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RESENHA

O Capital fictício: expansão e limites

do capitalismo contemporâneo

Rafael de Silva Barbosa*

Daniel Pereira Sampaio**

RESENHA / BOOK REVIEW

MARQUES, Rosa Maria; NAKATANI,


Paulo.

O que é capital fictício e sua crise. São


Paulo: Ed. Brasiliense, 2009.

(Coleção Primeiros Passos, 337p.).

*
Rafael da Silva Barbosa, Mestrando em Desenvolvimento Econômico da Unicamp. Bolsista Capes. E-
mail: rafael.econ@gmail.com
** Mestrando em Desenvolvimento Econômico da Unicamp. Bolsista CNPq. E-mail: danielpereirasam-

paio@gmail.com
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ARGUMENTUM, Vitória, v. 2, n. 2, p.288-293, jul./dez. 2010
O Capital fictício: expansão e limites do capitalismo contemporâneo

livro escrito por Rosa Mar- preço é definido na órbita da circulação e


ques e Paulo Nakatani, O que pode se desvincular completamente do

O é capital fictício e sua crise, a-


presenta uma leitura crítica
da crise contemporânea do
capital a partir de Marx. Em
pouco menos de cem páginas
valor. Por se tratar de uma categoria abs-
trata, (uma abstração real), pode-se defi-
nir que a magnitude do valor é quantita-
tivamente determinada pelo trabalho
abstrato e socialmente necessário para a
o leitor terá conhecimento produção da mercadoria. Nesse sentido,
dos principais pontos da teoria marxista, o capital subordina o trabalho ao mero
do valor e as formas assumidas pelo ca- processo de valorização. A força de tra-
pital, das raízes da Crise de 1929 e, por balho é a mercadoria especial que pro-
fim, da Crise contemporânea do capital e duz valor.
seus desdobramentos. As qualidades do
texto são as apresentações claras das Marx explica endogenamente a gênese
principais categorias marxistas, necessá- da forma dinheiro do valor. As formas
rias para a análise e a interpretação da do valor têm como primeiro momento a
crise contemporânea do capital, eluci- forma simples ou fortuita do valor, a
dando os seus limites e necessidades de forma equivalente, a forma total ou ex-
transformação da sociedade. Dessa for- tensiva, a forma geral do valor e, por fim,
ma, aos leitores mais aprofundados e a forma dinheiro do valor. Uma
iniciantes, o texto torna-se indispensável *mercadoria com realidade social reco-
para o entendimento do modo de produ- nhecida é escolhida do mundo das
ção capitalista na sua forma mais perver- *mercadorias para representar o valor,
sa, qual seja o capital fictício. essa se torna mercadoria-dinheiro quan-
do estabelece o monopólio.
O entendimento do capital e sua evolu-
ção histórica só podem ser compreendi- A origem do dinheiro se dá quando o-
dos, em Marx, a partir da teoria do valor. corre uma generalização das trocas,
A análise de Marx sobre a teoria do valor quando deixa de ocorrer raramente ou
inicia-se a partir da mercadoria, que pos- quando as trocas deixam de ser margi-
sui características de valor de uso e valor nais em relação ao modo de produção. O
de troca. Para que sejam realizadas as dinheiro, mercadoria especial que foi
trocas de diferentes mercadorias, faz-se escolhida socialmente como equivalente
necessário que elas tenham algum equi- geral, passa a ter capacidade de trocar o
valente. Para Marx, a medida do valor é valor de todas as mercadorias. Por este
o trabalho humano. A medida do valor é motivo, o valor é visto como encerrado
o trabalho humano socialmente necessá- na moeda, processo entendido como feti-
rio para a produção da mercadoria. chismo da moeda.

A categoria valor desenvolve-se ao longo Quando há maior divisão do trabalho, o


da obra de Marx (e da evolução do capi- valor evolui e passa a ser valor em valo-
tal), mas não é equivalente ao preço. O rização. Nasce o capital, forma evoluída

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do valor: o capitalista adianta dinheiro dem ser assumidas pelo capital portador
para produzir a mercadoria com o obje- de juros. As formas de capital bancário,
tivo de sair com mais dinheiro ao final capital acionário e dívida pública foram
do processo, ou seja, o circuito D-M-D', desenvolvidas por Marx, além disso, os
ante o circuito M-D-M’. Necessita, dessa autores incluem a forma de derivativos.
forma, daquela mercadoria que gera va- Os derivativos sempre existiram como
lor – força de trabalho – que uma é mer- forma de proteção contra os riscos, po-
cadoria intermediária do processo pro- rém, a novidade é a multiplicação dos
dutivo neste circuito, mas fundamental, derivativos e a sua expansão com a des-
porque é ela que gera valor. O capitalis- regulamentação no “*...+ cassino financei-
ta, de posse dos meios de produção, ro internacional *...+” (p.43).
compra a força de trabalho pagando-lhe
o valor da reprodução, da força de traba- As representações concretas da hipertro-
lho, extraindo no processo produtivo a fia do capital fictício e sua crise não po-
mais-valia. dem ser compreendidas como processos
separados no tempo, pois a fase de libe-
O capital assume diversas formas no seu ralização dos mercados conduzida pelos
processo de valorização. O capital indus- Estados Unidos (EUA) e Inglaterra na
trial é aquele produtor de mercadorias, o década de 1970, embora fundamental
capital comercial é responsável pela dis- para o entendimento da questão, é mais
tribuição de mercadorias e o capital por- um fator a somar naquele movimento. O
tador de juros tem a propriedade de adi- período no qual se constituíram as con-
antar dinheiro, sendo a “*...+ forma mais dições de gestação para acumulação fi-
reificada, mais fetichista do capital *...+” nanceira foi na década de 1950 nos EUA
(p.30). O excedente, produzido pelo capi- e 1960 na Europa, quando ocorreu “*...+ a
tal industrial, é transferido de forma in- centralização dos lucros não reinvestidos
tra e intersetorial devido às diferentes em instituições e das poupanças das fa-
composições orgânicas e apropriação da mílias com o objetivo de valorizá-los sob
mais valia produzida pelo capital indus- a forma de aplicação em ativos financei-
trial. Este processo ocorre no exercício ros (divisas, obrigações e ações)” (p.53).
que Marx resolve sobre a transformação É devido a isto, que se deu a retirada das
do valor em preços de produção, que amarras ao capital financeiro na década
culmina com a igualação das taxas de de 1970, quando a acumulação financeira
lucro do capital industrial, comercial e ganha dimensão gigantesca, pois já se
portador de juros. tinha previamente uma massa de capital
acumulada presa, ávida por valorização.
A categoria fundamental que os autores O “*...+ ovo da serpente estava sendo ges-
elucidam para explicar a crise atual é do tado mesmo quando era o capital produ-
capital fictício, forma desenvolvida do tor de mercadorias que estava no co-
capital portador de juros. Não há em mando da dinâmica capitalista” (p.54).
Marx, uma definição clara de capital fic-
tício, mas aparecem as formas que po-
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Nesse sentido entre os fatos que tiveram mente com a desintermediação, não ca-
fortes implicações na acumulação finan- bendo mais aos bancos a função de fazer
ceira, destaca-se o caso estadunidense. a ponte entre os agentes ofertantes (em-
As famílias de maior poder aquisitivo prestador) e demandantes (tomador) de
deste país realizaram aplicações de suas recursos e, em seguida, a desregulamenta-
rendas em seguros de vida, possibilitan- ção, num momento em que se faz uma
do a formação de fundos de pensão em reestruturação financeira do setor e não
regime de capitalização. Outra questão se recria instrumentos de controle, dan-
foi a mudança no recebimento dos salá- do assim, margem ao imaginário dos
rios dos trabalhadores, onde passaram a agentes atuantes nesse seguimento, pos-
ser realizados via sistema bancário, inje- sibilitando o surgimento gigantesco de
tando uma liquidez considerável no âm- inovações financeiras e a descompartimen-
bito do setor financeiro. Além dos me- talização, que significa a criação de um
canismos de acumulação criados nas dé- mercado único para os produtos finan-
cadas de 1950 e 1960, citados anterior- ceiros. O que antes era separado em mer-
mente, no pós-1970 cabe destacar: a reci- cados de crédito de curto prazo (finance),
clagem dos petrodólares que assumiu a mercado de crédito de longo prazo (fun-
forma de empréstimos aos países do Ter- ding), mercado de câmbio para cada pa-
ceiro Mundo; e a amplitude que tomou o ís, obedecendo ao regulamento dos res-
mercado de títulos da dívida pública nos pectivos, entre outros tipos de mercados,
países centrais. O mercado de títulos pú- agora se unificam em um só mercado.
blicos foi bastante funcional tanto aos Ademais, talvez o marco maior para as
Estados que enfrentavam um período de atuais arbitragens financeiras, tenha sido
baixo crescimento e inflação elevada, o fim da conversibilidade dólar-ouro,
como para as instituições que centraliza- representando a retirada de uma das a-
vam a poupança das empresas e das fa- marras mais importantes do capital, pois
mílias. Não obstante, garantia um fôlego os americanos não tiveram limites para
maior aos Estados que naquele momento suas emissões em dólares, não tendo
mantinham os gastos com o sistema de mais lastro em ouro ou em qualquer ou-
proteção social - que foram construídos tra mercadoria.
após a Segunda Guerra Mundial - ao
mesmo tempo em que se ampliou a Frente a isto, é que se entenderá com
magnitude desse mercado, representan- maior clareza as mudanças no compor-
do uma esfera atrativa de valorização tamento dos agentes. O maior retrato
financeira. disto é a propalada condução da empre-
sa embasada na governança corporativa,
Ressalta-se que este foi um dos fatores na qual, acredita-se que somente o acio-
que contribuiu para predominância con- nista deva ter mais poderes sobre a em-
temporânea do capital portador de juros presa em detrimento das demais partes
e o desenvolvimento do capital fictício. interessadas (trabalhadores, fornecedo-
Outro fator de suma importância foi a res, a cidade em que está instalada, entre
liberalização dos mercados: primeira- outros). A gestão da empresa sob a lógica
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da governança corporativa tem como formas do capital, quais sejam, o mercan-


uma de suas linhas mestras o valor do til e produtivo.
acionista, que qualificará a melhor em-
presa via aumento do capital fictício, ou E as crises que precederam à crise norte-
seja, o valor das ações cotadas na bolsa1. americana de 2008 são provas disso, uma
vez que foram crises financeiras. Por e-
A partir daí o que se vê é uma enxurrada xemplo: a crise do México 1994/1997;
de produtos financeiros, todos garantin- crise asiática de 1997/1998; crise da Rús-
do alta rentabilidade e segurança. Quan- sia e do Brasil em 2001e a queda da Nas-
do na verdade em sua maioria busca-se, daq em 2001/2002. Os maiores constran-
custe o que custar, altos ganhos patrimo- gimentos destas crises rebatem na órbita
niais com a valorização desses ativos. real da economia: produção, consumo e
Dessa forma, esse capital fictício vem emprego. No emprego isso é ainda mais
ganhando participação cada vez maior nítido, pois em fevereiro de 2009 a GM e
na riqueza mundial. O volume médio de Chrysler demitiram 52 mil trabalhadores,
negócios no mercado de derivativos em resultado de suas reestruturações. Por
2007, ao dia, foi na ordem de U$$ 3,2 tri- outro lado, observa-se que o setor finan-
lhões de dólares, e as vendas diárias de ceiro ainda detém seus privilégios. O
contratos de derivativos chamados over- pacote de socorro ao sistema financeiro
the-counter foram de US$ 4,2 trilhões. Se sugerido pelo Federal Reserve System
comparado ao produto bruto mundial (FED) para o salvamento do sistema fi-
agregado para o mesmo ano, tem-se a nanceiro alcançou a cifra de US$ 850 bi-
cifra de US$ 65,82 trilhões, com exporta- lhões de dólares de um total de US$ 1,6
ções e importações totais de US$ 13,72 trilhão empenhados pelo governo ameri-
trilhões e US$ 13,64 trilhões, respectiva- cano para a superação da crise.
mente, demonstrando o grau de expan-
são do capital fictício frente ao lado real Em suma, a crise que no seu primeiro
da economia. estágio se mostrou financeira, rapida-
mente transformou-se em crise de su-
Com o constante aumento da riqueza perprodução afetando a produção, o
fictícia e maior interdependência dos emprego e o comércio internacional. No
mercados, os efeitos de transmissão - Brasil, mesmo com as medidas do go-
tanto entre economias de países diferen- verno para amenizar a crise internacional
tes, como dentro dos próprios setores do - aumentando a base monetária, redu-
sistema econômico - (financeiro e real) – zindo o imposto de renda e o imposto
são amplificados. O capital fictício, ga- sobre produtos industrializados, sobre-
nha relevância no processo de acumula- tudo da linha branca e de automóveis e,
ção do capital, ou seja, é o estágio máxi- aumentando as linhas de crédito, com
mo da hierarquia do capital, a suprema- uma maior atuação do Banco Nacional
cia do financeiro sobre todas as demais de Desenvolvimento Social (BNDES) - o
impacto sobre emprego ainda foi enor-
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Como demonstrado pelos documentários ENRON: os me. Em novembro de 2008 e janeiro de
mais espertos da Sala e The Corporation.
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2009, foram dispensados 797,5 mil em-


pregos com carteira assinada, segundo
dados do Cadastro Geral de Emprego e
Desemprego (CAGED), que não contabi-
liza o mercado informal brasileiro que
perfaz 50% da população ocupada.

Dessa forma, o capital portador de juros,


na forma de capital fictício, impõe cons-
trangimentos cada vez maiores no pró-
prio processo de acumulação de capital,
demonstrando o desenvolvimento exces-
sivo do capital fictício e a sua crise ine-
rente.

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