Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
ISBN 978-85-99896-35-8
DD B869.2
Sublicenciado para:
Editora: MEDIAfashion
Coordenação e organização: Folha da Manhã S/A (Diretoria de Circulação)
Supervisão: Henrique Cruz
Concepção do projeto: Mauro Palermo
Produção editorial: Daniele Cajueiro e Gustavo Penha
Revisão: Fernanda Machtyngier e Anna Cada Ferreira
Estabelecimento de texto: Gênese Andrade
Projeto gráfico da capa: João Baptista da Costa Aguiar
Projeto gráfico do miolo: Leandro B. Liporage
Diagramação: Leandro B. Liporage e Filigrana
Gráfica: Prol Editora Gráfica Ltda.
Foto da capa: e Estúdio Costa Aguiar Desenho Gráfico
MEDIAfashion 2008
Todos os direitos reservados.
A Álvaro Moreyra
e
Eugênia Álvaro Moreyra
na dura criação
de um enjeitado - o teatro
nacional,
O.A.
ABELARDO I
ABELARDO II
HELOÍSA DE LESBOS
JOANA conhecida por JOÃo DOS DIVÃS
TOTÓ FRUTA-DO-CONDE
CORONEL BELARMINO
DONA CESARINA
DONA POLOQUINHA
PERDIGOTO
O AMERICANO
O CLIENTE
O INTELECTUAL PINOTE
A SECRETÁRIA
DEVEDORES, DEVEDORAS
O PONTO
1° ATO
ABELARDOII - Já sei. Está nos IMPONTUAIS. (Entrega o ABELARDO I - Apesar da sua impontualidade, examinare-
dossiê reclamado e sai) mos as suas propostas ...
ABELARDO I (Examina) - Veja! Isto não é comercial, seu O CLIENTE - Mas eu fui pontual dois anos e meio. Paguei
Pitanga! O senhor fez o primeiro empréstimo enquanto pude! A minha dívida era de um con-
em fins de 29. Liquidou em maio de 1931. to de réis. Só de juros eu lhe trouxe aqui nes-
Fez outro em junho de 31, estamos em 1933. ta sala mais de dois contos e quinhentos. E até
Reformou sempre. Há dois meses suspendeu agora não me utilizei da lei contra a usura... ,
o serviço de juros ... Não é comercial... ABELARDOI (Interrompendo-o, brutal) - Ah! meu amigo.
O CLIENTE - Exatamente. Procurei o senhor a segunda Utilize-se dessa coisa imoral e iníqua. Se fala
vez por causa da demora de pagamento na de lei de usura, estamos com as negociações
Estrada, com a Revolução de 30. A primeira rotas ... Saia daqui!
foi para o parto. A criança já tinha dois anos. O CLIENTE - Ora, seu Abelardo. O senhor me conhece.
E a Revolução em 30 ... Foi um mau sucesso Eu sou incapaz!
que complicou tudo... _ ABELARDOI - Não me fale nessa monstruosidade porque
ABELARDOI - O senhor sabe, o sistema da casa é refor- eu o mando executar hoje ~esmo. Tomo-lhe
mar. Mas não podemos trabalhar com quem até a roupa, ouviu? A camisa do corpo.
não paga juros... Vivemos disso. O senhor O CLIENTE - Eu não vou me aproveitar, seu Abelardo.
cometeu a maior falta contra a segurança do Quero lhe pagar. Mas quero também lhe
nosso negócio e o sistema da casa ... propor um acordo. A minha situação é tris-
O CLIENTE - Há dois meses somente que não posso pa- te ... Não tenho culpa de ter sido dispensado.
gar juros. Empreguei-me outra vez. Despediram-me
ABELARDOI - Dois meses. O senhor acha que é pouco? p'or economia. Não ponho minha filhinha na
O CLIENTE - Por isso mesmo é que eu quero liquidar. escola porque não posso comprar sapatos para
Entrar num acordo. A fim de não ser penho- ela. Não hei de morrer de fome também. Às
rado. Que diabo! O senhor tem auxiliado tan- vezes não temos o que comer em casa. Minha
ta gente. É o amigo, de todo mundo ... Porque mulher agora caiu doente. No entanto, sou
comigo não há de fazer um acordo? um homem habilitado. Tenho procurado inu-
ABELARDOI - Aqui não há acordo, meu amigo. Há paga- tilmente emprego por toda a parte. Só tenho
mento! recebido nãos enormes. Do tamanho do céu!
O CLIENTE - Mas eu me acho numa situação triste. Não Agora, aprendi escrituração, estou fazendo
posso pagar tudo, seu Abelardo. Talvez consi- umas escritas. Uns biscates. Hei de arribar ...
ga um adiantamento para liquidar ... Quero ver se adiantam para lhe pagar.
16 OSWALD
DEANDRADE OREIDAVELA 17
ABELARDO I - Mas, enfim, o que é que o senhor me ABELARDO I - Mas esta cena basta para nos identificar pe-
propõe? rante o público. l>Jão preciso mais falar com
O CLIENTE - Uma pequena redução no capital. nenhum dos meus clientes. São todos iguais.
ABELARDO I - No capital! O senhor está maluco! Reduzir Sobretudo não me traga pais que não podem
o capital? Nunca! comprar sapatos para os filhos ...
O CLIENTE - Mas eu já paguei mais do dobro do que le- ABELARDO II - Este está se queixando de barriga cheia.
vei daqui ... Não tem prole numerosa. Só uma filha ... Fa-
ABELARDO I - Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui eu mília pequenal
que fui procurá-lo para assinar este papa- ABELARDO I - Não confunda, seu Abelardo! Família é uma
gaio? Foi o meu automóvel que parou dian- coisa distinta. Prole é de proletário. A família
. /
te do seu casebre para pedir que aceitasse o requer a propriedade e vice-versa. Quem não
meu dinheiro? Com que direito o senhor me tem propriedades deve ter prole. Para traba-
propõe uma redução no capital que eu lhe lhar, os filhos são a fortuna do pobre .
emprestei? ABELARDO II - Mas hoje ninguém mais vai nisso .
O CLIENTE (Desnorteado) - Eu já paguei duas :rezes ... ABELARDOI - É a desordem social, o desemprego, a Rússia!
ABELARDO I - Swna-se daqui! (Levanta-se) Saia ou cha- Esse homem possuía uma casinha. Tinha o
mo a polícia. É só dar o sinal de crime neste direito de ter uma família. Perdeu a casa.
aparelho. A polícia ainda existe ... Cavasse prole! Seu Abelardo, a família e a pro-
O CLIENTE - Para defender os capitalistas! E os seus priedade são duas garotas q~e freqüentam a
crimes! mesma garçonniêre, a mesma farra ... quando
ABELARDO I - Para defender o meu dinheiro. Será exe- o pão sobra ... Mas quando o pão falta, uma sai
cutado hoje mesmo. (Toca a campainha) pela porta e a outra voa pela janela ...
Abelardo! Dê ordens para executá-lol Rua! ABELARDO II - A família é o ideal do homem! A proprie-
Vamos. Fuzile-o. É o sistema da casa. dade também. E dona Heloísa é um anjo!
O CLIENTE - Eu sou um covarde! (Vai chorando) O se- ABELARDO I - Você sabe que não há outro gênero no mer-
nhor abusa de-um fraco, de um covarde! cado. Eu não ia me casar com a irmã mais moça
que chamam por aí de garota da crise e de João
Menos o Cliente dos Divãs. Nem com o irmão menor que todo
mundo conhece por Totó Fruta-da-Conde!
ABELARDO I - Não faça entrar mais ninguém hoje, Abelardo. ABELARDO II - Um degenerado ...
ABELARDO II - A jaula está cheia ... seu Abelardo! ABELARDOI - Coisas que se compreendem e relevam nu-
ma velha família! Heloísa, apesar dos vícios
J
OSWALD
DEANDRADE OREIDAVELA 19
18
que lhe apontam ... Você sabe, toda a gente Fonseca. Chapa única ... Reforma-se? Não paga
árvore bandeirante. Uma das famílias funda- de Menezes Rocha ... dois contos ...
do dinheiro, comprar esses restos de 'brasão ABELARDO II - Abraão Calimério ... dez contos.
ainda é negócio, faz vista num país medieval ABELARDO I - Pro protesto!
como o nosso! O senhor sabe que São Paulo ABELARDO II - Carlos Peres ... Esta já foi pro pau ontem ...
ABELARDO II - Se é! A burguesia só produziu um teatro de pressa. Antes que ele morra e a venda feche ...
classe. A apresentação da classe. Hoje evoluí- ABELARDO II - Está certo. Esta é... daquele funcionário
mos. Chegamos à espinafração. público, o Pires Limpo ... Ele está limpo e de
pires! Mandou a filha aqui.
ABELARDO I - Bem. Veja o bordereau ... O Banco devolveu
ABELARDO I - Bonita?
muita coisa?
ABELARDO II - Xu! Um colosso! Estamos no vinagre, seu ABELARDO II - Pancadão! Dezoito anos ... Cada dente des-
Abelardo! te tamanho.
Dr. Carlos Magalhães de Moraes Benevides ABELARDOII - Eu vi. Jeitosa ... Mas muito faladeira. Queria
saber onde é que o senhor morava, falou na
20 OSWALD DEA DRADE O REI DA VELA 21
compra da ilha no Rio, onde o senhor vai se ABELARDO II - Só se pode prosperar à custa de muita des-
casar. Que ia levar de avião uma porção de graça. Mas de muita_mesmo ...
gente de São Paulo. ABELARDO I - Se não for assim, como garantirei os meus
ABELARDO I (Batendo o pé numa grande caixa de papelão) depositantes? Se- não tiro do outro lado?
- Que é isto aqui? Ofereço juros que os bancos não pagam. Os
ABELARDO II - Fôrmas de chapéu. (Mostra o castiçal de la- juros que só alguns pagavam nos bons tem-
tão) A penhora de Mme. Lanale. Só tinha isso pos. 4 e até 5 por cento ao ano!
e aquele candelabro. Quase que não dá para ABELARDO 11 - Também o dinheiro corre para aqui!. .. Lá
pagar os tiras que ajudaram. embaixo a seção bancária está assim!
ABELARDO I - E os móveis ... ABELARDOI - Ofereço boas garantias. E também exijo
ABELARDO II - Ficaram despedaçados na rua. Eram duas boas garantias, quando empresto ...
peças velhas, de ferro. Foi um escândalo. O ABELARDO II - A 5 e 10 por cento ao mês ... Por filantropia!
estado-maior teve que agir duro. O povo que- (O telefone) É seu irmão.
ria se opor. Juntou gente ... ABELARDO I - Meu advogado.
ABELARDO I - Que estado-maior? ABELARDO II (No fone) - Sim senhor. Está. (Para Abelardo)
ABELARDO II - Os oficiais de justiça ... Diz que entrou no Fórum com três executi-
ABELARDO I - Mas o exemplo ficou! vos. Está chamando o senhor .
ABELARDO II - E frutificará. ABELARDOI (Ao fone) - Como? Sou eu Abelardo. O
ABELARDO I - A rua inteira sabe que penhorei porque Teodoro? Quer se prevalecer da lei de usura!
não me pagaram 200$000. A cidade inteira Grande besta! E pede reforma! Linche esse ca-
sabe. Talvez gastasse mais nisso ... Que im- marada. Ponha flite nele e acenda um fósforo!
porta? Dura lex, aprendi isso na Faculdade de (Bate o fone) Pro pau com esse bandido! Lei
Direito! contra a usura! Miseráveis! Bolchevistas! Por
ABELARDO II - Queria que o senhor visse a choradeira! A isso é que o país se arruina. E há um miserável
viúva berrava na janela: - Gli orfani! Gli or- que quer se aproveitar dessa iniqüidade.
fani! Non abiamo piu lavoro! ABELARDO 11 - Leis sociais ...
ABELARDO I - O quê? ABELARDO I - Súcia de desonestos. Intervir nos juros.
ABELARDO 11 - Ela queria dizer que os órfãos não tinham Cercear o sagrado direito de emprestar o meu
mais o que comer. Tiramos os instrumentos dinheiro à taxa que eu quiser! E que todos
de trabalho. aceitam. Mais! Que vêm implorar aqui! Sou
ABELARDO I - Manhosa ... eu que vou buscá-los para assinar papagaios?
22 OSWALD DEANDRADE
OREI DA VELA 23
Ou são eles que todos os dias enchem a minha Abelardo II [á-los recuar das grades, brandindo o chicote e ameaçando
sala de espera? Abra a jaula! com o revólver
Abelardo II obedece de chicote em punho. A porta de ferro corre pesa- UMA VOZ DE MULHER - Ai Jesus! Não temos o que comer! Eu não
damente. saio daqui! Espero até à noite! Estou arrui-
nada!
Mais clientes As VOZESIRRITADAS (Abelardo II procura fechar a porta de ferro) -
Canalha! Sujo! Tirou o nosso sangue! Ladrão!
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades. É uma coleção de Não saímos daqui!
crise, variada, expectante. Homens e mulheres mantêm-se quietos ante UM ITALIA O - Pamarona! Momanjo isto capitalista!
o enorme chicote de Abelardo Il. UMA FRANCESA - Sale cochon! Si cest possible! Con!
UM RUSSOBRANCO - Svoloch!
ABELARDOI - Rua! Nem mais um negócio! Vou fechar UM TURCO - Ióge paga batéca! Non izacuta Ióge ...
esta bagunça. As VOZES (Em coro) - Assassino!
VOZES (Da jaula) - Pelo amor de Deus! Por carida- ABELARDOI - Feche! Atire! >
Menos o Cliente
As VOZES - Blefaremos o governo! Me salve! Me salve!
ABELARDOI - Rua! Canalhas! Lá fora sei como vocês me Telefone
tratam!
24 OSWALD DE ANDRADE
OREI DA VELA 25
ABELARDO II (Atendendo) - Alô! É o padre! Aquele da en- ABELARDO I - Onde a gente pode ter idéias, mas não é de
ABELARDO II - Não marquei nada. ABELARDO I - Se for preciso, o padre leva a sua alma tam-
ABELARDO I (Toma o fone) - Bom dia, reverendo! Sou eu bém ... Está certo ... Vamos examinar aquelas
mesmo. Abelardo ... Ah! Com muitíssima hon- propostas. (Senta-se e lê) Carmo Belatine ...
ra ... Esperarei vossa reverendíssima. Pode ser ABELARDOII - É aquele da fábrica de salsichas ... O frigorí-
às quatro horas? Então ... sem dúvida ... Beijo- fico ... Que comprou o terreno da Lapa.
fone) Este padre é engraçado ... Não me larga ... ABELAR,DOII - Trinta e nove anos.
Eu não sou eleitor ... Ele não quer dinheiro ... ABELARDO I - Nível de vida?
ABELARDO II - Quer a sua alma ... ABELARDO Il - Nível baixo ainda. Faz a barba na terrina
ABELARDO I - Evidentemente é um caso raro. Um ho- da sopa, com sabão de cozinha e gilete de se-
mem preocupar-se comigo sem ser logo à vis- gunda mão ...
ABELARDO II - Ele prefere tratar desde já do seu testa- ABELARDO II - Ainda atrapalha.
ABELARDO Il - É isso mesmo que ele quer. A viúva cuida- ABELARDOI - Tem filhos grandes?
rá bastante de sua alma que terá ido ... para o ABELARDO Il - Pequenos ainda.
ABELARDO I - Diga-me uma coisa, seu Abelardo, você é ABELARDOII - Sim. Oiseaux, Sion, São Bento.
ABELARDO II - Sou o primeiro socialista que aparece no os pequenos estudarem. Quando as filhas co-
ABELARDO I - E o que é que você quer? o pequeno tiver barata, e Madame souber se
ABELARDO I - Pelo que vejo o socialismo nos países atra- costureira de Madame. O velho aí terá mu-
dado de nível. Possuirá automóvel, casa no
sados começa logo assim... Entrando num
acordo com a propriedade ... Jardim América. Cessaremos pouco a pouco
ABELARDO II - De fato ... Estamos num país semicolonial... todo o crédito. Nem mais um papagaio! Ele
virá aqui caucionar os títulos dos comercian-
26 OSWALD
DEANDRADE OREIDA VELA 27
tes a quem fornece. Executarei tudo um dia. tro) Dona Aída ... Aída loira ... Aída de Wagner.
Levarei a fábrica, os capitais imobilizados eo Como é? Não precisa de um Radamés?
ferro- velho ,à praça. A SECRETÁRIA - Preciso que o senhor melhore o meu or-
ABELARDOII - E a mulher dirá que foram os operários que denado. O custo da vida aumentou no Brasil
os arruinaram. de 30%.
ABELARDOI - E foram de fato. Eu conto como fator es- ABELARDOI - Tenho todo interesse pelo custo de sua
sencial dessas coisas as exigências atuais do vida ... Mas a senhora sabe ... As vidas hoje
operariado. O salário mínimo. As férias. Que estão difíceis para todos ... Não é mais como
diabo. As tais leis sociais não hão de ser só antigamente ... Que tranças! ... Eu acabo me
contra o capital... enforcando nessas tranças! ... Deixa? (Procura
ABELARDOII - Não são não. Descanse. Eu entendo de so- tocar-lhe os cabelos)
cialismo. Olhe. A lei de férias só deu um re- A SECRETÁRIA - Tenha modos, seu Abelardo!
sultado. Não há mais salário de semana ou de ABELARDOI - Deixa? Malvada!
mês. É por dia de trabalho, ou por contrato. A SECRETÁRIA - Nunca. Eu sou romântica. Não vendo o
Somando bem, os domingos, feriados e dias meu amor!
de doença eram mais que as ferias de hoje. ABELARDOI - Vamos fazer um piquenique ... (Aponta o
ABELARDO I - Bem. Guarde esta ficha nos Firmes. Feche divã sob a Gioconda) ... debaixo daquela man-
o negócio. A mesma taxa. O sistema da casa. gueira?
Chame a Secretária n= 3. Quero ditar uma A SECRETÁRIA - Eu sou noiva.
carta. ABELARDOI - Eu também.
A SECRETÁRIA - Mas eu sou fiel...
Abelardo II sai ABELARDOI - Bem! Depois não venha fazer vales aqui,
hein. Eu também sei ser fiel ao sistema da
Abelardo I e a Secretária n» 3 casa. Vá lá. Redija! Não. Tome nota. Olhe. É
wna carta confidencial. A um tal Cristiano
A SECRETÁRIA (É uma moça, longa, de óculos e tranças enor- de Bensaúde. Industrial no Rio. Metido a es-
mes e loiras. Veste-se pudicamente. Traz lápis e critor. Redija sem erros de português. O ho-
bloclc-notes na mão.) - É para bater à máqui- mem foi crítico literário e avançado, quando
na, seu Abelardo? era pronto ... Ele me escreveu propondo frente
ABELARDOI ,- Não. Para estenografar. Nem isso. A senho- única contra os operários. Responda em tese
ra sabe redigir. Melhor do que eu. Faça uma (A secretária toma nota), insinue que é me-
carta. Sente-se aí. (Sentam-se perto um do ou- lhor ele ser um puro policial. Manter vigilân-
28 OSWALD
DEANDRADE OREIDAVELA 29
cia rigorosa nas fábricas. Evitar a propaganda moças, turcos, italianos, russos de prestação,
comunista. Denunciar e perseguir os agitado- uma fauna de hospício ...
res. Prender. Esse negócio de escrever livros ABELARDO I - Ingratos! Matei-lhes a fome! Dei-lhes ilu-
de sociologia com anjos é contraproducente. sões!
Ninguém mais crê. Fica ridículo para nós, in- HELOíSA - E agora os tratas a~sim!
dustriais avançados. Diante dos americanos e ABELARDOI - Para te dar uma ilha. Uma ilha para você só!
dos ingleses. Olhe, diga isto. Que a burguesia
morre sem Deus. Recusa a extrema-unção. Mais Abelardo II
Cite o exemplo do próprio Vaticano. Coisas
concretas. A adesão política da igreja contra ABELARDO II (Entrando) - Há um aí que não quer sair.
um bilhão e setecentos milhões de liras, o en- Está resistindo. É cliente novo.
sino religioso e a lei contra o divórcio. Toma ABELARDOI - Quem é?
lá, dá cá. Não vê que um alpinista como Pio ABELARDOII - Um intelectual. Diz que não sai sem vê-
XI põe anjos em negócios. Vá redigir e traga 10. Quer fazer a sua biografia, ilustrada. Com
logo. Para seguir hoje ... Ver se esse homem fotografias. Diz que dará um bom livro.
deixa de atrapalhar. Um sujeito feudal. Vítima Grosso!
do seu próprio sistema. Paga um salário me- ABELARDOI - Mande entrar. Quero vê-lo,
dieval, 20$000 por quinzena.
A SECRETÁRIA (Voltando-se da porta) - Ga-ra-nhão! (Sai es- Mais o Intelectual Pinote
barrando em Heloísa de Lesbos que, vestida de
homem, entra como a manhã lá de fora) PINOTE (Entra de chapéu de poeta na mão. Uma gra-
vata lirica: Sorrindo. Mesuras. Traz uma faca
Menos a Secretária, mais Heloísa enorme de madeira como bengala.) - Bom
, dia, mestre.
ABELARDOI (Rindo) - Você! Meu amor! Na hora do ex- HELOÍSA (Dá um grito lancinante) - Ai! A faca!
pediente! ABELARDO 1 - Desarme esse homem! Ora essa! (Abelardo
HELOÍSA - O nosso casamento é um negócio ... II atira-se sobre o Intelectual e arranca-lhe a
ABELARDO I - Por isso vieste de Marlene? faca simbólica) Deixar entrar gente com ar-
HELOíSA - Mas não há de ser um negócio como esses mas aqui!
que você faz com esse bando de desespera- PINOTE (Escusando-se humildemente) - É inofensi-
dos que saiu daí vociferando ... Estão ain- .va ... de pau!
da muitos lá embaixo. Há mulheres idosas,
30 OSWALD DE ANDRADE OREIDAVELA 31 '
ABELARDO I - Confesse que o senhor planejou um aten- do, de faca também. (Sorriso dos dois) Mas
tado! Confesse! afinal, qual é o gênero literário que cultiva,
PINOTE - Absolutamente! Por quem o senhor está meu amigo?
me tomando? É uma faca profissional, ino- PINOTE - Os grandes homens! Pretendo fazer como
fensiva, não mata ... Ludwig. Escrever as grandes vidas! Não há
ABELARDO II (Examinando) - Está cheia de sangue ... san- mais nobre missão sobre o planeta! Os heróis
gue coagulado ... da época.
PINO TE - Umas facadinhas ... para comer ... (A um ABELARDO I - Pode ser também extremamente perigoso.
gesto de Abelardo I, senta-se. Abelardo 11 per- Se nas suas biografias exaltar heróis populares
manece ao fundo, segurando com as duas mãos e inimigos da sociedade. Imagine se o senhor
a faca em horizontal, como um servo antigo.) escreve sobre a revolta dos marinheiros pon-
A crise é que obriga ... Mas não sou nenhum do em relevo o João Cândido ... ou algum co-
gângster, não. Eu sou biógrafo. Vivo da minha munista morto num comício!
pena. Não tenho mais idade para cultivar o PINOTE - Não há perigo. A polícia me perseguiria.
romance, a poesia ... O teatro nacional virou ABELARDO I - É então um intelectual policiado ...
teatro de tese. E eu confesso a minha ignorân- PINOTE - Faço questão de manter uma atitude mo-
cia, não entendo de política. Nem quero en- derada e distinta!
tender ... ABELARDO I - Já publicou alguma coisa?
ABELARDO I - É um revoltado? PINOTE - Já. Um livrinho! A vida de Estácio de Sá.
PINOTE - Absolutamente não! Fui no colégio. Hoje Não saiu muito bem. Mas estou fazendo ou-
sou quase um conservador! O que me falta é tro ... Vai sair melhor. ..
convicção. ABELARDO I - A vida de Carlos Magno? ..
ABELARDO I - Tem veleidades sociais... quero dizer, bol- PINOTE - Não. De Pascoal Carlos Magno. Uma coisa
chevistas? .. inofensiva ...
PINOTE - Não senhor! Olhe, tenho até nojo de gente HELOíSA - Então os seus livros podem ser lidos por
baixa... gente de tr~balho ... não vai comigo! moças ...
ABELARDO I - Muito bem! PINOTE - Decerto! Eu quero ser um Delhi social!
PINOTE - Gente que cheira mal... Entenderam?
HELoíSA - Ninguém dá sabão a eles para se lavarem. ABELARDO I - Perfeitamente! Uma literatura bestifican-
ABELARDO II - Nem pão, quanto mais sabonete ... te. Iludindo as coitadinhas sobre a vida. Trans-
ABELARDO I (Tranqüilizando Pinote que se voltou) - Não ferindo as soluções da existência para as solu-
se incomode. Ele é socialista. Mas modera- ções "no livro" ou "no teatro" Freud ...
32 OSWALD DE ANDRADE
OREIDAVELA 33
PINOTE - Oh! Freud é subversivo ... ABELARDOI - Mas qual é a sua cor política nestes agita-
ABELARDO I - Um bocadinho. Mas olhe que, se não fos- dos dias de debate social?
se ele, nós estávamos muito mais desmasca- PI OTE - Eu tenho uma posição intermediária, neu-
rados. Ele ignora a luta de classes! Ou finge tra ... Não me meto.
ignorar. É uma grande coisa! ABELARDOI - Neutra! É incompreensível! É inadmissí-
HELoíSA - Distrai muito, quando a gente é emancipa- vel! Ninguém é neutro no mundo atual. Ou se
da. (Tira um cigarro efuma) serve os de baixo ...
PINOTE - Eu prefiro as vidas! PINOTE - Mas com que roupa?
ABELARDOI - Não pratica a literatura de ficção? .. ABELARDOI -+- Sirva então francamente os de cima. Mas
PINOTE - No Brasil isso não dá nada! não é só com biografias neutras ... Precisamos
ABELARDOI - Sim, a de fricção é que rende. É preciso de lacaios ...
ser assim, meu amigo. Imagine se vocês que PINOTE - É! Mas dizem por aí que a Revolução
escrevem fossem independentes! Seria o dilú- Social est' a. Em todo o mundo. Se a
vio! A subversão total. O dinheiro só é útil nas coisa virar?
mãos dos que não têm talento. Vocês escri- ABELARDOI - Será fuzilado com todas as honras. É prefe-
tores, artistas, precisam ser mantidos pela so- rível morrer como inimigo do que como ade-
ciedade na mais dura e permanente miséria! sista.
Para servirem como bons lacaios, obedientes PINOTE - E a minha família ... As três crianças?
e prestimosos. É a vossa função social! ABELARDOI (Levanta-se furioso) - Saia já daqui! Vilão!
HELoíSA - Faz versos? Oportunista! Não leva nem dez mil-réis, creia!
PINOTE - Sendo preciso ... Quadrinhas ... Acrósticos ... A minha classe precisa de lacaios. A burgue-
Sonetos ... Reclames. sia exige definições! Lacaios, sim! Que usem
. HELoíSA - Futuristas? fardamento. Rua!
PINOTE - Não senhora! Eu já fui futurista. Cheguei
a acreditar na independência ... Mas foi uma Abelardo II entrega a faca ao Intelectual que sai penosamente. Retira-se
tragédia! Começaram a me tratar de maluco. depois.
A me olhar de esguelha. A não me receber
mais. As crianças choravam em casa. Tenho Menos o Intelectual Pinote e Abelardo II
três filhos. No jornal também não pagavam,
devido à crise. Precisei viver de bicos. Ah! HELOÍSA - Coitado!
Reneguei tudo. Arranjei aquele instrumento ABELARDOI - Voltará! De camisa amarela, azul ou verde.
(Mostra a faca) e fiquei passadista. E de alabard~. E ficará montando guarda à mi-
34 OSWALD DEANDRADE OREI DA VELA 35
nha porta! E me defenderá com a própria vida, do seu cinismo e da sua indiferença diante dos
da maré vermelha que ameaça subir, tomar sofrimentos humanos ...
. conta do mundo! O intelectual deve ser tratado ABELARDO I - Conheço uma só coisa, a realidade. E por
assim. As crianças que choram em casa, as mu- isso subjugo você que é sonho puro ...
lheres lamentosas, fracas, famintas são a nossa HELOÍSA (Mostrando a Gioconda) - Por que você tem
arma! Só com a. miséria eles passarão a nosso esse quadro aí...
inteiro e dedicado serviço! E teremos louvores, ABELARDO I - A Gioconda ... Um naco de beleza. O pri-
palmas e garantias. Eles defenderão as minhas meiro sorriso burguês ...
posições e a tua ilha, meu amor! HELOíSA - Você é realista. E por isso enriqueceu ma-
HELOíSA - Ora uma ilha brasileira! ... Estou quase não gicamente. Enquanto os meus, lavradores de
querendo. cem anos, empobreceram em dois ...
ABELARDO I - Um cais ... Onde você atracou ... Depois de ABELARDO I - Trabalharam e fizeram trabalhar para mim
tocar em muitas terras ... ver muitas paisagens ... milhares de seres durante noventa e oito ...
HELOíSA - O meu porto seguro ... (Silêncio absorto)
ABELARDO I - Um p_orto saneado ... Com armazéns ... guin- HELOíSA - Dizem tanta coisa de você, Abelardo ...
dastes... E W11a multidão de trabalhadores ABELARDO I - Já sei ... Os degraus do crime .. que desci
para nos dar a nota ... corajosamente. Sob o silêncio comprado dos
HELOÍSA - Em troca da minha liberdade. Chegamos jornais e a cegueira da justiça de minha classe!
ao casamento ... Que você no começo dizia ser Os espectros do passado ... Os homens que traí
a mais imoral das instituições humanas. e assassinei. As mulheres que deixei. Os suici-
ABELARDO I - E a mais útil à nossa classe ... A que defende dados ... O contrabando e a pilhagem ... Todo
a herança . o arsenal do teatro moralista dos nossos avós.
HELOíSA - Enfim aqui estou negociada. Como Nada disso me impressiona nem impressiona
uma mercadoria valiosa Não nego, o meu mais o público ... A chave milagrosa da fortu-
ser mal-educado nos pensionatos milionários na, uma chave yale ... Jogo com ela!
da Suíça, nos salões atapetados de São Paulo ... HELOíSA - O pânico ...
vivendo entre ressacas e preguiças, aventu- ABELARDO I - Por que não? O pânico do café. Com dinhei-
. ras ... não pôde suportar por mais de dois anos ro inglês comprei café na porta das fazendas
a ronda da miséria ... (Silêncio) E a admiração desesperadas. De posse de segredos governa-
que você provocou em mim, com o seu ar cal- mentais, joguei duro e certo no café-papel!
culado e frio e a sua espantosa vitória no meio Amontoei ruínas de um lado e ouro do outro!
da derrocada geral... O conhecimento que tive Mas há o trabalho construtivo, a indústria ...
36 OSWALD DE ANDRADE OREIDA VELA 37
Calculei ante a regressão parcial que a crise ABELARDO I - Que não deram aos que não podem viver
provocou ... Descobri e incentivei a regressão, a sem empréstimos.
volta à vela ... sob o signo do capital americano. HELOíSA - Meus pais ... meus tios ... meus primos ...
HELOÍSA - Ficaste o Rei da Vela! ABELARDO I - Os velhos senhores da terra que tinham
ABELARDO I - Com muita honra! O Rei da Vela miserável que dar lugar aos novos senhores da terra!
dos agonizantes. O Rei da Vela de sebo. E da HELOíSA - No entanto, todos dizem que acabou a épo-
vela feudal que nos fez adormecer em crian- ca dos senhores e dos latifúndios ...
ça pensando nas histórias das negras velhas ... ABELARDO I - Você sabe que o meu caso prova o contrá-
Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e rio. Ainda não tenho o número de fazendas
das escritas em casa As empresas elétricas que seu pai tinha, mas já possuo uma área
fecharam com a crise Ninguém mais pôde cultivada maior que a que ele teve no apogeu.
pagar o preço da luz A vela voltou ao mer- HELOíSA - Há dez anos ... A saca de café a duzentos
cado pela minha mão previdente. Veja como mil-réis!
eu produzo de todos os tamanhos e cores. ABELARDO I - Estamos de fato num ponto crítico em que
(Indica o mostruário) Para o Mês de Maria das podem predominar, aparentemente e em nú-
cidades caipiras, para os armazéns do interior mero, as pequenas lavouras. Mas nunca como
onde se vende ~ se joga à noite, para a hora de potência financeira. Dentro do capitalismo,
estudo das crianças, para os contrabandistas a pequena propriedade seguirá o destino
no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, da ação isolada nas sociedades anônimas.
aquela pequena velinha de sebo que espalhei O possuidor de uma é um mito econômico.
pelo Brasil inteiro ... Num país medieval como Senhora minha noiva, a concentração do ca-
o nosso, quem se atreve a passar os umbrais pital é um fenômeno que eu apalpo com as
da eternidade sem uma vela na mão? Herdo minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os
um tostão de cada morto nacional! fortes comerão sempre os fracos. Desse modo
HELOÍSA (Sonhando) - Meu pai era o coronel Belar- é que desde já os latifúndios paulistas se re-
mino que tinha sete fazendas, aquela casa constituem sob novos proprietários.
suntuosa de Higienópolis... ações, automó- HELOÍSA - Formidável trabalho o seu!
veis ... Duas filhas viciadas, dois filhos tara- ABELARDO I - Não faça ironia com a sua própria felicida-
dos... Ficou morando na nossa casinha da de! Nós dois sabemos que milhares de traba-
Penha e indo à missa pedir a Deus a solução lhadores lutam de sol a sol para nos dar farra
que os governos não deram ... e conforto. Com a enxada nas mãos calosas 'e
sujas. Mas eu tenho tanta culpa disso como o
38 OSWALD DE A DRADE OREIDAVELA 39
papa-níqueis bem colocado que se enche dia- ABELARDO I (A Heloísa) - Chegou a sua vez de sair, meu
riamente de moedas. É assim a sociedade em bem!
que vivemos. O regímen capitalista que Deus HELOíSA - Como?
guarde ... ABELARDO I - Devo a esse homem ...
HELOíSA - E você não teme nada? HELOíSA - Adeus!
ABELARDO I - Os ingleses e americanos temem por nós. - ABELARDO I - Podes passar por esta porta! Não faz mal
Estamos ligados ao destino deles. Devemos que ele te veja sair ... (Gesto evasivo de Heloísa)
tudo, o que temos e o que não temos. Pelo contrário. Estás linda ...
Hipotecamos palmeiras ... quedas de água. HELoíSA - Sim, adeus!
Cardeais! ABELARDOI - Perguntará quem és ... (Heloísa sai. Só, no
\
HELOÍSA - Eu li num jornal que devemos só à Ingla- meio da cena, Abelardo curva-se até o chão
terra trezentos milhões de libras, mas só che- diante da porta aberta.) Faça o favor de entrar,
garam até aqui trinta milhões ... Mister Ionesl Come back!
ABELARDO I - É provável! Mas compromisso é compro-
misso! Os países inferiores têm que trabalhar
para os países superiores como os pobres TELA
trabalham para os ricos. Você acredita que
New York teria aquelas babéis vivas de arra-
nha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas
da terra se não se trabalhasse para Wall Street
de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus à
Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do
capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem!
Mas não me queixo. É por isso que possuo
uma lancha, uma ilha e você ...
Mais Abelardo II
Menos Abelardo II
UMA ILHA TROPICALna Baía de Guanabara, Rio de Janeiro. Durante o
ato, pássaros assoviam exoticamente nas árvores brutais. Sons de motor.
O mar. Na praia ao lado, um avião em repouso. Barraca. Guarda-sóis.
Um mastro com a bandeira americana. Palmeiras. A cena representa
um terraço. A abertura de uma escada ao fundo em comunicação com
a areia. Platibanda cor-de-aço com cáctus verdes e coloridos em vasos
negros. Móveis mecânicos. Bebidas e gelo. Uma rede do Amazonas. Um
rádio. Os personagens se vestem pela mais furiosa fantasia burguesa e
equatorial. Morenas seminuas. Homens esportivos, hermafroditas, me-
nopausas.
Com opano fechado, ouve-se um toque vivo de corneta. A cena conserva-
se vazia um instante. Escuta-se o motor de uma lancha que se aproxima.
Pela escada, ao fundo, surgem primeiramente, em franca camara-
dagem sexual, Heloísa e o Americano. Saem pela direita. Depois, Totó
Fruta-do-Conde, tétrico. Sai. Em seguida, d. Poloca e João dos Divãs.
Saem. Depois, o velho coronel Belarmino, fumando um mata-rato
de palha e vestido rigorosamente de golfe. Sai. Segue-se-lhe um par
cheio de vida: d. Cesarina, abanando um leque enorme de plumas em
maiô de Copacabana e Abelardo I com calças cor-de-ovo e camiseta
esportiva. Permanecem em cena.
Abelardo I e d. Cesarina
que eu não gosto de me iludir. Os seus galan- que a gente diga as coisas que não sente? Que
ABELARDOI - Os meus galanteios são sinceros ... senhora mo? Vai pro inferno ...
minha futura sogra ... Quem manda se vestir ABELARDO I - Não. Eu já sei que vou pro purgatório ...
assim, com esse maiô jararaca! Qual é o santo D. CESARINA - A gente nunca deve dizer o que não sente.
D. CESARINA - Quer me deixar mais zangada ainda ... ABELARDOI - E se fosse verdade! Se o meu coração se ti-
Mais triste do que ontem. Continua a proce- vesse inflamado ao contágio do seu luminoso
ABELARDOI - Mas d. Cesarina! Me acredite! Por favor! D. CESARINA - Ora, só eu sei a idade que tenho!
ABELARDOI - Eu terei culpa por acaso de ser fraco? Culpa D. CESARINA (Rindo e ameaçando) - Olhe, que eu ainda
cemitério entre ciprestes!. .. D. CESARINA - Meu filhinho, venha cá. Benzinho do meu
D. CESARINA - É para onde eu acabo indo por sua causa ... coração!
ABELARDO I - Dou a César o que é de César. Ou melhor, TOTÓ - Não quero. (Bate o pé) Não quero. Me
coisa só. Por que é que o senhor mente tanto, com sua mãezinha! Há quanto tempo você
D. CESARINA - O senhor sabe que eu não posso beber D. CESARINA - O que que você vai fazer?
champanhe. Outra noite, quando dançamos TOTÓ - Não está vendo? Pescar nos penhascos. Éo
meçou com aquelas graças e aquela imorali- ABELARDOI - Cuidado com essa praia! Tem cada bagre!
TOTÓ - Deus o ouça! (Aproxima-se e faz festas) ABELARDOI - Ah! É boxe. Ela está aprendendo a jogar
Meu futuro irmão. Que boas cores! Que ida- boxe. De vez em quando uns golpes de luta
de o senhor tem, hein? Sabe qual é a luva da livre ... Ele é campeão de tudo isso em Nova
moda? Eu agora vou dar bombons aos bagres. York, Wall Street!
É servido? D. CESARINA - Pois olhe, seu Abelardo. Eu ficaria roída se
ABELARDOI - Eh! Obrigado, amigo! Não gosto desses alguém que eu amo tivesse aquelas liberdades
peixes, não. Nem de bombons! Mas que fa- com um estranho.
mília! ABELARDOI - Mas d. Cesarina! Eu me prezo de ser um
D. CESARINA - Me dê um beijinho, Totó! homem da minha época! A senhora quer que
TOTó (Indo pela escada do fundo) - Não dou! Não eu perca tempo em ter ciúmes? (Imita drama-
dou! Não dou! ticamente um casal em choque) Diga, Heloísa!
Quem era aquele homem? - Eu fui lá só para
Menos Totó dar um recado. - Foste lá! Confessas! Entraste
naquela casa, naquele antro! Traíste-me, per-
D. CESARINA - Ah! Coitado. Depois que ele brigou com o jura! - Ah! Meu amor, que desconfiança tam-
Godofredo está outro ... Magro. Enfastiado ... bém, que injustiça! Um homem feio daquele!
ABELARDO I - Compreendo. Essas rupturas são dol oro- Eu fui lá só por causa do recado! - Maldita!
sas ... (Tomando o leque sobre a mesa) Mas que Puml Purn! (Ri) Oh! Oh! ah! É isso? Essa ridi-
lindo leque ... cularia que divertiu e ensangüentou gerações
D. CESARINA (Silêncio. Retoma o leque. Cena muda.) - Me de idiotas. É isso ... O ciúme!
dê o leque que guarda como um cofre as suas D. CESARINA (Levantando-se) - Pois se o senhor não tem
palavras ardentes ... do baile ... vergonha, seu Abelardo, eu tenho! Olhe este
ABELARDOI - Que guarda a mais terrível e secreta das leque! Este leque ainda é capaz de fazer muito
confissões ... estrago! (Deixa a rede)
D. CESARINA - Me diga uma coisa, seu Abelardo, o senhor ABELARDOI - Compreendo! É o leque de Lady Windermere!
não tem ciúmes? D. CESARINA - Seu Abelardo, não me olhe assim! Eu sou
ABELARDOI (Surpreso) - Ora essa! ligada pelo mais doce dos sacramentos ao mais
D. CESARINA - Aquele alemão! digno dos.esposos. Não! Nunca! A vida de uma
ABELARDO I - Alemão? Americano. Americano e ban- esposa tem que ser uma renúncia, um sacrifí-
queiro! cio, uma purificação! Por mais dolorosa ...
D. CESARINA - Ele anda com uns brinquedos brutos com a
Heloísa!
48 OSWALD
DEANDRADE OREIDAVELA 49
ABELARDO I - Me 'diga uma coisa, d. Poloca, se não fos- JOÃO - O Totó é a minha diferença. Já está dando
se esse avacalhamento, permita-me a expres- em cima do Americano! Basta a gente inven-
são ... É de Flaubert! tar alguém, lá vem ele! - Eu sou uma fracas-
D. POLOCA - Diga decadência. Soa melhor! sada!
ABELARDOI - Bem! Se não fosse essa decadência. É real- ABELARDOI - Coitado! Não leva vantagem ... Está de asa
mente, é mais suave. Como é que vocês, per- partida!
mita a expressão, comiam ... JOÃo - Da outra vez também, lá em São Paulo, ele
D.PoLocA - Seu Abelardo, a gente não vive só de co- tinha brigado com o Godofredo. Ficou doen-
mida! te de tristeza! E mesmo assim me tomou o
ABELARDOI - Está aí um ponto em que eu discordo pro- Miguelão! Bandido!
fundamente de Vossa Majestade! Não pode- ABELAI}DOI - Mas o Americano que eu saiba aprecia o
mos mais nos entender. A senhora vive de tipo másculo de Heloísa. Mister [ones é lés-
aragens ... Eu de bifes. bico!
D. POLOCA - O senhor é um burguês! Eu uma fidalga JOÃo - O Americano gosta do chofer ..Felizmente!
que teve a ventura de beijar as mãos de Sua Olha quem vem aí... O coroneL
Alteza a Princesa Isabel, ouviu? HELOíSA - Papai!
ABELARDOI - Mas me diga uma coisa só, d. Polaquinha, JOÃo - Parece o Clark Gable!
perdão, d. Poloquinha. Em sua vida toda, tão D.PoLocA - Meu irmão está remoçando com essas rou-
cheia de nobreza, nunca amou um plebeu? .. pas de carnaval!
D.PoLocA (Graciosa) - Em segredo. Mas nunca em pú-
blico como essa desfrutável que Deus me deu Mais Belarmino
por cunhada!
BELARMINO - Continuo sempre a apreciar a paisagem
Mais Heloísa e [cana que se descortina desta ilha encantada. Uma
verdadeira ilha paradisíaca. Aliás, o Rio de
HELoíSA - Outro flerte! Ontem era a mamãe! Hoje Janeiro talvez seja mesmo a mais bela cidade
tia Poloca. Quantos chifres você me põe por, do mundo! Deve ser! Que baía. A mais bela
hora, Abelardo? baía do mundo! Nem Constantinopla, nem
ABELARDOI - É em família. (Sentam-se rindo) Não conta! Nápoles, nem Lisboa!
HELOiSA - Contanto que você não me engane com o ABELARDOI - De fato, coronel.
Totó! BELARMINO - Lá em cima, o Corcovado com o Cristo
de braços abertos. Consola-me ver o Rio de
52 OSWALD DE ANDRADE OREI DAVELA 53
BELARMINO (Retirando-se declamatório) - Que fazem os JOÃo - Eu tenho culpa dela ser cabeçuda?
homens novos? Que fazem os homens novos! D.POLOCA - No meu tempo, as meninas eram recata-
das. Iam às novenas. Rezavam o terço. Hoje é
Menos Belarmino o diabo quem manda!
JOÃo - O diabo é o homem mais encantador do
D. POLOCA - Os homens novos são como o senhor ... um mundo. O homem da Vela ... de Heloísa.
ateu! um pedreiro livre, ouviu? E esse inglês ... HELOíSA - O Rei da Vela. - Me dá um cigarro, tia.
do chofer! JOÃo - Não quero saber. A vela dele é que nos
ABELARDOI - Que fim levou o Americano? salvou.
JOÃo - Decerto caiu dentro do copo de uísque! D.POLOCA (Fuma com Heloísa) - Eu não gosto desse
ABELARDOI - Vousalvá-lo. Até já! (Sai pela direita) homem não. Não teme Deus. É capaz de não
querer casar no religioso ... Mas o Perdigoto
Menos Abelardo há de obrigá-lo. Este sim é um sobrinho que
vale a pena! Me ensinou a tragar.
HELOÍSA - Tia Poloca está de bossa, hoje! HELOÍSA - Casa! Ele está mudando. Me disse hoje que
D.POLOCA - Eu não digo mais, porque vivo do pão casa no religioso também. O cardeal virá à
alheio. Mas, no meu tempo, se escolhia. A ilha ... É uma honra! Um acontecimento!
gente não se casava com um aventureiro só D.POLOCA - Bem. Mas ele não tem família.
porque é rico e foi aos Estados Unidos. JOÃo - Nós temos demais. Eu não sei de nada, se
JOÃo - 'Por isso é que a senhora é virgem até hoje! não fosse ele ... Depois que o Totó me tomou o
HELOíSA - Com sessenta e três anos! Miguelão!
JOÃo - Já fez sessenta e nove! D.POLOCA - Aquele turco indecente!
D.POLOCA - Menina! Eu chamo teu pai! Vai ver coi- JOÃo - Muito bom casamento. Palácio na Avenida
sas inocentes, anda! Vai ver o pôr-do-sol! Paulista! Barata! Nota!
Vai folhear o álbum de fotografias da famí- D.POLOCA - Mas é um assassino!
lia que eu trouxe! Quem sabe se os retratos HELOíSA - É sim, João! Matou o irmão com dezoito
dos avós te dão um pouco de vergonha! Vai facadas ...
ver o Perdigoto que chegou todo de soldado. JOÃo - Mas foi absolvido pelo júri. Privação de
Magnífico! sentidos.
JOÃo - Aquele fascista indecente! HELOíSA - E de inteligência ...
D.POLOCA - É o único que presta na família!
HELOíSA - Não amola, titia. Anda! Bestinha!
OREI DA VELA 57
56 OSWALD DE ANDRADE
- Estado normal. Mas se o Totó não apare- JOÃO - Nesse tempo, essas senhoras eram todas
JOÃO
cesse ele caía. Ia me dar uma vida daqui! O francesas. Ele casou-se, pensando que era
Totó é um bandido! Me tomou o turco! uma francesa de Paris. Mas ela não conhecia
~
nem Marselha!
HELOíSA - Esses anfíbios!
- São uns miseráveis! Se não fosse o teu rei HELOíSA - A Migdal tem outros portos! Mas o essen-
JOÃO
estava eu ainda gastando o meu francês de cial é que ela hoje é um pilar da sociedade.
Sion nos apartamentos e nos hotéis. E rolando Uma filantropa. Vai à missa todo dia ...
de barata, fazendo força contra as midinettes ... JOÃo - Tem chelpa! (Começa a roer furiosamente a
HELOíSA - Encontrei a Mag na Avenida, num luxo. HELOÍSA - É da Convenção Eleitoral Feminina ...
Quem diria? Aquela chapeleirinha da Rua Capaz de ser eleita deputada pelo partido ca-
JOÃO - Outra virgem! Essa é a tal que viaja com JOÃO (Debatendo-se) - É essa cabeçuda dessa titia,
a radiografia dos intestinos, procurando cele- que não quer deixar eu ter nem um vício ...
bridades médicas para consultar! D.POLOCA - Cala a boca! No meu tempo, as meninas só
JOÃO (Roendo a unha do polegar) - Mademoiselle JOÃO - Uma ova. Eu sou o João dos Divãs. Não é
D. POLOCA - Aquela polaca aqui! Cinzas! ABELARDO I - Mas você gosta mesmo de roer unha?
JOÃO - Polaca não, titia, po-lo-ne-sa! Muito dis- JOÃO (Pulando, deslumbrada) Uhm! Uma maravi-
cia em geografia. Casou com ela errado. D.POLOCA - Ele chega a deixar crescer a unha, para de-
ABELARDOI - Eu conheço uma que começou assim e aca- ABELARDOI ão. Deixe Strauss! É o adultério! A voz
bou mastigando um balaústre! mais pura do adultério ... Escutem! (Liga o
JOÃO (Histérica) - Deve ser divino! Ter gosto de rádio)
unha! Vou experimentar! HELOíSA - A grande guerra acabou com esses refú-
HELOíSA (Festejando o braço do Banqueiro) - Então, gios ...
Iones, como vão os negócios de Abelardo? JOÃO - Prefiro um fox ...
o BANQUEIRO - Finanças domina mundo. Abelardo, tem O BANQUEIRO - Uma fox danz. Vamos. Valz é triste!
cheiro ... Vai dar salto ... JOÃO - Alô Ionesl (Muda a estação e ao som de um
ABELARDOI o abismo ... fox sai grudada no Banqueiro) Até a volta. Vou
HELOíSA - Dos meus braços! Diga uma coisa, [ones, ver o pico do Itatiaia.
por que é que o Brasil não paga as dívidas O AMERICANO (Rindo) - Everest! Everestl
com o café que está queimando?
o AMERICANO - No Brasil precisa aviões ... Metralhatrices ... Menos o Americano e João
Muitos ...
HELOíSA - Mas para quê? D. POLOCA (Escandalizada) -,Menina à-toa! Garota da
O AMERICANO - Trocar por 1' ••• Oh! Good
cace' business! crise! (Silêncio) Vou me vestir para o banho
Shut up! de mar. Me refrescar desses calores! Heloísa,
ABELARDOI - É verdade! A guerra! Precisamos nos ar- você vem ... (Sai)
mar para a guerra ... HELOÍSA - Vou já, titia ...
HELOíSA - Mas contra quem?
ABELARDO I - Contra qualquer pessoa! Qualquer guerra. Menos d. Poloca
Externa ou interna. É preciso dar emprego aos
desocupados. Distrair o povo. E trocar café Ouvem-se gritos ao fundo. Totó Fruta-do-Conde aparece na escada.
pelos armamentos que estão 'sob.rando lá fora. Não traz nada nas mãos.
As sobras da corrida armamentista. Você não
vê logo? Ou então contra a Rússia! A Rússia Mais Totó
está aporrinhando o mundo!
JOÃO (Liga o rádio. Uma, valsa de Strauss amacia ABELARDOI - Que foi?
o ambiente.) - Papagaio! Toda vida Strauss! HELOíSA - Totó ... Que aconteceu?
Ora! (Vai ligar a outra estação. O rádio guin- TOTó - Um peixe enorme. Me tirou o anzol, os
cha. Abelardo intervém.) bombons. Levou tudo ... Deve ter sido um tu-
barão.
60 OSWALD
DEANDRADE OREIDAVELA 61
ABELARDOI - Não. Decerto foi um peixe-espada. Como TOTó - E onde fica a educação, seu Abelardo? Onde
você ficou emocionado! Que palpitações ... ficam as convenções, os preconceitos sociais,
TOTÓ - Decerto! as diferenças de origem e de classe ... Tudo isso
ABELARDOI - Pensei que você já estivesse habituado com que torna o mundo delicioso. (Geme) Me trair
essas pescarias ... com uma mulher do Mangue!
HELOíSA - Espera. Venho já. (Sai pela esquerda) Vou ABELARDOr - Do Mangue?
me vestir. TOTÓ - Do Mangue, sim. Foi um cataclisma. Sou
uma fracassada! (Levanta-se) Os peixes me as-
Menos Heloísa saltam, o mar me enerva, a paisagem me amo-
fina. Vou para o meu quarto ... sim? (Sai)
TOTÓ (Atira-se a uma cadeira) - Eu pesco inces- -,
de uma classe. Para isso nada como a doutri- se como classe. Policialmente. Esse momento
HELOÍSA - Hein? Você já está assim? nos países onde o proletariado é fraco ou di-
simples trânsito. De modo que os que passa- HELOíSA - Então vou já brincar de jacaré com o
se resignar. Comerão no céu ... ABELARDO I - Vai! Ele é Deus Nosso Senhor do Arame ...
um eterno ir e vir ... ioiô ... ta, em maiô centenário, que lhe cobre as canelas, d. Poloca.
miséria. Como Deus não existe mais. Só há ABELARDOI (Barrando-lhe o caminho) - De novo a sós!
HELOíSA - Por isso é que você se aniquilou em mim ... do puro! Que não relaxa! O cerne! O cer-nel
Heloísa. Num momento grave, em que é ABELARDOI (Depois de um silêncio) Diga, tia Coisa! Diga-
preciso lutar e vencer. Sem piedade. De uma me seriamente se a senhora tivesse um milhão
HELOíSA - Você disse que aqui isso não seria possível. ABELARDOI - Diga. Eu preciso saber. Eu quero saber! Por
ABELARDO I - Tenho estudado melhor. Somos parte de exemplo, se eu estourasse os miolos e lhe dei-
Se os banqueiros imperialistas quiserem ... D. POLOCA - Quer me fazer de idiota? Não faz não!
Você sabe, há um momento em que a bur- ABELARDO I - Não. Quero mesmo saber. Diga. Qual é o
guesia abandona a sua velha máscara liberal. seu grande ideal? O que faria se recebesse um
HELoíSA - E eu como é que fico? Na miséria outra HELOíSA (Divisa o revólver e dá um grito) - Largue
vez. Eu não sei trabalhar, não sei fazer nada. isso, Abelardo!
E a minha gente ... Eu acabo dançando no ABELARDO I (Defendendo a arma) - Por quê, Heloísa? O
Moulin Bleu ... ladrão que à noite passada levou o dinheiro,
ABELARDO I (Consolando-a) - Não será preciso, meu amor. deixou esta arma no lugar ... Fez-me um pre-
Você se casa com o ladrão ... sente ... O melhor que podia fazer ... Viu que eu
HELOíSA (Continua a choramingar e mantém-se lasti- não tinha outra saída ...
mosa e soluçante durante todo o ato) - Qual HELOíSA - Mas meu amor! (Levanta-se e agarra-se a
deles? Eu já perguntei! ele) Mesmo que você esteja arruinado. Mesmo
ABELARDO I - O último, o que deu a tacada final nesta que seja verdade ... Você pode ganhar ainda, re-
partida negra em que fui vencido ... cuperar ... Você, tão inteligente, tão ativo ...
HELOÍSA - O Americano não quer casar ... ABELARDO I - Tão esperto! Olhe, menina. Eu fui um por-
ABELARDO I - Mas o outro casa. É um ladrão de comédia calhão! Sabe você a quem a burguesia devia
antiga ... Com todos os resíduos do velho teatro. erguer estátuas? Aos caixas dos bancos! Esses
Quando te digo que estamos num país atrasa- sim é que são colossais! Firmes como a rocha.
do! Olhe, ele roubou os cheques assinados ao Os homens que resistem à tentação da nota.
portador. Operou magnificamente. Mas veja, Sabendo para onde ela vai, para que ela serve,
rebentou a lâmpada ... arrombou a secretária ... donde vem, que infâmias pode tecer ... Os que
Deixou todos os sinais dos dedos. Para quê? recusam o chamado da nota! Antigamente,
Se tinha furtado a chave do cofre. É um ladrão quando a burguesia ainda era inocente ... A
antigo. Topa um casamento com uma nobre burguesia já foi inocente, foi até revolucioná-
arruinada. Na certa! ria ... Nos bons tempos do romantismo, antes
HELOíSA - Já sei! É o seu domador! Que homenzinho do cinema devassar o mundo, acreditava -se
horrível, meu Deus! Eu não quero ... no chamado do Oriente, esse apelo insondá-
ABELARDO I - Não sei. Quem sabe se é Rafles ... Arsene vel dos países misteriosos e tardos, onde, no
Lupin, um desses que você gosta, que amava fundo - o cinema depois divulgou -, só ha-
na adolescência ... Saído de Edgard Wallace, via exploração imperialista e palmeiras, mais
hein? .. nada. Na época moderna, para nós, classe
HELOÍSA - Mas eu gosto de você ... Você vai embora ... dirigente, minha amiga, só há um chamado
Para onde você quer ir... Eu também vou ... - o chamado da nota! Eu não soube resistir
com você ... ao chamado da nota! Sendo Rei da Vela, ban-
ABELARDO I - Não vou não. Fico. quei o Rei do Fósforo. Também me apossei
OSWALD DE A DRADE O REI DA VELA 75
74
do que pude! Joguei numa terrível aventura, O PONTO - Mas a crise ... A situação mundial ... O im-
todas as minhas possibilidades! Pus as mãos perialismo. Com o capital estrangeiro não se
no que não era meu. Blefei quanto pude! Mas brinca!
fui vergonhosamente batido por um coringa ... ABELARDO I - Está bem. (Para Heloísa) Tu, meu cravo de
Pois bem! O Rei da Vela não será indigno do defunto, dá-me o último beijo! (Enlaçam-se)
Rei do Fósforo!. .. (Agita o revólver)
HELOíSA - Abelardo. Não faça essa loucura. Vamos O pano encobre a cena. Ouve-se um grito terrível de mulher e uma salva
recomeçar. Fugiremos daqui para bem longe! de sete tiros de canhão. Quando reabre, Heloísa soluça jogada sobre a
Vamos ... maca. Abelardo está caído na cadeira de rodas que centraliza a cena. O
ABELARDO I - Recomeçar ... uma choupana lírica. Como telefone ressoa. Ela soluça. Silêncio prolongado. O telefone insiste.
no tempo do romantismo! As soluções fora
da vida. As soluções no teatro. Para tapear. ABELARDO I - Não atenda ... É o ladrão. Está telefonando
Nunca! Só tenho uma solução. Sou um per- para ver se eu já morri. Truque de cinema. Mas
sonagem do meu tempo, vulgar, mas lógico. como no teatro não se conhece outro, ele usa
Vou até o fim. O meu fim! A morte no tercei- o mesmo. Virá até aqui. Para nós o identifi-
ro ato. Schopenhauer! Que é a vida? Filosofia carmos! Olhem! (Ouve-se um ruído à direita)
de classe rica desesperada! Um trampolim É ele! Pssit! Heloísa! Pára de chorar! (Silêncio
sobre o Nirvana! (Grita para dentro) Olá! absoluto, o ruído cresce, persiste. Abelardo ar-
Maquinista! Feche o pano. Por um instante queja e acompanha com enorme interesse.
só. Não foi à toa que penhorei uma Casa de Sorri.) Barulho de gazua! É ele! (A porta estala.
Saúde. Mandei que trouxessem tudo para cá. Abelardo 11 surge, embuçado, de casquete, exa-
A padiola que vai me levar ... (Fita em silêncio geradamente vestido de ladrão. Tirou os bigodes
os espectadores) Estão aí? Se quiserem assis- de domador. Traz nas mãos uma lanterna surda.
tir a uma agonia alinhada esperem! (Grita) Deixou o monóculo. É quase um gentleman.)
Vou atear fogo às vestes! Suicídio nacional!
Solução do Mangue! (Longa hesitação. Oferece Os mesmos e Abelardo 11
que houve? Que foi? O que é isso? Meu Deus. ABELARDOI - Sim, o direito à primeira noite. É a tradi-
(Aperta o botão da luz) Curto-circuito! ção! Não se afobe, pequeno-burguês sexua e
ABELARDO I r Não. Foi você que quebrou. Ladrão de pri- imaginoso! Não se esqueça que estamos num
meira viagem! Fez bem! Pouparemos a luz elé- país semicolonial. Que depende do capital es-
trica. A conta do mês passado foi alta demais! trangeiro. E que você ,me substitui, nessa copa
Acenda todas as velas! Economia em regres- nacional! Diga, onde escondeu o dinheiro que
são. As grandes empresas estão voltando à abafou]. ..
tração animal! Estamos ficando um país mo- ABELARDO II - Que dinheiro?
desto. De carroça e vela! Também já hipoteca- ABELARDO I - O nosso. O que sacou às dez horas precisas
mos tudo ao estrangeiro, até a paisagem! Era da manhã. O dinheiro de Abelardo. que tro-
o país mais lindo do mundo. Não tem agora ca de dono individual mas não sai da classJ. O
uma nuvem desonerada ... Mas não irá ao sui- que, através da herança e do roubo, se conser-
cídio ... Isso é para mim. va nas mãos fechadas dos ricos ... Eu te conhe-
ABELARDO II - Por que fez essa loucura? ço e identifico, homem recalcado do Brasil!
ABELARDO I - Um homem não tem importância ... A clas- Produto do clima, da economia escrava e d~
se fica. Resiste. O poder do espiritualismo. moral desumana que faz milhões de onanistas
Metempsicose social... desesperados e de pederastas ... Com esse sol e
ABELARDOII - Quer que chame um médico? essas mulheres! ... Para manter o imperialismo
ABELARDO I - Para quê? Para constatar que eu revivo em e a família reacionária. Conheço-te, fera solta,
vocêi portanto que Abelardo rico não paga- capaz dos piores propósitos. Febrônio dissi-
rá a conta de Abelardo suicida? mulado das ruas do Brasil! Amanhã, quando
ABELARDO II - Pode salvar-se ainda. Como fica essa pobre entrares na posse da tua fortuna, defende-
moça ... No desamparo. (Heloísa soluça [ortis- rás também a sagrada instituição da família,
simo) Quer um padre? Pode ainda realizar o a virgindade e o pudor, para que o dinheiro
casamento ... permaneça através dos filhos legítimos, numa
ABELARDO I - Que necessidade tem você de casar com a classe só ...
minha viúva ... Vai tê-Ia virgem! e de branco ... ABELARDO II - Eu sempre defendi a tradição ... e a moral...
ABELARDO II - Virgem! Heloísa virgem! (Heloísa diminui ABELARDO I - E defende também a casa feudal!. .. Se sal-
os soluços) vares a fazenda das unhas militarizadas do
ABELARDO I - Se o Americano desistir do direito de per- Perdigoto, conserva a Casa da família. Não
nada ... reformes nada! A casa feita para ter muitos
ABELARDO II - De pemada? criados, um resto de mucamas e negras ve-
78 OSWALD DE ANDRADE OREI DA VELA 79
lhas, lembrando o tronco! E um grande quar- ABELARDOII - São todos assim como você, passam para o
to frio para dois seres que se traem e se detes- outro lado quando estão arruinados!
tam dormindo na mesma cama e orando no ABELARDO I - É um erro teu! Se todos fossem como o
mesmo oratório. A casa antiga, colonial, um oportunista cínico que sou eu, a revolução
mundo que resiste! Mais que eu ... Foi a bala social nunca se faria! Mas existe a fidelidade
do cano que penetrou profundamente, a pri- à miséria! Eu estou saindo da luta de classes ...
meira ... As outras rodearam o coração! Que já está aí a maca onde o meu corpo vestido
dor Decerto é porque o coração ficou intac- e inerte substituirá o corpo voluptuoso de
to O coração, esse útero do homem, onde a Heloísa ... Mas se sarasse ... regressava à arena
gente gera os filhos mais caros ... a ambição, o na posição que ocupei. Não aderia... Talvez
amor, o desespero, a vontade de viver ... a li- mudasse de dono. Voltava a trabalhar para o
teratura ... Escuta, Abelardo! Abandonaste o imperialismo inglês ...
socialismo? ABELARDOII - Pão-duro ...
ABELARDO II - Faço-lhe presente dele! ABELARDOI - Pão amanhecido!
ABELARDO I - Mas eu não aceito. Neste momento eu que- ABELARDO II - Eu fui O teu obstáculo!
ro a destruição universal... O socialismo con- ABELARDO I - Mas a tua vida não irá muito além desta
serva ... peça ...
ABELARDO II - Virou bokhevista! São todos assim ... Quan- ABELARDO II - Me matas?
do era o grande milionário e emprestava a 15% ABELARDOI - Para quê? Outro abafaria a banca. Somos ...
ao mês e eu lhe falava dos ideais humanitários uma barricada de Abelardos! Um cai, outro
e moderados do socialismo, caçoava. Conhecia o substitui, enquanto houver imperialismo e
tudo, lia tudo, mas se ria ... Agora ... diferença de classes ...
ABELARDO I - Sempre soube que só a violência é fecunda ... ABELARDOII - Ora, que sujeito! Fazendo vis agem na hora
Por isso desprezei essa contrafação. Cheguei a da morte!
preferir o fascismo do Perdigoto. Mas agora ABELARDO I - Não sou nem sequer um demagogo. Esta
eu queria outra coisa ... cena é ainda um episódio da concorrência.
ABELARDO Il - O comunismo ... Uma briga burguesa. Eu quero, mesmo de-
ABELARDO I - Para te deixar um veneno pelo menos mis- pois da morte, te suplantar na memória dela
turado com Heloísa e os meus cheques. Deixo que vai ser tua mulher.
vocês ao Americano ... E o Americano aos co- ABELARDO II - Minha mulher?
munistas. Que talo meu testamento? ABELARDOI - Como meu irmão será o teu advogado!
(Silêncio)
80 OSWALOOEA ORADE O REI DA VELA 81
ABELARDO II (Calculando) - Ele conhece o sistema da ABELARDO I - Ah! Ah! Moscou irradia no coração dos
casa ... oprimidos de toda a terra!
I
damos de continente para enriquecer. Só en- ABELARDOII - Ahn! Quer morrer de vela na mão? O
contramos aqui escravidão e trabalho! Sob as Rei da Vela. Tem razão! (Abre o mostruário.
garras do imperialismo! Hoje morremos de Tira uma velinha de sebo, a menor de todas.
miséria e de vergonha! Somos os recrutas da Acende-a.) Não quer perder a majestade. Vou
pobreza! Milhões de falidos transatlânticos! pôr naquele castiçal de ouro!
Para as nossas famílias, educadas na ilusão
da A-mé-ri-ca, só há a escolher a cadeia ou o Silêncio. Soluços. A cena emerge da luz frouxa da vela que Abelardo II
rendez-vouz! Há o sui-cí-dio também! O sui- colocou no castiçal de latão. Num último arranco o moribundo deixa
cí-dio ... cair a cabeça para trás e a vela ao chão onde tomba também e perma-
ABELARDO I - É a revolução ... Fogo! Façam fogo ... nece de borco.
Silêncio pesado. Os soluços de Heloísa aumentam. HELoíSA (Levantando-se entre soluços enormes)
- Abelardo! Abelardo!
ABELARDO II - Está morrendo. A minha vida começa! ABELARDOII - Heloísa será sempre de Abelardo. É clás-
ABELARDOI - A vaI... a... sico!
Heloísa soluça de novo forte Heloísa hesita um instante perto do morto, depois ampara-se sobre o
ombro de Abelardo II que a mantém estreitamente no centro da cena.
ABELARDO II - Compreendo. A vala comum ... Não ficou Ouvem-se os acordes da Marcha Nupcial e uma luz doce focaliza o par.
nada. Nem para o enterro nem para a sepul- Aparecem então em fila, vestidos a rigor os personagens do 2° Ato que,
tura. A casa ia mal há muito tempo. Coitado! sem dar atenção ao cadáver, cumprimentam o casal enluarado, atra-
Negócios com estrangeiros... Ele que tinha vessando ritmadamente a cena e se colocando por detrás dele, ao som
mandado fazer aquele projeto de túmulo fan- da música. O fascista saúda à romana. O Americano é o último que
tasmagórico ... Com anjos nus de três metros ... aparece e o único que fala.
ABELARDOI - A vaI... a! (Gesticula impotentemente)
ABELARDOII - O quê! Quer alguma coisa? Que dê o sinal O AMERICANO - Oh! good business!
de crime? Não! É cedo ainda. Vai querendo!
ABELARDO I - Não ... (Mostra com sinais alguma coisa que TELA
deseja)
ABELARDOII - O telefone! Não. Um copo d'água?
ABELARDO I (Num esforço enorme) - A vela!