Você está na página 1de 4

R E S E N H A:

SILVA, Flávio Silvério.


CARTOGRAFIAS AFETIVAS: Paisagens/Passagens
Ecologias Inventivas: Experiências das/nas paisagens.
Curitiba: Editora CRV, 2015. Cap. 4. p. 45-55.

O capítulo 4 da obra Ecologias Inventivas: Experiências das/nas


paisagens é de autoria de Juliana Cristina Pereira. A artista visual, curadora,
pesquisadora, professora e arte-educadora é também conhecida como Juliana Crispe.
Natural de Florianópolis, Santa Catarina, Juliana possui formação em Bacharelado em
Artes Plásticas, Licenciatura em Artes Visuais, ambas pela Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC). É Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais, pela UDESC, Doutora em Educação pelo Programa em Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina e, atualmente,
participa do programa de Pós-doutorado em Artes, também da mesma universidade.

A primeira concepção do projeto Cartografias Afetivas1, idealizado pela artista,


teve início em 2010, onde, durante o seu mestrado, ao pensar sobre a sua produção
artística, Juliana reparou que o que ela fazia era cartografar suas afetividades, por meio
de seus trabalhos visuais. Assim, inicialmente, a ideia da educadora referente ao trabalho
era mapear com ações, ou o uso de trabalhos visuais e textos, os lugares que de alguma
forma a “afetaram”, ao longo de sua vida. A intenção, era traçar os lugares afetivos, para
Juliana, por meio das lembranças que os mesmos evocavam.

Pereira (2015), cita em seu texto que a Arte na contemporaneidade tem a função
de criar conexões com o cotidiano e com a vida, mas, ainda assim, muitas vezes ela
deixa de lado a relação com as pessoas, fazendo com que os trabalhos artísticos se
tornem passivos ao não permitir a presença de outros participantes nos processos de
criação. Atendendo aos desdobramentos que o projeto pedia, e buscando sua
potencialização, a artista repensou sua proposta como algo que poderia ser realizado

1
De acordo com a autora, a expressão Cartografias Afetivas, em itálico e com iniciais maiúsculas, refere-
se ao nome do projeto. A mesma expressão, escrita em minúsculas e sem itálico, refere-se aos trabalhos
caracterizados como cartografias.
por meio da participação de outras pessoas. Mais tarde, seguindo a sugestão de uma
das participantes de sua banca de qualificação da mestrado, este se tornou o tema de
sua investigação referente à sua pesquisa de doutorado, tendo como problematização,
e foco principal, a construção de cartografias de forma coletiva. Juliana mostra em sua
obra que foi Influenciada por Ítalo Calvino, por meio da possibilidade de uma produção
que fosse idealizada fora do self (CALVINO, 1990, apud PEREIRA, 2015, p. 45), e
também pelo o artista e professor Joseph Beuys, que difundiu suas ideias sobre a arte
entrelaçada com o ensino, através de suas propostas de extensão da Arte à vida
(DAVOSSA, 2010, apud PEREIRA, 2015, p. 45).

Em sua pesquisa, a autora tem como parâmetro a psicogeografia, que também


era ligada aos pensamentos de Joseph Beuys. Sugerida pelo grupo Internacional
Situacionista, a prática da psicogeografia buscava relacionar-se com a cidade através de
atividades geográficas afetivas e subjetivas, que propunham ambiências psíquicas
provocadas por caminhadas urbanas. Essa ação, muito comum nos anos 90,
principalmente em Londres, foi originada por um grupo francês, em 1950, chamado
Grupo Internacional Letrista, onde, posteriormente, deram origem aos Situacionistas. Os
Situacionistas propunham que as pessoas tivessem o desejo real de conhecerem os
espaços da cidades e não apenas reconhece-los. O grupo procurava pensar a cidade
como espaços coletivos carregados de histórias subjetivas, tendo como desejo percorrer
os espaços urbanos por meio de um olhar questionador, descobridor e crítico.

Crispe, diante da intenção de pensar em uma proposição artístico-pedagógica,


apropria-se, ao dar o nome de sua investigação, de dois conceitos: a cartografia,
colocada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-
1992), e afeto, referente aos conceitos do filosofo francês Baruch Espinosa, que é
reconfigurado por Deleuze.

O conceito de cartografia ao qual o projeto se apoia é pensado como na


introdução do livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1995), de Deleuze e
Guattari, onde o método cartográfico não executa representações de objetos,
mas propõe o acompanhamento de processos, gerando movimentos de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização, criando desvios, redes
e rizomas. A cartografia, neste caso, pode ser pensada como um movimento
constante de produção, saindo de uma concepção que materializa somente
aquilo que surge como um pensamento histórico, que reproduz os fatos de forma
representativa, mas geográfico compreendendo que o método em uma pesquisa
é como uma paisagem, que muda a todo momento e de forma alguma se torna
estática.

Por parte de Espinosa, e reconfigurada por Deuleze (1997), a


compreensão de afeto se dá por um tipo de afecção, por meio das sensações e
percepções que são capazes de nos atravessar: como a percepção do calor, cor,
formas e distância. Segundo Deleuze, a afecção, pois, não só é o efeito
instantâneo de um corpo sobre o outro, mas tem também o efeito sobre a própria
duração, do prazer ou dor, da alegria ou tristeza. Os afetos, segundo o filósofo,
são as passagens, devires, ascensões e quedas. São as constantes flutuações
de nossas potências, capazes de revelarem nossas singularidades, fazendo-nos
diferenciarmos do mundo, pelas relações de experimentações que cada um tem,
pelo modo de agir em cada encontro e por meio das relações que criamos com
as nossas especificidades.

Segundo Pereira (2015), a Arte tem um objetivo a cumprir entre a relação


de entrega e descoberta, ao se tronar possível de ser experimentada por quem
a faz e por quem se relaciona com ela, de maneira delicada e afetiva. Assim, as
cartografias, como obra de arte, podem ser consideradas como o
compartilhamento de blocos de sensações, que são compostos de percepções
e afetos através de uma experiência poética.

As cartografias, funcionam como um banco de afetos e acontecem como


redes, em constante produção e movimento, sem desenhos constituídos e
prévios. Como já mencionado, a proposta coletiva teve início em 2010, a partir
de uma convocatória feita por e-mail. O convite, que fora inicialmente direcionado
aos contatos pessoais de Juliana, proliferou-se a qualquer um que tivesse a
disponibilidade e vontade de participar do projeto. Em um segundo momento,
marcado pelo período entre os anos de 2011 à 2014, o movimento passou a ser
representado por oficinas, que contaram com a participação de
aproximadamente 210 pessoas, das mais variadas formações e experiências,
em diferentes espaços como universidades, escolas e museus.

Durante as práticas realizadas, fora proposto às pessoas que


construíssem seus “mapas de afetividades”, podendo ser criados por múltiplas
linguagens: imagens, escritos, sons, objetos e etc. Nessas cartografias
aparecem as singularidades, vivências, lembranças, pessoas, lugares, espaços
importantes da vida, ao mesmo tempo, individual e coletivo.

As cartografias afetivas têm como ponto de partida, para suas


construções, territórios afetivos que são importantes e afetam cada pessoa, e
que se deseja, naquele momento de construção, cartografar. A artista e
idealizadora da atividade que procura a observação da arte como rede, nos
relata que permitir-se criar e experimentar uma “cartografia afetiva” é um
exercício artístico/educativo com grande potência. Segundo Juliana (2015), cada
cartografia torna-se um espaço valorado, coletivo, quando nos dispomos a
compartilhar com o outro. Este é um exercício de relação, de troca de afetos, de
delicadeza.

Referências:

D’AVOSSA, Antonio. Joseph Beuys: a revolução somos nós. Catálogo da exposição


Joseph Beuys: a revolução somos nós. 2010-2011. Direção e curadoria geral de
Solange Oliveira Farkas; curador convidado Antonio d’Avossa. Pereira, J.C. R. Ra’e Ga
- Curitiba, v.30, p.106-130, abr/2014 130 In: PEREIRA, Juliana Cristina. Cartografias
afetivas: paisagens/passagens. In: GUIMARÃES, Leandro Belinaso et al
(Org.). Ecologias Inventivas: Experiências das/nas paisagens. Curitiba: Editora Crv,
2015. Cap. 4. p. 45-55.

Administração Regional do Estado de São Paulo e Associação Cultural Videobrasil. São


Paulo: Edições SESC SP, 2010.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.


Tradução de Aurélio Guerra Neto, Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. 1.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. 3ª Ed. Tradução: Ivo
Barroso. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. In: PEREIRA, Juliana Cristina.
Cartografias afetivas: paisagens/passagens. In: GUIMARÃES, Leandro Belinaso et al
(Org.). Ecologias Inventivas: Experiências das/nas paisagens. Curitiba: Editora Crv,
2015. Cap. 4. p. 45-55.

PEREIRA, Juliana Cristina. Cartografias afetivas: paisagens/passagens. In:


GUIMARÃES, Leandro Belinaso et al (Org.). Ecologias Inventivas: Experiências
das/nas paisagens. Curitiba: Editora Crv, 2015. Cap. 4. p. 45-55.

Você também pode gostar