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Descolonizar as mentes e os corações: Amílcar Cabral e a ruptura com a razão colonial

DANÚBIA MENDES ABADIA*

O colonialismo buscou desumanizar os povos a quem o imperialismo quer saquear as


riquezas, tornando-os bestas-feras para melhor justificar a violência e o genocídio. Para além
da exploração econômica do domínio territorial, político e social da vida das populações,
marcas mais evidentes do sistema colonizador, a dominação colonial distinguiu-se, sobretudo,
pela negação da condição humana da população colonizada, negação da sua cultura, da sua
filosofia, do seu modo de ser. Por outro lado, nos diz Aimé Césaire, a ação colonial trabalha
para des-civilizar o colonizador em prol da cobiça, da violência e do ódio racial (2010:20).
A mentalidade moderna da Europa representava o continente africano como um
“coração das trevas”, ideia realizada pelo colonizador, na África, apropriada a quem projeta
nos “outros” os seus próprios defeitos, para tentar corrigir, nestes últimos, deficiências
imaginárias. Toda uma mobilização é realizada para construir a representatividade dos
“outros”, assim como o seu nível de humanidade, pois, quanto mais selvagem, mais se
legitimaria sua escravidão. Foi assim que a Europa buscou todos os artifícios possíveis para
impôr a sua conceituação e seu sistema econômico ao mundo. Segundo REIS, “Os países
novos são um vasto campo aberto para as atividades individuais, violentas e assim, as
colônias podem servir de válvula de segurança à sociedade moderna. Esta utilidade, mesmo
que fosse a única, é imensa” (2008:12). E nesse sentido, afirma Césaire, “a ideia do negro
bárbaro é uma invenção europeia”1 (2010:46).

A principal característica da colonização, afirma Amílcar Cabral 2, é a negação do


processo histórico do povo dominado, por meio da usurpação violenta da liberdade do
processo de desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido, os/as camponeses/as
africanos/as foram obrigados/as a produzir matérias-primas destinadas à indústria europeia,
concebida, sobretudo, para climas temperados. Eis o começo da deterioração dos solos pelo

1 Universidade Federal de Goiás, UFG. Doutoranda em História, bolsista da CAPES.


2 Retirar-lhes a possibilidade de desenvolver outra concepção de progresso e desenvolvimento, algo
central na política colonial, é preciso insistir, está relacionado a convencer os povos colonizados de que sua
cultura, tecnologia e modos de viver eram primitivos e selvagens. Importante lembrar também que os povos da
atual Somália já desenvolviam observações científicas no séc IV; a cultura medieval Yorubá apoiava-se, desde
muito, sobre a estrutura conceitual, sobre os “vermes” e os “insetos”, tão pequenos quanto invisíveis. Para mais
informações, ver Coleção História Geral da África, UNESCO, Volume VIII: África desde 1935 (pp. 761-812).
3 Amílcar Cabral foi um importante teórico e prático da libertação africana, responsável pela mais bem-
sucedida adaptação do marxismo crítico e criativo à realidade africana; contra o regime de espoliação colonial
nas ex-colônias portuguesas, Cabral se ergueu com a crítica das armas e as armas da crítica para conduzir à
vitória o Partido Africano da Independência de Guiné-Bissau e Cabo-Verde (PAIGC).

1
abandono forçado das técnicas agrícolas tradicionais em favor da monocultura, agricultura
intensiva e uso de fertilizantes (idem, 2010:764). Ao mesmo tempo que o processo colonial
paralisava o desenvolvimento africano, o seu desenrolar nas colônias tornava materialmente
possível o desenvolvimento científico e tecnológico da modernidade ocidental.

Os povos africanos, nas palavras de Aimé Césaire, foram transformados em


“sociedades esvaziadas delas mesmas, de culturas pisoteadas, de instituições minadas, de
terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de
extraordinárias possibilidades suprimidas” (2010:32). E ainda assim, o colonialismo foi
propagado como uma “dádiva da Europa aos selvagens, o “sacrifício da Europa pela
Humanidade”, o dever da Europa para com as pobres populações negras que não possuem
civilização própria” (DAVIDSON, 1974:18). Além de aclamar para si uma superioridade
moral civilizatória, a Europa ocidental precisou convencer o mundo do seu “pioneirismo”
epistemológico, de que “O ocidente inventou a ciência. Que somente o ocidente sabe pensar;
que nos limites do mundo ocidental começa a tenebrosidade do pensamento primitivo”
(CÉSAIRE, 2010:70).

Afirmar os povos europeus como superiores cientificamente significava esconder “a


invenção da aritmética e da geometria pelos egípcios; da astronomia pelos assírios; química
entre os árabes; racionalismo no Islã quando o pensamento ocidental era pré-lógico”
(idem:72). Isso quer dizer que o progresso científico africano foi retardado, em parte, porque

aos africanos, foi‐lhes imposto esquecerem que, outrora, eles próprios haviam sido
criadores científicos. Mesmo aos Egípcios, inventores da civilização, foi‐lhes
ensinado esquecerem o seu papel. Esta amnésia tecnológica coletiva permitiu
suscitar uma impotência científica coletiva. Ela também favoreceu o profundo
estabelecimento de um complexo de inferioridade técnica junto a numerosos
africanos colonizados da nova geração. O complexo de inferioridade e o complexo
de dependência da África representam os dois lados de uma mesma medalha
colonial (MAZRUI; AJAYI, UNESCO, 2010:770).

A retirada dos povos africanos da história ou a sua presença estigmatizada, o


silenciamento, como partes do processo de domínio colonial, pressupõe a retirada da
autonomia dos povos originários que perderam o controle das terras, da produção; tiveram
suas línguas e sua cultura rebaixadas e inferiorizadas. Para Cheik Anta Diop,

a identidade cultural de qualquer povo corresponde idealmente à presença simultânea de três


componentes: o histórico, o lingüístico e o psicológico. No entanto, o fator histórico parece o mais
importante, na medida em que constitui o cimento que une os elementos diversos de um povo, através
do sentimento de continuidade vivido pelo conjunto da coletividade. O essencial para cada
comunidade é reencontrar o fio condutor que a liga o seu passado ancestral, o mais longínquo
possível. Neste sentido, segundo o autor, o estudo da história permite ao negro recaptar a sua

2
nacionalidade e tirar dela o benefício moral necessário para reconquistar o seu lugar no
mundo moderno (Citado por MUNANGA, 1986:85).

Era preciso legitimar e escamotear as verdadeiras intenções da presença europeia na


África, dizer que faziam o grande sacrifício de levar os costumes “desenvolvidos” da Europa
para “ensinar” a África a ser civilizada, o que é na verdade uma camuflagem para explorar e
lucrar com as riquezas africanas e transferi-las para as metrópoles colonizadoras4. Soma-se a
este processo o papel da Igreja Católica, reivindicando a superioridade religiosa, como diz
Césaire. A igreja funcionou como propagandeadora da civilização cristã no quadro da
exploração e da opressão racial nas colônias. Como nos diz FANON, “a Igreja nas colônias
não chama o homem para o caminho de Deus, senão para o caminho do Branco, do dono, do
opressor” (1961:37). A Igreja Católica, segundo FIADEIRO, sempre tomou a posição do
estabelecimento contra a evolução, da comodidade contra o risco do progresso (…) “A Igreja
foi favorecida com privilégios e domínios que a fizeram enriquecer e estabelecer-se como das
instituições moral e materialmente mais sólidas na sociedade portuguesa” (1974:38).

Essa instituição gozará do monopólio no que se refere a ação religiosa na educação,


sendo responsável pelo enquadramento religioso nas escolas, na educação das mulheres e na
propagação da família como sustentáculo de ordenamento social. Sua principal função na
colonização era a educação dos nativos5; aliás, o sistema educacional é a arma mais efetiva da
política portuguesa de assimilação, pois, é neste setor em que o Estado impõe, em colaboração
com a Igreja, uma cultura política portuguesa, alheando, com isso, os povos da sua própria
cultura; “assim, falseia a imagem do Jesus histórico, do libertador, tornando-o um Jesus-
colonialista” (FERREIRA, 1974:244). Segundo Cabral,
toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As
línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre
apresentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os
conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças africanas
adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem
a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos. A geografia, a
história e a cultura de África não são mencionadas, ou são adulteradas, e a criança
é obrigada a estudar a geografia e a história portuguesas (2013:72).

4 Para mais informações, ver o texto do jamaicano Walter Rodney, Como a Europa subdesenvolveu a
África. Seara Nova, Lisboa, 1975.
5 Para melhor assegurar a sua dominação, o regime de Salazar teve que encontrar aliados. O acordo sobre
as missões, assinado com a Santa‐Sé em 1939, desdobrar‐se‐ia em uma concordata no ano seguinte: as missões
católicas se tornaram o braço do Estado na educação da população africana. Isto não trouxe nenhum efeito maior
ou mais grave a São Tomé e Príncipe e tampouco ao Cabo ‐Verde mas, criou dificuldades constantes para a
Guiné, onde a população, apegada às tradições e reforçada pela importante presença do islã, resistiu a tentativa
de “catolicização” da colônia. As missões receberam alguns subsídios do Estado mas foram obrigadas a financiar
a tarefa à qual elas se haviam proposto − um mínimo de escolarização − contando com os donativos obtidos
junto aos crentes (UNESCO, 2010:76).

3
Como nas colônias dominadas pela França, por exemplo, era ensinado que os
africanos seriam descendentes dos gauleses6. O sistema colonial tentou dissolver a identidade
cultural dos povos colonizados; o papel da escola trabalhou no domínio da mente e do corpo,
em prol de “domesticar todo tipo de sensibilidade considerada como bárbara” (SPIVAK,
2010). Veremos como Portugal se justificou pelo mito de uma nação amiga que levaria à
África a religião cristã e a cidadania portuguesa aos africanos: construiu-se a ideologia da
sociedade multirracial, do paternalismo colonial de reminiscências darwinistas, que assumia
como necessária a presença dos europeus na África, sem os quais os africanos estariam
condenados à estagnação, se não mesmo a barbárie e à extinção. Conforme FERREIRA, “A
discriminação racial está na origem de qualquer expansão do sistema capitalista fora das
fronteiras europeias” (1974:143).

No entanto, Portugal sempre alegou que a sua forma particular de colonialismo seria
isenta de qualquer vestígio de racismo, uma nação 'mais cristocêntrica do que etnocêntrica',
ou como afirma Eduardo Mondlane7, “um povo que se considera mais cristão que europeu”;
um povo que se “mistura aos indígenas”. Para acobertar o regime colonial, para se defender
das críticas internacionais devido sua política colonial, continua Mondlane, “reafirmam a
imagem dos portugueses como não racistas e “cegos à cor”, para argumentar que, como
cidadãos iguais de um Portugal maior, os habitantes das suas colónias não tem qualquer
necessidade de independência” (2011:310). Ao mesmo tempo, Portugal dissipa “a ideia de
que há que não falar em “raça” para se evitar o racismo” (idem:12).
O argumento da comunidade multirracial foi muitas vezes utilizado para encobrir a
segregação racial e perpetuar a dominação. É que, na realidade, de acordo com Cabral, o que
se constatava era uma tendência para a institucionalização de uma espécie de “apartheid à
portuguesa” (SOUSA, 2010:287). Com base na "política de assimilação", ele nos diz que,
Portugal tem vindo a praticar a destruição sistemática dos valores da cultura
Africana nos nossos países. Nós, os africanos das colonias portuguesas,
conhecemos as mentiras, as perversidades e as hipocrisias contidas nessa política
que tem tentado dividir-nos para nos explorar mais e melhor. Sabemos quanto custa
obter um "bilhete de identidade" (prova de assimilação), para fugirmos à desgraça

6 No tempo do Império francês, os gauleses eram apresentados como os ancestrais dos africanos
francófonos; a elite herdeira deste império, sem chegar a tal extremismo, não conferiu prioridade à modificação
dos currículos na educação, educação esta que, na qualidade de instrumento cultural imperialista, exercera em
suas colônias francesas uma ação ainda mais profunda e eficaz, comparativamente ao exercido nas colônias
inglesas ou belgas (UNESCO, 2010:537).
7 MONDLANE, Eduardo. A estrutura social – mitos e fatos. In. SANCHES, Manuela, org. Malhas que
os impérios tecem. Lisboa, Portugal, 2011: 310.

4
de sermos "indígenas" e, ao fim e ao cabo, continuarmos humilhados nas nossas
próprias terras, depois de sermos obrigados a negar a nossa condição de africanos"
(MAC–PAIGC, 1956:7).

Para Portugal, sob comando de um governo fascista desde 1926, colonizar os


“domínios ultramarinos” era “da essência orgânica da Nação portuguesa”; Salazar colocou o
Estado Novo indissociável da manutenção das colônias em África. Portugal construía-se sob o
mito de “missão civilizadora” e o instrumento criado para a “salvação das raças negras” foi o
Estatuto do Indígena, onde o “indígena” era uma categoria de nativos que não eram cidadãos
e que, só de nascer, contraía uma dívida com o Estado português, o imposto da palhota, a ser
pago com o trabalho forçado (TOMÁS, 2007:45-47). A prerrogativa da preguiça inata dos
africanos deveria ser combatida através da transformação do trabalho num preceito legal,
princípio filosófico que esteve na base da criação do estatuto, em que as sociedades foram
divididas em civilizados e indígenas. Os primeiros, 1% da população, por possuírem cultura e
ilustração, usufruíam de direitos semelhantes aos portugueses, são os assimilados. Os
restantes não eram considerados cidadãos nem lhes eram reconhecidos quaisquer direitos
(idem:120).
Nesse quadro, será fundamental observar como se desenvolveu a ruptura
epistemológica que possibilitou a concretização das lutas contra o colonialismo, tendo origem
em uma geração que, ao invés de exigir reformas dentro do sistema colonial, passou a exigir a
independência política como um primeiro passo para a libertação do continente africano. Com
tal exigência, nos diz António Tomás, “a “geração de Cabral” rompia com um certo
compromisso entre os representantes das elites africanas e o Estado Novo salazarista;
começam, pois, a resolver a contradição da geração anterior entre serem portugueses e
africanos ao mesmo tempo” (2007:70).

A partir de 1940, muitos jovens africanos vão para Lisboa; a maioria dos estudantes
provenientes da África eram brancos e vinham de famílias que podiam mantê-los no exterior.
Amílcar Cabral, cujos pais não podiam pagar os estudos quanto mais mantê-lo em Portugal,
fora recrutado por organismos ligados ao Estado colonial. Tanto Cabral quanto os demais
estudantes africanos negros em Lisboa, devido aos poucos recursos financeiros, tinham
pouquíssimas condições de se manterem, vivendo nas condições mais degradantes a fim de
garantir os estudos.

A ideologia de superioridade racial tonificava a sociedade portuguesa, vigorando,

5
inclusive, entre os operários; como consequência, os estudantes africanos negros que viviam
em Lisboa sentiram vir à tona a opressão racista. Se mostrava na prática toda a inversão do
discurso de miscigenação e harmonia racial; Segundo nos descreve Mário de Andrade,

(...) Na sociedade portuguesa, a presença do negro era marginalizada. Havia um


conjunto de preconceitos raciais vivos. “Nós, de fato, não estávamos integrados a
Portugal”. Bastava andar em qualquer rua de Lisboa para perceber isso. Negro
dava sorte. Era objeto de curiosidade, apesar de se vestir como qualquer português:
terno de casimira – geralmente castanho – gravata e chapéu. “As raparigas
tocavam, davam beliscos, tiravam um gosto, como se dizia na época. Qualquer
costureirinha, sem nenhum preconceito, que passasse em grupo, tinha sempre uma
reação quando via um preto. Notar que o preto existe, observar a diferença”
(1976:86).

Neste contexto, Amílcar Cabral, embora convivesse e se socializasse com os seus


colegas brancos do Instituto, é natural que se sentisse bem melhor junto aos estudantes
africanos; com estes, diz Tomás, “Cabral partilhava a mesma sorte e mais profundamente se
identificava” (2007: 61).

O processo de consciência pela libertação do homem africano, na perspectiva de Julião


Souza, viria no final dos anos 1940, e contou com pelo menos três factores favoráveis: em
primeiro lugar, a forte influência da ideologia negritudinista8 de expressão francesa,
nomeadamente com a chegada da Anthologie de la nouvelle poésie négre el malgache de
Leopóld Senghor, em 1948 e, por via delas, das ideias pan-africanistas9. Em segundo lugar, a
consciencialização e a viragem teria sido forçada pelo contexto mundial, pela intransigência
das posições dos movimentos de esquerda relativamente à questão colonial e pela defesa que
faziam da tese da imaturidade das colônias. O último fator se refere à chegada em Lisboa de
estudantes angolanos (Agostinho Neto e Mário de Andrade) que, sendo politicamente ativos,

8 Ao longo da primeira metade do século XX, africanos do continente e da diáspora encabeçaram


movimentos de resistência à assimilação forçada: abria-se um processo de recusa às referências e aos valores
morais, estéticos e modelos culturais brancos. Em contrapartida, a desmistificação do colonizador como o
modelo a ser imitado e, consequentemente a negação da 'branquitude' como modelo universal, impulsionou a
busca pelos valores e símbolos culturais de origem africana. Nesse contexto, despertou-se uma consciência
racial, e, por conseguinte, a disposição de lutar a favor do resgate da identidade cultural esvaecida do povo negro
(…). O alvo do ataque também era “o mundo capitalista, cristão e burguês”. Os jovens escritores defendiam que
o intelectual devia assumir sua origem racial. Além disso, apregoavam a libertação do estilo, da forma e da
imaginação frente aos modelos literários franceses (VER UNESCO, 2010:11).
9 O Pan-Africanismo, de acordo com a perspectiva dos pesquisadores do VIII Vol. Historia Geral da
África, seria resultado de todo o racismo e a subjugação dos povos negros. A negação da estrutura colonial é,
consequentemente, uma reação ao modo como o racismo manifestou‐se de modo particularmente marcante na
maneira pela qual as populações negras do continente foram tratadas. A humilhação e o rebaixamento de que os
africanos negros foram vítimas, por razões raciais, no curso dos séculos, contribuíram a levá‐los a se
reconhecerem mutuamente como “irmãos africanos” (UNESCO, 2010: 11).

6
divulgariam entre os estudantes africanos, as atividades que alguns movimentos civis, como o
ANANGOLA, MNIA e a Liga Angolana, estavam a fazer naquela colônia (2012:527).

Encontrando-se na mesma situação, distante da família, num país frio, tendo de lidar
com o regime policial e com a discriminação racial, os estudantes africanos que se
encontraram em Lisboa foram aos poucos se conhecendo e se envolvendo numa composição
que Mário de Andrade chamou de “A Geração Cabral”. Segundo diz Mário de Andrade, (…)
“Já nessa época, a primeira preocupação que estava latente em nossas conversas – de Amílcar,
Humberto Machado, eu e outros companheiros – era a nossa afirmação como negros” (idem).

A Geração Cabral rompe com o processo de assimilação, e estes estudantes e poetas


africanos, levam adiante as lutas anticoloniais nas suas terras; segundo diz Tomás, “Quando a
Geração de Cabral começa a corresponder-se com as várias organizações africanas sediadas
em Paris, estas superam finalmente as contradições que tinham emperrado o despertar do
nacionalismo na geração que havia precedido: eram africanos e não portugueses”(2012: 68).
Amílcar Cabral, ao longo dos estudos em Lisboa, não se deixou enganar diante às
promessas de identidade oferecidas por Portugal; logo que chegou à capital, passou a conviver
com outros estudantes africanos, numa experiência de troca de conhecimentos, aspirações,
publicações, textos, poemas; próximo ao pan-africanismo e ao movimento negritude, publicou
artigos na revista Présence Africaine10. Cabral, como outros africanos da sua geração, rompia
com os interesses tradicionais dos intelectuais colonizados, trabalhando para a articulação e
organização junto aos seus companheiros do continente. De acordo com Fobajong,

(…) A opção de Cabral, não foi para os valores ou identidade europeus, mas sim, e
numa aspiração instintiva, por uma solidariedade pan-africanista e por uma
identidade africana. Isso foi numa altura em que a identificação com a África, ou a
adoção de uma visão pan-africanista, em Portugal, não era apenas considerada
abominável – era proibida (2012:169).

Portanto, a 'Geração Cabral' vem reconfigurar as relações entre colonizadores e


colonizados, buscando realizar a 'desportugalização' que, para Cabral, era o primeiro passo a
ser tomado, num contexto de exploração colonial em que por muitos séculos os africanos
haviam sido escravizados e “desligados do seu passado africano por um processo de batismo e

10 No ano de 1947, em Paris, foi lançada a revista Présence Africaine, por Alioune Diop, universitário
senegalês, convertido ao catolicismo e durante certo tempo, senador socialista do Senegal. A revista retomava os
princípios do pan‐africanismo e do Primeiro Congresso Pan‐africano. “O periódico procurava sincronizar as
atividades de africanistas e africanos com negros do hemisfério ocidental em uma nova e poderosa configuração
anti-imperialista” (GILROY, 2012:365).

7
conversão que era conhecido por “ladinização”. Antes do seu transporte para e de Cabo-
Verde, eram forçados a renunciar aos seus nomes africanos e às suas práticas religiosas”
(FOBAJONG, 2012:168). Estava em pauta a discussão do Negro enquanto desvinculado do
seu povo originário, advindo do berço da humanidade e que foi, por meio do tráfico e de todo
o sistema de violência colonial, tratado como selvagem, ontologicamente inferiorizado.
Em resposta à negação da modernidade racista e de toda a violência da estrutura
colonial, o movimento negritude e o pan-africanismo são uma reação ao modo como o
racismo desmoronou as bases das populações negras do continente. Assim, “A humilhação e
o rebaixamento de que os africanos negros foram vítimas, por razões raciais, no curso dos
séculos, contribuíram a levá‐los a se reconhecerem mutuamente como “irmãos africanos”
(UNESCO, 2010: 11). Esse processo, ou a reafricanização dos espíritos, como diz Cabral, vai
desaguar na luta por libertação nacional. Foi assim que esses estudantes, afastados das suas
terras, sentem-se mais próximos das suas raízes africanas, a necessidade em libertar-se do
jugo colonial; ou de acordo com Munanga, os estudantes “se convenceram de que a opressão
sofrida não era apenas a de uma classe minoritária sobre uma outra majoritária inferiorizada,
mas ao mesmo tempo a de uma raça, independentemente da classe social” (1986:39).
A 'Geração Cabral' conseguiu desenvolver a ruptura epistemológica que possibilitou a
concretização das lutas contra o colonialismo, pois, ao invés de exigir reformas dentro do
sistema colonial, passou a exigir a independência política como um primeiro passo para a
libertação do continente africano. A 'Geração Cabral', fora da África, pôde conspirar a sua
libertação, porque, ao se encontrar e desenvolver as ideias anticoloniais, voltam à África, não
para colonizar, como queria a Europa, mas para “libertar”.
Assim foi com o próprio Amílcar Cabral, que, dois anos após se formar em Lisboa,
recusou uma vaga de professor no Instituto onde se formou e optou por romper com a lógica
da formação de funcionários do sistema colonial; voltou para Guiné-Bissau, sua terra natal,
contratado pelo Ministério do Ultramar como adjunto dos serviços agrícolas, onde ficou
responsável pela realização do primeiro recenseamento agrícola da Guiné-Bissau. Tal
experiência permitiu a Amílcar Cabral conhecer e lidar com a realidade do povo guineense e
fundamentar todo seu pensamento político, onde era da realidade de seu povo que a luta pela
libertação deveria partir. O conhecimento das realidades africanas, nos diz Sónia Vaz,
adquirido pela sua profissão, as influências recebidas das correntes ideológicas
políticas e culturais que marcaram o mundo na segunda metade do século XX –
marxismo-leninismo, o pan-africanismo, negritude, e a sua actividade diplomática
permitiram que Cabral construísse e desenvolvesse um projecto político-cultural,

8
adaptado ao contexto africano mais concretamente à Guiné e Cabo Verde
(2010:118).

Mesmo depois de formados, os estudantes da geração Cabral não tinham os mesmos


direitos que os cidadãos portugueses brancos. Nesse sentido, responder aos critérios do
assimilacionismo e do embranquecimento, não garantiu-lhes o reconhecimento esperado. Em
Arma da Teoria, Amílcar queixava-se de que um trabalhador “assimilado” ganhava três ou
quatro vezes menos do que um trabalhador europeu, fazendo o mesmo trabalho e, ainda que
tivesse a mesma qualificação, era considerado de segunda categoria. E isso provava que,
mesmo com o discurso da educação e do domínio das línguas europeias como passo para a
ascensão social, o racismo prevalecia. Julião Sousa nos relata que o próprio Amílcar foi
vítima dessa situação quando, pouco depois de terminar os seus estudos, concorreu para um
lugar na Junta de Colonização Interna e foi excluído; a essa altura, Amílcar buscou de
diversas formas conseguir um emprego na África e regressar para iniciar a luta por
independência na Guiné, “mas não foi fácil a Amílcar Cabral conseguir emprego em África”
(2012:163)11. Amílcar Cabral começou a entender que a ascensão a um novo estatuto social,
por via da educação, em nada iria alterar a sua condição de negro no quadro do regime e da
sociedade coloniais. E assim, os/as negros/as da África e da diáspora que haviam assimilado o
branqueamento, não conseguiam fugir do drama da marginalização. Nas suas próprias
palavras:
Portugal tem vindo a praticar a destruição sistemática dos valores da cultura
Africana nos nossos países. Nós, os africanos das colonias portuguesas,
conhecemos as mentiras, as perversidades e as hipocrisias contidas nessa política
que tem tentado dividir-nos para nos explorar mais e melhor. Sabemos quanto custa
obter um "bilhete de identidade" (prova de assimilação), para fugirmos à desgraça
de sermos "indígenas" e, ao fim e ao cabo, continuarmos humilhados nas nossas
próprias terras, depois de sermos obrigados a negar a nossa condição de africanos"
(MAC;PAIGC, 1956:7)12.

Com a ajuda de um conhecido de seu pai, “um alto funcionário de origem cabo-
verdiana”, que interveio em seu favor, em junho de 1952, após muita insistência, conseguiu

11 Sobre essa situação, mais tarde vai escrever que as únicas profissões reservadas aos negros assimilados
eram de criados (que absorvia a grande maioria), assalariados, porteiros, motoristas, operários de segunda
categoria, embora sem poderem entrar em concorrência com o branco, na maioria das colônias (Citado por
SOUSA, 2012:162).
12 De todo esse processo,Cabral recusou a nacionalidade portuguesa, segundo ele: Houve um tempo na
minha vida em que eu estive convencido que eu era português porque assim é que me ensinaram, eu era menino.
Mas depois aprendi que não, porque o meu povo, a História de África, até a cor da minha pela... Temos de ter
paciência, diabo! Não somos meninos, não é? Aprendi que não era português nada, não era português (Citado
por SOUSA, 2011:75).

9
um emprego como engenheiro agrônomo na Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e
Florestais e, em 21 de setembro de 1952 embarcou em Bissau com a sua família (2012:164).
Com isso, regressa ao seu país natal e aí põe o seu saber tecnológico em agronomia ao serviço
da análise das realidades dos guineenses, onde faz o recenseamento agrícola da Guiné no ano
de 1954, o que permite o contato com muitos povos e comunidades africanas.
No seu trabalho de líder e militante do PAIGC, conheceu diversas realidades culturais
num território, povos diferentes que foram a base da guerrilha e da independência. Por
exemplo, o contato que teve com os grupos balanta, fula, mandinga, entre outros, ao longo
dos anos de combate, o levaram a refletir sobre como a luta gerava uma nova cultura de
resistência, de volta às raízes, de trabalho coletivo e autônomo, de ruptura com padrões
tradicionais, sendo portanto o fator cultural um elemento fundamental para a construção do
processo de libertação13. Assim, a libertação nacional era simultaneamente um fato de cultura
e um fator cultural, sendo a resistência cultural a mais efetiva forma de resistência.
A ação do sistema colonial, para Cabral, tanto no âmbito econômico quanto no
cultural, procura acentuar as divisões entre a classe social assimilada e as massas populares,
bem como entre os diferentes grupos étnicos existentes. Nesse sentido, Cabral chama a
atenção do como e porque o elemento cultural de uma sociedade e sua organização política
devem ser considerados a principal arma de reação aos condicionamentos materiais e culturais
de opressão do sistema colonial. Em resposta aos pressupostos coloniais da “incapacidade
político-cultural dos africanos” para cuidar do seu próprio destino e da crença no “valor nulo
de suas culturas e civilizações”, Amílcar Cabral, nos diz Patricia Villen, contrapõe e propõe a
política e a cultura como seu próprio antídoto. Nesse sentido, a sociedade colonizada deve
reaprender a olhar e enxergar as contradições da própria realidade social e econômica,
entender suas causas e agir para sua transformação (2013:17).
Segundo Cabral, “a cultura revela-se como o fundamento do movimento de libertação,
e só podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra a dominação estrangeira as sociedades e
grupos humanos que preservam a sua cultura” (Citado por VILLEN, 2013:167). Esta era
considerada a expressão da natureza orgânica da sociedade, sendo capaz de influenciar a

13 Cabral considerava que nenhuma cultura está pronta, e acabada, ou que seja superior ou inferior a
outra. Acredita que há elementos bons na cultura opressora, assim como questões a serem resolvidas nas
comunidades tradicionais. Da mesma forma que as estratégias do PAIGC tiveram forte influência das lições de
guerrilhas de outras experiências, como o maoísmo, a Guerra do Vietnã e as teorias marxistas, para o contexto
específico da Guiné, contribuindo na atuação do recrutamento e no convencimento ideológico dos diferentes
povos do território.

10
fecundação da história; para Cabral aí está contido os germes da contestação, os fatores de
conflito de determinada sociedade, segundo ele, “como sucede com a flor numa planta, é na
cultura que reside a capacidade (ou a responsabilidade) da elaboração e da fecundação do germe
que garante a continuidade da história, garantindo, simultaneamente, as perspectivas da evolução
e do progresso da sociedade em questão” (Cabral, Citado por VILLEN, 2013:165).
Cabral soube ver a cultura enquanto “emoção do homem perante o cosmos”, como
definiu Aimé Césaire; suas discussões sobre a cultura como ato de libertação levaram-no a
questionar a centralidade da luta de classes como única força motora da história. Como poderia se
falar em luta de classes, ou classe proletária em contextos em que não haviam classes sociais?
Onde a etnicidade tinha muito mais força e as sociedades organizavam-se por outros moldes e
outras bases epistemológicas?
Nesse sentido, José Carlos Gomes dos Anjos, chama a atenção para a forma que
“Cabral vai compondo a realidade a partir da interação das realidades diversas (…) um
exercício epistêmico que leva ao limite, quando se apropria e deforma o conceito de
centralismo democrático para chegar à noção de democracia cooperativa” (2016:246). Para
Cabral era fundamental que nas “zonas libertadas”14 fossem desenvolvidas estratégias que
garantissem a democracia com forte participação popular; defendia um governo com “um
sistema político e econômico ancorado em Assembléias Populares descentralizadas. As
funções do Estado deviam ser estritamente limitadas (…) Cabral chamou isso de democracia
cooperativa” (RUDEBECK, 2012:140).
A experiência na mobilização para a luta nos campos da Guiné-Bissau e em Cabo-
Verde, levaram Cabral a assumir um posicionamento crítico com relação ao marxismo, sem
desconsiderá-lo por completo. Assim, “acabou por acrescentar ao manifesto comunista a defesa
que o nível das forças produtivas é um elemento determinante do conteúdo e da forma da luta de
classes” (LOPES, 2005: 87)15. Significa ainda que os fatores sociológicos são fundamentais para a

14 O movimento de libertação estabeleceu uma estratégia de “zonas de retaguarda”, que realizavam o


reabastecimento de tropas, formação política e militar, ações sociais (…) o que configurou-se num estado
embrionário dentro da colônia. Assim que eles haviam liberado uma zona, eles ali aplicavam a sua política de
libertação: por um lado, eles expulsavam todos os funcionários e comerciantes coloniais, aboliam todos os
impostos e direitos coloniais e punham termo ao trabalho forçado e às plantações obrigatórias; por outro lado,
eles instauraram um novo sistema comercial e criaram escolas e postos de saúde na mata, lá onde antes jamais
houvera, dotando os de pessoal de formação e intervenção em saúde recrutado em meio a homens e mulheres
muito amiúde formados na Europa ou em Cuba. Ainda mais importante, em termos políticos, o PAIGC
implantou uma verdadeira democracia nas zonas libertas. A população foi incitada a eleger comitês
representativos aos quais foram confiadas as responsabilidades administrativas locais (CANALE e BOAHEN,
UNESCO, 2010:221).
15 No caso da Guiné, apesar dos vários estudos realizados e do recenseamento agrícola realizado em

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constituição da identidade, dado que a realidade social, “isto é, a materialidade histórica de
determinada sociedade, é para ele o elemento que confere “forma e conteúdo” à identidade”
(idem:167). Consequentemente, veremos que o discurso da união pela origem e identidade foi
muito mais persistente e eficaz do que o discurso marxista de identificação e consciência de
classe. De acordo com Abebe Zegeye e Maurice Vambe, Cabral entendia o valor da luta de classe,
mas se recusava a desqualificar as lutas relacionadas à etnicidade e o gênero como irrelevantes
para moldar os contornos da cultura nacional, tendo colocado em pauta o debate sobre a crítica ao
patriarcado tradicional africano, onde as questões de gênero marcam algum dos aspectos da luta
que ressignificavam toda a ideia de cultura nacional (UNESCO, 2012: 38). Seguia defendendo a
linha de Fanon, em que a contradição revolucionária principal era a que opunha os povos
dominados aos dominadores, mais do que o proletariado contra a burguesia dos países
colonizadores: “O colono criou o colonizado e é este que está fadado a destruí-lo, libertando-se e
libertando-o” (Fanon, citado por LOPES, 2005: 86).
A guerra do PAIGC foi considerada por vários observadores um dos mais bem
sucedidos movimentos revolucionários do mundo; no entanto, Cabral não viu a independência
realizar-se, pois, nas palavras de Tomás, “foi brutalmente assassinado na noite de 21 de
janeiro de 1973, quando já faltava tão pouco para colher os frutos daquilo que tão dificilmente
e com tanto esforço semeara” (2007: 265).
Paulo Freire publicou um livro com o título Cartas à Guiné-Bissau, em 1977, onde
relata sua vivência nas zonas libertadas, afirmando que (…) o PAIGC “realizara experiências
de alta importância na educação, saúde, justiça, produção e distribuição, com os “armazéns do
povo” (1977:35). O educador brasileiro compartilha um processo de reconstrução pós-
colonial onde a guerra de libertação foi a grande parteira da consciência popular, onde os
processos de luta anticolonial são vistos como o despertar de uma nova mentalidade, num país
que, segundo ele, “fala da luta enquanto o que ela ensinou, exigiu e assim continua num
processo permanente; da luta como fator de cultura” (idem:37). Re-africanizar-se, na visão de

1954, tal não permitira ainda a Amílcar Cabral ter uma ideia objetiva da sociedade social guineense, ao ponto de
saber que não havia “proletariado”, pelo menos no sentido marxista do termo (SOUSA, 2012:321). Portanto, nos
meios urbanos, afirmava Cabral, o colonialismo apenas consentira o aparecimento de uma classe “assalariada”.
Por isso, passou a defender a mobilização no campo, pois, na ausência de um “proletariado” com consciência de
classe, não era possível lutar nas cidades seguindo o exemplo de outros países (idem:322). A tomada de
consciência dessa realidade só veio a acontecer nos anos 60, e tem um marco importante na reunião de quadros
cabo-verdianos, em Dakar, no ano de 1963, mesmo ano em que dá início à guerrilha armada do movimento de
libertação de Guiné-Bissau e Cabo-Verde. O processo africano demonstra que categorias sociais clássicas, como
operariado e burguesia não serviam para a compreensão da realidade africana num contexto onde o proletariado
não podia ser uma classe social porque nem sequer existia em países de economia rural: foi a pequena-burguesia
urbana, formada no Ocidente, quem, dirigiu o combate contra o colonialismo.

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Amílcar Cabral, ou conscientizar-se, segundo Paulo Freire, só se concretiza na prática. As
pessoas assumem um posicionamento crítico diante da realidade, têm condições de, ao longo
da luta desenvolver a teoria necessária tendo em base a realização e os fatores internos de
cada processo.
Para Cabral, era fundamental a formação política ideológica onde a conscientização é
condição da revolução para que as pessoas assumam a reinvenção da sociedade. Por isso, é
urgente uma educação política que conscientize e desfetichize a cultura do colonizador. Tal
processo implica a descolonização das mentes e dos corações. Cabral defende a ideia de que
nenhum povo, mesmo no período pós-colonial, consegue se livrar de seu colonizador
enquanto não se liberta também dos seus referenciais teóricos, de suas premissas, de seus
fundamentos e dos seus paradigmas, enfim, de sua “Razão”. Conseguiu enxergar a
necessidade da libertação cognitiva, da superação da racionalidade imbricada pela
colonização, pois não existe libertação sem a “descolonização das mentes”, como dizia
Amílcar Cabral. Assim, nas palavras de Romão,
a revolução tem de estar presente na própria elaboração da “ontologia” (teoria do
ser), da “gnosiologia” (produção de conhecimento) e da “epistemologia” (teoria
do conhecimento), ou seja, nas elaborações e representações humanas a respeito
dos seres, dos fenômenos e dos processos (2010:15).

Pela própria reinterpretação da teoria marxista feita por Amílcar Cabral, assumindo
com o seu povo o processo de “reafricanização dos espíritos”, foi ele mesmo uma antítese do
processo de assimilação cultural empreendido pelo regime colonial. Na luta travada pelo
PAIGC, sob sua liderança, era fundamental que o povo e os combatentes fossem politizados.
Cabral insistia na importância de todo revolucionário estudar. Dizia ele: “devemos, portanto,
diante das perspectivas favoráveis da nossa luta, estudar cada problema em profundidade e
encontrar para ele a melhor solução. Pensar para agir e agir para pensar melhor” (Cabral,
1974a:15). Era o político motivando o pedagógico.
As reflexões de Cabral sobre a assimilação cultural demonstram que a reafricanização
é o passo pela qual as pessoas dominadas pelo colonialismo possam parar de reproduzir e
ansiar pela assimilação e voltarem-se para a luta pela transformação de sua condição
colonizada. A intencionalidade presente em sua perspectiva perpassava pela educação, o
emponderamento, a mobilização e organização política, a construção popular de uma visão de
mundo base para a revolução.

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