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A VACINA ANTROPOFÁGICA1

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Veronica Stigger
Escritora, poeta e crítica de arte
IIIII!

,I
li
,11

Domingo, 7 de junho de 1931: a pro- com a Praça do Patriarca, vestiu a boina


, Este texto resultado parcial
é II ,'ri'.:
da minha pesquisa de pós-
doutorado realizada entre
cissão de Corpus Christi atravessava, va- verde e, resoluto, enfrentou a multidão de 2006 e 2009 junto ao Museu I'

garosa e colorida, as ruas do centro de fiéis, caminhando no sentido contrário à de Arte Contemporânea da li'!
Universidade de São Paulo, .,
São Paulo. O jovem engenheiro Flávio de procissão. Alto, com quase dois metros de
~~;e~polsa fornecida pela .1'1',.1.

Carvalho, então com 31 anos e conhecido altura, era difícil não perceber a presença , Flávio de Carvalho, Experién- I
pela ousadia de seus projetos de arquite- de Flávio de Carvalho e mais difícil ainda cia n. 2: Realizada sobre uma I. '1'
Procissão de Corpus Christi: ,I
tura nunca premiados, observava, entre era ficar indiferente a ela: além de avançar Uma Possível Teoria e uma I,'
Experiência. Rio de Janeiro, '~
interessado e curioso, os fiéis passarem, na direção oposta ao fluxo do cortejo, ele Nau, 2001, p. 16. "
3 Idem. 1. ed. São Paulo, ,r.,'
quando teve a ideia de realizar uma expe- permanecera, desrespeitosamente, com a Irmãos Ferraz, 1931. São

riência. Pretendia, como declarou poste- cabeça coberta pela boina. Num primeiro conhecidas apenas três I
"experiências" de Flávio de
riormente, "desvendar a alma dos crentes instante, como o próprio Flávio de Car- Carvalho. A primeira delas foi ".I'.I:,!,.

a de número 2, realizada na •
por meio de um reagente qualquer que valho relataria três meses depois em Ex- procissão de Corpus Christi. I I
A segunda, de número 3, I
permitisse estudar a reação nas fisiono- periência n. 2, livro dedicado a expor e consistiu na criação do traje r

para o "novo homem dos ..


mias, nos gestos, no passo, no olhar, sentir analisar essa sua ação,' os fiéis não reagi-
trópicos", o New Look, e 1/:.'
enfim o pulso do ambiente, palpar psiqui- ram: "Na procissão, um grande número no desfile da indumentária,
tendo o próprio Flávio de
camente a emoção tempestuosa da alma de negros idosos me olhava pacatamente, Carvalho como modelo, pelas
ruas do centro de São Paulo, r
coletiva, registrar o escoamento dessa resignados; as velhas de ambas as cores em outubro de 1956. A ter- , I,
ceira, a de número 4, ocorreu . ,~
emoção, provocar a revolta para ver al- não se indignavam; olhar de submissão e
em 1958, quando o artista
guma coisa de inconsciente". 2 Tomou um súplica que dizia "tenha dó de mim", e a embarcou rumo à Amazônia
para estudar os aspectos
bonde, foi até a casa de seus pais, na Praça parte de ter dó diminuía em intensidade etnológicos, psicológicos e
artlsticos de tribos locais e
Oswaldo Cruz, pegou uma boina verde e, à medida que a juventude crescia"." Con- produzir um filme de ficção.
meia hora depois, estava de volta ao cen- tudo, uma vez que Flávio de Carvalho Quanto à experiência de nú-
mero 1, não se sabe ao certo
tro da cidade. Na esquina da Rua Direita não apenas insistia em cruzar o cortejo na o que teria sido. Sangirardi ~

PARTE V - REPERCUSSÕES· 601


J, conta que perguntara a contramão, mas tambémpassou a flerta r um homem loiro convocou-o à lur.i. 1,1,
Flávio de Carvalho sobre essa
experiência, ao que o artista com algumas meninas - "duas louras bo- vio declinou. A multidão se tornava, ,I< I,
haveria dito que se tratara de
um episódio em que fingiu nitas, duas morenas bonitas e duas feias vez mais agitada. Flávio ensaiou, ('111,1"
ter se afogado na fazenda de
um parente, mas que a ação
de cada tipo":' -, a massa de crentes foi moderar a irreverência: "Coagido I" 11
não surtira efeito (Flávio de paulatinamente deixando a passividade força bruta, vencido pelo número, V('I' I
Carvalho, o Rcvolucioruuio
Romântico. Rio de Janeiro, de lado e começando a se enfurecer: "Já rne forçado a continuar o meu caminl«.
Philobiblion, 1985, p 33) J
Toledo contesta Sangirardi me olhavam de urn modo esquisito. Um sem chapéu". A sua iminente desisrcr« '1
Jr. e assegura que Flávio
de Carvalho lhe declarara
ou outro indivíduo protestava timida- da provocação pareceu enfurecer :lilill.l
"enfaticamente" - e afirmara mente, de longe, escondendo seu gesto; as mais a turba, Foi aí que se passou a ou \'11.
tarnbém "a vários repórteres"
- "não haver criado a 'Expe- filhas de Maria se entreolhavam tímidas e primeiro timidamente, depois com 111.11,
riência n. 1 '" e ter iniciado
logo pela número 7. "por um me fixavam submissas, encantadoramen- vigor: "Mata!", "Pega!".1O Embora j;1 '"
mero capricho de rnornento"
(Flávio de Carvalho.' o Come-
te, apertando na mão o breviário ou um afastasse de costas, de mansinho, FI:! v111
dor de Emoções. 5;'0 Paulo, acessório"." E Flávio seguia impassível no ia argumentar mais uma vez quando I, 'I
Brasiliense; Campinas. ErMora
da Universidade EstacJudl do sentido contrário à procissão. De repente, interrompido pelo berro que detonou d,
Campinas, 1994, p. 116)
Para Luiz Carlos Dal1er, por um grito se sobrepôs à cantoria: "Tira o uma vez por todas a ira dos fiéis: "I .111
sua vez, haverá sempre. sobre
chapéu!"." Outros lhe fizeram eco. Flávio cha!"." A multidão já não era mais eUII
essa questão, "urn resíduo
de mistério, pois Quirino da começou a medir o perigo da situação: trolável: aos gritos de "lincha", "m.u.i ".
Silva e o próprio Flávio deram
outras versões: or» a n. 1 "Viro-me e vejo uma porção de jovens "pega", foi para cima do artista. N:11l
nunca existiu, ora Hávio 'não
se lembrava' de qual teria
em atitudes ameaçadoras. Alguém me em- havia outra saída que fugir. Flávio correu
sido, ora fora um estágio
purra e uma porção de mãos me agarram: por entre a multidão e escapou pelas vi!"
no Juqueri para estudar as
expressões dos alienados, sacudo-me violentamente, desprendendo- Ias do centro até deparar, na rua São Ikll
ora ... " (Flávio de Carvalho e a
Volúpia da Forma. São Paulo, me das garras"." esse instante, a boina to, com a porta da Leiteria Campo Bl'I, '.
M.WM Motores Diesel, 1984,
p.192)
lhe foi surrupiada. Em seguida, um rapaz Entrou, atravessou o salão, a cozinha (' ~,('
, Flávio de Carvalho, Experiên- a devolveu e o desafiou a recolocá-la na refugiou na claraboia. Lá ficou até que IUI
cia n. 2, op. cit.. p. 17.
cabeça. Acuado, Flávio de Carvalho re- rendido pela polícia, que o prendeu e (I

solveu apelar para a lógica, justamente levou à delegacia, para prestar depoimcn
no momento em que a multidão parecia to, enquanto a procissão retomava o st:u
ultrapassar o limiar da racional idade: "Eu rumo, com seus cânticos e seus lentos 1111)
sou um contra mil", argumentava ele, vimentos coloridos.
CIIbidern, p. 19.
(, Ibidem "Eu sou apenas um, vocês são centenas".
I lbidem, p. n
c Ibidem, p. 23
Sem obter resposta da multidão, Flávio se
" Ibidem, p 76. tornou mais agressivo e chamou as pes- Três décadas e meia depois desse epi
10 lbidcm, p. 27
" Ibidern, p. 28. soas à sua volta de "covardes"." Nisso, sódio, Ra III Bopp, em Vida e Morte d"

('U,"· r\NTROPOfACIA HOTF' OSIVALD DE ANDH.\DE EM CENA'


Antropofagia, texto em que faz um apa- 1930, que ele teve participação mais ativa
nhado do que foi e do que pretendeu o junto à antropofagia, ao se apresentar, no
movimento, comenta: "A vacina antropo- IV Congresso Pan-Americano de Arquite-
fágica imunizava algumas atitudes deste- tura, que se realizou no Rio de Janeiro, 1l Ralll Bopp. VIda e Morte da

midas. Flávio de Carvalho, por exemplo, como "delegado antropófago". Oswald Antropofagia. Rio de Janeiro,
Civllizaçao Brasileir~. 1977,
realizou a sua Experiência Número 2, em de Andrade o acompanhou na ocasião. p.42.
11 Idem, "Da 'Bibliotequinha

sondagem psicológica da multidão, numa Para este, Flávio de Carvalho representa- Antropoíáqica'". In: Cobra
Norato e Outros Poemas.
procissão de Corpus Christi. Quase foi va uma terceira fase do movimento, que 6.ed. Rio de Janeiro, Livraria
linchado" .12 se iniciou "depois de 1930" .15 À época São José, 1956. p, 9.
" Idem. "Da' Antropofagia''',
Com essa rápida observação, Bopp do congresso, Oswald declarou ao Diário op. cit.. p. 9.
15 Oswald de Andrade obser-
vincula a ação de Flávio de Carvalho a da Noite: "Flávio de Carvalho é uma das vou: "De fato, data de 1928
o movimento que lancei com
um contexto mais amplo de pensamento: grandes forças do movimento antropofá-
o nome de antropofagia e
faz-nos perceber como a experiência em gico brasileiro. Coloco-o ao lado de Pagu, que inicialmente não passava
dum aprofundamento do
questão mobiliza certos aspectos caros como temperamento e como criador, pois sentimento nacional de 'Pau-
Brasil'. Tendo dado a direção
ao movimento antropofágico, criado por é, de todos nós, quem mais tem trabalha- da Revista de Antropofagia
Oswald de Andrade e pelo próprio Bopp do "." a Antônio de Alcântara
Machado. eu e o grupo que
nos últimos anos da década de 1920. No evento, Flávio de Carvalho profe- comigo fazia o movimento
com ele nos desaviamos. Fun-
Naquele período, Flávio de Carvalho riu a conferência "A Cidade do Homem damos então uma segunda
Revista de Antropofagia que
estava próximo ao grupo da antropofa- Nu", um dos raros textos em que se refere se publicou no suplemento
gia. Figurava entre os autores que teriam explicitamente à antropofagia:"? do Diário de S. Paulo. Houve
ainda uma terceira fase com
obras publicadas na "Bibliotequinha An- a participação de Flávio de
Carvalho, mas isso depois
tropofágica", coleção que nunca chegou Em São Paulo, fundou-se há alguns anos de 1930" ("Informe sobre o
Modernismo" In: Estética e
a existir e cujo único testemunho é o re- a ideologia antropofágica, uma exaltação Política. São Paulo, Globo,
lato fornecido por Bopp." O volume de do homem biológico de Nietzsche, isto é, a 1992, p. 100)
'6 Citado por J. Toledo. Flavio

Flávio se chamaria Brasil-Freud e seria o ressurreição do homem primitivo, livre dos de Carvalho: o Comedor de
Emoções, op. cit.. p. 92.
quarto a ser editado, depois de Sambaqui tabus ocidentais, apresentado sem a cultu- 17 Flávio de Carvalho teria

proferido. em Belo Horizonte,


(coleção de artigos veiculados na Revista ra feroz da nefasta filosofia escolástica. O
em 9 de julho de 1930, outra
de Antropofagia), Macunaíma, de Mário homem como ele aparece na natureza, sel- conferência com referência
direta ao movimento antro-
de Andrade, e Cobra Norato, de BOpp.14 vagem, com todos os seus desejos, toda a pofágico: "A Antropofagia
no Século XX·' (ver 1. Toledo,
Para este último, Flávio produziu a ilus- sua curiosidade intacta e não reprimida. O Flávio de Carvalho, o Come-
dor de Emoções, op. cit.. P
tração de capa da primeira edição, em homem que totemiza o seu télbu, tirando
95 e LUII Carlos Daher, Flavio
191'1, mesmo ano da Experiência n. 2. dele o rendimento máximo. O homem que de Carvalho: ArqlJltetura e Ur-
benismo. 5;'0 Paulo, Projeto,
Porém, foi no ano anterior, em junho de procura transformar o mundo não métrico 1982, p. 37).

PARH. V - REpr.RCUSSÕEo, ·6o::l


no mundo metnco, criando novos tabus é manifesta, o homem máquina do c1:1~.
para novos rendimentos, incentivando o sicismo, moldado pela repetição COIIII
18 Flaviode Carvalho,"Uma
tesecuriosa- Acidadedo raciocínio em novas esferas." nua nos feitos seculares do cristianisn« I,

homemnu". Reproduzido por não mais pode aturar a monotonia ckss.1


DeniseMattar(orq.). In:Flavio
de Carvalho: 100 Anos de um Flávio de Carvalho se mostra, então, rotina. Ele perecerá asfixiado na selcc.« I
Revolucionaria Romântico. Rio
de Janeiro,CCBB,1999, p. em sintonia com as ideias que Oswald de lógica, pelo mais eficiente, pelo homem
80. Publicado originalmente
no Diário da Noite, SãoPaulo, Andrade expôs no Manifesto Antropó- natural ";" Dado que "a fadiga o atac.i ".
19 juL 1930. fago, publicado em 1928. Encontramos esse homem exausto "precisa despir SI' .
19 Oswaldde Andrade,
Manifesto Antropófago. In: na passagem citada, por exemplo, uma apresentar-se nu, sem tabus escolástico.
A Utopia Antropofágica. São
Paulo,Globo,1990, p. 48. menção direta àquela que é a principal livre para o raciocínio e o pensamento". 'I

'0 OswalddeAndrade,A Crise


da Filosofia Messiiínica. In:
operação crítica que Oswald de Andrade Como não lembrar a propósito as 1);1:.
A Utopia Antropofágica, op. atribui à antropofagia: "a transformação sagens do Manifesto Antropófago tI' 11"
ot.. p. 101.
" Ibidem,p. 101. permanente do tabu em totem" ,19 ou seja, dizem: "O que atropelava a verdade ('1.1
21 Fláviode Carvalho,"Uma
TeseCuriosa",op cít.. p. 80. como ele próprio explica décadas depois a roupa, o impermeável entre o mund- I

1< Ibidem. na tese A Crise da Filosofia Messiânica, a interior e o mundo exterior. A reac.« I
H Ibidem.
I.; Oswaldd" Andrade, transformação do valor oposto - o tabu, contra o homem vestidov" e "Contra .1
Manifesto Antropófago,
op. cit., p. 51. Poderíamos isto é, o proibido, o "intocável"?" - em Memória fonte do costume. A expericn
recordartambémo texto de
Oswaldo Costapublicado no valor favorável - o to tem, isto é, o que cia pessoal renovada". 26 Está constitu í( 1I I

primeironumeroda Revista é adorado: "Nesse devorar que ameaça a o que Flávio de Carvalho passa a denouu
de Antropofagia: "Portugal
vestiuo selvagem.Cumpre cada minuto a existência humana, cabe ao nar o "homem nu", "homem do futuro",
despi-Ia.Paraqueeletome
umbanhodaquela'inocência homem totemizar o tabu";" homem "sem deus, sem propriedade, S('III
contente'queperdeue que
o movimentoantropófago f: no âmbito da antropofagia que Flá- patrimônio" Y Na figura do "homem 1111",
agoralherestitui.O homem vio de Carvalho encerra suas propostas Flávio projeta a imagem do homem l" 1i
(faloo homemeuropeu,cruz
credor) andavabuscandoo para a cidade do futuro. Seu texto parte vir, um homem liberto das amarras 1111 I
homemforado homem.E
de lanternanamão:filosofia. da constatação de que o homem de sua rais, religiosas, políticas e econômicas d;I"
Nósqueremoso homemsem época vive dentro de um quadro de sa- sociedades patriarcais. Sua briga, COIIII)
a dúvida,semsequera pre-
sunçãoda existênciada dúvi- turação: "perseguido pelo ciclo cristão, também a de Oswald, era contra as "e()11
da:nu,natural,antropófago"
("A'Descida'Antropófaga". embrutecido pela filosofia escolástica, cepções cristãs da família e da propricd.i
Revista de Antropofagia, n. 1,
maio1928, p 8) exausto com 1.500 anos de monotonia de privada."." Conta o próprio Flávio <\111
'6 Oswaldde Andrade,
Manifesto Antropófago, op.
recalcada", ele se apresenta "como uma Oswald, durante as discussões do u )11
cit.,p. 51. máquina usada, repetindo tragicamente gresso de arquitetos, propôs a dernolic.«.
27 Fláviode Carvalho,"Uma
TeseCuriosa",op.cit., os mesmos movimentos ensinados por da estátua do Cristo Redentor, que ;1 i 11
p.79-80.
za Ibidem,p. 79. Arisróteles't.ê' "Nos dias de hoje a fadiga da não se achava finalizada, prOVOC111<II )

604' ANTROPOFAGIA HOJE? OSWALD DE ANDRADE EM CENA'


li'
ill
i~
a retirada em massa da delegação da Uni- a assumir novas experiências e a alcançar,
III~
versidade Católica do Chile." por meio destas, um conhecimento reno- l
II~
Dias depois do fim do congresso no vado tanto de si próprio quanto do mun- i:
Rio, Flávio foi para Belo Horizonte, onde do à sua volta, um conhecimento "que não I~
I
1.1..

apresentou novamente sua tese a respeito entrave o seu desejo de penetrar no desco- 1
li'
da cidade do homem nu. Em entrevista a nhecido" .34 É para essa libertação, para
\':
O Estado de Minas, não deixou dúvidas este despir-se dos "tabus vencidos"," que If
sobre o papel da antropofagia nesta ba- Flávio de Carvalho convocou os partici- 1I
talha: "Belo Horizonte me dá a impressão pantes do IV Congresso Pan-Americano 1I
de uma cidade torturada pelo cretinismo de Arquitetos: I~
clássico arquitetõnico. Mas a antropofa- I~
gia vai destruir esse cretinismo clássico. Convido os representantes da Améri- ~
Devorará o ciclo cristão, porque esse é ca a retirarem as suas máscaras de civili-
ineficiente" .30 A antropofagia surge, em zados e pôr à mostra as suas tendências "II
li
certa medida, como uma forma de liber- antropofágicas, que foram reprimidas pela I
II
tação do peso da tradição cristã. "Con- conquista colonial, mas que hoje seriam o
/
tra todas as catequeses", já proclamava nosso orgulho de homens sinceros, de ca- I
Oswald de Andrade em seu manifesto." minhar sem deus para uma solução lógica 29 Flávio de Carvalho, "O ~
Antropófago Oswald de
No que diz respeito ao planejamento ur- do problema da vida da cidade, do proble- Andrade". Manchete, Rio de
bano, só "a cidade antropofágica" pode- ma da eficiência da vida." Janeiro, n. 808, 14 out. 1967,
p.99.
ria satisfazer o "homem nu" por ser capaz 30 Citado por J. Toledo, Flávio

de Carvalho, o Comedor
de suprimir "os tabus do matrimônio e da de Emoções, op. cit., p. 95.
Publicado originalmente em O
propriedade" Y Isso porque ela "perten- A expressão "vacina antropofágica" , Estado de Minas, 9 jul. 1930.
ce a toda coletividade": "ela é um imenso com que Raul Bopp descreveu a disposi- 31 Oswald de Andrade,

Manifesto Antropófago, op.


monolito funcionando homogeneamen- ção ética que está na origem da Experiên- cit., p. 47.
32 Flávio de Carvalho, "Uma

te, um gigantesco motor em movimento, cia n. 2, não era invenção sua: tratava-se Tese Curiosa", op. cit., p. 81.
"Ibidem.
transformando a energia das ideias em de uma citação. Oswald de Andrade, no 34 Ibidem, p. 80.

necessidades para o indivíduo, realizando Manifesto Antropófago, já decretava: 'Slbidem.


36 Ibidem, p. 82.

o desejo coletivo, produzindo felicidade, "Necessidade da vacina antropofágica". " Oswald de Andrade,
Manifesto Antropófago, op.
isto é, a compreensão da vida ou movi- Para quê? "Para o equilíbrio contra as cit., p. 48.
l8 Expressão de Benedito
rnento't." Para Flávio, apenas por meio religiões de meridiano. E as inquisições
Nunes, "A Antropofagia ao
dessa libertação, desse desrecalque dos exteriores.t"? Vacina, portanto, contra as Alcance de Todos" In: A
Utopia Antropofágica, op.
desejos sublimados, o homem estaria apto "religiões de salvação" .38 Afinal, afirmava cit., p. 20.

PARTE V- REPERCUSSÕES' 605


" Oswald de /\ndrade, Oswald, há que se combater a "peste operação antropofágica - operação esr.i
Manifesto Antropófago, ap
di, p. 51 dos chamados povos cultos e cristiani- que não passou despercebida a Flávio di'
40 Ibidem, p. 50.

" Raul Bopp conta que zados" .39 Uni sentimento visceralmente Carvalho.
Oswald de Andrade estivera
empenhado em 'formular as
amicristão, e antes dele ateu, associa-se Baseado nas proposiçoes de James (:.
bases teóricas de "Uma sub- aos pensamentos antropofágicos tanto de Frazer, segundo as quais a identificação
reliqiáo no Brasil" "procurava
ele fundamentos de unidade Oswald quanto de Flávio de Carvalho, os do homem com o seu torern "parece ser ;1
para uma seita religiosa,
tipicamente brasileira, isto é, quais, no entanto, não estão destituídos essência mesma do totemismo" ,43 Flávio,
constituída com o sl/b,-
tretutn de crenças dos trés
de alguma forma de religiosidade. "É pre- na parte do livro Experiência n. 2 dedi
grupos raciais que formam ciso partir de um profundo ateísmo para cada à análise das reações das pessoas ;1
os alicerces étnicos do Bei;si!.
Tinham parte marcantc 110 se chegar i1 ideia de Deus","? defendia dia- sua ação, assevera que a massa de fiéis 11;1
plano os atributos ocultos de
seres e coisas, dentro de C"t1 leticamente Oswald, não nos permitindo procissão busca, no fundo, se igualar ;t
clima de surrealismo rcliqioso.
Também, as relações subjpti-
esquecer que a antropofagia era descrita Cristo: "O mecanismo religioso funcion.i
vas com espíritos protetores. ainda, na abertura do mesmo manifesto, do mesmo modo que o regime patriótico,
como o Tatá de Carunqa,
e o santor.il afro-c.uólico. como a "expressão mascarada" de "todas produz um sentimento profundo de igual
venerado em terreiros de 11)(1-
curnba. A invocacao c.h for(a~
as religiôes";" dade, mas não entre os elementos da mas
totêmicas seria feitél em ritmo
A provocação de Flávio de Carvalho sa; somente entre () indivíduo e o Cristo":
de batuque, com interpola-
cõcs de termos caui)lislicos, não se dirigia contra uma multidão qual-
para preservar uma p{lrlr do
mistério" (Raul Bopl', VIria c quer, mas contra uma procissão católica. o comporta mcnto de urna procissão
Morte ria Anlropo{nrjia, op
c.it., p. ;lEi). (E o livro em que narra sua experiência foi sobre o domínio de um chefe invisível r:

4} Para um estudo porr neno-


dedicado ironicamente a "S. Santidade o parecido com o comportamento de outras
filado acerco do surqimento
da festa de Corpus Chrsti, Papa Pio Xl" e a "S. Eminência D. Duarte aglomerações chefiadas. O sentimento reli
ver Barbara R. Wal:crs,
Vincent Corrigan e Pelpr T Leopoldo ", arcebispo de São Paulo à épo- gioso influi apenas no aspecto da procissão
Ricketls, The Feast 01 Corpu5
Chtisti. University Park: The
ca.) E, dentre todas as procissões possíveis, e na magnitude das reações produzidas.
Pennsylvania State University escolheu justamente a de Corpus Christi. No fundo, uma procissão em movimento
Press, 2006
4< Iarnes G. Frazer, Les On9i- Nessa data, celebra-se o sacramento da é parecida com uma parada nacionalis
nes de Ia Famille et du Clan.
Trad. Comtesse J. de Pange eucaristia, rito que, segundo acreditam os ta. Ambas possuem um chefe invisível, ()
Paris, Annales du M usée
católicos, remem ora o momento em que Cristo e a pátria. A pátria numa parada
Guimet. 1922, p. 14. ,4s
principais fontes de Flávio de Jesus, na Santa Ceia, depois de identificar nacionalista funciona como o Cristo nuru.i
Carvalho eram as proposições
de Sigmund Freud expressas o pão e o vinho a, respectivamente, seu procissão. A pátria é aquele ideal que pC!"
em Psicologia das Massas e
Análise do Eu e Totem e Tabu, corpo e seu sangue, convida os apóstolos tence a todos e que é o igual de todos, cada
e as observações de James G
a comê-lo e bebê-lo.? Há, portanto, nesse indivíduo com o sentimento da pátria SI·
Frazer para o seu Iotemism
and Exogamy, resumidas pela sacramento e, por extensão, na festa que considera com um certo direito sobre ela,
condessa Jean de Pange no
volume em francês citado. lhe diz respeito, a simbolização de uma se considera mesmo o igual da pátria, ;t

606· ANTROPOFAGIA HOJE? OS\VALD DE ANDRI\DE LvI CF:\;\ .


~
pátria assume um caráter de emblema to- absorver as qualidades do Cristo. Ficar '1
11
44Flávio de Carvalho, Ili,:
1

têmico onde todos os elementos da nação sendo igual ao Cristo"."? Flávio, diluin- Experiência n. 2, op. dt. I

I'
p. 51-52, Nesta passagem, ~j
são o igual do emblema. O mesmo acon- do Freud," muitas vezes de maneira um Flávio de Carvalho está inter-
pretando livremente Freud 1,1 i
tece com o Cristo; ele é um chefe invisível tanto simplificada, recorda que a prática quando este afirma que a 1'11
representando uma ideia, dominando uma de assassinar e consumir o chefe morto, massa sente a necessidade de I~'
I "I
seguir a figura de um chefe,
multidão unida por uma certa ordem de la- para se nivelar a ele, é mais antiga que o uma vez que" a multidão é
um dócil rebanho incapaz
ços. (... ) O grande desejo dos componentes cristianismo e que, em algumas comuni- de viver sem amo": "Tem III,II
tal sede de obedecer que
da massa é de se igualar a Cristo, e incons- dades primitivas, depois de morto, o chefe se submete instintivamente ,',11
cientemente o Cristo é tido como seu igual acabava sendo venerado por sua horda: àquele que se erige como seu fi
chefe" ("Psicologia de Las ,li'
pelos elementos." "É provável que este processo de revolta Masas y Análisis dei 'Yo''', r(
In: Obras Completas. Tomo 1II1
e adoração seja tão antigo quanto o pró- 111. Madri, Biblioteca Nueva, 111

Com Frazer, Flávio aprendeu que uma prio homem; o velho chefe antes odiado e 1996, p. 2570), É sob essa W
lógica que Freud comenta que .' I
das raras formas de se identificar com- que depois de morto era adorado" .49 Uma a Igreja e o Exército podem "
I~,;I
ser compreendidos como ~r
pletamente com o to tem é matando-o vez que a finalidade dos crentes era, con- "massas artificiais", isto é, I"
"massas sobre as quais atua 111
e comendo-o - em geral, nas sociedades forme Flávio, se igualar a Deus, a vene- uma coerção exterior que tem ~'
totêmicas, ocorre o contrário, com sérias ração a Ele poderia ser entendida como, por finalidade preservá-Ias da r~
dissolução" (Idem, p. 2578).
restrições a essas práticas: "Porque o sel- no fim das contas, uma veneração a si Tanto na Igreja quanto no ~,I'
Exército, haverá a ilusão de II
vagem pensa, não sem qualquer razão, mesmo. Assim, o cortejo não passaria de um chefe: "Na Igreja - e 1 li(

haverá de ser muito vantajoso ~I


que sua substância corporal faz parte da uma exaltação narcisista, que foi violenta-
natureza da comida que ele come, e que mente perturbada pela ação de Flávio de
para nós tomarmos como
exemplo a Igreja Católica - e
no Exército, reina, quaisquer
I11,
efetivamente ele se transforma no animal Carvalho. que sejam suas diferenças em I
outros aspectos, uma mesma II'~',
do qual comeu a carne, ou na planta que Sua presença, caminhando em sentido ilusão: a ilusão da presença ~

mastigou ou na raiz ou na fruta que engo- contrário e permanecendo com a cabeça visível ou invisível de um chefe 1
(Cristo, na Igreja Católica, e I1I
liu" .45 Frazer nota ainda que, entre os in- coberta, em atitude desrespeitosa e desa- o general, no Exército), que 111
ama com igual amor a todos 1I
dígenas a ustralianos, era costume ingerir fiadora, desestabilizava a relação cornu- os membros da coletividade" 'i~
(Idem, p. 2578), ~\
o cadáver dos parentes mortos "em signo mente estabelecida entre a massa e seu 45 James G. Frazer, Les Origi- li,"
de respeito e de afeição";" Para Flávio objeto de adoração, o Cristo, desviando, nes de Ia Fami/le et du C/an, r
op. cit., p. 14, ,i"
de Carvalho, decorre dessa tentativa de por alguns momentos, a atenção des- 46 Ibidem, p. 15, (I,'
" Flávio de Carvalho, Experiên- f.\
se igualar a Cristo o hábito de devorá-lo te. Assim, pelo menos, entendia Flávio: cia n. 2, op. cit., p. 52. 1\
48 Ver Sigmund Freud, "Totem j',
simbolicamente na comunhão da missa: "Evidentemente que um cortejo em mo- y Tabu" In: Obras Completas, 11
Tomo 11. Madri, Biblioteca 111
"Quando o católico engole o corpo de vimento, dominado pelo processo de in-
Nueva, 1996, p. 1838 e ss. ~I,.I
Cristo e às vezes bebe o seu sangue em tegração totêrnica com um chefe invisível 49 Flávio de Carvalho,
Experiéncia n. 2, op. cit.,
forma de vinho, ele pretende por esse ato (Cristo), recebe qualquer interferência p. 52. ~
I!,

1
II,I
PARTE V - REPERCUSSÕES' 607

~
/1
como um obstáculo ao cumprimento do do inimigo sacro. Para transforrná-lo em
gozo na rcísico e (. .. ) o obstáculo é tra- totem" .55
tado como inimigo indesejável por uma Flávio de Carvalho poderia ter ido
parte da procissão, e como amigo aspira- mais longe em sua reflexão e ter percebi-
do por outra parte" .50 As "filhas de Ma- do que executara aqui a operação máxi-
ria", com as quais flertava, e os senhores ma da antropofagia oswaldiana: a con-
e senhoras mais velhos não foram os que versão de todos em antropófagos. "Única
responderam de maneira mais violenta à lei do mundo", a antropofagia é, segundo
sua provocação," porque não viam pre- Oswald, o que nos une "socialmente",
judicada a sua relação com Deus. Os jo- "econom ica mente" , "filosoficamente" :\6
vens, ao contrário, estavam entre os que Temos, na experiência n, 2, um convite
reagiram ferozmente à atitude de Flávio. semelhante àquele do final da conferên-
Para eles, conforme o próprio artista, cia no IV Congresso Pau-Americano de
sua presença era humilhante, porque os Arquitetos no ano anterior: que os fiéis
fazia se sentiren.1 rebaixados diante de depusessem "as suas máscaras de civiliza-
S2
outra figura viril: "só o meu assassina- dos" e deixassem "à mostra as suas ten-
to poderia saciar o desejo de totemiza- dências antropofágicas". O objetivo de
ção dos espectadores, do mesmo modo sua experiência era claro desde o início:
que os jovens da horda primitiva repri- "provocar a revolta para ver alguma coi-
mida nos seus instintos sexuais matavam sa de inconsciente" .\7 Flávio de Carvalho
o pai se nivelando a ele" .53 Se ele de fato queria ver se formar, em meio à procissão,
atua va como um rival de Cr isto" (FIá vio uma massa cujo comportamento se torna-
não teve qualquer modéstia na descrição ria a cada instante mais irracional. Sabia,
de sua atuação no cortejo), era porque, a partir de Gustave Le Bon (uma das fon-
por sua atitude desafiadora, colocava em tes de Psicologia das Massas e Análise do
se Ibidem, p. 60. risco o equilíbrio daquela pequena co- Eu, de que Flávio era leitor atento), que o
51 tbrdern, p. 60-63.
51 lbidem, p. 54 e 79-80.
munidade que se formava na procissão indivíduo, quando integrado à multidão,
" Flávio de Carvalho, Experiên· em torno da imagem do Deus. O papel acaba reagindo como um "selvagem":
cie n. 2, op. cit., p. 80.
54 lbidern, p. 64. que desempenhou, portanto, foi aquele
"Oswald de Andrade,
Manifesto Antropófago, op. do "inimigo sacro", para nos valermos COl110 o selvagem, não admite obstácu-
cit., p. 51
so lbidern, p. 47.
de outra expressão extraída do Mani- lo entre seu desejo e a realização desse de-
" Flávio de Carvalho. Expe- festo Antropófago. Oswald de Andrade sejo, ainda mais que o número lhe propor-
riênôa n. 2, op. cit.. p. 16
(grifo meu). preconizava: "Antropofagia. Absorção ciona uma sensação de poder irresistivel.

6og· /\NTI10I'OFAGIA l Ioj r.? USWAl.D DF ANDRilDF. EM Cl'.Nl\ .


(...) o homem isolado reconhece que sozi- transfigurada. Conforme verificamos com I
I
nho não pode incendiar um palácio, pilhar o tempo, o sacrifício terminal é eliminado,
uma loja; portanto, essa tentação nâo se em seguida são os ritos do exorcismo que
lhe apresenta ao espírito. Ao fazer parte de acompanham o sacrifício ou que o subs-
uma multidão, toma consciência do poder
que () número lhe confere e, diante da pri-
meira sugestão de assassinato e pilhagem,
tituem, desaparecendo com eles o último
traço da violência fundadora" .61 Másca-
ras depostas, e a multidão estava pronta
I,
cederá imediatamente." a sacrificar Flávio de Carvalho, "inimigo
sacro", para que a procissão pudesse vol-
Segundo Freud, a pessoa integrada tar a seu curso normal. j
à massa "chega a ser incapaz de manter
uma atitude crítica e se deixa invadir pela
mesma emoção": "ao compartilhar a ex- Oswald de Andrade homenageia Flá-
citação daqueles cuja influência atuou so- vio de Carvalho na peça O Homem e o
bre ele, aumenta, por sua vez, a excitação Cavalo. Na terceira cena do oitavo qua-
dos demais, e desse modo se intensifica dro - são nove ao todo -, as vozes da mul-
por indução recíproca a carga afetiva dos tidão integram, em sua saudação à che-
indivíduos integrados na massa". 59 ão gada de Cristo, referências à experiência
esqueçamos que uma das intenções de vivida por Flávio de Carvalho na procis-
Flávio era "palpar psiquicamente a emo- são de Corpus Christi:
ção tempestuosa da alma coletiva". 60 E
sua provocação surtiu o efeito esperado: VOZES - Viva o Chanceler! Viva! Péu!
ao bradar pelo linchamento e pelo assas- Péu! Tira o chapéu! Tira, Flávio! Lincha!
sinato de Flávio, os crentes reagiram sem Mata!
qualquer freio, trazendo à tona suas "ten- A voz DE UM ENGENHEIRO- Evidente-
58 Gustave Le Bon, Psicologia
dências antropofágicas". Poderíamos tal- mente, coagido pela força bruta, vencido das Multidões. Trad. Mariana
Sérvulo da Cunha. São Paulo,
vez dizer que a multidão de fiéis fez aflo- pelo número, vejo-me forçado a continuar Martins Fontes, 2008, p. 41.
rar uma violência semelhante àquela que o meu caminho sem chapéu. Mas esse puto 59 Sigmund Freud, "Psicología
de Ias Masas y Análisis dei
está na fundação do mito do cristianismo me paga! "(o:", op. cit., p. 2573.
co Hávio de Carvalho, Experiên-
e que festas como a de Corpus Christi Som de castanholas. Tumulto. cia ti. 2, op rit., p. 16.
(·(1 René Girard, A Violência e
costumam apaziguar. Como bem observa VOZES - Viva Ia grada! Otro tom! Mi
o Sagrado. rrad. Martha Con-
Renê Girard: "A festa é a feliz comemora- cago en Dios! Viva o senhor do sábado! ceição Gambini. São Paulo.
Rio de Janeiro, Pai e Terra,
ção de uma crise sacrificial parcialmente Tira o chapéu, Flávio! Péu! Péu! Fora! Não 1998, p. 380.

j',\RTE V . REI'EHCussÜrs ·60')


tira! Dcus da burguesia! Fora! P<lC o cha- demoníaco e técnico atrás da máscara
péu! Desacata esse veado! Fora! Fora l'" 1180 sofre nenhuma coação do mundo
ao redor, e ele pode assim rir e chorar e
Essa peça de Oswald deveria ser en- cantar e fazer caretas ao Inundo" .(A As
cenada na ina.uguraçâo do Teatro da Ex- máscaras hmcionarnçportanro, como va-
periência, criado por Flávio de Carvalho cinas: imunizam contra as forças coativas
dois anos depois de sua atuação no corte- do mundo. É significativo que, num re-
jo de Corpus Christi. Mas o texto n80 fi- trato literário de Oswald de Andrade por
cou pronto a tempo. Em substituição, Flá- Flávio de Carvalho, aquele apareça com
vio escreveu O Bailado do Deus Morto. um espécie de máscara entranhada no
Como o título indica, nova pr ovocaçâo à rosto, vacina suprema: "apesar dos pro-
turba cristã. Tratava, segundo o próprio testos do dentista, (Oswald) se fez con-
autor, "da destruição do milenar patri- feccionar dentes especialmente grandes e
mônio emotivo que é aideia de Deus", largos na frente do sorriso para, confor-
dando a Deus "uma origem animal que me me dizia, melhor mostrar o seu desejo
tem uma base etnográfica, real e sólida, e de devorar o mundo". 6S
dando para o seu destino o destino que se
dá aos bois no matadouro, aproveitando
todas as partes do animal abatido: pe-
los para fazer pincéis, ossos para botões,
pentes, etc.". 61
,,; Oswald de Andradc, O Ho- Na peça de FIá vio, curiosamcn te, as
mem e o Cavalo. S80 Paulo,
Globo, Secretarra de Estado
máscaras - não mais metafóricas, mas
da Cultura, 1990, p. 95-96 reais - não foram tiradas, mas, pelo con-
'" Flávio de Carvalho, "Hávio
de Carvalho por Ele Mesmo" trário, vestidas. Os atores, em sua maio-
Folha de S.Paulo, 3 ago.
1975, p. 64 ria negros, usavam máscaras de alumínio
"I Flávio de Carvalho, "Atrás
confeccionadas pelo próprio Flávio. No
das Máscaras" Reproduçao
e o.qanizaçao de Denise teatro, as máscaras funcionam, segundo
Maltar. In: Flávio de Carvalho.
700 Anos de um Revolucio- Flávio, como uma espécie de "fortaleza":
náno Romántim, ap cu. p
68. Publicado oriqinalrnonto "Só a trás de urna máscara é que a en ergia
ern Vanitas, SelO Paulo, n. 53,
integral do homem tem possibilidade de
nov. 1935.
f,C H(lVio de Carvalho, desabrochar: protegido, como é, por uma
"Oswald de Andrade Antro-
pófago", op. cit.. p 98. expressão standard, a ação do homem

. ANTROI'OEAG1A HOJE) OSWALIl DE ANDR;\IlE EM CENA'

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