Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Fletcher, Richard
Em busca de EI Cid / Richard Fletcher; tradução Patrícia de Queiroz
Carvalho Zimbres. - São Paulo: Editora UNESP, 2002 .
litora afiliada :
S:UAD
sociaciôn de Editor1ales Urtlversitalias Associação Brasileira de
de Amêrtca Latina y e! Cartbe Editoras Universitárias
Richard Fletcher
ria" . Maomé, ao que lhe parecia, era mais acessível a nós do que, por 0
Império Bizantino, nome esse derivado do vilarejo sobre o qual .foi
exemplo, Jesus (sobre o qual Renan escreveu um estudo notoriamente construída a capital do Império, Constantinopla, mas seus governantes
polêmico, publicado em 1863). É certo que, a um olhar superficial, os referiam-se a si próprios como imperadores romanos. As províncias oci-
indícios que chegaram .até nós, relativos à vida .e aos ensinamentos de dentais do Império haviam sido tomadas por invasores germânicos em
Maomé, parecem confirmar essa afirmação, uma vez que ela é ampla e tempos anteriores.) Entre 634 e 638, a Palestina e a Síria foram conquista-
diversificada - as revelações contidas no Corão, diversas biografias do das pelos exércitos islâmicos. O Egito também foi conquistado nos anos
Profeta escritas nos primeiros tempos do islamismo, relatos da expansão 640-642 e, no ano seguinte, as forças árabes começaram a penetrar nas
islâmica de autoria de historiadores árabes da época, os comentários de províncias que formam o atual estado da Líbia.
: ristãos contemporâneos a esses acontecimentos, redigidos em grego ou · Assim, vinte anos após a morte de Maomé, seus seguidores haviam
siríaco: A interpretação desses indícios, entretanto, nos coloca dificulda- destruído um antiqüíssimo Império e tomado grandes territórios de um
:les tremendas. Os estudiosos de hoje tendem a ser muito mais circunspectos outro. Cidades poderosas como Antioquia e Alexandria caíram em mãos
=i_ue Renan. Um juízo recente, formulado por Fergus Millar, um acadêmico muçulmanas. Os locais mais sagrados da cristandade, os lugares santos de
:le renome, sugere que a ascensão do Islã foi "yma das seqüências de Jerusalém e da Palestina, foram perdidos: só mais de quatro séculos de-
1eontecimentos mais profundamente ininteligíveis da história". O contras- pois os exércitos cristãos tentariam recuperá-los.
:e entre essas duas opiniões reflete não apenas um século de estudos me- A expansão ocidental do Islã não parou no Egito e na Líbia. Logo os
:iculosos, mas também uma mudança mais ampla na moral européia. O exércitos árabes começaram a forçar caminho por entre as terras que hoje
::>timismo quase leviano do século XIX cedeu lugar à resignação acabru- são a Tunísia e a Argélia. A cidade de Kairouan, ao sul da atual Túnis, foi
1hada do século XX. ' · fundada em 670. Os ataques atingiam territórios cada vez mais a oeste:
As origens e o crescimento do Islã são de fato extremamente difíceis de eles chegaram a Uemcen, na Argélia Ocidental, em 675 e, em 683, o co-
,er explicados, mas os fatos não são objeto de controvérsia. A pregação de mandante de um desses ataques penetrou até o Atlântico, próximo a Agadir,
\1aomé teve início logo após suas primeiras revelações, por volta de 610. ao sul do Marrocos. Os árabes haviam atingido o limite do mundo conhe-
~m 622 ele deixou Meca, dirigindo-se a Medina, a famosa ·Hijra (Hégira), cido. No entanto, a conquista islâmica de Magreb, na parte ocidental do
) U migração que, desde então, passou a marcar o Ano I do calendário Norte da África, mostrou-se uma empreitada muito mais lenta que as extraor-
nuçulmano. À época de sua morte, em 632, a comunidade fundada por ele dinariamente rápidas conquistas do Oriente Médio. Isso porque, no extre-
á englobava muitas das tribos que habitavam a Península Arábica. Um mo ocidental, os árabes depararam com a resistência ferrenha dos ber-
1ovo poder havia nascido. Nas gerações seguintes; os califas que sucede- b~res. Os berberes, em séculos anteriores, haviam resistido de forma obs-
·am à liderança do Profeta - e a palavra árabe khalifa significa simples- tinada às tentativas de incorporá-los à cultura dos romanos. Os gregos e
nente "sucessor" - concentraram as energias militares dessas tribos sobre romanos do antigo Mediterrâneo chamavam de "bárbaros" a todos os es-
)S povos sedentários do Crescente Fértil. Àquela data, essa área era domi- trangeiros, palavra essa que macaqueava o rude falar desses povos.
1ada pelas duas superpotências do mundo antigo, os impérios persa e Apenas em Magreb esse rótulo permaneceu desde então até os dias de
·omano. Entre 633 e 651, a Pérsia foi ·derrotada pelo Islã e invadida em hoje: "berbere" deriva~se de barbari, bárbaro. O alcance político do Impé-
1ma série de campanhas-relâmpago, e o domínio islâmico, no Oriente, rio Romano do Ocidente, um dia, se estendera de fato para além de Cesaréia
ttingiu as terras que correspondem ao atual Afeganistão. Nos primeiros (Cherchel, a oeste de Argel), ao longo de uma faixa costeira cada vez mais
mos do século VII, o Império Romano consistia nas terras ao sul e a leste estreita, que atravessava a província da Mauritânia Tingitana, passando
io Mediterrâneo, indo da Grécia e dos Bálcãs, através da Ásia Menor, da por sua capital, Tingis (Tânger), e descendo a costa atlântica até Sala (Salé,
,íria, da Palestina e do Egito, entrando pelo norte da África e chegando até nos arredores de Rabat); e um precário domínio imperial na região em
)Ontos remotos do atual Marrocos. (Muitas vezes referirno-nos a ele como tomo de Septem (Ceuta), restaurada por Justiniano no século VI, sobrevi-
Richard Fletcher Em busca de EI Cid
veu até o final do século VII. Mas as marcas características da civilização acontecimentos a partir de uma perspectiva moralizante. Um bode expiatório
romana estavam ausentes. Havia poucas cidades que, além disso, eram tinha de ser encontrado, para carregar a culpa pelo colapso do reino
pequenas. A religião oficial do mundo romano tardio, o cristianismo, dei- visigótico. O rei Roderic, segundo . o boato de tempos posteriores, havia
xara poucas marcas. Os berberes não quiseram ser civilizados pelos roma- seduzido a filha de ·um certo conde Juliano, que então convidara Tarik a
nos, tampouco queriam ser dominados pelos árabes. Eles a~abaram sendo vir à Espanha para ser o instrumento de sua vingança contra o rei. Essa
conquistados pelos ãrabes, mas lentamente, ao longo de um período de história ·é um mito. Outros afirmaram que, no final do século VII e início
cerca de quarenta anos (entre 670-710), e com dificuldade, e sua assimila- do século VIII, havia algo de decadente no reino visigótico. A conquista
ção · à emergente cultura islâmica foi ainda mais gradual. podia então ser apresentada como uma conseqüência, e até mesmo como
É importante enfatizar esse ponto, uma vez que a chamada conquista castigo para os vícios da elite que governava a Espanha; seus resultados
árabe ou islâmica da Espanha; nos primeiros anos do século VIII, foi árabe trariam a purificação mediante o sofrimento paciente, seguida, à maneira
ou islâmica apenas em parte: ela foi especialmente berbere. Ela se deu da de Fênix, da ascensão de um espírito renovado, limpo e vital, dedicado à
seguinte maneira. No ano 711, Musa, o governador árabe da província de nobre tarefa da resistência e da renovação nacionais. Esse é um mito
Ifrikya - isto é, o Magreb -, enviou um ataque à Espanha, através do Estrei~ patriótico reassegurador; para o historiador, ele não passa, em poucas
to, sob o comando de um certo Tarik (que, ao que sé diz, deu seu nome a palavras, de tolice.
seu ponto de chegada: jebel Tarik, "o rochedo de Tarik", Gibraltar). A força Não havia nada de decadente no reino visigótico da Espanha. Os
enviada era pequena e a expedição pretendia ser apenas exploratória. No visigodos haviam invadido e conquistado a Espanha na década de 470.
vale inferior do Rio Guadalquivir, talvez não muito longe de Medina Sidônia, Eles eram um povo germânico ocidental, que já vivia, há cerca de um
Tarik deparou, no mês de julho, com um exército comandado pelo rei século, dentro das fronteiras do Império Romano, período esse no qual
visigodo da Espanha, Roderic, ou Rodrigo. À época da invasão, o rei en- eles adotaram boa parte do aparato da civilização romana, notadamente
contrava-se longe dali, ao norte da Espanha, lutando contra os bascos. o sua religião. Eles admiravam o modo de vida romano e adotaram-no por
exército que ele comandava para enfrentar os invasores havia · sido reuni- completo. A Espanha visigótica era o mais romanizado dos estados suces-
do às · pressas, as tropas estavam cansadas e, provavelmente, não eram sores do domínio romano surgidos nas pr:ovíncias da Europa Ocidental.
numerosas. No embate que ocorreu, Roderic foi derrotado de forma deci- Logo após a conquista visigótica, em 483, uma inscrição foi gravada em
siva e morto, sem deixar um sucessor óbvio. Tarik se apressou a tomar pedra, em Mérida, registrando .o conseno de uma ponte romana sobre o
posse da capital, Toledo. Esses acontecimentos totalmente inesperados Rio Guadiana. A obra foi realizada por um funcionário visigodo do gover-
logo em seguida trouxeram Musa à Espanha, acompanhado de um exérci- no local, a pedido do bispo católico, Zeno. Esse episódio simboliza a
to muito mais numeroso. Em uma série de campanhas travadas entre 712 e determinação dos godos em manter o aparato da civilização romana. Em
715, ele e Tarik conquistaram a maior parte da Península Ibérica, antes de questões de governo, economia e cultura, entendida na acepção mais am-
serem chamados de volta a Damasco pelo califa. Seus sucessores comple- pla, havia um grau muito maior de continuidade do romano" para o pós-
taram o trabalho: por volta do ano 720, toda a Península estava sob o romano na Espanha visigótica do que o havia na Gália franca ou na Ingla-
controle dos invasores. A presença islâmica na Espanha, que de uma ma- terra anglo~saxã. O nome de rei Recceswinth pode soar rude a nossos
neira ou de outra perduraria por grande parte de um milênio, deixando ouvidos, mas foi ele que, sob o nome de Flavius Reccesvintus Rex, pro-
uma marca profunda na cultura espanhola, começou quase por acidente, 0 mulgou, no ano de 654, o mais sofisticado código legal produzido nos
sucesso casual em uma única batalha. primórdios da cristandade medieval do Ocidente. Seu antecessor, o rei
Isso, por sua vez, nos diz algo acerca do reino conquistado por Tarik e Sisebut (morto em 621), era um homem culto que escrevia, em latim, verso
Musa. Uma longa tradição de escritos históricos espanhóis, de índole pa- e prosa de qualidade. A cultura latina da Espanha do século VII, da qual
triótica - ainda bem viva, em certos ambientes - tentou apresentar esses Isidoro, o bispo polimático de Sevilha (morto em 636) era o luminar, era a
Richard Fletcher Em busco de EI Cid
mais rica da Europa Ocidental. Uma notável sene de arcebispos da Sé Grande parte da cultura romano-gótica da Espanha foi destruída no
Primacial de Toledo presidiu sobre uma sucessão de concílios, que redigiu século VIII. A imagem popular da Espanha mourisca é a de uma terra de
uma legislação impressionante, tanto por seu volume quanto por sua qua- abundância e tranqüilidade, onde mesquitas e palácios se erguiam em
lidade, para servir de orientação à igreja espanhola. Os religiosos do sécu- meio a cidades populosas e bem governadas, cercadas por campos irriga-
lo VII ocupavam-se de atividades diversas: eles elaboraram uma liturgia
dos e laranjais, e onde cortesãos discutiam poesia em frescos jardins. Tal-
esplêndida, fundaram inumeráveis monastérios, escreveram sobre teolo-
vez essa imagem, vez por outra, tenha correspondido à realidade em al-
gia e impuseram, de forma vigorosa, a observância do cristianismo sobre
guns lugares e em uma data posterior. A realidade dos séculos VIII e IX era
uma população rural apenas em parte cristianizada. Os, infelizmente, pou-
totalmente diversa. Há três pontos que devem ser ressaltados. Em primei-
cos edifícios, esculturas e peças de joalheria que sobreviveram, chegando
ro lugar, a história social e política desse período foi de extrema turbulência.
até nós do período visigótico, sugerem uma rica cultura artística.
Em segundo, o surgimento de uma sociedade distintamente islâmica, na
Isso não quer dizer que tudo fosse harmonia no estadq e na socieda-
Espanha, foi gradual. Em terceiro, os passos em direção àquilo que viria de
de visigótica. Como aconteceu no restante do mundo mediterrâneo, é
fato a se tornar uma sociedade esplêndida foram lentos e hesitantes.
provável que a Espanha estivesse começando a passar por uma longa
Dentre os invasores, os berberes formavam as tropas e um número
depressão econômica, a partir, aproximadamente, do ano 600. Os sinto-
muito menor de árabes fornecia a liderança. Quantos eram eles? A esti-
mas dessa depressão, especialmente o abandono das cidades, vêm sendo
trazidos à luz pelos arqueólogos. Suas causas permanecem obscuras, mativa mais recente sugere que pelo menos entre 150 mil e 200 mil guer-
embora a mais importante delas talvez tenha sido a chegada da peste reiros árabes e berberes migraram para a Espanha no século VIII. Esses
bubônica às costas do Mediterrâneo, em meados do século, que se tornou números devem ser multiplicados em muitas vezes para incluir mulhe-
endêmica durante os dois séculos seguintes. Os efeitos dessa depressão res filhos escravos e outros dependentes. Em outras palavras, é possí-
' '
devem ter sido debilitantes. Como as demais monarquias dos primeiros vel .que um milhão de imigrantes tenha se estabelecido na Espanha no
tempos da Idade Média, os reinos visigóticos eram basicamente instáveis. decorrer daquele período. No cômputo geral, os berberes talvez supe-
Não havia convenções claras para reger a sucessão ao trono, e eram co- rassem os árabes numa proporção de até dez para um. Na colonização
muns, nas camadas mais altas da aristocracia, as guerras entre as facções que se seguiu à conquista, a minoria árabe tomou para si todos os terri-
que apoiavam candidatos rivais. Ao que parece, Roderic, nos anos 710- tórios mais ricos do sul, reservando para a maioria berbere, politicamen-
711, foi confrontado por rivais do nordeste do reino, que talvez tenham te menos poderosa, as terras menos lucrativas do centro e do norte. Não
contribuído para sua derrota, de forma direta ou indireta. O reino era é de surpreender que tenha havido fricção entre esses dois grupos. Na
menos unido do que nossas fontes parecem sugerir. É significativo que, à década de 740, os berberes se rebelaram contra os árabes e uma guerra
época da invasão de Tarik, o rei Roderic estivesse a centenas de quilôme- civil eclodiu. As lutas duraram, intermitentemente, pelos vinte anos se-
tros de distância, ocupado em tentar subjugar, como tantos. governantes guintes. Os próprios berberes estavam longe de ser unidos. Sua socieda-
espanhóis antes e depois dele, esse povo notoriamente insubmisso, os de era tribal, sendo sua unidade social básica o qawm (fração, ou clã),
bascos. Uma outra minoria presente na Espanha era a comunidade judai- formado por várias centenas de "tendas", ou famílias. Esses clãs deixa-
ca, ao que parece bastante numerosa nas cidades do leste e do sul (que ram sua marca em muitos nomes de lugares da- Espanha, por exemplo a
sempre foram mais prósperas e sofisticadas que as do oeste e do norte). pequena cidade aragonesa de Mequinenza, no vale do Ebro, a jusante de
Por razões nunca esclarecidas, os judeus foram submetidos a selvagens Saragoça, retira seu nome do qawm berbere Miknasa. A coesão de qual-
perseguições pelas autoridades visigóticas, especialmente no final do sé- quer qawm era mantida por aquilo a que os antropólogos chamam de
culo VII. Seu sofrimento fez que eles olhassem para as hostes de Tarik e casamento endogâmico, ou seja, casamentos dentro de um mesmo gru-
Musa como libertadoras, e é possível que eles tenham contribuído para a po. No entanto, mulheres de um qawm podiam ingressar em um outro
rapidez da conquista. casando com um de seus-membros, e elas traziam consigo seu dote nupcial.
~,cnara tlelcher
Em b1.rnc:e der, EI Cid
A atração ou a captura de mulheres era uma das principais maneiras Em que ritmo as pessoas se converteram de suas religiões anteriores à fé
usadas por um qawm para aumentar sua riqueza e seu prestígio à custa islfünica? Em tempos recentes, algumas pesquisas tentaram responder a
dos demais. Uma outra maneira era o roubo de gado, do qual dependia, (.'SSa difícil pergunta. Seus resultados, embora em um certo grau espe-
em grande parte, a economia predominantemente pastoril dos berberes. culativos, como não poderia deixar de ser, dada a natureza dos indí-
Ambos os tipos de rivalidade podiam levar a prolongadas e violentas dos existentes, sugerem que, na Espanha, apenas 8% da população era
guerras intertribais. A autoridade política acima do nível dos anciãos de muçulmana por ~olta do ano 800; que essa proporção subiu para 12,5%
cada qawm era desconhecida para eles. A sociedade berbere era em 850; que ela saltou para cerca de 25% por volta de 900 e para 50% em
"segmentária". Guerras tribais constantes eram .a norma. 950, antes de atingir seu máximo de 75%, por volta do ano 1000. O perío-
Para complicar ainda mais as coisas, havia dissensões em meio à elite do de transferência de afiliação religiosa mais intensa, portanto, ocorreu
árabe, e a confusão foi ainda agravada pelos perturbadores acontecimen- por volta de 850 e de 950. É possível afirmar que o material estatístico
tos do meado do século VIII, quando, em 745-750, a dinastia dos califas que leva a essa conclusão - com base apenas nos padrões verificados
Umayyad, de Damasco, foi derrubada pela dinastia rival dos Abbasid (que nos nomes próprios - talvez seja corroborado por indícios de outros
descendiam e levavam o nome do tio de Maomé, al-Abbas). O primeiro tipos. Sob a lei islâmica, cristãos e judeus, sendo "Povos dos Livros", são
califa Abbasid era conhecido pela alcunha al-Saffah, "o derramador de tolerados. As comunidades cristãs que continuaram a viver sob o domí-
sangue", pela sua inclemente perseguição e eliminação dos membros da nio islâmico, em al-Andaluz, eram corthecidas como moçárabes. No mea~
família Umayyad deposta. Um desses .membros, entretanto, conseguiu es- do do século IX, um certo número de moçárabes cristãos de Córdoba,
capar das garras de al-Saffah, um jovem de nome 'Abd al-Rahman que, preocupados com a crescente atração exercida sobre seus correligioná-
após uma série de aventuras eletrizantes, conseguiu chegar até Magreb. rios pela cultura árabe e pela fé islâmica, buscou o martírio de , forma
De lá, ele atravessou o mar, chegando à Espanha em 756. Ele armou ·um deliberada, insultando em público o Profeta e seus ensinamentos. E plau-
golpe militar, depôs o último dos governantes nominalmente leais à auto- sível pensar que a época em que ocorreu esse bizarro episódio tenha
ridade do califa e proclamou a si próprio amir de al-Andaluz (o nome relação com o crescimentb do número das conversões ao islamismo. O
árabe para a área da Península Ibérica sob controle islâmico). A partir mesmo pode-se dizer da migração de grandes números de moçárabes,
dessa data, a Espanha permaneceria politicamente independente das se- que deixaram al-Andaluz para ir viver em outros lugares governados por
des do poder islâmico do Oriente Médio. autoridades políticas cristãs, o que foi um traço marcante desse período,
A dinastia de 'Abd al-Rahman iria governar o al-Andaluz por dois sécu- especialmente dos anos entre, aproximadamente, 870 e 940, em reação,
los e meio. Ela produziu alguns governantes de grande competência que, ao que parece, à rápida islamização da sociedade andaluz. Indícios ar-
de Córdoba, presidiam uma das civilizações mais ricamente criativas já quitetônicos apontam na mesma direção: as ampliações sucessivas da
vistas na Europa. Mas tudo isso, deve-se ressaltar, ainda estava por vir. grande mesquita de Córdoba - uma das glórias da arte islâmica - foram
Sobrevivendo de · forma precária, em princípio, os novos governantes só efetuadas, ao que se pode supor, para abrigar uma congregação de fiéis
gradualmente conseguiram ampliar o alcance territorial de sua autoridade cada vez maior.
' As conversões contínuas, seguidas da integração gradual dos converti-
e os obstáculos a seu I?rogresso provinham não apenas da resistência das
tribos. berberes, . mas também de lutas recorrentes dentro da própria famí- dos à condição plena de crentes sob a lei islâmica, foram uma das princi-
lia, e de disputas sangrentas pela sucessão ao cargo de amir. pais bases sobre as quais repousava o poder paulatinamente crescente
O desenvolvimento de uma sociedade islâmica na Espanha ocorreu, dos amires de Córdoba. Os convertidos passaram a representar, por assim
como é óbvio, pela conversão de grande número de pessoas ao Islã. É dizer uma nova· clientela social. Seus integrantes eram definidos por reli-
provável que poucos, dentre os berberes, fossem muçulmanos à época gião 'e cultura, e não por etnia e lealdades tribais, formando um público
da invasão, e havia também os cristãos e judeus naturais da Península. interessado na estabilidade, que podia servir ao governo de formas úteis e
Richard Fletcher Ern busca do EI Cid
pacíficas, como funcionários administrativos, coletores de impostos ou única moeda cunhada na Espanha muçulmana era o dirhem de prata, mas
advogados. (É verdade que esses papéis podiam ser desempenhados tam- na década de 920, Abd al-Rahman III inaugurou um período de birnetalismo,
bém pelos que não se haviam islamizado: os cristãos moçárabes remanes- dando início à cunhagem de moedas de ouro chamadas dinars. A propor-
centes e os judeus.) ção era de dezessete dirhems para um dinar, compatível com a proporção
A barganha tácita assim firmada era vantajosa para os novos servido- praticada no restante do mundo islâmico e no Império Romano do Oriente
res do amir, já que eles podiam enriquecer servindo o estado. E era conve- - o que, por si só, já indica que al-Andaluz era agora parte de uma comu-
niente também para os seus senhores, uma vez que as relações monetárias nidade comercial mais vasta. A casa da moeda estatal, situada em Córdo-
dissolvem as velhas lealdades tribais: burocratas assalariados e soldados ba, controlava o peso, a qualidade e o desenho das moedas. O volume de
profissionais são apoios mais confiáveis, para .um governo, que os mem- moedas em circulação parecia ser muito grande, o que também indica um
bros de clãs dilacerados por vendetas. Relações dessa natureza tomaram- comércio próspero, uma vez que apenas uma balança comercial favorável
se possíveis em razão do desenvolvimento da economia de al-Andaluz. Os poderia explicar um influxo de metais preciosos capaz de sustentar uma
tempos difíceis da longa recessão econômica, pela qual todo o mundo circulação monetária ·de grandes proporções.
mediterrâneo parece ter passado por volta de 600 e de 800, chegaram ao Em última análise, a prosperidade andaluz era baseada na agricultura.
fim, dando lugar a uma lenta melhoria do clima econômico, ao longo do Ibn Hawkal ficou muito impressionado com o que viu:
século IX. Tanto as causas quanto os estágios dessa recuperação econômi-
A terra é bem irrigada, ou pela chuva, que é coletada em boas quantidades
ca continuam misteriosos, mas temos que postular a ocorrência dessa re- na primavera, ou por canais, dos quais há uma rede estupenda, e muito bem
cuperação, mesmo que unicamente para explicar a riqueza e o otimismo cuidada.
do século X.
No ano de 948, um viajante árabe, de nome Ibn Hawkal, visitou a Havia dois tipos de irrig~ção na Espanha medieval. O primeiro deles
Espanha. Cerca de vinte anos depois, ele compôs um manual geográfi- era gravitacional: o fluxo d'água descendo de sua fonte, em rio ou cister-
co, com o ambicioso título de Descrição do mundo, que incluía um rela- na, era controlado também por uma rede de canais ou calhas. O tipo mais
tório sobre a Espanha, com base em suas viagens por aquelas terras. Ibn complexo usava energia: a água era extraída de sua fonte de forma artifi-
Hawkal era um homem inteligente e observador, e se queremos desco- cial, por meio de uma roda equipada com conchas e baldes e, então, distri-
brir como era o al-Andaluz do século X, o melhor a fazer é nos colocar- buída conforme necessário. Esse foi o modo de irrigação celebrado, entre
mos em suas mãos. outros, pelo poeta Ibn Waddah, de Múrcia (morto em 1136), em seu poema
O que primeiro chamou a atenção de Ibn Hawkal foi a prosperidade A roda d'água:
geral de al-Andaluz.
Ah, aquela que chora enquanto o jardim ri,
Há algumas terras não cultivadas, mas a maior parte do país é cultivada e Quando ela derrama suas torrentes de lágrimas,
densamente povoada ... A abundância e o contentamento governam cada aspec- O que surpreende a quem a olha é isto:
to da vida. A posse de bens e os meios de adquirir riquezas são comuns a todas O rugido do leão e as contorções da serpente!
as classes da população. Esses benefícios estendem-se até mesmo aos artesãos e Ela forma lingotes de prata com a água da lagoa,
aos trabalhadores braçais, graças aos impostos leves, ao bom estado do país e à E faz-nos crescer nos jardins, na forma de dirhems!
riqueza de seu governante - pois ele não tem necessidade de cobrar impostos e
taxas pesados. Raras vezes, se é que alguma, a horticultura comercial foi tão eloqüen-
temente cantada.
Ele estava certo ao ver como indicador de toda essa prosperidade a Há muita ·polêmica a respeito das origens da tecnologia de irrigação
grande quantidade de dinheiro em circulação. A partir do século VIII, a espanhola. Parece provável que os sistemas que utilizavam energia - em
Em busco do EI Cid
K1cnord l"letcher
O crescimento demográfico, impulsionado por uma base agrária flo- idéia, por mais vaga que seja, daquilo que foi perdido. Quanto a outros
~scente, explica as populosas cidades de al-Andaluz e suas dinâmicas produtos, só podemos conhecê-los lendo sobre eles: os instrumentos musi-
:::onomias. Ibn Hawkal conta que Córdoba tinha quase a metade do tama~ cais que eram uma especialidade de Sevilha, por exemplo, ou o papel pro-
ho de Bagdá que, à sua época, era, provavelmente, a maior cidade do duzido na única fábrica de papel existente na Europa, situada em Játiva.
mndo. A população de Córdoba, numa estimativa conservadora, pode Outras mercadorias tinham ainda menor possibilidade de resistir ao
:r sido de cerca de cem mil pessoas, no século X, o que a teria colocado impacto do tempo: poucas coisas são tão perecíveis quanto o corpo huma-
do a lado com as outras grandes cidades do mundo mediterrâneo, Constan- no. Escravos eram importados para a Espanha, e uma alta proporção deles
:iopla, Palermo e Cairo. Ela, provavelmente, era pelo menos cinco vezes era reexportada. Aqui fala novamente Ibn Hawkal:
,aior que as maiores cidades do Norte da Europa (dentre as quais Lon-
:es talvez já fosse a mais populosa). É provável que, depois de Córdoba, Um importante produto de exportação são os escravos, homens e mulheres
jovens, trazidos da França e da Galícia, e também eunucos eslavos. Todos os
maior cidade de al-Andaluz fosse Sevilha, com uma população de talvez
eslavos eunucos existentes no mundo são trazidos da Espanha. Eles são castra-
:ssenta mil pessoas. Toledo pode ter tido a metade desse tamanho. dos neste país, e a operação é feita por médicos judeus.
tlência, Granada e Málaga talvez tivessem, cada uma delas, entre quinze
il e vinte mil habitantes; Badajoz, Lisboa e Saragoça podem ter atingido Quando João, abade de Gorze, na Lorena, foi enviado por Oto I da
1tre doze mil e quinze mil. Esses números não passam de aproximações, Alemanha em uma embaixada a Córdoba, em 953, ele levou mercadores
na vez que as fontes que sobreviveram até nós não permitem estimativas de Verdum como guias; quando Recemundo de Elvira foi enviado de Cór-
mfiáveis, mas elas são úteis, pelo menos, para fins de comparação. Cór- doba à corte de Oto I, três anos mais tarde (por razões relacionadas à
)ba, a sede do governo, ultrapassava de longe todas as demais cidades missão anterior de João), ele fez o mesmo. Esses mercadores de Verdum,
panholas do século X, embora seja possível que, no século XI, já não quase certamente, eram comerciantes dê escravos, pois é ainda um outro
sse assim, como veremos a seguir. As cidades mais populosas e mais homem daquela época, o bispo Liudprand, de Cremona - que encontrou
:as eram, de modo geral, as do Sul e do Leste, contrastando com as do Recemundo na Alemanha, em 956 -, que relata que os mercadores de
)rte e do Oeste, que eram bastante modestas. Toledo era a exceção que Verdum auferiam imensos lucros do comércio de escravos. Podemos reu-
infirmava a regra. nir, a partir de uma variedade de indícios esparsos, uma quantidade razoá-
Aquele era um mundo de cidades em rápida expansão. Almeria foi fun- vel de informações sobre esse tão pouco atraente tráfico (que, por sinal,
da por 'Abd al-Rahman III, em 955; cinqüenta anos depois, ela, provavel- consistia, quase certamente, na maior atividade comercial dos primórdios
=nte, já era uma das "dez mais", e já vimos provas da abrangência geográ- da Idade Média européia) . Os escravos provinham, principalmente, da
a de seu comércio. Entre as indústrias de al-Andaluz, Ibn Hawkal ficou grande faixa de território indomado que se estendia ao leste da Alema-
rticularmente impressionado com o que hoje chamaríamos, de maneira nha as terras dos eslavos. (Nossa palavra "escravo" deriva da designa-
ral, de artigos de luxo - têxteis, marfim, cerâmica, trabalhos em metal, ção' étnica sclavus, "um eslavo"; comparar com esclave, em francês.) É
1deiras finas - .e pelos seus produtos de couro. O linho espanhol era provável que os primeiros caçadores de escravos tenham sido especial-
portado para o Egito. Sedas de diversas .qualidades, da mais grossa e mente escandinavos. Os escravos .eram distribuídos para o ·Oriente e
Jera às de textura mais fina, eram tecidas e tinham grande procura . Quan- para O Ocidente, e Praga era o principal entreposto para os mercados
o vizir Almanzor quis recompensar os nobres cristãos que o acompanha- ocidentais. Lá, os mercadores de Verdum (e, sem dúvida, de outras cida-
n no saque à cidade de Santiago de Compostela, em 977, .ele distribuiu des) assumiam o comando, e começava então uma longa viagem, por
tre eles "2.285 peças do material feito de seda conhecido como tiraz, de terra e por mar, que levava à Espanha. Seria fácil e enganoso supor que
rios padrões e cores". Os artigos de luxo produzidos em al-Andaluz, hoj~ tinham melhor sorte os que morriam no caminho. Os escravos importa-
ibidos em museus de todo o mundo, são suficientes para nos dar uma dos para a Espanha, e que lá permanecia_m - pois muitos eram reexporta-
Richard Fletcher
Em busca de EI Cid
dos para o Norte da África - não eram, em geral, utilizados para trabalho uma · grande bacia cheia de mercúrio e , em cada um de seus lados, havia oito
braçal. Grande parte deles era convocada para os exércitos de al'-Andaluz. portas fixadas em arcos de marfim e ébano, ornamentadas de ouro e pedras
Um número menor; embora ainda considerável, era treinado para pres- preciosas de vários tipos, repousando sobre pilares de mármore multicolorido e
cristal transparente. Quando o sol penetrava no pavilhão através dessas portas,
tarserviços ao governo, na burocracia ou na administração doméstica da
tão forte era a ação de seus raios sobre o teto e as paredes, que seu reflexo,
corte. Em ambas essas carreiras, eles podiam ascender a posições influen- apenas, era suficiente para privar de visão o espectador. E quando o califa dese-
tes, e alguns deles se tornaram muito poderosos. Mais adiante, veremos java amedrontar um dos cortesãos que se sentavam com ele, bastava ele fazer um
mais sobre esses escravos. sinal, para que um. de seus escravos pusesse o mercúrio em movime nto e , instan-
Essa economia florescente e diversificada serviu de apoio ao governo taneamente, parecia que toda a sala estava sendo cortada por raios, e os presen-
tes começavam a tremer, pensando que o aposento estivesse indo embora.
dos três homens em cujos reinos o poderio de al-Andaluz atingiu seu zêni-
te: o amir 'Abd al-Rahman III, que governou de 912 a 961 , tomando, em O califa cercava-se de cerimonial elaborado, que intimidava os visitan-
929, o título religioso de califa; seu filho , o califa al-Hakam II (961-976); e tes não acostumados a ele. Quando concedeu uma audiência à embaixada
o vizir al-Mansur, mais conhecido como Almanzor que, entre 981 e 1002, de João de Gorze, foi considerado como sinal de grande favor o fato de
através do califa-fantoche Hisham II, foi o governante de fato, a quem só 'Abd al-Rahman III ter amenizado o protocolo a ponto de permitir a João
faltava o título e nada mais. A sede do governo situava-se em Córdoba beijar sua mão. A maior parte dos visitantes tinha de se prostrar perante o
sobre o Rio Gualdaquivir. A partir do século VIII, os amires mantivera~ califa e , ·daquela postura, apresentar suas solicitações.
sua residência principal em um palácio adjacente à grande mesquita, situa- 'Abd al-Rahman m mantinha um exército permanente de cerca de trinta
da na parte sudoeste da cidade, sobre a qual foi erguido o atual palácio mil homens e, sob Almanzor, esse número pode ter chegado a cinquenta mil.
episcopal, próximo à ponte romana sobre o rio. 'Abd al-Rahman III deu A principal fábrica de munições de Córdoba conseguia produzir vinte mil
início, em 936, à construção de um novo palácio em Madinat az-Zahra setas por mês e três mil tendas por ano. Havia, no vale inferior do
distante cerca .de quatro quilômetros e meio de Córdoba em direção a~ Gualdaquivir, nas ricas pastagens ao redor de Sevilha, haras para a criação
noroeste. Quando este ficou pronto, cerca de quatorze anos mais tarde, de animais para a . cavalaria. Estaleiros situados em diversos pontos - de
ele mudou-se para lá com a corte e com todas as repartições governamen- Tortosa, no nordeste, em direção a Alcácer, a Sal, próximo a Lisboa - forne-
tais. Em inícios do século XI, esses edifícios foram saqueados e destruídos, ciam as frotas que patrulhavam a costa. Os califas não mediam esforços
mas as descrições da época e as escavações realizadas há cerca de oitenta para controlar as comunicações. Sua chancelaria publicava boletins dando
anos nos dão uma idéia razoável de como era o novo palácio. Evidente- a versão oficial de suas campanhas anuais. Seus serviços postais contavam,
mente, ele era muito mais que um palácio: possuía quartel, uma mesquita, especialmente, com corredores treinados importados do Sudão. Eles pare-
jardins, residências para os funcionários públicos e para os dignitários visi- cem ter usado também pombos e heliógrafo para a transmissão de mensa-
tantes, oficinas, banhos, alojamentos para mercadores, e assim por diante. gens. Sua justiça era rigorosa, e as punições tão exemplares e draconianas
O palácio do califa, em si, era grande e esplêndido: o Versalhes de ai-Anda- quanto a lei islâmica o permite. A crucificação pública foi o destino daque-
luz. Diz-se que a ração diária de pão para os peixes de seus lagos era de les que 'Abd al-Rahman III considerou culpados pelo crime de traição de
doze mil bisnagas. Ele possuía aparatos mecânicos cujo propósito era im- responsabilidade, por sua derrota na batalha de Simancas, em 939.
pressionar e intimidar o espectador. Aqui vai uma descrição de um dos O governo dos califas de Córdoba, no século X, exibia, assim, muitas
mais famosos dentre esses aparatos: das conhecidas técnicas da autocracia. Ele impressionava, mas não pode-
mos deixar de nos perguntar quão eficaz ele era. A Espanha sempre foi um
· Uma outra das maravilhas de az-Zahra era o Pavilhão dos Califas, cujo teto país de tendência marcadamente separatista, onde uma autoridade políti-
era de ouro e de blocos sólidos, mas transparentes, de mármore de dive r; as ca única sempre teve grandes dificuldades em impor sua vontade sobre as
cores, sendo as paredes dos mesmos materiais ... No centro do aposento, havia
províncias. Isso não se deve a um traço renitente de perversidade ou de
Em busc:a do EI Cid
Richard Fletcher
.
datando, segundo uma mscnçao,. - d o ano 965 • os generais das
. fronteiras e
orgulho presente no caráter espanhol, mas acontece, simplesmente, em
suas famílias eram ainda menos passíveis de controle, por parte do gover-
razão do tamanho e da conformação física da Península. Os· governantes
no central, que .os governadores civis das províncias. As campanha_s
islâmicos da Espanha do século X enfrentaram os mesmos tipos de proble-
lançadas anualmente · pelos califas sobre as fronteiras do no~e, que ti-
mas que seus predecessores visigodos. O centralismo da Córdoba do sé-
nham O propósito ostensivo de atacar os cristãos d__:1que~a r~giao, ~r~v~-
culo X era tão frágil quanto o da Toledo do século VII. Nossa tendência a
velmente eram, em igual medida, viagens de inspeçao CUJO fim ,e~a mt~m~-
ignorar esse fato se deve a duas razões principàis: em primeiro lugar, sabe-
dar as fronteiras mais turbulentas. A autoridade de Córdoba so _ia _ate a1.
mos muito mais sobre a capital do que sobre as províncias - em grande
Também nas fronteiras, portanto, residia o potencial para os principados
parte porque os propagandistas dos califas fizeram muita questão que as-
sim fosse; em segundo, o mais ilustre dentre os historiadores modernos da independentes.
A autoridade central de Córdoba acabou por desmoronar de fato , e o
Espanha islâmica do século XI foi o estudioso francês Evariste Lévi-Provençal
califado unitário, no início do século XI, foi substituído por divers~s esta-
(morto em 1956), que era culturalmente ligado ao centralismo, e via as · dos sucessores. Esse processo criou o mundo político no qual ° Cid cre~~
províncias como ordinárias e desagradáveis. Essa é mais uma razão para ceu. A história dessas lideranças é muito complexa: no trecho a seguir
lançarmos sobre elas nosso olhar.
apresentarei uma versão simplificada.
As unidades de administração local em ai-Andaluz, como em outras Quando o califa al-Hakam morreu, em 976, ele f~i sucedid~ por seu
partes do mundo islâmico, eram conhecidas como kuwar, "províncias" (kura, filho Hisham, então com dez anos de idade. O poder ficou em maos de um
no singular), ou como tugur, "fronteiras" ( tagr, no singular). Cada kura era triunvirato formado pelos antigos ministros do califa, q~e ?~ssa~a~ a
administrado por um governador civil conhecido como um wali. A nomea- atuar como regentes. Dentre eles, um sobressaiu, um funcionano ~ubh~o
ção do wali era feita em Córdoba, embora, quase sempre, ele pertencesse eficiente, ambicioso e sem escrúpulos, de nome Muhammad ibn A~i ' ~_ir.
a uma família importante da região, e tinha ao seu dispor, para a adminis- · anos 976 e 981 , ele inventou modos de eliminar seus dois nvais.
Entre os •
tração de sua província, um modelo em miniatura do governo dos califas. De 981 até sua morte, ele foi O governante de ai-Andaluz, para todos o~
Com alguma sorte e bom gerenciamento, o wali podia ter liberdade de efeitos, menos no nome. Foi naquele ano que ele tomou o t;tu~o a~-Mansu;,
ação, com pouca ou nenhuma interferência de Córdoba, e sua província aeralmente ocidentalizado como Almanzor, "aquele que e vitorioso pel<L
poderia ser um pequeno estado gerido exclusivamente por ele. As frontei- º t d de Deus". Ele 1· á tinha então construído um .novo complexo de
vona e • ·1 "
ras - o termo em árabe significa "os dentes da frente" - eram as províncias palácios a leste de Córdoba, Madinat az-Zahira, "a cidade cmtl ante ' ~om
situadas nos extremos do território. No século X, havia três delas: uma , · o'b· vio
o proposito · de ri·vali·zar em esplendor
. com os edifícios construidos
.
fronteira superior ou oriental, com base em Saragoça, uma fronteira mé- por 'Abd al-Rahman III , mais a oeste, e foi para lá que el~ ~ransfenu todos
dia, com base em Medinaceli, e uma inferior, ou ocidental, em geral sediada os ór ãos do aoverno, em 981. A base financeira da posiçao de Almanzor
O
g · . h. · ·d · d o tesouro de
em Cória ou em Coimbra. As fronteiras eram, por definição, mais distantes era frágil. Diz-se que, ao morrer, al-Rakam avia e~a o n
da capital, Córdoba, e correspondentemente mais difíceis de controlar que Córdoba reservas colossais: quarenta milhões de dinars. Almanzor, po-
o kuwar. Elas estavam equipadas para a defesa de uma fronteira exposta, rém cortou ·impostos para angariar favores , tentou se sustentar com_base
e eram administradas não por um governador civil, mas por um ka 'id, ou nu~a intrincada rede de suborno, despejou dinheiro em construç~e_s e
general. Elas eram unidades de governo maiores que as províncias mais aumentou enormemente o tamanho do exército, sobre o q~al, em ultnna
ao sul, porém mais pobres e mais esparsamente povoadas. Suas unidades análise seu poder se apoiava. Talvez tenham sido as pressoes das neces-
de ocupação típicas eram as cidades fortificadas conhecidas como kal'a - .dade; financeiras O motivo de Alrrianzor ter se lançado às campa~has
termo esse que sobreviveu em muitos nomes geográficos na Espanha, como :~ntra os cristãos do norte da Espanha, pelas quais ele é mais conhecid~,
Alcalá e Calatayud - e os castelos, dos quais alguns exemplares magnífi- embora ele tenha tomado todos os cuidados para ser visto, antes de mais
cos ainda estão de pé, como o de Gormaz, na atual província de Sória, nada, como um defensor da causa do Islã:
Richard Fletcher
Em busco do EI Cid
Ele copiou, de próprio punho, um Corão que sempre levava consigo em suas
campanhas, e que lia constantemente ... Ele também levava sempre consigo
Na turbulência caótica dos anos seguintes a 1008, esses generais entraram
suas vestimentas mortuárias, estando, assim, preparado para encontrar-se com a cm cena para desempenhar um sinistro papel político.
morte a qualquer momento em que ela o atacasse. A mortalha era feita do linho Durante os 23 anos posteriores a 1008, facções de constituições as
cultivado nas terras herdadas de seu pai, e fiado e tecido por suas próprias filhas. mais diversas, formadas por legalistas da dinastia Umayyad, partidários
da dinastia de Almanzor, generais eslavos ou berberes e burocratas natu-
Os versos em sua tumba adotaram um tom mais triunfalista:
rais de al-Andaluz, guerrearam pelo controle daquilo que ainda restava do
Os traços que ele deixou atrás de si governo central, tão laboriosamente construído por 'Abd al-Rahman III. A
te dirão quem ele foi, como se tu desintegração da autoridade política unitária foi o processo de maior im-
estivesses vendo-o com teus próprios olhos. portância ocorrido nesse período. É simbólico que tanto a cidade de Cór-
doba quanto o palácio dos califas, em Madinat al-Zahra, quanto o palácio
Por Allah, as gerações vindouras
jamais produzirão um igual a ele, de Almanzor, em Madinat al-Zahira, tenham sido, todos eles, saqueados
e tampouco_ um que saiba melhor no decorrer dos anos 1009-1013. O último de uma sucessão de califas
como defender nossas fronteiras. incompetentes, fracos e de vida curta, Hisham III foi mandado embora em
1031. Ele era por demais insignificante para que fosse exigida dele a assi-
Almanzor morreu em 1002. Seu filho, 'Abd al-Malik, ·sucedeu-o no car- natura de um ato de abdicação, quanto mais para merecer ser executado.
go e manteve o poder até sua morte prematura, em 1008. Foi então que O califado de Córdoba, como instituição, havia terminado para sempre.
começaram as dificuldades mais graves, uma vez que a herança que
Almanzor deixou ia muito além das glórias militares efémeras e de uma
reputação de homem piedoso. As políticas de Almanzor e de seu filho
continham dois enganos fatais. Em primeiro lugar, eles destituíram de fato
o califa e, ao fazê-lo, enfraqueceram a já bastante nebulosa base intelectual
na qual repousavam as instituições do califado espanhol. Se um aventurei-
ro foi capaz de desbancar a autoridade constituída, outros, então, poderiam
fazer o mesmo. Foi essa a reflexão que ocorreu a diversas pessoas, de 1008
em diante. Quando agiram com base nessa reflexão, muitas vezes com
resultados que se mostraram fatais a elas próprias, essas pessoas inaugu-
raram um período de extrema instabilidade política, precisamente no pon-
to onde essa instabilidade teria os efeitos de maior gravidade: no centro,
em Córdoba. O segundo legado fatal do período em que Almanzor deteve
o poder foi a proliferação do Exército. Além da pressão financeira, essa
expansão introduziu novos povos em al-Andaluz, uma vez que Almanzor
recrutava soldados entre os berberes do Magreb e entre os escravos im-
portados da Europa Central para a Espanha. As tropas de Almanzor nunca
foram assimiladas à sociedade andaluz, permanecendo como um elemen-
to alienígena, visto com rancor pela população, que tinha que arcar com
seus custos. Seus generais tinham mais lealdade pessoal para com a casa
de Almanzor do que para com o que restava da dinastia dos califas Umayyad.
3
O rompimento do colar
Era característico dos reinos taifa ter como base a cidade que, anterior-
mente, havia sido a capital da província ou da fronteira, como Sevilha ou
Saragoça, onde já existia um aparato de administração local e um certo
Richard Fletcher Em busca de EI Cid
grau de solidariedade regional, passível de ser explorado por um oportu- mais ao norte. É, portanto, possível que ele tenha organizado o levante
nista. Em princípio, no período de turbulência máxima, até 1040 mais ou contra Muzaffar. Enquanto isso, crescia em Saragoça um neto do grande
menos, havia cerca de três dúzias desses pequenos principados. Mas os Almanzor, que não era filho de 'Abd al-Malik (que morreu em 1008), mas
peixes graúdos engoliram os miúdos e, em meados do século, meia dúzia do meio-irmão deste, segundo filho de Almanzor ~ com uma esposa espa-
de estados maiores ganharam preeminência: Sevilha e Granada, ao sul; nhola e cristã, por sinal-, 'Abd al-Rahman, morto em 1009, nos violentos
Badajoz, a oeste; Toledo, na região central; Valência, na costa leste; e episódios ocorridos em Córdoba. Nascido em 1007, tendo portanto ape-
Saragoça, a nordeste. Somos apresentados ao cenário político da Espanha nas dois anos à época da morte de seu pai, o menino, 'Abd al-Aziz, foi
do meado do século XI, a época da infância e da juventude do Cid que, levado, em custódia, à longínqua Saragoça, onde foi criado. Durante a
em certos aspectos, faz lembrar a Grécia pré-alexandrina, a Itália queda da dinastia de Almanzor, e em resultado dela, certo número de
renascentista ou a Alemanha do Iluminismo: diversos principados, em es- escravos e empregados que haviam ocupado posições importantes na
tado de constante rivalidade mútua. corte chegou a Valência como refugiado. Em 1022, eles, secretamente,
Para examinar mais de perto esse fervilhante cenário, tomemos alguns entraram em contato com 'Abd al-Aziz, oferecendo-lhe a chefia do princi-
exemplos desses estados taifa, a começar pelo principado de Valência. p~do. O jovem, então com cerca de quinze anos apenas, aceitou. Com o
Havia dois irmãos, de nome Mubarak e Muzaffar. Esses não eram seus auxfüo vindo de Saragoça, foi dado um golpe, e Labib foi deposto. 'Abd
nomes originais. Eles haviam sido capturados, ainda crianças, em terras al-Aziz reinou prosperamente sobre Valência por quase quarenta anos.
cristãs - possivelmente, embora não se possa ter certeza, em algum lugar Nós o reencontraremos mais adiante.
da Europa Oriental -, vendidos como escravos na Espanha, castrados e Em segundo lugar, examinemos o principado taifa de Granada. O
criados na religião e na cultura do Islã, Até esse ponto, nada de diferente nome é equivocado, pois, quando ele surgiu, a cidade de Granada ainda
da história de milhares de pessoas, nos séculos X e XI. Eles vieram a ser não existia. A capital da província era Elvira, distante cerca de nove
escravos de um homem chamado Mufaris, ele próprio um escravo, que se quilômetros em direção a noroeste, situada nas terras planas que for-
tornou chefe da polícia de Almanzor, no palácio de az-Zahira. O cargo mam a vega, as planícies cultivadas que circundam os morros rochosos
pouco palatável, mas muito poderoso de seu amo, ao que parece, introdu- que são o núcleo da atual Granada. A vega de Elvira foi muito disputada
ziu os irmãos - literalmente - nos corredores do poder no palácio. Nada no perturbado início do século XI: uma terra sem governo, esperando
sabemos sobre os estágios seguintes de suas carreiras, mas podemos su- por um protetor. A oportunidade foi aproveitada por um dos generais de
por que eles se saíram muito bem e prosperaram, uma vez que, em 1010, Almanzor, um berbere.de nome Zawi, que assumiu o controle da provín-
eles, conjuntamente, eram os responsáveis pela irrigação da huerta - a cia por volta de 1013. Ele afirmava, como costumam fazer os que chegam
faixa de terra irrigada - de Valência; ou seja, eles detinham o controle do ao poder mediante um pronunciamiento, ter agido a pedido dos habi-
fornecimento de água e de alimentos daquela cidade. Por meio de um tantes de Elvira. Zawi prudentemente mudou a sede de seu poder para
golpe, cujos detalhes desconhecemos por completo, eles se tornaram os um local mais defensável, e Granada começou a surgir sobre sua monta-
senhores de Valência e de sua região, e lá governaram, conjuntamente, de nha. Apesar da fragilidade de sua posição inicial, Zawi fundou uma di-
1010 a 1018. Diz-se que seu governo foi cruel. Ao que se conta, eles ex- nastia que governou Granada por quase oitenta anos. Seu último rei,
traíam 120 mil dinars em impostos a cada mês; uma soma gigantesca, na 'Abd Allah, o tataraneto do irmão de Zawi, escreveu as memórias já antes
qual mal podemos acreditar. Mubarak, então, morreu num acidente, ao mencionadas, que são a principal fonte de informações sobre a família.
cair de um cavalo. Os valencianos se sublevaram contra Muzaffar e mata- Sobre 'Abd Allah, e as desafortunadas circunstâncias nas quais ele redi-
ram-no. Eles, então, escolheram para governá-los, não se sabe por meio giu suas memórias, teremos mais a dizer a seguir.
de que· procedimentos,. um certo Labib, também ex-escravo. Esse Labib, A taifa de Saragoça também apresentava uma experiência de outro
em cerca de 1015-1016, era o governante de Tortosa, uma cidade costeira tipo. Essa cidade, como o leitor deve estar lembrado, era a capital da
Richard Fletcher Em buscc1 do EI Cid
fronteira superior, durante o governo dos califas Umayyad, de Córdoba. tomou o poder em 1009-1010, mantendo-o por quase um século, o mes~
Desde o final do século IX:, Saragoça havia sido governada por uma família mo acontecendo com os Banu Razin, que deram seu nome a Albarracín.
conhecida como os Tujibidas, ·nominalmente sujeitos a Córdoba mas, por Esses dois pequenos estados são dignos de nota, principalmente, pela
boa parte desse tempo, praticamente independentes. Nos primeiros anos longevidade de seus governantes: 'Abd Allah II, de Alpuente, governou de
do século XI, a família simplesmente permaneceu na condição de governante 1043 a 1106, e Abu Marwan governou Albarracín de 1044 a 1103. Esses
local, após terem desaparecido os últimos vestígios de autoridade central. homens, já entrados em anos, viriam a receber as atenções nada bem-
Em 1039, uma família rival da região, os Banu Hud, ou Hudidas, cujo vindas do Cid, mas ambos conseguiram sobreviver a ele.
poder, ao que parece, centrava-se na área de Tudela, organizou um golpe. Alpuente e Albarracín mantiveram sua independência talvez por não
Os Tujibidas foram depostos e um novo governante, Sulayman ibn Hud, serem atraentes aos predadores. Àquela época, como ainda hoje, as terras
assumiu o poder. A dinastia Hudidas reinou em Saragoça até 1110. As aorestes onde eles se situavam não poderiam ter sido nem populosas
o
relações do Cid com seus membros viriam a ser estreitas. nem ricas. Mas isso era pouco comum. Em geral, os reinos taifa eram
Esses três tipos diferentes de transferência de liderança - os burocratas ricos. Embora a vida econôrnica de al-Andaluz deva ter sofrido durante as
que organizaram a tomada do poder, o general posando como protetor e perturbações dos anos entre 1009 e 1031 , há sinais de que a recuperação
a família dos chefes locais que foi ficando - não exaurem a totalidade das foi rápida. Os reis taifa herdaram a riqueza que al-Andaluz possuía sob o
maneiras pelas quais os principados taifa surgiram, embora sejam razoa- califado. Entre os muitos indícios de um considerável poder de compra,
velmente representativos. O que esses três exemplos também mostram é um pode ser visto nas obras públicas realizadas durante esse período. Em
quão vulneráveis são os governantes, individualmente. E não apenas os Valência, 'Abd al-Aziz ergueu muros em torno da cidade e fez construir
governantes individuais, mas, muitas vezes, também os seus reinos. Tome- uma ponte de pedra sobre o Rio Turia. Em Granada, a dinastia Ziríada
mos o caso de Denia, ao sul de Valência. Aqui, um reino foi formado por realizou obras públicas do mesmo porte . Inumeráveis exemplos pode-
volta de 1012, por um certo Mujahid, antes um escravo a serviço de riam ser citados.
Almanzor. Sua autoridade englobava as Ilhas Baleares, e parece ter se A riqueza dos reinos taifa permitiu que eles se dessem ao luxo de se
estruturado, em grande parte, em seu poderio naval: em 1015-1016, por dedicar à atividade pela qual eles são mais lembrados, o patrocínio da
exemplo, ele lançou um ousado ataque à Sardenha que, entretanto, aca- literatura, do saber e das artes. É claro que outros fatores , além da riqueza ,
bou por fracassar. Ele reinou sobre Denia por trinta anos, passando o tiveram influência nesse contexto. O mecenato era uma atividade tradicio-
poder para seu filho Ali, que reinou por mais trinta. Denia parecia segu- nal dos príncipes, dando prestígio ao patrono e à sua corte. A competição
ra, mas foi repentinamente encampada pelo governante Hudidas de cresceu entre as diferentes cortes: qual príncipe conseguiria atrair os poe-
Saragoça, em 1076. Ou tomemos o caso de Sevilha, cujos governantes tas mais talentosos, ou os sábios mais eruditos, encomendar o ·palácio
absorveram, sucessivamente, as taifa de Mértola, Huelva, Niebla, Algarve, mais luxuoso, construir os jardins mais elegantes? Devemos também levar
Algeciras, Silves, Morón, Ronda , Arcos, Carmona, Segura, Córdoba e em conta as pressões de um passado distante. Ibn Ghalib, de Córdoba
Múrcia, para tornar-se, por volta de 1070, o mais extenso e poderoso de (morto em 1044), escreveu um texto intitulado "O contentamento da alma
todos os reinos taifa. ao contemplar as ruínas antigas encontradas em al,.Andaluz". Contenta-
Houve também, por sua vez, alguns estados e dinastias taifa que so- mento . para um antiquário, talvez, mas não necessariamente para um
breviveram sem ser molestados por seus vizinhos. Dois exemplos são os governante. Próximo a Sevilha, ainda se encontrava de pé o quarto maior
principados sediados em Alpuente e Albarracín, situados a cerca de 60 e anfiteatro do mundo romano (que foi destruído pela corporação de Sevi-
120 quilômetros, respectivamente, a noroeste de Valência, entre as monta- lha, na década de 1730, a fim de obter pedras para a construção da barra-
nhas que dividem o vale do Ebro da Espanha Central, na atual província gem do Rio Guadalquivir). Por quais monumentos um governante do sé-
de Teruel. Em Alpuente, uma família importante da região, os Banu Qasim, culo XI seria lembrado? Havia também as pressões de um passado mais
Richard Fletcher Em busco do EI Cid
recente. O palácio de 'Abd al-Rahman III, nos arredores de Córdoba, foi conquista de Toledo, em 1085, tendo sido dada por ele ao bispo de Palencia.
arrasado, nada restando dele, mas todos ainda se lembravam de seu es- Essas arcas eram muito valorizadas nos círculos eclesiásticos cristãos como
plendor. A emulação do passado era um incentivo ao mecenato dos prín- recipientes para a guarda de objetos preciosos e, especialmente, relíquias.
cipes do século XL Em um certo sentido, além disso, o fim do califado Elas, algumas vezes, eram "cristianizadas". O painel da arca ilustrada na
liberou as energias das províncias. A vida cultural, assim como a política, Figura 2 recebeu tratamento desse tipo: o painel original pode ser atribuí-
era centralizada no século X. No século XI, a retirada da mão-de-ferro que do, por razões estilísticas, à mesma oficina de Ibn Zayyan, de Cuenca,
tentava direcionar todos os esforços artísticos para Córdoba liberou um datando de cerca de 1050; em uma data muito posterior, um anjo cristão
surto de energia criativa nas províncias. Por um acaso feliz, as condições foi inserido, arruinando seu elegante desenho, mas fazendo uma declara-
eram propícias a um florescimento das artes no Islã espanhol, como jamais ção de filiação religiosa. Nem todos esses recipientes eram de forma retan-
havia ocorrido antes e nunca ocorreria depois. gular. No tesouro da catedral de Narbonne, por exemplo, sobrevive uma
Não muito sobreviveu aos assaltos da moda e do abandono, nos nove pequena caixa redonda, aproximadamente do tamanho de uma pequena
séculos que nos separam daquela era dourada: o bastante, contudo, para lata de chá, também produto da escola de entalhadores de Cuenca, como
dar uma idéia de quão resplandecente éla deve ter sido. O que sobreviveu certifica a inscrição em árabe. Há caixas parecidas nas catedrais de Pamplona,
consiste em alguns fragmentos arquitetônicos, esculturas decorativas em em Navarra, e de Braga, ao norte de Portugal, todas fabricadas, original-
mármore ou madeira, têxteis, manuscritos, trabalhos em metal, vidro, cerâ- mente, para 'Abd al-Malik (morto em 1008), filho de Almanzor. Há outras
mica e entalhes em marfim. Esses últimos, especialmente, eram (e conti- arcas que chegaram até nós, feitas de outros materiais: madeira com
nuam sendo) justamente valorizados. Examinemos, por exemplo, a arca incrustações de prata, por exemplo, como a arca encomendada pelo califa
ilustrada na Figura 1. Ela é feita de madeira, decorada com painéis de al-Hakam II para seu filho Hisham, entre 965 e 976, que hoje se encontra
marfim - provavelmente marfim oriundo do Leste .da África -, esculpida na catedral de Gerona, na Catalunha.
em trabalho vazado, com frisas de folhagens, pássaros e animais. A inscri- Os têxteis não resistiram tão bem ao tempo. Um fragmento de seda
ção na extremidade inferior da tampa diz, em tradução: que permaneceu está ilustrado na Figura 3. O motivo nos discos maiores
mostra harpias montadas sobre leões; as molduras circulares mostram ho-
Em nome de Deus, o Misericordioso, o Compassivo. Bênçãos perpétuas, ven- mens atacados por grifos. Os medalhões menores trazem inscrições dizen-
tura total, saúde duradoura, felicidade ampla, glória e prosperidade, benefícios e
do "Esta é uma das coisas feitas em Bagdá". Mas é mentira. O desenho e a
excelência, realização de esperanças a seu proprietário, que Deus prolongue sua
vida. Um dos objetos fabricados na cidade de Cuenca, por ordem do camareiro- urdidura são tipicamente de estilo andaluz, e não de estilo persa, e a grafia
mor Husam al-Dawla Abu Muhamrnad Isma'il ibn al-Ma'mun .. . no ano de 441 da inscrição é peculiar à região do oeste mediterrâneo do mundo islâmico.
[1049 A.D.J. Trabalho de 'Abd al-Rahman ibn Zayyan. É quase certo que a peça tenha sido tecida no sul da Espanha. A inscrição ·
"feito em Bagdá" era um logro, provavelmente com a intenção de enganar
Cuenca possuía uma importante fábrica de entalhe em marfim durante um cliente; da mesma maneira, "oficina de Chippendale" ou "atrib. a
esse período. O camareiro-mor que encomendou essa peça pertencia à Heplewhite" podem fazer maravilhas com o preço de uma escrivaninha
família governante da taifa de Toledo: seu pai, al-Ma'mun, governou Toledo ou cadeira do século XVIII. Essa peça de seda está hoje no Museu de Belas
de 1044 a 1075. A arca hoje se encontra no Museu Arqueológico Nacional Artes de Boston mas, em tempos anteriores, ela pertenceu a um prelado
de Madri. Anteriormente, ela pertenceu à catedral de Palencia, em Castela castelhano, Pedro, bispo de Osma, que morreu em 1109. Após sua morte,
Velha. É provável que ela tenha chegado ·até lá, direta ou indiretamente, ele foi venerado como santo, e a vestimenta da qual essa peça de seda
em conseqüência de saque ou tributo. Não sabemos em que data o bispa- fazia parte foi colocada em sua tumba, na catedral de Burgo, em Osma.
do de Falência a adquiriu, mas é razoável pensar que ela tenha chegado às e Alguns dos reis taifa eram eruditos. Consta que Al-Muzaffar, rei de
mãos do rei Afonso VI, de Leão e Castela (1065-1109), à época de sua Badajoz entre 1045 e 1068, compilou uma obra em cinqüenta volumes,
Richard Fletcher
Em bu9CO do EI Cid
Eu não acabara ele pronunciar a última sílaba do verso quando, para meu
hoje perdida, "tratando do conhecimento universal, sendo um repositório
grande espanto, ouvi meu amigo soltar um grito estridente, e vi-o cair sem senti-
de arte, ciência, história, poesia, literatura em geral, provérbios, informa- dos no chão. Correndo em seu auxi1io, encontrei-o desmaiado, e só depois de
ções biográficas etc.". AJ-Mu'tamin, de Saragoça (morto em 1085), escre- passada uma hora ele voltou a si e me disse: "Perdoe-me, meu filho, mas há duas
veu um trabalho sobre matemática. Mujahid reuniu, em Denia, uma equi- coisas no mundo contra as quais eu não tenho força alguma, ver um belo rosto e
pe de estudiosos que se dedicou ao estudo textual do Corão. AJ-Ma'mun, ouvir boa poesia".
de Toledo - o pai do camareiro-mor que encomendou a arca discutida
aqui -, era patrono de estudos científicos, tendo encomendado do célebre A poesia panegírica, como é natural, era muito do gosto dos reis taifa.
astrônomo al-Zarqal a construção de um clypsedra, ou relógio-d'água, que Foi assim que al-Ma'mun, de Toledo, foi saudado pelo poeta Ibn Arfa'
veio a se tornar uma das maravilhas de ai-Andaluz. Ele foi colocado num l{a'suh:
edifício às margens do Tagus, nos arredores de Toledo, e consistia de duas
grandes bacias que se enchiam e se esvaziavam de água a cada mês lunar, Segure o amor com força e beba à
sincronizadas com as fases crescente e minguante da lua. Conta-se que, saúde do Possuidor da
Dupla Glória [isto é, al-Ma'mun]
cerca de cinqüenta anos após a reconquista cristã de Toledo por Afonso
Que sustenta as terras do Oriente
VI, em 1085, seu neto, Afonso VII de Leão e Castela, curioso para saber
e do Ocidente,
como o relógio funcionava, mandou desmontá-lo, mas seus artífices não E que dá socorro aos crentes,
foram capazes de reconstruí-lo, de modo que um dos grandes triunfos descendente de Ya-rub,
· técnicos da ciência islâmica foi assim perdido. Essa histó.ria pode ser ver- O rei altaneiro, que humilha sultãos,
Que lidera cavalgadas e é o leão
dadeira ou não; de qualquer modo, ela tem um certo valor simbólico.
dos campos de batalha,
Devemos esse relato ao historiador al-Maqqari, cujo tradutor novecentista, Ele é um rei de coração mais bravo
Gayangos, afirma ter visto as ruínas das bacias em 1836. que o leão,
A poesia era avidamente cultivada nos reinos taifa. Esta é uma historieta Assim como seus dedos são mais generosos
que recria, de forma vívida, essa intensidade. Abu Amru ibn Salim, de que as nuvens de chuva.
Málaga, saindo um dia de casa para ir à mesquita, .encontrou por acaso seu
amigo Abu Muharnmad. Ibn Salim continua: Ou, ainda: um dia al-Ma'mun bebia com alguns cortesãos, conversan-
do sobre os outros reis taifa, e improvisando versos sobre eles, quando
Sentei-me ao lado dele, e como ele me pediu para recitar alguns versos, repeti
Ibn Arfa' Ra'suh ergueu sua voz:
os seguintes, de autoria de um poeta andaluz:
Elas roubaram da manhã a cor
Parem de falar sobre reis e filhos de
de suas faces; elas tomaram
reis, porque
da árvore do arak sua forma
quem navega os mares não
esguia e delicada.
anseia por rios.
Inumeráveis jóias brilhavam vivamente Não há rei algum tão nobre quanto al-Ma'mun
sobre seus .colos; e elas usaram nestas terras;
as estrelas cintilantes Vede o que ouvistes sobre ele
como colar. confirmado pelo fato!
Não contentes com a esbeltez da Oh, vós que sois Único, sem igual em
lança e a agilidade do glória, o homem
antHope, elas ainda tomaram deste Favorecido por vossas mãos não
os olhos meigos e as maçãs do rosto ondulantes anseia pela chuva!
Richard Fletcher Em busco de EI Cid
Vós surgistes em nosso céu como um sol, Na esteira desses acontecimentos, Ibn 'Aromar chegou à corte de al-
e a partir de então, olho algum Mu'tadid, a quem ele dedicou um longo panegírico, o melhor dentre todos
se ergueu para estrela ou lua, buscando os daquele período. Esta é uma tradução livre desses versos:
liderança:
Aparecestes a nós como a wusta
Passem a taça; a brisa da manhã
entre reis,
Sopra livre por toda a parte,
A partir de então, não mais paramos para olhar
As estrelas que cavalgam a noite, cansadas da viagem,
pérolas miúdas.
Puseram de lado as rédeas.
Vede como a cânfora distante,
A wusta é a pérola de tamanho maior, no centro de um colar - com o
A dádiva maior da aurora que se ergue
qual, talvez, o poeta tenha sido recompensado. Cintila, como se a noite retirasse
Versos panegíricos de sucesso podiam construir a carreira de um poe- Do céu, seu dote de âmbar.
ta. Essa boa sorte coube, em princípio, pelo menos, a Ibn 'Aromar, talvez o O prado, linda donzela, traja
maior poeta de ai-Andaluz em todo o século XI. Diversos fios da vida e do sua veste de todas as cores,
pensamento do período taifa se entrecruzam em sua história. Ele nasceu as flores, e usa um colar
cravejado de orvalho.
perto de Silves, na costa sul do que hoje é Portugal, em 1031. Ele vinha de
uma farru1ia simples que, no entanto, conseguiu dar-lhe uma boa educa- As rosas, como os rubores tímidos
De menina modesta, florescem vermelhas;
ção. Quando jovem, ele mudou-se para o leste, atraído pela corte de al-
O mirto ondulante cai em cachos
Mu'tadid, rei de Sevilha (1041-1042 a 1068-1069). Sob al-Mu'tadid, a taifa Sobre sua linda cabeça.
de Sevilha estava se lançando ao programa de expansão quelhe traria a
Contra o verde do jardim,
proeminência entre os reinos taifa. Em 1053, ele convidou os governantes Brilha um fio de prata:
de Ronda, Arcos, Morón e Jérez para uma visita diplomática e pacífica a Em serena pureza de virgem
Sevilha. Enquanto eles e seus companheiros banhavam-se, antes de com- Corre o rio silencioso.
parecer à recepção dada em sua honra, al-Mu'tadid ordenou que todas Quando a brisa agita sua superfície
as frestas da casa de banhos fossem vedadas, para que ,os convidados brilhante, parece cintilar
mo_rressem sufocados. Ele pendurou suas cabeças, como troféus, nos A espada de meu monarca, que põe em fuga
As legiões de seus inimigos.
muros de sua cidadela. Ele próprio, um poeta de mérito, celebrou em
versos seu triunfo: O grande filho de Abbad, cujas mãos generosas
Aliviam toda a falta,
Mantém sempre verde a terra agradecida
Agora eu te conquistei, ó Ronda, Mesmo que os céus estejam negros.
És então o colar de meu reino ...
E ele dá, como prêmib pela virtude
Darei fim a meus inimigos,
Uma donzela pura e linda,
Se meus dias não findarem cedo,
Um cavalo de brio e linhagem,
Através de mim, seus erros perecerão,
Uma espada cravejada de gemas.
e a Tutela Correta crescerá em força!
Quantos rivais eu matei, Um monarca que, quando os reis
Sem cessar, um após outro: Da terra vêm beber,
De suas cabeças fiz uma guirlanda Eles não ousam descer à fonte
Para adornar o cume do muro lateral! Até que ele deixe suas bordas.
Richard Fletcher Em busco de EI Cid
garantia do pagamento. Múrcia acabou por cair. Seu governante, Muhammad Sabemos tanto sobre Ibn 'Ammar porque, em parte, ele aparece de
ibn Tahir, fugiu para a corte de Valência, onde encontrou asilo íunto a Abu forma proeminente nas memórias de seu inimigo, 'Abd Allah, e, em parte,
Bakr, filho de 'Abd al-'Aziz. Enquanto isso, em Múrcia, Ibn 'Ammar: porque sua celebridade como poeta garantiu a ele um .lugar nos escritos
de outros cronistas e compiladores de dicionários biográficos. Sua carreira
se comportava de forma atroz: ele tratava o povo com mão de ferro, violava as leis é instrutiva. Ela mostra quanto o talento poético era valorizado nos princi-
de Deus e tornou-se um bebedor de vinho inveterado, a tal ponto que, ao final, pados taifa, e as recompensas que um praticante habilidoso podia alcan-
ele havia chamado sobre si o ódio da população. Ele encenava obediência a al-
çar. Suas viagens, no exfüo, mostram como eram fáceis os deslocamentos
Mu 'tamid, embora, na verdade, fosse um revoltoso. Não era segredo que ele falava
mal de al-Mu 'tamid e ridicularizava-o por coisas das quais ele era inocente, à
entre as cortes e através da fronteira religiosa. Ele contratou tropas de
maneira dos vilões e ·dos biltres. Afonso VI e do conde de Barcelona: o dinheiro conseguia comprar solda-
dos mercenários para lutar em al-Andaluz. Sua carreira atribulada nos traz
Essas palavras vêm de uma testemunha extremamente hostil, que an- à mente as facções, as rivalidades e as traições que caracterizam a história
teriormente havia sofrido nas mãos de Ibn 'Ammar, 'Abd Allah, de Grana- política desse período, de forma mais marcante do que a da maior parte
da. Mas a veracidade das acusações pode ser corroborada com base em dos demais. Sua aquisição de Múrcia demonstra as oportunidades que se
outras fontes . Em suma, Ibn 'Ammar havia, primeiramente, colocado em abriam para um aventureiro ambicioso e sem escrúpulos. Em certos aspec-
risco a vida do filho e herdeiro de seu príncipe, passando a mostrar, então, tos, na verdade, a carreira de Ibn 'Ammar apresenta paralelos sugestivos
sinais alarmantes de insubordinação, ao agir, para todos os · efeitos, como com a de El Cid.
um governante independente. Em Sevilha, Al-Mu'tamid, impotente para "Ele violóu as leis de Deus e tornou-se um bebedor de vinho inveterado."
agir, respondeu dirigindo seus próprios talentos poéticos, consideráveis, Nisso, Ibn 'Ammar não era o único. Há indícios abundantes de que, indo
aliás, para a composição de uma paródia na qual ridicularizava as origens contra os preceitos do Corão, bebia-se muito no ai-Andaluz do século XI.
familiares de Ibn 'Ammar. Ofendido, Ibn 'Ammar revidou com uma res- Boa parte da poesia desse período celebra os prazeres do vinho:
posta ainda mais feroz, na qual ele escarnecia do príncipe, de sua esposa
O vinho coloriu suas faces,
favorita e de seus filhos. Abu Bakr, de ·Valência, conseguiu obter uma como um sol nascente brilhando sobre
cópia dessa peça, escrita na letra do próprio Ibn 'Ammar, e enviou-a para seu rosto:
al-Mu'tamid. Esse insulto o rei de Sevilh:1 nJo poderia jamais perdoar. O Ocidente está em sua boca, o Oriente é
Nessa mesma época, Ibn 'Ammar foi traído, em Múrcia, por um de seus a mão ·vivaz do bebedor, segurando a taça.
Quando o sol se punha por detrás de sua boca
aliados locais, e forçado a fugir. Valência esta\ a fechada para ele, e como
deixava em suas faces
retornar ao reino taifa de Sevilha era fora de questão, ele dirigiu-se ao um crepúsculo rosado.
norte, rumo a Toledo, onde tentou encontrar abrigo na corte de Afonso VI
de Leão e Castela, desviando, então, para Saragoça, onde passou os anos Pode-se objetar que poemas não são prova concreta de que a prática
entre 1081 e 1084 a serviço dos Hudidas (no decorrer desses anos, é existia. Mas fontes mais prosaicas podem ser citadas. 'Abd Aijah foi surpreen-
impossível que ele não tenha encontrado um outro exilado na corte de dentemente sincero, em suas memórias, a respeito dos hábitos etílicos de
Saragoça, o castelhano Rodrigo Díaz). Em 1084, ele foi capturado em con- seu pai e avô. Uma informação colateral intrigante sobre a comunidade
seqüência de um ardil, e vendido a al~Mu'tamid por seus captores. Elé' moçárabe nos é dada pela revelação de que, em Toledo, muçulmanos de
entrou com_um pedido de clemência em um último e caracteristicamente posses costumavam dar uma passada nos monastérios cristãos para tomar
notável poema dedicado a seu velho amigo, mas isso de nada lhe adian- um copo de vinho. Talvez essa prática esteía por trás da confissão do
tou. Al-Mu'tamid, em pessoa, matou Ibn 'Ammar com um machado que poeta Ibn Shuhayd de que, uma vez, ele havia passado a noite numa igreía
havia sido presente do Rei Afonso Vl no inverno de 1084-1085. cristã, em Córdoba, onde havia bebido vinho. Ao que parece, portanto, os
Richard Fletcher Em busco do EI Cid
monastérios ofereciam, aos muçulmanos menos rigorosos, um acesso ao Alguns astrólogos perguntaram: "Por que devemos ser acusados de heresia?
Pois não negamos a existência do .Criador, apenas falamos sobre . criaturas, cada
álcool, do mesmo tipo . fornecido hoje pelos hotéis ocidentalizados, em
uma delas descrita até onde está ao alcance do conhecimento humano descrevê-
alguns países islâmicos. Os cristãos forneciam aos muçulmanos ainda ou- las. É a mesma coisa que descrever um homem, ou as árvores ou uma montanha".
tras facilidades proibidas. O renomado jurista al-Turtushi (1059-1126) es- Diz-se que um sábio foi visto com o Corão em sua mão direita e um astrolábio na
creveu um panfleto intitulado "Sobre a -proibição dos queijos dos Rum" esquerda. Perguntado por que ele via como necessário combinar os dois, ·o sábio
(esse último termo significando, literalmente, "romanos", sendo comum respondeu: "No Corão eu leio as palavras de Deus, enquanto, . no astrolábio, eu
reflito sobre a Sua criação. A astrologia é uma forma de adoração".
entre os escritores de língua árabe, para designar os "europeus", ou "cris-
tãos"). É evidente que os "queijos cristãos" agradavam os paladares .mu-
Nem todos concordavam com 'Abd Allah.
çulmanos. O que não está claro é de que maneira eles infringiam as exi-
gências islâmicas quanto à dieta alimentar. Recomendo veementemente que vocês reneguem os prognósticos astrológi-
Pode ter havido um certo grau de sincretismo religioso no ai-Andaluz cos, pois aquele que neles acredita encontra-se fora do rebanho da Fé, sendo
do século XI. É surpreendente verificar que o uso do calendário cristão era apenas mais um herege.
EE 8
além de um poeta. de mérito. Após sua morte, em 1056, seu filho José
~~ ·v
.ê "'\l.l e:: :lu,
~
tJ o "O "'
Era uma violação da lei islâmica um judeu exercer autoridade civil ou ô ~ -~ ~ ô
\l.l ""
.e;
~ '"'
~
tJ
"O V)
:-:, 21 :-:s 'iS '§
"" e:: "ã.
e.
militar sobre muçulmanos. Samuel Ha-Nagid sofreu ataques de Ibn Hazm, ~
de Córdoba, o maior dos eruditos muçulmanos daquela época, com base
~~j .o,:. ~
9
~ u,-l
1
... •
~"' ~ 8 N§ .:!?ti
@) o
nesse fato. O filho de Samuel foi atacado em um poema feroz, escrito pelo
jaqih Abu Ishaq, de Córdoba, endereçado a Badis, pedindo a este para
=ã
.9-
~
. . ::,
-tl u
~
~s
r:I)
~
~
matar seu ministro e pôr fim à influência judaica nos assuntos de Gr;mada . . 1\. >
;5 .. <
Em 1066, houve tumultos anti-semitas em Granada, talvez provocados, em
parte pelo menos, pelo poema de Abu Ishaq: José foi assassinado e, com ,.,"s::
""'
..!!
ele, um grande número de judeus. Em outras cidades, até onde sabemos,
as coisas não chegaram a esse ponto tão violento. A opinião geral, àquela
época, parece ter sido de crítica aos governantes taifa, por estes terem
judeus a seu serviço, o que era visto como mais uma demonstração de sua
negligência na observância religiosa.
Chegaria o dia em que importaria muito, para os reis taifa, se acusa-
ções de comportamento irreligioso fossem levantadas contra eles por seus
súditos, perante um tribunal especialmente rigoroso e puritano - a seita
fundamentalista islâmica conhecida como o movimento almorávida, que
cresceu, em Marrocos, no meado do século XI. A pena aplicada a alguns
dos reis taifa pelos almorávidas, como veremos adiante, foi cabal. Mas,
antes disso, eles ainda teriam que se confrontar como outros inimigos, ao
norte - os principados cristãos da Espanha.
·.·.·:::-.;:::.•:-:
:i\:
r~
§
~,g
~~
::E ;:l
4
Os herdeiros dos visigodos
em si, provavelmente não passou' de uma operação de pequeno porte, pntrocinou a redação de crônicas que davam ênfase ao tema da continui-
sem grande importância militar. Ao longo do tempo, a mitificação patrióti- dade existente entre os visigodos e o reino de Astúrias.
ca viria a transformá-la: o líder dos rebeldes, Pelayo, seria transformado Uma terceira causa, ou talvez apenas um sintoma dessas mudanças,
num herói nacional, e sua vitória em Covadonga, no primeiro passo para rt•siclia nos contatos estabelecidos entre o reino asturiano e outras partes
a reconquista cristã. Mas isso é mais lenda que história. O que a vitória de (la cristandade ocidental. Afonso II mantinha relações diplomáticas com o
Pelayo de fato possibilitou foi o surgimento de um pequeno reino cristão reino franco de Carlos Magno (768-814) e do filho deste, Luís, o Piedoso
em Astúrias, cujos governantes puderam então consolidar seu controle (814-840). As preocupações intelecttiais da corte de Afonso m eram seme-
sobre aquela região e sobre a parte norte da Galícia, situada a oeste de seu lhantes às da corte franca sob o filho de Luís, Carlos, o Calvo (840-77), e
tei;ritório, durante os anos de tumulto nos quais al-Andaluz mergulhou, em pode-se supor que foi dos reis francos que Afonso III obteve as noções
razão da luta entre árabes e berberes que teve lugar nas décadas seguin- sobre o ímperium - "império" ou "poder imperial" - que levariam à ado-
tes. O reino era pequeno e inseguro, suas instituições eram rudimentares, ,·ào do título de imperador, reivindicado por alguns de seus sucessores
sua economia. era simples, sua cultura, JX>UCO sofisticada. E, na segunda dos séculos X e XI.
metade do século VIII, ele foi submetido, pelos amires de Córdoba, a No decorrer desse período, o reino gradualmente se expandiu em
assédio constante. O reino, entretanto, sobreviveu. direção ao sul da Cordilheira Cantábrica. A mudança de seu centro de
Ao longo do século IX, seu caráter começou a mudar. Uma das causas gravidade para o rico planalto da meseta espanhola foi reconhecida por
para tal foi, provavelmente, de ordem econômica. Apesar de pouco saber- meio da mudança da capital de Oviedo para Leão, no início do século X.
mos sobre esses assuntos, parece provável que sua população tenha se A partir daí, seus reis passaram a ser chamados de reis de Leão. E os
tornado mais densa, que a exploração agricola tenha ganhado em eficiên- deixaremos aqui, por enquanto.
cia e o comércio se tornado mais rápido. Essas mudanças devem ter sido O país basco era a zona central onde um principado, que mais tarde
graduais, tão graduais a ponto de mal serem perceptíveis para seus con- seria conhecido como o reino de Navarra, surgiu, nos séculos VIII e IX. Se
temporâneos, mas .mudanças dessa natureza têm de ter ocorrido, como os primórdios da história do reino de Astúrias são mal documentados, os
. precondição para o que veio a seguir. Uma segunda causa foi a imigração de Navarra praticamente não foram documentados de nenhuma forma, e
de moçárabes cristãos, vindos do sul. Essa migração vinha pingando pou- suas origens estão envoltas em penumbra. Partiremos do fato dado de
co a pouco, desde fins do século VIII, até que, um século mais tarde, · que, historicamente, os bascos sempre resistiram às influências de outras
transformou-se num caudal. Os moçárabes foram importantes para o reino culturas. Sua língua não se parece com nenhuma outra. Seus nomes geo-
de Astúrias em virtude da cultura que eles traziam consigo. O núcleo do gráficos, rudes a nossos olhos e ouvidos, cobrem o solo de sua pátria:
reino localizava-se numa área que havia sido pouco tocada pela civiliza- Orzanzurieta e Echalecu, Urdax e Egozcue, Esterencuby, Louhossoa e
ção romano-visigótica, mas, agora, os moçárabes importaram para lá as Astigarraga. O impacto da cultura romana sobre aquela região não foi
tradições culturais dos visigodos. Eles estabeleceram monastérios e cen- negligenciável, embora tenha deixado uma impressão menos nítida nas
tros de saber, onde essas tradições eram cultuadas e elaboradas. Eles in- terras bascas do que na Espanha do leste ou do sul. Pamplona era uma
centivaram os reis asturianos a construir uma nova imagem de si. Afonso II cidade romana, à beira da estrada que ia da Espanha para Bordeaux,
(791-842) fixou sua capital em Oviedo, onde construiu um palácio e igre- embora fosse um lugar de tamanho modesto e de pouca importância. As
jas. Lá, ele introduziu o cerimonial do poder gótico, tal como existira antes famílias proprietárias de terras de origem hispano-romana construíram suas
em Toledo. Ele e seus sucessores talvez tenham realizado, como o faziam casas de campo nos vales do Ebro superior e de seus tributários ao sul de
os reis godos, concílios da Igreja em sua capital; e é certo que, tal como os Pamplona, e algumas .delas devem ter sido muito luxuosas, a julgar pelos
reis godos, eles colecionavam relíquias de santos, os quais atuariam como magníficos mosaicos de Arróniz, que hoje podem ser vistos no Museu
seus protetores, intercedendo por eles junto a Deus. Afonso III (866-910) Arqueológico Naciona1 de Madri. Mas esses proprietários de terras não se
lfaliord Flci lc:hor r,11 lll1:;w do 11 Cid
sentiam atraídos pela região dos Pireneus. O cristianismo i'l'I. progressos nrnstfmcias, um pequeno rl'ino independente, com base em Pamplona,
lentos entre os bascos. Em cerca de 400, havia um bispado em Calahorra, ,Lri·oiu
' 0
d urante o seou
b
ndo qm11tel do século IX, comandado po r um chefete
e pode também ter havido um em Pamplo na, no século V, embora, até da região, de no me Inigo Arista. Seus descendentes governaram o reino
586, as informações não sejam inte iramente confiáveis. O grande bispo- de Pamplona, exercendo uma suserania pelo menos intermitente sobre o
missionário Amandus, da Aquitânia, pregou para os bascos no meado do país de Aragão, até o início do século X . Eles foram e ntão suplantados por
século VII, mas com pouco ou nenhum sucesso. Parte das províncias bascas uma outra dinastia local , cujo primeiro represe ntante foi um rei chamado
talvez ainda fosse pagã no século XI. S:mcho Garcés r (isto é, Sancho, filho de García), que deteve o poder de
Durante os séculos VI e VII, as tribos bascas se expandiram para o sul, 905 a 925. Logo a seguir ouviremos mais sobre ele.
entrando pela Espanha, e para oeste, e ntrando na p arte sudoeste da Gália A expansão dos francos em direção ao sul havia trazido os carolíngeos
(à qual eles deram seu nome, Vascônia, Gascônia). Já vimos antes que , à para a extremidade oriental dos Pireneus, e não mais apenas para a extre-
época da invasão árabo-berbere, o último re i visigótico estava em guerra midade ocidental: uma região ele caráter notavelmente diferente. Aqui situa-
no norte, tentando contê-los. Essa preocupação foi herdada por seu s su- vam-se as ricas terras costeiras que se estendiam e.lo Levante espanho l até
cessores islâmicos. Em 775, um exército árabe enviado contra os bascos 0 delta do Rio Ródano - o mundo mediterrâneo civilizado. Já no século VJ
foi derrotado. Essa vitória talvez te nha sido uma espécie de Covadonga a.C. , gregos e fenícios haviam fundado colôni as comerciais nessa região.
navarrense. Jamais saberemos, uma vez que não se sabe praticamente Os romanos haviam patrocinado o crescimento de cidades como Tarragona,
coisa alguma sobre seu contexto. Barcelona e Narbonne ; vilas haviam surgido nas áreas rurais, o latim to-
As preocupações com o problema basco eram compartilhadas pelos mou O lugar das línguas vernáculas e, talvez um século após a morte de
reis cios francos. No meado cio século VIH, os reis carolíngeos da França, Jesus, 0 cristianismo já havia chegado. Parece provável que , ali, os árabes
Carlos Martelo e Pepino III, pressionavam e m direção à Aquitânia, tentan- -e berberes houvessem causado menos danos cio que fi zeram mais ao sul.
do dar alguma substância às reivindicações francas de domínio sobre aquela Luís ele Aquitânia conquistou Barcelona em 801 , e a área entre a cidade e
região. Como era inevitável, eles depararam com os bascos. O encontro os Pireneu s foi dividida e m condados, a unidade padrão de governo local
mais famoso ocorreu em 778, quando Carlos, filho ele Pepino - mais tarde do império franco: Barcelona, Gerona e Empuries, na costa mediterrânea;
conhecido como Carlos Magno - , voltava ele uma campanha militar na e ntão Cardo na , Vich e Besalu; Ce rclanya e Urge!, que faziam fronteira com
Espanha. A retaguarda de seu exército, comandada por Rolando, foi em- a atual Andorra ; e mais ao interior, Pallars, e mais além, adjacente a Aragão ,
boscada pe los bascos, no Passo de Roncevalles, e aniquilada. Embora Ribagorza. À medida qu e o império franco se desintegrava, e os carolíngeos
sendo uma derrota de pouco significado militar, ela foi lembrada por lo n- perdiam o controle direto sobre aquela região, os condad os catalãos fo-
go tempo, reunindo em torno de si acréscimos lendários, que acabaram ram passando a uma situação ele independência de fato. Dentre as famílias
por receber forma literária no maior de todos os épicos do francês antigo, de aristocratas locais que surgiram corno pequenas dinastias, urna iria, de
a Canção de Rolando. Em 781, Carlos colocou seu filho Luís no controle maneira bastante gradual, alca nçar a supremacia . Seu primeiro membro
de um sub-reino ela Aquitânia. Luís te ntou estabelecer condados de fron- importante foi um homem com o inesquecível nome de Wifredo, o Cabe-
tei ra nos Pireneus Ocidentais. Um deles situava-se no vale cio Rio Aragão; ludo, que, à época de sua morte, em 898, concentrava em suas mãos os
um outro pode ter tido como base Pamplona, que os francos haviam condados de Barcelona, Gerona e Vich. Seus descendentes, pouco a pou-
capturado em 806. No entanto, conseguir a cooperação dos bascos mos- co viriam a estender seu domínio sobre tudo aquilo a que os francos
trou ser uma tarefa su rpreendentemente difícil, e após a derrota dos fran- ha~iam chamado de Fro nte ira Espanhola, até que o conde de Barcelona
cos numa segunda batalha de Roncevalles, em 824, a intervenção carolíngea veio a governar sobre toda a Catalunha. Mas esses dias ainda estavam
direta chegou ao fi m. (Em todo o caso, Luís e seus sucessores tinham lo nge no futuro , ao tempo de Wifredo. Ele e se us herdeiros continuaram,
preocupações mais urgentes na metade norte ele seu reino.) Nessas cir- por pelo menos mais um século, a ver a si próprios corno sendo, formal-
Richard Fletcher Em busca de EI Cid
mente, parte do reino franco. Seus documentos oficiais eram datados com ilil~do e tremor ... um lugar deserto, visitado apenas por asnos selvagens e
os anos usados pelos reis francos. As casas monásticas da Catalunha con- ,v~!ados e outros animais", onde "homens maus" podiam ser encontrados;
tinuaram a buscar a confirmação de seus títulos de propriedade junto aos e (•. provável que os habitantes de Navarra e de Leão vissem sua fronteira
governantes francos, muito após esses governantes terem perdido .todo e dt· forma bastante semelhante.
qualquer poder de fato sobre a Catalunha. Por mais bizarro que possa "Homens maus" acoitando-se na terra-de-ninguém não eram a única
parecer, isso fazia sentido cultural. Àquela época, como em outras de sua Ht'llte a ser encontrada por lá. Azona de fronteira era permeável, penetrável.
história, os contatos dos catalãos com o mundo mediterrâneo da França e l't'ssoas de todos os tipos e de todas as condições viajavam por ela, duran-
da Itália eram mais fortes que os com o interior da Espanha. lt' os séculos X e XI. Havia mercadores trazendo escravos do norte ou
No início do século X, íá próximo ao tempo de El Cid, existiam, portan- 1.t\ xteis do sul; cristãos moçárabes migrando para novos lares nas planícies
to, em estado embrionário, três principados ou grupos de principados dL: Leão; diplomatas, como João de Gorze; pastores realizando a transu-
cristãos no norte da Espanha. À sua diversidade econômica e de organiza~ mância, a cada estação, para lá e para cá com seus rebanhos; peregrinos
ção social, imposta pela paisagem e pelo clima, somavam-se diferenças de Indo para os santuários cristãos, como a tumba de São Tiago, em Com~
antecedentes históricos, instituições legais e lealdades culturais. O que postela; criminosos em fuga; estudiosos a caminho de Córdoba, em busca
eles •compartilhavam era um inimigo comum do outro lado da . fronteira d<.! conhecimentos sobre o Oriente. No entanto, as pessoas que faziam
religiosa. ~•sse caminho com mais regularidade eram os soldados: exércitos muçul-
Escrever "um inimigo comum" e "fronteira religiosa" é arriscar-se. a. 111anos atacando os principados cristãos, e exércitos cristãos defendendo a
representar de forma enganosa a realidade dos séculos IX, X e XI . É impor- si próprios e retaliando.
tante, portanto, enfatizar que a fronteira não era uma linha, mas uma Essa imagem de cristãos e muçulmanos engalfinhados em combate é
ou uma terra-de-ninguém, de contornos constantemente flutuantes. vultivada, dentre os historiadores espanhóis, pelas escolas dos católicos /
guns esrudiosos afirmaram que, nas regiões central e ocidental da penírt-- tradicionalistas e dos nacionalistas. Mas ela é enganosa. A realidade era
sula, essa zona era uma terra-de-ninguém no sentido mais literal do termo; mais complexa. Para compreendê-la, poderia valer a pena examinar o que
que ao longo do vale do Rio Douro e de seus tributários, grosso modo, de fato ocorreu numa dessas campanhas. A expedição de 'Abd al-Rahman
havia ocorrido, durante o século VIII, uma despovoação sistemática, nmtra Pamplona, em 924, é um exemplo apropriado. Nossa principal fon-
maneira que a região ficou desprovida de assentamentos humanos oerm:a" te de informação é o relato transmitido pelo historiador do século XI, Ibn
nentes até a conquista e repovoamento da área pelos reis de Leão, por Hayyan (morto em 1076). Embora ele escrevesse um século e meio após
volta de 850 e de 950. (Deve-se ressaltar que o mesmo nunca foi os acontecimentos em questão, ele tinha acesso a fontes estritamente con-
sobre o vale do Rio Ebro, a •leste, onde se sabe que o povoamento temporâneas a estes, das quais a mais importante, com certeza, era um
manteve ao longo de todo esse período.) Essa afirmação foi levada boletim oficial redigido para circular entre o público imediatamente após a
demais, e com base em indícios demasiadamente escassos. O vale do campanha, de modo que seu testemunho tem ·peso, Há também um poe-
Douro não pode ter sido, em tempo algum, completamente despovoado. ma panegírico celebrando as campanhas de 'Abd al-Rahman, de autoria
É provável, entretanto, que sua população tenha diminuído drasticamente, de um poeta da corte daquela época, Ibn 'Abd Rabbihi.
sobrerudo em cidades como Porto, Zamora e Salamanca; e que, com Nos anos imediatamente precedentes a 924, houve muitas lutas na
colapso da vida urbana, o aparato de uma administração ordeira e da região do Rioja superior. Sancho Garcés, de Pamplona, havia conseguido
defesa tenha, gradualmente, minguado e desaparecido. É provável que no arrancar do controle muçulmano Calahorra e algumas localidades meno-
século X a zona de fronteira fosse, em boa medida, uma terra sem governo · res e, em 923, ele tomou o castelo de Viguera, situado a cerca de dezesseis
civil. Em 1012~ os monges do monastério catalão de São Cugat podíam quílômetros ao sul de Logrofio. A campanha de 924 foi realizada a título
descrever a zonà de fronteira adjacente a eles como um lugar "de grande de revanche.
Richard Fletcher Em busco de EI Cid 'i!
'Abd al-Rahman e seu exército deixaram Córdoba em 24 de abril. Ele l·'.lvs seguiram seu caminho, arrasando o território sobre o qual passavam,
dirigiu-se ao norte, ao longo da costa do Levante, passando por Múrcia, ,1t(• chegarem a Pamplona, no dia 24 de julho.
Valência e Tortosa, extinguindo rebeliões, atravessando então o vale do
Ebro, passando por Saragoça a caminho de Tudela, onde os Tujibidas, os Por fim eles chegaram a Pamplona, a cidade que dá nome à região, e a
senhores da fronteira superior, juntaram-se a ele com suas tropas. Em 10 l!ncontraram abandonada e deserta. O próprio 'Abd al-Rahman entrou na cidade,
atravessou suas ruas, ordenou que todos os edifícios fossem destruídos e que a
de julho ele deixou Tudela e seguiu, subindo o Ebro, até Calahorra. Sancho
venerada igreja dos infiéis fosse demolida: todos ajudaram nessa tarefa e ela foi
havia evacuado o local, que os muçulmanos demoliram e atearam fogo. arrasada até o chão.
Eles, então, dirigiram-se para o norte, queimando plantações, saqueando,
destruindo fortalezas e fazendas, até chegarem a Sangüesa, em 17 de ju- Os muçulmanos retiraram-se após o saque de Pamplona. Retornaram,
lho. Nesse ponto, eles haviam deixado para trás o campo aberto do vale vntão, continuando a incendiar e a saquear ao longo do caminho, perse-
do Ebro, ingressando em terras montanhosas e acidentadas, cobertas de fJ,U idos pelas tropas de Sancho, mas conseguindo mantê-las a distância. O
vegetação árida, onde eles ficaram mais vulneráveis. Sangüesa era o lugar posto avançado mais ao norte dos muçulmanos, a fortaleza de Valtierra,
de nascimento do rei Sancho, e sua destruição l'oi reforçado. 'Abd al-Rahman estava de volta a Tudela em 2 de agosto,
:1pós uma viagem de ida e volta de cerca de 480 quilômetros, feita em 24
feriu seu orgulho. Ele reuniu de todas as partes possíveis um exército, até ter
1 lias. Ele chegou a Córdoba no dia 26 de agosto.
juntado um número que ele julgou suficiente para combater os muçulmanos. O
exército [muçulmano] podia avistar, sobre os cumes das montanhas, sua cavalaria A campanha de 924 foi um ataque punitivo dirigido contra Sancho
vestida em armaduras pesadas. Na noite de 21 de julho, 'Abd al-Rahman ordenou <;arcés, em retaliação à derrota de Viguera, no ano anterior. Ela causou
que as tropas se enfileirassem em formação de combate e permanecessem em
grandes danos, mas deixou a fronteira onde sempre havia estado: os navar-
alerta total. De manhã cedo, a marcha foi retomada nessas condições, com fé total
em Alah. O exército passou por aqueles cumes e despenhadeiros, enquanto . os renses conseguiram manter-se em Calahorra e na região do Rioja superior.
inimigos de Alah esperavam por uma oportunidade para atacar os flancos ou a 1-'.m outras palavras, foi uma escaramuça de fronteira de pouco significado
retaguarda dos muçulmanos. 1nilitar. Para Córdoba, as considerações de segurança eram de importância
Quando o exército se encontrava em meio a esse território acidentado, próxi~ máxima. O governo de lá queria fronteiras sem problemas. Os ganhos que
mo a um rio chamado Ega, uma brigada da cavalaria infiel atacou, partindo das
podiam ser obtidos se resumiam a saques, resgates, escravos e satisfação,
montanhas, lançando-se sobre as tropas muçulmanas, equipadas com armamentos
ligeiros, e houve uma rápida refrega. 'Abd al-Rahman ordenou aos homens que se 1nas não a terras. A conquista territorial não fazia parte dos objetivos bélicos
detivessem e desmontassem, armassem sua tenda e se preparassem pai-a combate. de 'Abd al-Rahman III. Essa é a maneira característica de as superpotências
Os muçulmanos caíram sobre seus inimigos como leões vorazes, cruzando o rio e tratarem as dificuldades locais miúdas, ocorridas em suas fronteiras. Deve-
se lançando contra eles em massa. Eles os desalojaram de suas posições, conti- se notar que essa campanha visava também ao policiamento interno, sen-
nuando o ataque até pô-los em fuga, transformando-os em pasto para espadas e
lanças, perseguindo-os em direção às escarpas íngremes de um monte próximo, o
do dirigida contra os rebeldes do Levante, e destinada a mostrar aos senho-
qual os muçulmanos escalaram com a ajuda de Alah, matando muitos e forrando o res da fronteira de Saragoça, os Tujibidas, quem mandava em al-Andaluz.
chão de cadáveres. A cavalaria continuou a ação em solo plano, saqueando todo Já foi sugerido que as campanhas de Almanzor contra os estados cris-
o tipo de gado e de utensílios. Eles então partiram carregados com o produto dás tãos, no final do século X, foram marcadas por um tom diferente, de fana-
pilhagens, e sem terem sofrido perdas, exceto que Ya'qub b.Abi Jalid at-Tuzari ...
tismo e ódio religioso. É bem verdade que ele com freqüência atacava,
caiu lá, como mártir, tendo Alah lhe concedido uma morte feliz. Foram recolhidas
muitas cabeças de infiéis, que não puderam contudo ser enviadas a Córdoba, por especificamente, alvos religiosos: o monastério de São Cugat, em 985; os
causa do perigo e da distância da viagem. monastérios leoneses de Sahagún e Eslonza, em 988; a igreja de Santiago
de Compostela, em 977; e o monastério de São Milão de Cogolla, em Rioja,
A ação parece ter tido lugar entre Sangüesa e o Foz (ou desfiladeiro) no ano de 1002. No entanto, os dois primeiros terços de sua vida, anterio-
de Lumbier, através do qual os invasores devem ter passado em seguida. res a essas campanhas, não sugerem que ele fosse um fanático religioso.
Richard Fl etche r Ern busca de EI Cid
Ele empregava cristãos em seus exércitos. Ele respe itou o santuário de São d;1 Ait: 1 Idade Média, o te rmo relígio significava aquilo que entendemos
Tiago. É provável que ele atacasse igrejas mais p orque elas fossem ricas 1
" ,r relig ião "regular", ou "professada", isto é , a vida monástica. O termo
do que porque elas fossem cristãs. Como os vikings, que faziam o mesmo, 1mi.s usado para "religião " era fides, fé. A fé era cristã. É claro que havia
e le precisava do produto dos saques. " ,vos que não eram cristãos, mas - e isso é de importância crucial - eles
1
"Por fim , a misericórdia divina dignou-se a re tirar esse flagelo dos 1w > representavam um problema ou um desafio intelectual. A revelação
cristãos ... e Almanzor foi possuído pe lo demô nio , que o havia do minado 1, ,i oferecida aos judeus, mas eles a reje itaram : era assim que a questão era
em vida, em Medinacelli; e foi enterrado no inferno." Assim escreveu um 1·ist:1 . Havia ainda muitos pagãos pe lo mundo, mas eles um dia seriam
cronista de Leão, em 1120. Nessa época, idé ias relativas a cruzadas de rnnvcrtidos - assim dizia a Bíblia - , de maneira q ue eles não representa-
reconquista estavam começando a ganhar corpo na Espanha. As pessoas ' ; 11 11 uma fonte de inquietação . Todos os demais eram uma perversão do
estavam passa ndo a acreditar que as relações en tre cristãos e muçulmanos nistianismo , isto é, heréticos. Era fácil interpretar o Islã como uma heresia
e ram justa e necessariamente hostis, que a guerra cristã contra o Islã con- 1 -ris1::-1. Afinal, ele tinha tanto em comum com o cristianismo - a crença num
feria mérito espiritual positivo ao participante, e que os muçulmanos de- t k us único, reverê ncia pe los patriarcas e pe la Virgem Maria, veneraçáo
veriam ser expulsos da Espanha. Estariam essas idéias difundidas um sé- li >r Jerusalém etc. Entretanto, o Islã havia pervertido o cristianismo: em
1
culo antes? É difícil ter certeza, mas, de maneira geral, parece improvável. ,,,u teologia, por negar a Encarnação e a Trindade, e, em sua ética, por
Uma afirmação desse teor coloca em questão mitos nacio nais venerados, '" >loriamente tolerar a poligamia. Isso bastava: o Islà era , manifestamente,
que ainda e ncontram defe nsores na Espanha de ho je, de modo que é 11 rna heresia cristã. Os eruditos gregos do Mediterràneo Oriental adotaram
importante ter muita clareza sobre o que se quer dizer. Não estamos afir- , ·ssa postura intelectu al logo após o surgimento do Islã, no século VII, e a
mando q ue cristãos e muçulmanos vivesse m lado a lado em harmonia: é 1r:1nsmitiram à Europa, onde ela preva leceu po r muitos séculos. É fácil
claro que não. A gu erra do século X, da qual a campanha de Pamplona, de \ll·rceber por que razão ela e ra tão conveniente às pessoas. Ela explicava
924, é um bom exemplo, deixou atrás de si um rastro de sofrimento e 1 >Islã de forma clara e convincente, to rnando desnecessárias investigações
ranco r. Tampouco se pretende afirmar que a idéia ele uma reconquista da :idicionais. O principal ingrediente da incompreensão dos europeus da
Espanha jamais tivesse ocorrido. Na corte de Afonso III, o nde a memória !\lta Idade Média para com o Islã era a indiferen ça.
do rein o visigótico e ra mantida fresca, um escritor a nô nimo da década de Na Espanha, como nos demais países, havia pouquíssimos escritos
880, cuja obra sobreviveu até nós, esperava fervorosamente pelo fim imi- sobre o Islà, e absolutamente nenhum debate com e le. Os espanhóis não
nente, como ele acreditava, da presença islâmica na Espanha. O que se li zeram nenhuma tentativa de co nve rter os muçulmanos ao cristianismo .
afirma é qu e, nos séculos X e XI, as idéias sobre uma reconquista cristã I•'.l es não mostravam nenhum interesse nas escrituras sagradas do Islà. O
não estavam ne m claramente articuladas nem eram amplamente comparti- Corão só foi traduzido para o latim na década de 1140, e embora o traba-
lhadas. Como os herde iros dos visigodos viam seus vizinhos islâmicos? lh o te nha sido realizado na Espanha, o incentivo veio de um monge
O traço mais marcante da reação da cristandade ao Islã era a inco m- francês, Pedro, o Venerável, abade de Cluny. Isso é ainda mais surpreen-
preensão. Pelo menos, é esse o nome que lhe damos hoje. Os cristãos do dente quando sabemos que havia um núme ro considerável de cristãos,
início da Idade Média ficariam escandalizados ao ver sua reação caracteri- na Espanha, para qu e m o árabe era a prime ira língua, os chamados cris-
zada d essa maneira, mas, h o je e m dia, vivemos numa atmosfera de tã os moçárabes, que viviam sobre o poder islâmico em ai-Andaluz. Pode-
pluralismo religioso. O cristianismo é uma religião entre muitas, e o mes- se supor que o Isaac Velázquez q ue, em 946, tradu ziu os Evangelhos para
mo se pode dizer do Islã. Para o cristão dos primórdios da Idade Média, 0 árabe, em Córdoba, o te nha feito em benefício de seus correligionários
esses p ensamentos e ram, no sentido mais estrito da palavra, impensáveis: que não sabiam latim . O padre de nome Vince nt, que traduziu um ma-
eles não seriam capazes de entender essa última frase. Para começar, eles nual de le i canônica para o árabe, em 1049-1050, dedicando sua tradução
não possuíam uma palavra para "religião", tal como aí u sada. Na Europa a um bispo cristão chamado 'Abd al-Malik - de diocese desconhecida -
Richard Fletcher Em busco de EI Cid
presumivelmente o fez porque os clérigos do bispo dominavam melhor 0 mento. Um cronista francês de meado do século XI nos conta que Gerberto
árabe que o latim.
chegou até Córdoba "em busca de sabedoria'' mas isso é pouco provável.
Mas se as crenças dos muçulmanos não despertavam interesse, o mes~ O certo é que ele passou algum tempo no monastério ·de Ripoll, na
mo já não · acontecia com respeito a outras qualidades. que seus vizinhos Catalunha. Ripoll havia sido fundado por Wifredo, o Cabeludo, era uma
cristãos lhes atribuíam ..Dentre essas qualidades,.a principal era a riqueza; casa bem-dotada e havia · usado sua riqueza para construir, entre outras
a outra era o conhecimento. Em meados do século X, a cultura intelectual . coisas; uma esplêndida biblioteca, particularmente forte em obras sobre
da Espanha muçulmana estava ·se . tornando ·sofisticada, em razão, princi- matemática e astronomia; Gerberto fez bom uso dela. Aléin dos monges
palmente, da chegada, na Espanha, do saber acumulado pelo Islã no Oriente de Ripoll, ele também encontrou outras pessoas com interesses intelectu-
Médio, que, por sua vez, se baseava no corpo científico e filosófico da ais. Alguns anos após seu retorno à França, ele escreveu de Reims a um
Antigüidade grega e persa. O saber era levado a sério na corte ·de 'Abd al- certo Lobet, de Barcelona, solicitando uma . cópia de um trabalho sobre
Rahm:an III e de seu filho e sucessor, al-Hakam, este último um erudito de astrologia "traduzido por você". Sabemos, de outras fontes , que Lobet era
renome, No ano de 949, ó imperador bizantino, Co nstantino Porphyrogeni- o arquidiácono de Barcelona, e embora, hoje, não sejamos capazes de
tus - outro governante culto -, enviou um esplêndido manuscrito da obra identificar a obra que Gerberto queria emprestada, sabemos que Lobet
de Dioscorides, o mais célebre dos farmacólogos da Antigüidade, como traduziu do árabe um outro trabalho sobre o uso do instrumento científi-
presente ao califa de Córdoba. 'Abd al~Rahman reuniu um grupo de erudi- co conhecido como o astrolábio. O próprio Gerberto, mais tarde, escre-
tos para estudá-lo. Esse gnipo incluía um monge grego, de nome Nicolau, veu um trabalho sobre o astrolábio, que parece ser derivado de uma
enviado pelo imperador a pedido do califa; um árabe da Sicília, que falava outra obra similar (provavelmente não a traduzida por Lobet), escrita na
grego e meia dúzia de eruditos de al-Andaluz, um dos quais pode ter sido Catalunha, no final do século X.
o judeu Hasdai ibn Shaprut, médico particular do califa, e um erudito O astrolábio foi um instrumento de importância crítica para o avanço
famoso por seus interesses científicos. Nesse episódio, podemos ver a intelectual da Europa. Ele tornava possível todos os tipos ·de observações
vitalidade intelectual da Córdoba do ·século x.
astronômicas, com exatidão até então nunca alcançada; · possibilitava me-
Mais cedo ou mais tarde, os eruditos cristãos da Europa Ocidental se dições terrestres rápidas e acuradas, por exemplo, de altura e distância;
sentiriam atraídos pelo saber a ser encontrado na Espanha, tão vastamente podia ser usado para usos náuticos, e servia de relógio. O astrolábio foi
superior a seu próprio cabedaL Um estudioso de época posterior, Platão inventado na Antigüidade, mas os árabes foram os primeiros a perceber
de Tivoli, que, na década de 1130, fazia traduções para o latim de trata- seu potencial e a aperfeiçoar seu projeto. Os conhecimentos sobre ele
dos árabes sobre astronomia, em Barcelona, lamentou "a cegueira da difurtdiram-se rapidamente por todo o mundo islâmico. Astrolábios fabri-
ignorância latina (isto é, ocidental)". Roma, escreveu ele, vem, há muito, cados na Espanha islâmica sobreviveram até nós: um deles, produzido em
sendo inferior não apenas ao Egito e à Grécia, mas também à Arábia. À Toledo, em 1067, pode ser visto na Figura 5. Tendo ou não sido Gerberto
época de Platão, uma torrente de traduções estava começando a fluir, a pessoalmente responsável pela apresentação do astrolábio à cristandade
partir da Espanha, e essa irrigação dos campos crestados da ciência e da latina, o certo é que, no meado do século XI, surgiu, na Europa Ocidental,
filosofia ·européias iria, a seu tempo, produzir uma colheita espetacular. um crescente interesse .pelo astrolábio e por seus usos. Esse interesse era
No século X, épossível detectar apenas os primeiros e incipientes fios particularmente forte nas escolas do norte da França e da Renânia, de lá se
desse fluxo. Por menores e mais hesitantes que eles fossem, contudo, disseminando até, entre outros lugares, a Inglaterra. O primeiro testemu-
eles têm importância por serem augúrios do que estava por vir, e como nho sobre o uso do astrolábio na Inglaterra vem· de uma vívida peça
indicadores da inquietação e das tendências que então surgiam nas men- escrita por Walcher, prior de Malvern, que morreu em 1125. Ele havia
tes dos homens. Tomemos o exemplo de Gerberto, natural de Aurillac, estado em 1091 na Itália, onde, nas primeiras horas da manhã de 30 de
no Auvergne, que; na década de 960, foi à Espanha à procura de conheci- outubro, assistiu a um eclipse lunar.
Richard Fletcher Em busca de EI Cid
Quando voltei . à Inglaterra, perguntei sobre a hora do eclipse e um certo Da Espanha, o ouro ia para o norte, chegando a mãos cristãs, por meio
irmão me disse o seguinte: ele me contou que havia estado muito ocupado no dia do comércio, mas também - e especialmente após cerca do ano 1000 -
anterior ao eclipse, só chegando em casa tarde da noite. Após cear, ele sentou-se
(;orno pagamento de tropas. Podemos ter certeza de que os nobres de
por alguns momentos, quando um empregado, que havia saído, entrou correndo,
dizendo que alguma coisa de terrível estava acontecendo com a lua. Ao sair, ele l.eão e da Galícia que se alistavam nos exércitos de Almanzor eram recom-
notou que ainda não era meia-noite, pois a lua permanecia a certa distância do suL pensados com dinheiro, e também com os tecidos exóticos que ele distri-
Percebi então que várias horas separavam o momento do eclipse na Itália e na buiu entre eles após o ataque a Compostela, em 997. Em quatro ocasiões,
Inglaterra, uma vez que eu o assistira pouco antes do alvorecer, e ele o vira antes no início do século XI (1010, 1013, 1017 e 1024), exércitos ca.talãos inteivie-
da meia-noite. Mas eu ainda não tinha certeza da hora do eclipse, e isso me
ram nas confusas · guerras do sul da Espanha, que viriam a ocasionar a
preocupava, porque eu estava planejando construir uma tabela lunar e não tinhll
um ponto de partida. Então, inesperadamente, em 18 de outubro do ano seguinte, queda do califado de Córdoba. Em 1010, por exemplo, o conde de Barce-
durante o mesmo ciclo lunar, a lua ... passou por um outro eclipse. Eu, de pronto, lona, Ramón Borell, e seu irmão, o conde de Urgel, foram contratados por
tomei meu astrolábio e anotei cuidadosamente a hora do eclipse total. Wadih, um empregado eslavo de Almanzor, para dar apoio ao seu candi-
dato ao cargo de califa. Wadih prometeu pagar cem dinars por dia a cada
"Eu, de pronto, tomei meu astrolábio." Aí, no relato de um eclipse um dos condes, mais o soldo de suas tropas. Eles levaram tão a sério suas
lunar obseivado na Inglaterra, em 1092, podemos ter um vislumbre de obrigações - o ano de 1010 foi chamado de "o ano dos catalãos" pelos
parte do que o saber árabe da Espanha tinha a oferecer à cristandade. cronistas islâmicos - que, nas batalhas travadas naquele verão, o conde de
Nem todos os habitantes muçulmanos da Espanha viam com bons Urgel e nada menos que três bispos-soldado (Barcelona, Gerona e Vich)
olhos a transmissão desse conhecimento. Ibn 'Abdun, que escreveu um foram mortos. O influxo de ouro, durante esses anos, teve efeitos amplos
tratado sobre a administração da cidade de Sevilha em cerca de 1100, sobre a sociedade catalã. Entre outras coisas, ele foi um auxfüo poderoso
aconselhou: "vocês não devem vender livros cultos aos judeus ou aos para que os condes de Barcelona suplantassem seus rivais, que disputa-
cristãos ... porque eles logo traduzirão esses livros científicos, atribuindo vam com eles o poder nos condados da fronteira espanhola. Um outro
sua autoria a seus próprios povos". O contexto deixa claro que se tratava, líder cristão que participou, visando ao próprio lucro, das lutas andaluzes
particularmente, de livros sobre medicina. Mas era impossível conter esse dessa época foi o conde Sancho de Castela (995-1017).
fluxo. Conhecimentos exóticos estavam disponíveis na Espanha muçulma~ Mais cedo ou mais tarde, soldados aventureiros de países estrangeiros
na, e os intelectuais cristãos iriam consegui-los. começariam a chegar à Espanha em busca de fortuna. Apesar dos contatos
Muitos sentiam o mesmo a respeito da riqueza. No meado do século X, de épocas anteriores entre os governantes asturianos e carolíngeos e dos
a Espanha muçulmana já tinha uma reputação de riqueza em partes vínculos culturais existentes entre a Catalunha e a França, resta o fato de
tantes da Europa Ocidental. Hrotswitha de Gandersheim, a exi:rac)fdlinliri~l / que, de muitas maneiras, os principados da Espanha cristã, durante os
poetisa alemã desse período, referiu-se aos muçulmanos espanhóis séculos IX e X, eram relativamente isolados de seus vizinhos da Europa
adoradores de ídolos de ouro. A audiência da Canção de Rolando, Ocidental. A partir do final do século X, vários fatores começaram a dissol-
norte da França, no século XI, era constantemente lembrada de que Marsile, ver esse isolamento. Um deles era a vinda de um número cada vez maior
o rei muçulmano de Saragoça, comandava vastas reseivas de ouro. A igno- de peregrinos ao santuário de Santiago de Compostela, no extremo no-
rância .sobre as práticas religiosas islâmicas, demonstrada pela re1:er,enc1a roeste da Península Ibérica. Em algum momento da primeira metade do
da poetisa à adoração de ídolos de ouro, é característica, mas a crença século IX, um corpo que se acreditava ser do apóstolo Tiago, o Maior, foi
que havia abundância de ouro em al-Andaluz tinha fundamento na reali- desenterrado no lugar hoje conhecido como Santiago de Compostela.
dade. As moedas de ouro lá cunhadas a partir de 920 são os melhores Embora seja altamente improvável que ·São Tiago ou qualquer de seus
indícios que temos dessa fartura. Teremos algo a dizer, num capítulo pos- discípulos tenha, algum dia, colocado os pés na Espanha, quer vivo quer
terior, ·sobre a fonte desses metais preciosos, na África Ocidental transaariana. morto, os clérigos galegos do século IX estavam convencidos de que ha-
Richard Fletcher Em busco de EI Cid
viam achado os restos mortais do apóstolo. Um culto local teve início em O império de Sancho, o Grande, não sobreviveu a ele. Leão e a Gasco-
torno da tumba. Ao longo do tempo, pessoas influentes passaram a incen- .nha ao norte dos Pireneus não tardaram a se livrar de sua autoridade. O
tivar esse culto, sobretudo o rei Afonso III e seus sucessores no trono de próprio Sancho havia providenciado a repartição de suas outras terras,
Leão, no século X. Acreditava-se que aconteciam milagres no santuário. A para criar três reinos para seus filhos. Navarra foi para García; Castela, para
devoção ao lugar santo de São Tiago cresceu e se difundiu, e os peregri- Fernando; e Aragão foi para Ramiro. Dos três, Fernando foi o que se saiu
nos eram atraídos de localidades cada vez mais distantes. melhor. As iniciativas tomadas por ele, durante seu reinado, em relação
A essa mesma época, os religiosos passaram a apresentar as peregrina- tanto aos príncipes muçulmanos dos estados taifa quanto aos monges de
ções como um dos principais exercícios religiosos dos quais os leigos das Cluny, na França, viriam a ser de grande e duradoura importância, até
classes dos nobres e dos cavaleiros deveriam ·participar para a segurança muitos anos depois de sua morte. Mas antes de nos voltarmos a elas,
de suas almas. Essa preocupação era particularmente forte entre os mon- temos que examinar mais de perto a região da qual ele se tornou rei, em
ges da grande abadia de Cluny, na Borgonha, e das casas francesas a ela 1035. Há uma outra razão para esse exame. Castela era a terra natal do Cid,
filiadas, cujos vínculos com a alta e a baixa nobreza eram especialmente e foi durante o reinado de Fernando que ele lá cresceu.
estreitos. Desse modo, o incentivo às peregrinações a Compostela ajudou
a difundir, entre a aristocracia feudal da França, o conhecimento sobre as
oportunidades existentes na Espanha. É significativo que a mais antiga das
conexões diretas entre Cluny e a Espanha que chegou a nosso conheci..:
mento tenha ocorrido durante esse período. Por volta de 1025 um certo
Paternus, abade do monastério aragonês de San Juan de la Pefia, foi a
Cluny para conhecer · a vida monástica de lá. Quando retornou, trouxe
consigo alguns monges, para ajudar a difundir na Espanha a rih,,P1rv:inr1::1
à maneira de Cluny, Esses monges de Cluny tiveram pouca influência,
sua vinda estabeleceu um laço que viria a se tornar importante em anos
posteriores daquele mesmo século.
A iniciativa de estabelecer relações com Cluny partiu do rei Sancho
de Navarra, o tataraneto do Sancho Garcés que havia sofrido nas mãos
de 'Abd al-Rahman III, em 924. Esse Sancho posterior, lembrado como
Mayor, "o Grande", reinou de 1004 a 1035. Fazendo uso de guerra e diplo-
macia, ele construiu um império extenso, embora de curta duraçãó, que, à
época de sua morte, ia da foz do Gironde às montanhas que separam
da .Galícia. Ele estabeleceu suserania sobre os condados dos Pireneus de
.AJ::agão, Sobrarbe e Ribagorza. Na década de 1020, estendeu sua aut9rida~
de sobre a Gasconha, até Bordeaux. Por herança de sua mulher, filha do .
conde Sancho de Castela, e lucrando com um assassinato suspeitosamente
oportuno, ele absorveu o condado de Castela, em 1029. Nos últimos
de sua vida, ele fez seu domínio avançar em direção ao oeste, até abranger
a planície e a cidade de Leão. Nunca antes havia a suserania de um rei de
Navarra ido tão longe.