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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

ILANA SUELY DOS SANTOS

MEMÓRIAS NOS CORPOS E LUGARES DE MEMÓRIA: SOB O OLHAR DA


DANÇA DOS CONGOS DE CALÇOLA DA VILA DE PONTA NEGRA

NATAL/RN
2017
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
DEPARTAMENTO DE ARTES

ILANA SUELY DOS SANTOS

MEMÓRIAS NOS CORPOS E LUGARES DE MEMÓRIA: SOB O OLHAR DA


DANÇA DOS CONGOS DE CALÇOLA DA VILA DE PONTA NEGRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
como requisito parcial para à obtenção do título de Mestre em
Artes Cênicas.

Área de concentração: Práticas investigativas da cena:


poéticas, estéticas e pedagogias.

Orientadora: Professora Doutora Teodora de Araújo Alves


3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Santos, Ilana Suely dos.


Memórias nos corpos e lugares de memória: sob o olhar da
dança dos Congos de Calçola da Vila de Ponta Negra / Ilana
Suely dos Santos. - 2017.
131f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio


Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes,
Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Natal, RN, 2017.
Orientadora: Profª. Drª. Teodora de Araújo Alves.

1. Artes cênicas - Dissertação. 2. Dança - Dissertação. 3.


Lugar - Dissertação. 4. Memória - Dissertação. 5. Cultura -
Dissertação. I. Alves, Teodora de Araújo. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU
792
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ILANA SUELY DOS SANTOS

Memórias nos corpos e lugares de memória: sob o olhar da dança dos


Congos Calçola da Vila de Ponta Negra

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial à obtenção de
Mestre em Artes Cênicas.

Orientação: Profª. Dra.Teodora de Araújo Alves

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª. Dra.Teodora de Araújo Alves – UFRN – Orientadora

Profº Dr. Marcílio de Souza Vieira – UFRN

Profº Dr. Jonas de Lima Sales – UNB

Ilana Suely dos Santos – Discente

Natal-RN
2017
5

"Quem se vence a si mesmo é um herói maior do


que quem enfrenta mil batalhas contra muitos
milhares de inimigos." Dhammapada
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AGRADECIMENTOS

A Deus que nunca me abandona e que me cobre sempre com seu manto de luz e
sabedoria! Obrigada Deus por tudo que tu fizeste e farás na minha vida.

Ao meu companheiro de todas as horas, a meu amor, meu amado! Daniel Siqueira
Maya, que embarca comigo nas aventuras e caminhadas da vida.

Aos meus sobrinhos Leandro Müller dos Santos e Emily Rachel dos Santos, por
existirem e serem parte de minha alegria e orgulho. Amo vocês!

Aos meus irmãos Carlos Alexandre dos Santos e José Aldecy dos Santos.

A minha Orientadora Teodora de Araújo Alves, que sempre me acolheu e me


apresentou o universo e os encantos das danças tradicionais. Obrigada por toda
inspiração e pela oportunidade de caminhar ao seu lado.

Ao Mestre Pedro Correia, por todo carinho, confiança e disponibilidade em me


fornecer material para a construção desta pesquisa; e a todo os brincantes dos
Congos de Calçola da Vila de Ponta. A vocês, reverências!! E que a brincadeira
continue!

A Professora Larissa Kelly de O. M Tibúrcio, pelas longas conversas, repletas de


sabedoria e pelo cuidado constante. Namastê.

A Marineide Furtado Campos, pelo carinho, contribuições e trocas de


conhecimentos.

A minha sogra Cenira Siqueira Maya, pela generosidade e todo apoio dado.
7

A Rodrigo Severo, meu amigo, que me acompanhou nesse processo, me


incentivando e trazendo consigo o riso mesmo nos momentos de tensão.

Aos professores do Curso de Dança, Marcílio Vieira e Karenine Porpino, pela


generosidade, pelos risos e contribuições para esta pesquisa.

A Francisco Azevedo do Nascimento, Artista Plástico que me presenteou com um


belíssimo e delicado desenho dos Congos de Congos de Calçola.

A minha amiga Ariane Mendes, por todo apoio, conversas e risos.

Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio


Grande do Norte.
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DEDICATÓRIA

Dedico esta Dissertação aos meus amados pais – Dudinha e


Deca (Josefa Lima dos Santos e José Cícero dos Santos), que
me permitiram estar aqui neste mundo, me nutrindo e
inspirando constantemente de generosidade e amor!
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RESUMO

Esta pesquisa busca investigar as memórias dos corpos entrelaçados aos lugares
de memórias vividos pelos brincantes dos Congos de Calçola da Vila de Ponta
Negra- Natal/RN. Para o desenvolvimento e compreensão da pesquisa, apoiamo-
nos na Fenomenologia de Merleau-Ponty, que é capaz de desvelar o tema, ou seja,
mostrar aquilo que se mostra e não aquilo que parece ser e, para isso,
consideramos o olhar fenomenológico de brincantes da Vila, com ênfase no Grupo
Congos de Calçolas que, ao incorporarem, construírem e reconstruírem seus corpos
e ações cotidianas, lutam pelo reconhecimento e reafirmação da sua cultura.
Transitamos na Vila a partir da experiência enquanto pesquisadora sobre o
fenômeno desde a Graduação em Dança, e visitamos lugares de memória que,
configuram-se como sendo o resultado das construções dos grupos sociais que
determinam o que é memorável e os lugares onde essa memória torna-se
preservada.

Palavras-chave: lugar; dança; memória; cultura.


10

ABSTRACT

This research seeks to investigate the memories of the bodies intertwined with the
places of memories lived by the players of Ponta Negra - Natal / RN. For the
development and understanding of the research, we rely on Merleau-Ponty's
Phenomenology, which is capable of revealing the theme, that is, showing what is
shown and not what it seems to be, and for this we consider the phenomenological
With emphasis on the Congos de Calçolas Group, which, by incorporating,
constructing and rebuilding their bodies and daily actions, strive for the recognition
and reaffirmation of their culture. We traveled in the Village from the experience as a
researcher on the phenomenon since Graduation in Dance, and visited places of
memory that, are configured as the result of the constructions of social groups that
determine What is memorable and the places where this memory becomes
preserved.

KEYWORDS: place; dance; memory; culture.


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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 “ O abraço gigante ” no Morro do Careca 21


Figura 2 Vivência da disciplina Práticas educativas em danças 23
populares
Figura 3 Vivência de dança com o Pastoril da Saudade da Vila de 23
Ponta Negra
Figura 4 Vivência de dança com o Pastoril da Saudade da Vila de 23
Ponta Negra
Figura 5 Cortejo Cultural na Vila de Ponta Negra, 2013 26
Figura 6 Auto da Vila de Ponta Negra, 2009 26
Figura 7 Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia– 28
CIENTEC/UFRN, 2012
Figura 8 Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia– 29
CIENTEC/UFRN, 2012
Figura 9 Mapa da vista áerea da Vila de Ponta Negra 38
Figura 10 Vista da Vila de Ponta Negra na década de 1960 40
Figura 11 Pescadores vendendo seus produtos aos banhistas 42
norte-americanos
Figura 12 Vila de Ponta Negra antigamente 43
Figura 13 Igreja São João Batista, Vila de Ponta Negra 58
Figura 14 Apresentação dos Congos de Calçola no patio da Igreja 62
São João Batista, Vila de Ponta Negra
Figura 15 Rendeiras de bilro da Vila de Ponta Negra 65
Figura 16 A rendeira Dona Maria (fundadora da casa das 66
Rendeiras)
Figura 17 Interior da casa das Rendeiras 68
Figura 18 A noite na casa das Rendeiras 69
Figura 19 Pescadores na praia de Ponta Negra 71
Figura 20 Auto do Morro do Careca 71
Figura 21 Vista do auto do Campo do Botafogo (Google maps) 74
12

Figura 22 e 23 Campo do Botafogo 75


Figura 24 O Conselho Comunitário da Vila de Ponta Negra 77
Figura 25 e 26 Interior do Conselho Comunitário da Vila de Ponta Negra 79
Figura 27 Ensaio dos Congos de Calçola no Conselho Comunitário 80
da Vila de Ponta Negra
Figura 28 Desenho dos Congos de Calçola do Artista Plástico 87
Francisco Azevedo do Nascimento, 2017
Figura 29 Apresentação dos Congos de Calçola em sua estética de 90
cores e movimentos
Figura 30 O Rei dos Congos, do Principe, do Embaixador e da 91
Rainha Ginga
Figura 31 A marcha na dança dos Congos de Calçola 95
Figura 32 Apresentação do Congos de Calçola no SESC/ZONA 95
NORTE- NATAL/RN, em comemoração ao dia do
Folclore
Figura 33 A evolução dos brincantes dos Congos de Calçola 96
Figura 34 Apresentação do Congos de Calçola no SESC/ZONA 96
NORTE- NATAL/RN, em comemoração ao dia do
Folclore
Figura 35 O retorno dos brincantes dos Congos de Calçola 97
Figura 36 Apresentação do Congos de Calçola no SESC/ZONA 97
NORTE- NATAL/RN, em comemoração ao dia do
Folclore
Figura 37 O circulo com movimentos contínuos 98
Figura 38 Apresentação do Congos de Calçola no SESC/ZONA 98
NORTE- NATAL/RN, em comemoração ao dia do
Folclore
Figura 39 Os Congos de Calçola com seus instrumentos dançando 100
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: EXPERIÊNCIAS CONTADAS 15


PRIMEIRA EMBAIXADA: FUNDAMENTOS DE LUGAR, TRADIÇÃO, 31
MEMÓRIA E IDENTIDADE (O LUGAR NO MUNDO E O MUNDO NO
LUGAR DA VILA DE PONTA NEGRA)
SEGUNDA EMBAIXADA: (ENTRE) TONS DO PASSADO E PRESENTE 54
2.1 OS LUGARES DE MEMÓRIA DA VILA DE PONTA NEGRA 56
2.1.1 A Igreja de São João Batista 58
2.1.2 A Casa das Rendeiras 64
2.1.3 O Morro do Careca 70
2.1.4 O Campo do Botafogo 73
2.1.5 O Conselho Comunitário 77
2.1.6 A Escola Municipal São José 81
TERCEIRA EMBAIXADA: OS CONGOS DE CALÇOLA DA VILA DE 84
PONTA NEGRA: Olhares que pintam e (com) partilham histórias
3.1 OS CORPOS BRINCANTES 101
QUARTA EMBAIXADA: CONSIDERAÇÕES FINAIS 107
QUINTA EMBAIXADA: REFERÊNCIAS 110
APENDICE 117
ENTREVISTAS
14

INTRODUÇÃO: EXPERIÊNCIAS CONTADAS

Fonte: Acervo do Grupo de dança da UFRN 1 - Espetáculo Copyright, 2012

1
O grupo de Dança da UFRN, integra um projeto de extensão permanente da UFRN, atualmente
Coordenado pela Profª Doutora Teodora de Araújo Alves. Em 2012 , participo deste grupo, me
possibilitando assim, vivências, criações e conexões com a dança contemporânea a partir de
aprendizagens sistematizados na construção de um processo criativo em dança, que resultou no
espetáculo Copyright.
15

A Vila de Ponta Negra, Natal/RN é um lugar que abriga marcas culturais de


múltiplos saberes e práticas poetizadas nos corpos sujeitos que festejam dançando,
cantando, gesticulando, resistindo e persistindo, aspirando assim, o reconhecimento
e a valorização de suas tradições. Essas marcas estão presentes na bela paisagem
que circunda a vila, nos lugares de memória, ou seja, nos espaços que guardam
recordações de experiências em arte e cultura, tecidas na coletividade.
Além de possuir um dos mais belos cartões postais da nossa cidade – o
Morro do Careca, que corteja e encanta natalenses e turistas do mundo inteiro. Essa
comunidade é detentora de um riquíssimo conjunto de manifestações dançantes de
cultura tradicional – Boi de reis, Lapinha, Coco de roda, Pastoril, que através dos
corpos brincantes que quando dançam, evocam narrativas memorialistas, imbuídas
em meio a gestos festejados, no canto, no orgulho dedicado ao lugar, na bravura, na
resistências e persistências, desses sujeitos que pela oralidade transmitem de
geração a geração suas tradições.
Para nos contar os lugares de memória e dos corpos, onde transitam
mestres e brincantes, elegemos a dança dos Congos de Calçola, como fonte
impulsionadora, que por meio de lembranças e memórias nos ajudaram a refletir e
entender as configurações espaciais e culturais ocorridas nesse lugar ao longo do
tempo, ou seja, traremos o passado da Vila de Ponta Negra, como foi vivido e
consequentemente vivenciado pelos sujeitos da comunidade.
A escolha dos Congos de Calçola se deu primeiramente por laços afetivos de
amizades, desenvolvidos no contato com os brincantes no decorrer da nossa
participação no Projeto de Extensão Encantos2 da Vila, o qual nos permitiu
estabelecer de confiança e solidariedade; e também, por ser uma das manifestações
mais antigas e expressivas presente no lugar, logo, ela nos dará material necessário
para nos guiar a concretização da pesquisa, sendo filtrada e reconstruída pelo olhar
da dança dos Congos de Calçola da Vila de Ponta Negra .

2
O Projeto Encantos da Vila, tinha como objetivo contribuir com a sistematização, divulgação e
reafirmação da arte e cultura da Vila de Ponta Negra em Natal/RN, evidenciando a produção dos
artistas dessa comunidade e oportunizar as manifestações artísticas sejam realizadas no espaço em
que as mesmas são produzidas como uma forma de incentivar o aprendizado de novos artistas e
divulgar, para outros moradores, suas práticas culturais (ALVES, p. 13, 2010).
16

Para o desenvolvimento e compreensão da pesquisa, apoiamo-nos na


Fenomenologia de Merleau-Ponty, que é capaz de desvelar o tema, ou seja, mostrar
aquilo que se mostra e não aquilo que parece ser e, para isso, consideramos o olhar
fenomenológico de brincantes da Vila, com ênfase no Grupo Congos de Calçolas
que, ao incorporarem, construírem e reconstruírem seus corpos e ações cotidianas,
lutam pelo reconhecimento e reafirmação da sua cultura.
Dialogam com essa dissertação autores como Maurice Halbwachs (2006),
Nora (2006), Alves (2010), Certeau (1994), Ligiéro (2011), Cascudo (2002), Santos
(2008), Merleau-Ponty (2014), dentre outros, que evidenciam a temática estudada,
tanto na Arte, na Cultura, nos estudos geográficos, na Antropologia, na
Fenomenologia e na Educação.
Fizeram parte do processo de elaboração da pesquisa, algumas questões
norteadoras, a saber: Que lugar a dança dos Congos de Calçola ocupa na Vila de
Ponta Negra? Que dança é esta vivida nesse lugar? Que aspectos do lugar é vivido
pelos brincantes? Quais os lugares de memórias da Vila? Como esses sujeitos
brincantes se relacionam com esses lugares de memória? Que corpo é esse? Como
a comunidade constrói essa memória?
A dissertação está sistematizada em quatro capítulos que se integram
fenomenologicamente, além da introdução e as considerações finais. Na primeira
embaixada3 exponho o embasamento teórico, apontando o conceito e a importância
do lugar, tomando por base as modificações ocorridas a partir do fenômeno da
globalização. Na segunda embaixada, abordaremos os (entre) tons do passado e
presente da Vila de Ponta Negra, a partir dos lugares de memórias apontados,
situados no vilarejo ( a Igreja de São João Batista, a Casa das Rendeiras, o Morro
do Careca, o Campo do Botafogo, o Conselho Comunitário e a Escola Municipal São
José) sob o olhar dos brincantes dos Congos e os moradores mais antigos.
Para a terceira embaixada, buscamos trazer a brincadeira dos corpos
brincantes, presente nos Congos de Calçola, que nos convida a dançar, cantar e
festejar suas tradições por meio de narrativas e vivências significativas em arte e

3
É uma dramatização em que diversos personagens dialogam em tom de luta, basicamente
aparecendo o Rei, o General, o Embaixador, o Secretário, o Príncipe, o Cabo da Guarda, Duque de
Caxias, Capitão-bombeiro e Guarda-coroa” (Girardelli, 1978, p. 65).
17

cultura, sendo uma das manifestações mais antigas ainda resistente na comunidade.
Já a quarta embaixada, tecemos nossas considerações finais, retomando com maior
ênfase os objetivos, as questões de pesquisa, a metodologia e, finalmente, dada a
importância da dança dos Congos de Calçola para a cultura da nossa cidade, que
por fim, recomendamos a manutenção desse folguedo como atividade cultural nas
escolas da Vila de Ponta Negra e em seu entorno.
Assim, a partir de agora, abro um espaço nessa dissertação, para
compartilhar com vocês, leitores, os inúmeros caminhos percorridos por mim, das
dúvidas e certezas resplandecidas, de sonhos e desejos, que me abraçaram
calorosamente, desde a infância, até este momento no qual me encontro, pois minha
experiência e encanto pela cultura tradicional, estão presentes desde a infância,
uma vez que até os sete anos de idade eu morava, juntamente com meus pais, em
uma vila localizada na Zona Oeste da cidade do Natal. Nessa Vila residiam apenas
pessoas da nossa família, eram tios e tias e minha avó morava em outra vila mais
acima.
Quando a família toda se reunia, tinha muita música e dança. Lembro-me que
minhas primas mais velhas, cantavam e dançavam, ensinando as crianças, o samba
e o forró na sala de casa. E assim, fomos construindo um ritual diário, onde as
brincadeiras e os fazeres se enlaçavam espontaneamente, e aos poucos esses
costumes seriam responsáveis por ditar minhas escolhas futuras.
Os festejos juninos eram os mais esperados e comemorados, tanto por
adultos quanto pelas crianças da minha família. Minha avó passava horas a fio
fazendo comidas típicas com a ajuda de filhas e netas. A noite seguia com muita
comida, fogueira, música em todas as casas do bairro. Eram noites alegres, e ao
final todos agradeciam como em preces sussurradas, por meio de olhares que
brilhavam tanto quanto os fogos no alto, por um ano bom, por um ano com chuva,
pela comida e família reunida.
E assim, essas marcas culturais vivenciadas e celebradas no corpo por meio
dessas identificações construídas na infância, com a música e a dança, foram sendo
fortalecidas dentro de mim e seguindo meus caminhos ou vice-versa.
As vivências e o contato com outras danças, iniciaram quando minha família
se mudou para outra área da cidade. Nessa época havia um clube de mães, onde foi
18

desenvolvido um projeto de danças que tive com a street dance e jazz. Esse foi o
primeiro contato de forma mais sistematizada em dança.
As oficinas ocorriam em média duas vezes por semana – quartas e sábados.
Participar desse projeto foi bastante significativo, pois me permitiu vivenciar e
experimentar outros modos de se fazer e construir em dança.
No período do Ensino Fundamental, as danças tradicionais tornaram a
atravessar meus caminhos, apesar da forma pontual apresentada. As danças
ocorriam apenas em épocas de festas na escola, como São João, dia do folclore e
festejos de final de ano.
No São João as coreografias giravam em torno das quadrilhas, na qual toda a
escola participava. Havia também algumas professoras que construíam outras
apresentações de dança como a Ciranda, o Coco de roda e o Xote da qual toda as
turmas participavam, a professora da turma ficava responsável por desenvolver uma
dança ou teatro. Geralmente eu participava das danças, que por vezes era uma
Ciranda, um Coco de roda e o Xote.
Em meio a prática, a professora da turma dava uma pequena pincelada na
parte teórica, sobre as danças apresentadas. Desse modo, esses saberes iniciais,
teorizados em sala, através de conceitos, me possibilitaram aos poucos, o
entendimento necessário naquela época, dada a pouca idade.
Posteriormente, até o final do Ensino Médio, a dança se fez presente nos
festejos juninos, era tradição eu participar de uma quadrilha próximo da minha casa.
Os ensaios começavam logo após o carnaval, havendo muita dedicação por parte
de todos. Lembro-me que era ótimo ver a alegria das pessoas quando soltavam a
música, o corpo todo se enchia de alegria, gestos, cantos, uma verdadeira explosão,
era um transbordamento, um mix de vivacidade e orgulho no rosto de cada
integrante.
Em 2005 ingressei no Curso de Licenciatura em Geografia pela UFRN. Desde
muito nova, gostava de admirar os vários tipos de paisagens que se apresentavam
para mim: prédios antigos se misturando aos novos empreendimentos, os belos
cenários de praias vistos em TV e revistas, como as pessoas se movem e interagem
no espaço, os grandes centros culturais urbanos etc.; tudo isso me encantava e me
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motivava a seguir em frente descobrindo tudo que eu podia no mundo. E nesse


momento, eu queria descortinar o mundo através da Geografia.
O Curso de Geografia me possibilitou vários aprendizados e vivências, dentre
elas, lecionar no Estágio Supervisionado Obrigatório, a disciplina de Geografia do
Rio Grande do Norte, na Escola Estadual Profº. Paulo Pinheiro de Viveiros em 2008,
para o Ensino Médio. Lecionar nessa escola, foi certamente uma experiência
gratificante, repleta de recordações afetivas, uma vez que, foi nela que cursei parte
do Ensino Fundamental- 5º e 6º ano. Além de lecionar essa disciplina, também dava
aula de Geografia e Cultura do Rio Grande do Norte, essa última fez parte de um
Estágio Remunerado, oferecido pela Secretaria de Educação do Natal. Acessar pela
primeira vez esse mundo da cultura, na condição de Professora, me proporcionou a
construção de outros mundos, outros conhecimentos, que dilatava olhares,
curiosidades, ansiosos por (re) conhecer e mostrar em sala de aula, a relevância
existente no mundo da Arte e Cultura local.
No final do primeiro semestre, organizei juntamente com os alunos do 6º ano
uma aula de campo, no Corredor Cultural da nossa Cidade- Igreja de Santo Antônio,
mas conhecida como Igreja do Galo; Memorial Câmara Cascudo, Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Solar Bela Vista e Capitania das Artes. Os
alunos adoraram essa experiência, que para eles era nova. Muitos nunca tinham
sequer saído da Zona Norte, área onde a Escola se localiza. Alguns alunos olhavam
com estranheza, já outros ficavam maravilhados com tanta história que o lugar
revelava, a cada explicação dada, a cada sorriso, a cada pergunta proferida pelos
alunos.
Segundo Raasch (1999), atualmente a motivação dos alunos para a
aprendizagem é o centro das atenções no processo educacional, uma vez que este
reconhece que a aprendizagem é um processo pessoal, reflexivo e sistemático que
depende do despertar das potencialidades do educando, de maneira sozinha ou
com a ajuda do educador. Diante disso pude perceber como é importante que o
professor estimule a capacidade de motivação de aprendizado do aluno,
desenvolvendo consequentemente a inteligência crítica sobre temas das mais
variadas questões.
20

Assim, essa experiência proporcionada pelo Curso de Geografia, me fez


perceber e reaproximar do que verdadeiramente me fazia bem, que era esse
envolvimento com a Arte e Cultura. Percebi também, que o tempo, me proporcionou
contemplar e retribuir um pouco, esse lugar- a Escola, que tanto fez por mim na fase
escolar, lugar onde aprendi valores e hábitos que carrego comigo, onde brinquei,
onde fiz amizades para sempre ou por semanas. Poder voltar e experimentar o outro
lado, agora como Professora, foi certamente um momento marcante, na minha vida
como cidadã, fazendo valer a pena cada passo dado nessa longa caminhada,
chamada vida.
Considerando ainda, as minhas experiências no campo acadêmico da
geografia. As disciplinas que mais despertaram meu interesse durante o curso,
foram as que interligavam Geografia, Arte e Cultura. Nesse mesmo período,
descobri um campo da Geografia – Geografia Cultural, que buscava entender e
responder questões sobre as interações/interpretações humanas, sua diversidade
cultural produzidas e modeladas no espaço.
Pensando dessa forma, Claval (2007) questiona:
Como os homens percebem e concebem seu ambiente, a sociedade e o
mundo? Por que os valorizam mais ou menos e atribuem aos lugares
significações? Que técnicas os grupos adotam, no sentido de dominar e
tornar produtivo ou agradável o meio onde vivem? Como imaginaram,
atualizaram, transmitiram ou difundiram o seu know-how? Quais são os elos
que estruturam os conjuntos sociais e como são legitimados? De que
maneira os mitos, as religiões e as ideologias contribuem para a dar um
sentido de vida a ao contexto onde ela se realiza? (CLAVAL, 2007, p. 11).

Essas questões lançadas por Claval (2007), nos mostram de forma


indiscutível as influências que a cultura exerce sobre todos os aspectos da
existência humana. E aos poucos essas mediações tecidas entre o campo
Geográfico e a Cultura, foram ganhando formas e sentidos, mediante reflexões e
projeções que só alargaram olhares contemplativos para esse ramo do
conhecimento.
Em 2007, conheci o espaço da Vila de Ponta Negra, com o movimento SOS
Ponta Negra, que denunciava a construção de um espigão localizado próximo ao
Morro do Careca, ameaçando grandes impactos ambientais e paisagístico, esse que
é tido pela mídia e a área turística como o mais belo cartão postal da nossa cidade.
21

Nesse ano, pude participar de pequenas intervenções, juntamente com um grupo de


pessoas, por meio de panfletagem na CIENTEC/UFRN 4 com amigos e ações como
“o abraço gigante” no morro do careca (Figura 1).
Figura 1 – O “abraço gigante” no Morro do Careca

Fonte: https://sospontanegra.wordpress.com/. Acessado em 12/05/2017.

No ano de 2008, meu último ano no Curso de Geografia, cursei a disciplina de


Conscientização Corporal, no Departamento de Artes da UFRN. Essa disciplina me
proporcionou aprendizagens e vivências corporais que fazem parte da nossa cultura,
contribuindo assim, para construção de um corpo por meio do conhecimento de si e
das emoções. A partir daí passei a cursar outras disciplinas que iam além do campo
geográfico, na tentativa de ampliar e enxergar outros horizontes que me
proporcionassem possibilidades e vivências culturais artísticas.
Nesse mesmo ano, a Vila de Ponta Negra cruzava novamente os meus
caminhos. A convite de um amigo, participei de um Projeto de Criação do Instituto
Amigos da Vida da Empresa K&M, que propunha uma intervenção no interior da
Igreja São João Batista, com crianças da comunidade.
Esse Projeto tinha como objetivo, a exibição de vídeos como fio condutor para
propor discussões e conscientização das crianças e pré-adolescentes em situação

4
Semana de Ciência, Tecnologia e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte acontece todos os
anos, expondo os principais fundamentos das atividades científicas, tecnológicas e culturais da Universidade,
buscando, dessa forma, uma interface com a sociedade.
22

de risco. No dia em que estive presente, foi exibido o filme Happy Feet, em seguida
ocorreu uma roda de diálogos com uma psicóloga.
Quatro anos estavam se passando, na Licenciatura em Geografia e eu não
tinha nada definido se continuaria seguindo na geografia ou não, logo o curso foi
concluído. Naquele momento não pensava em tentar o mestrado, pois eu sentia que
algo me faltava até alcançar essa etapa. Na tentativa de responder a essas
inquietudes e incertezas quanto a minha realização profissional, decido fazer
vestibular novamente para Licenciatura em Dança, pela UFRN. Com isso me afasto
um pouco do campo da Geografia e busco desbravar essa nova área, na qual os
ventos me levavam lentamente.
Em 2009 entrei no Curso de Dança da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, logo após a conclusão da Graduação em Geografia Licenciatura, foi uma
alegria enorme. Na Graduação em Dança, apesar das inúmeras vivências dançantes
que tivemos ao longo de todo o curso, todavia, as manifestações da cultura
tradicional, eram as que mais me moviam, sentidas intensamente, de mente e
coração abertos, como quem abre uma janela e de súbito é consumida pela beleza e
frescor de um dia tão claro.
Quando entrei no Curso de Dança, determinei que iria participar ativamente
das atividades e oportunidades que a Universidade proporcionava aos alunos. Na
metade do primeiro período do Curso, busquei me envolver em algum Projeto
relacionado a Arte e Cultura, como forma de conhecer e vivenciar as danças.
Com a disciplina Práticas Educativas em Danças Populares, ministrada pela
Professora Teodora de Araújo Alves, pude conhecer, vivenciar e me aproximar ainda
mais da Cultura Popular. Entre práticas e teorias, tomei conhecimento das danças
tradicionais presentes na Vila de Ponta Negra: Bambelô, Congos de Calçola,
Pastoril, Coco de Roda, Lapinha, Boi de Reis. Imediatamente fiquei maravilhada
com tanta cultura presente em um único lugar da nossa cidade, que com seus
gestos, vozes, cores e bailados recontam e vivificam suas tradições carregadas de
significações.
As imagens abaixo são registros de memórias e vivências desenvolvidas na
disciplina de Práticas Educativas em Danças Populares, 2009. A figura 2 refere-se a
uma composição coreográfica que uniu a Ciranda com as danças juninas.
23

Figura 2 – Vivência da disciplina Práticas Educativas em Danças Populares

Acervo da Pesquisadora, 2009.

As figuras 3 e 4 são de uma vivência de dança com o Pastoril da Saudade da Vila de


Ponta Negra.
Figura 3 Figura 4

Fonte: ALVES, 2010, p. 54.


24

A disciplina nos contemplou com danças tradicionais de vários lugares,


principalmente do nosso estado, como as danças presentes na Vila de Ponta Negra.
As oficinas foram momentos onde poderíamos sentir e experimentar no corpo os
saberes ancestralizados pelos mestres, que são verdadeiros compêndios dessa
cultura, que por meio da oralidade e corporeidade revelam orgulho e devoção,
trançados na simplicidade e originalidade dos que fazem parte da manifestação
dançante.
Na oficina do Pastoril, ministrada pela Mestra Dona Helena Correia,
podemos saborear as histórias contadas por ela, como quem ouve de ouvidos e
olhos curiosos, atentos, as histórias da avó, contadas a noite na calçada da porta de
casa. Cada relato contado por Dona Helena, desenhava um sorriso afetuoso na face
dos alunos, subitamente quadros de bravura, companheirismo e de festas surgiram
em nossa mente, ora causando espanto, pelo modo rústico e simples de vida que
levavam a comunidade da Vila de Ponta Negra, e por outras vezes as recordações
da Mestra, nos enchiam de admiração dessa gente tão guerreira, que por anos a fio
são responsáveis por lutarem e manterem viva suas tradições.
E assim, as disciplinas do Curso de Dança me possibilitaram ampliar e (re)
conhecer as diversas possibilidades de dialogar como meu corpo, dentre outras
coisas manifestar motivações e criações, revelando assim uma rede que hoje dão
sentido aos meus estudos.
A partir daí busquei me envolver com a cultura tradicional definitivamente, foi
quando descobri que no Departamento de Artes, a Professora Dra. Teodora de
Araújo Alves, coordenava um Projeto com Danças Tradicionais, desenvolvido na Vila
de Ponta Negra. Rapidamente entrei em contato com ela, manifestando o interesse
em fazer parte desse Projeto.
Ainda no primeiro período do Curso de Dança Licenciatura, participei como
bolsista voluntária no Projeto de Extensão da UFRN, o Encantos da Vila de Ponta
Negra, com as visitas frequentes na Vila, pude conhecer um pouco mais desse lugar
e de suas histórias envolvidas com a arte e a cultura. Era um questionamento
constante, quando adentrava e me perguntava, como pode um lugar como esse,
detentor de tanta riqueza cultural, espalhados em cada canto da Vila, em cada
construção antiga, nas falas e histórias e causos contados pelos mestres e
25

brincantes, ser tão pouco conhecido e desvalorizado pelos natalenses? Tomei por
base minha própria experiência, já que só tomei conhecimento das manifestações
presentes na Vila, no momento que curso a Graduação de Dança/UFRN.
Assim, como bolsista de Extensão, adentro definitivamente no espaço e
cotidiano dos moradores da Vila de Ponta Negra. Na Vila, encontrei com o Boi de
Reis, a Lapinha, o Coco de Roda de Mestre Severino, o Bambelô de Caubi e seu
Pai, o Pastoril de Dona Helena, os Congos de Calçola, juntamente com os
Conguinhos, as Rendeiras de Bilro. Além dessas manifestações tradicionais, está
presente no espaço da Vila, o grupo de percussão Resistência da lata, grupos de
capoeira sanfoneiros e os contadores de histórias.
Costumeiramente, nos reuníamos toda segunda feira a noite. O Projeto
promovia encontros no Conselho Comunitário de Ponta Negra, onde a Profª e
Coordenadora Teodora de Araújo Alves, os bolsistas, os brincantes e a comunidade
se reuniam para discutir, organizar e executar ações que tinham como intuito
valorizar, divulgar e ratificar a identidade marcada nos corpos sujeitos que vivenciam
essas manifestações tradicionais do lugar. Para isso, além do suporte logístico e
burocrático, o Projeto nutria a comunidade e os brincantes com oficinas teatrais e de
dança, ministradas pelos alunos de Graduação/Licenciatura em Teatro, dança e
música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
As oficinas tinham por objetivo desenvolver e acompanhar processos de
criação artística, como o treinamento corporal, para os atores-brincantes da
comunidade e oficinas musicais. Com o contato intensificado através das
reuniões/diálogos e dos encontros promovidos pelo Projeto Encantos, buscamos
primeiramente entrelaçar os saberes já tatuados nos corpos dos atores da
comunidade, que dialoga e vivência a cultura tradicional desde seu surgimento, com
o olhar e o corpo trazidos pelos alunos da Universidade, propondo assim, uma
interligação entre os saberes (os saberes dos brincantes e do acadêmico), para que
resultasse em um processo que fizesse sentido principalmente para os brincantes da
comunidade.
Com essas observações, partimos para o (re) conhecimento desses traços
corporais, para só assim ressignificar essas vivências e incorporações culturais do
corpo que pesca, que tece suas rendas, do corpo agricultor, do corpo que surfa, do
26

corpo que simplesmente, canta, dança e interpreta. O Projeto organizava junto com
a comunidade três grandes eventos ao longo do ano: o São João da Vila, em
comemoração aos festejos juninos, o Cortejo Cultural (Figura 5) que ocorria no mês
de agosto, em comemoração do folclore, percorrendo as principais ruas da
comunidade.
Figura 5 - Cortejo Cultural na Vila de Ponta Negra, 2013.

Foto: Lourena Kallahan, 2013.

O terceiro evento ocorria em dezembro, com a realização de um espetáculo,


o Auto da Vila de Ponta Negra (Figura 6).

Figura 6 - Auto da Vila de Ponta Negra, 2009.

Fonte: Acervo do Projeto de Extensão Encantos da Vila


27

O Auto da Vila, mobilizava toda a comunidade (com cânticos, danças e


personagens) fazendo elos entre o nascimento de Jesus Cristo, e aos momentos de
significância de bravura e fé compartilhados, e vivenciados pelos moradores do
bairro.
No Projeto de Extensão Encantos da Vila de Ponta Negra, permaneci por
dois anos consecutivos. As vivencias tecidas nos diálogos, histórias ocorridas nos
bancos e ruelas da vila, me permitiram viajar entre narrativas de proezas, bravuras,
saberes, resistências, romances, galanteios, labutas, honra e identidade que me
inspiraram admiração e reconhecimento em tudo que foi vivenciado nesse espaço
lúdico da nossa cidade.
Em 2012, participo como bolsista do Circuito artístico-cultural Mestre Zé
Correia5, também coordenado pela profa. Teodora Alves e inserido dentro do Projeto
de Extensão Escambo de Saberes 6organizando e estruturando ações como
palestras, seminários e oficinas oferecidas aos alunos das escolas públicas de Natal,
levando a dança, a música, a arte plástica produzida dentro da Universidade,
aproximando e construindo diálogos por meio de produções em arte e cultura a
Universidade da comunidade.
Partilhar desse projeto grandioso, que nos proporcionou como futuros
docentes que somos, das múltiplas linguagens que estiveram constantemente
envolvidos no desenvolvimento do mesmo, privilegiando principalmente o
intercâmbio de saberes e vivências educativas artísticas e culturais, num fluxo

5 O Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia é uma ação articulada entre a UFRN (através do NAC,
PROEX, DEART, EMUFRN), o MEC/SESu e as Secretarias de Educação do Município e do Estado e
tem como foco de atuação contribuir com a formação, a difusão o intercâmbio e a fruição da arte
produzida na UFRN, nas escolas públicas de Natal/RN e nas Comunidades onde as escolas estão
localizadas. Tal ação se configura a partir das seguintes atividades: 1. Apresentações de projetos da
UFRN e de grupos artísticos das escolas e dos bairros onde estas se inserem. 2. Realização de
oficinas e cursos que versem sobre temas artísticos relacionados as demandas de cada escola. 3.
Rodas de conversas entre artistas, professores, estagiários dos cursos de Artes Visuais, Música,
dança e Teatro acerca dos processos criativos que serão apresentados pelos artistas-acadêmicos e
artistas locais. Em 2012 o Circuito homenageará o mestre dos congos de Ponta Negra (dança
tradicional do RN) Sr. José dos Santos Correia. Diante do exposto, convidamos as turmas de
estágios em Dança (circuitozecorreiaufrn.blogspot.com.br).
6 O Escambo de Saberes, é um programa proposto pelas Pró-Reitorias de Extensão e de Graduação
da UFRN, tem como objetivo desenvolver uma proposta de ação interinstitucional, tomando como
referência o estágio supervisionado de formação de professores nas áreas de Teatro, Dança, Música
e Artes Visuais da UFRN, como desencadeador de um processo mútuo de formação, contemplando
os licenciandos nessas áreas e os professores de Artes da rede pública de ensino (PROEX/UFRN).
28

harmônico entre os fazeres artísticos produzidos no ambiente das escolas públicas


selecionadas pelo programa, e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Além desse compartilhamento, o programa mostrou a importância e o
reconhecimento do Mestre Zé Correia dos Congos de Calçola da Vila de Ponta
Negra, falecido em 2009, como uma das figuras que foi durante muitos anos,
responsável por estar à frente não só da sua manifestação dançante, mas de todas
as expressões presentes na Vila de Ponta Negra, levando sua sapiência
ancestralizada de geração a geração, bem como na sensibilidade desse mestre, que
até hoje vive na lembrança saudosa dos brincantes da Vila.
As imagens abaixo revelam um pouco das experiências vivenciadas no
Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia. Na Figura 7, observa-se dentro da
CIENTEC em 2012, as crianças das diversas escolas públicas de Natal, puderam
conhecer de trem alguns dos espaços físicos da UFRN e os lugares aonde a feira
estava desenvolvendo atividades e mostras culturais.

Figura 7. Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia- CIENTEC/UFRN, 2012.

Fonte: Arquivo do Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia, 2012.

A Figura 8, retrata uma oficina de dança no Departamento de Artes da


UFRN, com apreciação de dança do GDUFRN – Grupo de Dança da UFRN
29

(compostos principalmente pelos alunos do Curso de Licenciatura em Dança),


seguida de oficina ministrada pelos componentes do mesmo, aos alunos.
Figura 8 - Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia- CIENTEC/UFRN, 2012.

Fonte: Arquivo do Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia, 2012.

Ao final das oficinas, apresentações, dos passeios onde pudemos mostrar


um pouco dos espaços e do que é a UFRN para os alunos, percebíamos nos
olhares curiosos, de quem descobre algo novo e encantador, no sorriso largo que o
objetivo do Projeto tinha sido alcançado. Esse era um dos momentos mais
aguardados por nós que fizemos parte da equipe, sentirmos que de certa forma
pudemos contribuir para futuro dessas crianças e adolescentes, mostrando que
dentre os diversos caminhos que a vida nos mostra, existe um caminho que só a
educação é capaz de nos revelar, que nos mostrar um campo de múltiplas
possibilidades por meio do pensar, do questionar-se, da criticidade construtiva, da
independência, dos atravessamentos, da ação e das descobertas que nos permitem
ultrapassar fronteiras.
Desta forma, vivenciando em sala de aula como aluna do Curso de
Licenciatura em Dança, dos Projetos e Programas de Extensão, do próprio
encantamento com as histórias e danças tradicionais da Vila de Ponta Negra, decido
me debruçar e pesquisar sobre as manifestações dançantes desse lugar, que
30

respira cultura desde suas origens, como foco para meu TCC, intitulado O Lugar da
Dança: Configurações Culturais da Vila de Ponta Negra, defendido em 2013.
Em 2015, dois anos após a conclusão da Graduação do Curso de
Licenciatura em Dança/UFRN, decidimos continuar investigando o espaço da Vila de
Ponta Negra, por enxergar na comunidade, um campo múltiplo e complexo, que
tanto tem a mostrar e ensinar, sobretudo aos pesquisadores que buscam
compreender os sentidos e significados estabelecidos nas relações entre as danças
tradicionais e o lugar onde está inserida a manifestação dançante, influenciando e
ao e ao mesmo tempo sendo influenciado pelo lugar. Tendo isso em vista esse fluxo,
neste mesmo ano consigo a aprovação na Pós-Graduação em Artes Cênicas, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, concretizando assim, um sonho
antigo, que é o de me tornar uma pesquisadora do campo das Artes.
Com o desejo de que essa dissertação, seja um material relevante para
alunos, professores e pesquisadores que buscam conhecer e entender a cultura
tradicional, como ponte para aprendizagens e saberes educacionais, convido-os a
continuarem fazendo comigo esse caminho pelos fundamentos do lugar, a tradição,
memória e identidade da Vila de Ponta Negra, carregando nossos corpos nessa
história.
31

PRIMEIRA EMBAIXADA: FUNDAMENTOS DE LUGAR, TRADIÇÃO, MEMÓRIA E


IDENTIDADE (O LUGAR NO MUNDO E O MUNDO NO LUGAR DA VILA DE
PONTA NEGRA)

Ao longo do tempo, o conceito e a importância do lugar, tem sido assunto


bastante discutido e recorrente nas múltiplas áreas de conhecimento, principalmente
a partir das mudanças ocorridas com o fenômeno da globalização, que é certamente
uma das forças mais poderosa economicamente em vigência. Com a inserção da
globalização, percebemos que a atual sociedade vivencia o mundo da
fragmentação, e da instantaneidade, alicerçadas na lógica capitalista que gera uma
ruptura com a ideia de continuidade que nos liga com o passado. Com isso, a
sociedade passa a adotar novas dinâmicas a partir de elementos culturais e
econômicos variados e geradores de novas dinâmicas de vida em sociedade,
Segundo Santos (2000), “a sociedade contemporânea experimenta o mundo
da mobilidade, da vertigem da velocidade e da fluidez”, no qual é exigido que o
homem moderno procure constantemente manter-se inserido e conectado a esse
novo mundo, fazendo com que o mesmo consuma uma quantidade e uma variedade
muito grande de informações, impondo consequentemente, uma fruição superficial.
Associado à ideia de imediato, tempo real, instantaneidade e comunicabilidade,
esses processos resultam de um novo posicionamento no modo de agir, viver e
pensar das sociedades que se encontram inseridas nesse contexto.
Na era da informação, são muitos os conhecimentos demandados para se
interagir na complexa rede que implica e enreda cada cidadão. Para tanto, é
necessário aprender, experimentar e criar para sobreviver. Essas práticas culturais
apresentam uma forma singular de elaboração da visão de mundo de um povo.
Evidenciam estados de corpo impregnados de memória, tradições e que traduzem
uma estética própria, resultante da reinterpretação de elementos lúdicos e ritual-
religiosos do grupo (GOMES, 2007, p. 176).
Dessa forma, na nova sociedade global que influencia e é influenciada pelas
tecnologias, nos questionamos sobre qual o verdadeiro sentido de manter
preservada sua cultura, bem como a importância dada ao lugar aonde ocorrem
essas. Uma vez que os sujeitos dançantes carregam em seu corpo sua história,
32

memória, identidade/identificações, suas tradições, marcas culturais construídas a


partir da interação com o mundo, com o outro e com sua comunidade.
Assim, a sociedade foi estabelecendo novos padrões de comportamento,
mudando o modo de viver, pensar e sentir o lugar. Essas mudanças se deram
também no campo das relações sociais dos sujeitos e sua identidade.
No que se refere a identidade, G. H. Mead e C.H. Cooley (1975), nos diz que
ela é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num
diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses
mundos oferecem.
A identidade não significa necessariamente a incapacidade de relacionar-se
com outras identidades, ou abarcar toda a sociedade sob essa identidade. Mas, as
relações sociais são definidas vis-à-vis as outras, com base nos atributos culturais
que especificam a identidade. (CASTELLS, 1999, p. 57 e 58).
Dessa forma, a cultura está intimamente ligada à ideia de identidade, de
modo que podemos pensá-la como uma rede de significações próprias do contexto
vivido pelas pessoas de diferentes lugares do mundo. Rede essa que pode ser
também entendida como o espaço onde ocorrem as relações, experiências e
práticas sociais, permitindo à sociedade estabelecer e desenvolver a capacidade de
criar elementos que permitem a própria sociedade de se reconhecer. Sob esse
enfoque, Shukman apud Santaella (1996) define, assim, os domínios da cultura:

[...] A cultura é a totalidade dos sentidos de significação. Através das quais


o ser humano ou um grupo particular, mantém a sua coesão. Seus valores
de identidade e sua interação com o mundo. Esses sistemas de
significações usualmente referidos como sendo sistemas modeladores
secundários (ou a linguagem da cultura), englobam todas as artes, as várias
atividades sociais, assim como os padrões de comportamento, más também
os métodos pelos quais a comunidade preserva sua identidade (mitos,
história, sistemas de leis e crenças). Cada trabalho particular de atividade
cultural é visto como um texto gerado por um ou mais sistemas (SHUKMAN
apud SANTAELLA, 1996, p. 28).

Para nos contar as modificações ocorridas no espaço, elegemos a dança


dos Congos de Calçola, uma das manifestações mais antigas ainda presente e
persistente na Vila de Ponta Negra. A dança dos Congos de Calçola é uma dança
dramática de influência africana que possui, dentre os elementos desencadeadores,
33

a coroação dos Reis de Congo; cortejos e rais. Seu enredo é a representação de


uma embaixada da Rainha Ginga (reminiscências da Rainha Nzjinga Nbandi, Rainha
de Angola, falecida em 17 de dezembro de 1663, soberana africana e defensora da
autonomia do seu reinado contra os portugueses), que ao se deparar com a
embaixada do seu primo, Henrique Rei Cariongo, inicia toda a dramaturgia vivida
pelo embaixador, o general, o Rei, o príncipe, o secretário, Ministro, a Rainha Ginga
e os vassalos em busca da conquista pela ocupação de terras.
A Rainha Ginga, como ficou conhecida no Brasil, foi uma soberana do
Congo, figura histórica emblemática, habilidosa, guerreira, resistente e
revolucionária, que lutou contra a opressão sofridas pelos escravos, com as
incursões de tropas portuguesas e holandesas. Encontramos na figura da Rainha
Ginga uma forte presença do empoderamento feminino, que criticava os valores e
subjugação sofridos pelos negros com as invasões estrangeiras, atraindo assim, um
grande número de escravos que se tornaram soldados fieis em suas batalhas.
Selma Pantoja (2014, p.115) acrescenta que: “As narrativas de tradição oral
do povo mbundu descrevem a rainha Nzinga Mbandi (Rainha Ginga) como temida
pelos seus súditos e inimigos, e foi vencedora das batalhas mais estupendas contra
os europeus”.
Conforme dados históricos, a Rainha Ginga, possuía uma incrível habilidade
bélica, por esse motivo costumava liderar os exércitos. Kwononoka (2014) elenca as
principais batalhas que ela liderou, bem como o nome dos aliados dela.

Batalha de Ngolomen-a-Kaita (nome de um soberano aliado da rainha;


Batalha de Senga a Kavangaen, 1946. A rainha enfrentou 20 mil soldados
portugueses, do Ngola Ari de Kabuko já Ndonga e emcapasseiros (soldados
africanos com armas de fogo). A rainha aliou-se com os sobas Ifamuto e
Kakulo Kayenda. A rainha foi derrotada; Batalha de Lumbo em terra de
Kakulo Kahoji. A rainha contou com o apoio do Ntotila Nkanga a Lukeni, os
portugueses foram derrotados; Batalha de Ilamba a 1 de agosto de 1648
contra o exército de Luanda. Morreram todos os oficiais portugueses, o
capitão-mor Filipe Ngola Ari, filho Fo Ngola, rei do Ndongo; Batalha de
Wandu, onde os portugueses foram igualmente esmagados
(KWONONOKA, 2014, p.2014)

Nesse fragmento relatado por Kwononoka, observamos que a Rainha Ginga


era detentora de um excelente espirito militarista, o que lhe garantiu sair vitoriosa de
várias batalhas.
34

Na dança dos Congos, a representação do embate se dá durante a


passagem das tropas da rainha pelas terras do rei, ocorre o inesperado, a morte do
príncipe Sueno, filho do rei Cariongo (ALVES, 20101, p. 138). A transmissão de
conhecimento, ensino-aprendizagem das danças tradicionais da Vila de Ponta
Negra, tem suas formas baseadas na oralidade e gestualidade. Essas formas ou
processos podem se efetivar quase que indiretamente, através do ver e imitar por
parte da pessoa que quer aprender a dançar, método esse baseado na tradição.
Segundo Hall (2010, p. 87),

Tradição é a transmissão oral ou em forma de narrativas de lendas e


valores (sejam eles espirituais, religiosos, morais, éticos, etc.) de uma
geração para a próxima; uma herança ou elo entre elas. É uma mescla
entre lembrança, memória, costume e ideal conhecida e/ou praticada.

Isto não quer dizer que a tradicionalidade de uma cultura seja algo estático,
cristalizado no tempo e no espaço “ao contrário, significa possibilidade de uma
ligação entre o passado e o presente, entre gerações passadas e gerações
presentes e futuras” (ALVES, 2006, p.74). As tradições evoluem e se transformam
de acordo com as necessidades de cada sociedade, elas influenciam e são
influenciadas pelos avanços advindos da modernidade, sem perder a sua essência.
Contudo, é através dos corpos brincantes que dançam, cantam e contam a
história do seu lugar e sua própria história, que observamos uma manifestação
autêntica, carregada de significados, dos corpos dançantes. Viana (2009) evidencia
esses corpos, quando fala dos corpos brincantes do Bumba-meu-boi, os quais:

São corpos que se deixam injetar pela dança, agem sobre outros corpos
gesticulam, giram, saltam, cortejam seu objeto estético, colocam em relevo
sua sensibilidade, atuam sobre a sensibilidade do outro, buscam sensibilizá-
lo, persuadi-lo. Pelos seus corpos compartilham ideias, transcendem essas
ações em seus ritmos e apresentações (VIANA, 2009, p. 82).

As Manifestações ou folguedos guardam em si características do sagrado e


do profano, características da festa apresentando particularidades singulares pela
sua pureza e autenticidade, pois mesmo quando eventualmente adotam certos
modelos coreográficos estranhos ao seu meio, conseguem absorver essas
influências exteriores, mantendo sua integralidade cultural, imprimindo suas próprias
características e respeitando a realidade local.
35

Vila de Ponta Negra é o lugar que se transforma em palco principal para os


brincantes7 realizarem suas brincadeiras8, uma vez que esse lugar para os
moradores mais antigos é sinônimo de pertencimento, um campo de ludicidades,
identidade, vínculos afetivos, memória coletiva, e saberes que são compartilhados
pela comunidade. A vila de Ponta Negra é um espaço onde o lúdico é a brincadeira,
dançada por crianças, adultos que brincam, imaginam e (re) criam suas
representação pessoais, produto das relações tecidas entre os sujeitos, a natureza,
revelados corporalmente. Assim a Vila de Ponta Negra é conhecida como um lugar
de resistência, pois é um dos poucos lugares da cidade onde podemos encontrar
resquícios das manifestações populares (ALVES, 2010).
No que se refere as danças tradicionais, nesse caso, os Congos de Calçolas
da Vila de Ponta Negra, objeto da nossa pesquisa, o lugar é visto como sinônimo de
luta e resistência, campo de brincadeiras, de canto e danças, festas e celebrações,
noção de coletividade, memória afetiva, pertencimento, de uma tradicionalidade e
identidade construída no passado e vivenciada no presente.
Observamos nesse lugar a existência de um sujeito que não está
cristalizado, por fazer parte de uma manifestação dançante, mas sim, um corpo que
é plástico, histórico, social e resistente, uma vez que, esse lugar é símbolo de luta e
resistência, buscando manter viva suas tradições e costumes, coadunando
constantemente com os acontecimentos de um mundo contemporâneo tecnológico,
tornando um sujeito resiliente que se molda e muda a sua realidade e as dinâmicas
em que encontra-se no mundo moderno, agindo, reagindo e interagindo com o seu
meio, tornando-se sujeito-protagonista de sua própria história e de sua comunidade.

As manifestações artísticas presentes na Vila de Ponta Negra, como a


pesca artesanal em jangadas, a alimentação, as rendas de Bilro e,
sobretudo, as danças, com as dos Congos de Calçola, mostram que, ao
serem produzidas dentro de um contexto social, estão inseridas num
espaço/tempo de memórias que se mantêm vivas e ativas, em plena
dinamicidade, nutrindo-se do imprevisto e da novidade. Processo dinâmico
que evidencia saberes, transmitidos por mestres e aprendizes, repassados
de geração a geração (CANELLA apud ALVES, p.109).

7 Brincantes são os integrantes do folguedo, que brincam e participam ativamente da manifestação,


com o compromisso de manter a brincadeira e levar até o público.
8 Brincadeiras são aquelas brincadeiras antigas e que são passadas de geração para geração

mantendo suas regras básicas de origem.


36

Pensando a dança dos Congos de Calçola como parte viva da memória e


sendo uma das principais partes que compõem o legado cultural existente na cidade
do Natal, vimos essa manifestação de tradição como um autêntico campo de
conhecimento no que se refere a dança e ao teatro, uma vez que essa dança se
caracteriza como uma dança baseada na dramaticidade de luta e resistência em
defesa de um reinado, de seu território.
Dessa forma, percebemos que essa dança não está presente nessa
comunidade casualmente, visto que assim como na sua dança dramática de
batalhas e lutas, essa comunidade trava uma disputa para manter viva e preservada
alguns lugares da Vila de Ponta Negra, como o Campo do Botafogo, que antes
servia de espaço de lazer e diversão da comunidade, desde 1951. A partir de 2003,
esse espaço vem sendo alvo de especulação imobiliária, que certamente trarão
resultados negativos, como a exclusão social e o aumento da violência.
Esse espaço de diversidade cultural e de memórias, existente na nossa
cidade, é detentora de um valioso Patrimônio Cultural Imaterial, de saberes que se
perpetuam e resistem ao longo do tempo, através de seus mestres, como ressalta
Ligièro (2011), tratando da importância dos mestres como elementos de sustentação
da performance africana, os quais são

Popularmente, depositários de uma filosofia, de uma compreensão


cosmológica peculiar e guardiões (“velha guarda”) do conhecimento da
liturgia transmitida oralmente pelos africanos trazidos como cativos ou por
seus descendentes (LIGIÉRO, p. 113, 2011).

Nesse sentido, a Vila de Ponta Negra é um lugar de memórias, que nos


revela múltiplas paisagens, experiências em arte e cultura centenárias, como as dos
Congos de Calçola que está presente na comunidade a mais de cem anos. Os
lugares de memória são movidos por valores criados e formados por um grupo que
compartilham identificações e interesses comuns, resultando em ações e
contradições ao longo do tempo, funcionando assim como, um mecanismo de
ratificação e permanência dos laços tecidos entre os indivíduos em épocas distintas.
Dessa forma, buscaremos no passado, nas histórias acerca dos lugares de
memória do espaço urbano da Vila de Ponta Negra, relatados pelos brincantes e
moradores da comunidade, para entender a significância desses lugares para a
37

comunidade, que tem como base, vivencias em Arte e cultura. A maioria desses
lugares de memória estão presentes de forma atuante na vida da comunidade como:
a Igreja São João Batista, a Casa das Rendeiras, entre outros lugares que sofreram
modificações ao longo do tempo, sendo seu acesso restrito como o campo do
Botafogo e o Morro do Careca.
Os lugares de memória da Vila de Ponta Negra, se torna palco de histórias e
relações de identificação construídas pelos brincantes e moradores que que se
imbricam e se apropriam desses espaços. Resultando também, em campo de
resistência, lutas e poder compostas por pequenas formas de apoderamento. Ainda
sobre o conceito de lugar, Tuan (1975) considera que, “Lugar é um centro de
significados construídos pela experiência”
Desse modo, entendemos que esses habitantes carregam consigo registros
corporais advindos de sua historicidade, de sua cultura, de sua forma de ser e existir
no mundo (ALVES, 2010). Trata-se de corpos-sujeitos presentes num espaço
sociocultural fértil que, ao mesmo tempo, produzem registros neste corpo pescador,
agricultor, brincante, artesão. Afinal, como nos diz Alves (2006):

A presença do homem no mundo se dá através do corpo. É nele, como


espaço primeiro de comunicação, que são escritas as vivências de cada
um. E São corpos que existem e se comunicam, criam histórias na vida e a
história da vida de cada um. Portanto, é a partir de sua existência corpórea
que o ser humano percebe e é percebido, que age e interage com a
realidade existencial. Entender essa condição de corpo no mundo pode nos
levar a perceber que somos sujeitos encarnados e, portanto, incorporamos
tudo àquilo que vivemos (ALVES, 2006, p. 52).

Apesar de observarmos os deslocamentos dos moradores da Vila de Ponta


para residirem com suas famílias em outras localidades da cidade, também notamos
outros sujeitos chegando a se afastar do perímetro urbano da cidade, em busca da
melhoria nas condições de qualidade de vida como moradia, segurança, mas esses
sujeitos não cortam definitivamente os vínculos afetivos com o lugar, uma vez que
foi nesse espaço que eles viveram a maior parte de sua vida, um cenário carregado
de histórias para contar e recontar, de amizades, de coletividade, espaço das
brincadeiras e festas, lugar de danças, orgulho, apesar de não ser o mesmo da sua
infância, devido às mudanças ocorridas ao longo do tempo.
38

As tradições ficaram tatuadas nas memórias, no tempo e no espaço de cada


nativo; fazendo com que eles sentissem orgulho de dançar, de fazer suas
brincadeiras no palco da Vila, pois só assim retomam as memórias da sua infância,
através do encontro, da reunião com o outro, no intuito de manter viva a sua
tradição.
Ressalte-se, portanto, que originalmente, as vilas são pequenos
conglomerados habitacionais, localizados em áreas urbanas ou no seu entorno,
sendo que, no Brasil, as vilas surgiram no final do século XIX (HERMIDA, 1963). Em
Natal, por exemplo, as vilas surgem no final da década de 60, ano em que se
iniciaram também transformações nas paisagens urbanas, implementando, assim,
novos caminhos para a modernização e o desenvolvimento de uma economia
capitalista.
A Vila de Ponta Negra está situada a quinze quilômetros do centro de Natal,
na zona Sul da cidade e a um quilômetro da praia de Ponta Negra, onde está
localizado o Morro do Careca, um dos principais cartões postais da nossa cidade,
como demonstra a Figura 9 abaixo.
Figura 9 – Vista aérea da Vila de Ponta Negra

Fonte: Google Eart, 2017. Adaptada pela Autora. Acessado em 28/04/17.

Hoje, esse pequeno núcleo é guardião de uma riqueza cultural inestimável,


com mais de 300 anos de história ainda pouco conhecida pelos natalenses, que
apesar das mudanças ocorridas ao longo do tempo, como das suas paisagens,
39

guardam em suas memórias e de seus antepassados, as lembranças da arte e da


cultura vivenciadas nesse lugar, entre ruas, becos e vielas, encontramos sujeitos
que apesar dos processos urbanos e tecnológicos, pelo qual vem esmagando a vila,
que luta para manter viva, no espaço-tempo, a memória cultural, suas tradições
artísticas e dançantes, sendo considerado um dos poucos lugares da nossa cidade
em que podemos encontrar resquícios de cultura e tradição.
Até o século passado, a Vila de Ponta Negra era praticamente habitada por
agro pescadores, artesãos, contadores de estórias, mestres e brincantes dos
inúmeros folguedos, dentre eles os Congos de Calçolas, uma das manifestações
mais antigas do vilarejo, a qual elegemos para (re) contar através das memórias dos
brincantes, a importância da Vila como lugar de síntese de cultura tradicional e das
novas configurações ocorridas no lugar.
A organização espacial e as relações socioculturais da Vila de Ponta Negra
já não são mais as mesmas. Essa paisagem foi sendo modificada desde a década
de 1980, com a urbanização e o crescimento turístico do bairro de Ponta Negra,
local onde a Vila está inserida, transformando Ponta Negra, consequentemente a
Vila de Ponta Negra em vitrine para o turismo, deixando de ser um lugar ante
habitado por pescadores, artesãos e brincantes das múltiplas manifestações
existentes na comunidade desde o surgimento da comunidade.
E ainda é símbolo de espaço artístico, poético, de alto valor histórico,
envolvido por cenários naturais; é também guardiã de registros de culturas
genuínas, sendo um dos poucos lugares da cidade, onde podemos encontrar uma
comunidade produtora de manifestações tradicionais, que persistem e resistem ao
longo do tempo. Esse pequeno povoado era denominado de Vila de São Jorge
(MACHADO, 1989), ou Vila dos pescadores. Posteriormente, passou a ser chamada
de Vila de Ponta Negra.
Ao considerar o surgimento da Vila de Ponta Negra, Cascudo (1999) informa
que está, teve sua origem em um povoado, formado por pescadores, a qual surgiu
nas dunas que margeiam a praia homônima e é considerado um dos mais antigos
núcleos habitacionais de Natal.
Uma informação importante é que, não existe uma data precisa da fundação
desse povoado. Relatos antigos citam a área já no longínquo ano de 1633 (Figura
40

10), por ocasião do desembarque das tropas holandesas no Rio Grande do Norte.
Em 1847, uma lei estadual desapropriou todo o terreno onde ficava a vila dos
pescadores, tornando-a de utilidade pública. Em 1858, foi criada, na vila, a primeira
escola fundamental para meninos, a qual se tornou mista em 1895 (SOUZA, 2008).

Figura 10 – Vista da Vila de Ponta Negra na década de 60

Fonte: Manoel de Oliveira. 2008.

Devido a inexistência de registros oficiais, que comprovem uma data precisa,


quanto a formação da Vila, historicamente, nos pautaremos a partir de
relatos/memórias incorporados pelos moradores, jornais e artigos de historiadores e
folclorista do Rio Grande do Norte, como Câmara Cascudo, Deífilo Gurgel e Itamar
de Souza.
Em documentos antigos, Cascudo (1999) diz que esse povoado foi ocupado
pelas tropas holandesas, em 1633 e clementino (1995) relata que Natal foi palco da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), modificando os paradigmas, econômicos e
culturais da população que estava acostumada a uma vida pacata e sem grandes
novidades no seu cotidiano.
Um novo universo lentamente foi sendo construído nesse espaço, que de
certa forma possibilitou indícios significativos para (re) pensar a vida e os anseios da
população natalense. Nesse período, os natalenses vivenciaram duas situações
que se cruzavam notavelmente, de um lado os espaços da cidade foram tomados
por novas mudanças nas estratégias de vida, a cultura e os hábitos dos americanos,
41

trazidas para cá e tomadas para si pelos sujeitos locais como seus, o aumento na
produção do emprego; do outro lado o aumento no contingente populacional
promoveu a inflação e escassez dos alimentos, aumento da prostituição e aluguel.
Com aculturação9 entre natalenses e norte-americanos, a cidade do Natal
foi ganhando novos ares e fôlego, tecendo uma amalgama cultural refletida e
percebida nos costumes e espaços da cidade, delineando definitivamente novas
variáveis de cunho urbano.

[...] A cidade não dissocia: ao contrário, faz convergirem, num mesmo


tempo, os fragmentos do espaço e os hábitos vindos de diversos momentos
do passado. Ela cruza a mudança mais difusa e mais contínua dos
comportamentos citadinos com os ritmos mais sincopados da evolução de
certas formas produzidas. A complexidade é imensa. A cidade é feita de
cruzamentos. [...]. (LEPETIT, 2001, p. 141).

Esses cruzamentos, ou seja, as interações ocorridas em Natal, foram aos


poucos deixando para trás os ares provincianos até então, surgindo assim, um novo
espaço com uma economia diversificada, tomando feições de cidade dinâmica. Com
os seus costumes e olhares, os americanos, em horas vagas, costumavam
aproveitar e a explorar as praias locais, como Ponta Negra, até então pouco
conhecida pelos próprios moradores de Natal. A praia de Ponta Negra, tornou-se um
dos destinos preferidos para os militares, onde eram promovidos eventos nas
margens da praia, com intuito de entretenimento para os americanos, com serviços
de barzinhos, cantinas, que oferecendo aos banhistas, militares e membros das
elites locais, equipamentos de praia, jogos, material para leitura e escrita (SMITH
JUNIOR, 1992, p. 183).
Com isso os moradores – pescadores e artesãos, viram uma forma de
aumentarem sua renda financeira, descendo até a praia, demonstrando e vendendo
seus produtos aos banhistas americanos, que ficavam encantados com os sabores e
fazeres do lugar como mostra a figura 11 abaixo.

9Aculturação. A aculturação é o nome dado ao processo de troca entre culturas diferentes a partir de
sua convivência, de forma que a cultura de um sofre ou exerce influência sobre a construção cultural
do outro.
42

Figura 11 – Pescadores, vendendo seus produtos aos banhistas

Fonte: Jaecy, 1950.

A esse fato histórico, um jornal A República noticiou,

[...] um serviço de cantina foi estabelecido, possibilitando aos banhistas


ótimo atendimento. Com a praia aberta a qualquer hora, eram servidos
sanduíches e bebidas frias. Cadeiras de praia, esteiras e ainda
espreguiçadeiras estavam disponíveis para os usuários. [...]. Agora as
atividades desse programa estariam sendo introduzidas em Ponta Negra
pelo Serviço Móvel do USO. (A REPÚBLICA, Natal, p. 8, 1994).

E assim, explorando e contemplando as belezas naturais da Zona Sul da


cidade do Natal, os norte-americanos descortinaram e se encantaram por um dos
núcleos habitacionais mais antigos da nossa cidade. A Vila de Ponta Negra, um
pequeno vilarejo, que vivia sobre a proteção das dunas e do mar, reduto de
pescadores, rendeiras, mestres e brincantes.
Os nativos10 também se encantaram com os norte-americanos, seu modo de
falar e suas vestimentas. As moças do vilarejo começaram a se enfeitar e a ficar nas
janelas, sonhando com aqueles moços altos e bonitos.
Nessa época, os moradores da Vila experimentavam, uma verdadeira
comunhão entre si e a natureza. As noites com céu cintilante e brisa fresca o tempo
todo, no alto do Morro do Careca, uma das melhores vistas da nossa cidade, era
palco para os brincantes e suas brincadeiras. Eram grupos que se encontravam para
festejar e comemorar do Ano Novo e o Dia de Reis. A comunidade toda vivenciava o

10 Chamamos de nativos, aqueles que nasceram na Vila de Ponta Negra.


43

sentimento e sentido de coletividade e identificação, juntos, cantavam, batucavam e


dançavam suas tradições.
Na Vila antiga (Figura 12), as relações em sua maioria, era fortalecida por meio
dos laços de parentescos e amizades, no qual buscam nas manifestações a coesão,
a interação e a organização, compartilhando códigos comuns à sua identidade. Pois,
no estar-junto, ou seja, inserido nessa solidariedade de base é que os indivíduos
usam de sua inteligência para se reapropriarem de sua identidade e cultura.
Figura 12 – Vila antiga

Fonte: web - blog papejerimum

A cultura e a arte sempre atravessaram o cotidiano da comunidade da Vila


de Ponta Negra, nos quintais, nas ruas, becos, casas, com suas danças tradicionais,
rendeiras tecendo fios que se entrelaçam nos bilros, nos revelando sonhos e
esperanças, mestres detentores de saberes milenares que ultrapassam a barreira do
tempo. Esse lugar de práticas artísticas e culturais, que vivenciavam os moradores
antigamente na Vila de Ponta Negra, possibilitou aos sujeitos (re)criar hábitos
múltiplos de vivenciar, pensar, sentir, falar, expressar sentimentos, saberes, sentidos
da vida individual e coletiva.
Com a construção da primeira via de acesso, de um chafariz localizado atrás
da igreja e implantada energia elétrica, a comunidade da Vila foi recebendo
moradores que compravam casas próximas a praia para passar o verão com sua
44

família, no desejo de uma melhor qualidade de vida, cercada em outras ocasiões, os


piqueniques organizados por famílias no final de semana, foram ocupando os
espaços da Vila, em meio aos moradores, acostumados com a vida tradicional e
simples estabelecidas no lugar. Em nota sobre a bela paisagem presente na Vila e
sua importância histórica, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo –
SEMURB relata que,

A vila de pescadores, lugar de veraneio de natal do passado, possui uma


das vistas mais bela da cidade, o Morro do Careca. Existem referências,
datadas do século XVII, sobre a praia de Ponta Negra, cita alguns
documentos com este ter sido local de desembarque de tropas holandesas
(PMN/SEMURB, 2009).

As intervenções mais significativas em Ponta Negra e, consequentemente, na


Vila de Ponta Negra, iniciam-se no final década de 1970 e início dos anos de 1980.
Essas mudanças inesperadas, ocorridas com o novo modelo econômico vigente no
país, visavam a urbanização do espaço por meio da construção dos conjuntos
habitacionais e a expansão imobiliária, como gerador de capital.
Com essa nova padronização estrutural dos espaços se via no turismo um
meio para o desenvolvimento e crescimento econômico, principalmente nas áreas
litorâneas localizadas na zona sul da cidade de Natal. Nos anos que se seguiram,
grandes investimentos foram injetados em Ponta Negra pelo poder público e
privado, como a criação do projeto da Via Costeira, financiada pelo turismo e a forte
especulação imobiliária presente no lugar. Contudo, a Vila de Ponta Negra não é
incluída nesses roteiros e investimentos, mas com o tempo, foi se transformando em
área turistificada (FURTADO, 2005), o que mudou definitivamente as configurações
socioculturais e econômicas existentes na Vila.
A princípio, essas mudanças ocorridas no espaço físico e social
expressaram-se em repercussões inesperadas para os moradores da Vila de Ponta
Negra, que tiveram de se acostumar com as inserções de novos habitantes no seu
cotidiano. Com a inclusão de novos moradores na Vila de Ponta Negra, a maioria
com poder aquisitivo mais alto e a diversidade cultural, antigos moradores e os
imigrantes passam a compartilhar o mesmo espaço físico.
Com o aumento no fluxo de pessoas, vindo de diversas partes de áreas
circunvizinhas e do país, atraídos pelo lugar que ainda guardava em sua essência
45

ares de interior, cercado de dunas e um mar que oferece água morna o ano todo.
Gradativamente muros altos foram cercando as residências, estabelecimentos
comerciais de alto padrão, como restaurantes, farmácias, mini shoppings de
artesanatos, barzinhos, hotéis, prédios residenciais de alto padrão, pousadas e uma
grande quantidade de construções voltadas para alugueis de temporada. Essa
configuração instaurada no lugar, desencadeou no fenômeno urbano da
gentrificação.11
Assim, o espaço da Vila de Ponta Negra, que até então era área pouco
conhecida e valorizada, torna-se um dos lugares mais disputados da nossa cidade,
onde os nativos e pessoas de alto poder aquisitivo, passam a ocupar e usufruir do
mesmo espaço.
Esta encruzilhada, se movimento gerado pelos sujeitos que passam a
circular nesse espaço considerado símbolo de tradicionalidade, de reminiscências
profundas construídas coletivamente, de pertencimento, (com)partilhamentos da
nossa cidade, aos poucos vão imprimindo novos ritmos e parâmetros
relevantes/pertinentes para/estabelecidos organicidade.
Inevitavelmente, essas configurações ocorridas na Vila influenciaram de
forma significativa as singularidades e identidade da comunidade que gradualmente
foram sendo desconstruídas, para abrigar novas realidades dinâmicas,
socioculturais e econômicas, transformando-se de lugar simples para uma área
complexa em sua estrutura e nas relações desenvolvidas pelos sujeitos.
Ainda no que se refere a inserção de pessoas vindo de fora, observamos
que os antigos moradores, aos poucos foram sendo esmagados pelos grandes
empreendimentos voltados para o turismo, como prédios e muros altos com suas
cercas elétricas, para as áreas localizadas mais distante da praia. Muitos dos
moradores venderam suas casas, que se localizavam próxima a praia, local que

11 A Gentrificação vem de gentry, é uma expressão inglesa que designa pessoas ricas, ligadas à
nobreza. O termo surgiu nos anos 60, em Londres, quando vários gentriers migraram para um bairro
que, até então, abrigava a classe trabalhadora. Este movimento disparou o preço imobiliário do lugar,
acabando por “expulsar” os antigos moradores para acomodar confortavelmente os novos
proprietários com um maior poder aquisitivo. O evento foi chamado de gentrification, que numa
tradução literal, poderia ser entendida como o processo de enobrecimento, aburguesamento ou
elitização de uma área. (http://www.archdaily.com.br/br/788749/o-que-e-gentrificacao-e-porque-voce-
deveria-se-preocupar-com-isso)
46

antigamente os moradores denominavam como rua de baixo, indo residir


posteriormente na rua de cima, ou seja, no alto da Vila, mais próxima ao Morro do
Careca.
Os moradores acostumados a serem os únicos protagonistas a ocuparem
todos os espaços da Vila, indo e vindo com suas práticas e experiências subjetivas,
costumes, cantos, fazeres e danças, por ruas e becos, construindo e convivendo
com relações tecidas por sentimento de vizinhança e de laços de parentescos,
basicamente pelas cinco famílias responsáveis pelo processo de formação e
ocupação do vilarejo, a saber: os Correia, os Prazeres, o Costa do Nascimento, os
Lima e os Rodrigues. Cabendo agora a esses sujeitos que vivenciaram esse lugar
potencializado pelo viver em coletividade e por uma cultura baseada em práticas
tradicionais de convivência, construírem novas formas de interagir e usufruir das
modificações trazidas pela globalização, incluindo as tecnologias que dinamizam
e aceleram os diversos setores da sociedade.
Ressaltamos que, esses sujeitos não estão encerrados no passado ou
fechados sobre si mesmo, já que constatamos que eles se utilizam das mídias para
divulgarem suas danças, seus cantos, suas feituras, suas cores, suas tradições,
seus costumes, ou seja, esses corpos não deixam de lado seus valores, mas
também não estão fechados ao novo.
Evidentemente que as relações e convivências individuais e coletivas
desenvolvidas na Vila de Ponta Negra, delinearam quadros visuais, delimitados por
grandes distinções sociais, que separam trabalhadores simples, de moradores de
alto padrão econômico que se instalaram no lugar. Verificamos também, que parte
desses novos moradores, buscam por vezes integrar-se à dinâmica e ao cotidiano
da comunidade, participando de reuniões no Conselho Comunitário ou no salão
paroquial, preocupando-se com os problemas existentes onde eles estão inseridos.
Já o outro grande grupo, que são aqueles que não mantém relações com a
comunidade da vila, cria seus próprios rituais de interação com o lugar, de acordo
com seus gostos e preferências.
Nesse contexto, ao longo das últimas décadas, alguns conflitos de
resistência e manifestações ocorreram na Vila, em defesa dos direitos dos
moradores mais antigos do lugar. Com isso, chamamos a atenção para três
47

episódios, o primeiro ocorreu no final de década de 1950, com perdas de terra dos
moradores, que até então serviam para plantação de roças e demais subsistências,
de onde retiravam seu sustento. As terras foram retiradas da comunidade pelo
empresário Fernando Pedroza, irmão do governador Silvio Pedroza, para a
Aeronáutica com vistas à construção da Barreira do Inferno.
Até a década de 1960, a Vila estava localizada fora do perímetro urbano e
sem estradas de acesso à cidade. Nessa época, as mulheres e rendeiras percorriam
longas distâncias a pé, em um sobe e desce sem fim de dunas para vender suas
rendas no centro da cidade. Além de se ocuparem dos trabalhos artesanais,
participavam das atividades agrícolas que, juntamente com a pecuária, em menor
escala, e a pesca constituíam atividades econômicas da população (CARNEIRO,
1999).
Por volta da década de 1970, as casas dos moradores ocupavam apenas
três ruas, a rua de cima (hoje, a rua Manuel Coringa de Lemos), localizada próximo
as dunas, a rua de baixo (atualmente, Av. Eng. Roberto Freire, situado próximo a
praia e a principal rota do turismo na capital) e a rua do Corrupio.
Segundo relato de moradores mais antigos, a Vila de Ponta Negra,
permaneceu por muitos anos isolado da cidade do Natal, uma vez que o acesso
existente era feito de barro, cercado por muita vegetação. Ainda de acordo com os
moradores, nessa época, não só da pesca viviam os moradores, uma vez que,
grande parte das áreas do reduto, era ocupado pela pecuária e roça. As mulheres,
dividiam seus afazeres entre as casas de farinha e na confecção de rendas e
artesanatos. Este relato é ratificado na fala do Mestre dos Congos de Calçola da Vila
de Ponta Negra, seu Zé Correia em entrevista a Souza 2005, p. 29), diz que:

Vivia-se da roça e da pesca, mas esta não era a principal atividade, como
muitos pensam. ‘Se vivia mais da roça do que da pesca’. O roçado era de
milho, feijão, batata-doce. Muita gente, para reforçar o orçamento
doméstico, aproveitava a abundante mata nativa e fazia carão para vender.
‘o pobre mesmo queimava lenha em casa. O carvão a gente fazia e vendia
um cento a 10 mil réis’.

Os moradores desse então pequeno povoado viviam praticamente isolado


de Natal, uma vez que, naquela época, haviam grandes plantações e cultivo de
produtos agrícolas, mantendo-se assim, a autossuficiência da população. Em um
48

quase cortejo, os habitantes, saiam desse pequeno reduto, para vender o excedente
em Natal e nos festejos ligados a padroeira.
Até onde conhecemos, as vilas são conhecidas por sua resistência
econômica, social e espacial, muitas vezes inseridas em áreas urbanas, como é o
caso de muitas vilas de pescadores em capitais com áreas litorâneas, apresentando,
porém, uma configuração diferente daquela que apresentava, inicialmente.
Historicamente, as vilas, assim como os cortiços dos séculos XIX e XX no
Brasil, são formas de habitações coletivas que induzem um estreitamento das
relações, fazendo com que um determinado grupo de pessoas passe a conviver
mais perto, dividindo o seu cotidiano (CAVALCANTE, CÂNIDO; VALENÇA, 2003).
Portanto, nas vilas aonde se mantém viva, manifestações de culturas
tradicionais, percebemos um espaço concebido por símbolos de lutas e resistências,
onde habitam corpos religados (ALVES, 2015) no tempo e espaço, representando e
(re) contando fios de memórias sociais, culturais e artísticas, tradições e histórias de
vidas, símbolos esses, tecidos e construídos nas interações entre os sujeitos que se
identificam e vivenciam suas narrativas.
Segundo o dicionário da língua Portuguesa, o verbo resistir é definido como
exprimir habilidades que têm os seres animados e inanimados de opor-se frente a
um outro sistema de forças, mas o ato de resistir é, também, descrito como a
capacidade que têm esses seres de lutar em defesa de algo (FERREIRA, 1975).
Assim sendo, resistir movimenta dois campos de forças antagônicos, de um lado
encontramos forças de oposição e sofrimento, do outro um sentimento entusiasmo e
satisfação, na busca pela defesa de sua posição, diante as estratégias e práticas
culturais.
Esses símbolos e sentimentos que residem no imaginário dos produtores
culturais – comunidade e brincantes, que vivenciam e se identificam com esse
espaço, que é de luta e festas, criam assim, mecanismos que dão sentido para o
fortalecimento as relações e de uma identidade cultural. Assim, as identidades são
(re) criadas no cotidiano dos sujeitos, que se vinculam em conjunto, identificando-se
aos repertórios de ação, língua e cultura.
Hoje, podemos encontrar na Vila, múltiplas identidades, já que hoje, residem
nesse espaço sujeitos de diversos lugares do Brasil e do mundo, trazendo consigo
49

outras culturas, outras identidades, outro modo de viver e pensar, influenciando o


cotidiano simples da comunidade, que até então viviam da agricultura e pesca.
Nesse contexto, a cultura tem o poder de alargar olhares contemplativos e
reflexivos, instalados nos corpos e lugares em que esses sujeitos estão inseridos,
“comunicando relações marcadas pela intersubjetividade, construída no arranjo de
linguagem que os põe juntos, em interação” (BUORO, 2003, p.09). Assim
entendemos, que essas incorporações e/ou práticas produzidas no espaço, pela
comunidade e brincantes dos Congos de Calçola, dão sentido a própria existência
deles no próprio grupo.
Ligiéro (2011) argumenta que, essas práticas fazem parte do que ele
denomina de incorporações performáticas, ou seja, os saberes tradicionais
ancestralizados, são (re) ligados, (re) interpretados por meio da oralidade e
expressões corporais, que se manifestam no compartilhar com o outro, a partir do
cantar-dançar-batucar.
Em suma, são ações que se dão de forma quase que ritualística e
espetaculares, nas ruas, vielas, calçadas, pátios, isto é, nos acontecimentos da vida
cotidiana dos atores sociais, revalidando e reforçando o sentimento identitário,
tornando-se em fator preponderante para que os mesmos mantenham viva suas
historicidades através das gerações.
Segundo Carneiro (1999), durante algum tempo, os moradores desafiaram
as ordens de proibição de acesso e, sem que fossem vistos, invadiam a área, agora
pertencente à Aeronáutica, para coletar frutas. Há quem diga que ainda hoje alguns
moradores aventuram-se nas terras da Barreira do Inferno para coletar mangabas.
O segundo conflito de relação de poder, ocorreu com a luta entre a
Prefeitura e barraqueiros. Na década de 1990, a Prefeitura por meio de concessões,
doou para os moradores o uso restrito para a exploração de venda de produtos
designados ao consumo na praia. Entretanto, a cada campanha política, novas
concessões foram feitas, aumentando o número de barracas, agora com instalação
de energia elétrica e de água encanada ligadas ao sistema público da cidade
(CARNEIRO, p. 95, 1999). O que se viu, nos anos que se seguiram, foi a exploração
cada vez maior de pessoas, vindo de diversas localidades, do país e do exterior,
gerando assim, grandes tensões entre os barraqueiros de fora.
50

E mais recentemente, a comunidade entrou em cena e resistiu, mobilizando-


se para mostrar seu posicionamento e indignação, contra a construção de espigões,
próximo ao maior cartão postal da nossa cidade, o Morro do Careca. Em 2006, o a
prefeitura de Natal concedeu licenças para a construção de cinco prédios, que
causariam grande impacto não apenas ambiental no local, mas também na
vizinhança.
No final de 2006, o Prefeito suspendeu as obras, acatando as ordens do
Ministério Público de Defesa do Meio Ambiente, que pedia a anulação das licenças
ambientais concedidas pela SEMURB para a construção de empreendimento na
área da Vila de Ponta Negra. No documento o Ministério Público citou que
“constatou claramente que os impactos ambientais decorrentes do empreendimento
não foram analisados, razão pela qual a licença ambiental não poderia ter sido
concedida” (http://www.mineiropt.com.br/espigoes-ainda-ameacam-ponta-negra).
Esses fatos comprovam que, os residentes mais antigos da Vila – os porta-
vozes do impacto, são sujeitos engajados, ativos, que percebem as
ligações/repercussões decorrentes das mudanças sociais, ambientais e econômicas,
sofridas no espaço de sociabilidade.
As tensões ocorridas na Vila de Ponta Negra, produzem resistências onde
se travam lutas cotidianas, das relações sociais que se tramam no espaço, recriando
e modificando-os em meio a inclusão e as contradições provocadas pelas
idiossincrasias e, pelo consumo excessivo do mercado capitalista, que tem no
turismo uma atividade econômica voltada à exploração de atrativos contidos nos
espaços, transformando-os em mercadorias.
Nesse contexto, como mencionado anteriormente, encontramos hoje na Vila,
uma parcela de novos moradores que se interessam em saber das histórias do
lugar, dos problemas existentes na comunidade, unindo forças e, trazendo consigo
outras visões de mundo, alternativas e até mesmo estratégias para a construção
dialética, contribuindo de certa forma para a melhoria e fortalecimento dos valores
marcados nos moradores mais antigos.
Esse contraponto, que vem sendo percebido e praticado pelos moradores da
comunidade, que passou a cobrar a responsabilidade social e ambiental das
empresas, onde a comunidade não seja excluída ou expulsa desses processos
51

reestruturantes, que seus costumes e habitus12 sejam preservados e, que o lucro


seja ao menos equilibrado e, acima de tudo, que os impactos ambientais sejam
amenizados ou tratados com responsabilidade, consciência e sustentabilidade.
Com a circulação de múltiplas culturas e habitus de universos distintos, com
visões cosmopolitas, concebe-se assim, um cenário de heterogeneidade nos
espaços de sociabilidade do lugar, bem como, nos diferentes papeis sociais
desenvolvidos pelos indivíduos, dentro do modo de vida urbano, que conforme
BARROS (2011), os indivíduos estão

imersos no meio urbano, em especial, estão potencialmente expostos a


uma grande diversidade de experiências, por circularem através de
universos onde se atualizam valores e visões de mundo distintas e, às
vezes, conflitantes. Alguns indivíduos, além de transitarem por diferentes
dimensões sociais, tornam-se mediadores de estilos de vida e de
experiências sociais diversas (BARROS, 2011, p. 218).

Assim, torna-se perceptível os contrates e as dificuldades em transpor as


barreiras culturais, sociais e econômicas que distinguem os indivíduos e os colocam
de lados opostos. Logo, as ações dos sujeitos decorrem das afinidades que mantêm
entre si – em consonância com seus habitus, que segundo Bourdieu (1983) é um:

Sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explicita


que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de
estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de
seus autores sem terem sido expressamente concebidos para este fim.
(BOURDIEU, 1983, p. 84).

Entendemos como habitus, um conjunto de ações produzidas e incorporadas


socialmente, fazendo com que os sujeitos ajam de uma maneira e não de outra. Em
face disso, podemos considerar o habitus como uma matriz geradora de
comportamentos previsíveis, uma vez que refletem padrões organizacionais
característicos do grupo em que o indivíduo foi socializado e que, ao serem
incorporados, passam a reger suas ações ao longo das gerações.
Com a inserção de novos habitus e das mudanças provocadas por meio dele
na comunidade, observamos interações entre indivíduos diversos, gerando relações

12Conceito desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu. Esse conceito tem origem de noções como
hexis e ethos, ambas relacionadas ao modo de agir dos sujeitos pertencentes a um determinado
grupo social, ou seja, ao comportamento humano entre o individual coletivo. (BOURDIEU, 2001, p.
32).
52

ao mesmo tempo condicionantes e de cooperação desenvolvidas nas práticas


sociais cotidianas.
Como Nogueira e Nogueira (2002) colocam

O acúmulo histórico de experiências de êxito e de fracasso, os grupos


sociais construiriam um conhecimento prático, e não plenamente
consciente, relativo ao que é possível ou não de ser alcançado pelos seus
membros dentro da realidade concreta na qual agem, bem como o
aprendizado sobre as formas mais adequadas de fazê-lo. Dada a posição
do grupo no espaço social e, portanto, de acordo com o volume e os tipos
de capitais (econômico, social, cultural e simbólico) possuídos por seus
membros, certas estratégias de ação seriam mais seguras e rentáveis e
outras seriam mais arriscadas. Na perspectiva de Bourdieu, ao longo do
tempo, por um processo não deliberado de ajustamento entre investimentos
e condições objetivas de ação, as estratégias mais adequadas, mais
viáveis, acabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam, então,
incorporadas pelos sujeitos como parte do seu habitus. (NOGUEIRA &
NOGUEIRA, 2002, p. 22).

O indivíduo, para Bourdieu, é um ator socialmente configurado em seus


mínimos detalhes. Os gostos mais íntimos, as preferências, as aptidões, as posturas
corporais, a entonação de voz, as aspirações relativas ao futuro profissional, tudo
seria socialmente constituído.
Esses habitus não se fazem presentes unicamente no modo como
pensamos a sociedade que nos envolve, mas sim, no modo como agimos, em casa,
na rua, no seio familiar, no trabalho. Isto é, o habitus é incorporado de forma
subjetiva e socializada, por meio da cultura a qual o sujeito pertence ou (com)
partilha, é a nossa forma de entender a sociedade, que também nos informa por
meio de dispositivos internos e externos, inscritos nos corpos por meio de
experiências ocorridas no espaço social, que é o resultado da produção e
incorporação do mesmo habitus.
Para Goffman (1975) “Pode-se tomar como estabelecido que uma condição
necessária para a vida social é que todos os participantes compartilham de um único
conjunto de expectativas normativas, sendo as normas sustentadas, em parte
porque foram incorporadas” (GOFFMAN, 1975, p. 138). Logo, o habitus é um
fenômeno que (re) produz percepções, apreciações e ações condicionantes, tecidas
no espaço através de interações entre os agentes e atores sociais, revelando,
reforçando, e modificando o lugar, no qual estão inseridos.
53

A interdependência produzida pelo habitus do passado coadunada com o


presente, tanto dos novos moradores, como das gerações mais jovens presentes na
Vila de Ponta Negra. Então, entende-se que o habitus, mais do que um hábito puro e
simples, que serve para nomear além de uma prática, um estado de coisas, fruto de
relações, materiais e imateriais, constitui os grupos sociais a partir das estruturas já
existentes.
Alves (2006) nos diz que as sociedades se formam pela multiplicidade de
corpos. E é justamente essa pluralidade que se traduz em alicerces de muitas
maneiras de ser, de agir e de conviver, de modo que a realidade cotidiana de cada
sociedade é complexa, abrangendo o diálogo entre múltiplas expressividades,
saberes e habitus. Há significados e intencionalidades na expressão verbal e não
verbal de cada corpo e de muitos corpos que se constroem na interação com o
mundo. Corpos que dizem e ouvem, que criam e recriam, que aprendem e ensinam
ao longo de suas histórias de vida.
54

SEGUNDA EMBAIXADA: (ENTRE) TONS DO PASSADO E PRESENTE

Quantas vezes você já se identificou com um ou vários lugares? Quantas


vezes você já sentiu saudades da rua onde costumava brincar com seus amigos que
também eram seus vizinhos? Dos encontros na pracinha do bairro, repletos de
afetos e descobertas tecidas no riso. E da escola onde estudou? Recordações,
cenários de um tempo passado, mas resguardado na memória.
São tantas as lembranças de tantos lugares que guardamos conosco e tanto
outros que deixamos pelo caminho. Dessa forma, esses lugares atravessados por
nossas memórias, registram histórias, possuem cheiros, rostos, sabores, cores,
saudades, lembranças, risos, aconchego, indignações e contradições. Os lugares
têm um pouco de mim e um pouco de você também.
Eles são compostos do que fomos, somos e seremos, ou seja, são
experiências vivenciadas por meio do olhar, sentir e entender os lugares por trás de
muros, grades, ruas, placas ou de uma escultura, eles são relatos de vida da
sociedade, que constrói e são construídos pelos mesmos.
O mundo sempre esteve repleto de lugares que por meio de imagens nos
revelam alguma coisa à memória, de forma que, por meio dela, reavivamos
lembranças, eventos selecionados.
De acordo com Chauí (2000, p.164),

A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela uma das


formas fundamentais de nossa existência, que é a relação com o tempo, e,
no tempo, com aquilo que está invisível, ausente e distante, isto é, o
passado. A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do
presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas
podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo).

Assim, ao longo do tempo criamos e carregamos os lugares, que são


memórias, concebidos e selecionados com base em emoções, importância, lutas,
costumes, acontecimentos, figuras emblemáticas que julgamos merecedores de
serem repassadas e/ou contadas a gerações futuras.
Esses lugares construídos ao longo de nossa trajetória, nutridas por matizes
subjetivas e sociais, surgem quando nos reportamos ao passado por meio das
lembranças. Ao rememorar outros tempos, o indivíduo desloca sua consciência para
55

outras épocas, mas também para outros lugares, geograficamente falando. O tempo
da infância na escola, no quintal de casa; a juventude nos cinemas, nas praças
históricas; as experiências tidas em outros bairros, cidades, países. Para contar a
história de si – e muitas vezes a história do outro – o sujeito se volta a lugares de
existência. Lugares que possuem relevância simbólicas justamente por serem ou
terem sido espaços de práticas sociais (HALBWACHS, 1990; RICOEUR, 2007).
O termo "lugares de memória" foi lançado pelo francês Pierre Nora (1984),
que traz a noção de lugar como espaço vivo no processo de construção ou
invocação ao lembrar. Tratam-se de lugares, ou seja, espaços físicos que funcionam
como repositório de uma memória coletiva, ratificando a identidade e a ideia de
pertença.
Dessa forma, os lugares de memória são testemunhos movidos por valores,
criados e formados por um grupo que compartilham identificações e interesses
comuns, resultando em ações e contradições ao longo do tempo, funcionando assim
como, um mecanismo de ratificação e permanência dos laços tecidos entre os
indivíduos em épocas distintas.
Referenciando-nos em Nora (2006) que nos diz que,

Os lugares de memória nascem e vivem, portanto, do sentimento de que


não há memória espontânea, de que é preciso criar arquivos: “Se o que
defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de construí-
los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que envolvem, eles
seriam inúteis” (NORA, 2006, p. 21-22).

Ainda segundo Nora (2006), os lugares de memória podem ser


compreendidos por meio de três sentidos: o material, o funcional e o simbólico, em
graus diversos. Ele nos cita como exemplo a noção de geração, que seria material,
por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, ao garantir ao mesmo tempo
a cristalização da lembrança e sua transmissão; e simbólico, em que um
acontecimento ou experiência vividos por pequeno número caracteriza uma maioria
que dele não participou (Nora, 2006, p. 21-22). Ou seja, os lugares de memórias
reevocam, refletem a interação das tradições passadas dos sujeitos, persistentes no
futuro.
56

Portanto, é nos lugares de memória que construímos relações de amizades,


no desejo de estar com outros corpos, que se identificam e se unificam, ao se
reencontrarem, relembram-se, transformando-se assim em agentes de seu tempo.
No que tange a Vila de Ponta Negra, observamos que estão presentes
nesses lugares de memórias corpos que se tornam lugar e lugar que se torna corpo,
que experimentam novas formas, valores preocupados com a vida, com o modo de
ser, viver, vivenciar e fazer arte e cultura.
Nora (2006) e Ribeiro (2003), coadunam seus pensamentos quando afirmam
que, lugares de memória são “sinais de reconhecimento e de pertencimento de
grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos idênticos” ou seja, os
sujeitos só lembram a partir do ponto de vista de um grupo social específico, ao qual
de alguma forma se vinculam. Sendo assim, a memória está interligada diretamente
às identidades sociais.
Cabe ressaltar que a construção da identidade, funciona como fonte de
significação de experiências individuais e coletivas dos sujeitos.

Não temos conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou


culturas em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles,
não seja estabelecida... O autoconhecimento – invariavelmente uma
construção, não importa o quanto possa parecer uma descoberta – nunca
está totalmente dissociado da necessidade de ser conhecido, de modos
específicos, pelos outros (CALHOUN, 1994, p. 10).

Podemos observar que essas identidades, são frutos das relações entre os
sujeitos que constroem vivenciam e se articulam no espaço, com suas ações e
práticas cotidianas, individual e coletiva, fortalecendo o sentimento de pertença e
identificações acumulado ao longo do tempo e, apropriado pela memória. Destarte,
os lugares de memória são zonas permeadas por vivências e significados que nos
permite ampliar olhares em busca de caminhos para a manutenção e preservação
da nossa identidade.

2.1 OS LUGARES DE MEMÓRIA DA VILA DE PONTA NEGRA

Para Pierre Nora (1993, p. 13), “os lugares de memória nascem e vivem do
sentimento de que não há memória espontânea, mas é preciso criar arquivos”. Logo,
57

a história se apodera desses lugares para transformá-los ou deformá-los. Então, o


folguedo estudado na Vila de Ponta Negra tem o seu lugar de memória,
considerando a resistência do grupo como uma possibilidade de vida e um modo de
existir, o que transfigura na sua estética um mundo fictício que preserva a cultura de
um mundo real.
Logo, a Vila de Ponta é um lugar que revela paisagens13 que se tornaram
verdadeiras vitrines para o turismo nacional e internacional, lugar de experiências
culturais cotidianas de homens e mulheres que trazem nas memórias, no corpo,
marcas culturais resistentes e persistentes como a dança dos Congos de Calçolas,
buscando reinscrevê-las e inseri-las mediante as transformações sócio espaciais e
tecnológicas ocorridas no lugar ao longo do tempo.
Como lugar de múltiplas práticas poéticas, observamos na Vila de Ponta
Negra, um campo simbólico, de lutas e de brincadeiras, onde a arte e cultura
habitam em cada rua e beco, nos convidando a apreciar e a (re) pensar como esses
sujeitos constroem sua própria história e a história desse lugar, preservando e
transformando em arte e cultura o seu tempo livre e o lazer.
A cultura nos possibilita múltiplas ligações com a história, com os povos e
nações de diversos lugares do mundo, tecendo assim, um mosaico cultural, que nos
permite demonstrar e transmitir tradições milenares. A cultura existe nas diversas
maneiras por meio das quais criamos e recriamos as teias, as tessituras e os tecidos
sociais de símbolos e de significados que atribuímos a nós próprios, às nossas vidas
e aos nossos mundos (BRANDÃO, 2002, p.31).
Dessa forma, a cultura é a própria representação da vida social humana,
construída, vivenciada e compartilhada simbolicamente através das práticas
cotidianas que nos permitem incorporar e interagir continuamente com o outro, e
com o mundo. Ou seja, é uma construção histórica e social, que nos possibilita
múltiplos modos de tecer os fios que dão sentido à vida, “A cultura é como uma
grande rede que identifica e orienta os indivíduos dentro de um grupo. Constituindo

13
Conceito de Paisagem segundo Milton Santos (1997) “A paisagem nada tem de fixo, de imóvel.
Cada vez que a sociedade passa por um processo de mudança, a economia, as relações sociais e
políticas também mudam, em ritmos e intensidades variados. A mesma coisa acontece em relação ao
espaço e à paisagem que se transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade. ”
58

essa rede, esses mesmos indivíduos são capazes de puxar outros fios de outras
redes culturais, adaptando-se a sua própria tessitura” (ALVES, p. 62, 2006).
Conforme relatos dos brincantes, mestres e moradores antigos da
comunidade, encontramos alguns lugares de memória na Vila de Ponta Negra,
reconhecidos como símbolos de fé, luta, orgulho e resistência que guardam histórias
que nos ajudam a entender como esses sujeitos se relacionam com esses espaços
e sua importância para a comunidade, a saber: a Igreja São João Batista, a Casa
das Rendeiras, o Morro do Careca, o Campo do Botafogo e o Conselho comunitário
e a Escola Municipal São José.

2.1.1 A Igreja de São João Batista

A igreja de São João Batista está situada no alto da Vila de Ponta Negra,
uma das áreas mais efervescente do bairro. A igreja está cercada em parte por
sequência de casinhas com estilo ainda originário de um lugar que um dia abrigou
em grande parte do seu território, grupos de pescadores e agricultores de vida
simples.
Figura 13 – A Igreja São João Batista.

Fonte: Arquivo da Pesquisadora, 2017


59

A igreja São João Batista foi uma das primeiras construções da Vila de
Ponta Negra, antes construída de barro e pedras da praia. Não se tem ao certo a
data de fundação da Igreja, o que sabemos é que seu surgimento se confunde com
o próprio início da comunidade e da nossa cidade. Alguns pesquisadores destacam
que a igreja foi erguida por volta de 1905. Segundo registros de Souza (2001) , em
Nova História de Natal, a referência mais antiga à capela está no livro de Tombo da
Paróquia de São Pedro do Alecrim, no qual se afirma que,

Achando-se em muito mau estado a capela de Ponta Negra, construída no


tempo do Padre João Maria, foi o Pe. Agostinho para essa nova povoação a
fim de começar os consertos indispensáveis. No mesmo mês de janeiro
foram iniciados os trabalhos (Livro de Tombo da Paróquia de São Pedro do
Alecrim, p. 23, In: SOUZA, Nova História de Natal, 2001, p. 632).

Ao longo do tempo, a igreja passou por diversas modificações,


principalmente após o desmoronamento de parte do teto do templo, comprometendo
a estrutura. De acordo com um Jornal da época, A República, em 16 de junho de
1938, noticiava,
A velha igrejinha da Praia de Ponta Negra ameaçava ruir e foi destruída
para em seu lugar ser levantada outra de construção mais segura e mais
bem acabada. O Sr. Bispo de Natal, D. Marcolino Dantas, teve essa feliz
iniciativa e vem orientando os trabalhos com zelo e competência (A
REPÚBLICA, 1938).

A área do entorno da igreja, concentra-se vielas, mercadinhos, barzinhos e


parte das habitações originarias, onde está localizada grande parte da vila, cercada
por casas de aluguéis, parte com moradores proprietários. Nesse espaço que foi um
dia símbolo de coletividade, encontramos crianças brincando nas calçadas, jovens e
adultos conversando no banco em frente à igreja, em quanto observam atentamente
a agitação que se propaga ao cair da tarde, quadros que revelam nuances
característicos de uma comunidade que encontra-se inserida em uma área de
elevado valor espacial.
Antigamente, a Vila de Ponta Negra era marcada por intensas festividades,
que mobilizavam toda a comunidade, “entorno dos acontecimentos promovidos pela
60

igreja, onde todos trabalhavam juntos em prol das comemorações e festejos que
aconteciam em determinada época do ano” (SANTOS, 2013, p.34).
Segundo dona Helena, moradora e mestra dos Congos de Calçola e Pastoril
da Vila de Ponta Negra, nos informa sobre a representatividade que a Igreja tinha
para a comunidade,

Naquela época a paroquia não tinha um padre. Durante a semana a Igreja


ficava fechada. A igreja só abria durante o período de festa, quando íamos
pegar o padre de outros lugares, quando queríamos rezar um terço. Quando
morria alguém corríamos para casa de dedeca para abrir e tocar o sino. Na
frente da igreja todas as crianças se reuniam para brincar, dançar e ensaiar.

Verificamos que mesmo a comunidade carecendo de um padre que


comandasse efetivamente a Igreja, os sujeitos não permitiam o desaparecimento de
sua religiosidade, resgatando e garantindo por meio dos festejos, risos, cantos,
danças e lembranças de suas tradições. Ainda, a respeito dos períodos festivos
vivenciados antigamente na Vila de Ponta Negra, Dona Helena nos fala que,

Um dos santos mais festejados era São Sebastião, o protetor dos


pescadores. Na época que dava muito peixe, no mês de janeiro, fazíamos
nove noites de novenas. Se fazia até corrida, por trás da rua da floresta, de
um canto ao outro. Nessa festa tínhamos também a noite dos jovens, que
saiam de casa em casa, pedindo ajuda e todo mundo ajudava. Tinha a noite
dos casados, das moças e dos rapazes. Era uma briga entre as moças e os
rapazes, porque cada um queria arrecadar mais doações e mais fogos.
Quem fizesse a noite mais bonita, era quem ganhava.

Como visto, as festas na Vila de Ponta Negra eram animadas, e traziam


pessoas de todas as localidades do Rio Grande do Norte. Os principais festejos
organizados e comemorados pela comunidade eram: São Sebastião, a de São João
Batista – padroeiro do povoado, a de São José e a do Coração de Jesus.
Celebravam também o Natal, a festa de Santos Reis e a semana Santa.
Nas festas religiosas, as pastoras dos Pastoril se apresentavam e com sua
dança atraiam pessoas para o baile. Jogavam fitas aos cavalheiros que eram
convidados a dançar e depois contribuíam com dinheiro para pagar as despesas da
festa. Grupos de outros locais vinham se apresentar e tocar forró. Algumas festas
aconteciam no Centro Social, atualmente Conselho Comunitário (CARNEIRO e
LIMA, 2010, p. 91 e 92).
O relato de Dona Helena, Mestra do Pastoril, reforça esse entendimento:
61

Ainda sou da época que não tinha luz, não tinha água, não tinha telefone.
Ave Maria! A casa que tinha televisão era uma festa, era milionário quem
podia ter uma televisão...Vivíamos da pesca e agricultura. A agricultura aqui
era muito rica, tinha muito roçados. Cada família tinha seu roçado.
Plantávamos mandioca, maxixe, melancia, feijão, milho.

Segundo relato de moradores antigos, até a década 1920, a comunidade


vivia sem sistema elétrico de energia. Nos períodos festivos a Vila fervia! A
população colocava tochas e candeeiros pendurados, nos pontos centrais dos
festejos. O pouco comércio existente era aquecido e investia em produtos religiosos
que eram vendidos pelo público que assistia à apresentação do Pastoril e Lapinha.
Ao lado do mercado a comunidade e os convidados brincavam no parque de
diversão, atraindo crianças, jovens e adultos.
Tradicionalmente as brincadeiras ocorriam de forma improvisada em
espaços abertos como o quintal, ao lado das bodegas nos ciclos festivos do
calendário da comunidade e nas ruas, o qual possibilitava o desenvolvimento e a
interação entre os sujeitos dançantes e o espectador, que era convidado a
incorporar e a celebrar os folguedos.
É interessante observar que a Igreja São João Batista é um espaço bastante
dinâmico, além de ser um lugar de fé e religiosidade, e de compor uma bela
paisagem local, em certos momentos, a calçada da igreja torna-se cenário e palco
para os eventos e festejos promovidos pela/na comunidade, como a apresentação
dos Congos de Calçola, conforme (Figura 14) abaixo.
62

Figura 14 – Apresentação dos Congos de Calçola no Pátio da Igreja São João

Batista (Vila de Ponta Negra).


Acervo do Projeto de Extensão Encantos da Vila de Ponta Negra/DEART/UFRN.

Para os brincantes e moradores, essas experiências poéticas do cotidiano


ultrapassam a barreira do tempo e espaço, são marcas tatuadas nas memórias de
cada um, que vivenciou no corpo, na natureza e na cultura, “o vivido é transformado
em história” (Ligiéro, 2011, p. 89), evidenciadas na partilha de seus costumes com o
outro, no orgulho de fazer parte dessa comunidade –pertencimento. Nas palavras do
Sr. Severino, mestre do Coco de Roda, que evidência a importância desse espaço
de fé e brincadeiras,

Já dancei em vários lugares, até mesmo fora de Natal, mais o lugar que eu
mais gosto de apresentar é aqui na Vila de Ponta Negra, pois aqui é meu
lugar, é onde nasci, onde me casei, tive meus filhos, é onde vivi toda minha
vida, eu tenho muitas histórias pra contar desse lugar, aqui eu chorei e ri [...]
por isso faço de tudo quando tem uma apresentação pra dançar aqui nesse
palco da igreja. (SANTOS, 2013, p. 13).

Conforme confidência com o Mestre, observamos um orgulho pulsante,


restaurado e preservado através da fala, do riso, do olhar nostálgico que pesca
lembranças de acontecimentos individuais e coletivos nesse espaço, considerados
pela comunidade um patrimônio simbólico de fé e resistência. Assim, quando
olhamos para trás, podemos localizar os marcos do nosso tempo biográfico no
tempo solar decorrido. Mais que os astros, pode o tempo social, recobrar a
passagem dos anos e das estações. (BOSI, 1994).
63

Logo, mergulhados num universo lúdico, repletos de brincadeiras e doação


que impulsionavam a comunidade nas preparações nos períodos de festividades, na
manutenção da coletividade, (com) partilhando tudo que era possível, soba ótica do
brincante, o espaço onde se vive e se brinca não parece ser o mesmo, apesar de o
ser. Ele (o brincante) identifica-se com o ambiente, não pelo que ele é, mas pela
função que exerce naquele momento.
Além das festividades que ocorriam no entorno da igreja, havia também a
festa das lavadeiras como são lembradas por Dona Helena, dizendo que:

A lavagem de roupa era outra atividade, desenvolvida pelas mulheres, que


requeriam longos deslocamentos a pé ou no lombo de jumentos até o rio
Jiqui. Elas saiam em grupos e quase sempre acompanhadas de algum filho,
que ajudava a carregar as trouxas de roupa. Naquela época não existia
água na comunidade, então um grupo de mulheres e homens que serviam
de guardião das lavadeiras, saiam bem cedinho em direção ao rio Jiqui para
lavarem as roupas que eram sujas durante a semana. Chegando lá, todos
tomavam banho e alguns eram encarregados de fazer o almoço e as
mulheres de lavarem as roupas, que secavam ao vento e a brancura que
ficava as roupas, ofuscavam os olhos no sol. Depois de um dia inteiro de
lavagem, banhos no rio, almoço, dança, cantos e roupa limpa, chegava a
hora de fazer a viagem de volta. Esse ritual aconteceu durante 37 anos,
uma vez que não havia água encanada e o único poço que existia tinha sido
interditado pelas autoridades locais (HELENA CORREIA, entrevista
concedida à pesquisadora).

Essas são histórias, lembranças e emoções compartilhadas unem os


homens em coletividade e os aproximam de sua terra (REVISTA Nº 15 - FESTAS
POPULARES), como nas festas populares que constituem um dos traços mais
marcantes de identificação de uma nação, por serem impregnados de
espontaneidade e de originalidade. Ou seja, os festejos reverenciados pela
comunidade são verdadeiras formas de recuperação do seu cotidiano, trazendo à
tona nos seus corpos valores e saberes, expressos pelos gestos e movimentos.
Durante as festividades, o momento mais aguardado era o das brincadeiras,
onde os brincantes com seus batuques, vestes, gestos, danças e cantos, construíam
um lugar dotado de significação baseado nas vivências e experiências (que traz em
si o que você é e o que você pode ser) na comunidade. Por essa razão, o espaço
da Igreja São João Batista, para a comunidade, deixa de ser apenas um templo
onde habita a fé, para se tornar um lugar símbolo de encontro, de vivências
corporais em arte e cultura.
64

Para os brincantes dos Congos de Calçola, essa igreja representa o


surgimento da Vila, um espaço, reservado para o encontro, renovação da fé e
devoção, um lugar sagrado e solidário. Além de simbolizar a religiosidade, para os
brincantes dos Congos de Calçola, a Igreja São João Batista, é uma zona de
memória, palco para as festividades e brincadeiras dos brincantes, é a área onde
eles sentem orgulho de mostrarem toda sua espetacularidade, como também o é a
casa das rendeiras.

2.1.2 A Casa das Rendeiras

A casa das rendeiras é um dos lugares de memória mais significativos e


simbólicos presentes no espaço da Vila de Ponta Negra. Localizado próximo a Igreja
São João Batista, a Casa das Rendeiras ou Núcleo das Rendeiras foi idealizada por
Maria de Lourdes de Lima, mais conhecida por dona Maria e seu filho, João Batista
de Lima, popularmente conhecido como Joca de Cafurico.
Esse espaço configura nos corpos das rendeiras suas memórias, enquanto
tecem as suas rendas, entremeadas entre bilros e cores, contam e cantam as
histórias vivenciadas para (re)criar novas tramas para sua própria vida, o que
certamente promove, novas possibilidades de percepções do seu entorno, nas
dinâmicas reveladas através dos sentimentos e da sensibilidade dessas rendeiras.
É na casa das rendeiras que ocorre a vivência estética com a expressão
oral; várias experiências são trocadas através de memórias e saberes repassados
de geração a geração através da oralidade, na qual estão presentes valores que se
encontram nas manifestações colocadas pelos corpos que se comunicam na
tessitura da trama e com as mudanças ocorridas na comunidade.
Por entre as folhas das árvores, flores vermelhas e rosas, jogos de luzes,
desenham nuvens, dançam na imensidão de um abril azul, de tanto azul que não
cabem na moldura admirada dos olhos e sorriso das rendeiras. É assim que
encontro dona Maria, a Rendeira mais antiga da comunidade, juntamente com duas
de suas pupilas, que tecem nas suas tramas delicadas, fios de histórias, verdadeiros
suspiros de vida e esperança de uma cultura autêntica que muito tem a nos contar.
65

Figura 15 – Rendeiras de bilro

Arquivo da Pesquisadora, 2017.

Transportada e imbuída pelas narrativas poéticas e memórias de Dona


Maria, início a entrevista sentada ao seu lado, enquanto faço perguntas, observo-a
com mãos habilidosas fazendo sua renda no bilro e (re)criando um cenário
educativo, que nos ajudam a entender o valor que a casa das Rendeiras tem para a
comunidade.
Durante muito tempo, a Vila de Ponta Negra foi referência quando o assunto
era renda de bilro. Como explicado anteriormente, os moradores da Vila de Ponta
Negra, sobreviviam da pesca, da agricultura e das rendas de bilro, confeccionada
predominantemente por mulheres, para complementar a renda da família.
Ramos & Ramos (1948, p. 39), consideram a Renda de Bilro como uma
atividade tradicionalmente repassada entre gerações de mães a filhas, como “A
técnica do feitio da renda é transmitida de mãe a filhas e ao lado de velhas
rendeiras, ficam as meninas “trocando” seus bilros, até adquirirem prática”. Já
Cascudo (1969) diz que a profissão de rendeira de bilro é:

Uma profissão humilde e linda é a da nossa Rendeira, tecendo maravilhas de


delicadezas e equilíbrio nas almofadas toscas, no jogo mecânico dos bilros
de pau. São artífices em ambientes paupérrimos, conseguindo obras primas
que encantam os olhos dos estrangeiros (CASCUDO, 1969, p. 777).
66

Figura 16 – A rendeira Dona Maria, fundadora da casa das Rendeiras

Acervo da Pesquisadora, 2017.

A fundadora da casa das rendeiras na Vila de Ponta Negra é Dona Maria,


conforme (Figura 16), que aprendeu a tecer renda de bilro, aos sete anos de idade,
observando sua mãe, e reproduzindo o que via. Sobre essa vivência D. Maria,
relembrando a sua infância, diz o seguinte:

[...] eu tinha muita vontade de aprender. Eu ia pra uma escolinha e quando


chegava da escolinha minha mãe já tinha feito alguma coisa pra gente
comer. Eu acabava de comer, aí tinha uma casa que ficava tinha uma
sombra mesmo assim, com areia na frente da casa. A gente sentava na
areia e ali botava a almofada e trabalhava. E eu ficava, não brincava ficava
olhando, olhando, até que um dia minha mãe chegou e disse: você quer
aprender isso aí. Aí eu disse: eu quero. E eu queria mesmo.

É importante ressaltar que a casa das Rendeiras funciona em um espaço


anexo à casa de Dona Maria, há aproximadamente vinte anos. Antigamente (metade
da década de 1990), o terreno foi cedido por Dona Maria para a abertura de um
restaurante, que seria comandado pelo seu filho Joca. Ela relata que a ideia partiu
dos próprios moradores, dado até então pela inexistência de um espaço, onde a
comunidade e os veranistas, que aos poucos foram ocupando a praia de Ponta
Negra, pudesse degustar dos pratos típicos da região.
No entanto, o fluxo dos veranistas foi aumentando ano após ano, com isso,
as barracas com infraestrutura e restaurantes de alto padrão foram sendo
67

construídos para abrigar a essa demanda no entorno da praia de Ponta Negra, que
vinham em busca de descanso e conforto. Logo o restaurante fechou suas portas, já
que os turistas não queriam mais se deslocar da praia para fazer suas refeições.
Posteriormente, o espaço cedeu lugar para as mulheres rendeiras de bilro
da Vila de Ponte Negra, com o intuito de resgatar e proteger dons e habilidades
manuais como quem rege uma orquestra de sons, ritualidades, cores, sonhos,
raízes, lutas e desejos “Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhados” (QUINTANA, 2006), nas
almofadas do bilro.
Enxergamos na casa das Rendeiras, um espaço resistente, poético e
educativo, que atua em parceria com a comunidade, por vezes promovendo e
cedendo o lugar para reuniões dos grupos culturais da Vila, cursos e encontros,
vivências (com)partilhadas, “aprendida e ensinada ao longo de muitas vidas, de
muitos contextos sociais” (ALVES, 2010, p. 14). Trata-se de um espaço que evoca
vivências e significados, apreendidas no ver, ouvir e fazer, contribuindo
substancialmente para a manutenção da cultura.
Com a aproximação da comunidade, constatei que os atravessamentos
existentes, pela maioria das Rendeiras, que teciam suas rendas de bilro, dar-se por
meio da historicidade dos sujeitos, os laços de parentescos e amizades, assim,
esses indivíduos criam sentidos, signos, códigos, gestualidades, subjetividades, de
experiências corporais sensíveis, vivenciadas e estabelecidas no mundo,
provocando outros olhares no âmbito da natureza e da cultura.
Esse aprendizado é estimulado pelos acontecimentos produzidos no
cotidiano que convive em um ambiente coletivo, segundo Maffesoli (2001, p. 81), “a
casa da infância permanece o paradigma de toda raiz ou de toda busca de raízes, o
espaço local é aquele que funda o estar-junto de toda comunidade”. Nesse sentido,
as relações ocorridas no espaço familiar, por meio de entrelaçamentos do cotidiano,
produzem um campo de forças que dá sentido à própria continuidade da vida. E isso
acontece na Casa das Rendeiras da Vila de Ponta Negra.
Enfim, Maffesoli (1984, p. 57) ainda infere que,

A espacialidade é o tempo em retardo, é o tempo que tentamos frear, e daí


a importância da ritualização na vida cotidiana que, pela repetição,
representa ou faz a mímica do imutável. A cidade ou a casa, como
sedimentação das histórias passadas, do tempo decorrido, servem então de
68

pólos atrativos, eles são fortalezas sólidas nessa luta permanente que é o
afrontamento do destino. É aí que convém buscar o fundamento do apego
afetivo ou passional que liga o indivíduo ou o grupo a qualquer que seja o
território.

Hoje, a Casa das Rendeiras, se transformou em Núcleo de Produção


Artesanal Rendeiras da Vila, em busca de resgatar a tradição e gerar renda,
reativando o fluxo de venda da renda de bilro. Desse modo, Órgãos Públicos e
Privados promovem nesse espaço, oficinas e vivências que proporcionam e
“aproxima o visitante das rendeiras através de uma oficina demonstrativa das
técnicas e elementos das rendas. Havendo ainda degustação da culinária local e
exposição de produtos das famosas rendeiras locais” (REVISTA, Natal encantos:
Rocas e Vila de Ponta Negra, 2017, p. 44), conforme se observa na figura seguinte.

Figura 17 – interior da casa das rendeiras

Fonte: Jornal Tribuna do Norte, 2013.

Ressalte-se, portanto, que a Casa das Rendeiras é um dos lugares da Vila


de Ponta Negra, que nos possibilita um mergulho no passado cultural, artístico e
imaginário da comunidade. Desde sua fundação, esse espaço serve como suporte
para as necessidades da comunidade, que busca ao mesmo tempo encontrar nele
vestígios de suas raízes e histórias, seja fazendo uma das artes mais antigas da
comunidade, o bilro, seja nas histórias contadas pelas artesãs, nos quadros que
embelezam e contam memórias afetivas vivenciadas em grupo e nos objetos que
fizeram parte do seu cotidiano que hoje servem como artigo para compor o cenário.
69

No interior da casa das rendeiras, encontramos vários objetos que nos


contam e nos ajudam a entender como vivia a comunidade antigamente. Circundam
pelo espaço, fotos doadas pelos moradores, dos diversos folguedos existentes no
bairro, como fotos raras dos Congos de Calçola, das paisagens da Vila antiga,
brinquedos antigos, como as bonecas de pano, estilingue, além de exposições
permanentes de obras de artistas locais. Portanto, esse lugar de memória possibilita
uma experiência estética sensível, rica de significados e sentidos, apontando que a
sua experiência estética tem verdadeiramente uma relação com a memória dos
Congos de Calçola, uma das danças mais antigas da Vila de Ponta Negra.
Símbolo de resistência e persistência, a Casa das Rendeiras é um lugar de
memória, que não está estanque no tempo, já que a comunidade usufrui também
dos meios trazidos pela globalização, ao mesmo tempo que ratifica suas raízes
autênticas de um passado baseado na simplicidade, que ora buscam se manter
inseridos nesse novo mundo globalizado, ora usufruindo dos equipamentos e meios
para a divulgação de sua cultura.
Figura 18– A noite na casa das rendeiras: Tapiocaria da Vó Maria.

Fonte: Jornal Tribuna do Norte, 2013.

Com isso, constatamos que a casa das Rendeiras é um lugar que está em
constante movimentação. Atualmente as Rendeiras dividem o espaço com o
Restaurante e Tapiocaria da Vó. A cerca disso, o JORNAL TRIBUNA DO NORTE
publica,
A Tapiocaria da Vó não quer apenas servir boas refeições. Também quer
ganhar e apresentar um pouco da história da Vila de Ponta Negra. Aberta
em março, a casa tem uma longa relação com a área. De 1988 a 1997, foi o
70

restaurante Rango de Mãe. Depois, serviu de casa e oficina para as


tradicionais rendeiras de bilro, voltando ao comércio só em 2013. Agora, é
um espaço cultural onde se pode degustar iguarias regionais e marítimas.

O JORNAL TRIBUNA DO NORTE, 2013 ainda descreve que,


A Tapiocaria tem a vila com tema. Pelas paredes há mais de 100 fotos com
cenas da movimentação da área; desde paisagens até festas... A decoração
também conta com peças recolhidas entre pescadores e suas mulheres,
como bóias, máquinas de costura antigas, almofadas de bilros, cestas,
esteiras, quadros, etc. as cadeiras e mesas são coloridas. Há dois
ambientes, com direito a uma arejada varanda.

Apesar dos desafios provocados pelo turismo e a globalização, que distancia


os sujeitos de sua identidade, constatamos que Dona Maria, juntamente com sua
família e rendeiras da Vila, reconhece a significância e importância desse lugar
educativo de suporte da memória, não só para a comunidade na qual está inserida,
mas também para as gerações futuras.
Ainda tratando dos lugares de memória, podemos destacar, dentro do
cenário paisagístico natural da Vila de Ponta Negra, o valiosíssimo morro do careca,
encantando a todos que o contemplam nas nuances existentes da sua paisagem
natural. Ele é percebido como o principal cartão postal da nossa cidade, que
observado por olhos atentos, verificam ainda o outro lado as construções que se
erguem imponentes, como espelhos mágicos que tentam incansavelmente capturar
para si os seus melhores ângulos. É o que descreveremos a seguir.

2.1.3 O Morro do Careca

O Morro do Careca (Figura 19) é uma duna com cerca de 120 metros de
altura, margeada por vegetação. Segundo relato dos moradores mais antigos da
Vila, o morro antigamente era completamente recoberto pela vegetação e apenas na
parte central se observava uma faixa estreita de duna, como uma “careca”, daí vem
o nome.
71

Figura 19 – pescadores na Praia de Ponta Negra

Fonte: José Solto, 2012.

A confluência com esse lugar simbólico, resguardado e emoldurado pelo


Morro do Careca, nos permite admirar e constatar a relação sagrada tecida por meio
do (re) conhecimento dos sujeitos entre os corpo, a natureza e a cultura (Figura 20).
Um (re) conhecimento construído, alicerçado nas interações que revelam histórias
do mundo vivido, permitindo-nos fazer múltiplas leituras corporais que pulsam, que
ultrapassam os ritmos e gestos cotidianos.
Figura 20 – O Morro do Careca

Fonte: Leandro Menezes, 2012.


72

A bela paisagem encaixada pelo Morro do Careca sempre fez parte do


cotidiano da Vila de Ponta Negra, por vezes vivenciando a bela paisagem
proporcionada pelo presente que os moradores e brincantes recebiam como doação
ao final da subida, entre outros momentos, fazendo parte do imaginário criado pela
comunidade, um lugar onde habitava seres místicos da floresta, que sempre
protegiam os habitantes do lugar.
Naquela época, o Morro do Careca era conhecido como Morro do Estrondo,
devido a barulhos/estrondos que eram ouvidos pelos moradores e uma fumaça que
saia do topo do morro em seguida. Segundo relato de moradores mais antigos da
Vila de Ponta Negra, na manhã que se seguia, eventos estranhos aconteciam, como
árvores demolidas em grande extensão no morro. Habitavam também no Morro do
Estrondo, entidades míticas como a galinha dos pintos de ouro e o Lobisomem. Nas
noites em que os moradores percebiam que iriam acontecer os estrondos, todos
permaneciam nas suas casas, sob as luzes do candeeiro, na expectativa da
chegada dos estrondos, que vinham para amedrontar o vilarejo.
Na manhã seguinte, os homens da comunidade saiam em grupo para ver os
vestígios deixados pelos estrondos.

Contava-se também que havia um castelo no cume do Morro onde habitava


um Rei, dono da galinha e de seus pintinhos de ouro. Havia, ainda, um barril
que rolava pela duna sem que ninguém conseguisse alcança-lo. Dentro do
barril estava o tesouro do Rei” (CARNEIRO, 2010, p. 90).

Dessa maneira, reconhecemos nesse espaço, um campo propício a


criatividade e estimulante, capaz de transformar, educativo, onde os moradores
criam suas histórias e brincadeiras, tornando-se autor e protagonista de sua história
de vida. Diferentemente do que é percebido atualmente, as crianças brincavam
livres na praia, ruas e calçadas, onde produziam e encenavam estorinhas infantis,
de pescadores que se transformavam em rei.
Dona Helena, brincante dos Congos de Calçola, nos relata que antigamente,
era comum os moradores fazerem suas festividades no alto do Morro do careca. A
comunidade toda participava do evento, subindo o morro para cantar e dançar com
os Congos de Calçola e do Coco de Roda.
73

A comunidade procura manter preservado esse campo lúdico e de


subjetividades, um dos seus maiores bem, o seu cartão postal, um lugar suporte de
memórias e vivências coletivas desenvolvidas pela comunidade mais antiga. Hoje,
alguns projetos voltados para arte e cultura, tem como palco principal esse lugar de
memória, onde as vivências ocorrem aos pés do Morro, onde busca-se resgatar e
mostrar para as gerações mais novas, esse contato entre a cultura/tradição e o meio
ambiente.
E essa tradição não para, uma vez que encontramos na Vila de Ponta Negra
espaços públicos permeados pela interação, passagem, convívio e sociabilidade, e
ainda os contrapontos entre proximidades e distanciamento, memórias
individual/coletivas, que demarcam e ratificam identidades, moldadas por meio da
pratica cotidiana que a vida efetiva como o Campo de Botafogo.

2.1.4 O Campo do Botafogo

Segundo Carlos (1996), os espaços públicos são lugares que o homem


habita dentro da cidade que dizem respeito a seu cotidiano e a seu modo de vida
[...], pelas formas através das quais o homem se apropria e que vão ganhando o
significado dado pelo uso.
Como elemento urbano, o campo de futebol é compreendido como um
agente de transformação social, espaço agregador de inclusões, um local que atrai e
proporciona uma conexão entre os sujeitos que dele se utilizam e o valorizam como
local “destinado a atender a atividades funcionais, sociais e/ou de lazer” (LYNCH,
1997, p. 51-87). Assim, observamos nesses espaços uma relação de
indissociabilidade tecida entre os espaços destinados ao lazer e dos usuários da
comunidade. Ainda, verificamos que esse ele é dotado de um sentimento de
pertença que viabiliza a permanência dos sujeitos nesses nesse lugar.
Hall (2005) nos diz que é nos espaços de uso coletivo que se forma o
cenário para a realização de diversas atividades como circulação, passeio,
recreação, contato com a natureza, socialização ou, simplesmente, observação da
vida que neles acontece, onde se dá a formação de novos grupos e diferentes
74

relações sociais. A apropriação dos espaços públicos tem de ser percebida nas
tensões que a trabalha e que a constitui entre sua distância e proximidade.
O campo do Botafogo Futebol Clube está localizado próximo ao Morro do
Careca (com uma faixa de terra de 6.962,09m²), e é a única área de lazer pública da
comunidade, que vem sendo utilizada pelos moradores desde a década de 1951.
Figura 21 – localização do Campo do Botafogo

Fonte: Google Maps. Adaptado por Daniel Maya, 2017.

O espaço foi criado com a finalidade de desenvolver e fortalecer a prática


desportiva para incentivar a cidadania dos indivíduos participantes no contexto
sociocultural local. Pelas suas atribuições junto à comunidade, desde a sua
fundação, o clube foi reconhecido como de utilidade pública pela Lei Municipal nº
2.398, de 9 de dezembro de 1976 (BOTAFOGO, 2004).
A paisagem do entorno do Campo do Botafogo, (Figura 22 e 23) é uma das
mais singulares da Vila de Ponta Negra, onde encontramos debruçadas as dunas do
Morro do Careca, compondo um cenário que nos convida a apreciar o frescor que
refloresce a alma que quase voa de céu a fora.
75

Figura 22 e 23 – Paisagem do entorno do Campo do Botafogo

Fonte: Acervo da Pesquisadora, 2017. Fonte: Richelly Sousa, 2016.

Por estar localizado em uma área de valor dentro da comunidade,


observamos que o espaço desperta o interesse de grandes investidores, que
tencionam transformar o local em fonte de renda, gerando assim, constantemente
conflitos entre os moradores, que lutam para garantir que esse espaço, que guarda
memórias e resistência, permaneça dentro da comunidade.
Como lugar de memória, seu Pedro Correia, atual Mestre dos Congos de
Calçola, nos relata que esse campo foi idealizado por seu irmão o Mestre Zé
Correia, que juntamente com outros brincantes, fizeram um mutirão de limpeza, para
a retirada da vegetação, passando a abrigar um Campo de futebol, onde a
comunidade pudesse utilizar como área de lazer nos finais de semana. Ainda
segundo relato de Mestre Pedro, não tardou a aparecer um suposto dono do terreno,
reivindicando o local pertencente aos moradores. Dessa forma,

[...] a área foi aumentada aos poucos e hoje é 6.745 metros quadrados. O
mato era arrancado à força, no braço, pelos pescadores que moravam na
praia [...] aqui era ainda vila de casas e o acesso era feito por estrada de
terra [...] criaram o Clube chamado Pau Ferro, com o tempo o nome foi
mudado pra Botafogo [...] (O POTI, 28/07/2002).

Segundo seu Pedro Correia, logo os conflitos pela posse do campo do


Botafogo começaram com o aparecimento de um homem chamado Romário, que
76

chegou no local fazendo medições em um terreno próximo ao Morro do Careca.


Achando a cena estranha, os moradores se aproximaram e indagaram o que estava
acontecendo. Sem fornecer detalhes, ele deixou o número e pediu que o Presidente
do Clube entrasse em contato (O POTI, 28/07/2002). De acordo com o jornal O Poti

[...] o presidente telefonou para o corretor e ouviu dele que o terreno era
uma propriedade privada e que ali seria construído um condomínio de
apartamento [...] ele havia dito ter comprado o Campo do Botafogo por 400
mil reais há dois anos, numa transação com Marcos Santos [...]. (O POTI,
28/07/2002).

Temendo perderem seu espaço de lazer e encontro, a comunidade se


mobilizou para defender o que era seu por direito, divulgando nas mídias a situação
pelo qual os moradores vinham sofrendo a muito tempo, com ameaças do poder
público e privado para a construção de investimento de alto padrão na área.
Em 2003, esse espaço voltou a ser alvo de grandes investidores do setor
imobiliário, que certamente, trariam resultados negativos para a comunidade, como
o aumento da exclusão social e o aumento da violência. Novamente, a população
se mobilizou para mais essa luta, denunciando nos vários canais de comunicação o
fato, na tentativa de tornar público e buscar parceiros sociais de forma a resguardar
o campo do Botafogo em poder da comunidade.
Além de servir como local para prática de atividades esportivas diárias dos
moradores da comunidade, o lugar abriga também várias ações educativas, onde
são ministradas oficinas, voltadas para o artesanato, confecção de brinquedos
antigos, bem como, diálogos sobre questões sanitárias e ambientas para crianças,
adolescentes e adultos.
Preocupado com a situação das crianças que se amontoavam nas ruas e
calçadas da Vila, no contra turno escolar, seu Canindé, morador da Vila, decidiu
cuidar do espaço e coordenar a escolinha do Botafogo. Projeto voltado para crianças
da comunidade, que visa retirá-las das ruas, ocupando o seu tempo livre com o
futebol. Para participar, as crianças devem tirar boas notas e manterem a frequência
em sala de aula. Nesse sentido, o senhor Canindé relata: “Não é só a gente olhar
pra eles, eles tem que olhar pra gente também e saber que a gente está no meio
deles. Tudo que a gente quer é união e o respeito deles. A gente ensina que tem
que ser bom em casa, na rua, pra tudo e pra todos”.
77

Percebemos que, para os brincantes dos Congos de Calçola, o Campo de


Botafogo representa um lugar que guarda memórias, que a partir dos valores
comunitários vivenciados e construídos em coletividade, serviu como instrumento
para a libertação e resistência da população, (re)criando formas de interações e de
locais dedicados ao lazer da comunidade, como também o fz politicamente o
Conselho Comunitário.

2.1.5 O Conselho Comunitário

Os moradores da vila perceberam que precisavam se organizar politicamente


e é desse pensamento que é fundado, em 1987, o Conselho Comunitário14, que está
localizado na área central da comunidade, na rua Manoel Coringa de Lemos,
principal via de acesso à comunidade. Situado próximo a Igreja São João Batista e
ao lado do salão paroquial, este é um dos prédios mais antigos da comunidade,
como se vê na imagem abaixo, fotografado em 2015, dentro do projeto de extensão.

Figura 24: Conselho da Vila de Ponta Negra – Natal/RN

Fonte: Acervo do Projeto de Extensão Encantos da Vila de Ponta Negra, 2015 .

14
De acordo com a Proposta do Regimento do Conselho Comunitário, o Art. 1º diz que este é um
órgão consultivo e propositivo, constituindo-se em espaço de interlocução com vários setores da
sociedade.
78

O Mestre dos Congos, o Sr. Pedro Correia, nos relatou que antigamente o
espaço hoje ocupado pelo Conselho Comunitário, foi cedido pela Arquidiocese de
Natal, ao Bispo D. Eugênio, para a construção de um Centro Social, em 1955. O
Centro Social da Vila de Ponta Negra foi implantado, a princípio, para as mães
carentes da comunidade, onde recebiam doações de alimentos como feijão, fubá,
farinha, além de roupas, vindas de navio dos Estados Unidos.
Posteriormente, o espaço passou a abrigar as manifestações dançantes como
os Congos de Calçola e os demais folguedos para os ensaios. E, ao longo do tempo,
esse espaço diverso foi sendo intensamente usufruído pela comunidade que via nele
um local de acolhida, onde juntos se articulariam para a melhoria da qualidade de
vida da comunidade.
A comunidade enxerga nesse espaço comum e lugar de memória, onde
circulam uma mescla de raças, idades e crenças, um local reservado e propício ao
encontro, a união, a trocas de saberes e experiências, fortalecendo assim, a
identidade da população e o sentimento de pertença ao lugar de moradia.
Em 2004, esse espaço foi testemunho de Mestres, brincantes que devido a
vulnerabilidade e a situação de abandono sentida pelos grupos de danças
tradicionais da Vila, se reuniram no Conselho Comunitário para firmar uma parceria
com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em seu livro, Alves (2010),
coordenadora do Projeto Encantos da Vila relata,

A partir de uma decisão coletiva retirada em reunião no Conselho


Comunitário da Vila de Ponta Negra, em 2004, ficou decidido que em
função da vida artístico-cultural pulsante naquele contexto e pelas
fragilidades que os grupos protagonistas de uma arte tradicional daquela
comunidade enfrentavam, sobretudo em relação à falta estrutura e de
mobilização de cada um e de todos, precisaria ser criado um projeto que
viesse a ser um possível fio condutor dessa mobilização e reestruturação.
Extensivo a esse encaminhamento, houve então a tomada de decisão
referente à criação do Projeto de extensão universitária Encantos da Vila.
(Alves, p. 22, 2010).

Com a implantação do Projeto Encantos da Vila, a comunidade viu


novamente esse espaço de lazer dar vez e voz a arte e cultura produzidas pela
comunidade, promovendo e englobando nele, oficinas, seminários, cursos, ensaios,
reuniões e festas que fazem parte do calendário do vilarejo.
79

Figura 25 e 26: A comunidade com os brincantes e Mestres no Conselho


Comunitário

Fonte: Acervo do Projeto de Extensão Encantos da Vila, 2010.

Segundo o Mestre dos Congos de Calçola, Sr. Pedro Correia, o espaço do


Conselho Comunitário foi um local de grande importância, não só para os
integrantes do grupo, mas para toda a família dos brincantes, já que a maioria das
mulheres – mães, irmãs e esposas dos componentes dos grupos circulavam por ele,
participando de cursos de capacitação, como corte e costura, corte de cabelo e
manicure e pedicura e artesanato.
Ainda de acordo com Sr. Pedro Correia, Mestre dos Congos de Calçola, foi
no finalzinho da década de 1980 e começo da década de 1990, já como Conselho
Comunitário, que os brincantes do grupo começaram a utilizar esse espaço para os
ensaios.
A gente pegava a chave com o Presidente do Conselho Comunitário para
ensaiar. Os rapazes que se interessavam ficavam lá dentro, mesmo
assistindo ele aprendia com os outros. Quando ele ia para o Conselho, ele
já sabia noventa por cento, porque ele via a gente brincando no meio da
rua. Muita gente ia pra lá pra ver a gente dançar e ia aprendendo.

Por isso, o Conselho Comunitário da Vila de Ponta Negra é um lugar onde


brota memórias e lembranças, experiências e vivencias entremeadas no estar junto
entre sujeitos que se identificam, que se expressam corporalmente por meio da
dança, do canto, dos gestos, do riso, sujeitos que se reconhecem como atores e
protagonistas de sua própria história de vida. E é nesse espaço de memória que
80

também se reuniam os congos de calçola, em 2010, dentro do projeto Encantos da


Vila, para seus ensaios, conforme figura 27 seguinte.

Figura 27 – Ensaio dos Congos de Calçola da Vila de Ponta Negra, no Conselho


Comunitário.

Fonte: Acervo do Projeto de extensão Encantos da Vila, 2010.

Reforce-se, portanto, que o Conselho Comunitário é um espaço urbano de


fato, que afeta e ao mesmo tempo é afetado pela manifestação brincante dos
Congos de Calçola, cumprindo assim, seu papel social, como espaço que luta junto
com os brincantes pela preservação, importância e reconhecimento das tradições
locais. Assim, concluímos que esse espaço, tem um papel fundamental dentro da
Vila, principalmente para os moradores mais antigos da comunidade, que o
consideram como um dos lugares integradores de memória mais efervescente do
vilarejo, guardando histórias de brincadeiras, aprendizados, tristezas e vitórias dos
seus habitantes.
81

2.1.6 A Escola Municipal São José

Outro lugar de memória para os brincantes dos Congos de Calçola é a


Escola Municipal São José, que foi fundada na Vila de Ponta Negra em 1947 e
compreende apenas o Ensino Fundamental I. A escola é um campo de saberes,
espaço onde as potencialidades humanas afloram e se desenvolvem, permeadas de
conhecimento e aprendizagens, habilidades, brincadeiras, experiências e trocas
afetivas vivenciadas na coletividade.
Quem não lembra da primeira escola? Da primeira professora? Do lugar
onde costumávamos nos sentar na sala? Das brincadeiras no pátio? Da localização
da Biblioteca? Do empurra, empurra da fila no refeitório? Lembranças como essas,
para muitos, são como quadros valiosos, que guardamos na nossa memória, nos
permitindo instantaneamente uma brevidade do passado. Esses espaços ou lugares
de memórias são agenciadores de sociabilidade para a constituição do homem.
A escola é um espaço inclusivo relevante, onde aprendemos valores e
realidades, aprendizados e conhecimentos, crenças, de experiências individuais e
coletivas, permeadas também por encontros, trocas afetivas, que muitas vezes
carregamos na memória pelo resto de nossas vidas.
Na Vila de Ponta Negra, atualmente, encontramos três escolas do Ensino
Fundamental: a Escola Estadual Jerônimo de Albuquerque, Escola Municipal Josefa
Botelho e a Escola São José. Esta última, conforme relatos colhidos com os
brincantes dos Congos de Calçola, tem uma grande significância para o grupo.
É na Escola São José, onde há mais de vinte anos os Congos em parceria
com a mesma e a Professora de Artes Silvana Maria dos Santos, ensinam para as
crianças da comunidade a brincadeira. A ideia surgiu com o Mestre Sebastião
Correia e a Professora, que viram a necessidade de repassar essa tradição para as
crianças da comunidade, como meio de garantir que gerações futuras pudessem vir
a conhecer, essa que é uma das manifestações mais antigas, ainda presente na
comunidade.
Então, um projeto foi criado, garantindo a perpetuação dessa tradição as
crianças, com o nome de Conguinhos. Os Conguinhos são crianças, que dançam a
brincadeira dos Congos até atingir os quinze anos de idade. Quando a criança
82

chega a idade, caso ela queira continuar na brincadeira, ela é passa a dançar
juntamente com os adultos, nos Congos de Calçola.
Segundo o Mestre dos Congos, o sr. Pedro Correia, dezenas já foram as
crianças da comunidade que brincaram nos Conguinhos, hoje muitos já são casados
e pais de família. Observamos que poucos são os que incentivam a seus filhos a
aprenderem essa tradição, devido à grande resistência da geração mais nova em
aprender. É nessa luta, em manter viva a tradição do lugar e de sua família, que o
Mestre, se empenha, dedicando muitas vezes parte do seu tempo livre, na busca de
melhorias para as crianças que ensaiam e se apresentam, quando são convidados,
como a possibilidade de conhecer outros lugares.
Na escola São José, considerado pelos brincantes dos Congos de Calçola,
um dos lugares de memória da vida social e cultural da comunidade. Nesse
ambiente acontecem os ensaios dos Conguinhos, onde as crianças que também são
alunos desse estabelecimento, se reúnem para vivenciar, garantir e reforçar a
existência de uma das manifestações mais antigas e atuantes da Vila de Ponta
Negra.
Notamos com isso, que a escola São José, é um espaço sociocultural
imprescindível para a manifestação e os brincantes dos Congos de Calçola, que
veem nela, um lugar de acolhida e um porto seguro formador que garantirá que essa
tradição seja perpassada a novas gerações. Nesse sentido, acreditamos que juntos
a escola, mestre e brincantes possam construir efetivamente laços que promovam a
manutenção e a valorização dessa transmissão oral ancestralizada no corpo e
memória do grupo.
83

LITERATURA de Cordel: A Vila de Ponta Negra15

Dentro de nossa casa


E de nosso coração
A vila de ponta negra
É pra nós nossa nação.

O sol que tudo alumia,


Os barcos pra passear,
Ar puro que se respira,
A casa: sagrado lugar.

[...]

Cacimbinha do folclore:
Congo, reis e pastoril
que o povo faz questão
De manter forte e viril.

[...]

Essa imagem inesquecível


Que fica no coração
Nos tempos da segunda guerra
Era o morro da explosão

[...]
O morro era muito alto!
Sorte de quem lá subiu.
A estreita faixa de areia
Pois lá do alto viu

[...]
No terreiro da fazenda,
No claro da lua cheia,
Com tanta gente bonita
Tinha janta e tinha ceia.

15
Programa Geração Cidadã Sistema Brasil Alfabetizado MEC/SME/UFRN. Atividade de Cordel da
Professora de Artes, Isis de Castro, juntamente com os alunos da Escola São José da Vila de Ponta
Negra em 2008, um dos lugares de memória para os brincantes da dança dos Congos de Calçola,
mediado pela professora de Arte Isis de Castro.
84

TERCEIRA EMBAIXADA: OS CONGOS DE CALÇOLA DA VILA DE PONTA


NEGRA: Olhares que pintam e (com) partilham histórias

O Rio Grande do Norte foi a primeira região do país que serviu de laboratório
de estudo dos folguedos populares, coletadas por Mario de Andrade em 1928.
Nessa época, o estado era detentor de um grande celeiro de manifestações variadas
de cultura tradicional.
Dentre as inúmeras manifestações presentes na Vila de Ponte Negra,
ressaltamos a dança dos Congos de Calçola, objeto desta pesquisa. Para tanto, faz-
se necessário dar um enfoque histórico sobre essa manifestação, que é uma das
mais antigas presentes no Brasil e na Vila de Ponta Negra/Natal-RN.
Os Congos é uma dança dramática, fruto do encontro das culturas africanas e
europeias. Essa manifestação foi incorporada a partir dessas duas junções, que
instalando-se no Brasil, deu novos sentidos e significados em suas representações
culturais.
Os Congos é uma dança que relembra combates, celebra a entronização do
rei novo com um cortejo real, através embaixadas, repletas de cantos, danças e
tradições. Alguns pesquisadores afirmam que nos primórdios, essa prática estava
ligada as comemorações mágicas dos mitos vegetais.
No “Dicionário de Folclore Brasileiro” de Câmara Cascudo [1954] se aponta
que a origem escrava, ainda que faça menção a aspectos africanos presentes na
dança, sugere uma certa ambivalência que permeia diferentes análises de
manifestações culturais negras como a congada, porém parece inevitável apontar as
influências ou sobrevivências africanas nas mesmas. Desse modo, os verbetes
“congadas, congados e congos” são definidos como: autos populares brasileiros, de
motivação africana, representados no Norte, Centro e Sul do país. Porém, Cascudo
ressalta que especificamente, como vemos e lemos no Brasil, nunca esses autos
existiram no território africano. É trabalho da escravaria já nacional... (Cascudo,
1954, p. 298).
Mas, historicamente, a cultura afro está presente no território brasileiro desde
a sua formação e desenvolvimento ocorrido no período colonial. É preciso lembrar
que a inserção dessa etnia se deu através da diáspora de origem africana, por volta
85

de 1532, com a fundação da primeira vila no Brasil, a de São Vicente. E, dentre os


grupos que vieram para o país, são destacados: os bantos, nagôs e Jejes, corpos
comprados e aqui escravizados, para desenvolverem diversas atividades, como a
agricultura (SOUZA, 2008).
A partir das marcas culturais presentes no corpo dos negros africanos, os
negros viam nessas práticas, uma espécie de refúgio, celebração, libertação e (re)
aproximação da sua cultura, ou seja, uma forma de resguardar sua historicidade,
movimentos, saberes e práticas culturais carregadas de ritos sagrados.
Muitas foram e são as contribuições trazidas pela soma de saberes africanos
no território brasileiro. Percebemos que quando se trata da dialógica das influências
trazidas por esses sujeitos, costumam-se evidenciar, com os verbos geralmente no
passado, como foram, trouxeram, contribuíram, dando a ideia de eles não
contribuem mais com nossos saberes e fazeres, mas que só serviram no passado,
porém, sabemos que essa troca se dá constantemente, seja ela, através da música,
canto, dança, culinária, religião, filosofia, etc.
Apesar das condições de vida degradante, sofridas pelos negros no seu
cotidiano, eles buscaram nas suas práticas performativas culturais tradicionais, como
os batuques, as danças e o canto, formas de suportar as longas horas de trabalho
escravo, bem como rememorar seus costumes e fazeres da única coisa que lhe
restara, sua cultura. Assim, como diz Cerqueira, (2004) a:

dança dos negros, quando os escravos terminam sua estafante semana de


trabalho, lhes é permitido então comemorar a seu gosto os domingos, dias
em que, reunidos em locais determinados, incansavelmente dançam com
mais variados saltos e contorções, ao som de tambores e apitos tocados
com grande competência, de manhã até a noite e da maneira mais
desencontrada, homens e mulheres, velhos e moças, enquanto outros
fazem voltas, tomando uma forte bebida feita de açúcar chamada grape
(garapa); e assim gastam também certos dias santificados, numa dança
ininterrupta em que sujam tanto de poeira que as vezes nem se
reconhecem uns aos outros” (CERQUEIRA, 1964, p. 107).

Essas incorporações performáticas, ou seja, os saberes tradicionais


ancestralizados, são (re)ligados, (re)interpretado por meio da oralidade e expressões
corporais, que se manifestam no compartilhar com o outro, a partir do cantar-dançar-
batucar (LIGIÉRO, 2011), transformando essas experiências, numa identidade
86

africana, sustentadas por símbolos e significação, a partir de uma história feita corpo
e história feita coisa (BOURDIEU, 2001, p. 83).
Todos esses elementos fizeram e fazem parte de uma troca de cultural, que
foi e continua sendo responsável pela própria formação da nossa cultura afro-
brasileira. Esse conjunto de conhecimentos gerou uma troca cultural, que não só
influenciou, como também promoveu a nossa formação cultural, através de seus
saberes étnicos-culturais, suas tradições.
Esse processo proporcionou a recuperação de elementos de uma cultura
ancestralizada no corpo e memória dos sujeitos dançantes. Sendo assim, essas
práticas muitas vezes vista como recreações, foram, ao longo do tempo, sendo
mesclada no confronto com outras culturas aqui encontradas, ou seja, recuperando,
construindo e (re)criando sua identidade, através de um outro novo contexto,
conferindo, assim, novos sentidos.
Segundo Alves (2006, p. 59), as danças afro-brasileira, busca compreender
os saberes construídos étnica e culturalmente, o que nos faz perceber o corpo como
espaço no qual se produz linguagem e existência no mundo e que muitos
conhecimentos construídos e vivenciados pelos nossos antepassados acabaram se
mantendo em cultura do povo, como é o caso da dança dos Congos de Calçola da
Vila de Ponta Negra.
Por isso, é preciso ressaltar que os congos é uma dança dramática, fruto do
encontro das culturas africanas e europeias. Essa manifestação foi incorporada a
partir dessas duas junções, instalando-se no Brasil, deu novos sentidos e
significados em suas representações culturais. Essa manifestação está presente no
Brasil desde o século XVII, que por meio de Embaixadas, dramatizam um cortejo
real, exaltando personagens dos folguedos como a rainha, príncipes, ministros,
general, vassalos, com seu estandarte e suas indumentárias azuis, vermelhas e
brancas, símbolos de combates, bailados, batucadas, danças e tradições.
87

Figura 28 – Os Congos de Calçola da Vila de Ponta Negra

Arte: Francisco Azevedo do Nascimento16, junho de 2017

A dramatização dos Congos é comandada pelo Mestre, que juntamente


com os brincantes reproduzem e vivenciam esse fenômeno, interligando as
memórias corporais e as experiências sentidas nesse lugar de memória. “O
fenômeno é ele, é seu corpo, sua expressão, seu coro em voz alta, seu cansaço,
sua energia” (OTELLO, 2015). Dessa forma, os sujeitos assim, dramatizam nas ruas,
praças ou terreiros durante o ano todo, não havendo datas específicas para as
apresentações dessa manifestação.
O enredo desse auto conta a história da luta entre as forças do embaixador
da rainha Ginga de Angola contra o rei Dom Henrique Cariongo, seu irmão. A
embaixada, cujo objetivo é o trânsito de tropas da rainha pelas terras do rei
Cariongo, resulta a morte do príncipe Sueno, filho do Rei. A dramatização desse
episódio transcorre entre canto, dança e simulacros guerreiros de espadas, fato
esse ocorrido na Angola do século XVII.

16Criação construída especialmente, pelo Artista Plástico, Francisco Azevedo do Nascimento para a
compor a pesquisa. Francisco Azevedo, assim como eu, fez parte do Projeto de Extensão, o Circuito
artístico-cultural Mestre Zé Correia, em 2012 como bolsista e também organizando ações na Vila de
Ponta Negra, possibilitando vivências significativas nesse espaço onde a arte e a cultura predomina.
88

Cascudo (1982), no seu Dicionário do folclore brasileiro, define as


Congadas (ou Congados ou, ainda Congos) como

autos cujos elementos formadores foram: préstitos e embaixadas;


reminiscências de bailados representativos de lutas guerreiras; a
reminiscência, já mencionada neste trabalho, da legendária figura da grande
Rainha do Ndongo-Matamba, Nzinga Nbandi; e principalmente as
cerimônias, que já em 1674 se realizavam no Brasil, de coroação dos “Reis
do Congo” eleitos negros de variadas etnias que integravam as irmandades
afro-católicas de Nossa senhora do Rosário. (CASCUDO, 1980, p. 42).

Esses reinos fictícios, que envolviam a coroação do Rei dos Congos,


serviam como uma espécie de objeto de manobra social da elite, servindo para
controlar os negros arrendados que viviam nas ruas. Mas os negros, especialmente
os Bantos, souberam, como bem observa Tinhorão (2008, p. 60) “usar com
sabedoria, em proveito de sua continuidade histórica, a estrutura que os brancos
lhes ofereceram”. Tanto assim que foi abolida, em meados do século XIX, a
estratégia escravista da eleição do Rei do Congo”; as celebrações que a cercavam,
em que eram de iniciativa dos próprios negros, permaneceram, transformando-se
em autos ou danças dramáticas. (LOPES, 2008, p.175).
Na Vila de Ponta Negra, a dança dos Congos de Calçola está presente
desde o surgimento da comunidade, sendo transmitida de geração a geração. A
pesquisa revelou que assim como acontece na dramatização dessa manifestação,
os moradores mais antigos da comunidade, lutaram por suas terras tomadas, pelo
poder público a pedido de pessoas influentes na época, que tinham interesse em
tomar para si uma extensa área, que servia de lazer e local para plantação, de onde
era obtido o sustento dos moradores.
A dança dos Congos de Calçola da Vila de Ponta Negra é uma herança que
tem sido perpassada de geração a geração na família Correia. Os mais velhos, logo
cedo procuram iniciar os meninos na brincadeira, por volta dos sete anos de idade,
buscando garantir a tradição e renovar as suas tradições dançantes.
Inicialmente, a brincadeira dos Congos de Calçola foi comandada pelo
Patriarca da família, o Mestre Sebastião Correia, que aos sete anos de idade,
aprendeu a dança dos Congos com seu avô, brincando até sua morte, em 1985.
89

Naquela época, a indumentária dos Congos era composta por uma camisa e
um saiote, só que, com o tempo, os homens se recusaram a dançar de saiote,
sendo modificado pelo Mestre Sebastião Correia, ao invés de saiotes, os Congos da
Vila começaram a usar calçolas, antes usado apenas pelo príncipe. Essa mudança
acabou se tornando uma das principais características para diferenciar os Congos
de Calçola da Vila de Ponta Negra, para os demais Congos existentes na época.
A respeito dessa mudança na indumentária, o mestre José Correia comenta:

Eu era menino criança, uns seis anos de idade e papai brincava os Congos.
Naquela época, brincavam até a madrugada, era uma época que não tinha
droga em Ponta Negra. Eles dançavam de saiote e somente o príncipe, o
Rei, o embaixador, o general e o secretário dançavam de calçola e capa.
Depois papai mudou todo mundo para calçolas porque soube que tinha um
Congos lá em Regomoleiro que era de saiote. Todo mundo brincava
satisfeito. Pegava um lampião pra clarear onde a gente ia brincar. Era na
areia mesmo, com o maior prazer a gente brincava! Hoje só querem brincar
se for num palanque sofisticado (MESTRE JOSÉ CORREIA, 2006).

Destacamos aqui, a forma como o Mestre José Correia traz à memória a sua
vivência nos Congos de Calçola, protagonizada de uma construção histórica, social
e cultural, revelando a sua identidade na arte que se faz cultura. A arte-cultura, por
sua vez, possibilita aos sujeitos vivencias e experiências estéticas, ampliando seus
olhares ao cenário de um (re)conhecimento humano que nos faz mergulhar em
relações sensoriais e emocionais, que dão sentido a nossa existência.
Temos na dança dos Congos de Calçola uma estética espetacular, que
dançam, cantam, gesticulam, marchas movimentos de guerra, de luta entre o bem e
o mal, movimentos e cores, que ora se unem, ora se contrapõem-se, que pulsa
firme, enfurece, e por vezes se deixa levar, naufragar, resfriar, conforme se visualiza
na figura 29, abaixo:
90

Figura 29: Apresentação dos congos de calçola em sua estética de cores e


movimento

Acervo: Projeto de Extensão da UFRN- Encantos da Vila de Ponta Negra, 2010.

Sabemos que o figurino inspira, potencializa a compor e a caracterizar os


personagens na dramaturgia, dando-lhe forma, sentido e significado, trazendo para
a cena imagens e traços das personalidades que permitem pulsações que
ultrapassam as barreiras do tempo e espaço, servindo assim, como uma segunda
pele para os brincantes, construindo expressões corporais que por vezes revelam
traços de sua condição econômica, social e cultural, envolvidas por mensagens
verbais e não-verbais.
Nesse sentido, Pavis (2003, p. 163) nos diz que,

Não é tão fácil dizer onde começa a roupa, e tampouco é simples distinguir
o figurino de conjuntos mais localizados como as máscaras, as perucas, os
postiços, as joias, os acessórios ou a maquiagem. É uma operação delicada
extrair o figurino do conjunto do ator em seu meio (...). Na medida em que o
figurino constitui muitas vezes o primeiro contato, e a primeira impressão,
do expectador do ator e sua personagem, e por ele que poderíamos
começar a descrição.

Cabe ressaltar que, o figurino e os adereços dos Congos são partes


indissociáveis dessa manifestação. Nesse sentido, fazem parte do repertório,
transmitindo beleza no cenário da dramaturgia, atravessados em meio a lutas, cores,
cantos e passos firmes dançados. Observamos o predomínio do colorido na
indumentária dos Congos, nos dois cordões que dividem o grupo, de um lado,
encontramos o cordão azul (simbolizando N.Sª Aparecida), utilizado pelos fidalgos
do Rei do Congo (lado de cima) e representando os cristãos; do outro, o cordão
91

vermelho (simbolizando São Benedito) usado pelo pelos Congos do Embaixador


(lado de baixo) representando os mouros, ou seja, os não batizados.
O figurino dos Congos de Calçola é padronizado. Composto de ternos nas
cores azul e vermelho, em sua forma, observamos, que praticamente todos os
ternos são iguais, com exceção do terno do Rei dos Congos, do Príncipe, do
Embaixador e da Rainha Ginga. As calçolas como é chamada, em sua maioria,
prevalece a cor branca, mas podendo ser encontrada nas cores azul e vermelha.
Os brincantes enfeitam sua cabeça com adornos tipo, coroas, chapéus de
formas variadas, predominando os que fazem referência aos tripulantes de grandes
embarcações antigas. Os chapéus são recobertos de tecidos nas cores dos dois
cordões, enfeitados com lantejoulas, sianinhas, plumas e cordão metalizado (Figura
30). Nos pés, os brincantes usam tênis ou congas branco.

Figura 30 – O Rei dos Congos, do Príncipe, do Embaixador e da Rainha Ginga

Acervo do Projeto de Extensão “Circuito Artístico Cultural Mestre Zé Correia”, da UFRN, 2012.

Impregnado de sentidos e significados, ícone de poder e soberania do rei, a


capa ou manto, é usada para diferenciar o rei de todos os demais. É usada como
acessório na dança dos Congos pelo rei. A comunicação da capa como
indumentária, está associada também aos pulos e gingados que o brincante reafirma
sua força no jogo coreografado de espadas erguidas em punhos guerreiros.
Ainda sobre esse processo criativo, presente no figurino dos Congos,
encontramos a espada (confeccionada de madeira), outro elemento que representa
92

poder, que nas apresentações dos Congos ganha destaque nas cenas de combate
entre os personagens dos dois cordões. A espada é o símbolo do guerreiro, símbolo
de honra, disputas, libertação, que na dança dos Congos são empunhadas pelos
Secretário, Fidalgo, Príncipe e Embaixador.

O secretário, sem capturar o embaixador, fica de frente para os congos,


levanta a espada e faz alguns questionamentos. Logo em seguida, o
Secretário risca o chão com a ponta da espada, fazendo barulho e saindo
faísca. Os invasores abrem alas, deixando o Secretário passar. Embaixador
e Secretário se encontram, cruzam-se as espadas. Começa o desafio, o
jogo de forças, Secretário empurra o Embaixador para trás, falando de
forma arrogante. (NUNES MACEDO, 2015, p. 36).

Constatamos que nesse jogo rememorado pelos brincantes, ao apontarem


suas espadas, enquanto dançam, pulam, se movimentam, criam gestos verbalizados
que envolvem e encantam os espectadores, como o que Porpino (2006) chama de
“escola da vida”, proporcionando um encontro lúdico dançante da tradicionalidade
incorporada nessas brincadeiras. Sobre a importância da integração dos sujeitos
brincantes, com as experiências estéticas proporcionadas pela dança, Porpino
(2006) afirma,
Entendemos também como verdadeiras escolas de vida as danças
populares rurais e urbanas, que propiciam a integração de seus
componentes na busca da vivência estética do dançar, mediada por todo
um contexto também estético, de preparação de seus rituais, incluindo-se
desde o planejamento dos ensaios, a confecção de vestimentas, a
preparação do ambiente cênico, dentre outros. Tais experiências guardam
em si possibilidades educativas que vão além do ensino formal, que são
vividas informalmente, e até mesmo transmitidas e recriadas de geração em
geração, como no caso das danças mais tradicionais (PORPINO, 2006, p.
114).

Na dramatização da dança dos Congos de Calçola, as músicas


acompanham toda a construção do jogo poético encenado pelos brincantes, que
embalados pelos instrumentos (caixa, parede tumbadora, tarol e pandeiro) celebram
dançando, movimentos coreografados que exigem resistência corporal e pés que se
enraízam no solo, executando com empolgação os passos da brincadeira.
Basicamente, o ritmo é um só (binário) para todas as músicas cantadas por
qualquer dos ternos, exceto nos momentos em que, estando parados, vão iniciar os
cantos. As melodias variam, porém, seguindo uma toada própria (VASCONCELLOS,
2009, p. 21).
93

Percebemos que os nomes das músicas e os movimentos são nomeadas


pelos próprios brincantes, preocupando-se apenas com o sentimento proporcionado
pelo cantar e dançar. As letras das músicas no Auto dos Congos de Calçola fazem
referência a “acontecimentos de cada situação ou festa, havendo, por exemplo,
letras que caracterizam o canto da alvorada, cantos em louvores aos santos, cantos
dos ternos, canto de despedida, canto de agradecimento, etc.” (VASCONCELLOS,
2009, p. 21). Basicamente essas cançonetas se dão em três momentos: as
cançonetas nas marchas; as da chegada, quando os brincantes dos Congos
chegam no local das embaixadas e as músicas que são cantadas durante as
embaixadas. Abaixo apresentamos uma música que faz parte do repertório do
momento da chegada dos Congos no local das embaixadas:

Nas horas de Deus, amém


Ai, Pai e Filho e Espirito Santo
São das primeiras cantigas
Ai, que neste auditório eu canto.
Mas eu levava, ô de mim, mas ô Senhora
Mas o Rosário de Maria
Que para nossa viagem
Mas ela seja nossa guia
E uma santa, tão bela santa
Que se festeja noite e dia (Nas horas de Deus amém).
(DOMÍNIO PÚBLICO).

A música cantada é repetida diversas vezes pelos brincantes, “distinguindo-


se os violeiros e os congos, de maneira alternada” (GIRARDELLI, 1978, p. 21),
como nos entremeios dos diálogos, onde os brincantes repetem várias vezes:
Remunguê! Remungá! Alê – lê – rô, prosseguindo assim com o louvor a São
Benedito:
Meu São Benedito
Cabelo de véu
Levai-me meu santo
Estas almas pro céu.
Remungê! Remungá!
A-le-le-rô! A-le le-rô!
O galo já cantou
O galo, o galo, o galo
O galo já cantou
94

Mãe Juana mate o galo


Para dar seu amor
(DOMÍNIO PÚBLICO)

A estrutura coreográfica se mostra na cena de forma simples, mas exigindo


esforço e vigor na execução de alguns passos realizados pelos brincantes. Ao som
das cançonetas, os brincantes vão desenhando e evoluindo movimentos na cena,
com marchas e contramarchas, os ziguezagues das fileiras, troca de lugares,
contornos, chutes, agachamentos ora executados em círculos, ora em fileiras.
A dança dos Congos de Calçola é marcada por dois grandes momentos:
primeiro é o da marcha, também denominado de cortejo, que se caracteriza pelas
evoluções e deslocamentos pelas ruas da vila (duas fileiras paralelas onde segue a
seguinte sequência: Na frente, entre as duas filas, vem o Embaixador dos Congos).
Logo atrás, segue o Rei e seu Estado Maior (um Secretário, um Príncipe e a Rainha
Ginga); o segundo são as embaixadas (dramatização da invasão do inimigo e
evoluções frente ao Rei e seu Estado Maior). No final, vem os congos tocando
instrumentos. Em roda, invasores (Mouros, “de vermelho”) e invadidos (Cristãos, “de
azul”) dançam e festejam juntos. Os Congos relatam que antigamente eles
dançavam (embaixadas), durante toda a semana, nas casas dos moradores da vila
que solicitassem.
Nos cortejos, a marcha é o momento em que os Congos se deslocam pela
Vila de Ponta Negra, onde fazem as embaixadas. A distância e o percurso da
marcha são variáveis. Nas apresentações, a marcha está sempre presente. Em
alguns momentos, ela é mais curta, e dura cerca de 10 minutos; em outros, é mais
longa, cujo deslocamento é feito a pé, e dura cerca de uma hora.
A figura 31 corresponde à marcha. No início da Marcha: O grupo vermelho e
o azul são divididos em duas fileiras paralelas, com a Rainha Ginga, entre as fileiras.
Todos cantando e marchando, vão se deslocando para frente, fazendo as
evoluções.
95

Figura 31 – A marcha

Legenda: Rainha Ginga; Cordão Azul; Cordão vermelho

Figura 32 – Apresentação dos Congos de Calçola na CIENTEC, 2013.

Fonte: Lopes, 2014.

O cordão azul – simboliza Nossa Senhora Aparecida (representa os fidalgos


do Rei do Congo e os cristãos). O cordão vermelho – simboliza São Benedito
(utilizado pelos Congos do Embaixador, representando os Mouros, ou seja, os não
batizados).
A figura 33 representa a evolução dos brincantes que se deslocam em
marcha pelo espaço da apresentação, abrindo-se com passos mais suaves pelas
extremidades, para que haja o encontro dos cordões.
96

Figura 33 – A evolução dos brincantes dos Congos de calçola

Legenda: Rainha Ginga; Cordão Azul; Cordão vermelho

Figura 34 – Apresentação dos Congos de Calçola no SESC/ZONA NORTE –


NATAL/RN, em comemoração ao dia do folclore, 2017

Fonte: Acervo da Pesquisadora, 2017.

A figura 35 representa o retorno dos brincantes pelo centro da fileira,


realizando várias evoluções sequenciadas com as pernas, cruzando-as, pisando
firmemente no chão.
97

Figura 35 – O retorno dos brincantes dos Congos de Calçola

Legenda: Rainha Ginga; Cordão Azul; Cordão vermelho

Figura 36 – Apresentação dos Congos de Calçola no SESC/ZONA NORTE –


NATAL/RN, em comemoração ao dia do folclore, 2017.

Fonte: Acervo da Pesquisadora, 2017.


98

Ao chegar ao local da Embaixada, todos formam um círculo (figura 37) e


realizam movimentos contínuos de agachamentos, pulos e chutes, ao compasso dos
instrumentos musicais até finalizar a embaixada.

Figura 37 – O círculo com movimentos contínuos

Legenda: Rainha Ginga; Cordão Azul; Cordão vermelho

Figura 38 – Apresentação dos Congos de Calçola no SESC/ZONA NORTE –


NATAL/RN, em comemoração ao dia do folclore, 2017.

Fonte: Acervo da Pesquisadora, 2017.


99

Eles dançam com o pé esquerdo sustentando o peso do corpo, enquanto o


direito vai à frente e atrás, enfatizando a projeção do lado direito do tronco para
dentro do círculo, juntamente com o pé direito, concluindo a embaixada em marcha
e se encontrando nos cordões.
Após a morte do Mestre Sebastião Correia, seu filho José Correia – Mestre
Zé Correia, passou a comandar os Congos em 1985, contribuindo significativamente
com sua sabedoria ancestralizados no corpo e na memória, para o crescimento e
notoriedade de uma das manifestações mais antigas da Vila de Ponta Negra. Mestre
Zé Correia, como era conhecido por todos, logo cedo começou a dançar nos
Congos, como é de costume, as crianças são inseridas na brincadeira por volta dos
sete anos de idade.
O Mestre Zé Correia carregava no corpo e na alma as marcas culturais
adquiridas desde a infância, o orgulho e a devoção pelo lugar da Vila de Ponta
Negra e pela brincadeira dos Congos, fica evidenciada nas entrevistas com os
brincantes dos Congos de Calçola e quem conheceu de perto esse Mestre tão
valoroso, sensível e de um coração imenso. É notável o amor e a dedicação que ele
nutria pela brincadeira. Segundo a fala do senhor José Cícero dos Santos, meu pai,
e amigo do seu Zé Correia, com que trabalhou como ladrilheiro por anos na fábrica
de mosaicos Iracema, “ele gostava de dançar, era animado, de vez em quando, ele
pedia o encarregado da firma, para liberar ele, porque ele viajava para fazer essas
apresentações. ”
100

Figura 39 – Os congos de calçola com seus instrumentos dançando

Fonte: http://congosdecalcola.blogspot.com.br/. Acessado em 01/05/17.

O Mestre Zé Correia, após a morte do seu filho, saiu da Vila para morar em
outro bairro da cidade, mas mesmo com essa distância, o Mestre sempre estava
presente nas reuniões do Conselho Comunitário, em eventos e apresentações que
os Congos faziam dentro e fora da Vila de Ponta Negra, mantendo os vínculos
afetivos construídos e solidificados nesse lugar. É notável, persistência e resistência
que o Mestre tinha em manter viva suas tradições, o carinho devotado pelo lugar
onde viveu grande parte e, possivelmente, os melhores anos de sua vida. Esse
sentimento de devoção e coletividade fica latente na fala do Mestre Zé Correia,

Eu brinco pra honrar meu lugar. Cheguei cedo pra arrumar o presépio e
carreguei palha, madeira, mas ninguém tava pra ajudar, se não fosse eu e
Caubi aqui não tinha presépio. Só sei que faço com prazer de fazer, mas
todo mundo tem que ajudar (SR. JOSÉ CORREIA – mestre dos Congos,
2005).

Atualmente, os Congos de Calçola têm entre 18 a 25 brincantes que se


comprometem com as apresentações dos Congos de Calçola. “A faixa etária dos
brincantes é de 12 a 81 anos, sendo a maioria em torno dos 40 anos” (ALVES, 2010,
p. 140). Quanto ao gênero, verifica-se a predominância de homens na cena,
encontrando-se apenas uma figura feminina no Auto, representando a Rainha
Ginga.
101

Segundo relato dos brincantes, antigamente as apresentações dos Congos


eram mais constantes, principalmente fazendo viagens para fora do estado,
participando por vezes de festivais, quermesses e entre outras. Nessa época, os
rapazes tinham orgulho de fazer parte da brincadeira, de exibir sua indumentária ou
farda, dando uma nova postura para esse sujeito. Todas as moças voltavam seus
olhares para esses moços, que com orgulho, estampavam nos seus corpos,
cantando e dançando, como quem se revela para o mundo, ao mesmo tempo em
que percebe e é percebido.
Dessa forma, a brincadeira se tornou um atrativo para os jovens rapazes da
comunidade, que enxergavam nessa brincadeira uma possibilidade de conhecer
outros lugares, de conhecer pessoas, de mostrar suas raízes, já que naquela época
a Vila vivia praticamente isolada da cidade.

3.1 OS CORPOS BRINCANTES

Sabemos que a nossa existência se dá por meio do corpo e da experiência do


mundo vivido, consequentemente percebido. Revelando uma história de vida que é
delineada e construída a partir de registros de vivências corporais que se
transformam ao longo do tempo. Logo, percebemos que existe um corpo que fala,
que é simbólico, sexual e imaginário, que tem coisas que precisam ser ditas, que
comunica e é comunicado, sendo um centro de informações e pesquisa para nós
mesmos.
Da Matta (1997), entende que o corpo brincante é aquele que se manifesta
enquanto construtor de signos sociais subversivos e resistentes à ordem alienante;
é, portanto, o corpo da festa, do jogo, da ginga, da criatividade, do carnaval;
enquanto Santin (1994) diz que o corpo brincante é como um corpo lúdico da criança
que faz coisas não-produtivas; já Huizinga (1980) afirma que corpo brincante é o
corpo que festeja e joga; ambos têm em comum a liberdade, a permissividade, a
diversão, o tempo ritualizado.
Observamos na dança dos Congos de Calçola que os corpos brincantes
expressam raízes e aprendizados ancestralizados, como forma de se relacionar com
seus valores, sua gestica, seus cantos e danças, tudo aquilo que está guardado em
102

sua memória. Esse corpo vivencia cotidianamente os seus movimentos a partir de


relações tecidas nas interações pessoais com os brincantes e a brincadeiras
memorizadas corporalmente.
Os movimentos são elaborados a partir da repetição, ou seja, a força de sua
sustentação, enquanto brincadeira é a resistência de um comportamento restaurado
que, através da reiteração, se renova, criando variadas nuances, integrando
divertimento e jogo, transformados em dança.
O corpo do brincante dos Congos de Calçola está ligado à religiosidade, às
dinâmicas sociais e à herança de suas tradições, intrinsicamente ligadas às
memórias produzidas, que podem ser afetivas ou culturais. Este corpo brincante é a
junção do lugar da memória, do ritual e da brincadeira dentro da movimentação. São
códigos presentes na gestualidade e também subentendidos na simbologia de suas
indumentárias, adereços, ritmos, cantos, presentes na maneira como esse corpo se
locomove, estabelecendo uma relação com o “seu chão”, sua base para a dança.
Além disso, observamos o corpo dos brincantes dos Congos de Calçola
pode ser entendido com uma estrutura física, de pés que se enraízam no chão,
acolhendo as memórias reveladas pela linguagem da dança que se comunica a
partir de gestos produzidos no jogo para o divertimento dos expectadores.
Esses corpos se movimentam a partir de uma pulsação, com um ritmo e
melodia sustentado por uma história, origem que afirma identidades e provoca
resultados com diferentes estilos. Esse corpo brincante permite estabelecer uma
conexão entre uma performance estruturada, conectada por um roteiro, com uma
partitura delineada, mas aberta ao improviso, a surpresa do momento presente e
das relações de comunicação que são estabelecidas entre os brincantes e os
espectadores.
Isso nos faz ver que cada corpo evoca, recorda, cria cultura e linguagem;
interpreta e compreende os fluxos de movimento perceptivos e simbólicos,
recuperados por meio da memória, produzindo assim, outros mundos, outras
possibilidades, de saberes ressignificados entre o vivido, imaginado e o interpretado,
que conforme Ligiéro (2011), são ações indissociáveis, uma vez que, eles formam o
corpo da história, ou seja, se retroalimentam ao mesmo tempo em que vive do seu
103

passado, em constante reação a tudo que percebe ao seu redor; o corpo da história,
portanto, é um corpo que vive das relações e das interações, ocorridas no espaço.
E o corpo presente nas danças tradicionais, é um corpo que acumula
historicidade, advinda de memórias corporais individuais e coletivas inscritas ao
longo do tempo, que caracteriza e representa valores, bem como as singularidades
e subjetividades de um grupo, que tem algo a transmitir, a contar, através de sua
representação dançante, como o caso da dança dos Congos de Calçola.
Desse modo, concordamos com o pensamento de Ligiéro (2011), quando diz
que Performances afro-brasileiras, são ações que são (re) produzidas nas ruas,
calçadas, pátios, praças de igrejas, executadas de forma ritualística. Segundo ele, o
conceito de Performance tem sido usado também para compreender o teatro feito
pelo povo iletrado, seguindo a tradição oral alheia aos modelos greco-romanos.
Dessa forma, a performance é utilizada como sinônimo de apresentação e
representação, de folguedo e brinquedo, quase sempre possuindo caráter festivo
e/ou religioso, mas em muitas destas formas preservam o seu alto grau ritualístico
(LIGIÉRO, p. 68, 2011).
Essas performances ou brincadeiras, coadunam o tempo todo com os
acontecimentos da vida cotidiana, do passado e presente, uma vez que percebemos
nesses corpos, sujeitos atuantes, já que eles não estão cristalizados ou passivos no
tempo-espaço, visto que, no momento em que brincam tornam-se protagonista de
sua própria história.
Essas incorporações performáticas, ou seja, os saberes tradicionais
ancestralizados, são (re) ligados, (re) interpretados por meio da oralidade e
expressões corporais, que se manifestam no compartilhar com o outro, a partir do
cantar-dançar-batucar (LIGIÉRO, 2011), transformando essas experiências, numa
identidade africana, sustentada por símbolos e significação, a partir de uma história
feita corpo e história feito coisa (BOURDIEU, 2001).
Dessa forma, o corpo é uma linguagem de signos, símbolos e significados e,
“possui um maravilhoso equipamento para organizar imagens e conceitos
complexos, arrumando-os de modo a dar-lhes uma ordem pessoal” (KELEMAN,
2001, p. 42). Logo, ele não é coisa nem ideia, é movimento, expressão criativa e
104

sensibilidade (NÓBREGA, 1999, p. 5), que no caso dos brincantes da Vila de Ponta
Negra, criam vínculos e tornam-se corpos relacionais.
Corroborando com o pensamento de Nóbrega (1999), Pereira (2012, p. 62),
diz que o corpo “é o lugar onde processamos o que recebemos e devolvemos o
recebido ao ambiente de acordo com os nossos meios de transformar os
acontecimentos e dar significados a eles”. Logo, o corpo dos brincantes é lugar que
vive em experiência e, através das suas relações, gera transformações e ganha
novos sentidos.
Para a descrição desse corpo-vivo em experiência, nas palavras de Barreto
(2004, p. 104) “[...] é o próprio ser humano que sente, pensa, e age no mundo,
percebido, imaginado e vivido”. E é assim que vivem, trabalham, dançam, se
moldam, se transformam e se representam os brincantes dos Congos de Calçola da
Vila de Ponta Negra.
Considerando esse corpo como instrumento, Laban (1978), nos revela que
ele é também expressão pelo movimento. Assim, o corpo age como uma orquestra
onde cada seção está relacionada com qualquer uma das outras seções e é parte
de um todo.
O corpo para Merleau-Ponty (2014, p. 122) “é o veículo do ser no mundo, e
ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com
certos projetos e empenhar-se continuamente neles”. É também

nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários
a conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo
biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu
sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo
núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores como a dança
(MERLEAU-PONTY, 2014, p. 203).

Esses hábitos motores são, então revelados nos corpos brincantes dos
Congos de Calçola da Vila de Ponta Negra, que, conforme MERLEAU-PONTY (1999)
citado por Vieira (2010), a percepção desse folguedo por esses brincantes se dá
pelo olhar e pela escuta, porque o corpo, ao articular o mundo a partir dos seus
significados, remete o sujeito a sua vida passada.
Assim, se o corpo é representação, é existência, é linguagem; ele é para além
dele próprio, a expressão de tudo, é corporeidade. Em Merleau-Ponty, o conceito de
105

corporeidade, assim como o de motricidade, considera a realidade do corpo além


das dicotomias corpo e mente, natureza e cultura.
Foi dessa forma que Laban, segundo Miranda (2008, p. 17) presumiu o
corpo como mídia primária da cultura, ou seja, como o primeiro meio de
comunicação do homem em seu processo e contexto evolutivo, e propôs que, como
tal, este corpo possui uma linguagem, que pode ser articulada de diversas maneiras,
produzindo diversos significados, sempre reunidos sob a hegemonia do movimento.
Na concepção de Marcel Mauss (1974), o corpo é o resultado de uma
construção simbólica e cultural de maneira que toda sociedade se utiliza das formas
para marcar o corpo de seus indivíduos, sendo portanto, o corpo o instrumento da
consolidação da movimentação, pois “[...] um movimento é apreendido quando o
corpo compreendeu, e o incorporou a seu mundo, pois mover as coisas é, visar às
coisas através do corpo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 65)
Podemos, então, ressaltar que o corpo brincante nessa dança tradicional de
origem africana é claramente um corpo formado exclusivamente por matrizes
culturais tradicionais, portanto, a nosso ver, ainda fixo a uma única visão de
identidade cultural e a um procedimento de criação em dança popular que utiliza o
corpo do intérprete como um depositário e reprodutor de vocabulários e experiências
cotidianas.
Esses corpos-brincantes participam ativamente do cotidiano da comunidade,
são homens e mulheres que desempenham suas funções de cidadão durante o dia
e a noite celebrando com o ócio, suas memórias, seus antepassados nas
brincadeiras, assim, como os brincantes chamam as danças tradicionais,
percebendo esse corpo que é múltiplo e que recebe informações a todo tempo, mas
procurando manter preservada a sua identidade.
É nesse momento que eles deixam de lado todas as angústias, dançando e
cantando, sem se preocupar em criar ou enfeitar passos, uma vez que a intenção
deles não é construir uma coreografia pronta e acabada, e sim, a diversão a
celebração que transborda pelo corpo e que é celebrada na alegria e sorriso de cada
participante da brincadeira, como quem diz: estou aqui e ainda estamos vivos! E
resistindo para manterem vivas nossas memórias, nossas tradições.
106

Assim, o corpo brincante é o corpo que se recria da condição de opressão e


se nutre de possibilidade de experiência lúdica. O corpo brincante também se
manifesta na ação comum dos interpretes (o que pôde ser observado em dois
contextos) de irem além do instituído, de explorarem novas possibilidades de
movimentos, de uso dos espaços e artefatos, de vestirem-se de novos personagens
e experimentarem ser outro corpo no mundo da dança.
107

QUARTA EMBAIXADA: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve como objetivo investigar as memórias dos corpos


brincantes dos Congos de Calçola e dos lugares de memória, para compreendermos
as configurações ocorridas ao longo do tempo, na Vila de Ponta Negra- Natal/RN,
que ao incorporarem, construírem e reconstruírem seus corpos e ações cotidianas,
lutam pelo reconhecimento e reafirmação da sua cultura. Trouxe também as nossas
experiências e memórias enquanto pesquisadora, durante o período que transitamos
nesse lugar.
É preciso lembrar que a Vila de Ponta Negra até pouco tempo era recanto
de pescadores, agricultores, rendeiras, tocadores e contadores de histórias,
sustentados por vivencias artísticas culturais, valores comunitários, transmitidos e
construídos coletivamente por meio da oralidade. Esses processos criativos,
desenvolvidos pelos corpos brincantes, por meio da tradição oral, de suas gesticas,
canto e dança, proporcionaram a produção de um conhecimento em arte, “como
forma de intervenção da realidade” (BENJAMIM, 1996). Assim, os brincantes vão
conduzindo e produzindo seus repertórios, narrativas e saberes historicizados no
corpo quando fazem sua dança, seu canto.
A origem da Vila de Ponta Negra, se confunde com o próprio aparecimento
da dança dos Congos de Calçola, sendo ela uma das manifestações mais antigas na
comunidade. Ela é de motivação africana, que narra um auto de caráter
dramatúrgico e teatralizado, com embaixadas, cânticos, lutas, entre dois reinados,
liderados pela Rainha Ginga e seu irmão o D. Henrique o Rei Cariongo.
Possui uma estética espetacular, onde se dançam, cantam, pulam,
gesticulam-se marchas e movimentos de guerra, de luta entre o bem e o mal,
movimentos e cores, que ora se unem, ora se contrapõem-se, que pulsa firme,
enfurece, e por vezes se deixar levar, naufragar, resfriar pelo sintonia dançante.
Pelos relatos dos moradores e brincantes, verificou-se que os meninos
ansiavam pela obtenção da idade mínima para se dançar os Congos, funcionando
para a família como uma espécie de iniciação, uma apresentação do menino perante
a comunidade, em que a criança era preparada nos ensaios pelos mais velhos, para
108

posteriormente, ter a permissão de se apresentar fora da comunidade com os


adultos.
Para o atual Mestre dos Congos de Calçola, seu Pedro Correia, foi uma
alegria enorme quando seu pai – Sebastião Correia, naquela época, o Mestre dos
Congos, o chamou para fazer parte da brincadeira na infância. E essas memórias
guardadas pelo Mestre e brincantes dos Congos de Calçola, nos revelaram
comportamentos e códigos que nos permitiram acessar e compreender como os
sujeitos, concebem a Vila de Ponta Negra, como lugar de memória que invocam, um
espaço sagrado, guardião de identidades, de pertencimento, de honra, onde se
encontra um rico Patrimônio Cultural Imaterial, único na nossa cidade.
Ressalte-se, aqui, que preservar e recuperar esses lugares de memórias, de
sociabilidade e ações cotidianas, permitem guardar características que ratificam
identidades e o sentimento de pertencimento à coletividade da comunidade,
resultando na preservação da possibilidade de expressão das vozes e imagens
destoantes. Tornou-se importante refletir sobre o lugar de memória em sua dupla
acepção de permanência e transformação, mesmo diante das necessidades
exigidas pela globalização.
No tocante ao turismo, concluímos com o estudo que a Vila de Ponta Negra,
com a inserção de novos moradores, vindo de diversas partes do mundo, tornou-se
lugar de disputas, configurações, que alteraram significativamente a vida dos
moradores, acostumados a uma vida simples. Com isso, a Vila de Ponta Negra
passa a ser constantemente alvo da especulação imobiliária, transformando o
espaço em mercadoria, prática essa adotada pelo sistema capitalista de produção.
Hoje, o bairro Ponta Negra, onde a Vila está inserida, se transformou em
vitrine, ou seja, em área “turistificada” (FURTADO, 2005) para o turismo Nacional e
Internacional, promovendo consequentemente no espaço da Vila de Ponta Negra, a
segregação espacial e cultural dos moradores mais antigos da Vila, onde as
melhores áreas foram ocupadas pelos turistas, detentores de um maior poder
aquisitivo.
Em face dessa nova dinâmica trazida pelo turismo, transformando um
espaço simples em local complexo, percebemos que as relações de sociabilidade
tecidas e (com) partilhadas entres os corpos sujeitos – moradores, imigrantes e
109

estrangeiros, também sofreram alteração no modo de ser e viver da comunidade.


Constatamos na Vila um espaço heterogêneo, onde sujeitos advindos de diversas
partes do mundo circulam pelas ruas, alguns criando elos com a comunidade,
buscando participar do cotidiano e dos problemas vivenciados pelos nativos. Outros
criam e incorporam sua própria dinâmica, com o espaço, (res)significando-os de
acordo com suas necessidades e gostos.
No que concerne ao corpo e suas relações, Merleau-Ponty nos diz que o
corpo se faz conhecer no mundo, vivendo, descobrindo-se, sentindo e se
relacionando. Sendo assim, é um corpo dotado de sensibilidade, que se dá na
relação com as coisas, com os outros, em constante relação com o mundo.
Nesse sentido, o corpo tece relações com o espaço habitado, promovendo
uma espécie de entrelaçamento que reflete a importância de como o homem ver e
sente no momento em que há uma adaptação ou reconhecimento desse corpo ao
lugar, mantendo assim, uma ligação com esse meio, que sofre modificações,
quando toca e é tocado por ele. Refletindo e sendo refletido ou atravessado por toda
energia que está presente no momento da troca, que ora vivencia, observa e
experimenta através do seu corpo essas interferências carregadas de
subjetividades.
Por fim, este estudo se apresentou com o objetivo maior de contribuir e
reconhecer o valor contido nas experiências, memórias do Mestre, brincantes e
moradores, dos lugares de memória da Vila de Ponta Negra, como suporte criativo e
estimulante para uma educação pautada nos valores e resgate de nossa tradição.
Logo, recomendamos a leitura dessa pesquisa em outras Instituições de ensino,
para alunos e professores que buscam entender as manifestações tradicionais, os
lugares de memória, a transmissão oral, a experiências, como linguagem de
aprendizagem, em educação, arte e cultura.
110

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APENDICE
118

ENTREVISTAS

As entrevistas semiestruturada foram realizadas em dois blocos, entre 2016-


junho e Setembro e 2017- Fevereiro, Abril e Junho, com o mestre e brincantes dos
Congos de Calçola, Rendeiras e moradores da Vila de Ponta Negra. A partir desses
relatos, podemos perceber melhor as Configurações ocorridas no espaço da
comunidade, além de observamos como esses corpos (nativos e os moradores
vindos de outros lugares) interagem e comportam-se, qual a importância desses
lugares suportes da memória, bem como a importância da dança dos Congos de
Calçola, uma manifestação de cultura autêntica, persistente e resistente na
comunidade.
Para as entrevistas, utilizamos uma linha base de perguntas, que a princípio
nos dariam norteamentos, mas cada entrevista fluiu de acordo com seu próprio
ritmo. Todas as entrevistas tiveram o áudio gravado, colhemos também fotos antigas
da dança do Congos de Calçola, cedida por Mestre Pedro Correia.

Perguntas norteadoras (para o Mestre, brincantes dos Congos de Calçola e


moradores):

1. Há quanto tempo reside na vila de ponta negra?

2. Me relate como era e como viviam antigamente os moradores?

3. No seu ponto de vista, aonde começa e termina a vila de ponta negra?

4. Quando começou a fazer parte da brincadeira?

5. Há quanto tempo é mestre dos Congos?

6. Como são organizados os ensaios?

7. Muita gente vem assistir a vocês?

8. Você tem familiares que também participam do grupo? Quem?

9. Existem crianças aprendendo?

10. O grupo dos Congos de Calçola, já se apresentaram fora da vila?


119

11. Quais as principais mudanças que você observa hoje no espaço da vila de

ponta negra?

12. Como é sua relação com os novos moradores, que se instalaram aqui devido

ao turismo?

13. Quais os espaços da Vila são mais utilizados pela comunidade?

14. Você considera que a dança dos congos de calçola é importante para a

cidade do natal? Por que?

15. Você conhece sobre a origem e a história dessa dança?

16. O que significa para você a brincadeira dos congos de calçola?


120

PERGUNTAS BASE (RENDEIRAS DA VILA DE PONTA NEGRA):

1. Há quanto tempo reside na vila de ponta negra?

2. Relate como era e como viviam antigamente os moradores da vila?

3. Como foi a relação da comunidade com a chegada dos norte-americanos na

praia?

4. Como a comunidade se divertia antigamente?

5. Como surgiu a Casa das Rendeiras?

6. Qual a faixa etária das Rendeiras? Elas possuem outra fonte de renda?

7. Como a comunidade se relaciona com esse espaço?

8. Para você qual a importância da Casa das Rendeiras para a comunidade?

9. Os jovens se interessam em aprender a renda de bilro?

10. Atualmente quem são os maiores compradores de renda de bilro?


121

TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS FEITAS COM OS MORADORES E


BRINCANTES DOS CONGOS DE CALÇOLA DA VILA DE PONTA NEGRA

ENTREVISTA COM PEDRO CORREIA, MESTRE DOS CONGOS DE CALÇOLA

“Quando eu brinco nos Congos, eu alimento minha alma.” (Mestre Pedro Correia)

Quando você chegou aqui (se referindo a mim) há uns quatro anos atrás,
você não sabia talvez a Vila de Ponta Negra. Você tinha informações da Vila, não
conhecia. Quando você chegou na Vila de Ponta Negra, viu aquela igrejinha, que é o
cartão postal da Vila. Você viu que a igreja foi construída a quase cem anos atrás, a
vila tinha uma cultura diferente.
Naquela época, que a vila era uma vila de pescador, a gente fazia roçado e
pescava. E quando eu nasci, aquela vila tinha aproximadamente 120 casas no
máximo. Bem pequeninha a vila. Acontece que foi mudando a vila, foi crescendo,
más que as danças folclóricas naquela época já tinham. Eu me inspirava muito no
Pastoril, no boi calemba, que era o bumba-meu-boi. Tinha a Lapinha que era muito
religiosa, tinha os Congos, o Bambelô que era o coco de roda naquela época.
A Vila de Ponta Negra era pequena, más no final de semana ela se
transformava grande. Todo mundo não tinha pra onde ir. Não tinha energia elétrica.
Daquela casinha (apontando para a casa que se encontra em frente à sua casa, a
mesma onde morou seu pai) nós fazia uma tendazinha de palha. Tinha muitos
coqueirais, só era pé de frutas.
As famílias que foram os fundadores da Vila de Ponta Negra são: os
Correias, de Lima, Prazeres. Meu pai era Sebastião Francisco Correia, a gente era
uma família muito pobre. Vivia de roçado, pescando e minha mãe, que era prima do
meu pai, ajudava meu pai, com os afazeres doméstico, uma mulher do lar. Nessa
época todo mundo ia pra igreja. A igreja ficava cheia com pessoas da comunidade.
A gente trocava muitas coisas, porque a comida era pouca. Era um regime
militar que o Brasil se transformou. A gente sofria muito com a miséria. A gente até
agradecia naquela época, a Dom Eugênio Araújo, que pedia alimentos, era a Aliança
122

para o progresso, quando era John Kennedy que mandava navios de alimentos,
para o mundo todo e o Brasil passava uma fome grande. Nessa época a gente
dividia tudo: a alegria e a tristeza. A Vila cresceu, não é mais uma comunidade, más
o sentimento ainda existe, pouco mais existe.
Ai acontece que na Vila de Ponta Negra os pobres era beneficiado com
aquela alimentação, roupa que vinha dos Estados Unidos. E a Vila foi crescendo e
as danças ainda ficava né. As danças no final de semana, aquelas manifestações.
A igrejinha tava aberta lá, as crianças como eu saia com um santo e aquelas
lanterninhas, cantando aquelas músicas religiosas, que pra mim era a coisa mais
linda do mundo, que acabou né. Era N. Sra da Apresentação, N Sra do Rosário, era
São João Batista, São Sebastião.
Toda festa religiosa nós participava, tinha aquelas barraquinhas ao redor da
igreja e nós ia se apresentar lá. E eu pequeno sete anos, ficava até com inveja de
quem tava dançando. Mas meu pai não deixava, porque eu era muito pequeno
ainda, então ficava assistindo com minha mãe. Até que teve um tempo, que foram
num pau de arara para o Teatro Alberto Maranhão, que nessa época, era Carlos
Gomes na Ribeira.
Ai quando eu vi as luzes lá, e os enfeites dos grupos, uma coisa linda que
aqui não tinha, eu disse: olha que mundo bacana, eu vou brincar congos quando eu
crescer, porque as luzes vão me iluminar. Era tão bonito, era luz a motor, mas pra
quem não tinha era uma riqueza muito grande.
Meu pai disse a mim que era uma dança de origem africana, que os
africanos vieram para o Brasil, os Portugueses trouxeram o Pastoril, o boi também é
africano. Eu fiquei na minha sem dançar. Ai quando cheguei a uns oito anos ai eu
comecei a dançar.
O terreno da barreira do inferno hoje, era onde a gente fazia o roçado, busca
lenha lá, porque a gente era muito pobre. A gente buscava madeira pra fazer o
palco, as casas que era de taipa. Essa mata serviu pra muita coisa. Tudo vinha de lá
da mata. Mas o tempo tava crescendo e prejudicando as madeiras, as lenhas se
acabando.
123

Naquela época ninguém queria tomar conta da Vila de Ponta Negra, até hoje
estamos em 2015 e a vila é abandonada. Uma hora era administrado por
Parnamirim e outra vez por Natal, ai ficava naquele jogo de empurra empurra.
A primeira escola da Vila – Escola Estadual Jerônimo de Albuquerque foi
construída em 1947, para atender os moradores. A escola ainda está praticamente
da mesma forma, que a fundação, só cresceu pra cima, um andar. A segunda escola
foi a Escola Municipal São José, fundada no governo de Djalma Maranhão, em
1961, a partir do Projeto de pé no chão também se aprende a ler. No começo a
escola ainda era menor que hoje em dia, só tinha uma sala, no governo seguinte
construíram mais 2 salas.
Nessa época aqui não tinha energia, a gente queimava lenha, a água era de
cacimbão, pois não tínhamos água encanada. A energia só veio chegar em 1975 e a
água já no final da década de 1970.
Quando eu era pequeno, tinha festa lá em Santos Reis (bairro), mamãe
levava eu pra festa, e a gente ia a pé. Eu sofria demais, dormia no caminho, no colo
de mamãe, ou no pescoço do meu pai.
Nos congos desde criança eu já cantava, só tinha eu e mais um, o resto era
tudo gente grande, adulto, pai de família. Meu pai cantava e eu respondia. Ele
colocou eu e meu irmão (José Correia) que era mais velho que eu, pra gente
aprender, pra mim substituir um dia ele.
Eu fui crescendo, quando cheguei aos nove anos meu pai comprou uma
roupa pra mim (se referindo ao figurino dos Congos de Calçola), ai eu comecei a
dançar e de lá pra cá não parei mais. Aos dezoito anos ele me levou para me
apresentar na Fundação José Augusto, para ajudar ele.
Eu falava com Deífilo Gurgel, que tava estudando a cultura. E lá eu fui
conhecendo outros mestres, como Cornélio Campina, Pedro Guajiru e outros.
Quando meu pai morreu eu tava com trinta anos, ai ficou eu e Zé Correia (irmão
mais velho) como Mestre dos Congos.
Quando eu chegava lá em Nova Descoberta, onde meu irmão Zé morava, o
grupo já tava todo enfeitado, tudo elaborado, as músicas que eu ia cantar com ele.
Ai quando chegou a uns cinco anos atrás meu irmão morreu, ai eu fiquei só. Por que
124

era nós três: papai, Zé e eu. Agora estou tomando conta do grupo, com a ajuda de
Helena (brincante do grupo) e Silvana (Professora).
Meu pai quando era vivo, dava aula aos meninos, com a morte dele passou
para meu irmão Zé Correia, agora eu com a Professora de Artes Silvana, a gente
ensina a brincadeira dos Congos as crianças da Escola São José há mais de vinte
anos. Os ensaios e uma vez por semana – aos sábados a gente ensaia com os
Conguinhos e renovando os passos e dando continuidade e que eles nunca se
esqueçam que a Vila teve grupo de cultura.
Os Congos é uma dança de africanos, escravos, dizia meu pai. Aqui
antigamente a Vila era como um quilombo, porque ficava da cidade, na verdade
Ponta Negra era Município de Natal, passando a ser bairro na década de 1970.
Para nós moradores antigos da Vila a riqueza é morar perto da família, é
estar perto da nossa cultura.
A Congada tem em muitos lugares no Brasil. Aqui a gente chama de Congos
de Calçola porque eles dançavam o Congo de guerra, porque guerreava muito, aí
nos anos de 1980 terminou, tirou as calças compridas e colocou umas bermudas,
daí Congos de Calçola. E lá em Regomoleiro tinha os Congos de Saiotes.
Naquela época a gente vivia o mesmo pensamento, o mesmo amor. Na Vila
tinha poucas casas, o que um chorava o outro chorava também, se um ria o outro
ria, e todo mundo era uma família só, todo mundo se ajudava.
Nas festas da comunidade – janeiro, junho e dezembro, os grupos dos
Congos, do Pastoril, o Bambelô, do Coco de roda, o Boi de Reis se apresentavam, a
gente fazia aquelas tendas com tochas de fogo, pra gente poder dançar, brincar, pra
gente aquilo era a maior alegria. Naquela época era a única coisa que trazia alegria
para nós, era a dança. Eu penso que eu não perdi não, eu ganhei com essa
diversidade toda.
Os Congos de Calçola, faz parte da minha infância, eu nasci com essa
cultura e quando morrer vou levar comigo.
As apresentações dos Congos na Vila, acontece em frente a Igrejinha
(referindo-se a Igreja São João Batista), todo dia eu vejo minha igrejinha, onde me
batizei, onde me casei, me comunguei, onde eu rezei. Então lá é a melhor
apresentação.
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Antigamente a gente ensaiava sem a roupa dos Congos nas quartas feiras a
noite, aí quando era no sábado e domingo tinha apresentação com as roupas (o
figurino) aqui perto da minha casa (na rua da floresta) do Pastoril, dos Congos. Meu
pai organizava o Pastoril e os Congos. Nas noites de lua, sentava no chão
pescadores, agricultores, porque tinha um senhor com um lampião e ia ler livro de
cordel e as superstições, como a da mula sem cabeça, se a árvore voasse estava
adivinhando morte e por ai vai.
Os moradores da Vila foram vendendo suas casas, onde foram construindo
prédios. As terras lá de baixo (o mestre se referindo as casas em frente à praia de
Ponta Negra) eram de pescadores, que foram vendidas por preços baratos para os
veranistas a partir dos anos de 1960.
A maioria dos moradores nunca tinha ganhado dinheiro vendendo terras. Ai
com a chegada dos veranistas, foi construindo o calçadão da praia. Antigamente
Ponta Negra não era Natal para os natalenses, porque era muito distante aqui. Os
natalenses vinham fazer pique nique na praia. A gente descia pra praia para vender
peixe frito, água de coco para as pessoas que vinha aqui para fazer o pique nique.
Ponta Negra também não era a praia preferida de Natal nessa época. A
praia que enchia de gente era praia de areia preta, o pessoal ia veranear lá, porque
tinha umas casinhas pequenas de pedra.
Natal começou a ganhar do turismo, ai Ponta Negra começou a crescer,
porque é uma praia bonita, tem uma visão bonita, ai acontece que nós que era
morador, ganhamos por uma parte e perdemos por outra. Os veranistas vieram pra
cá, mais a gente mesmo era desprezado pela sociedade, até hoje é desprezado.
Na Vila a maioria das mulheres e esposas dos brincantes dos Congos
sabem fazer a renda. A minha mãe sabia fazer renda muito bem, minha irmã
também aprendeu.
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ENTREVISTA COM DONA HELENA (BRINCANTE DOS CONGOS DE CALÇOLA)

Quando eu ensinava aqui na comunidade, eu sempre fui uma pessoa com


muita criatividade para fazer as coisas. Sempre que nas reuniões eu inventava uns
teatros rapidinhos. Quando eu ensinava, eu não ensinava só com o giz e o quadro,
eu movimentava as crianças. Eles adoravam que eu contava histórias, sentava e
fazia as histórias com eles sendo os personagens dessa história, do chapeuzinho
vermelho. Eu ensinava pra eles e eles faziam as dramatizações.
Desde menina que eu danço. A noite se reunia aquele monte de criança e ia
brincar de dançar no terreiro de casa. A gente brincava de Pastoril, de Coco e
Bambelô, era parte do nosso cotidiano, fazer essas brincadeiras.
Como eu sempre gostei de dramatizar e era prima do Mestre Zé Correia, um
dia ele me chamou pra ser a Rainha Ginga dos Congos de Calçola, ai nessa época
também eu já tinha um grupo de Pastoril e ele interpretava o palhaço no pastoril.
Hoje além de brincar eu também ministro curso de renda de bilro, oficio que
aprendi ainda menina com minha mãe. Os cursos eu já dei em vários lugares de
Natal, aqui na Vila eu estou sempre lá, na casa das rendeiras, com dona Maria. Lá
eu ensino e aprendo, são horas de muito divertimento, a gente fala da Vila
antigamente, a gente rir, a gente chora, a gente canta enquanto tece a renda, a
gente entra em contato com gente de vários lugares do mundo, nos organizamos
também passeios para as rendeiras.
Na nossa comunidade a gente temos a nossa riqueza que é a nossa praia,
mas não era essa praia, era outra praia. A gente fazia muita brincadeira boa na beira
da praia. A tarde descia aquele montão de mocinha e rapaz só pra subir o Morro do
Careca e descer rolando. Hoje eu conto para os netos, as aventuras que a gente
fazia em cima do Morro do Careca.
Eram muitas as aventuras que a gente fazia, a gente ia pra o rio do jequi,
que é muito longe daqui. A gente saia de madrugada, e íamos por dentro dos
morros, andávamos muito e ainda subíamos uns três morros pra chegar nesse rio,
que se chamava rio do Jequi. Nessa aventura ia muita gente, cada um com sua
trouxinha de roupa na cabeça, para lavar roupa, porque ninguém aqui tinha água.
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Enquanto a roupa ficava secando, a gente fazia um almoço comunitário,


cada um levava uma comida, fazíamos a comida numa panela de barro a lenha que
a gente recolhia dos matos. E nisso passávamos o dia todo, depois da lavagem de
roupa, tomávamos banho de rio e descansando para volta. De tardezinha a gente
arrumava as coisas, fazia novamente a trouxa de roupa, que ficava bem enxutinha e
bem branquinha, para voltar.
Nessa época a água era comprada, porque só tínhamos água da cacimba
grande, que ficava perto da praia, antes do calçadão. Essa cacimba foi cavada e
feita pela comunidade. A água dessa cacimba era doce, uma água maravilhosa, que
criou toda a comunidade de Ponta Negra.
Os moradores de antigamente foi criado em contato com a natureza.
Tínhamos roçado, a gente aí e colhia melancia, feijão, milho, mandioca. Tinha aqui
uma casa de farinha, raspávamos a mandioca na luz do candeeiro.
As festas que organizávamos eram muito boas. A gente fazia competição
entre os jovens, das moças contra os rapazes para arrecadar alimentos, para quem
fizesse a melhor apresentação de fogos na noite do festejo. Toda a comunidade se
mobilizava para os festejos.
A igreja ficava repleta de fiéis, ao redor da igreja tínhamos barraquinhas com
comidas típicas, tinha um parquinho, simples com alguns brinquedos, que ficava
localizado próximo de onde é o Conselho Comunitário. Nessas noites a gente vestia
a nossa melhor roupa, todo mundo se enfeitava, com fitas, vestidos com babados,
laços, era um tempo muito bom.
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ENTREVISTA COM DONA MARIA,


A FUNDADORA DA CASA DAS RENDEIRAS

Antigamente a Vila era uma vila pobre, era só casa de taipa, casa de palha,
não era nada do que é hoje em dia. Eu como eu tava dizendo a você, quando eu
cheguei aqui, porque eu nasci e me criei aqui, então eu ouvia o pessoal dizer que as
casas era mais pras bandas da praia. Essa rua aqui (a rua que ela mora desde
criança) era bem pobrezinha, com casas de taipa, umas aqui e outra acolá. E aí
depois foi mudando, mudando e hoje ta desse jeito. Hoje não é mais Ponta Negra, é
a Vila de Ponta Negra, porque tiraram o nome de Ponta Negra e botaram no
conjunto.
A gente tinha muito terreno desocupado, tinha muita coisa boa, a gente não
tinha medo. A gente saia a qualquer hora da noite, o medo que se tinha era só de
uma alma. Era assim, de uma ponta a outra nunca via nada, tirando também que o
povo antigamente havia lobisomem, aí quando caia a tarde ai diziam: tem
lobisomem aparecendo por ai, o povo tudo tinha medo.
O Morro do Estrondo, todo ano quando começava o inverno estrondava. O
morro antigamente era bem alto e o mato bem estreitinho, de lá em cima do morro
avistava Parnamirim, a gente via as luzes de Parnamirim tudo clarinha, más não
Parnamirim como é essa cidade que é hoje, era só umas luzinhas mesmo.
Os americanos começaram a vim em Ponta Negra, eles não vinham aqui pra
cá (se referindo a Vila), eles iam pra perto da Via Costeira, aqui tinha mais mato
mesmo. O povo antigo dizia que lá tinha uma casinha por lá, então eles iam mais pra
lá. Lá o pessoal vendia fruta, tapioca, porque eles não sabiam o que era e vendiam
renda também.
Eu ouvia minha cunhada falar que ela ia também vender e que ganhava
muito dinheiro nessa época para os que negociavam lá. Quem soube aproveitar
comprou até alguma coisa. Mais ai minha filha, depois acabou-se tudo, nós agora
vive uma vida assombrada, aqui as rendeiras ainda botam a cadeira ali, ai fica um
pouquinho do lado de fora, mas em outros cantos por ai ta perigoso.
Para se divertir, aqui existia assim: o pastoril, a Lapinha era a diversão do
pessoal. E aquele outro pessoal que não brincava ia olhar. As vezes tinha canto
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quando terminava o Pastoril, aí tinha o forró, uma coisa assim. O Pastoril se


apresentava no mês de junho e a Lapinha no mês do Natal. O boi de reis, os
Congos de Calçola, toda vida existiu essas coisas aqui. Então esse era o
divertimento do povo.
O lugar específico pra dançar o Pastoril, tinha um mercearia, bem ali onde é
o Conselho, então ao lado fazia o parquezinho. O dono da mercearia achava bom o
Pastoril porque vendia. A Lapinha onde é hoje as oficinas, ali também tinha uma
mercearia que antigamente se chamava bodega, ai lá o dono também aceitava fazer
aquele pátio grande, que é um espaço grande pra fazer a Lapinha, que também era
bom pra o bodegueira que vendia. Tinha outro lugar também, onde hoje vende
plásticos, lá na entrada da Vila, tinha outro Pastoril, ai as vezes o daqui disputava
com o de lá.
A luz que a gente tinha era de candeeiro bem grande. Nas festas a gente
colocava dois ou três candeeiros pendurado e era o que clareava tudo. Quando a
noite era de lua era muito bom, más assim mesmo enchia de gente e quando
terminava aquilo o povo ia tudo simbora pra casa e ia sem ter medo de nada, que
não tinha perigo nenhum. Hoje não tem nem mais brincadeira, porque se acaba em
briga, em tiro, em pedrada.
Eu tinha muita vontade de aprender. Eu ia pra escolinha com sete anos e
quando eu chegava de meio dia minha mãe já tinha feito alguma coisa pra gente
comer, eu acabava de comer, ai a ela sentava na areia e ali botava a almofada e
começava a trabalhar e eu não brincava, eu ficava olhando, olhando minha mãe. Ai
depois minha mãe disse: você que aprender isso aí? Eu disse que queria e eu
queria mesmo. Aí ela foi e pediu a mulher que me ensinasse. A mulher disse que me
ensinava e que e preparasse a almofada, comprasse os bilros, ai ela comprou os
bilrinhos e fez a almofada e ai ela me ensinou.
No correr do mês eu fiz dez metros, um biquinho bem estreitinho, com isso
minha mãe vendeu, aquele povo que vendia renda numa caixinha, que antigamente
chamava caixa de biscoito, ai eles compravam renda em Pirangi, Alcaçuz. Nessa
época só se vendia renda estreitinha, ninguém trabalhava nessas coisas não. A
gente fazia as rendas e ia juntando, quando chegava o homem comprando ai todo
mundo avisava um pro outro, fulano chegou pra comprar renda, o meu minha mãe
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vendeu por cem cruzados. Com esse dinheiro minha mãe comprou roupa pra mim,
comprou calçado, comprou pano pra fazer calcinha, tudo com o dinheirinho da renda
e ainda ficou com um restinho.
Então eu era menina ainda, aprendi isso com sete anos, foi um dom que
Deus me deu. Hoje estou com setenta e seis anos e eu ainda estou com ele e me
serve muito. Agora aqui nas rendeiras quando tem curso, ai eu nem tô mais
ensinando, eu passo pra uma rendeira antiga também, más sempre fico olhando
sabe, mais eu não estou podendo ficar muito tempo em pé por causa da coluna, os
músculos, os ossos dói. Eu gosto muito do meu trabalho e só deixarei de fazer esse
trabalho, quando eu não puder mais.
Essa casa das rendeiras era um terreno, nessa época a gente morava lá
pra trás, eu com minha mãe numa casinha de palha. Ai quando meu pai morreu a
gente veio morar aqui. Quando a gente veio para cá, minha mãe pediu a uma
mocinha para me ensinar a fazer uma renda mais larguinha, cheio de traço. Ai
comecei a fazer trabalhos maiores como toalha e colchas. Hoje a gente aqui faz de
tudo, vestido até sandália de renda de bilro.
A Igreja da Vila, quando eu era criança já existia aqui. Ela era muito
pobrezinha, ai ela foi aumentando com o tempo Quando eu era menina eu me
batizei ela era de pedra preta. A pedra era igual à da praia. Uma vez chegou a cair o
teto da igreja, de tão velho que estava.
Hoje a gente tem um padre que cuida muito bem dela, hoje ela é a paróquia
de São João Batista, e hoje ela está bonita. A nossa igreja é tudo pra nós, e eu que
moro aqui bem pertinho, eu chego daqui eu tô vendo o padre rezando a missa ali.
Faz cinquenta anos que moro só aqui, nesse canto, que era um ranchinho
de palha. Ai depois passei pra essa outra casa (se referindo a sua casa, que fica ao
lado do espaço da casa das Rendeiras).
Aqui antigamente, a mais ou menos quarenta anos, onde é a casa das
Rendeiras era um restaurante do meu filho. Ele me pediu esse pedacinho pra fazer o
restaurante, ai eu fui e chamei os irmãos, combinei que ia mandar ele fazer um
restaurante pra fazer a vida dele, porque ele não tinha emprego. Ai depois começou
a ter muitos restaurantes na beira da praia, restaurante chique por causa dos
veranistas, com isso o restaurante foi a falência.
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Meu filho, um dia chegou pra mim e pediu para mim juntar umas Rendeiras
pra eu tomar de conta, porque essa tradição ta se acabando e essa tradição é uma
coisa que vem das raízes. Ai eu disse – meu filho eu tomar conta de um bocado de
gente de idade e mais idosa do que eu. Nessa época esse espaço aqui já era um
salão só, ai ele fez esse espaço pras Rendeiras. Tinha duas turmas: tarde e noite.
Com o tempo ficou só a turma da tarde.
Com a remodelação das barracas na praia, meu filho hoje criou também um
restaurante, Tapiocaria e uma lojinha, onde a gente vende nossos produtos. Então
quem chega aqui, quem quiser comer tapioca come, quem quiser almoçar, quem
quer aprender a renda, também aprende, e assim a gente vai levando a vida.

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