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Veronica Stigger
Escritora, poeta e crítica de arte
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garosa e colorida, as ruas do centro de fiéis, caminhando no sentido contrário à de Arte Contemporânea da li'!
Universidade de São Paulo, .,
São Paulo. O jovem engenheiro Flávio de procissão. Alto, com quase dois metros de
~~;e~polsa fornecida pela .1'1',.1.
Carvalho, então com 31 anos e conhecido altura, era difícil não perceber a presença , Flávio de Carvalho, Experién- I
pela ousadia de seus projetos de arquite- de Flávio de Carvalho e mais difícil ainda cia n. 2: Realizada sobre uma I. '1'
Procissão de Corpus Christi: ,I
tura nunca premiados, observava, entre era ficar indiferente a ela: além de avançar Uma Possível Teoria e uma I,'
Experiência. Rio de Janeiro, '~
interessado e curioso, os fiéis passarem, na direção oposta ao fluxo do cortejo, ele Nau, 2001, p. 16. "
3 Idem. 1. ed. São Paulo, ,r.,'
quando teve a ideia de realizar uma expe- permanecera, desrespeitosamente, com a Irmãos Ferraz, 1931. São
riência. Pretendia, como declarou poste- cabeça coberta pela boina. Num primeiro conhecidas apenas três I
"experiências" de Flávio de
riormente, "desvendar a alma dos crentes instante, como o próprio Flávio de Car- Carvalho. A primeira delas foi ".I'.I:,!,.
a de número 2, realizada na •
por meio de um reagente qualquer que valho relataria três meses depois em Ex- procissão de Corpus Christi. I I
A segunda, de número 3, I
permitisse estudar a reação nas fisiono- periência n. 2, livro dedicado a expor e consistiu na criação do traje r
solveu apelar para a lógica, justamente levou à delegacia, para prestar depoimcn
no momento em que a multidão parecia to, enquanto a procissão retomava o st:u
ultrapassar o limiar da racional idade: "Eu rumo, com seus cânticos e seus lentos 1111)
sou um contra mil", argumentava ele, vimentos coloridos.
CIIbidern, p. 19.
(, Ibidem "Eu sou apenas um, vocês são centenas".
I lbidem, p. n
c Ibidem, p. 23
Sem obter resposta da multidão, Flávio se
" Ibidem, p 76. tornou mais agressivo e chamou as pes- Três décadas e meia depois desse epi
10 lbidcm, p. 27
" Ibidern, p. 28. soas à sua volta de "covardes"." Nisso, sódio, Ra III Bopp, em Vida e Morte d"
midas. Flávio de Carvalho, por exemplo, como "delegado antropófago". Oswald Antropofagia. Rio de Janeiro,
Civllizaçao Brasileir~. 1977,
realizou a sua Experiência Número 2, em de Andrade o acompanhou na ocasião. p.42.
11 Idem, "Da 'Bibliotequinha
sondagem psicológica da multidão, numa Para este, Flávio de Carvalho representa- Antropoíáqica'". In: Cobra
Norato e Outros Poemas.
procissão de Corpus Christi. Quase foi va uma terceira fase do movimento, que 6.ed. Rio de Janeiro, Livraria
linchado" .12 se iniciou "depois de 1930" .15 À época São José, 1956. p, 9.
" Idem. "Da' Antropofagia''',
Com essa rápida observação, Bopp do congresso, Oswald declarou ao Diário op. cit.. p. 9.
15 Oswald de Andrade obser-
vincula a ação de Flávio de Carvalho a da Noite: "Flávio de Carvalho é uma das vou: "De fato, data de 1928
o movimento que lancei com
um contexto mais amplo de pensamento: grandes forças do movimento antropofá-
o nome de antropofagia e
faz-nos perceber como a experiência em gico brasileiro. Coloco-o ao lado de Pagu, que inicialmente não passava
dum aprofundamento do
questão mobiliza certos aspectos caros como temperamento e como criador, pois sentimento nacional de 'Pau-
Brasil'. Tendo dado a direção
ao movimento antropofágico, criado por é, de todos nós, quem mais tem trabalha- da Revista de Antropofagia
Oswald de Andrade e pelo próprio Bopp do "." a Antônio de Alcântara
Machado. eu e o grupo que
nos últimos anos da década de 1920. No evento, Flávio de Carvalho profe- comigo fazia o movimento
com ele nos desaviamos. Fun-
Naquele período, Flávio de Carvalho riu a conferência "A Cidade do Homem damos então uma segunda
Revista de Antropofagia que
estava próximo ao grupo da antropofa- Nu", um dos raros textos em que se refere se publicou no suplemento
gia. Figurava entre os autores que teriam explicitamente à antropofagia:"? do Diário de S. Paulo. Houve
ainda uma terceira fase com
obras publicadas na "Bibliotequinha An- a participação de Flávio de
Carvalho, mas isso depois
tropofágica", coleção que nunca chegou Em São Paulo, fundou-se há alguns anos de 1930" ("Informe sobre o
Modernismo" In: Estética e
a existir e cujo único testemunho é o re- a ideologia antropofágica, uma exaltação Política. São Paulo, Globo,
lato fornecido por Bopp." O volume de do homem biológico de Nietzsche, isto é, a 1992, p. 100)
'6 Citado por J. Toledo. Flavio
Flávio se chamaria Brasil-Freud e seria o ressurreição do homem primitivo, livre dos de Carvalho: o Comedor de
Emoções, op. cit.. p. 92.
quarto a ser editado, depois de Sambaqui tabus ocidentais, apresentado sem a cultu- 17 Flávio de Carvalho teria
1< Ibidem. na tese A Crise da Filosofia Messiânica, a interior e o mundo exterior. A reac.« I
H Ibidem.
I.; Oswaldd" Andrade, transformação do valor oposto - o tabu, contra o homem vestidov" e "Contra .1
Manifesto Antropófago,
op. cit., p. 51. Poderíamos isto é, o proibido, o "intocável"?" - em Memória fonte do costume. A expericn
recordartambémo texto de
Oswaldo Costapublicado no valor favorável - o to tem, isto é, o que cia pessoal renovada". 26 Está constitu í( 1I I
primeironumeroda Revista é adorado: "Nesse devorar que ameaça a o que Flávio de Carvalho passa a denouu
de Antropofagia: "Portugal
vestiuo selvagem.Cumpre cada minuto a existência humana, cabe ao nar o "homem nu", "homem do futuro",
despi-Ia.Paraqueeletome
umbanhodaquela'inocência homem totemizar o tabu";" homem "sem deus, sem propriedade, S('III
contente'queperdeue que
o movimentoantropófago f: no âmbito da antropofagia que Flá- patrimônio" Y Na figura do "homem 1111",
agoralherestitui.O homem vio de Carvalho encerra suas propostas Flávio projeta a imagem do homem l" 1i
(faloo homemeuropeu,cruz
credor) andavabuscandoo para a cidade do futuro. Seu texto parte vir, um homem liberto das amarras 1111 I
homemforado homem.E
de lanternanamão:filosofia. da constatação de que o homem de sua rais, religiosas, políticas e econômicas d;I"
Nósqueremoso homemsem época vive dentro de um quadro de sa- sociedades patriarcais. Sua briga, COIIII)
a dúvida,semsequera pre-
sunçãoda existênciada dúvi- turação: "perseguido pelo ciclo cristão, também a de Oswald, era contra as "e()11
da:nu,natural,antropófago"
("A'Descida'Antropófaga". embrutecido pela filosofia escolástica, cepções cristãs da família e da propricd.i
Revista de Antropofagia, n. 1,
maio1928, p 8) exausto com 1.500 anos de monotonia de privada."." Conta o próprio Flávio <\111
'6 Oswaldde Andrade,
Manifesto Antropófago, op.
recalcada", ele se apresenta "como uma Oswald, durante as discussões do u )11
cit.,p. 51. máquina usada, repetindo tragicamente gresso de arquitetos, propôs a dernolic.«.
27 Fláviode Carvalho,"Uma
TeseCuriosa",op.cit., os mesmos movimentos ensinados por da estátua do Cristo Redentor, que ;1 i 11
p.79-80.
za Ibidem,p. 79. Arisróteles't.ê' "Nos dias de hoje a fadiga da não se achava finalizada, prOVOC111<II )
apresentou novamente sua tese a respeito entrave o seu desejo de penetrar no desco- 1
li'
da cidade do homem nu. Em entrevista a nhecido" .34 É para essa libertação, para
\':
O Estado de Minas, não deixou dúvidas este despir-se dos "tabus vencidos"," que If
sobre o papel da antropofagia nesta ba- Flávio de Carvalho convocou os partici- 1I
talha: "Belo Horizonte me dá a impressão pantes do IV Congresso Pan-Americano 1I
de uma cidade torturada pelo cretinismo de Arquitetos: I~
clássico arquitetõnico. Mas a antropofa- I~
gia vai destruir esse cretinismo clássico. Convido os representantes da Améri- ~
Devorará o ciclo cristão, porque esse é ca a retirarem as suas máscaras de civili-
ineficiente" .30 A antropofagia surge, em zados e pôr à mostra as suas tendências "II
li
certa medida, como uma forma de liber- antropofágicas, que foram reprimidas pela I
II
tação do peso da tradição cristã. "Con- conquista colonial, mas que hoje seriam o
/
tra todas as catequeses", já proclamava nosso orgulho de homens sinceros, de ca- I
Oswald de Andrade em seu manifesto." minhar sem deus para uma solução lógica 29 Flávio de Carvalho, "O ~
Antropófago Oswald de
No que diz respeito ao planejamento ur- do problema da vida da cidade, do proble- Andrade". Manchete, Rio de
bano, só "a cidade antropofágica" pode- ma da eficiência da vida." Janeiro, n. 808, 14 out. 1967,
p.99.
ria satisfazer o "homem nu" por ser capaz 30 Citado por J. Toledo, Flávio
de Carvalho, o Comedor
de suprimir "os tabus do matrimônio e da de Emoções, op. cit., p. 95.
Publicado originalmente em O
propriedade" Y Isso porque ela "perten- A expressão "vacina antropofágica" , Estado de Minas, 9 jul. 1930.
ce a toda coletividade": "ela é um imenso com que Raul Bopp descreveu a disposi- 31 Oswald de Andrade,
te, um gigantesco motor em movimento, cia n. 2, não era invenção sua: tratava-se Tese Curiosa", op. cit., p. 81.
"Ibidem.
transformando a energia das ideias em de uma citação. Oswald de Andrade, no 34 Ibidem, p. 80.
o desejo coletivo, produzindo felicidade, "Necessidade da vacina antropofágica". " Oswald de Andrade,
Manifesto Antropófago, op.
isto é, a compreensão da vida ou movi- Para quê? "Para o equilíbrio contra as cit., p. 48.
l8 Expressão de Benedito
rnento't." Para Flávio, apenas por meio religiões de meridiano. E as inquisições
Nunes, "A Antropofagia ao
dessa libertação, desse desrecalque dos exteriores.t"? Vacina, portanto, contra as Alcance de Todos" In: A
Utopia Antropofágica, op.
desejos sublimados, o homem estaria apto "religiões de salvação" .38 Afinal, afirmava cit., p. 20.
" Raul Bopp conta que zados" .39 Uni sentimento visceralmente Carvalho.
Oswald de Andrade estivera
empenhado em 'formular as
amicristão, e antes dele ateu, associa-se Baseado nas proposiçoes de James (:.
bases teóricas de "Uma sub- aos pensamentos antropofágicos tanto de Frazer, segundo as quais a identificação
reliqiáo no Brasil" "procurava
ele fundamentos de unidade Oswald quanto de Flávio de Carvalho, os do homem com o seu torern "parece ser ;1
para uma seita religiosa,
tipicamente brasileira, isto é, quais, no entanto, não estão destituídos essência mesma do totemismo" ,43 Flávio,
constituída com o sl/b,-
tretutn de crenças dos trés
de alguma forma de religiosidade. "É pre- na parte do livro Experiência n. 2 dedi
grupos raciais que formam ciso partir de um profundo ateísmo para cada à análise das reações das pessoas ;1
os alicerces étnicos do Bei;si!.
Tinham parte marcantc 110 se chegar i1 ideia de Deus","? defendia dia- sua ação, assevera que a massa de fiéis 11;1
plano os atributos ocultos de
seres e coisas, dentro de C"t1 leticamente Oswald, não nos permitindo procissão busca, no fundo, se igualar ;t
clima de surrealismo rcliqioso.
Também, as relações subjpti-
esquecer que a antropofagia era descrita Cristo: "O mecanismo religioso funcion.i
vas com espíritos protetores. ainda, na abertura do mesmo manifesto, do mesmo modo que o regime patriótico,
como o Tatá de Carunqa,
e o santor.il afro-c.uólico. como a "expressão mascarada" de "todas produz um sentimento profundo de igual
venerado em terreiros de 11)(1-
curnba. A invocacao c.h for(a~
as religiôes";" dade, mas não entre os elementos da mas
totêmicas seria feitél em ritmo
A provocação de Flávio de Carvalho sa; somente entre () indivíduo e o Cristo":
de batuque, com interpola-
cõcs de termos caui)lislicos, não se dirigia contra uma multidão qual-
para preservar uma p{lrlr do
mistério" (Raul Bopl', VIria c quer, mas contra uma procissão católica. o comporta mcnto de urna procissão
Morte ria Anlropo{nrjia, op
c.it., p. ;lEi). (E o livro em que narra sua experiência foi sobre o domínio de um chefe invisível r:
têmico onde todos os elementos da nação sendo igual ao Cristo"."? Flávio, diluin- Experiência n. 2, op. dt. I
I'
p. 51-52, Nesta passagem, ~j
são o igual do emblema. O mesmo acon- do Freud," muitas vezes de maneira um Flávio de Carvalho está inter-
pretando livremente Freud 1,1 i
tece com o Cristo; ele é um chefe invisível tanto simplificada, recorda que a prática quando este afirma que a 1'11
representando uma ideia, dominando uma de assassinar e consumir o chefe morto, massa sente a necessidade de I~'
I "I
seguir a figura de um chefe,
multidão unida por uma certa ordem de la- para se nivelar a ele, é mais antiga que o uma vez que" a multidão é
um dócil rebanho incapaz
ços. (... ) O grande desejo dos componentes cristianismo e que, em algumas comuni- de viver sem amo": "Tem III,II
tal sede de obedecer que
da massa é de se igualar a Cristo, e incons- dades primitivas, depois de morto, o chefe se submete instintivamente ,',11
cientemente o Cristo é tido como seu igual acabava sendo venerado por sua horda: àquele que se erige como seu fi
chefe" ("Psicologia de Las ,li'
pelos elementos." "É provável que este processo de revolta Masas y Análisis dei 'Yo''', r(
In: Obras Completas. Tomo 1II1
e adoração seja tão antigo quanto o pró- 111. Madri, Biblioteca Nueva, 111
Com Frazer, Flávio aprendeu que uma prio homem; o velho chefe antes odiado e 1996, p. 2570), É sob essa W
lógica que Freud comenta que .' I
das raras formas de se identificar com- que depois de morto era adorado" .49 Uma a Igreja e o Exército podem "
I~,;I
ser compreendidos como ~r
pletamente com o to tem é matando-o vez que a finalidade dos crentes era, con- "massas artificiais", isto é, I"
"massas sobre as quais atua 111
e comendo-o - em geral, nas sociedades forme Flávio, se igualar a Deus, a vene- uma coerção exterior que tem ~'
totêmicas, ocorre o contrário, com sérias ração a Ele poderia ser entendida como, por finalidade preservá-Ias da r~
dissolução" (Idem, p. 2578).
restrições a essas práticas: "Porque o sel- no fim das contas, uma veneração a si Tanto na Igreja quanto no ~,I'
Exército, haverá a ilusão de II
vagem pensa, não sem qualquer razão, mesmo. Assim, o cortejo não passaria de um chefe: "Na Igreja - e 1 li(
mastigou ou na raiz ou na fruta que engo- contrário e permanecendo com a cabeça visível ou invisível de um chefe 1
(Cristo, na Igreja Católica, e I1I
liu" .45 Frazer nota ainda que, entre os in- coberta, em atitude desrespeitosa e desa- o general, no Exército), que 111
ama com igual amor a todos 1I
dígenas a ustralianos, era costume ingerir fiadora, desestabilizava a relação cornu- os membros da coletividade" 'i~
(Idem, p. 2578), ~\
o cadáver dos parentes mortos "em signo mente estabelecida entre a massa e seu 45 James G. Frazer, Les Origi- li,"
de respeito e de afeição";" Para Flávio objeto de adoração, o Cristo, desviando, nes de Ia Fami/le et du C/an, r
op. cit., p. 14, ,i"
de Carvalho, decorre dessa tentativa de por alguns momentos, a atenção des- 46 Ibidem, p. 15, (I,'
" Flávio de Carvalho, Experiên- f.\
se igualar a Cristo o hábito de devorá-lo te. Assim, pelo menos, entendia Flávio: cia n. 2, op. cit., p. 52. 1\
48 Ver Sigmund Freud, "Totem j',
simbolicamente na comunhão da missa: "Evidentemente que um cortejo em mo- y Tabu" In: Obras Completas, 11
Tomo 11. Madri, Biblioteca 111
"Quando o católico engole o corpo de vimento, dominado pelo processo de in-
Nueva, 1996, p. 1838 e ss. ~I,.I
Cristo e às vezes bebe o seu sangue em tegração totêrnica com um chefe invisível 49 Flávio de Carvalho,
Experiéncia n. 2, op. cit.,
forma de vinho, ele pretende por esse ato (Cristo), recebe qualquer interferência p. 52. ~
I!,
1
II,I
PARTE V - REPERCUSSÕES' 607
~
/1
como um obstáculo ao cumprimento do do inimigo sacro. Para transforrná-lo em
gozo na rcísico e (. .. ) o obstáculo é tra- totem" .55
tado como inimigo indesejável por uma Flávio de Carvalho poderia ter ido
parte da procissão, e como amigo aspira- mais longe em sua reflexão e ter percebi-
do por outra parte" .50 As "filhas de Ma- do que executara aqui a operação máxi-
ria", com as quais flertava, e os senhores ma da antropofagia oswaldiana: a con-
e senhoras mais velhos não foram os que versão de todos em antropófagos. "Única
responderam de maneira mais violenta à lei do mundo", a antropofagia é, segundo
sua provocação," porque não viam pre- Oswald, o que nos une "socialmente",
judicada a sua relação com Deus. Os jo- "econom ica mente" , "filosoficamente" :\6
vens, ao contrário, estavam entre os que Temos, na experiência n, 2, um convite
reagiram ferozmente à atitude de Flávio. semelhante àquele do final da conferên-
Para eles, conforme o próprio artista, cia no IV Congresso Pau-Americano de
sua presença era humilhante, porque os Arquitetos no ano anterior: que os fiéis
fazia se sentiren.1 rebaixados diante de depusessem "as suas máscaras de civiliza-
S2
outra figura viril: "só o meu assassina- dos" e deixassem "à mostra as suas ten-
to poderia saciar o desejo de totemiza- dências antropofágicas". O objetivo de
ção dos espectadores, do mesmo modo sua experiência era claro desde o início:
que os jovens da horda primitiva repri- "provocar a revolta para ver alguma coi-
mida nos seus instintos sexuais matavam sa de inconsciente" .\7 Flávio de Carvalho
o pai se nivelando a ele" .53 Se ele de fato queria ver se formar, em meio à procissão,
atua va como um rival de Cr isto" (FIá vio uma massa cujo comportamento se torna-
não teve qualquer modéstia na descrição ria a cada instante mais irracional. Sabia,
de sua atuação no cortejo), era porque, a partir de Gustave Le Bon (uma das fon-
por sua atitude desafiadora, colocava em tes de Psicologia das Massas e Análise do
se Ibidem, p. 60. risco o equilíbrio daquela pequena co- Eu, de que Flávio era leitor atento), que o
51 tbrdern, p. 60-63.
51 lbidem, p. 54 e 79-80.
munidade que se formava na procissão indivíduo, quando integrado à multidão,
" Flávio de Carvalho, Experiên· em torno da imagem do Deus. O papel acaba reagindo como um "selvagem":
cie n. 2, op. cit., p. 80.
54 lbidern, p. 64. que desempenhou, portanto, foi aquele
"Oswald de Andrade,
Manifesto Antropófago, op. do "inimigo sacro", para nos valermos COl110 o selvagem, não admite obstácu-
cit., p. 51
so lbidern, p. 47.
de outra expressão extraída do Mani- lo entre seu desejo e a realização desse de-
" Flávio de Carvalho. Expe- festo Antropófago. Oswald de Andrade sejo, ainda mais que o número lhe propor-
riênôa n. 2, op. cit.. p. 16
(grifo meu). preconizava: "Antropofagia. Absorção ciona uma sensação de poder irresistivel.