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NATAL/RN
2017
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RN/UF/BCZM CDU
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BANCA EXAMINADORA
Natal-RN
2017
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AGRADECIMENTOS
A Deus que nunca me abandona e que me cobre sempre com seu manto de luz e
sabedoria! Obrigada Deus por tudo que tu fizeste e farás na minha vida.
Ao meu companheiro de todas as horas, a meu amor, meu amado! Daniel Siqueira
Maya, que embarca comigo nas aventuras e caminhadas da vida.
Aos meus sobrinhos Leandro Müller dos Santos e Emily Rachel dos Santos, por
existirem e serem parte de minha alegria e orgulho. Amo vocês!
Aos meus irmãos Carlos Alexandre dos Santos e José Aldecy dos Santos.
A minha sogra Cenira Siqueira Maya, pela generosidade e todo apoio dado.
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DEDICATÓRIA
RESUMO
Esta pesquisa busca investigar as memórias dos corpos entrelaçados aos lugares
de memórias vividos pelos brincantes dos Congos de Calçola da Vila de Ponta
Negra- Natal/RN. Para o desenvolvimento e compreensão da pesquisa, apoiamo-
nos na Fenomenologia de Merleau-Ponty, que é capaz de desvelar o tema, ou seja,
mostrar aquilo que se mostra e não aquilo que parece ser e, para isso,
consideramos o olhar fenomenológico de brincantes da Vila, com ênfase no Grupo
Congos de Calçolas que, ao incorporarem, construírem e reconstruírem seus corpos
e ações cotidianas, lutam pelo reconhecimento e reafirmação da sua cultura.
Transitamos na Vila a partir da experiência enquanto pesquisadora sobre o
fenômeno desde a Graduação em Dança, e visitamos lugares de memória que,
configuram-se como sendo o resultado das construções dos grupos sociais que
determinam o que é memorável e os lugares onde essa memória torna-se
preservada.
ABSTRACT
This research seeks to investigate the memories of the bodies intertwined with the
places of memories lived by the players of Ponta Negra - Natal / RN. For the
development and understanding of the research, we rely on Merleau-Ponty's
Phenomenology, which is capable of revealing the theme, that is, showing what is
shown and not what it seems to be, and for this we consider the phenomenological
With emphasis on the Congos de Calçolas Group, which, by incorporating,
constructing and rebuilding their bodies and daily actions, strive for the recognition
and reaffirmation of their culture. We traveled in the Village from the experience as a
researcher on the phenomenon since Graduation in Dance, and visited places of
memory that, are configured as the result of the constructions of social groups that
determine What is memorable and the places where this memory becomes
preserved.
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
1
O grupo de Dança da UFRN, integra um projeto de extensão permanente da UFRN, atualmente
Coordenado pela Profª Doutora Teodora de Araújo Alves. Em 2012 , participo deste grupo, me
possibilitando assim, vivências, criações e conexões com a dança contemporânea a partir de
aprendizagens sistematizados na construção de um processo criativo em dança, que resultou no
espetáculo Copyright.
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O Projeto Encantos da Vila, tinha como objetivo contribuir com a sistematização, divulgação e
reafirmação da arte e cultura da Vila de Ponta Negra em Natal/RN, evidenciando a produção dos
artistas dessa comunidade e oportunizar as manifestações artísticas sejam realizadas no espaço em
que as mesmas são produzidas como uma forma de incentivar o aprendizado de novos artistas e
divulgar, para outros moradores, suas práticas culturais (ALVES, p. 13, 2010).
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É uma dramatização em que diversos personagens dialogam em tom de luta, basicamente
aparecendo o Rei, o General, o Embaixador, o Secretário, o Príncipe, o Cabo da Guarda, Duque de
Caxias, Capitão-bombeiro e Guarda-coroa” (Girardelli, 1978, p. 65).
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cultura, sendo uma das manifestações mais antigas ainda resistente na comunidade.
Já a quarta embaixada, tecemos nossas considerações finais, retomando com maior
ênfase os objetivos, as questões de pesquisa, a metodologia e, finalmente, dada a
importância da dança dos Congos de Calçola para a cultura da nossa cidade, que
por fim, recomendamos a manutenção desse folguedo como atividade cultural nas
escolas da Vila de Ponta Negra e em seu entorno.
Assim, a partir de agora, abro um espaço nessa dissertação, para
compartilhar com vocês, leitores, os inúmeros caminhos percorridos por mim, das
dúvidas e certezas resplandecidas, de sonhos e desejos, que me abraçaram
calorosamente, desde a infância, até este momento no qual me encontro, pois minha
experiência e encanto pela cultura tradicional, estão presentes desde a infância,
uma vez que até os sete anos de idade eu morava, juntamente com meus pais, em
uma vila localizada na Zona Oeste da cidade do Natal. Nessa Vila residiam apenas
pessoas da nossa família, eram tios e tias e minha avó morava em outra vila mais
acima.
Quando a família toda se reunia, tinha muita música e dança. Lembro-me que
minhas primas mais velhas, cantavam e dançavam, ensinando as crianças, o samba
e o forró na sala de casa. E assim, fomos construindo um ritual diário, onde as
brincadeiras e os fazeres se enlaçavam espontaneamente, e aos poucos esses
costumes seriam responsáveis por ditar minhas escolhas futuras.
Os festejos juninos eram os mais esperados e comemorados, tanto por
adultos quanto pelas crianças da minha família. Minha avó passava horas a fio
fazendo comidas típicas com a ajuda de filhas e netas. A noite seguia com muita
comida, fogueira, música em todas as casas do bairro. Eram noites alegres, e ao
final todos agradeciam como em preces sussurradas, por meio de olhares que
brilhavam tanto quanto os fogos no alto, por um ano bom, por um ano com chuva,
pela comida e família reunida.
E assim, essas marcas culturais vivenciadas e celebradas no corpo por meio
dessas identificações construídas na infância, com a música e a dança, foram sendo
fortalecidas dentro de mim e seguindo meus caminhos ou vice-versa.
As vivências e o contato com outras danças, iniciaram quando minha família
se mudou para outra área da cidade. Nessa época havia um clube de mães, onde foi
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desenvolvido um projeto de danças que tive com a street dance e jazz. Esse foi o
primeiro contato de forma mais sistematizada em dança.
As oficinas ocorriam em média duas vezes por semana – quartas e sábados.
Participar desse projeto foi bastante significativo, pois me permitiu vivenciar e
experimentar outros modos de se fazer e construir em dança.
No período do Ensino Fundamental, as danças tradicionais tornaram a
atravessar meus caminhos, apesar da forma pontual apresentada. As danças
ocorriam apenas em épocas de festas na escola, como São João, dia do folclore e
festejos de final de ano.
No São João as coreografias giravam em torno das quadrilhas, na qual toda a
escola participava. Havia também algumas professoras que construíam outras
apresentações de dança como a Ciranda, o Coco de roda e o Xote da qual toda as
turmas participavam, a professora da turma ficava responsável por desenvolver uma
dança ou teatro. Geralmente eu participava das danças, que por vezes era uma
Ciranda, um Coco de roda e o Xote.
Em meio a prática, a professora da turma dava uma pequena pincelada na
parte teórica, sobre as danças apresentadas. Desse modo, esses saberes iniciais,
teorizados em sala, através de conceitos, me possibilitaram aos poucos, o
entendimento necessário naquela época, dada a pouca idade.
Posteriormente, até o final do Ensino Médio, a dança se fez presente nos
festejos juninos, era tradição eu participar de uma quadrilha próximo da minha casa.
Os ensaios começavam logo após o carnaval, havendo muita dedicação por parte
de todos. Lembro-me que era ótimo ver a alegria das pessoas quando soltavam a
música, o corpo todo se enchia de alegria, gestos, cantos, uma verdadeira explosão,
era um transbordamento, um mix de vivacidade e orgulho no rosto de cada
integrante.
Em 2005 ingressei no Curso de Licenciatura em Geografia pela UFRN. Desde
muito nova, gostava de admirar os vários tipos de paisagens que se apresentavam
para mim: prédios antigos se misturando aos novos empreendimentos, os belos
cenários de praias vistos em TV e revistas, como as pessoas se movem e interagem
no espaço, os grandes centros culturais urbanos etc.; tudo isso me encantava e me
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Semana de Ciência, Tecnologia e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte acontece todos os
anos, expondo os principais fundamentos das atividades científicas, tecnológicas e culturais da Universidade,
buscando, dessa forma, uma interface com a sociedade.
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de risco. No dia em que estive presente, foi exibido o filme Happy Feet, em seguida
ocorreu uma roda de diálogos com uma psicóloga.
Quatro anos estavam se passando, na Licenciatura em Geografia e eu não
tinha nada definido se continuaria seguindo na geografia ou não, logo o curso foi
concluído. Naquele momento não pensava em tentar o mestrado, pois eu sentia que
algo me faltava até alcançar essa etapa. Na tentativa de responder a essas
inquietudes e incertezas quanto a minha realização profissional, decido fazer
vestibular novamente para Licenciatura em Dança, pela UFRN. Com isso me afasto
um pouco do campo da Geografia e busco desbravar essa nova área, na qual os
ventos me levavam lentamente.
Em 2009 entrei no Curso de Dança da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, logo após a conclusão da Graduação em Geografia Licenciatura, foi uma
alegria enorme. Na Graduação em Dança, apesar das inúmeras vivências dançantes
que tivemos ao longo de todo o curso, todavia, as manifestações da cultura
tradicional, eram as que mais me moviam, sentidas intensamente, de mente e
coração abertos, como quem abre uma janela e de súbito é consumida pela beleza e
frescor de um dia tão claro.
Quando entrei no Curso de Dança, determinei que iria participar ativamente
das atividades e oportunidades que a Universidade proporcionava aos alunos. Na
metade do primeiro período do Curso, busquei me envolver em algum Projeto
relacionado a Arte e Cultura, como forma de conhecer e vivenciar as danças.
Com a disciplina Práticas Educativas em Danças Populares, ministrada pela
Professora Teodora de Araújo Alves, pude conhecer, vivenciar e me aproximar ainda
mais da Cultura Popular. Entre práticas e teorias, tomei conhecimento das danças
tradicionais presentes na Vila de Ponta Negra: Bambelô, Congos de Calçola,
Pastoril, Coco de Roda, Lapinha, Boi de Reis. Imediatamente fiquei maravilhada
com tanta cultura presente em um único lugar da nossa cidade, que com seus
gestos, vozes, cores e bailados recontam e vivificam suas tradições carregadas de
significações.
As imagens abaixo são registros de memórias e vivências desenvolvidas na
disciplina de Práticas Educativas em Danças Populares, 2009. A figura 2 refere-se a
uma composição coreográfica que uniu a Ciranda com as danças juninas.
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brincantes, ser tão pouco conhecido e desvalorizado pelos natalenses? Tomei por
base minha própria experiência, já que só tomei conhecimento das manifestações
presentes na Vila, no momento que curso a Graduação de Dança/UFRN.
Assim, como bolsista de Extensão, adentro definitivamente no espaço e
cotidiano dos moradores da Vila de Ponta Negra. Na Vila, encontrei com o Boi de
Reis, a Lapinha, o Coco de Roda de Mestre Severino, o Bambelô de Caubi e seu
Pai, o Pastoril de Dona Helena, os Congos de Calçola, juntamente com os
Conguinhos, as Rendeiras de Bilro. Além dessas manifestações tradicionais, está
presente no espaço da Vila, o grupo de percussão Resistência da lata, grupos de
capoeira sanfoneiros e os contadores de histórias.
Costumeiramente, nos reuníamos toda segunda feira a noite. O Projeto
promovia encontros no Conselho Comunitário de Ponta Negra, onde a Profª e
Coordenadora Teodora de Araújo Alves, os bolsistas, os brincantes e a comunidade
se reuniam para discutir, organizar e executar ações que tinham como intuito
valorizar, divulgar e ratificar a identidade marcada nos corpos sujeitos que vivenciam
essas manifestações tradicionais do lugar. Para isso, além do suporte logístico e
burocrático, o Projeto nutria a comunidade e os brincantes com oficinas teatrais e de
dança, ministradas pelos alunos de Graduação/Licenciatura em Teatro, dança e
música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
As oficinas tinham por objetivo desenvolver e acompanhar processos de
criação artística, como o treinamento corporal, para os atores-brincantes da
comunidade e oficinas musicais. Com o contato intensificado através das
reuniões/diálogos e dos encontros promovidos pelo Projeto Encantos, buscamos
primeiramente entrelaçar os saberes já tatuados nos corpos dos atores da
comunidade, que dialoga e vivência a cultura tradicional desde seu surgimento, com
o olhar e o corpo trazidos pelos alunos da Universidade, propondo assim, uma
interligação entre os saberes (os saberes dos brincantes e do acadêmico), para que
resultasse em um processo que fizesse sentido principalmente para os brincantes da
comunidade.
Com essas observações, partimos para o (re) conhecimento desses traços
corporais, para só assim ressignificar essas vivências e incorporações culturais do
corpo que pesca, que tece suas rendas, do corpo agricultor, do corpo que surfa, do
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corpo que simplesmente, canta, dança e interpreta. O Projeto organizava junto com
a comunidade três grandes eventos ao longo do ano: o São João da Vila, em
comemoração aos festejos juninos, o Cortejo Cultural (Figura 5) que ocorria no mês
de agosto, em comemoração do folclore, percorrendo as principais ruas da
comunidade.
Figura 5 - Cortejo Cultural na Vila de Ponta Negra, 2013.
5 O Circuito artístico-cultural Mestre Zé Correia é uma ação articulada entre a UFRN (através do NAC,
PROEX, DEART, EMUFRN), o MEC/SESu e as Secretarias de Educação do Município e do Estado e
tem como foco de atuação contribuir com a formação, a difusão o intercâmbio e a fruição da arte
produzida na UFRN, nas escolas públicas de Natal/RN e nas Comunidades onde as escolas estão
localizadas. Tal ação se configura a partir das seguintes atividades: 1. Apresentações de projetos da
UFRN e de grupos artísticos das escolas e dos bairros onde estas se inserem. 2. Realização de
oficinas e cursos que versem sobre temas artísticos relacionados as demandas de cada escola. 3.
Rodas de conversas entre artistas, professores, estagiários dos cursos de Artes Visuais, Música,
dança e Teatro acerca dos processos criativos que serão apresentados pelos artistas-acadêmicos e
artistas locais. Em 2012 o Circuito homenageará o mestre dos congos de Ponta Negra (dança
tradicional do RN) Sr. José dos Santos Correia. Diante do exposto, convidamos as turmas de
estágios em Dança (circuitozecorreiaufrn.blogspot.com.br).
6 O Escambo de Saberes, é um programa proposto pelas Pró-Reitorias de Extensão e de Graduação
da UFRN, tem como objetivo desenvolver uma proposta de ação interinstitucional, tomando como
referência o estágio supervisionado de formação de professores nas áreas de Teatro, Dança, Música
e Artes Visuais da UFRN, como desencadeador de um processo mútuo de formação, contemplando
os licenciandos nessas áreas e os professores de Artes da rede pública de ensino (PROEX/UFRN).
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respira cultura desde suas origens, como foco para meu TCC, intitulado O Lugar da
Dança: Configurações Culturais da Vila de Ponta Negra, defendido em 2013.
Em 2015, dois anos após a conclusão da Graduação do Curso de
Licenciatura em Dança/UFRN, decidimos continuar investigando o espaço da Vila de
Ponta Negra, por enxergar na comunidade, um campo múltiplo e complexo, que
tanto tem a mostrar e ensinar, sobretudo aos pesquisadores que buscam
compreender os sentidos e significados estabelecidos nas relações entre as danças
tradicionais e o lugar onde está inserida a manifestação dançante, influenciando e
ao e ao mesmo tempo sendo influenciado pelo lugar. Tendo isso em vista esse fluxo,
neste mesmo ano consigo a aprovação na Pós-Graduação em Artes Cênicas, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, concretizando assim, um sonho
antigo, que é o de me tornar uma pesquisadora do campo das Artes.
Com o desejo de que essa dissertação, seja um material relevante para
alunos, professores e pesquisadores que buscam conhecer e entender a cultura
tradicional, como ponte para aprendizagens e saberes educacionais, convido-os a
continuarem fazendo comigo esse caminho pelos fundamentos do lugar, a tradição,
memória e identidade da Vila de Ponta Negra, carregando nossos corpos nessa
história.
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Isto não quer dizer que a tradicionalidade de uma cultura seja algo estático,
cristalizado no tempo e no espaço “ao contrário, significa possibilidade de uma
ligação entre o passado e o presente, entre gerações passadas e gerações
presentes e futuras” (ALVES, 2006, p.74). As tradições evoluem e se transformam
de acordo com as necessidades de cada sociedade, elas influenciam e são
influenciadas pelos avanços advindos da modernidade, sem perder a sua essência.
Contudo, é através dos corpos brincantes que dançam, cantam e contam a
história do seu lugar e sua própria história, que observamos uma manifestação
autêntica, carregada de significados, dos corpos dançantes. Viana (2009) evidencia
esses corpos, quando fala dos corpos brincantes do Bumba-meu-boi, os quais:
São corpos que se deixam injetar pela dança, agem sobre outros corpos
gesticulam, giram, saltam, cortejam seu objeto estético, colocam em relevo
sua sensibilidade, atuam sobre a sensibilidade do outro, buscam sensibilizá-
lo, persuadi-lo. Pelos seus corpos compartilham ideias, transcendem essas
ações em seus ritmos e apresentações (VIANA, 2009, p. 82).
comunidade, que tem como base, vivencias em Arte e cultura. A maioria desses
lugares de memória estão presentes de forma atuante na vida da comunidade como:
a Igreja São João Batista, a Casa das Rendeiras, entre outros lugares que sofreram
modificações ao longo do tempo, sendo seu acesso restrito como o campo do
Botafogo e o Morro do Careca.
Os lugares de memória da Vila de Ponta Negra, se torna palco de histórias e
relações de identificação construídas pelos brincantes e moradores que que se
imbricam e se apropriam desses espaços. Resultando também, em campo de
resistência, lutas e poder compostas por pequenas formas de apoderamento. Ainda
sobre o conceito de lugar, Tuan (1975) considera que, “Lugar é um centro de
significados construídos pela experiência”
Desse modo, entendemos que esses habitantes carregam consigo registros
corporais advindos de sua historicidade, de sua cultura, de sua forma de ser e existir
no mundo (ALVES, 2010). Trata-se de corpos-sujeitos presentes num espaço
sociocultural fértil que, ao mesmo tempo, produzem registros neste corpo pescador,
agricultor, brincante, artesão. Afinal, como nos diz Alves (2006):
10), por ocasião do desembarque das tropas holandesas no Rio Grande do Norte.
Em 1847, uma lei estadual desapropriou todo o terreno onde ficava a vila dos
pescadores, tornando-a de utilidade pública. Em 1858, foi criada, na vila, a primeira
escola fundamental para meninos, a qual se tornou mista em 1895 (SOUZA, 2008).
trazidas para cá e tomadas para si pelos sujeitos locais como seus, o aumento na
produção do emprego; do outro lado o aumento no contingente populacional
promoveu a inflação e escassez dos alimentos, aumento da prostituição e aluguel.
Com aculturação9 entre natalenses e norte-americanos, a cidade do Natal
foi ganhando novos ares e fôlego, tecendo uma amalgama cultural refletida e
percebida nos costumes e espaços da cidade, delineando definitivamente novas
variáveis de cunho urbano.
9Aculturação. A aculturação é o nome dado ao processo de troca entre culturas diferentes a partir de
sua convivência, de forma que a cultura de um sofre ou exerce influência sobre a construção cultural
do outro.
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ares de interior, cercado de dunas e um mar que oferece água morna o ano todo.
Gradativamente muros altos foram cercando as residências, estabelecimentos
comerciais de alto padrão, como restaurantes, farmácias, mini shoppings de
artesanatos, barzinhos, hotéis, prédios residenciais de alto padrão, pousadas e uma
grande quantidade de construções voltadas para alugueis de temporada. Essa
configuração instaurada no lugar, desencadeou no fenômeno urbano da
gentrificação.11
Assim, o espaço da Vila de Ponta Negra, que até então era área pouco
conhecida e valorizada, torna-se um dos lugares mais disputados da nossa cidade,
onde os nativos e pessoas de alto poder aquisitivo, passam a ocupar e usufruir do
mesmo espaço.
Esta encruzilhada, se movimento gerado pelos sujeitos que passam a
circular nesse espaço considerado símbolo de tradicionalidade, de reminiscências
profundas construídas coletivamente, de pertencimento, (com)partilhamentos da
nossa cidade, aos poucos vão imprimindo novos ritmos e parâmetros
relevantes/pertinentes para/estabelecidos organicidade.
Inevitavelmente, essas configurações ocorridas na Vila influenciaram de
forma significativa as singularidades e identidade da comunidade que gradualmente
foram sendo desconstruídas, para abrigar novas realidades dinâmicas,
socioculturais e econômicas, transformando-se de lugar simples para uma área
complexa em sua estrutura e nas relações desenvolvidas pelos sujeitos.
Ainda no que se refere a inserção de pessoas vindo de fora, observamos
que os antigos moradores, aos poucos foram sendo esmagados pelos grandes
empreendimentos voltados para o turismo, como prédios e muros altos com suas
cercas elétricas, para as áreas localizadas mais distante da praia. Muitos dos
moradores venderam suas casas, que se localizavam próxima a praia, local que
11 A Gentrificação vem de gentry, é uma expressão inglesa que designa pessoas ricas, ligadas à
nobreza. O termo surgiu nos anos 60, em Londres, quando vários gentriers migraram para um bairro
que, até então, abrigava a classe trabalhadora. Este movimento disparou o preço imobiliário do lugar,
acabando por “expulsar” os antigos moradores para acomodar confortavelmente os novos
proprietários com um maior poder aquisitivo. O evento foi chamado de gentrification, que numa
tradução literal, poderia ser entendida como o processo de enobrecimento, aburguesamento ou
elitização de uma área. (http://www.archdaily.com.br/br/788749/o-que-e-gentrificacao-e-porque-voce-
deveria-se-preocupar-com-isso)
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episódios, o primeiro ocorreu no final de década de 1950, com perdas de terra dos
moradores, que até então serviam para plantação de roças e demais subsistências,
de onde retiravam seu sustento. As terras foram retiradas da comunidade pelo
empresário Fernando Pedroza, irmão do governador Silvio Pedroza, para a
Aeronáutica com vistas à construção da Barreira do Inferno.
Até a década de 1960, a Vila estava localizada fora do perímetro urbano e
sem estradas de acesso à cidade. Nessa época, as mulheres e rendeiras percorriam
longas distâncias a pé, em um sobe e desce sem fim de dunas para vender suas
rendas no centro da cidade. Além de se ocuparem dos trabalhos artesanais,
participavam das atividades agrícolas que, juntamente com a pecuária, em menor
escala, e a pesca constituíam atividades econômicas da população (CARNEIRO,
1999).
Por volta da década de 1970, as casas dos moradores ocupavam apenas
três ruas, a rua de cima (hoje, a rua Manuel Coringa de Lemos), localizada próximo
as dunas, a rua de baixo (atualmente, Av. Eng. Roberto Freire, situado próximo a
praia e a principal rota do turismo na capital) e a rua do Corrupio.
Segundo relato de moradores mais antigos, a Vila de Ponta Negra,
permaneceu por muitos anos isolado da cidade do Natal, uma vez que o acesso
existente era feito de barro, cercado por muita vegetação. Ainda de acordo com os
moradores, nessa época, não só da pesca viviam os moradores, uma vez que,
grande parte das áreas do reduto, era ocupado pela pecuária e roça. As mulheres,
dividiam seus afazeres entre as casas de farinha e na confecção de rendas e
artesanatos. Este relato é ratificado na fala do Mestre dos Congos de Calçola da Vila
de Ponta Negra, seu Zé Correia em entrevista a Souza 2005, p. 29), diz que:
Vivia-se da roça e da pesca, mas esta não era a principal atividade, como
muitos pensam. ‘Se vivia mais da roça do que da pesca’. O roçado era de
milho, feijão, batata-doce. Muita gente, para reforçar o orçamento
doméstico, aproveitava a abundante mata nativa e fazia carão para vender.
‘o pobre mesmo queimava lenha em casa. O carvão a gente fazia e vendia
um cento a 10 mil réis’.
quase cortejo, os habitantes, saiam desse pequeno reduto, para vender o excedente
em Natal e nos festejos ligados a padroeira.
Até onde conhecemos, as vilas são conhecidas por sua resistência
econômica, social e espacial, muitas vezes inseridas em áreas urbanas, como é o
caso de muitas vilas de pescadores em capitais com áreas litorâneas, apresentando,
porém, uma configuração diferente daquela que apresentava, inicialmente.
Historicamente, as vilas, assim como os cortiços dos séculos XIX e XX no
Brasil, são formas de habitações coletivas que induzem um estreitamento das
relações, fazendo com que um determinado grupo de pessoas passe a conviver
mais perto, dividindo o seu cotidiano (CAVALCANTE, CÂNIDO; VALENÇA, 2003).
Portanto, nas vilas aonde se mantém viva, manifestações de culturas
tradicionais, percebemos um espaço concebido por símbolos de lutas e resistências,
onde habitam corpos religados (ALVES, 2015) no tempo e espaço, representando e
(re) contando fios de memórias sociais, culturais e artísticas, tradições e histórias de
vidas, símbolos esses, tecidos e construídos nas interações entre os sujeitos que se
identificam e vivenciam suas narrativas.
Segundo o dicionário da língua Portuguesa, o verbo resistir é definido como
exprimir habilidades que têm os seres animados e inanimados de opor-se frente a
um outro sistema de forças, mas o ato de resistir é, também, descrito como a
capacidade que têm esses seres de lutar em defesa de algo (FERREIRA, 1975).
Assim sendo, resistir movimenta dois campos de forças antagônicos, de um lado
encontramos forças de oposição e sofrimento, do outro um sentimento entusiasmo e
satisfação, na busca pela defesa de sua posição, diante as estratégias e práticas
culturais.
Esses símbolos e sentimentos que residem no imaginário dos produtores
culturais – comunidade e brincantes, que vivenciam e se identificam com esse
espaço, que é de luta e festas, criam assim, mecanismos que dão sentido para o
fortalecimento as relações e de uma identidade cultural. Assim, as identidades são
(re) criadas no cotidiano dos sujeitos, que se vinculam em conjunto, identificando-se
aos repertórios de ação, língua e cultura.
Hoje, podemos encontrar na Vila, múltiplas identidades, já que hoje, residem
nesse espaço sujeitos de diversos lugares do Brasil e do mundo, trazendo consigo
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12Conceito desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu. Esse conceito tem origem de noções como
hexis e ethos, ambas relacionadas ao modo de agir dos sujeitos pertencentes a um determinado
grupo social, ou seja, ao comportamento humano entre o individual coletivo. (BOURDIEU, 2001, p.
32).
52
outras épocas, mas também para outros lugares, geograficamente falando. O tempo
da infância na escola, no quintal de casa; a juventude nos cinemas, nas praças
históricas; as experiências tidas em outros bairros, cidades, países. Para contar a
história de si – e muitas vezes a história do outro – o sujeito se volta a lugares de
existência. Lugares que possuem relevância simbólicas justamente por serem ou
terem sido espaços de práticas sociais (HALBWACHS, 1990; RICOEUR, 2007).
O termo "lugares de memória" foi lançado pelo francês Pierre Nora (1984),
que traz a noção de lugar como espaço vivo no processo de construção ou
invocação ao lembrar. Tratam-se de lugares, ou seja, espaços físicos que funcionam
como repositório de uma memória coletiva, ratificando a identidade e a ideia de
pertença.
Dessa forma, os lugares de memória são testemunhos movidos por valores,
criados e formados por um grupo que compartilham identificações e interesses
comuns, resultando em ações e contradições ao longo do tempo, funcionando assim
como, um mecanismo de ratificação e permanência dos laços tecidos entre os
indivíduos em épocas distintas.
Referenciando-nos em Nora (2006) que nos diz que,
Podemos observar que essas identidades, são frutos das relações entre os
sujeitos que constroem vivenciam e se articulam no espaço, com suas ações e
práticas cotidianas, individual e coletiva, fortalecendo o sentimento de pertença e
identificações acumulado ao longo do tempo e, apropriado pela memória. Destarte,
os lugares de memória são zonas permeadas por vivências e significados que nos
permite ampliar olhares em busca de caminhos para a manutenção e preservação
da nossa identidade.
Para Pierre Nora (1993, p. 13), “os lugares de memória nascem e vivem do
sentimento de que não há memória espontânea, mas é preciso criar arquivos”. Logo,
57
13
Conceito de Paisagem segundo Milton Santos (1997) “A paisagem nada tem de fixo, de imóvel.
Cada vez que a sociedade passa por um processo de mudança, a economia, as relações sociais e
políticas também mudam, em ritmos e intensidades variados. A mesma coisa acontece em relação ao
espaço e à paisagem que se transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade. ”
58
essa rede, esses mesmos indivíduos são capazes de puxar outros fios de outras
redes culturais, adaptando-se a sua própria tessitura” (ALVES, p. 62, 2006).
Conforme relatos dos brincantes, mestres e moradores antigos da
comunidade, encontramos alguns lugares de memória na Vila de Ponta Negra,
reconhecidos como símbolos de fé, luta, orgulho e resistência que guardam histórias
que nos ajudam a entender como esses sujeitos se relacionam com esses espaços
e sua importância para a comunidade, a saber: a Igreja São João Batista, a Casa
das Rendeiras, o Morro do Careca, o Campo do Botafogo e o Conselho comunitário
e a Escola Municipal São José.
A igreja de São João Batista está situada no alto da Vila de Ponta Negra,
uma das áreas mais efervescente do bairro. A igreja está cercada em parte por
sequência de casinhas com estilo ainda originário de um lugar que um dia abrigou
em grande parte do seu território, grupos de pescadores e agricultores de vida
simples.
Figura 13 – A Igreja São João Batista.
A igreja São João Batista foi uma das primeiras construções da Vila de
Ponta Negra, antes construída de barro e pedras da praia. Não se tem ao certo a
data de fundação da Igreja, o que sabemos é que seu surgimento se confunde com
o próprio início da comunidade e da nossa cidade. Alguns pesquisadores destacam
que a igreja foi erguida por volta de 1905. Segundo registros de Souza (2001) , em
Nova História de Natal, a referência mais antiga à capela está no livro de Tombo da
Paróquia de São Pedro do Alecrim, no qual se afirma que,
igreja, onde todos trabalhavam juntos em prol das comemorações e festejos que
aconteciam em determinada época do ano” (SANTOS, 2013, p.34).
Segundo dona Helena, moradora e mestra dos Congos de Calçola e Pastoril
da Vila de Ponta Negra, nos informa sobre a representatividade que a Igreja tinha
para a comunidade,
Ainda sou da época que não tinha luz, não tinha água, não tinha telefone.
Ave Maria! A casa que tinha televisão era uma festa, era milionário quem
podia ter uma televisão...Vivíamos da pesca e agricultura. A agricultura aqui
era muito rica, tinha muito roçados. Cada família tinha seu roçado.
Plantávamos mandioca, maxixe, melancia, feijão, milho.
Já dancei em vários lugares, até mesmo fora de Natal, mais o lugar que eu
mais gosto de apresentar é aqui na Vila de Ponta Negra, pois aqui é meu
lugar, é onde nasci, onde me casei, tive meus filhos, é onde vivi toda minha
vida, eu tenho muitas histórias pra contar desse lugar, aqui eu chorei e ri [...]
por isso faço de tudo quando tem uma apresentação pra dançar aqui nesse
palco da igreja. (SANTOS, 2013, p. 13).
construídos para abrigar a essa demanda no entorno da praia de Ponta Negra, que
vinham em busca de descanso e conforto. Logo o restaurante fechou suas portas, já
que os turistas não queriam mais se deslocar da praia para fazer suas refeições.
Posteriormente, o espaço cedeu lugar para as mulheres rendeiras de bilro
da Vila de Ponte Negra, com o intuito de resgatar e proteger dons e habilidades
manuais como quem rege uma orquestra de sons, ritualidades, cores, sonhos,
raízes, lutas e desejos “Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhados” (QUINTANA, 2006), nas
almofadas do bilro.
Enxergamos na casa das Rendeiras, um espaço resistente, poético e
educativo, que atua em parceria com a comunidade, por vezes promovendo e
cedendo o lugar para reuniões dos grupos culturais da Vila, cursos e encontros,
vivências (com)partilhadas, “aprendida e ensinada ao longo de muitas vidas, de
muitos contextos sociais” (ALVES, 2010, p. 14). Trata-se de um espaço que evoca
vivências e significados, apreendidas no ver, ouvir e fazer, contribuindo
substancialmente para a manutenção da cultura.
Com a aproximação da comunidade, constatei que os atravessamentos
existentes, pela maioria das Rendeiras, que teciam suas rendas de bilro, dar-se por
meio da historicidade dos sujeitos, os laços de parentescos e amizades, assim,
esses indivíduos criam sentidos, signos, códigos, gestualidades, subjetividades, de
experiências corporais sensíveis, vivenciadas e estabelecidas no mundo,
provocando outros olhares no âmbito da natureza e da cultura.
Esse aprendizado é estimulado pelos acontecimentos produzidos no
cotidiano que convive em um ambiente coletivo, segundo Maffesoli (2001, p. 81), “a
casa da infância permanece o paradigma de toda raiz ou de toda busca de raízes, o
espaço local é aquele que funda o estar-junto de toda comunidade”. Nesse sentido,
as relações ocorridas no espaço familiar, por meio de entrelaçamentos do cotidiano,
produzem um campo de forças que dá sentido à própria continuidade da vida. E isso
acontece na Casa das Rendeiras da Vila de Ponta Negra.
Enfim, Maffesoli (1984, p. 57) ainda infere que,
pólos atrativos, eles são fortalezas sólidas nessa luta permanente que é o
afrontamento do destino. É aí que convém buscar o fundamento do apego
afetivo ou passional que liga o indivíduo ou o grupo a qualquer que seja o
território.
Com isso, constatamos que a casa das Rendeiras é um lugar que está em
constante movimentação. Atualmente as Rendeiras dividem o espaço com o
Restaurante e Tapiocaria da Vó. A cerca disso, o JORNAL TRIBUNA DO NORTE
publica,
A Tapiocaria da Vó não quer apenas servir boas refeições. Também quer
ganhar e apresentar um pouco da história da Vila de Ponta Negra. Aberta
em março, a casa tem uma longa relação com a área. De 1988 a 1997, foi o
70
O Morro do Careca (Figura 19) é uma duna com cerca de 120 metros de
altura, margeada por vegetação. Segundo relato dos moradores mais antigos da
Vila, o morro antigamente era completamente recoberto pela vegetação e apenas na
parte central se observava uma faixa estreita de duna, como uma “careca”, daí vem
o nome.
71
relações sociais. A apropriação dos espaços públicos tem de ser percebida nas
tensões que a trabalha e que a constitui entre sua distância e proximidade.
O campo do Botafogo Futebol Clube está localizado próximo ao Morro do
Careca (com uma faixa de terra de 6.962,09m²), e é a única área de lazer pública da
comunidade, que vem sendo utilizada pelos moradores desde a década de 1951.
Figura 21 – localização do Campo do Botafogo
[...] a área foi aumentada aos poucos e hoje é 6.745 metros quadrados. O
mato era arrancado à força, no braço, pelos pescadores que moravam na
praia [...] aqui era ainda vila de casas e o acesso era feito por estrada de
terra [...] criaram o Clube chamado Pau Ferro, com o tempo o nome foi
mudado pra Botafogo [...] (O POTI, 28/07/2002).
[...] o presidente telefonou para o corretor e ouviu dele que o terreno era
uma propriedade privada e que ali seria construído um condomínio de
apartamento [...] ele havia dito ter comprado o Campo do Botafogo por 400
mil reais há dois anos, numa transação com Marcos Santos [...]. (O POTI,
28/07/2002).
14
De acordo com a Proposta do Regimento do Conselho Comunitário, o Art. 1º diz que este é um
órgão consultivo e propositivo, constituindo-se em espaço de interlocução com vários setores da
sociedade.
78
O Mestre dos Congos, o Sr. Pedro Correia, nos relatou que antigamente o
espaço hoje ocupado pelo Conselho Comunitário, foi cedido pela Arquidiocese de
Natal, ao Bispo D. Eugênio, para a construção de um Centro Social, em 1955. O
Centro Social da Vila de Ponta Negra foi implantado, a princípio, para as mães
carentes da comunidade, onde recebiam doações de alimentos como feijão, fubá,
farinha, além de roupas, vindas de navio dos Estados Unidos.
Posteriormente, o espaço passou a abrigar as manifestações dançantes como
os Congos de Calçola e os demais folguedos para os ensaios. E, ao longo do tempo,
esse espaço diverso foi sendo intensamente usufruído pela comunidade que via nele
um local de acolhida, onde juntos se articulariam para a melhoria da qualidade de
vida da comunidade.
A comunidade enxerga nesse espaço comum e lugar de memória, onde
circulam uma mescla de raças, idades e crenças, um local reservado e propício ao
encontro, a união, a trocas de saberes e experiências, fortalecendo assim, a
identidade da população e o sentimento de pertença ao lugar de moradia.
Em 2004, esse espaço foi testemunho de Mestres, brincantes que devido a
vulnerabilidade e a situação de abandono sentida pelos grupos de danças
tradicionais da Vila, se reuniram no Conselho Comunitário para firmar uma parceria
com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em seu livro, Alves (2010),
coordenadora do Projeto Encantos da Vila relata,
chega a idade, caso ela queira continuar na brincadeira, ela é passa a dançar
juntamente com os adultos, nos Congos de Calçola.
Segundo o Mestre dos Congos, o sr. Pedro Correia, dezenas já foram as
crianças da comunidade que brincaram nos Conguinhos, hoje muitos já são casados
e pais de família. Observamos que poucos são os que incentivam a seus filhos a
aprenderem essa tradição, devido à grande resistência da geração mais nova em
aprender. É nessa luta, em manter viva a tradição do lugar e de sua família, que o
Mestre, se empenha, dedicando muitas vezes parte do seu tempo livre, na busca de
melhorias para as crianças que ensaiam e se apresentam, quando são convidados,
como a possibilidade de conhecer outros lugares.
Na escola São José, considerado pelos brincantes dos Congos de Calçola,
um dos lugares de memória da vida social e cultural da comunidade. Nesse
ambiente acontecem os ensaios dos Conguinhos, onde as crianças que também são
alunos desse estabelecimento, se reúnem para vivenciar, garantir e reforçar a
existência de uma das manifestações mais antigas e atuantes da Vila de Ponta
Negra.
Notamos com isso, que a escola São José, é um espaço sociocultural
imprescindível para a manifestação e os brincantes dos Congos de Calçola, que
veem nela, um lugar de acolhida e um porto seguro formador que garantirá que essa
tradição seja perpassada a novas gerações. Nesse sentido, acreditamos que juntos
a escola, mestre e brincantes possam construir efetivamente laços que promovam a
manutenção e a valorização dessa transmissão oral ancestralizada no corpo e
memória do grupo.
83
[...]
Cacimbinha do folclore:
Congo, reis e pastoril
que o povo faz questão
De manter forte e viril.
[...]
[...]
O morro era muito alto!
Sorte de quem lá subiu.
A estreita faixa de areia
Pois lá do alto viu
[...]
No terreiro da fazenda,
No claro da lua cheia,
Com tanta gente bonita
Tinha janta e tinha ceia.
15
Programa Geração Cidadã Sistema Brasil Alfabetizado MEC/SME/UFRN. Atividade de Cordel da
Professora de Artes, Isis de Castro, juntamente com os alunos da Escola São José da Vila de Ponta
Negra em 2008, um dos lugares de memória para os brincantes da dança dos Congos de Calçola,
mediado pela professora de Arte Isis de Castro.
84
O Rio Grande do Norte foi a primeira região do país que serviu de laboratório
de estudo dos folguedos populares, coletadas por Mario de Andrade em 1928.
Nessa época, o estado era detentor de um grande celeiro de manifestações variadas
de cultura tradicional.
Dentre as inúmeras manifestações presentes na Vila de Ponte Negra,
ressaltamos a dança dos Congos de Calçola, objeto desta pesquisa. Para tanto, faz-
se necessário dar um enfoque histórico sobre essa manifestação, que é uma das
mais antigas presentes no Brasil e na Vila de Ponta Negra/Natal-RN.
Os Congos é uma dança dramática, fruto do encontro das culturas africanas e
europeias. Essa manifestação foi incorporada a partir dessas duas junções, que
instalando-se no Brasil, deu novos sentidos e significados em suas representações
culturais.
Os Congos é uma dança que relembra combates, celebra a entronização do
rei novo com um cortejo real, através embaixadas, repletas de cantos, danças e
tradições. Alguns pesquisadores afirmam que nos primórdios, essa prática estava
ligada as comemorações mágicas dos mitos vegetais.
No “Dicionário de Folclore Brasileiro” de Câmara Cascudo [1954] se aponta
que a origem escrava, ainda que faça menção a aspectos africanos presentes na
dança, sugere uma certa ambivalência que permeia diferentes análises de
manifestações culturais negras como a congada, porém parece inevitável apontar as
influências ou sobrevivências africanas nas mesmas. Desse modo, os verbetes
“congadas, congados e congos” são definidos como: autos populares brasileiros, de
motivação africana, representados no Norte, Centro e Sul do país. Porém, Cascudo
ressalta que especificamente, como vemos e lemos no Brasil, nunca esses autos
existiram no território africano. É trabalho da escravaria já nacional... (Cascudo,
1954, p. 298).
Mas, historicamente, a cultura afro está presente no território brasileiro desde
a sua formação e desenvolvimento ocorrido no período colonial. É preciso lembrar
que a inserção dessa etnia se deu através da diáspora de origem africana, por volta
85
africana, sustentadas por símbolos e significação, a partir de uma história feita corpo
e história feita coisa (BOURDIEU, 2001, p. 83).
Todos esses elementos fizeram e fazem parte de uma troca de cultural, que
foi e continua sendo responsável pela própria formação da nossa cultura afro-
brasileira. Esse conjunto de conhecimentos gerou uma troca cultural, que não só
influenciou, como também promoveu a nossa formação cultural, através de seus
saberes étnicos-culturais, suas tradições.
Esse processo proporcionou a recuperação de elementos de uma cultura
ancestralizada no corpo e memória dos sujeitos dançantes. Sendo assim, essas
práticas muitas vezes vista como recreações, foram, ao longo do tempo, sendo
mesclada no confronto com outras culturas aqui encontradas, ou seja, recuperando,
construindo e (re)criando sua identidade, através de um outro novo contexto,
conferindo, assim, novos sentidos.
Segundo Alves (2006, p. 59), as danças afro-brasileira, busca compreender
os saberes construídos étnica e culturalmente, o que nos faz perceber o corpo como
espaço no qual se produz linguagem e existência no mundo e que muitos
conhecimentos construídos e vivenciados pelos nossos antepassados acabaram se
mantendo em cultura do povo, como é o caso da dança dos Congos de Calçola da
Vila de Ponta Negra.
Por isso, é preciso ressaltar que os congos é uma dança dramática, fruto do
encontro das culturas africanas e europeias. Essa manifestação foi incorporada a
partir dessas duas junções, instalando-se no Brasil, deu novos sentidos e
significados em suas representações culturais. Essa manifestação está presente no
Brasil desde o século XVII, que por meio de Embaixadas, dramatizam um cortejo
real, exaltando personagens dos folguedos como a rainha, príncipes, ministros,
general, vassalos, com seu estandarte e suas indumentárias azuis, vermelhas e
brancas, símbolos de combates, bailados, batucadas, danças e tradições.
87
16Criação construída especialmente, pelo Artista Plástico, Francisco Azevedo do Nascimento para a
compor a pesquisa. Francisco Azevedo, assim como eu, fez parte do Projeto de Extensão, o Circuito
artístico-cultural Mestre Zé Correia, em 2012 como bolsista e também organizando ações na Vila de
Ponta Negra, possibilitando vivências significativas nesse espaço onde a arte e a cultura predomina.
88
Naquela época, a indumentária dos Congos era composta por uma camisa e
um saiote, só que, com o tempo, os homens se recusaram a dançar de saiote,
sendo modificado pelo Mestre Sebastião Correia, ao invés de saiotes, os Congos da
Vila começaram a usar calçolas, antes usado apenas pelo príncipe. Essa mudança
acabou se tornando uma das principais características para diferenciar os Congos
de Calçola da Vila de Ponta Negra, para os demais Congos existentes na época.
A respeito dessa mudança na indumentária, o mestre José Correia comenta:
Eu era menino criança, uns seis anos de idade e papai brincava os Congos.
Naquela época, brincavam até a madrugada, era uma época que não tinha
droga em Ponta Negra. Eles dançavam de saiote e somente o príncipe, o
Rei, o embaixador, o general e o secretário dançavam de calçola e capa.
Depois papai mudou todo mundo para calçolas porque soube que tinha um
Congos lá em Regomoleiro que era de saiote. Todo mundo brincava
satisfeito. Pegava um lampião pra clarear onde a gente ia brincar. Era na
areia mesmo, com o maior prazer a gente brincava! Hoje só querem brincar
se for num palanque sofisticado (MESTRE JOSÉ CORREIA, 2006).
Destacamos aqui, a forma como o Mestre José Correia traz à memória a sua
vivência nos Congos de Calçola, protagonizada de uma construção histórica, social
e cultural, revelando a sua identidade na arte que se faz cultura. A arte-cultura, por
sua vez, possibilita aos sujeitos vivencias e experiências estéticas, ampliando seus
olhares ao cenário de um (re)conhecimento humano que nos faz mergulhar em
relações sensoriais e emocionais, que dão sentido a nossa existência.
Temos na dança dos Congos de Calçola uma estética espetacular, que
dançam, cantam, gesticulam, marchas movimentos de guerra, de luta entre o bem e
o mal, movimentos e cores, que ora se unem, ora se contrapõem-se, que pulsa
firme, enfurece, e por vezes se deixa levar, naufragar, resfriar, conforme se visualiza
na figura 29, abaixo:
90
Não é tão fácil dizer onde começa a roupa, e tampouco é simples distinguir
o figurino de conjuntos mais localizados como as máscaras, as perucas, os
postiços, as joias, os acessórios ou a maquiagem. É uma operação delicada
extrair o figurino do conjunto do ator em seu meio (...). Na medida em que o
figurino constitui muitas vezes o primeiro contato, e a primeira impressão,
do expectador do ator e sua personagem, e por ele que poderíamos
começar a descrição.
Acervo do Projeto de Extensão “Circuito Artístico Cultural Mestre Zé Correia”, da UFRN, 2012.
poder, que nas apresentações dos Congos ganha destaque nas cenas de combate
entre os personagens dos dois cordões. A espada é o símbolo do guerreiro, símbolo
de honra, disputas, libertação, que na dança dos Congos são empunhadas pelos
Secretário, Fidalgo, Príncipe e Embaixador.
Figura 31 – A marcha
O Mestre Zé Correia, após a morte do seu filho, saiu da Vila para morar em
outro bairro da cidade, mas mesmo com essa distância, o Mestre sempre estava
presente nas reuniões do Conselho Comunitário, em eventos e apresentações que
os Congos faziam dentro e fora da Vila de Ponta Negra, mantendo os vínculos
afetivos construídos e solidificados nesse lugar. É notável, persistência e resistência
que o Mestre tinha em manter viva suas tradições, o carinho devotado pelo lugar
onde viveu grande parte e, possivelmente, os melhores anos de sua vida. Esse
sentimento de devoção e coletividade fica latente na fala do Mestre Zé Correia,
Eu brinco pra honrar meu lugar. Cheguei cedo pra arrumar o presépio e
carreguei palha, madeira, mas ninguém tava pra ajudar, se não fosse eu e
Caubi aqui não tinha presépio. Só sei que faço com prazer de fazer, mas
todo mundo tem que ajudar (SR. JOSÉ CORREIA – mestre dos Congos,
2005).
passado, em constante reação a tudo que percebe ao seu redor; o corpo da história,
portanto, é um corpo que vive das relações e das interações, ocorridas no espaço.
E o corpo presente nas danças tradicionais, é um corpo que acumula
historicidade, advinda de memórias corporais individuais e coletivas inscritas ao
longo do tempo, que caracteriza e representa valores, bem como as singularidades
e subjetividades de um grupo, que tem algo a transmitir, a contar, através de sua
representação dançante, como o caso da dança dos Congos de Calçola.
Desse modo, concordamos com o pensamento de Ligiéro (2011), quando diz
que Performances afro-brasileiras, são ações que são (re) produzidas nas ruas,
calçadas, pátios, praças de igrejas, executadas de forma ritualística. Segundo ele, o
conceito de Performance tem sido usado também para compreender o teatro feito
pelo povo iletrado, seguindo a tradição oral alheia aos modelos greco-romanos.
Dessa forma, a performance é utilizada como sinônimo de apresentação e
representação, de folguedo e brinquedo, quase sempre possuindo caráter festivo
e/ou religioso, mas em muitas destas formas preservam o seu alto grau ritualístico
(LIGIÉRO, p. 68, 2011).
Essas performances ou brincadeiras, coadunam o tempo todo com os
acontecimentos da vida cotidiana, do passado e presente, uma vez que percebemos
nesses corpos, sujeitos atuantes, já que eles não estão cristalizados ou passivos no
tempo-espaço, visto que, no momento em que brincam tornam-se protagonista de
sua própria história.
Essas incorporações performáticas, ou seja, os saberes tradicionais
ancestralizados, são (re) ligados, (re) interpretados por meio da oralidade e
expressões corporais, que se manifestam no compartilhar com o outro, a partir do
cantar-dançar-batucar (LIGIÉRO, 2011), transformando essas experiências, numa
identidade africana, sustentada por símbolos e significação, a partir de uma história
feita corpo e história feito coisa (BOURDIEU, 2001).
Dessa forma, o corpo é uma linguagem de signos, símbolos e significados e,
“possui um maravilhoso equipamento para organizar imagens e conceitos
complexos, arrumando-os de modo a dar-lhes uma ordem pessoal” (KELEMAN,
2001, p. 42). Logo, ele não é coisa nem ideia, é movimento, expressão criativa e
104
sensibilidade (NÓBREGA, 1999, p. 5), que no caso dos brincantes da Vila de Ponta
Negra, criam vínculos e tornam-se corpos relacionais.
Corroborando com o pensamento de Nóbrega (1999), Pereira (2012, p. 62),
diz que o corpo “é o lugar onde processamos o que recebemos e devolvemos o
recebido ao ambiente de acordo com os nossos meios de transformar os
acontecimentos e dar significados a eles”. Logo, o corpo dos brincantes é lugar que
vive em experiência e, através das suas relações, gera transformações e ganha
novos sentidos.
Para a descrição desse corpo-vivo em experiência, nas palavras de Barreto
(2004, p. 104) “[...] é o próprio ser humano que sente, pensa, e age no mundo,
percebido, imaginado e vivido”. E é assim que vivem, trabalham, dançam, se
moldam, se transformam e se representam os brincantes dos Congos de Calçola da
Vila de Ponta Negra.
Considerando esse corpo como instrumento, Laban (1978), nos revela que
ele é também expressão pelo movimento. Assim, o corpo age como uma orquestra
onde cada seção está relacionada com qualquer uma das outras seções e é parte
de um todo.
O corpo para Merleau-Ponty (2014, p. 122) “é o veículo do ser no mundo, e
ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com
certos projetos e empenhar-se continuamente neles”. É também
nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários
a conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo
biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu
sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo
núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores como a dança
(MERLEAU-PONTY, 2014, p. 203).
Esses hábitos motores são, então revelados nos corpos brincantes dos
Congos de Calçola da Vila de Ponta Negra, que, conforme MERLEAU-PONTY (1999)
citado por Vieira (2010), a percepção desse folguedo por esses brincantes se dá
pelo olhar e pela escuta, porque o corpo, ao articular o mundo a partir dos seus
significados, remete o sujeito a sua vida passada.
Assim, se o corpo é representação, é existência, é linguagem; ele é para além
dele próprio, a expressão de tudo, é corporeidade. Em Merleau-Ponty, o conceito de
105
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APENDICE
118
ENTREVISTAS
11. Quais as principais mudanças que você observa hoje no espaço da vila de
ponta negra?
12. Como é sua relação com os novos moradores, que se instalaram aqui devido
ao turismo?
14. Você considera que a dança dos congos de calçola é importante para a
praia?
6. Qual a faixa etária das Rendeiras? Elas possuem outra fonte de renda?
“Quando eu brinco nos Congos, eu alimento minha alma.” (Mestre Pedro Correia)
Quando você chegou aqui (se referindo a mim) há uns quatro anos atrás,
você não sabia talvez a Vila de Ponta Negra. Você tinha informações da Vila, não
conhecia. Quando você chegou na Vila de Ponta Negra, viu aquela igrejinha, que é o
cartão postal da Vila. Você viu que a igreja foi construída a quase cem anos atrás, a
vila tinha uma cultura diferente.
Naquela época, que a vila era uma vila de pescador, a gente fazia roçado e
pescava. E quando eu nasci, aquela vila tinha aproximadamente 120 casas no
máximo. Bem pequeninha a vila. Acontece que foi mudando a vila, foi crescendo,
más que as danças folclóricas naquela época já tinham. Eu me inspirava muito no
Pastoril, no boi calemba, que era o bumba-meu-boi. Tinha a Lapinha que era muito
religiosa, tinha os Congos, o Bambelô que era o coco de roda naquela época.
A Vila de Ponta Negra era pequena, más no final de semana ela se
transformava grande. Todo mundo não tinha pra onde ir. Não tinha energia elétrica.
Daquela casinha (apontando para a casa que se encontra em frente à sua casa, a
mesma onde morou seu pai) nós fazia uma tendazinha de palha. Tinha muitos
coqueirais, só era pé de frutas.
As famílias que foram os fundadores da Vila de Ponta Negra são: os
Correias, de Lima, Prazeres. Meu pai era Sebastião Francisco Correia, a gente era
uma família muito pobre. Vivia de roçado, pescando e minha mãe, que era prima do
meu pai, ajudava meu pai, com os afazeres doméstico, uma mulher do lar. Nessa
época todo mundo ia pra igreja. A igreja ficava cheia com pessoas da comunidade.
A gente trocava muitas coisas, porque a comida era pouca. Era um regime
militar que o Brasil se transformou. A gente sofria muito com a miséria. A gente até
agradecia naquela época, a Dom Eugênio Araújo, que pedia alimentos, era a Aliança
122
para o progresso, quando era John Kennedy que mandava navios de alimentos,
para o mundo todo e o Brasil passava uma fome grande. Nessa época a gente
dividia tudo: a alegria e a tristeza. A Vila cresceu, não é mais uma comunidade, más
o sentimento ainda existe, pouco mais existe.
Ai acontece que na Vila de Ponta Negra os pobres era beneficiado com
aquela alimentação, roupa que vinha dos Estados Unidos. E a Vila foi crescendo e
as danças ainda ficava né. As danças no final de semana, aquelas manifestações.
A igrejinha tava aberta lá, as crianças como eu saia com um santo e aquelas
lanterninhas, cantando aquelas músicas religiosas, que pra mim era a coisa mais
linda do mundo, que acabou né. Era N. Sra da Apresentação, N Sra do Rosário, era
São João Batista, São Sebastião.
Toda festa religiosa nós participava, tinha aquelas barraquinhas ao redor da
igreja e nós ia se apresentar lá. E eu pequeno sete anos, ficava até com inveja de
quem tava dançando. Mas meu pai não deixava, porque eu era muito pequeno
ainda, então ficava assistindo com minha mãe. Até que teve um tempo, que foram
num pau de arara para o Teatro Alberto Maranhão, que nessa época, era Carlos
Gomes na Ribeira.
Ai quando eu vi as luzes lá, e os enfeites dos grupos, uma coisa linda que
aqui não tinha, eu disse: olha que mundo bacana, eu vou brincar congos quando eu
crescer, porque as luzes vão me iluminar. Era tão bonito, era luz a motor, mas pra
quem não tinha era uma riqueza muito grande.
Meu pai disse a mim que era uma dança de origem africana, que os
africanos vieram para o Brasil, os Portugueses trouxeram o Pastoril, o boi também é
africano. Eu fiquei na minha sem dançar. Ai quando cheguei a uns oito anos ai eu
comecei a dançar.
O terreno da barreira do inferno hoje, era onde a gente fazia o roçado, busca
lenha lá, porque a gente era muito pobre. A gente buscava madeira pra fazer o
palco, as casas que era de taipa. Essa mata serviu pra muita coisa. Tudo vinha de lá
da mata. Mas o tempo tava crescendo e prejudicando as madeiras, as lenhas se
acabando.
123
Naquela época ninguém queria tomar conta da Vila de Ponta Negra, até hoje
estamos em 2015 e a vila é abandonada. Uma hora era administrado por
Parnamirim e outra vez por Natal, ai ficava naquele jogo de empurra empurra.
A primeira escola da Vila – Escola Estadual Jerônimo de Albuquerque foi
construída em 1947, para atender os moradores. A escola ainda está praticamente
da mesma forma, que a fundação, só cresceu pra cima, um andar. A segunda escola
foi a Escola Municipal São José, fundada no governo de Djalma Maranhão, em
1961, a partir do Projeto de pé no chão também se aprende a ler. No começo a
escola ainda era menor que hoje em dia, só tinha uma sala, no governo seguinte
construíram mais 2 salas.
Nessa época aqui não tinha energia, a gente queimava lenha, a água era de
cacimbão, pois não tínhamos água encanada. A energia só veio chegar em 1975 e a
água já no final da década de 1970.
Quando eu era pequeno, tinha festa lá em Santos Reis (bairro), mamãe
levava eu pra festa, e a gente ia a pé. Eu sofria demais, dormia no caminho, no colo
de mamãe, ou no pescoço do meu pai.
Nos congos desde criança eu já cantava, só tinha eu e mais um, o resto era
tudo gente grande, adulto, pai de família. Meu pai cantava e eu respondia. Ele
colocou eu e meu irmão (José Correia) que era mais velho que eu, pra gente
aprender, pra mim substituir um dia ele.
Eu fui crescendo, quando cheguei aos nove anos meu pai comprou uma
roupa pra mim (se referindo ao figurino dos Congos de Calçola), ai eu comecei a
dançar e de lá pra cá não parei mais. Aos dezoito anos ele me levou para me
apresentar na Fundação José Augusto, para ajudar ele.
Eu falava com Deífilo Gurgel, que tava estudando a cultura. E lá eu fui
conhecendo outros mestres, como Cornélio Campina, Pedro Guajiru e outros.
Quando meu pai morreu eu tava com trinta anos, ai ficou eu e Zé Correia (irmão
mais velho) como Mestre dos Congos.
Quando eu chegava lá em Nova Descoberta, onde meu irmão Zé morava, o
grupo já tava todo enfeitado, tudo elaborado, as músicas que eu ia cantar com ele.
Ai quando chegou a uns cinco anos atrás meu irmão morreu, ai eu fiquei só. Por que
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era nós três: papai, Zé e eu. Agora estou tomando conta do grupo, com a ajuda de
Helena (brincante do grupo) e Silvana (Professora).
Meu pai quando era vivo, dava aula aos meninos, com a morte dele passou
para meu irmão Zé Correia, agora eu com a Professora de Artes Silvana, a gente
ensina a brincadeira dos Congos as crianças da Escola São José há mais de vinte
anos. Os ensaios e uma vez por semana – aos sábados a gente ensaia com os
Conguinhos e renovando os passos e dando continuidade e que eles nunca se
esqueçam que a Vila teve grupo de cultura.
Os Congos é uma dança de africanos, escravos, dizia meu pai. Aqui
antigamente a Vila era como um quilombo, porque ficava da cidade, na verdade
Ponta Negra era Município de Natal, passando a ser bairro na década de 1970.
Para nós moradores antigos da Vila a riqueza é morar perto da família, é
estar perto da nossa cultura.
A Congada tem em muitos lugares no Brasil. Aqui a gente chama de Congos
de Calçola porque eles dançavam o Congo de guerra, porque guerreava muito, aí
nos anos de 1980 terminou, tirou as calças compridas e colocou umas bermudas,
daí Congos de Calçola. E lá em Regomoleiro tinha os Congos de Saiotes.
Naquela época a gente vivia o mesmo pensamento, o mesmo amor. Na Vila
tinha poucas casas, o que um chorava o outro chorava também, se um ria o outro
ria, e todo mundo era uma família só, todo mundo se ajudava.
Nas festas da comunidade – janeiro, junho e dezembro, os grupos dos
Congos, do Pastoril, o Bambelô, do Coco de roda, o Boi de Reis se apresentavam, a
gente fazia aquelas tendas com tochas de fogo, pra gente poder dançar, brincar, pra
gente aquilo era a maior alegria. Naquela época era a única coisa que trazia alegria
para nós, era a dança. Eu penso que eu não perdi não, eu ganhei com essa
diversidade toda.
Os Congos de Calçola, faz parte da minha infância, eu nasci com essa
cultura e quando morrer vou levar comigo.
As apresentações dos Congos na Vila, acontece em frente a Igrejinha
(referindo-se a Igreja São João Batista), todo dia eu vejo minha igrejinha, onde me
batizei, onde me casei, me comunguei, onde eu rezei. Então lá é a melhor
apresentação.
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Antigamente a gente ensaiava sem a roupa dos Congos nas quartas feiras a
noite, aí quando era no sábado e domingo tinha apresentação com as roupas (o
figurino) aqui perto da minha casa (na rua da floresta) do Pastoril, dos Congos. Meu
pai organizava o Pastoril e os Congos. Nas noites de lua, sentava no chão
pescadores, agricultores, porque tinha um senhor com um lampião e ia ler livro de
cordel e as superstições, como a da mula sem cabeça, se a árvore voasse estava
adivinhando morte e por ai vai.
Os moradores da Vila foram vendendo suas casas, onde foram construindo
prédios. As terras lá de baixo (o mestre se referindo as casas em frente à praia de
Ponta Negra) eram de pescadores, que foram vendidas por preços baratos para os
veranistas a partir dos anos de 1960.
A maioria dos moradores nunca tinha ganhado dinheiro vendendo terras. Ai
com a chegada dos veranistas, foi construindo o calçadão da praia. Antigamente
Ponta Negra não era Natal para os natalenses, porque era muito distante aqui. Os
natalenses vinham fazer pique nique na praia. A gente descia pra praia para vender
peixe frito, água de coco para as pessoas que vinha aqui para fazer o pique nique.
Ponta Negra também não era a praia preferida de Natal nessa época. A
praia que enchia de gente era praia de areia preta, o pessoal ia veranear lá, porque
tinha umas casinhas pequenas de pedra.
Natal começou a ganhar do turismo, ai Ponta Negra começou a crescer,
porque é uma praia bonita, tem uma visão bonita, ai acontece que nós que era
morador, ganhamos por uma parte e perdemos por outra. Os veranistas vieram pra
cá, mais a gente mesmo era desprezado pela sociedade, até hoje é desprezado.
Na Vila a maioria das mulheres e esposas dos brincantes dos Congos
sabem fazer a renda. A minha mãe sabia fazer renda muito bem, minha irmã
também aprendeu.
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Antigamente a Vila era uma vila pobre, era só casa de taipa, casa de palha,
não era nada do que é hoje em dia. Eu como eu tava dizendo a você, quando eu
cheguei aqui, porque eu nasci e me criei aqui, então eu ouvia o pessoal dizer que as
casas era mais pras bandas da praia. Essa rua aqui (a rua que ela mora desde
criança) era bem pobrezinha, com casas de taipa, umas aqui e outra acolá. E aí
depois foi mudando, mudando e hoje ta desse jeito. Hoje não é mais Ponta Negra, é
a Vila de Ponta Negra, porque tiraram o nome de Ponta Negra e botaram no
conjunto.
A gente tinha muito terreno desocupado, tinha muita coisa boa, a gente não
tinha medo. A gente saia a qualquer hora da noite, o medo que se tinha era só de
uma alma. Era assim, de uma ponta a outra nunca via nada, tirando também que o
povo antigamente havia lobisomem, aí quando caia a tarde ai diziam: tem
lobisomem aparecendo por ai, o povo tudo tinha medo.
O Morro do Estrondo, todo ano quando começava o inverno estrondava. O
morro antigamente era bem alto e o mato bem estreitinho, de lá em cima do morro
avistava Parnamirim, a gente via as luzes de Parnamirim tudo clarinha, más não
Parnamirim como é essa cidade que é hoje, era só umas luzinhas mesmo.
Os americanos começaram a vim em Ponta Negra, eles não vinham aqui pra
cá (se referindo a Vila), eles iam pra perto da Via Costeira, aqui tinha mais mato
mesmo. O povo antigo dizia que lá tinha uma casinha por lá, então eles iam mais pra
lá. Lá o pessoal vendia fruta, tapioca, porque eles não sabiam o que era e vendiam
renda também.
Eu ouvia minha cunhada falar que ela ia também vender e que ganhava
muito dinheiro nessa época para os que negociavam lá. Quem soube aproveitar
comprou até alguma coisa. Mais ai minha filha, depois acabou-se tudo, nós agora
vive uma vida assombrada, aqui as rendeiras ainda botam a cadeira ali, ai fica um
pouquinho do lado de fora, mas em outros cantos por ai ta perigoso.
Para se divertir, aqui existia assim: o pastoril, a Lapinha era a diversão do
pessoal. E aquele outro pessoal que não brincava ia olhar. As vezes tinha canto
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vendeu por cem cruzados. Com esse dinheiro minha mãe comprou roupa pra mim,
comprou calçado, comprou pano pra fazer calcinha, tudo com o dinheirinho da renda
e ainda ficou com um restinho.
Então eu era menina ainda, aprendi isso com sete anos, foi um dom que
Deus me deu. Hoje estou com setenta e seis anos e eu ainda estou com ele e me
serve muito. Agora aqui nas rendeiras quando tem curso, ai eu nem tô mais
ensinando, eu passo pra uma rendeira antiga também, más sempre fico olhando
sabe, mais eu não estou podendo ficar muito tempo em pé por causa da coluna, os
músculos, os ossos dói. Eu gosto muito do meu trabalho e só deixarei de fazer esse
trabalho, quando eu não puder mais.
Essa casa das rendeiras era um terreno, nessa época a gente morava lá
pra trás, eu com minha mãe numa casinha de palha. Ai quando meu pai morreu a
gente veio morar aqui. Quando a gente veio para cá, minha mãe pediu a uma
mocinha para me ensinar a fazer uma renda mais larguinha, cheio de traço. Ai
comecei a fazer trabalhos maiores como toalha e colchas. Hoje a gente aqui faz de
tudo, vestido até sandália de renda de bilro.
A Igreja da Vila, quando eu era criança já existia aqui. Ela era muito
pobrezinha, ai ela foi aumentando com o tempo Quando eu era menina eu me
batizei ela era de pedra preta. A pedra era igual à da praia. Uma vez chegou a cair o
teto da igreja, de tão velho que estava.
Hoje a gente tem um padre que cuida muito bem dela, hoje ela é a paróquia
de São João Batista, e hoje ela está bonita. A nossa igreja é tudo pra nós, e eu que
moro aqui bem pertinho, eu chego daqui eu tô vendo o padre rezando a missa ali.
Faz cinquenta anos que moro só aqui, nesse canto, que era um ranchinho
de palha. Ai depois passei pra essa outra casa (se referindo a sua casa, que fica ao
lado do espaço da casa das Rendeiras).
Aqui antigamente, a mais ou menos quarenta anos, onde é a casa das
Rendeiras era um restaurante do meu filho. Ele me pediu esse pedacinho pra fazer o
restaurante, ai eu fui e chamei os irmãos, combinei que ia mandar ele fazer um
restaurante pra fazer a vida dele, porque ele não tinha emprego. Ai depois começou
a ter muitos restaurantes na beira da praia, restaurante chique por causa dos
veranistas, com isso o restaurante foi a falência.
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Meu filho, um dia chegou pra mim e pediu para mim juntar umas Rendeiras
pra eu tomar de conta, porque essa tradição ta se acabando e essa tradição é uma
coisa que vem das raízes. Ai eu disse – meu filho eu tomar conta de um bocado de
gente de idade e mais idosa do que eu. Nessa época esse espaço aqui já era um
salão só, ai ele fez esse espaço pras Rendeiras. Tinha duas turmas: tarde e noite.
Com o tempo ficou só a turma da tarde.
Com a remodelação das barracas na praia, meu filho hoje criou também um
restaurante, Tapiocaria e uma lojinha, onde a gente vende nossos produtos. Então
quem chega aqui, quem quiser comer tapioca come, quem quiser almoçar, quem
quer aprender a renda, também aprende, e assim a gente vai levando a vida.