leitores de Ricardo de S. Vítor.

4) As visões espirituais dos sábios, dos santos e profetas refletem menos


a luz da eternidade do que as limitações mentais da sua época histórica,
sendo tão datáveis e perecíveis quanto as cotações da bolsa ou os
pareceres dos teólogos de aluguel. Por força desse implacável desgaste
entrópico, as palavras dos próprios apóstolos, remotas de 12 séculos em
relação às de Ricardo de S. Vítor, empalidecem ainda mais do que estas
ante a majestosa atualidade evangélica do sr. Bortolini.

Não é maravilhoso que a exegese católica da Bíblia possa ser tão inerme
ante a ação desgastante do tempo e, não obstante, estar sempre subindo
para aqueles patamares cada vez mais altos de compreensão que, até o
momento, culminam na pessoa do sr. Bortolini? Ó santíssima evolução!,
proclamaria, em êxtase, o pe. Teilhard. Joãozinho e Maria, atrasados
pagãozinhos, precisavam deixar sinais no chão para se orientar na
floresta. Os católicos foram abençoados com o dom de tanto mais saber
onde estão quanto mais se esquecem do caminho percorrido. Não me
perguntem como isso é possível. É um novo mistério da fé, substituído,
pela moderna teologia, àqueles admitidos nos tempos bárbaros de
Ricardo de S. Vítor. Convém denominá-lo, com a devida unção, “mistério
da historicidade”, fazendo a festa de sua comemoração coincidir, no
calendário litúrgico, com o natalício de S. Antonio Gramsci, padroeiro
desse gênero de coisas.

O que não é mistério de maneira alguma é que uma Igreja que se


rebaixa a esse ponto ante o espírito mundano, chegando a desprezar os
ensinamentos de seus mestres porque não estão atualizados com a
última versão dos Pokemons, corre o risco de terminar como aquela
prostituta velha do Livro de Ezequiel, que, já não encontrando clientes
que lhe paguem, tem de lhes dar dinheiro para que a possuam.

(São Paulo, Jornal da Tarde, 2 de março de 2000)

------------------
Flávio José Lindolfo

[OBS: Esta mensagem foi editada por Flavio Jose Lindolfo em 01-01-2001 @ 08:32]

        

Soraia postado em 01-01-2001 09:39 IP: Logged


Malafaia
Gomes Aqui vai um link com obras sobre Hugo e Ricardo de São Vitor e outros
Membro
autores, para quem quiser conferir...

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Mensagens: 509

Registro: Jan 1999


Soraia

http://www.accio.com.br/Nazare/1946/sumario.htm

[OBS: Esta mensagem foi editada por Soraia Malafaia Gomes em 01-01-2001 @ 09:42]

        

Flavio Jose postado em 02-01-2001 06:02 IP: Logged


Lindolfo
Membro
Mensagens: 207

O PAI NOSSO E OS VÍCIOS CAPITAIS


Registro: Feb 2000
Hugo de São Victor deixou-nos esplêndidos opúsculos, comentários e
sermões, além de sua famosa obra "Didascalion".

Um de seus muitos opúsculos trata dos Cinco Septenários que haveria no


tesouro da Igreja: os sete pedidos do Pai Nosso; os sete vícios capitais;
os sete dons do Espírito Santo; as sete virtudes e, por fim, as sete bem-
aventuranças.

Sempre falando com poesia, ele nos explica que os sete vícios capitais
são comparáveis aos sete rios de Babilônia, que espalham todo o mal,
gota a gota, por toda a terra, pois deles defluem todos os pecados. Por
isso, lembra o mestre, a Escritura nos diz : "Junto aos rios de Babilônia
nós nos assentamos e choramos lembrando-nos de ti, ó Sion"(Sl
CXXXVI,1).

Hugo de São Victor coloca os vícios capitais em uma certa ordem lógica,
a fim de relacioná-los com os sete pedidos do Pai Nosso. Assim ele
ordena os vícios capitais: soberba, inveja, ira, preguiça ou tristeza,
avareza, gula e luxúria.

O primeiro vício capital, causa primeira de todos os nossos males


espirituais, é a SOBERBA. Por esse vício atribuímos a nós mesmos, ao
nosso próprio ser, a causa do bem existente em nós. Pela soberba
deixamos de reconhecer a Deus como fonte de todo o bem. Ao fazer isso,
o homem deixa de amar o Bem em si mesmo, para amar o bem
enquanto existe nele próprio, porque existe nele. Dessa forma, o homem
rompe a sua união com a fonte do bem. Condenando a maldade do
orgulho, exclama o mestre:
"Ó peste de orgulho, que fazes tu aí? Por que persuadir o riacho a se
separar de sua fonte? Por que persuadir o raio de luz a romper sua
ligação com o Sol? Por que, senão para que o riacho, cessando de ser
alimentado pela fonte, seque, e que o raio de luz, cortada sua união com
o Sol, se converta em treva? Por que, senão para que assim ambos, no
mesmo instante em que cessam de receber o que ainda não têm, percam
imediatamente aquilo mesmo que já têm?"

Assim é o homem soberbo. Arvorando-se como causa do bem que Deus


lhe deu graciosamente, atribui-se uma honra que só cabe a seu Criador.
O soberbo rouba a glória de Deus, e fazendo isso desencadeia sobre si
todos os males. A soberba, portanto, nos despoja do próprio Deus. Não é
por acaso que Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Pilatos perguntou para
Cristo: "Não sabes que tenho poder de te condenar ou de te perdoar?", e

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Nosso Senhor respondeu: "Tu não terias esse poder se não te fosse dado
do alto". É do alto que vem o poder, porque todo poder vem de Deus.

A primeira petição do Pai Nosso, portanto, suplica que Deus nos conceda
a graça de reconhecê-Lo sempre como a fonte de todo o bem: "Pai nosso
que estais no céu, santificado seja o vosso nome". Isto é, que Deus seja
glorificado como causa de todo bem existente em nós e em todas as suas
criaturas.

O riacho deve ser grato à fonte que o alimenta. O raio de luz deve
reconhecer o Sol como causa de seu brilho. Só assim continuarão a
correr e a iluminar.

Na primeira petição da oração que nos foi ensinada por Jesus Cristo, a
própria Sabedoria encarnada, rogamos que Deus nos conceda a
compreensão e o reconhecimento de Sua excelência e transcendência, e
que assim, por meio do dom do temor de Deus Altíssimo, sejamos
humildes e curemos a enfermidade de nosso orgulho.

O orgulho é em nós uma doença grave que gera sempre outros males e
enfermidades. Ele nos faz amar o bem que Deus nos concedeu como se
fosse nosso, produzido, em nós, por nós mesmos. É o orgulho que faz o
riacho julgar-se fonte, e o raio de luz julgar-se o Sol.

Quando o homem se deixa dominar pela soberba, ele passa a amar o


bem que recebeu não porque é bem, mas só porque é seu. E, quando vê
o mesmo bem existindo em outro homem, não o ama enquanto bem,
mas o detesta porque está em outro. Ele quereria que aquele bem não
existisse no outro, porque julga que aquele bem só deveria existir nele
mesmo, falsa fonte do bem. Vendo o bem, que julgava ser seu, em outro
homem, o orgulhoso fica então triste e amargo.

Tal tristeza amarga se chama INVEJA, e é a segunda doença que acomete


o homem, o segundo vício capital.

A soberba gera sempre a inveja do bem que Deus concedeu a outrem.


Desse modo, ela nos separa e despoja de nossos irmãos, assim como a
soberba nos despojara e separara de Deus, nosso Criador. E isso é bem
justo, porque assim como o soberbo se regalara desregradamente com a
doçura de possuir o bem, agora ele se amargura ao ver o bem no outro.

Quanto mais o homem soberbo se vangloria de seu bem, mais ele se


atormenta com o bem nos outros. A inveja rói o soberbo e amarga a sua
vida.

Se o homem soberbo amasse corretamente o bem que lhe foi dado em


grau limitado, ele amaria sem limite a fonte de todo o bem, que o possui
infinitamente. Amando então o Bem em si mesmo, ele amaria o bem que
visse em qualquer outro homem e se alegraria com a virtude alheia,
porque amaria Deus no outro.

Foi para combater este segundo vício capital que o Divino mestre nos
ensinou a pedir, em segundo lugar no Pai Nosso, "Venha a nós o vosso
reino".

Porque o Reino de Deus é a salvação dos homens; porque Deus reina


num homem quando este lhe está unido pela fé e pela caridade, a fim de

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que, na eternidade, esteja para sempre unido a Deus pela visão beatífica.

Quando pedimos a Deus que Ele reine em todas as almas, Ele nos
concede o dom da piedade, que nos torna benignos, desejando também
para os outros o bem que desejamos para nós mesmos.

A inveja, por sua vez, gera em nós uma nova doença. Tal como a soberba
nos persuadira de que somos a causa do bem que temos, e a inveja nos
causa a tristeza de ver o bem nos outros, em seguida a inveja nos leva a
considerar que Deus é injusto ao dar o bem - que pretendíamos fosse
apenas nosso - a nosso irmão.

Consideramos então que o Criador reparte mal seus bens, e que nos fez
injustiça. Por isso, caímos em cólera contra Ele. A IRA é então a filha da
inveja. Ela nos leva a revoltar-nos contra Deus, enquanto justo
distribuidor dos bens.

A soberba despoja o homem de Deus. A inveja o separa e despoja dos


demais homens. A cólera o despoja de si mesmo, fazendo-o perder o
controle e o domínio do próprio ser. Porque o colérico tem raiva de Deus,
que acusa de repartir injustamente seus bens, e se enraivece contra si
mesmo, porque vê que não possui todo o bem e percebe seus defeitos e
limitações.

A cólera leva então o homem a ter raiva de Deus, dos outros e, enfim, de
si mesmo. Com raiva de si mesmo, o homem, doente pelo vício da cólera,
começa a detestar até o bem que tem em si.
Por todas estas razões é que Nosso Senhor colocou como terceira petição
do Pai Nosso "Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu".

É a conformação com a vontade de Deus que nos permite vencer o vício


da cólera. Quando pedimos sinceramente a Deus, no Pai Nosso, que nos
conformemos com a sua Santíssima Vontade, Ele nos concede então o
dom da Ciência, através do qual somos instruídos e compreendemos que
os males que nos advém são decorrências da justiça e de um castigo
misericordioso de nossos pecados. Compreendemos que devemos aceitá-
los com paciência e não com revolta. E compreendemos ainda que os
bens alheios são fruto da generosa misericórdia e justiça de Deus, a qual
visa sempre a sua maior glória e também o nosso maior bem.

O colérico, pelo contrário, não tendo o dom da Ciência, não reconhece


que mereceu o castigo que sofre, e se revolta. Pelo contrário, quem tem
o dom da Ciência tudo suporta e é consolado.

Caindo nesta terceira enfermidade, a da cólera, o homem já não possui


então, em si, nenhum motivo de alegria nem de consolação. Como não
quis tirar do bem alheio a alegria, o invejoso caiu na tristeza e no auto-
suplício da cólera, que o flagela depois que foi despojado de Deus, do
próximo e de si mesmo.

Não encontrando mais em si nem alegria nem consolação, o homem


colérico cai na tristeza. Esse era o nome que os medievais davam à
PREGUIÇA, porque o vício capital da preguiça leva a ter tristeza com o
bem que recebeu de Deus, visto que esses bens nos trazem obrigações.

Os vícios capitais anteriores, como vimos, fazem o homem perder todo o


amor ao bem que Deus lhe deu. Agora, dominado pela cólera, ele já não

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tem alegria nem no próprio bem, e este bem ainda lhe exige
cumprimento de deveres, porque a quem muito foi dado, muito será
pedido. Desconsolado e triste, o homem soberbo, invejoso e colérico
lamenta as obrigações que trazem os bens que Deus lhe havia dado, e
tem pouca vontade de trabalhar na vinha de Cristo. É da cólera que nasce
a preguiça ou tristeza. O colérico preferiria que Deus não lhe desse bem
algum, para não ter mais obrigações. A tristeza ou preguiça ata o homem
na coluna da inércia e o fustiga de tristeza.

Ora, o que nos dá força para trabalhar com alegria e incansavelmente na


vinha do Senhor é o pão de cada dia. Por isso, para combater a falta de
generosidade no serviço de Deus, Jesus nos faz pedir no Pai Nosso "O
pão nosso de cada dia nos dai hoje".

Isto é, que Deus nos conceda a graça e a força necessários para cumprir
nosso deveres de cada dia. Que Deus nos dê suas graças e força para
cumprirmos os deveres que elas nos acarretam. E esta força de atuar é
que traz ao homem a alegria do dever cumprido.

Com "o pão nosso de cada dia", o que pedimos, então, é o dom da
Fortaleza, o qual nos dá força e paciência para enfrentar as dificuldades,
trabalhos e cruzes de nossa vida de cada dia. É o dom da Fortaleza que
produz em nossa alma a fome e a sede de justiça de que necessitamos
para ir ao céu.

Na quarta petição pedimos, portanto, a fome de justiça e o pão que a


sacia.

E que rio de maldade vai ser gerado pela preguiça ou tristeza?

Da tristeza nascerá a vontade de buscar consolação nos bens exteriores,


porque aquele que não encontra bem ou alegria dentro de si procurará
consolação fora de si.

Da preguiça virá portanto a AVAREZA, a cobiça desmesurada de bens


materiais. Quem não tem fome e sede de justiça terá fome e sede de
ouro, e fará da fortuna a sua justiça. E à ausência de consolação e de
alegria interiores se somará a inquietude pela aquisição e pela
conservação dos bens materiais, que só trazem falta de paz, inquietação,
apreensão de males e perturbação de espírito.

A sede de bens materiais somente cresce com a posse deles, e jamais o


homem estará saciado pela riqueza. A riqueza é uma água que faz
crescer sempre mais a sede por ela.

Para combater essa miséria e essa quinta doença - tão baixa - da alma,
Cristo nos mandou que pedíssemos, em quinto lugar: "Perdoai as nossas
dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores". Aliás no Pai
Nosso, há uma tradução infeliz que fez introduzir-se o costume de dizer:
perdoai as nossas ofensas. Ora, o texto latino diz: "débita" que não pode,
de modo algum, ser entendido como "ofensas". Devemos restaurar o
costume de dizer: perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos
aos nossos devedores, conforme Dom Lourenço Fleichman OSB.

Pois é bem justo que quem não é avarento no que lhe é devido não seja
também inquietado pelo que deve. O misericordioso com os seus
devedores alcançará misericórdia para si. E quando pedimos a Deus o

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perdão de nossas dívidas, no mesmo grau em que estamos dispostos a


perdoar o que se nos deve, o que pedimos e recebemos é o dom do
Conselho.

Por esse dom do Espírito Santo sabemos e temos força para exercer de
bom coração a misericórdia para com quem nos ofende, e do modo mais
conveniente, e na hora oportuna, para lhes fazer bem em troca do mal
que nos deram.

Do rio vicioso da avareza, caso ele não seja vencido em nós pela ação da
graça, nascerá um rio mais lamacento ainda, que é o rio da GULA. E é
lógico que buscando os bens inferiores, o homem seduzido pelas riquezas
- nelas não encontrando verdadeira consolação, mas só ainda maior
inquietação - procure então num bem inferior, que está nele mesmo,
aquilo que os bens inferiores externos não lhe puderam dar.

Ele busca então o prazer dos sentidos, e em primeiro lugar o prazer do


comer, visto que todo homem, precisando alimentar-se, necessariamente
tem que ser tentado pela gula.

Esse vício seduz o homem e o reduz a um nível inferior ao dos animais.


Aquele homem, pois, que quis se igualar a Deus colocando-se
orgulhosamente como causa do próprio bem, cai agora abaixo dos
animais, que só comem o que lhes é necessário.

Para combater este sexto e tão baixo mal, na oração dominical, Cristo
nos ensina a pedir : "Não nos deixeis cair em tentação".

Ressalto: note-se bem que não se pede para não ter a tentação da gula.
Visto que é necessário que o homem coma, todo homem estará exposto
à tentação do comer desregradamente. A gula explora o apetite natural
de subsistência, levando-nos ao excesso. A pretexto de necessidade, a
gula nos induz a comer irracionalmente.

Por isso, para combatê-la, pedimos a Deus, na sexta petição do Pai


Nosso, que nos conceda o dom da Inteligência. Porque é o apetite da
palavra de Deus que contém o homem na justa medida do apetite do pão
material, pois "nem só de pão vive o homem". Mas só entende isso quem
tem o espírito de Inteligência, que faz compreender a superioridade dos
bens espirituais sobre os materiais, fazendo o homem vencer a gula pelo
jejum e abstinência, e a avareza acumuladora pela confiança na
Providência.

É o espírito de Inteligência que clarifica a visão interior do homem pelo


conhecimento da palavra de Deus, que age como um colírio no olho da
sabedoria.

Seduzido pelo rio lamacento da gula, o homem pecador é arrastado ao


pântano final, onde fica atolado, sujo e preso: a LUXÚRIA escravizadora.

Quando o homem se entrega ao prazer da gula, a sua alma se torna débil


e já não consegue dominar o ardor das paixões carnais. Caindo na
luxúria, ele fica escravizado, porque nenhuma paixão tem maior poder de
domínio sobre o homem do que a impureza. Escravo dos amores
impuros, o homem jaz na servidão do demônio, da qual dificilmente se
liberta, a não ser pela oração e penitência.

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04/08/2021 Hugo e Ricardo de São Victor - Fórum Sapientia

Este é o sétimo e fétido rio dos vícios de Babilônia, do qual, no Pai Nosso,
se pede apropriadamente no Pai Nosso a libertação: "Livrai-nos do mal".

É bem natural que o homem escravizado suspire e implore por sua


liberdade. E a sétima petição do Pai Nosso nos implora de Deus Altíssimo
o dom da Sabedoria, que torna realmente o homem livre .

Ora, a palavra sabedoria tem a mesma raiz de sabor. Movida pela graça e
sentindo o gosto da Sabedoria, a alma se liberta da escravidão dos
prazeres materiais e pode, enfim, alçar vôo para contemplar a Deus.

Portanto, é a doçura interior e espiritual que dá ao homem a força de


vencer a volúpia mentirosa dos sentidos.

Só então, na posse da Sabedoria e libertada dos vícios, terá a alma a paz


de Cristo, que não é a deste mundo.

-------------------

Este esboço rudimentar refere-se a uma das exegeses de Hugo de S.


Victor. Em breve colocarei algumas outras dele e de seu confrade Ricardo
de S. Victor.

Um abraço a todos, e rezemos o “Pai Nosso” cônscios do que ele


significa!

------------------
Flávio José Lindolfo

[OBS: Esta mensagem foi editada por Flavio Jose Lindolfo em 03-01-2001 @ 03:26]

        

Fabio Ulanin postado em 25-01-2001 17:25 IP: Logged


Membro
Mensagens: 29

Registro: Jan 1999 caros participantes:

Solicito uma informação: onde conseguir as obras de Hugo de São Vitor?

Fabio

        

Flavio Jose postado em 17-02-2001 01:48 IP: Logged


Lindolfo
Membro
Mensagens: 207

Caro Fábio,
Registro: Jun 2000 Salve Maria.

é difícil encontra as obras de Hugo e Ricardo de S. Vitor. A última vez que


li alguma obra impressa foi a do mestre Hugo, mas se encontrava em
xerox e em espanhol. O link que a Soraia colocou, encontra-se com
algumas obras pedagógicas e teológicas destes "monstros" da
humanidade. Vale a pena lê-los, imprimi-los, estudá-los.
Qualquer coisa, caso encontre-os, deixarei um aviso no fórum.

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04/08/2021 Hugo e Ricardo de São Victor - Fórum Sapientia

Aí abaixo vai alguma anotações de Hugo de S. vitor - vestígios de suas


aulas.

Um abraço!

***********

OPÚSCULO SOBRE O MODO DE APRENDER E DE MEDITAR

( Hugo de São Vitor )

A humildade é necessária ao que deseja aprender.

A humildade é o princípio do aprendizado, e sobre ela, muita coisa tendo


sido escrita, as três seguintes, de modo principal, dizem respeito ao
estudante.
A primeira é que não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma
escritura.

A segunda é que não se envergonhe de aprender de ninguém.

A terceira é que, quando tiver alcançado a ciência, não despreze aos


demais.

Muitos se enganaram por quererem parecer sábios antes do tempo, pois


com isto envergonharam-se de aprender dos demais o que ignoravam.
Tu, porém meu filho, aprende de todos de boa vontade aquilo que
desconheces. Serás mais sábio do que todos, se quiseres aprender de
todos. Nenhuma ciência, portanto, tenhas como vil, porque toda ciência é
boa. Nenhuma Escritura, ou pelo menos, nenhuma Lei desprezes, se
estiver à disposição. Se nada lucrares, também nada terás perdido. Diz,
de fato, o Apóstolo:

"Omnia legentes, quae bona sunt tenentes". (I Tess. 5)

O bom estudante deve ser humilde e manso, inteiramente alheio aos


cuidados do mundo e às tentações dos prazeres, e solícito em aprender
de boa vontade de todos. Nunca presuma de sua ciência; não queira
parecer douto, mas sê-lo; busque os ditos dos sábios, e procure
ardentemente ter sempre os seus vultos diante dos olhos da mente,
como um espelho.

Três coisas necessárias ao estudante.

Três coisas são necessárias ao estudante: a natureza, o exercício e a


disciplina.
Na natureza, que facilmente perceba o que foi ouvido e firmemente
retenha o percebido.

No exercício, que cultive o senso natural pelo trabalho e diligência.

Na disciplina, que vivendo louvavelmente, componha os costumes com a


ciência.

Prime pelo engenho e pela memória.

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04/08/2021 Hugo e Ricardo de São Victor - Fórum Sapientia

Os que se dedicam ao estudo devem primar simultâneamente pelo


engenho e pela memória, ambos os quais em todo estudo estão de tal
modo unidos entre si que, faltando um, o outro não poderá conduzir
ninguém à perfeição, assim como de nada aproveitam os lucros onde
faltam os vigilantes, e em vão se fortificam os tesouros quando não se
tem o que neles guardar.
O engenho é um certo vigor naturalmente existente na alma, importante
em si mesmo.

A memória é a firmíssima percepção das coisas, das palavras, das


sentenças e dos significados por parte da alma ou da mente.

O que o engenho encontra, a memória custodia.

O engenho provém da natureza, é auxiliado pelo uso, é embotado pelo


trabalho imoderado e aguçado pelo exercício moderado.

A memória é principalmente ajudada e fortificada pelo exercício de reter


e de meditar assiduamente.

A leitura e a meditação.

Duas coisas há que exercitam o engenho: a leitura e a meditação.


Na leitura, mediante regras e preceitos, somos instruídos pelas coisas
que estão escritas. A leitura é também uma investigação do sentido por
uma alma disciplinada.

Há três gêneros de leitura: a do docente, a do discípulo e a do que


examina por si mesmo. Dizemos, de fato: "Leio o livro para o discípulo",
"leio o livro pelo mestre", ou simplesmente "leio o livro".

A meditação.

A meditação é uma cogitação frequente com conselho, que investiga


prudentemente a causa e a origem, o modo e a utilidade de cada coisa.
A meditação toma o seu princípio da leitura, todavia não se realiza por
nenhuma das regras ou dos preceitos da leitura. Na meditação, de fato,
nos deleitamos discorrendo como que por um espaço aberto, no qual
dirigimos a vista para a verdade a ser contemplada, admirando ora esta,
ora aquelas causas das coisas, ora também penetrando no que nelas há
de profundo, nada deixando de duvidoso ou de obscuro.

O princípio da doutrina, portanto, está na leitura; a sua consumação, na


meditação.

Quem aprender a amá-la com familiaridade e a ela se dedicar


frequentemente tornará a vida imensamente agradável e terá na
tribulação a maior das consolações. A meditação é o que mais do que
todas as coisas segrega a alma do estrépito dos atos terrenos; pela
doçura de sua tranquilidade já nesta vida nos oferece de algum modo um
gosto antecipado da eterna; fazendo-nos buscar e inteligir, pelas coisas
que foram feitas, àquele que as fez, ensina a alma pela ciência e a
aprofunda na alegria, fazendo com que nela encontre o maior dos
deleites.

Três gêneros de meditação.

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Três são os gêneros de meditação. O primeiro consiste no exame dos


costumes, o segundo na indagação dos mandamentos, o terceiro na
investigação das obras divinas.
Nos costumes a meditação examina os vícios e as virtudes. Nos
mandamentos divinos, os que preceituam, os que prometem, os que
ameaçam.

Nas obras de Deus, as em que Ele cria pela potência, as em que modera
pela sabedoria, as em que coopera pela graça, as quais todas tanto mais
alguém conhecerá o quanto sejam dignas de admiração quanto mais
atentamente tiver se habituado em meditar as maravilhas de Deus.

Do confiar à memória aquilo que aprendemos.

A memória custodia, recolhendo-as, as coisas que o engenho investiga e


encontra.
Importa que as coisas que dividimos ao aprender as recolhamos
confiando-as à memória: recolher é reduzir a uma certa breve e suscinta
suma as coisas das quais mais extensamente se escreveu ou se disputou,
o que foi chamado pelos antigos de epílogo, isto é, uma breve
recapitulação do que foi dito.

A memória do homem se regozija na brevidade, e se se divide em muitas


coisas, torna-se menor em cada uma delas.

Devemos, portanto, em todo estudo ou doutrina recolher algo certo e


breve, que guardemos na arca da memória, de onde posteriormente,
sendo necessário, as possamos retirar. Será também necessário revolvê-
las frequentemente chamando-as, para que não envelheçam pela longa
interrupção, do ventre da memória ao paladar.

As três visões da alma racional. Diferença entre meditação e


contemplação.

Três são as visões da alma racional: o pensamento, a meditação e a


contemplação.
O pensamento ocorre quando a mente é tocada transitoriamente pela
noção das coisas, quando a própria coisa se apresenta subitamente à
alma pela sua imagem, seja entrando pelo sentido, seja surgindo da
memória.

A meditação é um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento em que


nos esforçamos por explicar algo obscuro ou procuramos penetrar no que
é oculto.

A contemplação é uma visão livre e perspicaz da alma de coisas


amplamente esparsas.

Entre a meditação e a contemplação o que parece ser relevante é que a


meditação é sempre das coisas ocultas à nossa inteligência; a
contemplação, porém é de coisas que segundo a sua natureza ou
segundo a nossa capacidade são manifestas; e que a meditação sempre
se ocupa em buscar alguma coisa única, enquanto que a contemplação se
estende à compreensão de muitas ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto, um certo vagar curioso da mente, um investigar


sagaz do obscuro, um desatar do que é intrincado. A contemplação é

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aquela vivacidade da inteligência que, possuindo todas as coisas, as


abarca em uma visão plenamente manifesta, e isto de tal maneira que
aquilo que a meditação busca, a contemplação possui.

Dois gêneros de contemplação.

Há, porém, dois gêneros de contemplação. Um deles, que é o primeiro e


que pertence aos principiantes, consiste na consideração das criaturas. O
outro, que é o último e que pertence aos perfeitos, consiste na
contemplação do Criador.
No livro dos Provérbios, Salomão principiou como que meditando; no
Eclesiastes elevou-se ao primeiro grau da contemplação; finalmente, no
Cântico dos Cânticos transportou-se ao supremo.

Para que, portanto, possamos distinguir estas três coisas pelos seus
próprios nomes, diremos que a primeira é meditação; a segunda,
especulação; a terceira, contemplação.

Na meditação a perturbação das paixões carnais, surgindo


importunamente, obscurece a mente inflamada por uma piedosa
devoção; na especulação a novidade da insólita visão a levanta à
admiração; na contemplação o gosto de uma extraordinária doçura a
transforma toda em alegria e contentamento.

Portanto, na meditação temos solicitude; na especulação, admiração; na


contemplação, doçura.

Três partes da exposição.

A exposição contém três partes: a letra, o sentido e a sentença. A letra é


a correta ordenação das palavras, a qual também chamamos de
construção. O sentido é um delineamento simples e adequado que a letra
tem diante de si como um primeiro semblante. A sentença é uma mais
profunda inteligência, a qual não pode ser encontrada senão pela
exposição ou interpretação. Para que uma exposição se torne perfeita
requerem-se, nesta ordem, primeiro a letra, depois o sentido e
posteriormente a sentença.

Os três gêneros de vaidades.

Três são os gêneros de vaidades. O primeiro é a vaidade da mutabilidade,


que está em todas as coisas caducas por sua condição. O segundo é a
vaidade da curiosidade ou da cobiça, que está na mente dos homens pelo
amor desordenado das coisas transitórias e vãs. O terceiro é a vaidade da
mortalidade, que está nos corpos humanos pela penalidade.

As obrigações da eloquência.

Disse Agostinho, famoso por sua eloqüência, e o disse com verdade, que
o homem eloqüente deve aprender a falar de tal modo que ensine, que
deleite e que submeta. A isto acrescentou que o ensinar pertence à
necessidade, o deleitar à suavidade e o submeter à vitória.
Destas três coisas, a que foi colocada em primeiro lugar, isto é, a

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necessidade de ensinar, é constituída pelas coisas que dizemos, as outras


duas pelo modo como as dizemos.

Quem, portanto, se esforça no falar em persuadir o que é bom, não


despreze nenhuma destas coisas: ensine, deleite e submeta, orando e
agindo para que seja ouvido inteligentemente, de boa vontade e
obedientemente. Se assim o fizer, ainda que o assentimento do ouvinte
não o siga, se o fizer apropriada e convenientemente, não sem mérito
poderá ser dito eloqüente.

O mesmo Agostinho parece ter querido que ao ensino, ao deleite e à


submissão também pertençam outras três coisas, ao dizer, de modo
semelhante:

"Será eloqüente aquele que puder dizer o pequeno com humildade, o


moderado com moderação, o grande com elevação".

Quem deseja conhecer e ensinar aprenda, portanto, quanto há para se


ensinar e adquira a faculdade de dizê-las como convém a um homem de
Igreja. Quem, na verdade, querendo ensinar, às vezes não é entendido,
não julgue ainda ter dito o que deseja àquele a quem quer ensinar,
porque, mesmo que tenha dito o que ele próprio entendeu, ainda não foi
considerado como tendo-o dito àquele por quem não foi entendido. Se,
porém, foi entendido, de qualquer modo que o tenha dito, o disse.

Deve, portanto, o doutor das divinas Escrituras ser defensor da reta fé,
debelador do erro, e ensinar o bem; e neste trabalho de pregação
conciliar os adversos, levantar os indolentes, declarar aos ignorantes o
que devem agir e o que devem esperar. Onde tiver encontrado, ou ele
próprio os tiver feito, homens benévolos, atentos e dóceis, há de
completar o restante conforme a causa o exija. Se os que ouvem devem
ser ensinados, seja-o feito por meio de narração; se, todavia, necessitar
que aquilo de que trata seja claramente conhecido, para que as coisas
que são duvidosas se tornem certas, raciocine através dos documentos
utilizados.

(retirado de [url] http://www.accio.com.br/Nazare/1946/sumario.htm


[/url])

------------------
No Coração de Maria, sempre, Flávio José Lindolfo.

        

Flavio Jose postado em 07-03-2001 02:52 IP: Logged


Lindolfo
Membro
Mensagens: 207

Caros forenses,
Registro: Jan 1999
o texto que segue (retirado de
http://www.accio.com.br/Nazare/1946/sumario.htm), demonstra bem o
trabalho exegético daqueles que fazem parte do corpo místico da Igreja.

Bom proveito!

****

https://web.archive.org/web/20010712050813/http://www.olavodecarvalho.org/forum/Forum26/HTML/000005.html 13/20
04/08/2021 Hugo e Ricardo de São Victor - Fórum Sapientia

Consideremos a parábola do bom samaritano, tal como ela nos é


narrada no Evangelho de São Lucas. Um estudioso da Lei de
Moisés, tendo ouvido Jesus falar da necessidade de amar ao
próximo como a si mesmo, perguntou-lhe quem era este próximo;
esta pergunta deu a Jesus a oportunidade de narrar a parábola do
bom samaritano. Para responder à pergunta do estudioso da Lei
de Moisés, Jesus disse o seguinte:

"Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caíu no meio de


assaltantes que, após havê-lo despojado de suas vestes e
espancado, foram-se, deixando-o meio morto.

Casualmente, descia por este caminho um sacerdote; viu-o e


passou adiante.

Igualmente um levita, atravessando este lugar, viu-o e


prosseguiu.

Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e


moveu-se de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas chagas,
derramando óleo e vinho, depois colocou-o em seu próprio
animal, conduziu-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados.

No dia seguinte tirou dois dinheiros e deu-os ao hospedeiro,


dizendo:

`Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te


pagarei'.

Qual dos três",

- pergunta então Jesus -,

"em tua opinião, foi o próximo do homem que caíu nas mãos do
assaltante?"

(Lucas 10, 30-36)

O sentido literal desta parábola é tão claro e tão evidente que ela
sequer parece ser uma parábola, mas apenas a narração de um
exemplo a ser imitado. Jesus parece querer dizer que, quando
vemos o próximo em dificuldade, podemos fingir que nada vemos
e passar adiante, ou então podemos parar o que estamos fazendo
e, por amor do próximo, socorrê-lo. A parábola, pois, parece
querer ensinar que todos nós devemos agir como o bom
samaritano; ademais, foi assim que, mais adiante, o mesmo
Evangelho de São Lucas narra que o estudioso da Lei de Moisés
diz ter entendido o significado desta parábola (Lc. 10, 39), e é
assim que quase todos a entendem quando a lêem. E é assim
porque é isto mesmo o que ela de fato significa. Trata-se, porém,
apenas do seu sentido literal.

Além deste sentido, diz Hugo de S. Vitor, é evidente que há outro


sentido mais profundo nesta parábola proposta por Jesus, um
sentido que não foi apreendido pelo estudioso da Lei de Moisés,

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04/08/2021 Hugo e Ricardo de São Victor - Fórum Sapientia

um sentido significado não pelas palavras, mas pelas coisas


significadas pelas palavras.

Jerusalém, diz Hugo de S. Vitor, significa a "contemplação das


coisas do alto"; quanto à viagem, esta significa o pecado, e Jericó
"a miséria mundana", ou mesmo o inferno:

"Este homem, portanto",

continua Hugo,

"que descia de Jerusalém a Jericó e foi assaltado pelos ladrões


designa o próprio gênero humano" (36).

Na seqüência da história, o homem que abandona as coisas do


alto e segue pelo caminho que conduz a Jericó é assaltado no
caminho pelos ladrões, despojado de suas vestes, espancado e
abandonado semi morto. Estes ladrões, diz Hugo, "são os
demônios" que despojaram o homem das "vestes da imortalidade
e da inocência" e o feriram gravemente pelo pecado.

De fato, continua Hugo, Deus havia feito o homem

"à sua imagem e semelhança, conforme diz o primeiro capítulo do


Gênesis.

Fê-lo à sua imagem segundo a inteligência, à sua semelhança


segundo o amor, para que,
dirigindo-se a Deus por ambas estas coisas, alcançasse a
felicidade.

Mas o demônio, invejando a felicidade do homem, contra estes


dois bens primordiais
conduziu o homem a dois males principais.

Feriu o homem que tinha sido feito à imagem de Deus segundo a


inteligência com a ignorância do bem; tendo ele também sido
feito à semelhança de Deus, feriu-o com o desejo do mal.

Desta maneira, depois de despojá-lo e ferí-lo, abandonou-o semi


morto na estrada" (37).

O sacerdote e o levita que passaram e viram o homem ferido e


despojado de suas vestes, continua Hugo,

"são os pais do Antigo Testamento, (isto é, os profetas e os


homens justos que viveram antes de Cristo), que passaram pelo
estado da vida presente vivendo santamente, mas que não
conseguiram curar o gênero humano ferido pelo pecado" (38).

Já o samaritano, homem natural de um povo que vivia ao norte da


Palestina e era odiado pelos judeus, que vendo ao pobre homem,
moveu-se de compaixão, aproximou-se dele e cuidou de suas
feridas derramando sobre elas óleo e vinho, representa o próprio
Cristo, rejeitado e crucificado pelos judeus, que veio socorrer ao
homem caído pelo pecado

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"tanto pelos seus ensinamentos como expiando sua culpa na


cruz" (39).

A hospedaria à qual o samaritano conduziu o pobre homem,


continua Hugo, é a IGREJA, à qual Cristo CONFIOU a salvação dos
homens, e o estalajadeiro são todos aqueles que nela governam e
ensinam. Somente no dia seguinte, porém, é que o samaritano
confiou o homem aos cuidados do estalajadeiro, isto é,

"depois de realizado primeiro o mistério da Redenção" (40).

Ao confiar à Igreja os cuidados para com os homens feridos pelo


pecado, Cristo entregou-lhes "dois dinheiros", isto é,

"a ciência e a graça de ensinar o Antigo e o Novo Testamento"


(41).

"E tudo o que gastares a mais", acrescenta o Cristo, "em meu


regresso eu te pagarei". Isto significa, continua ainda Hugo, que
aqueles que ensinam, ao tratarem do doente,

"não apenas pregam aquilo que está nos dois Testamentos, mas
ensinam também muitas outras coisas que elaboram de acordo
com o que está escrito nestes dois Testamentos para que sejam
manifestadas aos outros.

O Cristo distribuíu-lhes a graça de ensinar, e assim, com os


homens aos quais devem doutrina, não gastam apenas o dinheiro
que lhes foi confiado pelo Cristo, isto é, narrando a simples letra
dos dois Testamentos, mas ensinando incessantemente inúmeras
outras coisas que, mediante o auxílio da graça, são elaboradas
pela contemplação e diligentissimamente dispostas pelo coração.

Desta maneira, no dia do Juízo, quando o Senhor voltar, dará o


prêmio a cada um segundo os seus méritos" (42).

Digno de nota, nesta última passagem , é a expressão de Hugo:

"mediante o auxílio da graça, elaboradas pela contemplação e


diligentissimamente dispostas pelo coração".

É novamente a marca inconfundível da espiritualidade vitorina,


que aparece e reaparece de mil maneiras, e que nos faz lembrar
outra passagem semelhante da profecia de Malaquias:

"E agora esta é, ó sacerdotes, a ordem que se vos intima: se não


me quiserdes ouvir,
diz o Senhor, eu vos mandarei a indigência e amaldiçoarei as
vossas bênçãos, porque não pusestes as minhas palavras sobre o
vosso coração. Pois os lábios dos sacerdotes serão os guardas da
ciência, e de sua boca se há de aprender a lei, porque ele é o anjo
do Senhor".

(Mal. 2,1-2; 2,7)

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Tudo isto é, portanto, o que significa a parábola do bom


samaritano segundo o sentido mais profundo do significado das
coisas significadas pelas suas palavras.

Alguém poderia objetar que, apesar da beleza desta


interpretação, ela não passa de pura fantasia, e que nem Jesus
que narrou a parábola, nem São Lucas que a colocou por escrito,
nem o Espírito Santo que inspirou S. Lucas pensaram neste
possível sentido que suas palavras poderiam ter. Foi Hugo de S.
Vitor, ou talvez Santo Agostinho, que parece ter sido o primeiro a
levantar esta interpretação da parábola do bom samaritano (43),
que teriam inventado este sentido para a parábola.

A discussão a respeito de se este sentido da parábola do bom


samaritano foi inventado por S. Agostinho ou por Hugo de S. Vitor
ou foi verdadeiramente intencionada pelo autor das Sagradas
Escrituras e, portanto, não inventada mas lida por Hugo e
Agostinho que tinham aprendido a fazê-lo não apenas nas
palavras mas também nas coisas, poderia tornar-se interminável
se não fosse o detalhe do itinerário escolhido por Jesus para a
viagem do pobre homem.

A desventurada vítima dos assaltantes, diz a parábola, havia


saído de Jerusalém e se dirigido a Jericó. Jerusalém, o ponto de
partida, é a cidade mais alta da Palestina, situada no alto do
monte Sião, sede do templo de Salomão e do culto judaico, cujo
nome significa "Cidade da Paz", onde o Cristo iria operar a
redenção do gênero humano e subir aos céus, de onde os
apóstolos partiram para pregar o Evangelho a todos os povos,
cidade já considerada sagrada pelos judeus desde muitos séculos
antes de Cristo. Para o povo judeu, Jerusalém é a cidade que mais
perfeitamente pode significar tudo quanto há de sagrado, e ainda
hoje esta cidade traz à mente de cristãos e de muçulmanos
significados semelhantes. Se Jesus queria escolher para sua
parábola alguma cidade que significasse as coisas do alto, não
poderia ter escolhido outra melhor do que Jerusalém.

Jericó, por outro lado, é a cidade mais baixa do Oriente Médio; ela
fica em uma região desértica, num local de clima sufocante, em
uma depressão situada 300 metros abaixo no nível do mar às
margens do Mar Morto. Na verdade, sabe-se hoje que Jericó é a
cidade mais baixa de todo o planeta e, se não fosse o relevo das
montanhas da Palestina, ela já deveria estar submersa debaixo de
uma camada de algumas centenas de metros de água a uma
profundidade que nem a luz do Sol conseguiria atravessar. A
História, ademais, dava à cidade de Jericó conotações condizentes
com a sua geografia. Quando os judeus liderados por Josué
entravam para a tomada da terra prometida, Jericó foi a primeira
e a mais espetacularmente cidade conquistada pelo povo
escolhido, e foi também a mais severamente tratada. Além de
arrazá-la inteiramente até os seus fundamentos, os israelitas
haviam recebido ordens de Deus para que sequer um só objeto
lhe fosse tomado como despojo. Ao contrário da tomada de outras
cidades, em Jericó tudo deveria ser implacavelmente queimado;
os objetos de metal que não podiam ser destruídos pelo fogo
deveriam ser consagrados unicamente ao culto divino. Os

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imensos muros da cidade desabaram repentinamente diante dos


judeus que a cercavam sem que ninguém lhes tivesse atirado
sequer uma pedra. Com os seus habitantes tomados pelo pavor,
os israelitas, dizem as Escrituras,

"tomaram a cidade, mataram tudo o que nela havia, desde os


homens até às mulheres,
desde as crianças até aos velhos. Passaram ao fio da espada os
bois, as ovelhas e os jumentos; puseram fogo à cidade a tudo o
que nela havia".

(Jos. 6,20-21; 6,24)

O jovem Acan, por ter desobedecido às ordens de Deus e ter


tomado às escondidas como despojo da conquista uma capa de
escarlate, alguma prata e uma barra de ouro, foi apedrejado e
"tudo o que lhe pertencia foi consumido no fogo" (Jos. 7, 25).
Dentre todos os habitantes de Jericó, somente uma prostituta e
sua família foi considerada digna de ter sua vida poupada. Depois
da cidade ter sido inteiramente destruída, Josué ainda pronunciou
uma maldição sobre aquele que viesse a reedifica-la, mais
especificamente sobre aquele que tornasse a lhe lançar os
fundamentos e sobre aquele que viesse a lhe por novamente as
portas (Jos. 6, 26). Quatrocentos anos mais tarde, Hiel de Betel
decidiu reerguer Jericó; conseguiu seu intento, mas um outro
livro das Sagradas Escrituras registra que, ao lançar os
fundamentos da cidade e ao ter posto as suas portas, cumpriu-se
também nele a maldição pronunciada por Josué quatro séculos
antes (I Reis 16, 34). Por todas estas razões, se existisse para um
israelita algum lugar em toda a terra que pudesse significar o
pecado, a miséria humana, a queda do homem ou o inferno, este
lugar era Jericó.

Diante destes dados cabe-nos agora perguntar como se explica,


se a parábola do bom samaritano não tem este outro sentido que
nos é descrito por Santo Agostinho e Hugo de S. Vitor, que entre
todas as cidades possíveis para serem o ponto de partida e de
chegada do viajante, Jesus tenha escolhido justamente Jerusalém
e Jericó?

Nesta parábola, por outro lado, temos um exemplo de uma


significação das coisas que é mais profunda do que a significação
das palavras. Segundo o sentido literal das palavras, aquele
sentido com que foi entendida pela primeira vez pelo estudioso da
Lei que a tinha ouvido dos lábios de Jesus, a parábola quer
ensinar que amar ao próximo significa agir como o bom
samaritano e compadecer-se dos feridos e dos doentes. Esta
interpretação é correta, pois ao ouvi-la da boca do estudioso da
Lei, Jesus lhe respondeu que, assim como ele a havia entendido,
"fosse e fizesse o mesmo" (Lc. 10, 37).

Mas, segundo o sentido significado pelas coisas significadas pelas


palavras, Jesus nos ensina uma maneira mais elevada de amar ao
próximo. Amar ao próximo, neste outro sentido, não significa agir
como o bom samaritano, mas sim agir como o estalajadeiro. E isto

https://web.archive.org/web/20010712050813/http://www.olavodecarvalho.org/forum/Forum26/HTML/000005.html 18/20
04/08/2021 Hugo e Ricardo de São Victor - Fórum Sapientia

não se pode fazer sem pressupor a hospedaria, que é a IGREJA, e


o Cristo, que é o bom samaritano. Neste outro sentido mais
elevado de amar ao próximo é ao Cristo que cabe a parte
principal, o homem apenas SERVINDO-LHE DE AUXILIAR EM SUA
MISSÃO E COMPLETANDO O QUE ELE INICIOU. A missão do Cristo
é, neste caso, "A OBRA DA RESTAURAÇÃO HUMANA" a que Hugo
tantas vezes se refere, feridos como estão pela ignorância do bem
e pelo desejo do mal. Mais ainda, Hugo de S. Vitor insinua na sua
interpretação da parábola do bom samaritano que o homem pode
cooperar com esta missão do Cristo maximamente pelo ensino.
Não se trata, porém, de qualquer forma de ensino, mas daquele
ensino que procede da contemplação, pois diz Hugo que a tarefa
de ensinar FOI CONFIADA À IGREJA através da graça, a qual
normalmente se adquire através da oração e da contemplação
que procede da caridade. E ensinar deste modo, diz Jesus no
Evangelho, é a maior prova de amor; é assim que se encerram os
quatro Evangelhos (Mt. 28,20; Mc. 16,15; Lc. 24,47; Jo. 21,15-
17), e também foi esta a regra de vida que os apóstolos tomaram
para si:

"Não nos convém abandonar a palavra de Deus para servir às


mesas",

disseram os apóstolos.

"Procurai alguém que possa ser colocado na direção deste ofício;


quanto a nós,
permaneceremos assíduos à oração e ao ministério da palavra".

(At. 6, 4)

Referências

(36) Hugo S.Vitor: Allegoriae Utriusque Testamenti, NT, L. IV, C.


12; PL 175, 814-5.
(37) Ibidem: loc. cit.. (38) Ibidem: loc. cit.. (39) Ibidem: loc. cit..
(40) Ibidem: loc. cit.. (41) Ibidem: loc. cit.. (42) Ibidem: loc. cit..
(43) S.Agostinho: Quaestiones Evangeliorum Libri II, L. II, C. 19;
PL 35,.

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No Coração de Maria, sempre, Flávio José Lindolfo.

        

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