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Publicado em CALDART, R. S. e VILLAS BÔAS, R. L. (orgs.) Pedagogia Socialista.

Legado
da revolução de 1917 e desafios atuais. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 207-232.

O legado de Marx para a construção do projeto da pedagogia socialista

Gaudêncio Frigotto1

O conjunto das análises efetivadas no Seminário Nacional sobre a Construção Histórica


da Pedagogia Socialista — Legado da Revolução Russa de 1917 e Desafios Atuais, que
compõe esta coletânea, teve como base subjacente as abordagens de Karl Marx, Engels,
Gramsci, Kruspkaya e Lenin, este como intérprete maior destas fontes. O tema que me
coube abordar foi sobre legado de Marx para a construção do projeto da pedagogia
socialista. Isto traz a este texto uma especificidade: o de ater-se à obra de Marx naquilo
que fundamenta a concepção do projeto de pedagogia socialista Legado que nos
interpela avançar na construção da pedagogia socialista no tempo presente na sociedade
brasileira. Esta tarefa engendra um triplo pressuposto
Primeiro, para que o socialismo se constitua, é condição necessária o fim da
propriedade privada dos meios e instrumentos de produção que plasmam relações
sociais de exploração de seres humanos sobre outros seres humanos. Em segundo lugar,
é que a superação do modo de produção capitalista e a construção da sociedade
socialista guardam particularidades históricas em diferentes formações sociais.
Consequentemente, a construção da sociedade socialista e os processos de formação
humana e de educação escolar nela constituídos e, ao mesmo tempo constituintes, não
se plasmam sobre modelos. Por fim, o terceiro pressuposto é de que a construção da
sociedade socialista e a pedagogia socialista estão em curso e gestam-se e desenvolve-se
na luta de classe.
De imediato, cabem as seguintes questões: qual o sentido de se buscar o legado
de Marx e da Revolução Russa de 1917 se, como insistem os intelectuais do sistema
capital, mesmo sob a mais severa e destrutiva crise que enfrenta (destruição de milhões
de vidas pela fome e pela guerra e a natureza da qual somos parte), ambos
“fracassaram” e o capitalismo expressa a sociedade que corresponde à natureza
humana? E, como

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Professor do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado o
Rio de Janeiro (Uerj) e professor titular, aposentado, na Universidade Federal Fluminense (UFF).
É a partir da análise de duas referências da interpretação do legado de Marx ao
longo do século XX e parte do XXI, que encontramos uma resposta e um testemunho
inequívoco para esta questão. Ambos coetâneos do tempo histórico que deflagrou a
Revolução Russa e o que a conduziu ao colapso, mas não ao fracasso como eles
mesmos nos mostram. O primeiro, Eric Hobsbawm, que nasceu justamente em junho de
1917 e, o segundo, Antônio Cândido, que nasceu um ano depois, julho de 1918.
Com efeito, em dois textos de uma mesma coletânea que discute o colapso do
projeto socialista de 1917, setenta anos depois, Hobsbawm, num primeiro, faz um
balanço daquela experiência com o título: Adeus a tudo aquilo (HOBSBAWM, 1992).
No outro, com o título Renascendo das cinzas, todavia, mostra que aquela experiência
não foi em vão e que, pelo contrário, o socialismo está na agenda. E, de forma sucinta,
assinala a tarefa dos socialistas neste renascimento. “Os socialistas estão aqui para
lembrar que as pessoas devem vir em primeiro lugar e não a produção. As pessoas não
podem ser sacrificadas” (HOBSBAWM, 1992a, p. 268).
Antônio Cândido, em entrevista para o jornal Brasil de Fato em 2011, explicita
por que o socialismo é uma “doutrina triunfante” e não o capitalismo que nada tem a
oferecer à humanidade a não ser a exploração da classe detentora do capital sobre a
maioria dos seres humanos e a desigualdade como necessidade estrutural. Ao responder
à questão — O senhor é socialista?, nos mostra que todas as conquistas para barrar a
violência destrutiva do capital e, portanto, de direitos que dilatam a vida humana
resultaram e resultam das lutas empreendidas ao longo da história por diferentes
tendências socialistas.

Ancorado na coerência destes dois intelectuais, que ao longo de quase um século


de suas vidas jamais renegaram o legado de Marx e a luta pelo socialismo, busco trazer
mais um esquema de estudo e de debate do que um texto detalhado sobe o legado de
Marx para a construção do projeto da pedagogia socialista. Vale dizer, uma pedagogia
da luta de classes e o que implica para a especificidade da instituição escolar.
Um roteiro de estudo e debate, em primeiro lugar, por tratar-se de um seminário
que reúne intelectuais militantes, inseridos em diferentes espaços da luta por uma
pedagogia socialista não apenas no plano teórico, mas mediada por este na ação
revolucionária prática, na construção do projeto socialista.
Em segundo lugar, por termos várias obras que nos trazem as contribuições de
Marx e Engels sobre a concepção e a prática no desenvolvimento do projeto da

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pedagogia socialista. Sobre as contribuições especificamente de Marx à obra de Mário
Manacorda, em três volumes, sobre Marxismo e l’educazione (MANACORDA, 1964,
v.I; 1966, v.II e v.III),
Em português temos a coletânea Marx & Engels. Textos sobre educação e
ensino (1980), amplamente divulgados em deferentes versões. Mais recentemente a
tradução do Livro de N. K. Kruspkaya (2017) nos traz um denso material sobre o
exercício prático do legado de Marx na construção da pedagogia socialista.
Tomo como horizonte de análise, nos aspectos que esquematicamente irei
abordar, o contraponto que Saviani (2008) efetiva entre pedagogia que, a partir do
legado de Marx, tem como centro os indivíduos concretos ou os indivíduos, como
síntese de relações sociais, e a pedagogia tradicional (empirista e idealista), que elide a
história, naturalizando as relações e supondo uma natureza humana a-histórica.
Para o propósito deste debate, vou me ater a três aspectos e algumas
considerações finais: o fundamento da pedagogia socialista na formação humana para
uma nova sociedade; a ontologia materialista; o princípio educativo do trabalho na
formação do homem novo na contradição do atual modo de produção; e a ciência que
interessa ao projeto da pedagogia socialista, o caráter científico da escola e a educação
omnilateral e politécnica como horizonte em construção de seres humanos
desenvolvidos em todas as dimensões.

1 O fundamento da pedagogia socialista na formação humana para uma nova


sociedade: a ontologia materialista

O primeiro e fundamental legado de Marx, que demarca o ponto de partida de um


projeto da pedagogia socialista de formação humana, situa-se na concepção ontológica
materialista, a qual rompe com as ontologias metafísica teocêntrica, idealista e
aburguesa empiricista. Ontologias que, de diferentes formas, confluem para uma
concepção de ser humano e de formação humana em sentido amplo e de educação
escolar a-históricas.
Marx, na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, credita à
burguesia revolucionária o acerto de contas com as visões metafísicas teocêntricas. E,
ele mesmo, por superação dialética, fez o acerto de contas com a herança da filosofia
grega e, sobretudo, da filosofia alemã da qual seu grande mestre Hegel é a síntese mais
avançada e, portanto, base sobre a qual se desenvolve avança. Tratou de trazer a
dialética, do plano das ideias e do espírito, para o plano da realidade histórica. É sob

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este legado que a tarefa histórica, que perdura até o presente, é o acerto de contas com a
concepção de homem, natureza, trabalho conhecimento e formação humana da
burguesia.
Marx nos mostra que se de fato a burguesia, em seu projeto societário, foi levada
a romper com a concepção da essência divina como força externa, que define o ser
humano, a substituiu por uma essência humana utilitarista e egoísta inscrita em cada
indivíduo que o impulsiona da luta para seus interesses. Essência esta chave para o
progresso individual e coletivo, na concretização dos seus interesses privados. De John
Locke, David Hume a Adam Smith e de seus seguidores até os dias atuais, toma-se o
ideário da concepção do homem burguês e de sua racionalidade que determina
relacionar-se com outros pela mediação dos seus interesses egoístas, como a natureza
eterna dos seres humanos.
Sob esta concepção, considera-se a desigualdade econômica, social, educacional
etc., entre os seres humanos, não como resultantes de um processo histórico marcado
pela cisão de classes sociais com poder assimétrico e, portanto, relações sociais
marcadas pela dominação de uns sobre os outros, mas como resultantes de escolhas
individuais ou do não esforço individual. O acúmulo de riqueza, assim, adviria do
esforço individual, do empenho e da dedicação de cada indivíduo e não da exploração
da classe trabalhadora.
Do mesmo modo, tomados os indivíduos isoladamente e de forma abstrata, a
desigualdade que se expressa na escola no processo de aprendizagem e, portanto, da
apropriação do conhecimento científico, cultural, estético etc., historicamente
produzido, advém do esforço e empenho de cada um e não das determinações
subjacentes resultantes da estrutura das classes sociais.
A ontologia materialista, de forma oposta, parte do fato de que o ser humano é
um ser social historicamente constituído nas relações sociais, e que não há limites ao
desenvolvimento humano a não ser aqueles construídos pelos próprios homens. Assim,
na Sagrada família, Marx destaca:

Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as


circunstâncias humanamente. Se o homem é social por natureza,
desenvolverá sua verdadeira natureza no seio da sociedade e somente ali,
razão pela qual devemos medir o poder de sua natureza, não através do poder
do indivíduo concreto, mas sim através do poder da sociedade [grifos meus].
(MARX, 2003, p. 163)

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O que Marx evidencia é de que não há um mundo humano fora da história e que
não nascemos humanos, mas nos tornamos humanos em sociedade. A frase que
antecede o texto acima se reveste de uma atualidade extrema em relação à violência e
seu caráter social e não individual.

Se o homem não goza de liberdade em sentido materialista, quer dizer, se é


livre não pela força negativa de poder evitar isso e aquilo, mas pelo poder
positivo de fazer valer sua verdadeira individualidade, os crimes não
deverão ser castigados no indivíduo, mas [devem-se] sim destruir as
raízes antissociais do crime e dar a todos a margem social necessária para
exteriorizar de um modo essencial sua vida. (Ibid. p. 163)

De forma mais explícita, Marx, na Tese VI sobre Feuerbach, sublinha o caráter


social do ser humano. “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana.
Mas, a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua
realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (MARX, 2009, p. 534).
Por outro lado, o ser humano que se produz socialmente o faz como um ser parte
da natureza, mas que se distingue dela por poder transformá-la e, por esta via,
transformar a si mesmo. Em O capital, Marx destaca: “O homem, ao produzir, só pode
proceder como a própria natureza, isto é, mudando as formas da matéria” (MARX,
1980, p. 50).
Desta compreensão ontológica materialista derivam diferentes aspectos centrais
para um projeto de pedagogia socialista, como pode ser observado a seguir.
Em primeiro lugar, que o processo do ser humano produzir a si mesmo, em
relação com os outros, efetiva-se socialmente e pela atividade prática do trabalho na
produção dos bens materiais que lhes garantem a sua produção e reprodução vital.
A segunda contribuição fundamental de Marx, derivada da primeira, trata-se de
entender como, sob o modo de produção capitalista, se efetiva a atividade prática do
trabalho mediante o qual se produz o que define o mundo imperativo da necessidade na
produção e reprodução do ser humano.

Marx descobriu também a lei específica que move o atual modo de produção
capitalista e a sociedade burguesa criada por ele. O descobrimento da mais-
valia deixou claro tais problemas, enquanto todas as análises anteriores, tanto
as dos economistas burgueses como as dos críticos socialistas vagaram nas
trevas. (Ibid. p. 1)

O que Marx nos lega, portanto, como algo fundamental é o método dialético
materialista histórico mediante o qual se pode compreender a especificidade, as
contradições dos diferentes modos de produção da existência humana e como estes
foram superados. O ponto central da concepção materialista histórica e do método

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científico de apreendê-la é o de que, para entender o processo histórico real, o ponto de
partida não é a política, a ciência, a arte, a religião, a educação, mas como se definem
nas relações sociais a produção dos meios de vida imediatos. É para sustentar e
reproduzir estas relações sociais de produção dos meios de vida imediatos que se
estrutura uma determinada forma de estado, instituições políticas, científicas e
educacionais, e as ideias, teorias, ideologias etc.

(...) um primeiro pressuposto de toda a história, a saber, que os homens


devem estar em condições de poder viver a fim de “fazer história. (...) O
primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer
as necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato
histórico, de uma condição fundamental de toda a história, que é necessário
tanto hoje como há milhares de anos, executar todo o dia, hora a hora, a fim
de manter os homens vivos. ( MARX; ENGELS, 1999, p. 30)

Partindo deste pressuposto, Marx nos transmite como a produção imediata dos
meios de vida se efetiva sob o modo de produção capitalista, e a natureza das
instituições e das concepções dominantes que buscam reproduzir este modo de
produção.
Um ponto central para apreender o legado de Marx para o projeto de pedagogia
socialista é o de que o ser humano é um ser da natureza e que, ao tornar-se humano,
distinguindo-se da natureza em geral, não elimina que ele é parte dela. Deste modo, a
compreensão das leis da natureza e de como os seres humanos se constituem em
sociedade e em relação à natureza obedece a especificidades, mas não há duas histórias
— da natureza e dos homens, mas apenas a “ciência da história”.
Com efeito, Marx e Engels no livro Ideologia alemã, ao analisar as concepções
metafísica e idealista da formação da consciência, descontadas da base material que as
produz, mostram como estas concepções separam a história da natureza.
Até agora, toda a concepção de história deixou de lado essa base real da
história ou a considerou como algo acessório sem qualquer relação com a
história. É por isso que a história deve sempre ser escrita segundo uma norma
situada fora dela. A produção real da vida aparece como separada da vida
comum, como extra ou supraterrestre. As relações entre os homens e a
natureza são por isso, excluídas da história, o que engendra a oposição
entre natureza e história [grifos meus]. (MARX; ENGELS, 1989, p. 37)

Florestan Fernandes na obra Marx & Engels. História recupera uma passagem
na qual Marx e Engels explicitam a inseparabilidade da história dos homens e da
natureza, conformando a única ciência, a ciência da história.
Nós conhecemos somente uma ciência singular, a ciência da história. Pode-se
encarar a história de dois ângulos e dividi-la em história da natureza e em
história dos homens. Os dois ângulos, entretanto, são inseparáveis; a história
da natureza, também chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas

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nós temos de examinar a história dos homens, pois quase a totalidade da
ideologia reduz-se à interpretação adulterada dessa história, seja à completa
abstração dela. A ideologia é em si mesma um dos aspectos da história.
(MARX; ENGELS, apud FERNANDES, 1989, p. 31)

Da unidade da ciência da natureza e da ciência dos homens e da compreensão


de que a ideologia é, em si mesma, parte da história derivam três aspectos a serem
considerados no projeto da pedagogia socialista na formação do homem novo.
O primeiro é de que a pedagogia socialista necessita, no processo de formação
humana nas diferentes práticas sociais e, em particular, na escola afirmar a
inseparabilidade do mundo da natureza do mundo dos homens. No contexto predatório
das bases da vida pela degradação do meio ambiente, modificação das sementes e
produção de alimentos que atentam à saúde, esse aspecto assume centralidade.
Do mesmo modo é fundamental confrontar as teses da segurança alimentar,
defendidas pelos ideólogos do agronegócio com a defesa da soberania alimentar. A
primeira está na lógica do mercado, dos agrotóxicos e do lucro. A segunda, na ordem
do direito a uma alimentação de qualidade ligada à saúde e à vida. Como consequência,
trata-se de desenvolver as bases e a prática da ciência da agroecologia como parte
fundamental do projeto da pedagogia socialista.
O segundo aspecto é de que a ontologia materialista não separa a materialidade e
a subjetividade do ser humano como ser social. Neste sentido, uma determinada
ideologia, ou concepção de mundo subjetivada pelas massas torna-se parte desta
materialidade. Este é o sentido de que a ideologia é em si mesma um dos aspectos da
história.
Por fim, o terceiro aspecto é que a ontologia materialista, por pautar-se na
ciência da história, não é mecanicista nem determinista. Por isso que um projeto de
pedagogia socialista de formação do homem novo, no plano das contradições cada vez
mais insanáveis e destrutivas do sistema capital, necessita ter como referência pequenas
passagens, entre outras, do legado de Marx. A primeira encontra-se na Tese III sobre
Feuerbach.

A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação


esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio
educador tem de ser educado. Ela tem, por isso, de dividir a sociedade em
duas partes — a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A
consciência entre altera(ção) das circunstâncias e a atividade, ou a
automodificação humanas, só pode ser apreendida e reconhecidamente
entendida como prática revolucionaria [grifos do autor]. (MARX, 2009, p.
533-34)

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Em O 18 brumário de Louis Bonaparte, esta ideia é retomada. “Os homens
fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; em
circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente
encontradas, dadas e transmitidas. A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o
cérebro dos vivos como um pesadelo” (MARX, 1982, p. 21). Em seguida, Marx, no
plano da luta histórica, mostra como as circunstâncias foram sendo modificadas na luta
e na ação prática. Há, pois, uma relação dialética entre as circunstâncias e a ação prática
na transformação das circunstâncias.
Assim, entendemos que a ontologia materialista constitui-se na base
fundamental do projeto da pedagogia socialista na formação do homem novo para uma
nova sociedade sem classes. Um projeto que não é idealista nem somente teórico, ele se
concretiza na ação prática, vale dizer, na práxis revolucionária. A ação prática que
define a especificidade do ser humano em relação aos demais seres da natureza é o
trabalho produtivo e socialmente útil. Este não engloba todas as atividades humanas,
mas é a condição necessária e imperativa de possibilidade destas. Não há reino da
liberdade sem que se satisfaça, em cada tempo histórico, o reino da necessidade.

2 O princípio educativo do trabalho: A centralidade do trabalho no projeto da


pedagogia socialista

Estamos tratando aqui dos cem anos da revolução socialista e seu legado. No
campo da educação escolar, mas não apenas, no campo da arte e da cultura, foi a
primeira ampla experiência de trazer ao plano da ação prática o legado de Marx, num
contexto em que a Revolução Russa de 1917 não significou, num passe de mágica, a
superação das velhas estruturas sociais e concepções. Velho e novo conviveram numa
mesma unidade no processo de superação das relações sociais capitalistas. Por razões
que não serão desenvolvidas neste texto, esta passagem para uma sociedade sem classes
e sem exploração não teve continuidade. Todavia, é dessa experiência histórica de
apropriação e exercício prático do legado de Marx e Engels que estamos buscando
elementos para, em nosso contexto histórico, avançar num projeto de pedagogia
socialista. Por isso, a Revolução Russa de 1917 traz um legado que nos permite afirmar
que foi derrotado, mas não foi um fracasso.
De fato, no legado de Marx não encontramos o ideário do dever ser nem o
voluntarismo político, por isso que a travessia para a nova sociedade implica uma
processualidade histórica em que o novo é construído na luta concreta, teórica e prática,

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dentro de velhas relações. Em Marx, não faz sentido a pergunta que reiteradamente
ouvimos nos meios acadêmicos: Como o trabalho pode ser educativo dentro das
relações sociais capitalistas?
O trabalho como princípio educativo deriva, em Marx, do fato de que é pelo
trabalho que o ser humano se torna humano e por ele produz e reproduz a sua vida. Ou
seja, como um ser da natureza e em relação com ela, pela ação vital do trabalho, cria as
condições de produção e reprodução de si mesmo ao longo da história. Em O capital,
Marx traz o conceito “antediluviano” do sentido ontocriativo do trabalho.
Antes, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em
que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu
metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural
como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais
pertencentes à sua corporeidade, braços, pernas, cabeça e mãos, a fim de se
apropriar da matéria natural numa forma útil à própria vida. Ao atuar, por
meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e, ao modificá-la, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (MARX, 1983, p. 149).

Esta atividade vital de produzir os bens imperativos à vida não esgota as


múltiplas dimensões do desenvolvimento humano ao longo da história, mas é condição
necessária. O caráter imperativo do trabalho, como resposta a necessidades vitais, Marx
o entende como dimensão da esfera da necessidade, comum aos demais seres vivos da
natureza. A luta histórica é para diminuir o tempo humano nessa atividade e liberar as
atividades do mundo da liberdade em que o humano pode se dilatar. Mas a esfera da
necessidade e da liberdade não é separável, uma vez que um quantum de trabalho social
para prover os meios de vida imperativos é necessidade intrínseca ao ser humano. É na
esfera da liberdade que a omnilateralidade do humano pode se desenvolver e se
qualificar. Nesta esfera está o mundo da criação e da educação para a arte, a estética e a
educação dos sentidos etc.
O princípio formativo ou educativo do trabalho social produtivo como valor de
uso é elemento central na formação do caráter do homem novo, para uma sociedade sem
classes e, portanto, sem exploração. Um aprendizado desde a infância para que não se
naturalize a formar, na expressão de Gramsci, mamíferos de luxo. Como tal, o princípio
educativo do trabalho social produtivo central no projeto da pedagogia socialista.
Marx, ao nos trazer esse legado, não ignorava as formas históricas de como esta
atividade vital se deu sobre os regimes escravocrata, servil e o trabalho alienado sob o
sistema capitalista. Pelo contrário, é tema central de suas análises, assim como a luta
para romper com todas as formas de relações sociais que cindem, degradam e dilaceram
a vida humana.

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Este rompimento, para Marx, não se dá no plano ideal, mas concretamente no
seio das contradições, do processo histórico no qual se desenvolveu o próprio sistema
capitalista e o qual não define o fim da história como quer a doutrina burguesa. É,
portanto, das e nas contradições deste sistema que se desenvolvem as condições para a
sociedade socialista.
A união do trabalho social produtivo e da educação escolar deriva, por um lado,
do entendimento que como todos dependem do comer, vestir-se, ter um teto etc., é
tarefa de todos e nas possibilidades de cada um, desde a infância, e, por outro, que esta
atividade não é fixa, por não serem fixas as necessidades humanas, ela vai sendo
mediada pelo desenvolvimento de instrumento e novos conhecimentos que necessitam
de aprendizagem.
Em Marx, tanto a natureza do trabalho quanto da educação escolar, da ciência e
da tecnologia são definidas em determinadas relações sociais; e que a superação das
relações sociais capitalistas e das formas que assumem o trabalho, a educação, a ciência
em seu interior desenvolvem-se, contraditoriamente, neste mesmo espaço.
É nesta compreensão que Marx, ao mesmo tempo que condena sem concessões a
exploração do trabalho infantil em diferentes textos, em especial em O capital, quando
discute a grande indústria e a maquinaria, vê na sociedade capitalista, na união do
trabalho infantil e educação obrigatória, e na luta de classes, a união do trabalho infantil
com a educação, ou seja, contraditoriamente, desenvolve o germe do novo para a
sociedade comunista. A luta de classes, pois, não é a eliminação do trabalho infantil e de
sua união com a educação, mas a eliminação sob a forma capitalista.
Acusai-nos de querer abolir a exploração de crianças por seus próprios pais?
Confessamos esse crime. Dizeis também que destruímos os vínculos mais
íntimos substituindo a educação doméstica pela educação social. E a vossa
educação não é também social e determinada pelas condições sociais em que
educais vossos filhos, pela intervenção direta ou indireta da sociedade, por
meio de vossas escolas etc.? Os comunistas não inventaram essa intromissão
da sociedade na educação; apenas mudaram seu caráter e arrancaram a
educação à influência da classe dominante. (MARX; ENGELS, 1999, p. 36)

É dentro desta compreensão que em O capital sublinha o avanço, ainda que pobre, no
fato das leis fabris regularem o trabalho infantil e as implicações pedagógicas desta
união.
Por parcas que pareçam no todo, as cláusulas educacionais da lei fabril
proclamam a instrução primária como condição obrigatória para o trabalho.
Seu êxito demonstrou, antes de tudo, a possibilidade de conjugar ensino e
ginástica com trabalho manual, por conseguinte também trabalho manual
com ensino e ginástica. Os inspetores de fábrica logo descobriram, por
depoimentos de mestres-escolas, que as crianças de fábricas, embora só

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gozem de metade do ensino oferecido aos alunos regulares do dia inteiro,
aprendem tanto e muitas vezes. (MARX, 1984, p. 86)

Na Crítica ao programa de Gotha, Marx pondera, entretanto, que se deve por


um limite de idade, mas não a abolição do trabalho infantil socialmente produtivo.

Proibição do trabalho infantil! Aqui, absolutamente necessário determinar


o limite de idade. A proibição geral do trabalho infantil é incompatível com
a existência da grande indústria e, por esta razão, um desejo vazio e piedoso.
A aplicação desta proibição — se possível — seria reacionária, uma vez que,
com uma rígida regulamentação da jornada de trabalho, segundo as diferentes
faixas etárias e as demais medidas preventivas para a proteção das crianças, a
combinação de trabalho produtivo com instrução, desde tenra idade, é um dos
mais poderosos meios de transformação da sociedade atual. (MARX, 2012,
p.47-8)

E por ser da natureza estrutural das relações sociais a produção capitalista, o


desenvolvimento incessante das forças produtivas, em especial do uso da ciência e da
tecnologia, Marx vai mostrar que a divisão do trabalho na fábrica automatizada vai
exigir o “desenvolvimento multilateral” dos indivíduos.

A tecnologia descobriu igualmente as poucas formas básicas do movimento


em que necessariamente ocorrer todo o fazer do corpo humano, apesar dos
instrumentos utilizados. Assim como a mecânica não se deixa enganar pela
maior complicação da maquinaria quanto à repetição constante das potências
mecânicas simples. A indústria moderna nunca encara nem trata a forma
existente de um processo de produção como definitiva. Sua base técnica é,
por isso, revolucionária, enquanto de todos os modos de produção anteriores
era essencialmente conservadora. (MARX, 1984, p. 89)

É na apreensão da natureza do caráter revolucionário da base técnica do


processo e produção capitalista que Marx vai indicar a questão do papel do
conhecimento, da formação tecnológica e a luta pela superação das relações de
exploração e de dominação contra a classe trabalhadora.
Com efeito, Marx, nos Grundrisse, já indicava claramente essa tendência,
mostrando que a criação da riqueza dependia cada vez menos do tempo e do quantum
de trabalho utilizado e mais do estado geral da ciência e de sua utilização na produção, e
que, sob o domínio e o capital, isso se voltava contra o trabalhador e sua classe.

A máquina, triunfo do ser humano sobre as forças naturais, converte-se, nas


mãos dos capitalistas, em instrumento de servidão de seres humanos a estas
mesmas forças [...]; a máquina, meio infalível para encurtar o trabalho
cotidiano, prolonga-o, nas mãos do capitalista [...]; a máquina, varinha de
condão para aumentar a riqueza do produtor, empobrece-o em mãos do
capitalista. (MARX, apud PARIS, 2002, p. 235)

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Como, então, estabelecer a união do trabalho com a educação e colocar a ciência
e a formação tecnológica e/ou politécnica num projeto de educação socialista para uma
sociedade sem classes e sem exploração?
A resposta a esta questão segue, em primeiro lugar, a mesma direção da não
proibição do trabalho infantil. Não se trata de negar a ciência e a tecnologia, pelo
contrário, a tarefa histórica da classe trabalhadora é libertar a ciência e a tecnologia das
mãos do capital e, portanto, da burguesia. Em segundo lugar, essa luta dá-se no plano
real contraditório das relações sociais capitalistas.

3 A ciência que interessa ao projeto da pedagogia socialista, o caráter científico da


escola e a educação omnilateral e politécnica
Só a classe operária pode converter a ciência de um instrumento de dominação de
classe (class rule) numa força popular. (...) A ciência só pode desempenhar o seu
genuíno papel na República do Trabalho (MARX, apud BARATA-MOURA,
1997, p. 71)

A ciência e o conhecimento inerentes a um projeto de pedagogia socialista


resultam da concepção materialista da realidade e do método dialético histórico de
apreendê-los. Diferente das concepções do senso comum ou das visões idealistas e
empiricistas, a ciência ou o fazer científico dentro da concepção materialista histórica
busca distinguir o fenômeno de sua essência. Se houvesse uma coincidência entre o
fenômeno e a essência, o trabalho científico seria desnecessário. Em Marx, podemos
afirmar que a pedagogia socialista, em todos os níveis da escolaridade, visa fazer o
educando assumir uma atitude científica perante a realidade e, como tal, trata-se de
evitar, por um lado, as posturas idealistas e, por outro, o viés empirista que estabelece
uma identidade entre o fenômeno e a essência2.
Marx em sua concepção epistemológica efetiva uma dupla superação. A das
visões idealistas que arbitrariamente superam o fenômeno de sua essência. Neste caso, a
essência ou o real perdem sua base ontológica objetiva dando autonomia ao
pensamento. Aqui, Marx vai mostrar a necessária unidade de ambos. Do mesmo modo,
a superação do empirismo que postula a identidade entre o fenômeno e a essência, Marx
mostra a diferença de ambos em sua unidade.
No primeiro caso, trata-se de não confundir a forma pela qual efetivamos a
apreensão da realidade mediada pela via do pensamento com o movimento ou dialética

2
. A parte referente à ciência e à cientificidade do conhecimento tem como base a abordagem de José
Barata-Moura no item que trata da cientificidade do saber em Marx (BARATA-MOURA, 1997, p. 69-
88).

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do real. Os fatos e fenômenos existem independentemente do que pensamos sobre eles.
No segundo caso, trata-se de não tomar as aparências do fenômeno como sendo o real.
A compreensão de qualquer fenômeno demanda apreender as mediações ou conexões,
contradições e particularidades que o constituem no plano histórico. E, como vimos
acima, em Marx só há uma ciência: a ciência da história.

O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, logo,


unidade da diversidade. É por isso, que ele é para o pensamento um processo
de síntese, um resultado, e não como ponto de partida, apesar de ser o
verdadeiro ponto de partida e, portanto igualmente o ponto de partida da
observação imediata e da representação. O primeiro passo reduziu a plenitude
da representação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as
determinações abstratas conduzem à representação do concreto pela via do
pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado
do pensamento, que se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo,
se movimenta em si mesmo, enquanto que o método que consiste em elevar-
se do abstrato ao concreto é para o pensamento precisamente a maneira de se
apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto espiritual. Mas este não
é de modo nenhum o processo de gênese do próprio concreto. (MARX, 1983,
p. 201-19)

É na argumentação de seus críticos, paradoxalmente, que Marx sublinha os


fundamentos materialistas de seu método de análise da realidade histórica e seu caráter
revolucionário. Assim, referindo-se às críticas expostas no periódico de São Petersburgo
Mensageiro Europeu, destaca no posfácio da segunda edição de O capital o que afirma
um de seus críticos:
Para Marx só uma coisa importa: descobrir a lei dos fenômenos que ele
pesquisa. Importa-lhe não apenas a lei que os rege, enquanto tem forma
definida e os liga a uma relação observada em dado período histórico. O mais
importante, de tudo, para ele, é a lei de sua transformação, de seu
desenvolvimento, isto é, a transição de um a forma para outra, de uma ordem
de relações para outra. (MARX, 1980. p. 14)

O que Marx sublinha é que seu crítico entendeu que sua concepção materialista
da realidade e o método dialético histórico de desvelar o que está subjacente aos fatos e
fenômenos não se esgotam na compreensão. Seu método tem implicada a determinação
das condições da transformação prática da realidade. Vale dizer, no atual momento
histórico, de uma práxis que conduza à superação das relações sociais capitalistas.
Aqui reside um ponto central do legado de Marx para o projeto de pedagogia
socialista em relação à escola, o qual estabelece um confronto com as teses da
neutralidade do conhecimento — foco central do Movimento da Escola sem Partido3 —

3
. Sobre a gênese e as teses ultraconservadoras deste organismo e não simples movimento ver Frigotto,
2017 (Org.).

13
quanto ao dogmatismo e à doutrinação. Em Marx, a escola tem a função de desenvolver
a cientificidade do conhecimento na relação teoria e prática.
O caráter político e, portanto, nunca neutro da escola no interior das relações
sociais capitalistas situa-se nos processos pedagógicos que dão as bases científicas para
que o estudante possa desvelar o que é subjacente aos fenômenos na perspectiva da ação
prática para a sua transformação4. Por outra parte, em Marx, a atividade formativa
escolar, também, não pode ser doutrinária ou dogmática. Por isso, a escola não pode
estar sob a orientação nem do Estado nem da Igreja.

Absolutamente condenável é uma “educação popular sob a incumbência do


Estado”. Uma coisa é estabelecer, por uma lei geral, os recursos das escolas
púbicas, a qualificação dos professores, os currículos etc. (...), outra, muito
diferente é conferir ao estado o papel de educador do povo. O governo e a
igreja devem antes ser excluídos de qualquer influência sobre a escola [aspas
do autor]. (MARX, 2012, p. 46)

Na sua especificidade, a escola tem como tarefa desenvolver todas as dimensões


do ser humano: intelectuais, físicas e as bases científicas que estão presentes nos
processos produtivos de um determinado tempo histórico.
Assim, a pedagogia socialista a ser incorporada na escola é sinalizada por Marx
na resolução que apresentou e foi aprovada no Congresso da I Internacional, em 1866.
Por educação entendemos três coisas: Primeiramente: Educação mental.
Segundo: Educação física, tal como é dada em escolas de ginástica e pelo
exercício militar. Terceiro: Instrução tecnológica, que transmite os princípios
gerais de todos os processos de produção e, simultaneamente, inicia a criança
e o jovem no uso prático e manejo dos instrumentos elementares de todos os
ofícios. (...) A combinação de trabalho produtivo pago, educação mental,
exercício físico e instrução politécnica, elevará a classe operária bastante
acima do nível das classes superior e média. É evidente que o emprego de
todas as pessoas dos 9 aos 17 anos (inclusive) em trabalho noturno e em
todos os ofícios nocivos à saúde tem de ser estritamente proibido por lei.
(MARX 1866) 5

A pedagogia socialista, todavia, não se reduz a preparar a criança e o jovem para


a elevação da produção social. Marx vai salientar em O capital que a tríade acima
enunciada já engendra no sistema fabril o germe do desenvolvimento omnilateral dos
seres humanos.
Do sistema fabril, como se pode ver detalhadamente em Robert Owen, brotou
o germe da educação do futuro, que há de conjugar, para todas as crianças
acima de certa idade, trabalho produtivo com ensino e ginástica, não só como
método de elevar a produção social, mas como o único método de produzir

4
. Dermeval Saviani explicita, de forma densa, a partir de Marx e Gramsci, as relações entre escola e
política (SAVIANI, 1980).
5
Note-se que Marx, no mesmo texto, utiliza os termos de educação tecnológica e politécnica como
sinônimos, ambos entendendo as bases científicas que facultam os princípios gerais de todos os
processos de produção.

14
seres humanos desenvolvidos em todas as dimensões. (MARX, 1984, v.I,
tomo 2, p. 87)

A educação omnilateral — a que produz seres humanos desenvolvidos em todas


as dimensões e não seres limitados, fragmentados, idiotizados e unidimensionais para
servirem às demandas do capital — e a educação tecnológica e/ou politécnica — a que
transmite os princípios gerais de todos os processos de produção e, simultaneamente,
inicia a criança e o jovem no uso prático e manejo dos instrumentos elementares de
todos os ofícios — constituem-se na tarefa teórica e prática do projeto de pedagogia
socialista desde agora.
Mas o desenvolvimento dessa tarefa tem como exigência concomitante e
permanente a luta de classes em todos os espaços da sociedade na construção da
passagem do modo de produção capitalista, cada vez mais destrutivo dos direitos
elementares à vida (comer, vestir, beber e ter um teto) e da natureza da qual somos
parte. Um ponto nodal histórico dessa luta é a redução da jornada de trabalho e o
combate a todas as formas de espoliação e exploração da classe trabalhadora do campo
e da cidade. Um aspecto que assume atualmente no Brasil uma luta de vida ou morte.
A redução da jornada de trabalho incide na possibilidade do desenvolvimento
das dimensões especificamente humanas, pois o tempo de trabalho exigido
historicamente para suprir as necessidades básicas situa-se na esfera da reprodução dos
demais seres da natureza. O mundo propriamente humano amplia-se no tempo livre.
Este não entendido como descanso de fim de semana nem férias, mas uma conquista
histórica para todos os seres humanos. Uma luta que apenas cessará, como indicou
Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, “com a superação positiva da propriedade
privada, tal como a apropriação da vida humana, portanto, pela eliminação positiva de
toda a alienação” (MARX, 2001, p. 139).
É no tempo efetivamente livre que o ser humano pode dedicar-se a dilatar suas
potencialidades de criação e educar os sentidos humanos para a fruição do belo, da arte
e do gosto.

Somente pela riqueza objetivamente explicitada da essência humana pode ser


em parte aperfeiçoada em parte criada a toques da sensibilidade subjetiva
humana. Isto é, um ouvido musical, um olho capaz de colher a beleza; em
suma, pela primeira vez capacidade para um desfrute humano, sentidos que
se afirmam como faculdades do homem. (Ibid. p. 110-11)

Também somente sob o reino do tempo efetivamente livre, mundo de ampliação


da liberdade, o ato cotidiano do comer pode ganhar dimensões que vão além de

15
satisfazer a fome. “Para o homem que morre sob a fome, não existe a forma humana do
alimento, mas só o seu caráter abstrato de alimento” (Ibid. p. 144).
Os pedagogos russos, especialmente na primeira década da Revolução Russa de
1917, sob a ontologia e epistemologia materialista, avançaram numa forma escolar
pautada no desenvolvimento de todas as dimensões do ser humano e nos legaram pistas
concretas para serem desenvolvidas dentro de nossa particularidade histórica..

A título de considerações finais

Do que sucintamente destacamos do legado de Marx como fundamentos para um


projeto de pedagogia socialista, podem-se sublinhar alguns pontos que nos parecem
centrais como tarefas teóricas e de ação prática nos espaços onde atuamos para dilatar a
pedagogia socialista na construção de seres humanos uma sociedade sem classes sociais.
Um primeiro aspecto é o entendimento de que o projeto da pedagogia socialista
se desenvolve no seio das contradições e da luta de classes historicamente dadas.
Portanto, no plano da ontologia materialista não se trata de um projeto do dever ser, mas
da ação teórica e prática na transformação das relações sociais capitalistas. Neste
particular, a ciência, com base no materialismo histórico dialético, tem a ver com a
compreensão de como se produz o ser social e das condições teóricas exigidas para a
transformação prática.
Este é o sentido do que grifamos acima quando Marx afirma: “Se o homem é
formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente.”
Isto significa que não há separação entre objetividade e subjetividade. Do ponto de vista
materialista, a subjetividade resulta do que apreendemos de algo objetivo. Esta
subjetivação individual ou coletiva torna-se ela mesma dimensão da materialidade. A
ciência burguesa, por condição de classe de quem a produz, é incapaz de mostrar que a
violência, por exemplo, não é uma questão individual, mas produzida socialmente.
Outro aspecto central para o projeto da pedagogia socialista é a união entre
educação e o trabalho socialmente produtivo. Esta união decorre do fato de que o
trabalho como valor de uso é princípio ontológico educativo pela razão de que, como
seres da natureza, todos nós precisamos produzir as condições de nossa reprodução
material e isto se efetiva pela atividade vital do trabalho. Incorporar este princípio desde
a infância é desenvolver em cada indivíduo a certeza de que esta é uma tarefa de todos
na formação de seres humanos que não condenam outros seres humanos a trabalharem

16
para eles. Daí por que o sentido ontológico do princípio educativo do trabalho não pode
ser confundido com as pedagogias ativistas ou pragmáticas do aprender fazendo.
Um aspecto que assume centralidade e urgência nos movimentos sociais do
campo e da cidade e do conjunto da classe trabalhadora é que da ontologia materialista
deriva o projeto da pedagogia socialista que não separa a ciência dos homens da ciência
da natureza. Trata-se de dimensões diversas, mas não separáveis. Neste particular,
ganha importância basilar o desenvolvimento da ciência da agroecologia e sua aplicação
prática em larga escala. Nela reside a possibilidade da soberania alimentar em
contraponto à agricultura centrada na produção de alimentos altamente contaminados
por venenos cada vez mais potentes e destruidores da saúde e da vida
Por fim, cabe-nos indagar em que espaços concretos o projeto da pedagogia
socialista se mostra como germe em nossa sociedade e quais os embates que o tempo
presente nos demanda para seu desenvolvimento. Na construção, ao longo de nossa
história, certamente vislumbramos isso no pensamento autonomista e dos socialistas nas
primeiras décadas do século XX. Também, nos seus acertos e equívocos, encontramos
este germe entre os comunistas, nas lutas camponesas e de movimentos urbanos.
O livro Pedagogia do oprimido, de autoria de Paulo Freire, é síntese de lutas na
sociedade e na educação popular. A partir dos estudos mais sistemáticos das obras de
Marx, Engels, Gramsci e Lenin, Pistrak e Makarenko e, mais recentemente, na de
Shulgin e Krupskaya encontramos, tanto na pedagogia histórico-crítica quanto nas
experiências teórico-práticas do legado dos pedagogos russos, o avanço da pedagogia
socialista no âmbito dos conteúdos e da forma de organização da escola.
No presente, quem mais avançou no plano teórico e na ação prática, num terreno
adverso pelas condições materiais e pela criminalização e perseguição dos aparelhos
repressivos do Estado, foram escolas que estão sob a orientação do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra. A dilatação do projeto de pedagogia socialista implica, antes
de tudo, pedagogia da luta de classes no campo e na cidade. O desafio é, pois, avançar
na radicalidade teórica da ontologia e epistemologia materialista para aguçarmos o olhar
e perceber em que momento se expressa esta luta e as formas concretas de sua
ampliação. Trata-se de dilatar entre nós o que levou Antônio Cândido a concluir que, de
fato, no plano das conquistas na ampliação dos direitos e desenvolvimento das
potencialidades humanas, o socialismo é a “doutrina triunfante”.

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