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Organizadores

João Berchmans de Carvalho Sobrinho


Cássio Henrique Ribeiro Martins

PESQUISA E MÚSICA:
Práticas, Formação Docente e Estudos
Musicológicos

São Luis

2019
Organizadores
João Berchmans de Carvalho Sobrinho
Cássio Henrique Ribeiro Martins

PESQUISA E MÚSICA:
Práticas, Formação Docente e Estudos
Musicológicos

São Luis

2019
Copyright © 2019 by EDUFMA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

Profa. Dra. Nair Portela Silva Coutinho


Reitora
Prof. Dr. Fernando Carvalho Silva
Vice-Reitor

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


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Arte da Capa / Diagramação / Revisão


Prof. Esp. Delson Ferreira Bonfim

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Carvalho Sobrinho, João Berchmans de.


Pesquisa e música: práticas, formação docente e estudos musicológicos /
João Berchmans de Carvalho Sobrinho, Cássio Henrique Ribeiro Martins. -
São Luís: EDUFMA, 2019.
267 p.
ISBN 978-85-7862-915-1
1. Música - Pesquisa. 2. Música - Estudo. 3. Música - Teoria. I. Martins,
Cássio Henrique Ribeiro. II. Título.
CDD 780.72
CDU 78:001.891.3

Elaborada pela bibliotecária Araceli Xavier da Silva CRB-13 / 334


SUMÁRIO

PREFÁCIO
PREFÁCIO. .......................................................................... 09

RELAÇÕES ENTRE LITERA TURA E MÚSIC


LITERATURA MÚSICA A : Análise
Semiótica da Canção Cabôca de Caxangá, de Catullo
da P aixão Cearense
Paixão
Francisco Adelino de Sousa Frazão
Alfredo Werney Lima Torres ................................................ 11

POR UMA MUSICOLOGIA GEO -HISTÓRIC


-HISTÓRICA:
GEO-HISTÓRIC A: Repensando
os Problemas de P eriodização nas Sínteses Musicológicas
Periodização
R egionais
Alberto Dantas Filho ............................................................ 33

MODERNISMO E CANÇÃO BRASILEIRA: Uma Leitura do


Disco As Cidades (1998) de Chico Buarque
Alfredo Werney Lima Torres ................................................ 45

ELOMAR
ELOMAR:: O T rovador Contemporâneo
Trovador
Caio César Viana de Almeida
Feliciano José Bezerra Filho ................................................ 69

(RE)
(RE)PP ensando o Ensino de Instrumentos Musicais a
partir das Metodologias Ativas
Cássio Henrique Ribeiro Martins
Maria Isabel de Almeida ...................................................... 91

AÇÕES DE MÃO ESQUERD


APRESENTAÇÕES
APRESENT ESQUERDA: A: Estudo
Comparativo entre as Classificações de Abel Carlevaro
e Eduardo F ernandez
Fernandez
Cauã Borges Canilha
Edelton Gloeden ................................................................ 111

RELATO DE EXPERIÊNCIA Sobre a Coordenação do Curso


RELATO
de Música de uma Instituição Pública - 2013 A 2015
Daniel Lemos Cerqueira..................................................... 131
NOS SONS DE OUTRORA: Vestígios da Cultura Material
Escolar na Obra P edagógica V
Pedagógica illalobiana
Villalobiana
Ednardo Monteiro Gonzaga Monti ................................... 155

A HISTÓRIA EM RET ALHOS: Investigação sobre a Música


RETALHOS:
em T eresina entre 1852 e 1920
Teresina
Francisco Adriano dos Santos
João Berchmans de Carvalho Sobrinho ............................ 173

COMPOSIÇÃO MUSICAL COMO PENSAMENTO LITERAL:


Reflexões sobre o Conceito de Escritura em Música
Rafael Moreira Fortes ........................................................ 209

A EXPERIÊNCIA LAB ORAR ORARTE TE E A EXPERIÊNCIA


BARRICA: A Construção da Identidade Musical
Maranhense a partir de suas Culturas Populares
Rogério Leitão .................................................................... 233

AUTORES .......................................................................... 267


PREFÁCIO

A presente publicação é um conjunto de estudos que poderá


permitir avanços significativos na pesquisa em música em nossa região.
De um modo geral, todos os capítulos têm um significado positivo no
esforço em realizar investigações em um contexto tão carente e
disperso. Como disse o eminente professor da UFBA Manuel Veiga,
"somos musicalmente coloniais por herança, também o somos,
infelizmente, por vocação ou preguiça. Tendemos a prestigiar o que
vem de fora, não importa quão mau possa ser, e ignorar o valor do que
aqui produzimos". E nesse caminho, particularizamos com esses
estudos, o empenho em compreender e traduzir uma realidade à qual
estamos vinculados e atentos às expressões, representações,
performances e discursos.
Portanto, são essas tentativas, por vezes ousadas, em que
tentamos imprimir uma marca na contribuição para os estudos
históricos, antropológicos, educacionais, semióticos e seu enlace com
a música, tão decantada, mas pouco estudada, compreendendo como
as práticas musicais são, além de uma atividade estética, também som
organizado por categorias mentais e culturais, fruto de processos sociais
passíveis de interpretação.
Por isso a reunião de textos em diferentes perspectivas em uma
heterogeneidade de vozes e olhares sobre a cultura musical, muitos
deles oriundos de trabalhos acadêmicos de conclusão de graduação e
mestrado.
Neste panorama serão abordados estudos voltados para (a) A
Semiótica da Canção com a análise da obra de Catullo da Paixão
Cearense (1863-1946), um importante personagem que marcou a cena
artística do Rio de Janeiro, capital do Brasil, através de sua atuação
como poeta, teatrólogo, cantor, compositor e músico. A trajetória do
cancionista do sertão contribuiu significativamente para a
emancipação da canção popular brasileira; (b) Ainda na mesma linha
da Semiótica da Canção, um estudo sobre o compositor baiano Elomar
Figueira Mello, um vate que articula a cultura nordestina popular com
a cultura erudita europeia, características evidentes nos procedimentos
de composição adotados por ele tanto no campo musical, quanto no
campo da poesia, tedo como com base a semiótica da canção a partir
da aplicação de duas isotopias desenvolvidas por Luiz Tatit; (c) No
estudo sobre Música e Literatura, o autor pretende realizar um estudo
analítico das canções de Chico Buarque de Holanda a partir das relações
que elas têm com a moderna literatura brasileira; (d) O estudo de
Alberto Dantas é uma proposta de resgatar no campo histórico, as
ferramentas epistemológicas que despertaram a historiografia
contemporânea para essa necessidade e buscar, então, meios para trazer
a discussão à musicologia, conferindo-a um lugar de novidades e
instrumentalizando-a com os recursos reconhecidos pela Geografia,
pela Nova História. (e) Cássio Martins discute neste livro, metodologias
ativas para o ensino de instrumentos musicais, propondo discutir as
limitações da estrutura de ensino transmissivo no atual contexto de
transformações sociais e tecnológicas e no sentido da viabilização de
um ensino-aprendizagem de instrumentos musicais friccionados
centrado na interação professor-aluno; (f) Outro estudo volta-se para
a técnica de interpretação violonística em que o autor confrontar as
propostas de classificação das apresentações de mão esquerda de Abel
Carlevaro (1916-2001) e Eduardo Fernandez (1952); (g) Daniel Lemos
apresenta um relato de experiência sobre as atividades exercidas na
coordenação de curso de uma instituição superior; (h) Ednardo Monti
faz um resgate da cultura material escolar na obra de Villa-Lobos; (i)
O texto sobre história e música em Teresina incide sobre informações
relevantes relacionadas à história musical da cidade e dos personagens
relacionados ao cenário musical presente neste recorte temporal entre
os anos de 1852 a 1924; (j) O estudo de Rafael Fortes volta-se para a
Composição Musical e algumas reflexões sobre o conceito de escritura
em música; (k) Rogério Leitão discorre sobre a musicalidade e
identidade na Experiência Laborarte e o Boi Barrica de São Luís do
Maranhão, percorrendo os parâmetros etnomusicológicos que
transitam entre as abordagens antropológicas, sociológicas e
musicológicas.
Finalmente, o que pretendemos é trazer à luz problemáticas da
pesquisa musical buscando apresentar contribuições múltiplas no
pensar sobre o fazer musical, destacando esses aportes ricos do ponto
de vista teórico e inovadores nas temáticas e metodologias.

Bom proveito!

Cássio Henrique Ribeiro Martins


João Berchmans de Carvalho Sobrinho
Organizadores
RELAÇÕES ENTRE LITERA TURA E MÚSIC
LITERATURA A:
MÚSICA:
Análise Semiótica da Canção Cabôca de
Caxangá, de Catullo da Paixão Cearense
Paixão
Francisco Adelino de Sousa Frazão1
Alfredo Werney Lima Torres2

TRAJETÓRIA DE CATULLO DA PAIXÃO

Catullo da Paixão Cearense (1863-1946) foi um importante


personagem que marcou a cena artística do Rio de Janeiro, através de
sua atuação como poeta, teatrólogo, cantor, compositor e músico. A
trajetória do cancionista do sertão contribuiu significativamente para
a emancipação da canção popular brasileira. Tal fato é evidenciado
principalmente nas obras em que o artista busca expressar a dicção, o
linguajar e os costumes do sertanejo (FRAZÃO, 2014).
Na visão de Bonifácio Leite (2011, p. 36), Catullo foi o
personagem da história brasileira que marcou o ponto de partida "nas
transformações da canção popular urbana rumo à formação de um
sistema", em que os elementos que a constituem, palavra e melodia,
comporiam um mesmo objeto estético, um único texto, sem o
estabelecimento de uma hierarquia entre estes componentes. Leite ainda
reitera que, para Wisnik, Catullo representa "um momento de
conjunção entre a música e literatura" na história da canção popular
brasileira.
Catullo, através de suas obras, identificou-se com o homem
simples (com o sertanejo em especial) e com suas variantes estéticas.
O poeta viveu numa época em que se buscava algo peculiar no campo

1
Mestre em Letras (UESPI); especialista em Docência do Ensino Superior (UESPI); graduado em
Licenciatura Plena em Educação Artística - Música (UFPI); Professor do Ensino Básico, Técnico
e Tecnológico do Instituto Federal do Piauí (IFPI).
2
Doutorando em Música (UFMG); Mestre em Letras (UESPI); graduado em Licenciatura Plena
em Educação Artística - Música (UFPI); Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do
Instituto Federal do Piauí (IFPI).
da arte brasileira, que a diferenciasse da cultura importada, e neste
contexto político, social e cultural, buscou o reconhecimento através
de sua forma de escrever e de sua musicalidade, tendo o violão como
instrumento acompanhador de suas modinhas.
Jairo Severiano (2013, p. 66-67) afirma que Catullo foi "o letrista
brasileiro de maior popularidade no início do século XX". Poeta
maranhense que introduziu a temática sertaneja na literatura e na
canção brasileira, Catullo marcou sua trajetória artística ao compor
letra para muitas melodias já existentes, "que passavam a ser editadas
como 'as modinhas de Catullo'". Ele foi tão importante para a sua época
que chegou a servir de inspiração para a construção do personagem
seresteiro Ricardo Coração dos Outros, uma das figuras mais
importantes da obra Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto
(TABORDA, 2007).
O vate sertanejo também foi o primeiro músico popular a se
apresentar por meio do canto e do recital de poesias, acompanhando-
se ao violão, no Instituto Nacional de Música. Fato que, segundo alguns
pesquisadores, serviria para a aceitação deste instrumento no seio das
famílias tradicionais brasileiras, pois o violão era considerado um
instrumento impudico pela sociedade, por estar associado à boemia e
às rodas de chorões, um sinônimo mesmo de malandragem
(TINHORÃO, 1974, p. 29).
As canções de Catullo possuem melodias e harmonias compostas
por uma relativa simplicidade, que caracterizam a maior parte de sua
obra, se comparada à complexidade formal da música romântica
produzida por compositores europeus como Wagner, Liszt e Verdi. No
entanto, o modus operandi de sua escrita fez com que fosse questionada
a dicotomia entre o erudito e o popular, já que havia no Brasil uma
separação meticulosa que classificava a música executada na época
como uma forma de dar conta de separar - ou hierarquizar - tradições
musicais distintas, uma brasileira e outra europeia (PEREIRA, 2006,
p. 415).

CABÔCA DE CAXANGÁ

Na tentativa de representar o jeito de falar do caboclo do campo,


Catullo utiliza uma linguagem não convencional, com "desvios"
propositais da norma culta, visando engendrar uma oralidade ficcional.
Neste sentido, o próprio cancionista já advertia o interlocutor para
que não houvesse uma demasiada preocupação com a correção

12 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


gramatical, visto que a sua escrita era apenas uma forma de grafar,
uma tentativa de "presentificar" a voz do sertanejo. O importante então
seria captar a essência poética, e não apenas a superficialidade da
camada aparente do texto.
Por meio de uma dicção campestre, a "toada sertaneja" Cabôca
de Caxangá, ao receber a letra de Catullo, teve um grande destaque no
carnaval de 1914, no Rio de Janeiro, para desgosto do poeta, que achava
depreciativa a utilização da canção pelos foliões (VASCONCELOS, 1977,
p. 23-24). A melodia desta obra baseia-se em um tema musical do
folclore pernambucano intitulado Engenho do Humaitá, que foi
ensinada ao cancionista por João Pernambuco, seu companheiro "de
violão e pobreza" (COSTA, 2009, p. 10).
Cabôca de Caxangá também foi inspiração da montagem de um
grupo musical gerenciado por João Pernambuco. Em 1913, o violonista
gostou tanto da música que formou um bloco carnavalesco
denominado "Grupo Caxangá" (COSTA, 2009, p. 121), galgando sucesso
nos carnavais dos anos de 1914 a 1919 (SEVERIANO, 2013, p. 244).
Este conjunto musical seria o embrião dos "Oito Batutas", com o qual
João Pernambuco ainda permaneceu durante dois anos. Os integrantes
do "Grupo Caxangá" tinham apelidos especiais: Donga (Esnesto dos
Santos), como "Zé Vicente"; Henrique Manoel de Sousa, como "Mané
Francisco"; Nola (Manuel da Costa), como "Zé Portêra"; Caninha (José
Luis Morais), como "Mané Riachão"; Pixinguinha (Alfredo da Rocha
Vianna Filho), como "Chico Dunga"; Osmundo Pinto, como "Inácio da
Catingueira"; Jacó Palmieri, como "Zeca Lima"; João Pernambuco, como
"Guajurema". Eles passaram a se apresentar com trajes típicos dos
vaqueiros do nordeste, obtendo grande sucesso na cena artística da
capital brasileira (COSTA, 2009, p. 121). A formação deste grupo serviu
para colocar em evidência a arte nordestina, tendo em vista que a
temática chegou até mesmo a invadir o teatro de revistas. Além disso,
Caxangá era uma homenagem ao sertão brasileiro, por ser também o
nome de uma localidade do interior do Nordeste (LEAL & BARBOSA,
1982, p. 26).
Costa (2009, p. 121-123) comenta que, na mesma época da
formação do Grupo Caxangá, "Afonso Arinos realizava conferências
sobre temas folclóricos", encerrando o seu ciclo de palestras no Teatro
Municipal de São Paulo, em dezembro de 1915. Nesta ocasião, Arinos
convidou João Pernambuco, que compareceu juntamente com Otávio
Lessa, Luis Pinto da Silva e José Alves Lima, para executar "cocos,
emboladas, toadas e outros ritmos nordestinos, encerrando,
naturalmente com Cabôca de Caxangá".

Pesquisa e Música 13
Leal & Barbosa (1982, p. 26) acrescentam que os membros do
Grupo Caxangá se apresentavam com uma vestimenta típica sertaneja:
sandálias de couro, lenços no pescoço e chapéus de palha, no qual
eram escritos os nomes daqueles que foram os seus mestres na arte de
tocar e/ou cantar. Como exemplo, no chapéu de João Pernambuco
estava escrito o nome de Guajurema, fazendo menção ao violeiro Cirino
da Guajurema, e no de Caninha o de Mané do Riachão, que era um
cantador de feiras.
Eduardo Sebastião das Neves (1874-1919) - cantor, compositor,
letrista e palhaço de circo - foi o primeiro intérprete a gravar Cabôca
de Caxangá, no ano de 1913, embora o selo do disco identificasse os
intérpretes como Bahiano, Júlia Martins e Grupo da Casa Edison.
Segundo Vasconcelos (1977, p. 282), Dudu das Neves, como era
conhecido, foi uma das figuras mais importantes na cena artística do
Rio de Janeiro no início do século XX. Em sua trajetória, lançou
algumas coletâneas de canções: O cantor de modinhas (1900), Trovador
da malandragem (1902) e Mistérios do violão (1905); todas pela Livraria
Quaresma.
Reitera-se que na época da trajetória/atuação de Dudu das Neves,
muitas vezes, os cantores gravavam canções de outros artistas sem a
indicação do autor, além disso, geralmente registravam-nas com letras
diferentes das "originais". Isso também aconteceu com suas
composições, e, dirigindo-se à Casa Edison para reclamar do abuso,
acabou sendo contratado por Fred Figner como artista da casa
(SEVERIANO, 2013, p. 61).
Jairo Severiano (2013, p. 61) assegura que Dudu das Neves era
o artista negro brasileiro de maior sucesso no início do século XX. Ele
estava tão envolvido com a cena musical do Rio, que chegou a ser
expulso do emprego como soldado do Corpo de Bombeiros por participar
de rodas boêmias fardado.

ANÁLISE DA CANÇÃO

Para desenvolver a análise de Cabôca de Caxangá, foi necessário


escolher uma das versões. Sendo assim, adotou-se como objeto de estudo
a letra contida na obra "Modinhas", de Catullo (CEARENSE, 1943, p.
68-73), e também a primeira gravação da obra cancional, realizada
por Eduardo das Neves (CEARENSE & PERNAMBUCO, 1913), em um
esforço por compreender os efeitos de sentidos gerados por ela. Portanto,
os elementos poéticos, musicais e performáticos da canção foram

14 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


observados de forma mais imanente. É importante ressaltar que foi
preferível transcrever a letra da canção do livro organizado por
Guimarães Martins, por conta de que o próprio Catullo foi o revisor do
texto poético.
A letra de Cabôca de Caxangá, na versão revisada por Catullo
contida na obra "Modinhas", apresenta algumas diferenças em relação
à versão gravada por Eduardo das Neves. Dentre estas diferenças, nota-
se que a versão gravada: 1- começa por um dos estribilhos: "Cabocla
de Caxangá, Minha cabocla, vem cá"; 2- há a inserção de um estribilho
que não tem na versão original: "Cabocla de Caxangá, Oh! flor morena
vem cá"; 3- foram gravadas sete estrofes e oito estribilhos; 4- utiliza
uma dicção mais convencional, ou mais urbana, se comparada à versão
original; 5- atribui nomes diferentes para os rivais do cantor: "Mané
Francisco, Joaquim Pedro, Zé Augusto, [...] Juca Mola"; ao invés de:
"Laurindo Punga, Chico Dunga, Zé Vicente, [...] Zeca Lima"; 6- há
alterações no que diz respeito à ordem das partes da música; além
disso, existem trocas de termos na versão de Dudu das Neves, porém,
com o mesmo sentido das frases da primeira letra.
Alguns cantores mudavam a letra na gravação da canção por
conta de que, na época, não havia leis que regulamentassem até então
o registro cancional no Brasil. Portanto, não se notava uma
preocupação de representar a ideia fiel do compositor. Tal que, no final
da gravação realizada por Dudu das Neves, existe um diálogo não
previsto na letra de Catullo:

- Êita cabra! Olha eu sou um caboco escovado mesmo! Quando


eu pego na viola lá no arraial não tem caboco que me arrepie!
Quando eu me espaio ninguém me ajunta!
- Você em Pernambuco parece que é até parente do tal Antônio
Silvino...
- Quá! Eu sou um sobrinho muito longe por afinidade de pai!

Esta simulação de conversa faz menção a Antônio Silvino,


Codinome de Manoel Batista de Morais (1875-1944), cangaceiro nascido
no sertão pernambucano, antecessor de Lampião que atuou nos
Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, figura
que se tornou símbolo do sertanejo valente e destemido, "que impunha
respeito pela destreza na luta e o uso que fazia das armas" (OLIVEIRA,
2011, p. 61). Neste contexto, a parte dialogada presente no término da
canção expressa certo tom de valorização ao homem do Nordeste
brasileiro.

Pesquisa e Música 15
Apesar das diferenças da letra de Catullo em relação à letra
gravada por Dudu das Neves, acredita-se que os sentidos gerados não
apresentam diferenças significativas, de uma em relação à outra, a
ponto de excluir a possibilidade de relacioná-las.
Segue a letra de Cabôca de Caxangá registrada por Catullo:

16 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


A letra extensa (dez estrofes e dez estribilhos) da canção Cabôca
de Caxangá configura-se como um conjunto de argumentos de um
sujeito que tenta conquistar a sua amada insinuando ser o homem
mais apropriado para ela. Nesse caso, pode-se considerar que obter "o
amor da cabôca de Caxangá" é o objeto de desejo do sujeito lírico. Ao
se observar o plano do conteúdo dessa canção, fica evidente que o
sertanejo é um homem valente e indissociável da paisagem visual do
sertão. Ideia que dialoga com o universo da literatura brasileira,
principalmente na obra de escritores como Euclides da Cunha (Os
sertões), João Cabral de Melo Neto (A educação pela pedra; Morte e
Vida Severina) e José de Alencar (O Sertanejo).
Há na canção Cabôca de Caxangá um processo claro de
figurativização. Isto é, percebe-se uma tentativa de simular um diálogo
entre o eu lírico e a "cabôca de Caxangá". Desde as primeiras estrofes,
são perceptíveis as marcas da oralidade. Assim, ao longo da letra da
canção, o eu lírico, que assume a função de destinador manipulador,
tenta convencer a "cabôca" através de mecanismos persuasivos, tais
como:
1- Intimidação - ao expor que é o homem mais valente do sertão:
"Sintí, cabôca, estremecê, dentro du couro, arriliado, atrapaiado, u
coração du meu quicé"; "Im Pajaú, im Caxangá, im Cariri, im Jaboatão,
eu tenho a fama de cantô i valentão! Eu pego u toro mais bravio,
quando im cio"; "Cabra danado, assubo pula gamelêra, cumo a onça
mais matrêra, u mais ligêro punagé!".
Nos versos citados, o sujeito enfatiza a sua valentia. Se sente
"arriliado" (arreliado - zangado, irritado) por ver a amada conversando
com "Mané", chegando a pensar em usar o seu "quicé" (pequena faca
usada no Nordeste para cortar fumo, e também como defesa pessoal).
Além disso, o eu lírico cita várias localidades onde ele tem fama de
cantor e homem destemido, comparando-se aos cangaceiros que
atuaram no Nordeste brasileiro da segunda metade do século XIX até
as primeiras décadas do século XX (OLIVEIRA, 2011, p. 6).
O destinador segue em sua narrativa poética comparando-se a
um vaqueiro "eu pego u toro mais bravio, quando im cio" e com a
agilidade de um felino selvagem "assubo pula gamelêra, cumo a onça
mais matrêra, u mais ligêro punagé". Tudo isso com a intenção de
demonstrar que é um "cabra macho", acumulando simultaneamente
dois sentidos: 1- que é capaz de trabalhar para prover as necessidades
dos dois enquanto casal; 2- que é apto a defendê-la diante de perigos
ou ameaças que eles possam vir a sofrer. O sujeito do discurso também
põe em evidência a sua bravura, anunciando que, ao desafiar outro

Pesquisa e Música 17
cantador, sua empreitada é sempre bem sucedida ("cumo ponho im
desafio u cantadô logo nu chão").
Além dessa questão da valentia, o sujeito do discurso está sempre
associando a sua tristeza com o canto dos pássaros, o que demostra a
comunhão total que há entre homem e natureza. Não há como separar
o homem das matas, dos bichos, das águas e das flores do sertão -
todos esses elementos são um só fenômeno na perspectiva do sujeito
lírico:

Mas quando eu canto na viola a natureza


Tu não vê cumo a tristeza mi põi triste i jururu?
Ansim eu canto a minha dô, só quando a noite
Vem fechá todas as frô i abre a frô du imbirussu

2- Sedução - através de elogios destinados à sua amada, quando


diz: "rainha di Caxangá"; "cabôca, frô da minha"; "ó rosa deste sertão";
"Pru quê ti fez Deus, pruquê? Da cô das frô dus ipê?"; "ó frô du
imbirussu".
A sedução do eu lírico ainda se manifesta ao se apresentar como
um valor positivo, ou seja, como o melhor "tocador de viola" e "cantador"
de sua região: "suspirei nesta viola i pru via só di ti! Laurindo, Pedro,
Chico Bode, Nhô Francisco, Zé Portêra i Zé du Visco, um a um, eu lá
venci"; "cumo ponho im desafio u cantadô logo nu chão".
E, ainda através da sedução, o destinador se mostra detentor de
um "amor platônico", a ponto de esperar a amada passar, em várias
ocasiões, só para vê-la: "Quiria vê si essa gente tombém sente tanto
amô, cumo eu sintí, quando ti vi im Cariri"; "Todos us dia, inté a boca
da noite, eu ti canto uma tuada, lá dibaixo du indaiá"; "Na noite santa
du natá, na encruziada, eu ti isperei i discantei inté u rompê da minhã".
O eu lírico levanta a dúvida se alguém sentiria tanto amor por
sua "cabôca" quanto ele, que a amou desde o dia que a viu "im Cariri".
A partir de então, o eu lírico, inspirado de amores pela sua "frô", começa
sua trajetória de seresteiro ao cantar: de dia - "todos us dia, inté a boca
da noite"; e de noite - "ti isperei i discantei inté u rompê da minhã".
Contudo, o sujeito lírico não conclui o seu percurso narrativo de
modalização e/ou transformação do seu estado disfórico em relação à
sua amada: "Eu faço tudo, só não faço é mi querê"; apesar de
argumentar que possui a competência (querer-dever-saber-poder) para
realizar o processo de conjunção, pois está disposto a tudo por seu
amor: "cabôca, eu morro por ti, só pra ti amá eu nasci".

18 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


3- Apelação - apesar de toda a sua argumentação, o destinador
não tem uma resposta favorável da amada, o que lhe restou foi a
tristeza, então o sujeito passou a tentar acender a piedade da amada,
apelando: "sou triste cumu urutau"; "Sou triste cumo acauã"; "andei a
toa, lá na beira da lagoa chorei mais que um chororão"; "tu não vê
cumo a tristeza mi põi triste i jururu?"; "ansim eu canto a minha dô".
4- Provocação - o sujeito ainda tenta provocar a destinatária
atribuindo-lhe comentários ou adjetivos depreciativos: "caboca,
demônio mau"; "cabôca, sem coração"; "teu coração mais ruvinhoso
do que u saci-pererê"; "cabôca, um demônio és tu". Estas afirmações
são, na realidade, afrontas do eu lírico que deseja a aceitação da amada.
Pode-se, por exemplo, relacionar esta estratégia retórica do eu lírico
com o ditado popular "quem desfaz, quer comprar".
Nestes trechos, a letra reflete quanto à natureza ambígua da
amada (objeto de desejo do sujeito lírico), que ora é descrita como
"demônio mau", ora como "frô da minhã". A mulher está associada à
experiência dolorosa das empreitadas amorosas, por isso ela é tida,
muitas vezes, como um ser que promove a discórdia e o desamor. Por
outro lado, ela é associada à beleza e à singeleza das flores do sertão.
Esse jogo ambíguo entre bem/ mal do espírito feminino é uma das
ideias centrais de letra de Cabôca de Caxangá, que remete a diversas
passagens da mitologia cristã, a exemplo do livro "Gênesis".
É perceptível que o cancionista optou por uma maneira não
convencional de escrever as palavras. Conforme se afirmou em
passagens anteriores, esse gesto se estabelece como uma tentativa de
grafar a voz do sertanejo, na busca por "presentificar" a dicção do
caboclo. Ao optar por uma fala coloquial, o sujeito do discurso torna-
se mais próximo do mundo do sertanejo. Esse efeito de sentido da letra
não seria possível se esta fosse composta por meio de uma linguagem
"erudita", concordante com a norma culta e permeada por um tom
declamatório. Isto porque se geraria um efeito de sentido que não seria
adequado para representar o homem do sertão: um sujeito de formação
erudita estaria falando em nome de uma comunidade à qual ele não
pertence.
Sabe-se que essa vertente regionalista da poética catuliana foi
fundamental para tornar o cancionista maranhense conhecido como
um dos criadores do discurso musical sertanejo. Como afirmou Uliana
Campos Ferlim (2011, p. 172):

Pesquisa e Música 19
Ao adentrar do novo século, Catulo elegeu para sua poesia,
prioritariamente, um tema que lhe seria muito caro. A
representação do tipo de vida e hábitos do homem do sertão
será o mote principal de suas modinhas. Poesias que remetem
à vida no campo, à ingenuidade característica e presumida
do mundo rural, serão objeto de interesse e dedicação do
poeta modinheiro.

O léxico empregado por Catullo dá voz ao homem do sertão


nordestino, ao empregar termos que identificam: 1- personagens com
nomes muito utilizados no Nordeste: Laurindo, Chico, Zé Vicente, Zéca,
Mané; 2- lugares: Caxangá, Pajeú, Jaboatão e Santo Amaro (em
Pernambuco), e o Cariri (no Ceará); 3- árvores e madeiras
características dessa região: indaiá, embiruçu, oiticica, gameleira,
taquara; 4- animais encontrados no campo: urutau, jaçanã, onça,
coivara, touro; 5- gírias ou termos tradicionalmente sertanejos:
traquejar, moita, boca da noite, toada, encruzilhada, grota, pipiando,
arraial, trotando, mujica, arreliado, ataio, baixada, mucambo, bravio,
desafio (de violeiros), cantador, matreira, ruvinhoso, jururu.
É importante salientar que a participação de João Pernambuco
na composição é um fato evidente, tanto no que diz respeito à melodia,
quanto ao conjunto de vocábulos empregados na canção Cabôca de
Caxangá (LEAL & BARBOSA, 1982, p. 38; COSTA, 2009, p. 121).
Ademais, a gravação de Caboca de Caxangá foi um dos primeiros
registros fonográficos da chamada música regionalista brasileira. Esta
canção, em última análise, funciona como um eco dos festejos
nordestinos e das tradições dos cantadores e tocadores de violas.
Ao relacionar a letra de Catullo com o gesto performático de
Eduardo das Neves observam-se vários aspectos interessantes:
1- A harmonia empregada é simples em sua construção formal
(três acordes: de Dó maior, Ré menor e Sol maior), o que soa muito
coerente com a proposta de representar a "rusticidade" da vida
campesina. Mas não se deve imaginar essa simplicidade como forma
de alimentar o preconceito de dizer que esse tipo de expressão seja
inferior a qualquer outro tipo de música, pois, na sua clareza
harmônica, o cancionista encontrou a expressão acertada de sua
intenção.
2- A instrumentação é composta basicamente por um piano e
um violão, instrumentos muito utilizados na época e que se adequavam
muito bem à tecnologia de gravação disponível. Estes instrumentos,
20 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.
que podem conduzir melodias, assim como acompanhar a música,
dando suporte harmônico à voz, alimentavam o fascínio dos boêmios
cariocas no início do século XX. Muitos instrumentistas, inclusive,
dedicavam-se a estudá-los, tornando-se profissionais.
3- O arranjo instrumental, em Dó maior, aponta para o gênero
choro, tanto no movimento sugerido pelas sincopes (de suspensão ou
deslocamento do acento normal do compasso) dos arpejos do piano,
quanto nas baixarias do violão. O ritmo da música imprime um caráter
dançante à canção, o que remete a um sentido de alegria e exaltação.
É visível que a célula básica dos instrumentos se refere ao discurso do
choro contido na sua célula rítmica essencial (semicolcheia, colcheia,
semicolcheia). É tanto que a própria melodia dos estribilhos reforça
esta ideia:

Figura 1

4- No arranjo vocal, também muito simples, estabeleceu-se a


opção de manter uma só linha melódica nas estrofes, e um coro a
duas vozes, sendo que, só no último coro é perceptível a inserção de
uma terceira voz. É importante ressaltar que a inserção da segunda e
da terceira voz mais parece como algo improvisado, que segue a
intenção do movimento dos acordes de dominante (que representam
a tensão: sentimento de algo que precisa de uma conclusão) para tônica
(repouso sonoro: sensação de acomodação, satisfação, finalização).
Além disso, esta característica inerente à organização improvisada das
vozes traz à tona a ideia de uma construção musical comunitária,
solidária, em que todos podem contribuir do seu jeito na concepção do
produto musical.
5- A voz de garganta dos cantores também é apresentada de
modo que revela uma insubmissão com a técnica erudita europeia,
sendo, portanto, mais próximo das tradições orais, sobretudo da
musicalidade das lavadeiras, que se debruçavam à beira dos rios para
lavar as roupas dos membros de sua família e entoam variados cantos.
6- A própria troca de palavras ou de trechos da canção pode
denotar o caráter criativo do cantador da tradição das feiras do
Nordeste brasileiro, que muitas vezes improvisa seus versos em cima
de uma base harmônica pré-estabelecida, executada pelo violeiro,

Pesquisa e Música 21
chamada por eles próprios de toque e/ou "estilo 3". Esse aspecto
direciona-se ao âmbito discursivo da canção, em que há uma reiterada
referência à prática do "desafio" entre os cantadores: "tudo chora numa
prima, i tudo quer ti traquejá". Segundo Gomes (2008, p. 52):

A cantoria de viola é a arte de improviso em versos cantados,


comum no Nordeste desde inícios do século XIX, na qual os
violeiros cantam em desafio. É também chamada de repente,
e seus artistas são conhecidos como cantadores ou repentista.
Não se confundem com os emboladores, que são também
improvisadores, mas que cantam com acompanhamento de
pandeiro.

Este trecho, ao falar de "prima", que se refere à corda mais aguda


da viola, denota que os cantadores disputam uma dama por meio do
canto e da execução musical. Estes personagens funcionam como
oponentes - ou anti-sujeitos - seja na disputa pelo amor da "cabôca",
seja pela fama de melhor cantor e tocador de viola. O enunciador -
que também acumula, no âmbito discursivo, a função de destinador
julgador - julga-se apto a vencer os embates com os outros cantadores,
principalmente quando se sente inspirado, pensando na amada:
"suspirei nesta viola i pru via só di ti! Laurindo, Pedro, Chico Bode, Nhô
Francisco, Zé Portêra i Zé du Visco, um a um, eu lá venci!"; "ponho im
desafio u cantadô logo nu chão". Este "duelo" tem como finalidade
comprovar qual é o melhor criador de versos improvisados de uma
determinada região, assim como provar quem é o violeiro mais
habilidoso e conhecedor dos "toques" característicos de um determinado
"estilo". Apesar de o termo "desafio" sugerir uma espécie de luta ou
"peleja", essa disputa acontece de forma amigável, por meio da qual o
vencedor torna-se respeitado pela comunidade dos guardiões da tradição
sertaneja de versejar.
De acordo com Ayala (1998, p. 17), "a cantoria de viola nordestina
configura-se como um sistema em processo no qual se articulam os
repentistas e o público, em cuja dinâmica surge a produção poética".
Aqui, a autora pondera sobre o caráter social da tradição dos
cantadores, e, nesse mesmo sentido, Gomes (2008, p. 52) acrescenta
que "a cantoria significa um dos mais importantes elementos da cultura
e do imaginário sertanejos, que os teóricos classificam como uma

Para os cantadores, a palavra "estilo" tem um significado abrangente, que vai desde a forma da
3

criação poética do repente até a sua expressão, seja ela cantada ou tocada (RIBEIRO, 2009).

22 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


modalidade da tradição oral no Brasil".
Câmara Cascudo atribui aos imigrantes brancos a tradição do
cantador, relacionando-a com o aedo grego, com o rapsodo ambulante
dos helenos, com as runoias dos finlandeses; os com bardos
armoricanos, com o gleeman anglo-saxão e com os menestréis,
trovadores, mestres-cantadores da Idade Média (CASCUDO, 1984, p.
129). Estudiosos atestam, entretanto, que o desenvolvimento da
tradição nordestina do repente e das cantorias é um patrimônio
brasileiro, em que houve a contribuição significativa dos três elementos
que constituíram a cultura brasileira: o branco europeu, o negro
africano e o nativo brasileiro; tanto por conta dos termos da língua
(português brasileiro), que mesclou os três elementos, quanto por conta
da dicção artística formada a partir da hibridização cultural advinda
do processo de diálogo entre os povos formadores da nação brasileira
(ANDRADE, 1991).
Ainda sobre esta questão da disputa entre artistas - que visam
demonstrar, através de seu gesto musical, quem é o melhor na arte de
cantar se acompanhando (tocando violão) - é importante citar um
episódio vivido por Catullo, narrado por Murillo Araújo (1951, p. 59-
61). Certa noite, ao adentrar o "Hotel Sereia", o cancionista "teve a
atenção despertada por um rapagão louro, de uns vinte e oito anos,
magnífico de esbeltez varonil". Este rapaz se chamava Eduardo Ramos
e detinha de uma esplêndida voz e uma excelente técnica na arte de
executar o violão. O rival do poeta galgava enorme êxito até o momento
em que Catullo, com a sua performance singular, "derrotou-o
inteiramente". Neste momento, Araújo conta que houve uma grande
briga: "Partiram-se copos e frascos... depois cadeiras e mesas... depois
as próprias bitáculas dos valorosos competidores". Essa atitude custou-
lhes uma visita à delegacia, mas a partir de então, os dois seresteiros
deram início a uma profunda e duradoura amizade.
Araújo (1951, p. 61-67) dispõe que Eduardo Ramos continuou
sendo parceiro infalível de Catullo "nas serenatas e nas folias do bando",
porém, a tuberculose veio a por fim na vida do cantor. Mesmo doente,
Ramos só deixou de exercer a sua arte quando, enfim, não achou forças
para se levantar do leito. Neste sentido, pode-se relacionar esta vontade
vívida de cantar de Ramos, com a força do cantador sertanejo que
exerce o seu ofício, não como profissão ou obrigação, mas como uma
missão de cantar e transmitir a sua mensagem.

Pesquisa e Música 23
Partindo para a observação da forma composicional da letra, no
que diz respeito à rima e métrica, nota-se a seguinte configuração ao
se escandir a letra de Cabôca de Caxangá:

Lau\rin\do\ Pun\ga,\ Chi\co\ Dun\ga,\ Zé\Vi\cen\te, 12 A


I es\ta\ gen\te\ tão\ va\len\te\ du\ ser\tão\ di \Ja\to\bá,\ 15 B
I u\ da\na\do\ do a\fa\ma\do\ Ze\ca\ Li\ma, 11 C
Tu\do\ cho\ra\ nu\ma\ pri\ma, i\ tu\do\ quer\ ti\ tra\que\já\ 15 B

Ca\bo\ca\ di\ Ca\xan\gá,\ 7


Mi\nha\ ca\bo\ca,\ vem\ cá!\ 7

Qui\ri\a\ vê\ si es\sa\ gen\te\ tom\bém\ sem\te 11 A


Tan\to a\mô,\ cu\mo eu\ sin\tí,\ quan\do\ ti\ vi im\ Ca\ri\ri!\ 14 B
A\tra\ves\sa\va um\ re\ga\to\ nu\ Pa\táu\ 11 C
I is\cu\ta\va\ lá\ no\ ma\to u\ can\to \tris\te\ du u\ru\tau!\ 15 C

Ca\bo\ca,\ de\mô\nio\ mau,\ 7


Sou\ tris\te\ cu\mu u\ru\tau!\ 7

Há\ mun\to\ tem\po,\ lá\ nas\ moi\ta\ das\ ta\qua\ra, 12 A


Jun\to ao\ mon\te\ das\ coi\va\ra,\ eu\ não\ ti\ ve\jo\ tu \pas\sá! 15 B
To\dos\ us\ di\a, in\té \a\ bo\ca\ da\ noi\te, 11 C
Eu\ ti\ can\to u\ma tu\a\da,\ lá\ di\bai\xo\ du in\dai\á.\ 14 B

Vem\ cá,\ ca\bo\ca,\ vem\ cá,\ 7


Ra\i\nha\ di\ Ca\xan\gá!\ 7

Na\ noi\te\ san\ta\ du\ na\tá,\ na em\cru\zi\a\da, 12 A


Eu\ ti is\pe\rei i\ dis\can\tei in\té\ u\ rom\pê\ da\ mi\nhã!\ 14 B
Quan\do eu\ sa\i\a \du ar\rai\á\ u\ só\ nas\ci\a 12 C
I \lá\ na\ gro\ta\ já\ si u\vi\a\ pi\pi\an\do a\ jas\sa\nã!\ 16 B

Ca\bô\ca,\ frô\ da\ mi\nhã,\ 7


Sou\ tris\te\ cu\mo a\cau\ã!\ 7

Vi\nha\ tro\tan\do\ pu\la es\tra\da\ na\ um\ji\ca... 12 A


Vi-\te em\bai\xo\ da\ oi\ti\ci\ca\ cun\ver\san\do\ cum\ u \Ma\né!\ 17 B
Sin\tí,\ ca\bô\ca, es\tre\me\cê,\ den\tro\ du\ cou\ro 12 C
A\rri\li\a\do, a\tra\pai\a\do, u\ co\ra\ção\ du\ meu\ qui\cé.\ 16 B

Ca\bô\ca, in\da\ te\nho\ fé\ 7


Di\ fa\zê\ fi\ga ao\ Ma\né!\ 7

Di\za\pi\ei-\me\ da\ um\ji\ca... an\dei\ a\ to\a, 12 A


Lá\ na\ bei\ra\ da\ la\go\a\ cho\rei\ mais\ que um\ cho\ro\rão\ 15 B
Vi\nha\ de\ lon\ge\ dus\ a\tai\o\ da\ bai\xa\da, 12 C
U um\gi\do\ da\ boi\a\da\ qui \sa\í\a\ do\ ser\tão!\ 14 B

24 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


No esquema de rima ABCB de boa parte das estrofes de Cabôca
de Caxangá há uma dicção que aponta para o gesto dos cantadores de
desafios ou pelejas (RIBEIRO, 2009, p. 27), assim como para as quadras
dos trovadores, cantigas folclóricas, canções populares, cantigas de
roda, etc. Entretanto, a inserção do esquema ABCC constitui-se como
uma quebra ao padrão, que deveria observar rigorosamente tanto o
esquema de rimas quanto a métrica (RIBEIRO, 2009, p. 33).
Já em relação à métrica, verifica-se que Cabôca de Caxangá
distancia-se um pouco da prática do cordel, visto que este, em geral,
não admite versos de tamanhos irregulares (polimétricos). A canção
que traz estrofes de 4 versos e dísticos (estribilhos), também se
diferencia neste aspecto do cordel, em que as estrofes costumam ter o
mesmo tamanho. Ou seja, se uma obra em cordel começa com sextilha,
continua assim até o fim, salvo algumas exceções. Em determinadas
formas de cordel os versos têm que ter sete sílabas métricas: a redondilha
maior. Nesse sentido, é perceptível que apenas nos estribilhos a métrica
é em redondilha maior. Mas, no cordel, é muito raro acontecer de uma
obra cordelística utilizar estribilho. O uso de estribilho (ou refrão) é
característico da cantoria, o que se chama de mote ou glosa,
dependendo do tema (RIBEIRO, 2009, 126-167).
Caracterizando a obra segundo o modelo de configuração
proposto pela semiótica da canção na perspectiva de Luiz Tatit, nota-
se que a canção aponta para a figurativização (TATIT, 2007). Ou seja,
em vários momentos, faz-se perceptível o fato de o sujeito chamar a
atenção da amada para a sua fala, o que coloca os elementos prosódicos
do discurso poético-musical em evidência: "vem cá", "quando ti vi", "eu
não ti vejo", "eu ti canto uma tuada", "eu ti isperei", "vi-te embaixo da
oiticica", "pru via só di ti", "teu coração mais ruvinhoso", "tu não vê".
Essa característica também está presente em todos os refrãos, que, na
maioria das vezes, começam pelo seu apelido "cabôca".
Da mesma forma, a melodia, através dos tonemas asseverativos
com finais em intervalos descendentes (que são recursos de
figurativização análogos aos procedimentos utilizados na fala),
promovem um efeito de afirmação, de veridicção. Este recurso está
presente nas seguintes estrofes:

Pesquisa e Música 25
Figura 2

Ademais, percebe-se também tonemas que indicam interrogação,


ou que a frase ainda não foi conclusa. Isso acontece quando a melodia
no final de um trecho musical se mantém no mesmo nível da frase
linguística, ou são ascendentes. Este recurso foi aplicado nos
estribilhos:

Figura 3

Outro aspecto importante da canção diz respeito ao seu tom


narrativo. Ela insinua uma estória utilizando-se de vários artifícios
que lhe conferem uma maior verossimilhança: nome de pessoas,
lugares, plantas, animais, ideia de horário do dia e da noite, descrição
de costumes. Isso faz com que a letra de Cabôca de Caxangá se aproxime
da dicção do cordel, uma vez que este tipo de poesia popular tem um
caráter narrativo e descritivo. Contudo, a característica básica do
cordel encontrada na canção está no esquema de rima ABCB da
maioria das estrofes.
Quanto às temáticas discursivas, que podem ser levantadas a
partir do estudo analítico da canção Cabôca de Caxangá, evidencia-se
as seguintes: 1- as dificuldades vividas pelo sertanejo no início do século
XX, o que obrigou muitas pessoas a saírem do campo e migrarem para
os grandes centros urbanos; 2- a valorização das tradições nordestinas
dos cantadores e tocadores de viola, que se apresentavam nas grandes
feiras do interior, sendo considerados detentores e divulgadores de uma

26 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


cultura popular, essencial para a formação do que se estabeleceu
discursivamente como música de caráter nacional; 3- o cangaço, a
coragem, a força e a valentia do homem do sertão, como um discurso
que visa o estabelecimento do nordestino nas capitais brasileiras. A
valentia, nesse sentido, pode ser entendida como sinônimo de homem
trabalhador, que luta por uma melhor condição, mas também como
forma de identificar no nordestino um "cabra que não leva desaforo
pra casa", resolvendo suas discórdias no ato; 4- a depressão que pode
ser causada pela desilusão amorosa como um incentivo ao crime
passional; 5- a "natureza" ambígua da figura feminina - vista na canção
como aquela que trai o amado, mas que é, ao mesmo tempo, a flor do
sertão -o que remonta narrativas bíblicas; 6- as disputas em que uma
pessoa deve se apresentar melhor que outra em determinado(s)
aspecto(s); 7- ao sentimento de identidade do cancionista que se vê
inserido em um contexto sociocultural nordestino, e se orgulha disso,
utilizando termos que caracterizam o interior e o sertão brasileiro; 8-
a preservação da memória, dos costumes, da arquitetura, do contexto
vivido pelo sujeito que canta, assim como pelo outro que fala por trás
da voz que canta; 9- a ecologia: a preservação da fauna, da flora, do
aquecimento global; 10- a velocidade da vida moderna que reduz o
olhar sensível às coisas simples: o canto dos pássaros, o alvorecer e o
entardecer, a beleza das flores e da arte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A canção Cabôca de Caxangá estabeleceu-se no cenário artístico


brasileiro pelo fato de ser uma das primeiras canções sertanejas
gravadas. Na presente análise, observou-se que se trata de uma obra
cancional figurativizada, visto que sua construção está pautada na
busca de representar o diálogo de um enunciador que deseja conquistar,
sem sucesso, o coração de sua amada. Os elementos figurativizados
da letra são notórios, sobretudo a tentativa de união entre sujeito e
objeto de desejo por meio de estratégias retóricas como a intimidação,
a sedução, a apelação e a provocação.
Ao longo deste estudo analítico evidenciou-se também que
Catullo da Paixão Cearense foi um dos primeiros artistas a apontar
para o desenvolvimento de uma canção popular voltada para a
construção de um discurso sonoro que representasse de forma
discursiva uma "brasilidade". Com efeito, é possível afirmar que o seu
gesto musical voltado para a produção sertaneja contribuiu

Pesquisa e Música 27
sobremaneira para instituir um modelo composicional na canção
brasileira. Baseados na dicção poético-musical de Catullo, outros
artistas, seus sucessores na trova sertaneja, como é o caso de Luiz
Gonzaga, adentraram os grandes centros urbanos do Brasil, levando
consigo o cheiro do campo, a sensibilidade dos violeiros e dos cantadores
das feiras do Nordeste. Luiz Gonzaga, na mesma linha do compositor
maranhense, marcou a sua trajetória no campo artístico do Rio de
Janeiro-São Paulo, levando em seu "matulão" os ritmos e variados
elementos da cultura nordestina, constituindo-se como um
orquestrador de um "novo" gênero: o baião; penetrando
"hegemonicamente nos meios radiofônicos e de comunicação de massa
por um período de dez anos" (MORAES, p. 22-23).
A vertente sertaneja da obra catulliana está repleta de
significados. É perceptível que, além da voz do cancionista, há a
presença de uma "voz que fala" por trás da "voz que canta". Como se
destacou, o "outro" das obras catullianas é o próprio sertanejo, o
morador do campo, o caboclo sofrido e batalhador que sobrevive tendo
que superar as adversidades climáticas e as dificuldades de se viver
longe dos centros urbanos.
Em suma, Catullo foi um poeta-músico que causou polêmica ao
produzir obras coerentes (e convincentes) em duas dicções distintas:
erudita e popular (TATIT, 2002, p. 32). Entretanto, sua personalidade
marcada pela altivez - pois ele mesmo se creditava o mérito de ser um
grande poeta - suscitou críticas fervorosas de artistas, intelectuais e
pessoas de grande influência política e cultural, que, ora o elogiavam,
ora o depreciavam.
Quanto às peculiaridades da dicção de Catullo, argumentou-se
que ele foi detentor de uma poética que valorizou a musicalidade ao
invés da métrica rigorosa do verso, e um tipo de rima que quebrava a
previsibilidade das formas composicionais poéticas vigentes na época,
além de uma temática que valorizou o modus vivendi do homem do
sertão nordestino. Um luar, um olhar, uma voz lapidada nas noites
boêmias da capital, às janelas das "moçoilas românticas" (MAUL, 1971,
p. 10) são imagens que sintetizam a trajetória músico-literária de
Catullo e revelam a sua importância na cena artística brasileira.

28 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


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Pesquisa e Música 31
POR UMA MUSICOLOGIA GEO -HISTÓRIC
GEO-HISTÓRIC
-HISTÓRICA:A:
Repensando os Problemas de P eriodização
Periodização
nas Sínteses Musicológicas Regionais.
Regionais.
Alberto Dantas Filho1

Há cerca de cinco anos, em um evento acadêmico da área


musicológica, durante intervalo para o almoço, nós, os palestrantes
convidados do evento, conversávamos entusiasmados, apertados na
van que nos conduzia a um restaurante de Salvador, sobre a
necessidade de trabalhos de síntese histórica em nosso meio de estudos.
Chegávamos a conclusão que os poucos trabalhos de
generalização que abordavam a história de nossa música eram
centrados em leituras tradicionais que convergiam sempre para uma
visão centrada no protagonismo da região sudeste e, via de regra,
tratavam da gênese da atividade musical no Brasil, na região nordeste,
com um distanciamento que não contribuía para uma visão orgânica
do desenvolvimento desta atividade em nosso meio.
A conversa continuou efusiva durante o almoço e foi redundando
na percepção de que precisávamos evoluir dos trabalhos pontuais que
abordavam a realidade de nossas cidades, de nossos estados, para
sínteses locais ou regionais.
Eis aí o mote deste escrito, fazemos uma musicologia histórica
acadêmica há pelo menos vinte e cinco anos, mas não temos uma
produção que sintetize essa face de nossas indagações. Justiça faça-se
à Paulo Castanha e sua apostilas da UNESP que, reunidas, traçam um
perfil pormenorizado e atual de nossa história musical geral, à Pablo
Sotuyo Blanco e a sua liderança nordestina no zelo pelo rigor e no

Professor Associado do Departamento de Música do Centro de Ciências Humanas da UFMA.


1

Doutor em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Coordenador do


Grupo de Pesquisas em Musicologia da UFMA e do Observatório de Pesquisas em Artes do
PROF-ARTES - UFMA.
apreço por uma musicologia da região e à João Berchmans, pioneiro
ao propor estudos regionais e interdisciplinares ao ver as
particularidades da sub-região meio-norte e seus aspectos micro-
históricos.
Se nos remetemos aos estudos históricos desde de o início do
século XX, vamos constatar que esta já era uma preocupação forte,
presente em estudos os mais variados e que sempre procuravam
demonstrar que a lógica da preponderância dos estudos gerais
abrangentes não dava voz ao particular, à situação vareja que engendra
ou, pelo menos, deveria engendrar aqueles primeiros estudos.
A nossa tentativa aqui é resgatar no campo histórico, as
ferramentas epistemológicas que despertaram a historiografia
contemporânea para essa necessidade e buscar, então, meios para trazer
a discussão à musicologia, conferindo-a um lugar de novidades e
instrumentalizando-a com os recursos reconhecidos pela Geografia,
pela Nova História.
Foi o geógrafo Vidal de la Blache (1845-1918) o fundador da
Escola Francesa de Geografia, o primeiro estudioso a evocar o tema,
baseado em uma visão, à época particular, de que um estado deveria
ter a percepção apropriativa de seu espaço geográfico baseado no
conhecimento de suas características naturais e humanas de um dado
território. (RIBEIRO, 2012)
Em um ambiente que remontava a necessidade de afirmação
dos recém-formados estados nacionais, La Blache buscava uma
geografia de cariz humano que pudesse divulgar o interior da nação,
constituindo um povo e unificando a terra e, com isso, emoldurando o
que viria a ser a Geografia Regional que colocou no centro da discussão
acadêmica os espaços e os lugares, bem ao gosto do nacionalismo
europeu que ganhava força.
Na feição historiográfica do assunto, nascia na França a Escola
dos Anais ou movimento em torno do periódico Annales d'histoire
économique et sociale 2 cujo papel inicial era de buscar novas
ferramentas investigatórias para incorporar os métodos das Ciências
Sociais às Ciências Históricas. Fundado pelos professores Lucien Febvre
e Marc Bloch em 1929 os Annales tinham como princípio epistemológico
o afastamento do positivismo histórico como crônica, em favor de uma
história événementielle, "acontecimental", se fosse possível traduzi-la
para o nosso idioma.

Anais da História Econômica e Social.


2

34 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Partindo do primeiro princípio estruturante utilizado por esta
nova modalidade historiográfica, que ampliava a visão dos
acontecimentos históricos observando os processos de "longa duração",
agora era possível criar formas e narrativas inteligíveis dos grandes
movimentos civilizatórios, aumentando, sobremaneira, o campo de
observação dos fenômenos.
Isso permitiu novas modalidades de subcampos historiográficos
como a criação de uma História das Mentalidades ou História Cultural,
ampliou a capacidade analítica de fenômenos que agora podiam ser
analisados não apenas diacronicamente, mas sincronicamente, por
meio de ferramentas da sociologia, geografia, psicologia, economia e,
mais tarde, às ciências afins como a musicologia.
No confronto entre as diversas perspectivas abertas pela Nova
História está, no centro do debate, a tensão gerada pela criação de
uma História Total, cultivada pelos seus fundadores e a visão de uma
tensão ou ruptura da tendência contemporânea de uma historiografia
fragmentada que, neste caso particular, seria uma tendência liderada
pelo orientando de Le Febvre, Fernand Braudel.
Percebemos que na miscelânea de acontecimentos do período, a
conturbada primeira metade do século XX, a historiografia ocidental
passa por um frenesi de ajustamentos especulativos que, ao mesmo
tempo que torna a ciência histórica instável, procura quase que
denunciar este caráter instável como uma qualidade inerente à base
narrativa de sua essência analítica.
O fato histórico passa a ser visto em sua face mais tênue e não
como "ações humanas significativas", incorporando-se de elementos
antes desprezados pelos estudos positivistas e diplomáticos como o não
dito, o não escrito, o fraco, a minoria, o marginal etc., são vistos como
elementos importantes para a composição dos estudos históricos. Essa
nova perspectiva também dá margem ao surgimento de novas ciências
que já vinham se configurando no último cartel do século XIX como, a
História da Arte, a História das Mulheres, a História da Vida Privada
ou ainda as ciências derivadas da própria História, como já referida,
as musicologias.
Como ciência aceita por um grupo de acadêmicos
(SCANDAROLLI, 2018) a Musicologia Histórica aparece em Guido Adler
(BLOMBERG, 2011):

Pesquisa e Música 35
Para Adler, a musicologia histórica lidava com disciplinas
que instrumentassem o tratamento de documentos, e a
discussa?o conceitual histo?rica e filosófica da mu?sica. As
cie?ncias afiliadas da musicologia histo?rica eram, ale?m
da histo?ria e da filosofia, filologia, arquivologia,
muse`ologia, paleografia musical, histo?ria da literatura,
histo?ria das artes mime?ticas, bibliografia.

No Brasil, esta ciência teve seus inícios com os trabalhos dos


pioneiros Francisco Curt Lange e Jaime Diniz, aquele, uruguaio de
nascimento, erradicado no Uruguai, teve no Brasil seu maior campo
de estudos ao propor o desenvolvimento, durante o período
lusoamericano, de uma música de senso europeu, barroca e com
características próprias. O segundo colocou no mapa das pesquisas
centradas até então no centro-sul brasileiro, a região Nordeste,
nomeadamente, a Bahia e Pernambuco, mostrando o protagonismo e
a importância da compreensão dos primeiros esboços da atividade
musical em nosso território.
Após um período intermediário de estudos que começam a entrar
no universo acadêmico, a partir dos anos de 1970, com trabalhos ainda
dispersos em periódicos e anais de eventos científicos, Castagna percebe
a necessidade de serem suficientemente referidos, apontando o
fortalecimento como área científica a musicologia histórica no Brasil
na década de 1990 (CASTAGNA, 2008).
Em sua fala final, Castagna nos dá um testemunho da atual
situação da musicologia a partir daquela época:

Não há dúvidas de que a musicologia brasileira vem manifestando


sensíveis mudanças desde a década de 1990 e, se a nova posição ainda
não foi solidificada, ao menos pode-se vislumbrar a transição de uma
musicologia principalmente focada em obras e compositores, típica
das décadas de 1960 a 1980, para uma nova musicologia, caracterizada
pela maior amplitude na seleção de objetos, métodos, interesses,
interrelações, responsabilidades, abordagens, períodos históricos e
regiões geográficas, consequentemente acompanhada de maior
amplitude nos resultados obtidos. Mais diversificada e menos
centralizada, a nova musicologia está surgindo não apenas por
influência externa, mas também pelo esgotamento das abordagens
baseadas quase exclusivamente em obras e compositores, visão que,
embora tenha permitido o aprofundamento da pesquisa musicológica,
enfatizou excessivamente a utilização do repertório no presente e

36 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


produziu pequeno interesse na investigação do seu significado no
passado.

Atualidade

Passamos agora por um momento de expansão dos instrumentais


investigatórios utilizados em nossas pesquisas e este alargamento nos
traz o desafio de pensarmos na diversidade cultural e na extensão
territorial do Brasil, o que nos faz ver que, para a compreensão de
nossa música, precisamos incorporar uma temática inclusiva, repondo
uma outra música a uma outra musicologia.
Ademais, em termos epistemológicos, o século XX traz uma nova
concepção de história focando o olhar historiográfico interdisciplinar
que podemos caracterizar na pluralidade de fontes, na valorização da
dinâmica complexa e relacional entre os sujeitos e os espaços, de tal
forma, que resultaria na ênfase das relações interculturais enfatizando
a visão sincrônica e tornando a história uma ciência social.
O depoimento de Castagna nos traz a base para discussões futuras
visando a compreensão de um lugar para as Ciências Musicais no Brasil.
Para a compreensão dessa situação destacamos dois momentos
desta sua referida fala: 1- que a musicologia brasileira parte de uma
situação que focava "obras e compositores', típica das décadas de 1960
a 1980" e 2- chegando [atualmente] a [...] "uma nova musicologia,
caracterizada pela maior amplitude na seleção de objetos, métodos,
interesses, interrelações, responsabilidades, abordagens, períodos
históricos e regiões geográficas, consequentemente acompanhada
de maior amplitude nos resultados obtidos" (CASTAGNA, ibdem). [grifo
nosso]
Percebemos, claramente, que os elementos elencados por
Castagna enumeram, em si, os pressupostos fundamentais para a
realização de uma musicologia coadunada com os novos recursos
epistemológicos. Os estudos referentes ao cotidiano, à micro-história,
à história local ou regional trazem à discussão científica uma espécie
de lado esquecido e que, do desinteresse hermenêutico, passamos à
constituição de um imprescindível acervo de fontes de incrível
mobilidade e modalidades, nada deve ou pode ser desprezado pela
pesquisa musicológica.
A posição referencial de coleções, acervos e obras, compositores
e estilos gera uma nova e desafiadora postura investigativa. O
musicólogo converte-se em uma espécie de hermeneuta examinando
a cultura no sentido em que Geertz classificou como teias de

Pesquisa e Música 37
significados que, sem coordenação relacional perde completamente o
seu sentido estrutural ou funcional. A ideia, baseada em Max Weber
de que, "...o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu,...", onde Geertz assume a cultura [...] como sendo essas
teias e sua análise: portanto, não como uma ciência experimental, mas
como uma ciência interpretativa, à procura de significado." GERTZ, 2008).
Esta assertiva impeli-nos a pensar não somente na história, mas
nas fontes e toda a sorte de testemunhos como portadores de narrativas
significativas e altamente instáveis, porque relacionais.
Importa saber, com precisão, de onde partimos para a
compreensão semiótica do conceito de teia utilizado por Geertz.
Segundo este autor a base para a interpretação parte de uma escolha,
de uma tomada de decisão que implicará uma tarefa decifratória.
Podemos dizer, como o próprio Geertz, que a tarefa investigatória (e aí
também incluímos a nova história e, por extensão, a nova musicologia),
terá como elemento relacional o trabalho de campo. Vejamos o que diz
Geertz a respeito: "Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de
"construir uma leitura de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de
elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito
não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios
de comportamento modelado" (GERTZ, ibdem).
Lourdes de Ita em seu muito importante artigo "La importancia
del análisis transnacional y transregional en los estudios geo-históricos
para América Latina" (ITA, s.d.) recoloca o papel exercido pela geografia
histórica na composição dos estudos do período pré-nacional da
América Latina, em que a necessidade da utilização de diferentes
"escalas espaciais" seriam imprescindíveis para a compreensão das
esferas da paisagem e da população, do econômico, social e cultural.
Considerando qualquer forma cumulativa documental, mesmo
as mais regulares, um entrecruzar de trajetórias diversas em relação
às fontes e, sobretudo, àqueles materiais como as partes cavadas ou as
partituras, para citar dois exemplos, observamos uma dinâmica em
suas histórias não linearidade e inteiramente interrelacional,
espelhando as relações sociais em rede que as engendraram. Isso em
todos os níveis do aparato documental: a obra autógrafa, as cópias, as
interpretações lexicais ope ingeni, ope codicum, versões editoriais (como
em Grier), ou mais recentemente toda a sorte de nuances fonográficas
e mediáticas (como em Nicolas Cook).
Por outro lado, temos as questões relativas à própria construção
de uma narrativa histórica que, na relação com a música, tem
ontologicamente tensões irreconciliáveis quanto ao objeto que, por

38 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


sua natureza, tem formas variadas temporais como o ritmo, o pulso,
tactus, internamente, as relações fenomênicas com o tempo comum,
as vivências temporais da própria narrativa musical e suas relações
com a prosódia.
Quando observamos a crônica histórica e a problemática de sua
estruturação, observamos que a linearidade narrativa ainda é mais
conservadora que em outras áreas, ao apresentarmos acima alguns
elementos pontuais que dizem respeito a matéria primeira de uma
construção histórica para as coisas da música, estamos tentando
ampliar o leque de preocupações epistemológico-históricas e, por este
motivo, propomos no mesmo sentido do trânsito interdisciplinar que
envolve a questão, a busca de uma geografia que estabeleça as bases
tópicas da pesquisa histórica como o lugar e sua construção social, as
mudanças evidenciadas nos suportes documentais e as nuances de
superfície que podem nos levar a uma condição não diacrônica e, de
forma relacional, termos a música em todas as suas formas
hierárquicas horizontais significadas pela experiência.
Proponho um novo olhar, e me perdoem a ousadia, um novo
ramo da pesquisa musicológica, ou mesmo uma nova ciência
musicológica que abarque tais preocupações, uma musicologia geo-
histórica, baseada na preocupação de não apenas resgatar "antigas
formas morfológicas apesar de sua importância na recuperação da
produção material das sociedades do passado (ABREU apud da Silva,
2012), aqui de forma relacional com as morfologias expressas nas
fontes documentais.
Nesta linha de raciocínio podemos indicar as formas jurídicas e
institucionais na música - vigentes à época e vigentes agora, através
das formas institucionais e jurídicas, tais como, o estabelecimento de
ensino musical, o teatro ou sala de concerto, a igreja e as instituições
de provimento jurídico, tais como, os vínculos trabalhistas, os direitos
da obra, o estatuto jurídico e social do músico (compositor, intérprete,
o fabricante de instrumento, a audiência etc.).
Deixemos agora as questões mais intrínsecas e de referência
pontual, sugiro um olhar mais amplo quando da estruturação
sincrônica dos tempos históricos ou, como na acepção de Milton Santos
"tal como ele [o tempo] se da? nas diferentes escalas de sua existência,
ainda que tenhamos frequentemente dificuldade em precisa?-la".
(SANTOS apud da SILVA, 2012).

Pesquisa e Música 39
Uma justificação para novas periodizações: eixo das
sucessões e o eixo das coexistências

A Geo-história encara o "lugar", enquanto "lugar de práxis"


composto por devires temporais caracterizados fenomenicamente por
interações sucessivas, um eixo diacrônico de sucessões e outro por
interações relacionais, simultâneas, e que expressam o eixo das
coexistências:

...em cada lugar, os sistemas sucessivos do acontecer social


distinguem períodos diferentes, permitindo falar de hoje e de
ontem. Este é o eixo das sucessões. Em cada lugar, o tempo
das diversas ações e dos diversos atores e a maneira como
utilizam o tempo social não são os mesmos. Já no viver
comum de cada instante, os eventos não são sucessivos, mas
concomitantes. Temos aqui o eixo das coexistências (SANTOS
apud SILVA, 2012).

A espacialidade geográfica e sua expressão temporal são


diferentes para cada agente histórico, mesmo acontecendo
simultaneamente.

...constatamos, de um lado, uma assincronia na seqüência


temporal dos diversos vetores e, de outro lado, a sincronia
de sua existência comum, num dado momento. O
entendimento dos lugares, em sua situação atual
[ou retrospectiva, em se falando de geografia
histórica] e em sua evolução, depende da
consideração do eixo das sucessões e do eixo das
coexistências. (SANTOS apud SILVA, ibdem). [grifo nosso]

As relações espacço-temporais, no caso da música, em sendo


uma forma de expressão inteiramente baseada na experiência temporal,
evocam tensões envolvendo duas dimensões: uma temporal, física,
material e que tem relação direta com os suportes que a sustentam e
outra, também temporal, mas imaterial, abstrata, subjetiva enquanto
devir musical. Se nos remetemos a noção de tempo de Brentano:

A primeira das Lições expõe a teoria de Brentano a respeito


da natureza de nossas concepções do tempo, e a sua crítica a
esta teoria. Para Brentano, a imaginação é a fonte única da
temporalidade. Cada dado perceptivo sensorial é duplicado
pela imaginação em uma série de representações, na qual

40 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


cada representação reproduz o conteúdo da precedente. [...]
Cada série é associada à sensação correspondente, ao que
Brentano chamou de "associações originárias". O caráter de
temporalidade, de ser passado ou futuro, consistiria em
alterações das representações. (BRENTANO apud PEREIRA
JUNIOR, 1990)

Sim, as percepções temporais evocam seriação, sucessividade,


diacronismo, porém as significações do instante vivido serão sempre
relacionais, daí a crítica à teoria de Brentano, pois, "mesmo que fosse
possível haver percepção do passado ou do futuro, estas ocorreriam
no instante presente" (PEREIRA JUNIOR, ibdem)
Dando sequência à possibilidade de uma estruturação geo-
histórica de uma determinada maneira de fazer musicologia, podemos
pensar concretamente na possibilidade de periodização musicológica
a partir do pressuposto de que as temporalidades não são as mesmas
para os diversos agentes sociais e, por analogia, para estruturações
estanques do devir histórico. Voltando a Milton Santos temos:

O tempo como sucessão, o chamado tempo histórico, foi


durante muito tempo considerado como uma base do estudo
geográfico. Pode-se, todavia, perguntar se é assim mesmo,
ou se, ao contrário, o estudo geográfico não é muito mais
essa forma de ver o tempo como simultaneidade: pois não
há nenhum espaço em que o uso do tempo seja idêntico para
todos os homens, empresas e instituições. Pensamos que a
simultaneidade das diversas temporalidades sobre um pedaço
da crosta da Terra é que constitui o domínio propriamente
dito da Geografia. Poderíamos mesmo dizer, com certa
ênfase, que o tempo como sucessão é abstrato e o tempo
como simultaneidade é o tempo concreto já que é o tempo
da vida de todos. O espaço é que reúne a todos, com suas
múltiplas possibilidades, que são possibilidades diferentes
de uso do espaço (do território) relacionadas com
possibilidades diferentes de uso do tempo (SANTOS apud
SILVA, 2012).

Temos então uma periodização apoiada em um eixo advindo da


coexistência empírica do espaço e do tempo que se fundem formando
o que Santos chamou de unidade espaço-temporal.
Puxando "a brasa a nossa sardinha", teríamos como território, o
lugar geral, o lugar específico, o lugar de uso, o lugar de preservação
das experiências vividas, tais como os espaços nacionais, as diversas

Pesquisa e Música 41
modalidades de território, em um outro plano, os espaços de criação e
fruição como a inserção em estilos e escolas, aspectos gerais da posição
ou topos (como lugar comum retórico), como a representação de dada
situação, que de forma funcional observamos no interior dos arquivos,
das coleções e em tantas outras modalidades. Seguimos na tentativa
de propor um modelo de periodização histórica para a nossa música.
Abaixo a ilustração proposta por Marcelo Wener da Silva para o
"eixo das sucessões das coexistências:

Gráfico 1- Eixo das sucessões das coexistências

Fonte: Wener (2012)

A partir deste modelo podemos, analogicamente, propor uma


periodização histórica para novas sínteses com a seguinte estrutura
(para efeito de pura demonstração sugerimos um possível recorte da
História Geral do Brasil):

Gráfico 2 - Analogia entre o "Eixo das sucessões das coexistências"


e
proposta de periodização histórica

Fonte: próprio autor

42 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Ao traduzirmos este diagrama ao plano geral de uma obra de
síntese histórica podemos fazer as seguintes analogias:

Tabela 1 - Analogia entre elementos sincrônicos e


elementos diacrônicos

Fonte: próprio autor

Em resumo, achamos possível trazer a luz de novos


procedimentos metodológicos, uma nova maneira de estruturarmos o
tempo histórico levando em conta todas as dimensões possíveis de uma
narrativa que sempre se revelará incompleta, porque ao incorporar-se
ao presente e ao se projetar no futuro, traz consigo as inconsistências
do "seu presente" e, por conseguinte, as dificuldades hermenêuticas do
tempo que as tenta decifrar.
Tudo que aqui está presente faz parte de um esforço na concepção
de novas e importantes formas de construção músico-historiográficas
acercando-se da Geohistória como mais uma via de integração
interdisciplinar, particularmente, na construção de uma história
regional da música do meio-norte, a partir do Maranhão.
Com isso, queremos contribuir para uma discussão mais alargada
e mostrar que estamos longe de consensos, mas empenhados nessa
tensão que confere à musicologia um lugar importante neste início de
século para a compreensão de nossa história.

Pesquisa e Música 43
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOMBERG, Carla Histórias da Música no Brasil e Musicologia: uma


leitura preliminar In: Projeto História. Revista do Programa de estudos
Pós-Graduados de História. v. 43 (2011) p.225-237

CASTAGNA, Paulo Avanços e Perspectivas na Musicologia Histórica.


In: Revista do Conservatório de Música da UFPel. Pelotas, nº1, 2008.
p.32-57.

GEERTZ, Clifford Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008

ITA, Lourdes La importancia del análisis transnacional y transregional


en los estudios geo-históricos para América Latina.Morelia: Universidad
Michoacan de San Nicolás de Hidalgo, Instituto de Investigaciones
Históricas, s.d.

PEREIRA JÚNIOR, Alfredo A Percepção do Tempo em Hursserl São


Paulo: Trans/Form/Ação, 13:73-83, 1990 Disponível em 06 set 2018
<http://www.scielo.br/pdf/trans/v13/v13a05.pdf> Acesso

RIBEIRO, Guilherme. Geografia Humana: fundamentos


epistemológicos de uma ciência . In: (Re)Conhecendo a Geografia
Humana de Paul Vidal de la Blache PEREIRA, Sergio Nunes;
HAESBAERT , Rogério. (org.). Vidal, Vidais: Textos de geografia
humana, regional e política. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
2012. [464p.]. p.23-40

SCANDAROLLI, Denise História e Musicologia: duas apropriações do


passado. 2016. Disponível em:<https://
www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1050>
Acesso em 6 out 2018

SILVA, Marcelo Werner da A Geografia e o estudo do passado-Conceitos,


periodizac?o?es e articulac?o?es espac?o-temporais.Terra Brasilis
(Nova Se?rie), 1, 2012 Disponível em <https://www.researchgate.net/
p r o f i l e / M a r c e l o _ S i l v a 1 3 / p u b l i c a t i o n /
270031248_A_Geografia_e_o_estudo_do_passado/links/
55c0c78708aed621de13e7bd/A-Geografia-e-o-estudo-do-passado>
Acesso 06 out 2018.

44 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


MODERNISMO E CANÇÃO BRASILEIRA: Uma
Leitura do Disco As Cidades (1998), de
Chico Buarque.
Alfredo Werney Lima Torres1

À Daíse Cardoso

I Introdução

Não há ainda nos estudos que articulam música e literatura um


panorama claro sobre as relações entre o Modernismo, na perspectiva
estética orquestrada por Mário de Andrade, e o discurso da moderna
canção brasileira. Há textos esparsos de Affonso Romano de Sant'Anna,
Augusto de Campos, Santuza Naves, José Miguel Wisnik, pesquisadores
que, por diferentes caminhos, procuraram entender o conluio entre
modernistas e compositores populares. Mas, em geral, o que
encontramos são pesquisas que versam de forma mais detida sobre a
literatura stricto sensu ou, na perspectiva da musicologia, trabalhos
sobre compositores eruditos.
Contudo, são notórias as reverberações da literatura brasileira
moderna no discurso da chamada MPB. A década de 1960, com o
surgimento da bossa nova, foi uma época em que esse diálogo entre
músicos populares e literatos se intensificou. Vinícius de Moraes, ao
mesmo tempo poeta do livro e poeta da canção, foi um dos que
promoveram essa articulação, fazendo da música popular um forte
instrumento de interpretação da realidade brasileira. Chico Buarque
de Holanda pode ser considerado uma figura central nesse salto
qualitativo que a música popular brasileira teve na década de 1960.
Ele é um dos responsáveis pela constante associação que o leitor/
ouvinte faz, no contexto da cultura brasileira, entre poesia escrita e
poesia cantada. Morando em uma casa cujas paredes "eram feitas de
livro" (BUARQUE, 2014, p. 16), como disse o narrador do romance

Doutorando em Música pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de


1

pesquisa Música e Cultura. Professor de Música do Instituto Federal do Piauí (IFPI).


autobiográfico O irmão alemão, Chico despertou o gosto pela leitura
desde muito cedo. No documentário Chico: artista brasileiro, de Miguel
Faria Jr, o compositor declarou: "Me sinto profissionalmente mais um
escritor do que um músico. Eu conheço a literatura mais do que a
música" 2.
A música de Chico Buarque está impregnada de elementos
da literatura. Seu contato diário com os livros fez com que o compositor
construísse letras que travam um visível diálogo com a série literária.
Em seu cancioneiro encontramos sonetos, redondilhas, baladas, textos
metrificados e diversos intertextos com autores canônicos da literatura,
como Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade, Bertolt Brecht
e Guimarães Rosa. Além de pensar nos aspectos orais da canção, Chico
Buarque procura construir uma lírica auto-reflexiva. De modo análogo
à obra de poetas como Carlos Drummond, o compositor elabora textos
que, além de sua capacidade de imersão na realidade brasileira,
refletem, não raro, sobre o próprio processo de criação textual, porque
se utiliza de expedientes característicos da poesia escrita.
No presente artigo, pretendo realizar um estudo analítico das
canções de Chico Buarque de Holanda a partir das relações que elas
têm com a moderna literatura brasileira. O Modernismo aqui abordado,
visto que houve variadas experiências modernistas no Brasil, é o
movimento literário ocorrido na cidade de São Paulo, que teve como
principal meio de divulgação a Semana de Arte Moderna de 22, sob a
regência de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia,
Guilherme de Almeida e outros intelectuais. Fundamentado nessa
concepção de modernismo, este texto surge a partir da seguinte
problemática: como as canções de Chico Buarque se inter-relacionam
com o universo estético da literatura moderna do Brasil? Para chegar
a conclusões mais seguras, dialogo com autores de diferentes áreas e
linhas teóricas, principalmente com Mário de Andrade, Santuza
Cambraia Naves, Carlos Rennó e Luiz Tatit. Desse modo, a metodologia
utilizada para a análise das canções, no rigor do termo, não será
sistemática, dado o caráter híbrido do objeto de estudo e dos diferentes
modelos de análise articulados na leitura de uma mesma obra.
Em linhas gerais, defendo a ideia de que as canções de Chico
Buarque estão pautadas por um intenso diálogo com a moderna
literatura brasileira, sobretudo com o pensamento estético de Mário

In: CHICO: artista brasileiro. Produção de Miguel Faria Júnior. Rio de Janeiro: Sony Pictures,
2

2015 - DVD, 82min.

46 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


de Andrade. Procedimentos utilizados nas canções do autor de
"Construção", como o uso de uma linguagem coloquial, o tom prosaico,
o uso constante da ironia e de uma sintaxe não linear, a busca de uma
polifonia poética, a linguagem como síntese, chama a atenção pela
proximidade com o Modernismo. Levanto a hipótese de que alguns
destes procedimentos presentes no plano da letra também podem ser
observados no plano da música. Na música eles se relevam a partir de
arranjos mais concisos e menos densos no que se refere à textura
musical, de melodias que se moldam às inflexões rítmicas da fala e de
interpretações que refreiam o excesso de expressão.
Composto de centenas de obras, o cancioneiro de Chico Buarque
é vasto e aponta para diversas direções. Há em sua obra paródias,
poemas musicados, canções oriundas de peça de teatro, de discos
autorais e de trilha sonora de filmes. Desse universo plural, elegi como
objeto de análise o álbum As cidades, lançado em 1998. Nele, percebo,
como um projeto estilístico consciente do autor, a tentativa de expressar
o mundo moderno, a partir de uma concepção de cidade como um
espaço múltiplo, cruzado por diversas culturas e linguagens. Daí a
adoção de uma linguagem composta com um ritmo fluente, cheia de
fragmentos visuais e reveladora de diversas cenas da vida
contemporânea nas urbes brasileiras.
Compreendo a canção na perspectiva da semiótica desenvolvida
pelo pesquisador e músico Luiz Tatit (2007), isto é, como um sistema
híbrido cujo sentido é construído a partir da articulação de, pelo menos,
dois domínios semióticos: a melodia e a letra. Por consequência,
entendo que a obra de Chico Buarque, embora estando intimamente
ligada à série literária, deve ser examinada como canção, para que
possamos descortinar suas potencialidades. A palavra, quando cantada,
contesta o texto enquanto código linguístico e gera efeitos de sentidos
que não são revelados fora da estrutura musical.

II Da Pauliceia à Copacabana: o modernismo de Mário de


Andrade e a bossa nova

A música popular brasileira não passou ao largo das


transformações estéticas propostas pelo Modernismo literário de 1922.
É certo que grande parte dos compositores da moderna música popular,
como Caetano Veloso, Edu Lobo, Gilberto Gil, Tom Jobim e Chico
Buarque, sequer haviam nascido quando eclodiu esse movimento.
Vinícius de Moraes, por exemplo, tinha apenas oito anos de idade. No

Pesquisa e Música 47
entanto, as ressonâncias das ideias modernistas chegaram até esses
músicos. Santuza Naves (2015, p. 42) afirmou que "o projeto musical
de Mário, voltado para o ideal de formação, foi atualizado pelos
mentores da ideia de MPB, que procuraram 'costurar' o Brasil através
da música". Em uma observação aguda, a pesquisadora disse ainda
que Mário deixou como herança "um modelo edificante, sério e uma
visão de arte como empreendimento didático e construtivo" (Idem).
Oswald de Andrade, por seu turno, transmitiu como legado "uma
postura anárquica, zombeteira, descrente de qualquer intuito instrutivo
e tendente a desconstruir ideias cristalizadas" (NAVES, 2015, p. 47).
Movimentos como o Tropicalismo e a bossa nova estabeleceram
um diálogo fecundo com os autores modernos. A poesia como "síntese,
invenção e surpresa" (ANDRADE, 2011, p. 63) e o tom zombeteiro de
Oswald de Andrade encontraram eco nas experiências tropicalistas;
enquanto a dicção mais depurada, a simplicidade e o espírito apolíneo
de Mário de Andrade encontraram eco em diversas letras da bossa
nova. Basta pensarmos na fragmentação e na linguagem de obras
como "Sampa", "Domingo no Parque", "Pela internet", que nos
lembraremos da poesia oswaldiana. De outro modo, se pensarmos na
linguagem prosaica e concentrada de obras como "Tarde em Itapoã",
"Cotidiano", "Iracema voou", perceberemos uma aproximação com o
estilo do autor de Pauliceia desvairada.
Como mencionado anteriormente, a distância entre compositores
e escritores acadêmicos se estreitou a partir do surgimento da bossa
nova na década de 1960, principalmente por causa da presença de Vinícius
de Moraes, que fez amizade e parceria musical com músicos populares
como Toquinho, Tom Jobim, Carlos Lyra e Baden Powell. No entanto, a
confluência entre modernismo e música popular é anterior à eclosão das
canções bossanovistas. No livro O violão azul: modernismo e música
popular, Santuza Naves (1998, p. 16) defende a ideia de que a música
popular "concretiza certo ideal modernista que valoriza o despojamento
e rompe com a tradição bacharelesca, associadas a determinadas
concepções de erudição". Para a pesquisadora há, portanto, uma
convergência entre os músicos populares da década de 1920 e 1930 e
os poetas e ideólogos do movimento modernista. Estes artistas, sejam
músicos ou escritores, foram envolvidos em um projeto coletivo
consciente em torno da simplicidade e do sermo humilis3 . Embora,

Termo utilizado por Santuza (1998) - em sintonia com o pensamento de Erich Auerbach - para
3

designar o discurso que se apropria da linguagem ordinária e de temas prosaicos do cotidiano,


opondo-se, dessa forma, ao tom eloquente e à idealização.

48 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


como nos mostra a autora, tanto a poesia modernista quanto as canções
populares procurem conciliar, não raro, o humilde com o sublime ("a
estética da simplicidade" e a "estética da monumentalidade").
Ao ler a obra de Mário de Andrade e escutar diversos discos de
bossa nova, comecei a notar um diálogo intertextual entre as canções
e as ideias estéticas do escritor paulista. Uma das marcas desse
pensamento estético é a defesa de um texto mais direto, não
confessional, com uma linguagem depurada e mais livre ritmicamente,
como se observa na fala cotidiana. Não é difícil perceber que grande
parte das canções bossa-novistas procura atingir essa dicção. Maria
Augusta Fonseca (2013, p. 16) atesta que os nossos escritores
modernistas, especialmente o autor de Macunaíma, "procuraram
desentronizar os purismos que tornavam demasiadamente artificial a
comunicação artística. Desejaram eliminar a pompa e o pedantismo
bacharelesco". Não seria o mesmo efeito buscado pela bossa nova, ao
negar a opulência e o tom acentuadamente confessional dos
conhecidos boleros e sambas-canção que dominaram a cena musical
das décadas de 1940 e 1950 no Rio de Janeiro?
Os ideais poéticos de Mário de Andrade podem ser
observados, de forma mais exaustiva, nos livros em que ele defende o
projeto estético modernista. Em A escrava que não é Isaura (1924), um
desses trabalhos, ele afirmou que "na poesia modernista, não se dá, na
maioria das vezes concatenação de ideias mas associação de imagens
e principalmente: SUPERPOSIÇÃO DE IDEIAS E IMAGENS (sic). Sem
perspectiva nem lógica intelectual" (ANDRADE, 2010, p. 60). Se
tomarmos como base o enunciado do autor modernista, notaremos
que determinadas obras do cancioneiro da música popular brasileira,
em especial da bossa nova, possui um texto que se pauta pela
simultaneidade de sentidos e pela superposição de imagens. Canções
como "Águas de março" (1973), de Tom Jobim, integram-se
perfeitamente à visão estética de Mário de Andrade, para quem o texto
deveria ser "resumo, essência, substrato" (ANDRADE, 2010, p. 65), ao
invés de se basear em recursos, tais como: a "lógica intelectual, o
desenvolvimento, a seriação dos planos" (Idem). Vejamos algumas
estrofes da letra:

É pau, é pedra, é o fim do caminho


É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira

Pesquisa e Música 49
Caingá candeia, é o Matita-Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

(CHEDIAK, 1994, p. 26)

O que é mais notório em "Águas de março" é o fato de o


compositor não criar uma linha narrativa e se lançar em uma escrita
menos conceitual, porque mais visual. Isso parece confirmar as ideias
de Affonso Romano de Sant'Anna (2013, p. 218), para quem a bossa é
uma "música de situação" e não uma "música de narração". O que a
letra mostra ao interlocutor são imagens concretas da natureza,
formada por um discurso que não visa exatamente construir um
conteúdo inteligível, pois o que está em jogo é o que a palavra representa
como unidade sonoro-visual. A inclinação icônica do texto de Tom
Jobim afina-se com a poesia de outro modernista - no caso Oswald de
Andrade - tendo em vista que o autor do Manifesto da Poesia Pau-Brasil
procura assimilar as pequenas experiências fragmentadas do cotidiano,
"valorizando o instinto e a espontaneidade" (TRAVASSOS, 2000, p. 45).
Há outras obras do cancioneiro brasileiro que podem ser lidas a
partir da relação travada com as ideias de Mário de Andrade. Em "A
rã" (João Donato e Caetano Veloso, 1974), é possível observar uma
linguagem concreta e substantivada, tendendo a não-narratividade
(ao invés de "concatenação de ideias", há "superposição de imagens"):

Pé de capim
Bico de pena pio
De bem te vi
Amanhecendo sim
Perto de mim
Perto da claridade
Da manhã
A grama a lama tudo
É minha irmã
A rama o sapo o salto
De uma rã
(VELOSO, 2003, p. 217)

50 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Em "O barquinho", Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli negam
o espírito grandiloquente - nas palavras de Santuza Naves (1998) a
"estética da monumentalidade"4 - e descrevem, de forma simples e
concisa, o percurso de um barquinho no mar. Esse percurso é reiterado
ritmicamente pela melodia de Menescal:

Dia de luz,
Festa de sol
E o barquinho a deslizar
No macio azul do mar

Tudo é verão,
O amor se faz
No barquinho pelo mar
Que desliza sem parar

Sem intenção,
Nossa canção
Vai saindo desse mar

E o sol
Beija o barco e luz
Dias tão azuis

(MONTEIRO, 2011, p. 127)

A letra de "Tarde em Itapoã", de Toquinho e Vinícius de Moraes


também é um exemplo, principalmente por conta do seu tom prosaico
e do seu despojamento poético. Uma canção que, ligada à estética
bossanovista, pauta-se por um "lirismo espontâneo levemente irônico
que busca a poeticidade da vida cotidiana" (BRITTO, 2009, p. 140).
"Tarde em Itapoã" não cria narrativas sobre fatos históricos
"importantes" ocorridos na Bahia. Através de seus versos, somos
convidados a conhecer diversas cenas do cotidiano da praia de Itapoã:

Estética da monumentalidade é um termo que se refere ao projeto de totalidade que se caracteriza


4

pelo excesso e pela gravidade. Ela se manifesta na música através das obras sinfônicas, da
abundância e diversidade de instrumentos musicais, dos extremos dinâmicos, da quantidade de
temas diferentes e da complexidade do desenvolvimento (NAVES, 1998).

Pesquisa e Música 51
Um velho calção de banho
O dia pra vadiar
Um mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar
Depois, na Praça Caymmi
Sentir preguiça no corpo
E numa esteira de vime
Beber uma água de coco

É bom
Passar uma tarde em Itapuã
Ao sol que arde em Itapuã
Ouvindo o mar de Itapuã
Falar de amor em Itapuã

(MORAES, 1991, p. 156)

Esse estilo que nega o sentimentalismo e a turgência da


linguagem romântica é um recurso caro à estética modernista. No
livro Aspectos da Literatura Brasileira, Mário de Andrade declara que a
poesia não pode "permanecer neste compromisso de facilidades
sentimentaisinhas e didáticas em que quase se confina entre nós".
Acrescenta ainda que é preciso "acabar de vez com essa bobagem de
distinguir poesia e prosa por meio do aspecto tipográfico" (ANDRADE,
1978, p. 41).
Em resumo, entendo que há uma convergência entre o projeto
estilístico de Mário de Andrade e o discurso da bossa nova. Essa ligação
pode ser observada, sobretudo, através de dois procedimentos: no
controle da expressão lírica e na busca de um discurso poético que
traduza a fala ordinária do brasileiro e as novas configurações sociais
geradas pela modernização das cidades. No mesmo diapasão dos
bossanovistas, uma parte significativa das canções de Chico Buarque
partilha dessas ideias estéticas.

52 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


III Uma contaminação feliz: as canções de Chico Buarque
e a moderna poesia brasileira

Vinícius de Moraes afirmou que a bossa deveria ter, para a música


popular, uma importância proporcional a que teve a Semana de Arte
Moderna de 1922 para a literatura (DINIZ, 2008). O projeto de
reconstrução musical e literária empreendido pelos bossanovistas
chamou a atenção de jovens músicos que começaram a erigir suas
carreiras artísticas na década de 1960, dentre eles Chico Buarque de
Hollanda. Esse compositor faria, posteriormente, uma profícua parceria
com o pianista Antônio Carlos Jobim. Alguns sucessos do "maestro
soberano" tiveram letras elaboradas por Chico Buarque - a exemplo de
"Retrato em branco e preto", "Sabiá", "Anos dourados" e "Piano na
mangueira".
As canções de Chico Buarque, devido à relação isotópica entre
melodia e letra, não podem ser examinadas apenas por meio de seus
aspectos musicais. Da mesma forma, não é salutar retirar a letra de
sua junção orgânica com a melodia e analisá-la como se fosse um
poema feito para ser lido. Porém, mesmo não sendo exatamente um
poeta do livro, no trabalho músico-literário desse compositor, muitas
vezes, a palavra é experimentada como palavra e não como "simples
substituto do objeto nomeado" (JAKOBSON, 1978, p. 177). Há quem o
considere um verdadeiro artesão da linguagem, um "alquimista verbal"
(MENESES, 2002, p. 197). Suas letras impressionam por serem
elaboradas com muita expressividade no que se refere aos aspectos
linguísticos - sonoridade, metáforas, imagens -, sem abdicar, contudo,
de criar pequenas narrativas e de estabelecer uma conversa
descontraída, como "quem senta e conta uma história para os amigos"
(FISCHER, 2009, p. 296). Essa espontaneidade criativa de sua escrita
esconde um artesanato poético muito elaborado e não deixa
transparecer, para os ouvintes mais apressados, o acentuado diálogo
empreendido com a tradição literária brasileira. Carlos Rennó, em um
ensaio esclarecedor, diz que a obra de autores como Caetano Veloso,
Cole Porter, Bob Dylan e Chico Buarque, está situada no limite entre a
poesia da série literária e a poesia cantada, levando em consideração
"o enorme engenho-e-arte do conjunto de suas letras e músicas (de
suas poemúsicas, digamos assim) ou particularmente da porção mais
engenhosa e artística, do ponto de vista poético especialmente, de seus
repertórios" (RENNÓ, 2014, p. 166).
O cancioneiro de Chico Buarque, com frequência, apresenta uma
relação intertextual com os poetas brasileiros modernos da década de

Pesquisa e Música 53
1930. Canções como "Flor da idade", "Até o fim", "Cara a cara", por
exemplo, fazem alusão a poemas de Carlos Drummond de Andrade. A
relação, na maioria das vezes, não é manifesta, pois o seu trabalho é
tecido por meio de uma intertextualidade implícita5. Algumas operações
estilísticas utilizadas pelos escritores da literatura moderna brasileira
estão presentes na construção de suas composições. Destaco as
seguintes: I. A inserção do cotidiano ("Logo eu?", "Cotidiano'); II. A
linguagem coloquial ("Meu caro amigo", "Feijoada completa"); III. A
concisão ("A Rita", "Iracema voo"); IV. A ironia ("Acorda amor"; "Partido
alto"); VI. A utilização da paródia ("Doze anos", "Até o fim").
Algumas dessas constantes estéticas também podem ser
percebidas na construção musical stricto sensu, uma vez que o contato
entre os signos musicais e literários faz com que um sistema de
significação afete o outro. Há, portanto, uma "contaminação feliz"
(WISNIK, 2004, p. 218) entre os elementos advindos da literatura
moderna e os componentes musicais. Nesse processo de
"contaminação", vemos que o material literário manifesta-se no
musical por meio de arranjos econômicos e elaborados com uma
textura musical leve, de melodias com poucas notas e da voz cantada
de forma mais intimista. As gravações da bossa nova contribuíram
para estabelecer essa nova estética, em especial o trabalho de João
Gilberto, músico que procura atingir o perfeito equilíbrio entre o texto
e a melodia através do canto falado, do violão tocado em contraponto
com a voz e da eliminação de tudo que seja capaz de desintegrar a
estabilidade dos elementos formadores dessa composição. No mesmo
registro, o disco As cidades é um dos trabalhos de Chico Buarque que
se filia a essa concepção músico-literária.

IV Paisagens furta-cor: a modernidade do disco As cidades

O álbum As cidades foi lançado no ano de 1998, após um hiato


de três anos sem Chico Buarque entrar em estúdios de gravação. Duas
décadas já se passaram, mas o disco ainda continua despertando o
interesse do público ouvinte de MPB, de músicos especializados e de

Utilizo esse termo na mesma concepção de Ingedore Villaça Koch. Para essa estudiosa, a
5

intertextualidade implícita é um processo de construção textual em que não há a citação expressa


da fonte, "cabendo ao interlocutor recuperá-la na memória para reconstruir o sentido do texto,
como nas alusões, na paródia, em certos tipos de paráfrase e de ironia" (KOCH, 2011, p. 63).

54 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


pesquisadores de música popular em geral. A sonoridade, os arranjos
e a capacidade de interpretação da realidade urbana brasileira tornam
essa obra uma das mais significativas de seu cancioneiro. O cenário
apresentado nas canções, de lá para cá, não se modificou
drasticamente: as Iracemas continuam indo para os Estados Unidos
tentar uma vida mais próspera, embora a política para o
estabelecimento de estrangeiros nesse país esteja cada dia mais rigorosa;
as meninas "peitinhos de pitomba" continuam vendendo suas
bugigangas em Copacabana; os trabalhadores rurais zanzando periferia
afora; o carnaval e a Mangueira garbosos, girando como cata-vento e
os poetas e cantores, com mil refletores, ainda sonham em conquistar
suas Cecílias.
Trata-se de um disco que procura expressar a multiplicidade de
vozes e de culturas do Brasil contemporâneo, suas "paisagens furta-
cor". É possível notar que o compositor pretendeu captar a dinâmica
da vida urbana brasileira em suas diversas matizes, mostrando,
sobretudo, os personagens que estão fora do "quadro oficial", como
malandros, prostitutas, imigrantes em situação irregular, trabalhadores
sem-terra, vendedores ambulantes. Um exame da capa do disco,
elaborada pelo artista gráfico Gringo Cardia, é o primeiro passo para
entendermos o seu conteúdo sonoro, pois nela o rosto de Chico Buarque
aparece transfigurado em diferentes etnias: negra, nórdica, oriental e
árabe. Essas imagens criam um painel do Brasil, um país mestiço, onde
a confluência de várias etnias delineou uma cultura bastante complexa
e contraditória.
O álbum é formado por onze composições: "Carioca", "Iracema
voou", "Sonhos sonhos são", "A ostra e o vento", "Xote da navegação",
"Você, você", "Assentamento", "Injuriado", "Aquela mulher", "Cecília",
"Chão de esmeraldas". Dessas obras, quatro são regravações. Em termos
gerais, ouvimos canções que evitam tanto a dicção acentuadamente
política que marcou alguns discos de Chico Buarque na década de
1970 - Construção (1971) e Sinal Fechado (1974) -, quanto uma
marcação rítmica mais dançante. Dessa forma, o disco apresenta
texturas musicais menos densas, um tratamento orquestral centrado
nas cordas friccionadas e um acompanhamento harmônico conduzido,
principalmente, pelo violão.
"Iracema voou" é uma das obras do disco que se tornou mais
conhecida pelo público. O elemento mais visível de sua composição é a
síntese, recurso muito caro à poesia modernista. São apenas duas
estrofes, mas não nos enganemos com sua extensão, pois nelas se

Pesquisa e Música 55
desenrola uma estória com espaço, personagens, confluência de tempos,
intertextos:
Iracema voou
Para a América
Leva roupa de lã
E anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá

Tem saído ao luar


Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita
Uns dias, afoita
Me liga a cobrar:
- É Iracema da América

(HOLLANDA, 2006, p. 415)

O tema abordado, muito atual, é a migração de mulheres


brasileiras, que buscam condições de vida melhor nos Estados Unidos
(América). As dificuldades encontradas no percurso são muitas, como
a comunicação em língua estrangeira ("Não domina o idioma inglês"),
o estabelecimento no mundo do trabalho ("Lava chão numa casa de
chá"), a ilegalidade ("Não dá mole pra polícia/ Se puder vai ficando
por lá"), as condições climáticas ("Leva roupa de lã e anda lépida") e a
distância da terra natal ("Tem saudade do Ceará"). No entanto, Iracema
"vai ficando por lá" enquanto for possível e, nos momentos de saudade,
ela procura manter contato com o Brasil por meio de telefonemas ("Uns
dias afoita / Me liga a cobrar").
Alguns procedimentos de "Iracema voou" se inter-relacionam com
o modernismo. A letra poética dessa canção é eminentemente visual,
composta de recortes narrativos, embora possamos extrair dela uma
estória; o discurso é coloquial, a situação apresentada pelo eu lírico é
concreta, calcada nas pequenas experiências cotidianas. Ademais, a
letra poética trava um nítido diálogo com a tradição literária brasileira,
no caso com o romance Iracema, de José de Alencar.

56 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


É possível fazer um paralelo entre as duas Iracemas. O eu lírico,
que só se apresenta no final (Uns dias afoita/ me liga a cobrar),
desenvolve uma narrativa que aproxima as duas personagens: elas
são cearenses, deixaram a família para se aventurar em outra vida e
representam um confronto de diferentes culturas, já que existe um
contato amoroso com a figura do estrangeiro (Tem saído ao luar/
Com um mímico). O que Chico Buarque faz, na realidade, é uma espécie
síntese atualizada do romance de José de Alencar. O escritor cearense
nos alerta para a violência existente na fundação da cultura brasileira,
representada pelo conflito entre o homem branco e os ameríndios.
Moacyr, representante dessa síntese tensa, é o filho da dor, é o resultado
de uma cultura edificada em virtude de intermináveis combates
sangrentos.
A letra de Chico Buarque também ressalta o conflito entre
diferentes culturas, mas agora em outra pauta, posto que os
instrumentos de dominação do mundo contemporâneo são mais
refinados, estão para além de uma ideologia centralizadora. Recorro
ao pensamento de Michel Foucault, que contesta a existência de uma
forma global de poder, mostrando que este possui uma forma capilar
de existir, está no nível dos indivíduos e "atinge seus corpos, vem se
inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem,
sua vida quotidiana" (FOUCAULT, 2006, p. 131). Chico Buarque explora
esses formatos difusos do poder em sua canção, mostrando que ele se
revela por meio das relações de trabalho (Lava chão numa casa de
chá), pela linguagem (Não domina o idioma inglês) e através do
discurso da arte (Vê um filme de quando em vez). Em última análise,
o compositor realizou uma reconstrução da tradição, indicando que o
universo indianista narrado no romance de José de Alencar ganhou
novas configurações no cenário brasileiro contemporâneo. Ao
escutarmos a canção de forma analítica ficamos com a impressão de
que, na realidade, as duas Iracemas são muito semelhantes, pois elas
representam, apesar da distância histórica, as variadas formas de
colonização presentes no Brasil.
Um breve exame da sonoridade criada pelo arranjo de Luiz
Cláudio Ramos pode nos ajudar a compreender determinados aspectos
da letra poética. O tratamento musical procura não sobrepujar o texto,
por isso ele cresce - no que se refere à textura e à dinâmica - de forma
gradativa, fazendo com que a voz do cantor permaneça em destaque.
A primeira vez que a canção é cantada na íntegra, o acompanhamento
é realizado por dois violões. Em sua repetição, são inseridos novos
timbres (cordas friccionadas, piano, contrabaixo) e a marcação rítmica

Pesquisa e Música 57
da bateria. Essa gradação sonora reforça o sentimento de aflição de
Iracema que, "afoita", chega a ligar a cobrar para sua terra natal.
Sugestivo também é a proximidade dessa canção com o estilo do foxtrote
norte-americano. A presença desse ritmo, além de cumprir com uma
função de localização espacial da personagem (a música, por si só, é
capaz de situá-la no ambiente dos Estados Unidos), imprime uma
elegância, típica do gênero musical, que não deixa a letra resvalar
para um sentimento de angústia e dor.
Em "Injuriado", Chico Buarque cria um eu lírico que manda um
recado desaforado para o seu interlocutor, bem ao estilo das obras de
Noel Rosa. Na época de seu lançamento, a canção foi entendida por
alguns analistas e apreciadores de música popular como uma crítica
destinada ao político Fernando Henrique Cardoso, que havia chamado
Chico de artista da elite tradicional, um compositor "convencional". O
cancionista negou esse fato em entrevista dada à Folha de São Paulo
em 1998, dizendo que associar a sua música com o político tratava-se
de "uma piada", pois jamais chamaria FHC de "meu bem"6.
Essa controvérsia em torno da canção, apesar de não ser
essencial para entendê-la, mostra que há uma ambiguidade em seu
conteúdo, o que a torna mais sugestiva em seus aspetos literários.
Estaria o eu lírico mandando um recado para um desafeto ou se trata
de uma mensagem ressentida de um sujeito separado de seu objeto de
desejo? Há, de fato, uma tensão não revolvida, porque a letra aponta
para as duas isotopias7: uma desavença entre dois desafetos e uma
separação amorosa.

Se eu só lhe fizesse o bem


Talvez fosse um vício a mais
Você me teria desprezo por fim
Porém não fui tão imprudente
E agora não há francamente
Motivo pra você me injuriar assim
Dinheiro não lhe emprestei
Favores nunca lhe fiz
Não alimentei o seu gênio ruim

6
A referida entrevista foi realizada por Pedro Alexandre Sanches para a Folha de São Paulo em
novembro de1998. In: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq06119835.htm. Acesso em:
20 de ago. 2018.
7
A isotopia é o conjunto de procedimentos que dá coerência semântica ao texto e garante ao
discurso-enunciado a homogeneidade. Para José Luiz Fiorin (2011, p. 112), ela se revela através
de recursos como reiteração, redundância, repetição e a recorrência de traços semânticos.

58 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Você nada está me devendo
Por isso, meu bem, não entendo
Porque anda agora falando de mim

(HOLLANDA, 2006, p. 415)

A ligação da letra com a escrita de Noel Rosa é significativa, pois


esse compositor foi um dos que estabeleceram no discurso da música
popular uma dicção mais natural. Utilizando-se de procedimentos
poético-musicais até então pouco usuais - como o tom coloquial, a
ironia refinada, a linguagem harmônica cheia de engenho, a
estruturação da música em partes diferentes -, ele firmou a imagem
do malandro carioca e de um Rio de Janeiro tomado pela ideia de
modernidade. Suas obras foram elaboradas com um claro tom de
crônica do cotidiano, antes mesmo da consolidação das ideias poéticas
do Modernismo de 1922. Em sua maioria, as canções de Noel
apresentam um sujeito lírico que narra, de forma despojada e repleta
de humor, assuntos prosaicos do dia-a-dia, como a vida boêmia pelas
ruas e bares da capital carioca, a hipocrisia da sociedade, as mulheres
interesseiras, o malandro que zomba do mundo do trabalho. "Mulher
indigesta", por exemplo, é uma mensagem - na realidade uma ofensa
- dirigida à mulher que tenta conter as pulsões eróticas do homem
(Mas que mulher indigesta!/ Merece um tijolo da testa/ Essa mulher
não namora/ Também não deixa ninguém namorar/ É um bom center-
half pra marcar/ Pois não deixa a linha chutar).
O texto de Chico Buarque, em diálogo com a obra de Noel Rosa,
é marcado por um tom prosaico e por uma oralidade própria de uma
conversa espontânea, tendo em vista as diversas expressões: "Não
alimentei seu gênio ruim", "Dinheiro não lhe emprestei", "Você nada
está me devendo". Em "Injuriado", se fizermos uma leitura a partir da
isotopia de uma separação amorosa, o eu lírico mostra-se ressentido
por conta dos comentários ruins a seu respeito ("Por isso, meu bem,
não entendo" / "Porque anda agora falando de mim"), embora ele não
tenha alimentado o "gênio ruim" de seu objeto de desejo. O sujeito, de
forma irônica, ainda diz que não foi "tão imprudente", indicando que
também cometeu erros em sua relação.
Luiz Tatit (2016, p. 134) disse que os cancionistas "são peritos
em estabelecer relações entre melodia e letra e em produzir ilusões
enunciativas". Geralmente, quando querem mandar um recado para
alguém, eles utilizam a primeira pessoa e simulam a enunciação dentro
do enunciado. A esse modelo composicional o pesquisador atribuiu o

Pesquisa e Música 59
nome de canções figurativizadas. "Injuriado", na mesma linha de "Meu
caro amigo" e "Jorge Maravilha", é uma típica canção figurativizada,
pois nela a melodia se molda às instabilidades da prosódia, "dando-
nos a impressão de que as frases cantadas poderiam também ser frases
ditas no cotidiano" (TATIT, 2016, p. 126).
Os aspectos musicais dessa canção reforçam determinados efeitos
de sentido da letra. "Injuriado" é um samba construído a partir de
uma economia de timbres: violão, bateria, piano e contrabaixo. A
introdução é elaborada simplesmente com dois compassos, nos quais
o acorde de função tônica é tocado sucessivas vezes, resultando em
uma impressão de imediatez. Dito de outro modo: a introdução passa
a sensação de que o sujeito lírico deseja dar seu recado com veemência
e de forma mais breve possível. Em síntese, as marcas de oralidade da
letra, o registro prosaico, a melodia que acompanha os influxos e as
instabilidades prosódicas da fala, o tratamento musical marcado pela
concisão e o uso da ironia fazem de "Injuriado" uma obra que dialoga
com expedientes estéticos do modernismo.
Retrato que mimetiza a dinâmica do quotidiano do Rio de
Janeiro, "Carioca" é uma canção que resume a concepção geral do
disco. As paisagens fragmentadas da cidade, os diferentes tipos de atores
sociais, as formas de catarse coletiva e o mundo do trabalho são tópicos
abordados pela letra. Aqui, temos uma linguagem poética
eminentemente visual, orquestrada com um ritmo que remete à fluidez
de planos cinematográficos:

Gostosa
Quentinha
Tapioca
O pregão abre o dia
Hoje tem baile funk
Tem samba no flamengo
O reverendo
No palanque lendo
O apocalipse
O homem da Gávea criou asas
Vadia
Gaivota
Sobrevoa a tardinha
E a neblina da granja
O povaréu sonâmbulo
Ambulando
Que nem muamba

60 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Nas ondas do mar
Cidade Maravilhosa
És minha
O poente na espinha
Das tuas montanhas
Quase arromba a retina
De quem vê
De noite
Meninas
Peitinhos de pitomba
Vendendo por Copacabana
As suas bugigangas
Suas bugigangas

(HOLLANDA, 2006, p. 413)


Os versos estão dispostos de uma maneira que nos faz sentir um
efeito de simultaneidade, pois o que existe neles é uma sobreposição e
não uma concatenação de ideias - um dos procedimentos mais
defendidos por Mário de Andrade em A escrava que não era Isaura. Os
versos iniciais de cada estrofe da letra (Gostosa/ quentinha/ Tapioca;
Vadia/ Gaivota/ sobrevoa a tardinha; De noite/ meninas/ Peitinhos de
pitomba) são estruturados de forma que nos transmitem a ideia de
síntese e rapidez. A sintaxe da letra obedece ao influxo poético do autor-
compositor, que apresenta uma sequencia de cenas do dia-a-dia, e não
à construção de uma sequencia lógica do discurso. Mais uma vez, vejo
aqui um diálogo intertextual com o pensamento estético
marioandradiano, quando o escritor paulista atestou que os poetas
modernistas não abandonaram por completo a sintaxe gramatical,
mas buscaram uma construção fraseológica "mais enérgica, sugestiva,
rápida e simples" (ANDRADE, 2010, p. 48).
A cidade representada na letra é o Rio de Janeiro da modernidade,
repleto de contradições próprias de uma sociedade que surgiu a partir
da confluência de diferentes culturas (o baile funk, o samba, a
religiosidade, a prostituição), "a civilização encruzilhada" de que nos
fala Chico Buarque em outra música de sua autoria, "Estação
derradeira". Em "Carioca", o eu lírico exalta a beleza de sua cidade
(Cidade Maravilhosa/ És minha / O poente na espinha/ Das tuas
montanhas/ Quase arromba a retina/ De quem vê), mas reconhece
também os problemas trazidos pelos processos abruptos de urbanização
do país, como a prostituição e a segregação social (De noite/ Meninas/
Peitinhos de pitomba/ Vendendo por Copacabana/ As suas bugigangas/
Suas bugigangas). É possível afirmar, portanto, que o olhar do sujeito

Pesquisa e Música 61
lírico para a cidade do Rio é, a um só tempo, encantado e crítico.
Dentre as obras do disco que se relaciona estritamente com a
literatura canônica destaca-se também "Sonhos sonhos são", que possui
uma letra mais densa do que as demais, composta por imagens oníricas
e, assim, fugindo do estilo coloquial de Chico Buarque. Aqui,
certamente, é o momento em que o cancionista e o escritor mais se
aproximaram estilisticamente, pois o clima onírico dessa canção é
muito semelhante ao ambiente narrativo do romance Estorvo (1991).
O lirismo moderno de "Sonhos sonhos são" evidencia-se em sua
imagens inusitadas, em suas divagações poéticas e na sensação que o
texto passa, assim como "Carioca", de simultaneidade sonoro-visual.
Porém, ao invés de paisagens visuais e sonoras do cotidiano do Rio de
Janeiro, esta obra traz uma confluência de países e de situações
imaginadas, criando uma tensão entre sonho e realidade:

Negras nuvens
Mordes meu ombro em plena turbulência
Aeromoça nervosa pede calma
Aliso teus seios e toco
Exaltado coração
Então despes a luva para eu ler-te a mão
E não tem linhas tua palma

Sei que é sonho


Incomodado estou, num corpo estranho
Com governantes da América Latina
Notando meu olhar ardente
Em longínqua direção
Julgam todos que avisto alguma salvação
Mas não, é a ti que vejo na colina
Qual esquina dobrei às cegas
E caí no Cairo, ou Lima, ou Calcutá
Que língua é essa em que despejo pragas
E a muralha ecoa

Em Lisboa
Faz algazarra a malta em meu castelo
Pálidos economistas pedem calma
Conduzo tua lisa mão
Por uma escada espiral
E no alto da torre exibo-te o varal
Onde balança ao léu minh'alma

62 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá
Que sonho é esse de que não se sai
E em que se vai trocando as pernas
E se cai e se levanta noutro sonho

Sei que é sonho


Não porque da varanda atiro pérolas
E a legião de famintos se engalfinha
Não porque voa nosso jato
Roçando catedrais
Mas porque na verdade não me queres mais
Aliás, nunca na vida foste minha

(HOLLANDA, 2006, p. 417)

Como o próprio título alude, a letra é inspirada na peça de teatro


A vida é sonho, do dramaturgo espanhol Calderón de la Barca. Não
pretendo fazer um resumo de toda a narrativa dessa obra, mas é
importante apresentar uma fala do protagonista, presente na "Segunda
jornada". Após ter vivido um mundo de privilégios e pompas no palácio
de seu pai, Segismundo é forçado a ingerir uma bebida feita com ervas,
o que lhe faz dormir profundamente. Por ter se comportado como um
tirano, ele é levado à masmorra em que passou grande parte de sua
vida. Clotaldo, fidalgo responsável pelo príncipe, procura convencê-lo
de que sua estadia no palácio havia sido apenas um sonho. Segismundo,
em resposta, profere o conhecido monólogo:

Eu sonho que estou aqui


de correntes carregado
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.

(DE LA BARCA, 2009, p. 72).

Essa passagem da peça é uma das mais significativas, pois é o


momento em que Segismundo faz uma síntese de toda a sua trajetória,
concluindo que "a vida é sonho/ e sonho sonhos são". A letra de Chico

Pesquisa e Música 63
Buarque explora outras temáticas que estão para além da questão da
oposição binária sonho/realidade, como o tema da disjunção amorosa,
mas não há como negar o diálogo empreendido com o poeta espanhol,
a começar pelo próprio título da canção. Os seguintes versos são
bastante reveladores, porque, como na peça, eles colocam em crise o
fio invisível que separa o mundo real do mundo dos sonhos: "Que sonho
é esse de que não se sai/ E em que se vai trocando as pernas / E se cai
e se levanta noutro sonho".
Em "Sonhos sonhos são", as imagens poéticas, composta de
recortes da memória do sujeito lírico, apontam para uma estética mais
preocupada em expressar um lirismo poético do que precisamente em
apresentar uma mensagem verbal clara. Alguns versos são reveladores:
"E no alto da torre exibo-te o varal" / "Onde balança ao léu minh'alma"
e "Então despes a luva para eu ler-te a mão" / "E não tem linhas tua
palma". O texto de Chico Buarque faz uma junção, pouco usual no
universo da música popular brasileira, do tema lírico amoroso (Aliso
teus seios e toco/ Exaltado coração) com o tema das relações políticas
(Sei que é sonho / Incomodado estou, num corpo estranho/ Com
governantes da América Latina), através de uma linguagem visual e
metafórica que suplanta a mensagem verbal. Esse clima de tensão
lírica entre realidade e devaneio, aliada a uma sintaxe não linear, nos
faz lembrar novamente do pensamento estético de Mário de Andrade
(2010, p. 56) para quem o poeta deveria substituir "a ordem intelectual
pela ordem do subconsciente".
Os mesmos efeitos poéticos da letra podem ser observados na
estrutura musical da canção. O arranjo de Luiz Cláudio Ramos é
composto por um colorido timbrístico (acordeom, cordas friccionadas,
percussão com instrumentos latinos, violão, baixo, bateria) que
potencializa o clima de algo fantástico8. As frases tocadas pelas cordas
friccionadas, por meio de um constante movimento de notas
ascendentes e descendentes, transmitem a sensação de instabilidade,
como a própria realidade cambiante apresentada pela letra. Na mesma
direção, a densidade musical aumenta de forma gradativa - isto é,
novos timbres são incorporados ao arranjo -, de acordo com a
intensificação da atmosfera de delírio existente no plano do texto.

Tárik de Souza, em sua crítica "A lira atemporal de Chico Buarque", afirmou que no arranjo de
8

"Sonhos sonhos são" há inspiração literária. Segundo informações do crítico, o violonista Luiz
Cláudio Ramos declarou que o seu arranjo seguiu a linha do realismo fantástico de Gabriel García
Márquez. In: http://www.chicobuarque.com.br/critica/crit_cidade_lira.htm. Acesso em: 20 de
ago. 2018.

64 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


V CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto estético traçado por Mário de Andrade, em livros como


A escrava que não era Isaura e Ensaio sobre a música brasileira, encontrou
apoio não apenas de escritores da literatura canônica e de músicos
eruditos, pois gêneros de música popular urbana como a bossa nova
parecem ter dado continuidade às ideias do poeta modernista. Inclusive
as gerações posteriores ao surgimento da bossa nova, formada por
compositores como Edu Lobo e Chico Buarque, no mesmo diapasão,
estabeleceram relações dialógicas com o estilo modernista.
O disco As cidades é um exemplo, como vimos, de um trabalho
que busca uma contenção retórica, que procura captar as experiências
fragmentadas do cotidiano das urbes, por meio de um registro poético
que engendra um efeito, tão defendido pelo escritor paulista, de
simultaneidade. Embora composto de canções que exploram diferentes
temáticas, esse álbum possui uma visão estética que se aproxima das
ideias marioandradianas, em especial com as que estão registradas no
livro A escrava que não era Isaura, obra em que o poeta modernista
desenvolve uma espécie de arte poética do Modernismo, uma vez que
ele propõe um modo específico de conceber e de fazer poesia.
Na linha teórica da semiótica da canção, argumentei que o
julgamento da letra poética separado de sua estrutura musical é
insuficiente para apreendermos os efeitos de sentido gerados pelo
discurso cancional. Desse modo, os procedimentos que fazem uma
letra de canção funcionar de forma eficiente são diferentes dos
procedimentos utilizados para a escrita de um poema stricto sensu,
por isso mesmo a canção popular "não precisa ser legitimada pela poesia
literária" (MELLER, 2015, p. 91). No entanto, nas análises aqui
apresentadas, mostrei que, mesmo sabendo da ligação orgânica entre
o elemento discursivo e o musical, o exame das canções de Chico
Buarque a partir do diálogo travado com a tradição literária brasileira
é determinante para percebermos a tessitura poética de suas letras.
Isso porque o cancionista pensa em aspectos literários que, conforme
vimos, não são considerados pela maioria compositores populares, visto
que ele explora o potencial de sedução da palavra, independente de
sua inteligibilidade.
À guisa de conclusão, entendo ser necessário responder, de modo
mais expresso, a seguinte questão: De que forma os elementos músico-
literários das canções do disco As cidades estão relacionados com o
pensamento estético de Mário de Andrade? Percebo que as canções
desse disco - em especial "Iracema voou", "Injuriado", "Carioca" e

Pesquisa e Música 65
"Sonhos sonhos são" - inter-relacionam-se com o pensamento estético
do poeta paulista por meio de dois procedimentos principais: I - Em
relação ao plano da letra, há um processo de construção que mantém
estreita ligação com a série literária. As letras buscam atingir a síntese
e a rapidez do lirismo moderno, além de um efeito poético polifônico.
Para tanto, procuram se desvencilhar da sintaxe linear (a seriação dos
planos), engendrando uma linguagem que mimetiza a dinâmica das
cidades, entendidas como espaços multifacetados, sem zonas definidas,
em virtude do processo de globalização. II - Em relação ao plano da
música, há uma relação substancial entre o processo de criação poética
do texto e a concepção musical. Isso pode ser observado nos arranjos
musicais concisos, compostos com texturas musicais leves e fortemente
interligados com o conteúdo das letras.

REFERÊNCIAS

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algumas tendências da poesia modernista. Rio de Janeiro: Nova
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66 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


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Janeiro: Globo Livros, 2013.

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68 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


ELOMAR
ELOMAR:: O Trovador Contemporâneo.
Trovador
Caio César Viana de Almeida1
Feliciano José Bezerra Filho2

Enveredando pelo campo branco

Partindo do pressuposto de que não é possível, numa pesquisa


acadêmica de qualquer sorte, abarcar todos os matizes de um objeto
de estudo, posso confirmar a necessidade de um recorte epistemológico,
visto que as possibilidades de análise e perspectivas críticas são muitas.
Para tanto, utilizei arcabouços teóricos da literatura e da música, no
notório ponto de interseção entre o sistema musical propriamente dito
e o sistema linguístico: o gênero literário canção.
Apesar de a produção elomariana não ser composta apenas de
canções, foi a esse gênero que o autor mais dedicou esforço criativo,
se aproximando, em diversas ocasiões, dos menestréis e trovadores
medievais, principalmente no que tange à técnica de composição.
Como específicos objetos de análise escolhi quatro canções nas
quais é recorrente o personagem "Violeiro", sujeito cuja sina é errar
pelo mundo para contar e cantar histórias, ora narrando-as, ora
protagonizando-as, contribuindo para manter vivos o imaginário e a
memória do povo do sertão, com sua religiosidade sincrética, sua ética
e seus valores morais.
Antes de iniciar a apresentação das quatro canções selecionadas,
é importante apresentar os álbuns nos quais foram publicadas, a
começar pelo disco "Auto da Catingueira", por sua importância no
conjunto da obra elomariana.

Docente do IFPI, Mestre em Letras pela UESPI. Endereço eletrônico: caioviana@ifpi.edu.br


1

Docente da UESPI. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Endereço eletrônico:


2

felicianofilho@uol.com.br

Pesquisa e Música 69
Esse álbum foi lançado no ano de 1983 por uma editora e
gravadora independente, a "Rio do Gavião", propriedade do próprio
Elomar, que, a partir de seu segundo álbum, desligou-se da grande
gravadora Philips/Polygram, alegando necessidade de maior liberdade
criativa. O álbum completo consiste de um livro de capa dura em
formato quadrado contendo o enredo da ópera, as letras das canções,
textos do narrador, partituras e dois discos de vinil com a gravação.
Além dos componentes sonoros e textuais, a publicação conta com
ilustrações do artista plástico e professor baiano Juarez Paraíso, cujo
percurso artístico é tão robusto quanto o de Elomar. O livro traz também
um glossário para os termos do dialeto catingueiro e comentários
críticos e elucidativos organizados pela dupla de pesquisadores Ernani
Maurílio e Adelina Renault.
Segundo Massaud Moisés (2004, p. 45), o termo "auto"
corresponde a toda peça breve de tema religioso ou profano, encenada
na Idade Média com intenção de propagar os valores da fé católica.
No Brasil esse gênero literário e teatral ficou conhecido no século XVI,
através do trabalho do Padre José de Anchieta, que compunha e
encenava "autos" para catequizar os povos indígenas e africanos. Na
variante brasileira do auto, foram assimilados elementos das matrizes
culturais indígenas e africanas, e o gênero acabou por se tornar
autêntica manifestação folclórica teatral na qual o enredo era
composto, além do texto teatral puro, de cantos e danças.
Em "Auto da Catingueira" Elomar aproxima-se uma vez mais
dos compositores medievais quando escreve uma peça com estrutura
semelhante ao correspondente arcaico, uma vez que é de curta duração,
tem enredo simples e linear e apresenta temas sobrenaturais e religiosos.
Todavia, por apresentar referências às matrizes culturais indígenas,
como no uso de alguns nomes e termos em idioma tupi, confirma
características do "auto" brasileiro.
O corpo da peça é desdobrado em cinco cantos, sendo os dois
primeiros desenvolvidos inteiramente pelo narrador, que conta,
cantando, a biografia de Dassanta, a protagonista do auto. Trata-se
de uma mulher trabalhadora do sertão, que cria cabras, planta e colhe,
fazendo de tudo para sobreviver na terra seca do sertão. Ainda no
início da narrativa, ela conhece o personagem Francisco das Chagas,
tropeiro retirante vindo das terras do norte em busca de uma vida
melhor. O romance entre os dois evolui ao longo do quarto e do quinto
Cantos, culminando em um desafio de cantoria entre Francisco das
Chagas e o cantador profissional, pelo amor de Dassanta.

70 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


No terceiro canto, temos a descrição dos encontros da
protagonista com as coisas do sagrado, durante seu pastoreio de cabras,
quando experiencia a percepção do sobrenatural e assombrado. No
quarto canto, Dassanta já está estabelecida, vivendo com o Tropeiro,
sendo que, na famosa canção "O pidido", ela pede que ele lhe traga
umas coisinhas da feira da cidade. No quinto e último canto, vemos
registrados desafios de cantoria, sendo citadas diversas formas de
cantoria sertaneja, como gabinete, ligeira, martelo, moirão e coco.
Esse desafio termina com a morte de Dassanta e dos dois pelejadores,
cumprindo-se a sentença dada pelo narrador durante a Bespa.
O que pude concluir, ao me debruçar sobre o documento da ópera,
foi que Elomar apresenta um panorama dos elementos que usa para
arquitetar sua obra: a paisagem do sertão, o sincretismo religioso, os
costumes, a realidade árida da seca, bem como as manifestações da
cultura do sertanejo e da memória do povo. Conforme corroboram
Maurílio e Renault (1983, p. 6) no livro que compõe o álbum do Auto
da Catingueira,

[...] nada na história do Auto é inventada. Elomar apenas


organiza no cantar fatos e relatos ouvidos nas feiras, nas
rodas de fogueira e fogão de lenha em suas viagens e
andanças; porque quem viaja tem sempre histórias para
contar, mas também não é só narrativa. Não se trata apenas
de narrar um fato, mas sim de expor a emoção em situações
concretas.

Em 1972, Elomar lançou seu primeiro álbum completo, chamado


"Das Barrancas do Rio Gavião", incluindo uma canção do "Auto da
Catingueira": "O pidido", canção das mais conhecidas pelo público em
geral, e que foi gravada por grandes intérpretes da música brasileira,
como Elba Ramalho, Andréa Daltro, Roze Durval, Xangai, Teca Calazans
e Luciana Monteiro de Castro. A escolha desse LP em especial se deu
pelo fato de que há nele um excelente registro da peça "O Violeiro",
uma das quatro analisadas nesta dissertação.
João Paulo Cunha, no livro que acompanha a coleção dos 15
volumes do Cancioneiro de Elomar, comenta sobre o primeiro álbum
do autor:

A poética do primeiro LP de Elomar concentra os temas do


imaginário do artista, que foi desdobrando as intuições
iniciais em canções populares, narrativas dramáticas e peças
de caráter sinfônico e operístico [...]. As canções que

Pesquisa e Música 71
compõem Das Barrancas do Rio Gavião trazem em germe os
temas, linguagem, musicalidade e visão de mundo foram
ganhando a dimensão de um maciço com o tempo. Há em
Elomar uma lógica fractal, em que cada pequena peça parece
trazer todo um conjunto de inspirações e, ao mesmo tempo,
se torna elemento fundamental para o entendimento da
construção completa. (CUNHA, 2008, p. 20)

O disco traz canções que retratam tanto a dureza e a aridez do


sertão, quanto o lirismo mais enveredado para a poética ibérica
trovadoresca, através da representação de memórias infantis e mitos
do imaginário sertanejo, bem como histórias de cavaleiros, reis e rainhas
dentro do universo fantástico de sua obra. Como se tudo acontecesse
num tempo paralelo. Para Cunha (2008, p. 21), "o tempo paralelo não
é uma derivação da história, mas de outro caminho real, que se
desdobra simultaneamente. Os personagens de Elomar não falam do
mundo antanho como metáforas, e sim como vivências reais e
presentes", sendo essa uma característica bastante forte no
cancioneiro elomariano.
Em 1978, Elomar lançou seu segundo LP, intitulado "Na Quadrada
das Águas Perdidas". Pelo fato de o artista usualmente lançar mão do
dialeto sertanês em suas canções, a partir do segundo álbum, foram
inseridos glossários e comentários elucidativos para encurtar a
distância entre o apreciador urbano e a linguagem própria dos
moradores caatingueiros. Dessa vez, essa serviço ficou a cargo de
Ernani Maurílio, o mesmo autor que, juntamente com Adelina Renault,
redigira a elucidação do texto do "Auto da Catingueira", onze anos
depois.
Sobre esse álbum Cunha (2008, p. 34) comenta:

Com 20 canções, o disco traz mais quatro temas de "O Auto


da Catingueira" e quatro da peça "O Tropeiro Gonsalin",
trabalho do começo dos anos 1970, ainda não conhecido
integralmente. "Na Quadrada das Águas Perdidas" tem ainda
exemplos de canções de fundo místico, crônicas de sucessos
e "bramuras" (desastres), temas populares nordestinos mais
singelos, formas de religiosidade popular, serestas e algumas
canções de forte apelo trovadoresco. Nestas, quase sempre
se distanciando do uso do idioma que se tornou marca
registrada do compositor, a linguagem se inclina para o uso

72 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


precioso e antigo, que tem raízes musicais nos cantos ibéricos,
com suas heranças mouras, e fontes literárias nas cantigas
de amigo. Entram em cena Fidalgos, donzelas, mucamas e
ciganos.

Desse álbum escolhi a "Chula no Terreiro" como objeto de análise,


apesar de, como comentado por Cunha (2008), o disco incluir algumas
canções do "Auto", como a "Bespa", que é também integrante do corpus
selecionado.
A primeira canção proposta como objeto de análise, intitulada
"Bespa", é a abertura da ópera "O Auto da Catingueira", lançada em
disco no ano de 1983, na qual o cantador pede licença ao espectador
para narrar o enredo da referida ópera. Maurílio e Renault ( 1983,
p.10 ) explicam que o termo Bespa

[...] é uma introdução à cantoria; nela se definem os temas,


os cantos, as histórias. De um modo geral é invocada a
atenção dos circunstantes, de Deus e dos Santos, pois o
cantador "transfere" a sua inspiração para as coisas do Eterno.
A tradição da Bespa é ibérica, pois já no Canto Primeiro dos
"Lusíadas", Camões abria com uma invocação de proteção
aos Deuses.

Na canção "O Violeiro" (primeira faixa do álbum "Nas Barrancas


do Rio Gavião"), o personagem apresenta sua ética de artista e justifica
porque tem autoridade para se apresentar como um verdadeiro
cantador e violeiro. Em "Chula do Terreiro" (sexta faixa do álbum "Na
Quadrada das Águas Perdidas"), o "Violeiro" exprime em cantoria a
falta que sente de companheiros seus, que sumiram do mundo depois
de saírem em busca de uma vida melhor no sudeste do Brasil. Na quarta
canção selecionada, intitulada "Desafio", o "Violeiro" demonstra seu
domínio de diferentes estilos de composição e improvisação em um
desafio de cantoria. Essa canção faz parte do 5º canto da ópera "Auto
da Catingueira.
As quatro peças foram esquadrinhadas com base na semiótica
da canção a partir da aplicação de duas isotopias desenvolvidas por
Luiz Tatit (2010): força entoativa x forma musical e canção temática
x canção passional. Isotopia é um par de valores semióticos opostos
que oscilam ao longo do percurso gerativo de sentido discursivo. Como
analogia poderíamos colocar as letras "A" e "B" como valores opostos.
Ao longo do discurso o valor isotópico "A" representaria o primeiro
ponto de extremidade, enquanto "B" representaria o outro extremo.

Pesquisa e Música 73
Ao longo do discurso, "A" poderia ganhar força em detrimento do
enfraquecimento de "B", e vice e versa, ou mesmo o discurso poderia
estar em equilíbrio entre as duas isotopias, sem fortalecer ou
enfraquecer nem "A" nem "B".
Em nosso caso, por exemplo, a força entoativa estaria para "A",
assim como a forma musical estaria para "B". Ao ouvirmos uma canção
de rap, veríamos fortalecida a força entoativa e, quanto mais próximo
de um recitativo chegássemos, mais atraído estaria o discurso para
esse valor, ao passo que, ao apreciarmos a performance de um cantor
de ópera, perceberíamos, em alguns casos, que o canto tornar-se-ia
quase ininteligível, aproximando-se de uma performance instrumental
qualquer. Assim, se alimentaria o valor forma musical, enquanto a
força entoativa estaria perdendo força.
A semiótica da canção, desenvolvida por Luiz Tatit (2010), baseou
muito de seus procedimentos de análise na teoria da semiótica tensiva
de Claude Zilberberg, o qual, por sua vez, aprofundou sua teoria de
investigação do sentido discursivo a partir das contribuições do
semioticista lituano Algirdas Julien Greimas, nas décadas de 1960 e
1970.
Zilberberg (2011) explica que a semiótica tensiva é um conjunto
de pressupostos teóricos e ferramentas metodológicas que visam
encontrar unidades mínimas de sentido, bem como compreender os
percursos geradores de sentidos em diferentes camadas semióticas que
coexistem paralelamente na estrutura de um texto. Para isso estabelece
que há um sujeito enunciador de um discurso que tem como meta
alcançar um sujeito receptor, sendo que, nessa relação comunicativa
esses sujeitos assumem diferentes papéis, dependendo da maneira que
engendram o discurso.
Zilberberg (2011) comenta ainda que em todo discurso há
situações de conjunção e disjunção, seara na qual a semiótica tensiva
estuda os mecanismos conjuntivos e disjuntivos inerentes ao percurso
de geração do sentido de um discurso qualquer.
De uma maneira geral, o que fazemos ao aplicarmos os
procedimentos da semiótica tensiva é encontrar no texto valores de
comparação opostos que sejam equivalentes aos valores tensivos de
conjunção e disjunção. Aqui é onde entram em cena as isotopias,
citadas anteriormente.
Tatit (2002) esclarece que a semiótica da canção se baseia em
parte nas relações tensivas observadas por Zilberberg (2011) no que
diz respeito à produção de sentido textual, mas suas contribuições
foram além, uma vez que tem como objeto de estudo a poesia cantada,

74 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


levando em consideração fenômenos especificamente musicais, como
a construção rítmica e melódica, as variações de tessitura, o timbre, a
forma musical e, ainda, a influência dessas manifestações nos percursos
de geração de sentido das canções.
Ao pesquisar a fortuna crítica produzida sobre Elomar e sua obra,
foi possível constatar que não há, especificamente, investigação do
fazer lítero-musical do autor desenvolvida sob as lentes analíticas da
semiótica da canção.

O Príncipe da Caatinga

Elomar Figueira Mello nasceu na Fazenda Boa Vista, situada na


região de Vitória da Conquista - Bahia, no dia 21 de dezembro de 1937.
Conviveu desde cedo com a religiosidade, costumes e a
musicalidade do sertão, escutando cantadores como Zé Krau, Zé Guelê,
Zé Tocadô e hinos evangélicos, sempre que ia às celebrações da Igreja
Protestante, acompanhado de sua família. Ouviu ainda pelo rádio
outros compositores e intérpretes, como Luiz Gonzaga, Zé do Norte e
Carlos Gomes (GUERREIRO, 2007).
Na adolescência, Elomar Figueira ampliou seu conhecimento de
história da música, passando a apreciar a música erudita europeia,
principalmente as peças renascentistas. Nesse período estudou violão
clássico e teoria musical na capital da Bahia, enquanto cursava o
Científico. Aos 18 anos, tornou-se violonista concertista, executando
a obra de compositores consagrados no âmbito da música erudita,
como Villa Lobos, Alberto Nepomuceno, Enrique Granados, Francisco
Tárrega, entre outros.
No ano de 1956, interrompeu o curso Científico3 em Salvador
para servir o exército, sendo obrigado a voltar para sua terra natal,
Vitória da Conquista.

Assim, conhece com mais profundidade a música nacional


urbana, a seresta, o samba tradicional e o tango argentino,
junto a amigos, primos, poetas e cantores. (...). Naquelas

No Brasil, até 1967, o que hoje chamamos de Ensino Médio era dividido em três opções de
3

cursos. O curso Normal (destinado a formação de professores), curso Científico (dava ênfase ao
estudo das ciências exatas) e curso Clássico (maior aprofundamento na área de letras clássicas e
filosofia), conforme Decreto-lei n° 4244, de 8 de abril de 1942, documento que estabelecia os
parâmetros da educação básica brasileira. (BRASIL, 1942).

Pesquisa e Música 75
rodas era comum declamar poemas e romances de Castro
Alves, Omar Kayyan. Alphonse Lamartine, Rabelo da Silva,
Raimundo Correia, Luís de Camões e cantar em serestas
Francisco Alves, Noel Rosa, Carlos Galhardo, Vicente
Celestino, Augusto Calheiros, Silvio Caldas, Orlando Silva,
Ary Barroso e Mário Lago. (GUERREIRO, 2007, p. 29).

Dois anos mais tarde, Elomar concluiu o Científico, estando já


bastante envolvido com a vida cultural de Salvador. Em 1959, foi
aprovado no curso superior de Arquitetura, voltando para sua terra
natal em 1964, já diplomado na profissão que levaria paralelamente à
de concertista e compositor, até os dias hoje.
Em entrevista4 concedida a Simone Guerreiro, Elomar comentou
a existência de três sertões: um sertão contemporâneo, um sertão
clássico (arcaico) e o Sertão Profundo. Para ele, existe um sertão
geográfico, afastado dos grandes centros urbanos, longe do litoral e
esquecido, ignorado pelas autoridades. Nessa mesma geografia, Elomar
confronta o sertão arcaico com o sertão contemporâneo, sendo o
primeiro o lugar onde viveu seu pai e que Elomar ainda conseguiu
alcançar. É de onde vêm a mitologia, os costumes e o "dialeto sertanês",
presentes na sua obra como um todo. Já o segundo é o sertão da
atualidade, o lugar que já sofreu a influência da televisão e da
contemporaneidade. Elomar afirma que seus personagens e histórias
não cabem nesse sítio material, por isso ele criou o Sertão Profundo,
uma espécie de universo inventado onde os costumes do sertão clássico,
o mágico e o misterioso são uma coisa só. É desse sertão imaginário
que extraio um recorte para este estudo: a canção "O Violeiro", peça
que fez com que o personagem "Violeiro" passasse a ser confundido
com a figura do próprio Elomar.
De acordo com Guerreiro (2007), Elomar já é bastante
reconhecido no meio acadêmico por conta da riqueza de sua obra,
visto que articula a cultura nordestina popular com a cultura erudita
europeia, características evidentes nos procedimentos de composição
adotados por ele tanto no campo musical, quanto no campo da poesia.
Elomar escreveu inclusive algumas óperas e romances de cavalaria, o
que ilustra sua facilidade em transitar por linguagens artísticas
distintas.

Entrevista concedida na Fazenda Santa Cruz, Lagoa Real - BA, em agosto de 2006. (GUERREIRO
4

2007, p. 284).

76 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Os Sertões de Elomar

O poeta, compositor e diplomata carioca Vinicius de Moraes


escreveu o seguinte comentário na abertura do primeiro álbum de
Elomar, "Das Barrancas do Rio Gavião":

Pois assim é Elomar Figueira de Melo: um príncipe da


caatinga, que o mantém desidratado como um couro bem
curtido, em seus trinta e quatro anos de vida e muitos séculos
de cultura musical, nisso que suas composições são uma sábia
mistura do romanceiro medieval, tal como era praticado
pelos reis-cavaleiros e menestréis errantes e que culminou
na época de Elizabeth, da Inglaterra; e do cancioneiro do
Nordeste, com suas toadas e terças plangentes e suas canções
de cordel, que trazem logo à mente os brancos e planos
caminhos desolados do sertão, no fim extremo dos quais
reponta de repente um cego cantador com os olhos comidos
pelo glaucoma e guiado por um menino-anjo, a cantar
façanhas de antigos cangaceiros ou "causos" escabrosos de
paixões espúrias sob o sol assassino do agreste. (...) E... quem
sabe não vai ser lá, no barato das galáxias e da música de
Elomar, que eu vou acabar amarrando um bode definitivo e
ficar curtindo uma de pastor de estrelas [...].

Na época, em que foi lançada essa publicação, o compositor


baiano tinha ainda 34 anos e, embora jovem, já apresentava uma
erudição ímpar, sendo que, de acordo com o comentário de Vinícius,
já era possível perceber a ponte que ligava os muitos séculos da tradição
da poesia e música europeia às manifestações culturais próprias do
Nordeste brasileiro não litorâneo.
O autor consegue como poucos traduzir a lida de quem vive no
semiárido, tanto nas narrativas, quanto no uso da linguagem, que em
certos momentos é apresentada no uso harmônico do dialeto e do
português vernáculo. Ao mesmo tempo que representa os costumes e
a linguagem de maneira realista, insere sua miscelânea de histórias
num universo fantástico, paralelo ao sertão geográfico. E é nesse
mesmo lugar que habitam os cavaleiros, os reis, o mitológico sincrético,
o sobrenatural e o sagrado, configurando o tal de Sertão Profundo ou
absoluto, tal qual nomeia o príncipe da caatinga e menestrel
contemporâneo Elomar.
Prosseguimos com a discussão sobre a paisagem cultural
chamada sertão, a maneira como o autor lança mão do dialeto sertanês

Pesquisa e Música 77
e a proximidade que há entre o fazer artístico de Elomar e o fazer
artístico medieval.
Comecemos a partir da etimologia da palavra "sertão", termo
que adquiriu diversas conotações ao longo da história do seu uso,
conforme os estudos da pesquisadora baiana Jerusa Pires Ferreira
(2004).
O intelectual cearense Gustavo Barroso (1962, p. 17) afirma que
"nenhuma palavra é mais ligada à história do Brasil e, sobretudo, à do
Nordeste do que a palavra sertão". Segundo esse autor, o vocábulo
"sertão" teria provavelmente derivado de um vocábulo da língua banto
de Angola, sendo produto da transformação da palavra "mulcetão".
Já para Câmara Cascudo (2012) a palavra sertão teria vindo do
termo latino "desertanu", transformado em "desertão" e, por fim, em
"sertão", uma forma contrata do suposto vocábulo original.
Joseph Piel (1961) propõe que a palavra "sertão" poderia ter sido
derivada do latim "sertum", plural do substantivo "serta", que poderia
ser traduzido como tranças, grinaldas ou coroa. Nesse caso específico,
diria respeito ao que está entrelaçado, fazendo referência à vegetação
da caatinga, que é contínua, entrelaçada e fechada.
Esse autor esclarece ainda que o vocábulo "sertão só é registrado
do século XV em diante", apontando para o fato de que se pode pensar
que se trata de um termo estrangeiro empregado para atender à
necessidade de nomear territórios remotos nas novas terras descobertas
pelos portugueses no período das grandes navegações. O termo acaba,
assim, por se tornar "signo linguístico da expansão portuguesa, depois
é que se tornou expressão bastante abrangente para se fazer referência
a diversos cenários da geografia brasileira.
No Brasil a palavra "sertão" foi usada tanto para fazer referência
ao território do semiárido nordestino, quanto para outras regiões não
necessariamente secas e pouco amigáveis à vida. Segundo Ferreira
(2004, p. 29), "De um lado, Sertão estaria ligado ao conceito de
fertilidade da terra, de abundância vegetal, de mata, e por outro lado,
encontra-se o sentido de aridez de despovoamento que remeteria à
acepção de deserto".

Pode-se acompanhar a transformação social de um vocábulo,


seu crescimento expressivo em função de condições de várias
espécies, literárias ou extraliterárias, sociais, políticas etc.
O que se afirma, sem medo de equívocos, é que, no Brasil,
este vocábulo desenvolveu significação de oposição a litoral
e, em condições brasileiras, sertão estaria sempre em interior.

78 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


No Nordeste, em circunstâncias que se conhece dirigiu-se a
significação para a preexistente conotação de aridez,
documentada em parte nos textos antigos. Inospitalidade da
natureza, povoado, ermo (FERREIRA, 2004, p. 35).

Portanto, por mais que não seja possível escolher um único


caminho semântico para o vocábulo, a noção de território afastado,
isolado, arcaizante e mantenedor de traços linguísticos e costumes
contrastantes com os da contemporaneidade é o que mais nos interessa,
visto que é por meio dessa condição de isolamento que Elomar Figueira
Mello consegue delinear o seu Sertão Profundo.
Da multiplicidade semântica e das várias possibilidades de origem
do termo "sertão", tecerei alguns comentários acerca da ocorrência de
duas variedades do "sertão elomariano": o sertão político-geográfico e
o Sertão Profundo.
O sertão político é marcado pelas fronteiras entre os estados
brasileiros, compreendendo oficialmente a fração interiorana dos
estados do Nordeste brasileiro e o norte de Minas Gerais. Esse sertão,
que é integrante do território da Bahia, é o que menos interessa a
Elomar, uma vez que ele representa o sertão tal qual um estado
independente do restante da Bahia, um território enormemente vasto,
grande o suficiente para caber seu universo ficcional, o Sertão Profundo.
O próprio Elomar, em entrevista concedida a Simone Guerreiro
em agosto de 2006 e transcrita em anexo da publicação Tramas do
Sagrado (2007), comenta: "[...] vislumbrei [...] - esse sertão imaginário
onde pudessem viver meus personagens e correrem soltos, pra eu não
ficar preso à ordem vigente, política, econômica, social, que é realmente
opressora." (GUERREIRO, 2007, p, 287). Na mesma entrevista, Elomar
acrescenta que seu sertão imaginário e arcaico existiria numa dobra
do tempo, fazendo referência ao conhecimento que tem de física
quântica. Segundo ele, ao longo desse território imaginário, estariam
espalhados portais para que seus personagens, em momento oportuno,
cruzassem a fronteira do sertão político-geográfico, onde imperam as
leis do estado democrático de direito, bastante destoantes das leis que
regem o Sertão Profundo, as leis de Deus, da Bíblia e os dez
mandamentos.
Guerreiro (2007, p. 214) define o tal estado do sertão como
realização do desejo do compositor de "afirmar a identidade sertaneja,
nos moldes como a define e valorizar a cultura ibérica e medieval", a
fim de contrastar identidade sertaneja à identidade do Recôncavo
Baiano, região litorânea da Bahia. É nesse território inventado que

Pesquisa e Música 79
Elomar, ainda segundo Guerreiro (2007, p. 215), "constrói uma
geografia distinta, particular, inventada e, simultaneamente,
encantada, onde abriga a cultura do sertão não representada pela
baianidade oficial".

O que é denominado geografia inventada refere-se ao


mapeamento cultural, histórico e linguístico que o compositor
faz do Estado do Sertão, sobretudo, da região sudoeste da
Bahia, norte de Minas Gerais e, por extensão remota, a faixa
interiorana de todos os estados do Nordeste, ou seja, o semi-
árido. Estes locais são circunscritos numa realidade concreta,
no entanto, é traçada uma geografia ficcional, literária, com
dimensões, no mais das vezes, fantásticas [...] (GUERREIRO,
2007, p. 214).

Cometeria eu um pecado se não destacasse a importância do rio


Gavião como símbolo gerador de sentido da poética do sertão
elomariano, porque é desse rio que emana a fertilidade e se mantém a
organização social, dele também emanando a beleza cruel do sertão.
Por outro lado, se o rio está seco, provoca êxodo rural, desintegra
famílias e traz morte e decadência, o que faz com que o vínculo do
homem com a terra onde nasceu e se estabeleceu fique enfraquecido.

[...] configura-se, em torno do rio, uma poética do


enraizamento que se realiza como canto da trágica condição
humana, da errância e do sentido, de abrigo e de fundamento.
Na voz dos retirantes exilados em terra alheia, esta poética
funda-se como celebração da pátria, da aldeia, do tempo
lúdico da infância, pontes que permitem divulgar uma
geografia fantástica, extraordinária, inscrita num mundo
paralelo: o sertão profundo. (GUERREIRO, 2007, p. 215).

O Sertão Profundo, portanto, seria esse mundo paralelo que cabe


perfeitamente na geografia inventada por Elomar a fim de abrigar
sua mitologia, seus personagens e seus causos fantásticos e
maravilhosos.

80 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Futuca a tuia pega o catadô - o dialeto sertanês

1. Jusifina sai cá fora e vem vê


2. Olha nos fôrro ramiado vai chuvê
3. Vai trimina riduzi toda a criação
4. Das banda de lá do ri Gavião
5. Chiquêra pra cá já ronca o truvão
6. Futuca a tuia pega o catadô
7. Vamo plantar feijão no pó
8. Mãe Purdença inda num culheu o ái
9. O ái roxo essa lavõra tardã
10. Diligença pega panicum balai
11. Vai cum tua irmã, vai num pulo só
12. Vai culhê o ái, ái de tua vó
13. Futuca a tuia pega o catadô
14. Vamo plantar feijão no pó
15. L?a nova sussarana vai passá
16. Seda Branca na passada ela levô
17. Ponta d'unha l?a fina pisca no céu
18. A onça prisunha a cara de réu
19. O pai do chiquêro a gata cumeu
20. Foi um truvejo c'?a zagaia só
21. Foi tanto sangue de dá dó
22. Os cigano já subiru bêra ri
23. É so danos todo ano nunca vi
24. Paciênça já num guento a pirsiguição
25. Já sô um caco vei nesse meu sertão
26. Tudo que juntei foi só pra ladrão
27. Futuca a tuia pega o catadô
28. Vamo plantar feijão no pó

(Canção "Arrumação", Elomar Figueira Mello)

Escolhi essa icônica canção por sua quase total imersão no


dialeto catingueiro, também chamado por Elomar, com reverência, de
"dialeto sertanês" e de "dialeto roçaliano", e por apresentar, condensada
na letra, uma riquíssima crônica da vida no sertão. Essa peça ilustra o
uso da variedade linguística dialetal.
A canção "Arrumação", publicada pela primeira vez no álbum
"Na Quadrada das Águas Perdidas" (1979), conta o seguinte episódio:
o agricultor, que se apresenta como o experiente patriarca de uma
unidade de agricultura familiar, dá para a filha Josifina a instrução de
abrigar os animais de criação para que não padeçam na chuva que se
aproxima, anunciada pelo céu nublado. Aproveitando o anúncio de

Pesquisa e Música 81
chuva, ordena que a moça pegue as ferramentas para o plantio do
feijão, considerando ser o melhor momento para o plantio das sementes.
Pede também que Josifina chame sua irmã e vá, célere, colher o alho
plantado por sua avó, chamada Mãe Purdença, já que a tempestade
representava um grande risco de perda da lavoura, que demora mais
que outras culturas para ser colhida. O patriarca também lembra que,
com a chegada da lua nova, se aproximará de seu sítio a onça
suçuarana, que, da última vez, havia ceifado seu bode reprodutor,
causando-lhes prejuízo. Nos últimos versos, o agricultor expressa o
temor de ter suas posses usurpadas pelos ciganos que haviam chegado
à região próxima de sua propriedade. Configura-se assim um ciclo de
injustiças para com um homem idoso, visto que a integridade de suas
posses era constantemente ameaçada pelas intempéries, por predadores
e por ladrões. Mesmo assim, havia ainda a esperança representada
pela possibilidade de plantar o feijão antes da chegada da chuva,
aumentando a chance de crescimento exuberante e saudável da
lavoura familiar.
Darcília Simões (2012), no artigo intitulado "Parcela da Língua
Sertaneza de Elomar Figueira Melo", esclarece que, durante o
desenvolvimento da língua portuguesa período, a escrita era
inteiramente fonética, o que explica a ocorrência de mais de uma grafia
da mesma palavra num mesmo texto. A língua portuguesa escrita
apresentava assim grande variação dialetal, decorrente da necessidade,
na época, de se representar a fala de maneira icônica.
A pesquisadora comenta que, num dado momento, fez-se
necessária, por questões políticas, a formatação de um acordo
ortográfico, sob o pretexto de se unificar a escrita a fim de facilitar a
comunicação.

Sabe-se que a convenção ortográfica teve origem numa


observação de base política em relação à circulação da
informação numa dada língua. A invenção da imprensa e a
possibilidade de circulação documental do saber humano
fortaleceram os argumentos que defendem a ortografia. A
convenção ortográfica [...] afastou-se das bases da escrita
alfabética e instituiu uma forma fixa para cada palavra.
Congelada a palavra, deu-se a desvinculação entre o que se
fala e o que se escreve, sobretudo no que tange à dialetação.
Logo, não se pode esperar igual prosódia ou igual sotaque
de falantes de regiões e/ ou classes sociais diferentes.
(SIMÕES, 2012, p. 4).

82 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Elomar opta por representar de maneira realística a fala do
sertanejo, usando uma grafia peculiar e de característica fonética,
infringindo de certo ponto o acordo ortográfico vigente.
Simões (2012) analisa especificamente a canção "Parcela", do
álbum "Fantasia Leiga para um Rio Seco" (1981), porém, pelo fato de
a obra de Elomar se configurar de maneira fractal, os fatos constatados
na análise da pesquisadora acabam por entrar em consonância com
diversas peças da cancionística elomariana. Na análise, a linguista
identificou que Elomar utiliza metaplasmos comuns na fala dos
sertanejos e que o faz quando há interesse de empregar certa carga de
licença poética, além de aplicar construções neológicas variadas, não
só para retratar a fala local de maneira precisa, como para romper
com o acordo ortográfico vigente no português vernacular.

A escolha dos textos de Elomar pela abundância de fatos


lingüísticos depreensíveis na superfície textual (para além
das questões gráficas), materializa fatos fônicos, mórficos,
sintáticos, semânticos e estilísticos e propicia um passeio
produtivo pelo vernáculo. Fatos que ficam restritos a
comentários de natureza diacrônica vêm à tona num texto
contemporâneo, demonstrando que a mutabilidade é um fato
constante nas línguas vivas. (SIMÕES, 2012, p. 14).

Em "Arrumação", a ocorrência desses episódios é fortemente


manifesta, como, por exemplo, nos seguintes segmentos: a) "Josifina
sai cá fora e vem vê" (verso 1) - o verbo "ver" escrito foneticamente
torna-se "vê"; b) "L?a nova sussarana vai passá" (verso 15) - a palavra
"L?a" aparece escrita da maneira arcaica, conservando a grafia do latim,
já "sussarana" é um metaplasmo de "sussuarana", uma espécie de felino
grande; c) "O ái roxo essa lavôra tardã" (verso 13) - "alho" tona-se "ái"
e "lavoura" tona-se "lavôra", evidenciando a ocorrência de
monotongação; d) "Diligença pega panicum balai" (verso 10) - a
palavra "panicum" é uma construção neológica provavelmente derivada
de "pega um pano e um balaio", itens usados como instrumentos para
a colheita.
A maneira como o dialeto sertanês ocorre na poética elomariana
diz respeito a um campo semântico específico do povo nativo do sertão.
Muitos elementos do português arcaico e do latim, bem como certos
vocábulos oriundos de interações com matrizes culturais não ibéricas
permaneceram preservados pelo fato de que o sertão esteve por muito
tempo isolado do Brasil mais moderno, fato que tem mudado em

Pesquisa e Música 83
decorrência da globalização e do avanço das tecnologias de informação
e comunicação. Sobre a configuração lexical, Simões (2002, p. 32)
explica:

Como se sabe, a variação da língua é responsável por sua


evolução, por sua transformação. Os falantes, distribuídos
no tempo, no espaço físico, no espaço social, nas profissões
e ofícios, enfim, divididos em grupos distintos, realizam o
sistema linguístico peculiarmente, por meio dos dialetos ou
falares. De suas particularidades de atualização vão
resultando formas que se mostram estranhas, extravagantes,
difíceis de entender para falantes alheios àqueles usos. É
patente que, entre os fatores de alteração fonética, destacam-
se a imperfeição das imagens auditivas e a insuficiência ou
dificuldade fisiológica para reproduzir o som ouvido, a
acomodação da pronúncia, sob a ação das leis fonéticas,
atua determinantemente na configuração do léxico.

Não é meu objetivo aprofundar demasiado a discussão


linguística acerca do dialeto, porém os exemplos acima foram colocados
para que o leitor perceba a riqueza das construções poéticas de Elomar,
que rompem algumas convenções da escrita vernácula e recriam o
dialeto sertanês. Também permitem guardar palavras e formas arcaicas
do uso do português, servindo de alguma forma como documento
histórico.

Vamos andando fazer a função - poética elomariana e


oralidade

Admitir que um texto, num momento qualquer de sua


existência, tenha sido oral é tomar consciência de um fato
histórico que não se confunde com a situação de que subsiste
a marca escrita, e que jamais aparecerá [...] "a nossos olhos".
Então, trata-se para nós de tentar ver a outra face desse texto-
espelho, de raspar, ao menos um pouco o estanho. Lá atrás,
além das evidências de nosso presente e da racionalidade de
nossos métodos [...] (ZUMTHOR, 1993, p. 35).

Na passagem acima, o intelectual suíço Paul Zumthor destaca a


importância de se reconhecer que a propagação de textos orais precedeu
a propagação por meio da escrita. Por conta dessa descendência
histórica, é possível encontrar evidências dessa oralidade na superfície
textual. Existiria, portanto, salvo raríssimas exceções, em todo texto,

84 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


um certo "índice de oralidade", em maior ou menor medida. Conforme
Zhumthor (1993, p. 35), "Por 'índice de oralidade' entendo tudo o que,
no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz
humana em sua publicação". Ele cita as canções medievais como
exemplos de textos escritos que apresentam certo "índice de oralidade".
Segundo esse autor, nas canções datadas entre os séculos X e
XV, a notação das palavras era feita de maneira fonética, podendo no
mesmo texto aparecerem grafias diferentes para a mesma palavra,
numa tentativa de se indicar, com a maior precisão que a escrita
permitisse, qual sonoridade gerada era esperada de quem executasse
tais canções. Nos documentos em que havia notação musical, essas
indicações ficavam ainda mais evidentes, adquirindo valor de prova
indiscutível do tal "índice de oralidade".
Zumthor (1993) comenta ainda o fato de que, antes de a escrita
assumir posição exaltada na função de guardar e perpetuar as
tradições da cultura ocidental, era a oralidade que o fazia, segundo
ele, com semelhante competência. Grandes narrativas contando os
feitos dos antepassados, contos de cunho moral e educacional, ou
mesmo canções de amor e escárnio para fins de entretenimento eram
passadas de geração a geração por meio daqueles que chamou de
"detentores da palavra pública".

[...] O que os define juntos, por heterogêneo que seja seu


grupo, é serem (analogicamente como os feiticeiros africanos)
os detentores da palavra pública; é, sobretudo, a natureza
do prazer que eles têm a vocação de proporcionar: o prazer
do ouvido; pelo menos, de que o ouvido é órgão. O que fazem
é o espetáculo. (ZUMTHOR 1993, p. 57).

Eram eles os recitadores, os jograis, os menestréis, responsáveis


pela propagação dos textos, quando a palavra escrita ainda era
exceção, sendo prerrogativa apenas dos letrados.
Embora o contexto original de tais constatações fizesse referência
aos registros escritos da produção poética medieval em diversas
localidades da Europa, acaba sendo um tema oportuno para
abordarmos, visto que a obra de Elomar Figueira Mello apresenta certas
semelhanças com os textos medievais. O próprio compositor reconhece
a si mesmo como um "menestrel', um "trovador", o que, juntamente
com o fato de referir-se ao conjunto de suas obras cancionais como
"cancioneiro", denota uma clara tentativa de estabelecer ligação com
a tradição poético-musical ibérica.

Pesquisa e Música 85
Segundo Simone Guerreiro (2007), o próprio Elomar destaca três
de suas canções como feitas aos moldes da lírica galego-portuguesa.
São elas: Cantiga de Amigo; Incelença pro Amor Retirante e Canto do
Guerreiro Mongoió. A primeira remete à cantiga de amigo; a segunda,
à cantiga de amor; a terceira, à cantiga de escárnio e maldizer, embora,
segundo a pesquisadora, "em alguns aspectos, as composições se
distanciam do modelo ibérico e sofrem atualizações" (GUERREIRO,
2007, p. 193).
Carvalho Mello (2002) corrobora a opinião de Guerreiro (2007),
afirmando que relacionar as obras musicais de Elomar ao estilo
medieval é um ato leviano, pois as semelhanças com os métodos
medievais correspondem a uma pequena fração da obra elomariana,
visto que o compositor por diversas vezes se afasta da formalidade
estilística medieval e se aproxima, musical e poeticamente, de elementos
de outros estilos composicionais de épocas distintas na história da
música, com a incidência em sua obra de procedimentos renascentistas,
barrocos e até impressionistas.
Todavia o sertão nordestino representado na obra de Elomar
acabou por conservar diversos traços da cultura medieval ibérica
trazidos pelo colonizador português, os quais, segundo Guerreiro (2007,
p.190), "Estão presentes na cultura do sertão e são visíveis na
linguagem, narrativas e contos populares, manifestações da literatura
oral, novelas tradicionais, cordéis, dramatizações, folguedos, ainda que
de modo fragmentado."
Também presente se faz a figura do cantador, que é um músico,
um errante contador de histórias, propagador da cultura e das tradições
sertanejas, semelhante aos jograis e menestréis do medievo. Câmara
Cascudo (2012, p. 170) define "cantador" como

Cantor popular nos estados do nordeste, oeste e centro


brasileiro. É um representante legítimo de todos os bardos,
menestréis, glee-men, trouvéres, meistersängers,
minnesingers, escaldos, dizendo pelo canto, improvisando
ou memorizando, a história dos homens famosos da região,
os acontecimentos maiores, as aventuras de caçadas e de
derrubadas de touros, enfrentando adversários nos desafios
que duram horas ou noites inteiras, numa exibição
assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura
tradicional.

86 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


No Sertão Profundo, mundo idealizado por Elomar, onde passam
suas histórias e onde vivem seus personagens, a figura do cantador é
corriqueiramente encontrada. Ele aparece em diversas canções,
justamente como um artista errante, que narra e protagoniza histórias,
participa de desafios de cantoria, entretém seu público não só com
narrativas heroicas, mas também com líricas de amor e saudade. A
figura do cantador, em muitos momentos, figura sinonímica do
"Violeiro", é, com absoluta certeza, a que mais me chama atenção no
cancioneiro elomariano, por sua função de detentor da palavra pública,
conforme Zumthor (1993).

REFERÊNCIAS

BARROSO, Gustavo. À Margem da História do Ceará. Fortaleza:


Imprensa Universitária do Ceará. 1962.

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88 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


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Pesquisa e Música 89
(RE)Pensando o Ensino de Instrumentos
(RE)Pensando
Musicais a partir das Metodologias Ativas.

Cássio Henrique Ribeiro Martins1


Maria Isabel de Almeida2

Introdução

Neste artigo apresentamos resultados parciais de pesquisa que


tem como ponto de partida a constatação de que nas instituições de
ensino de música predomina um ensino de instrumento musical voltado
para a "transmissão do conhecimento", que diferentemente de orientar
o aluno para a produção do saber, para a construção do conhecimento,
para o pensar e o refletir para seu aprendizado de forma dinâmica,
orienta-o no sentido da repetição e da memorização de conteúdos.
Nessa circunstância estamos diante de uma prática pedagógica que
privilegia o professor, o ensino e a transmissão de informações, prática
considerada ultrapassada, tendo em vista a realidade do século XXI,
que na sua complexidade requer criatividade do professor e do aluno,
no movimento dinâmico de aprendizagem mútua, a rigor, empregando
metodologias ativas, dentre outros formatos de ensinar e de aprender.
Diversos autores têm destacado que esse ensino-aprendizagem
baseado em modelos tradicionais (transmissão oral mestre-aprendiz),
oriundos do século XVI e consolidados no século XIX (OLIVEIRA, 1990;
TOURINHO, 2007; ROCHA, 2015), com a criação dos conservatórios,
um modelo enraizado e com foco na transmissão de informações e de
conhecimentos coligados a aquisições de habilidades fisiológicas,
predomina nos tempos atuais.

1
Professor Adjunto na Graduação em Música da Universidade Federal do Piauí. E-mail:
martinscassio@yahoo.com.br
2
Professora Pós-Doutora e Livre Docente na Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo. E-mail: mialmei@usp.br

Pesquisa e Música 91
Segundo Kraemer (2000, p. 54), "as ações da teoria e da prática
pedagógico-musical estão voltadas para o tempo presente, mas ainda
ligadas a ideias de gerações passadas". Para esse autor, essa transmissão
oral ainda é muito presente no ensino-aprendizagem dos instrumentos
musicais, principalmente em aulas individuais. Hallan (1998, p. 232)
define a concepção do ensino de instrumento de duas formas: o ensino
como "transmissão do conhecimento" e como "facilitação da
aprendizagem". Segundo esse autor, em vez de usar uma abordagem
autoritária, em que o professor é o único detentor do saber, seria
interessante exercitar com músico em formação uma reflexão crítica
sobre seu aprendizado. Kerman (1987) acrescenta que essa transmissão
acontece mais por exemplificações, na utilização de linguagem
corporal, do que por palavras.
A necessidade de mudanças de estratégias educacionais na área
da música vai além da utilização de novas técnicas de ensino-
aprendizagem. A tarefa de lidar com novas e diferentes estratégias é
algo complexo e exige mudanças de hábito e paradigmas. Entre os
professores de música há a predominância de ensinar como se
aprendeu, ou seja, o ensino é centrado em estratégias funcionais
voltadas para a transmissão de informações. Esse hábito reforça a ação
de transmissão de conteúdos prontos, acabados e pré-determinados,
semelhantes a práticas pedagógicas.
No meio acadêmico tem crescido o reconhecimento da
necessidade de transformações na educação de profissionais de música
e de novas formas de trabalhar com o conhecimento musical. As
Instituições de Ensino Superior de Música têm sido provocadas a
exercitarem a reflexividade em torno dessa realidade a fim de
perceberem as mudanças necessárias no processo da educação musical,
reconhecendo a importância de seu papel social, bem como de enfrentar
os desafios atuais de romper com estruturas cristalizadas e com o
modelo de ensino tradicional para formar profissionais de música
capazes de atuar de forma criativa, interativa com os demais atores,
nos espaços de trabalho e nos demais espaços sociais. Este aspecto
coloca a importância de buscarmos métodos inovadores de ensino-
aprendizagem, centrados em uma prática pedagógica ética, crítica,
reflexiva e transformadora, ultrapassando os limites do treinamento
puramente técnico.
Assim, a presente pesquisa propõe-se a discutir as limitações da
estrutura de ensino transmissivo no atual contexto de transformações
sociais e tecnológicas e no sentido da viabilização de um ensino-
aprendizagem de instrumentos musicais friccionados centrado na

92 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


interação professor-aluno. Portanto, na consideração das visíveis
mudanças sociais, culturais e tecnológicas, entendemos que o alcance
desse objetivo promova um desdobramento de ações tais como:
repensamento acerca do processo de ensino-aprendizagem;
lançamento de um olhar mais atento e crítico para a formação de
professores de música no Brasil. Sendo assim, a perspectiva é que o
emprego de métodos ativos pode proporcionar condições para o
desenvolvimento de uma "didática fundamental" no entorno dessa
processualidade. Uma didática fundamental, na acepção de Candau
(2013), comprometida com as transformações sociais, com a busca
do conhecimento, com a reflexão sobre os componentes teoria-prática
que são indissociáveis. Portanto, uma didática fundamental cujas
discussões e resultados apontem para uma educação inclusiva e
democrática, nesse campo de estudo.

Sobre a Pesquisa

Trata-se de pesquisa em andamento, de caráter qualitativo com


enfoque fenomenológico, que recorre ao estudo bibliográfico e de caso,
emprega como instrumentos metodológicos a técnica de observação e
elaboração de diários de pesquisa e a análise documental. Apresenta a
seguinte questão norteadora da pesquisa: De que forma as metodologias
ativas ABP-Problema e ABP-Projetos podem contribuir, de forma
eficiente e significativa, para a construção de uma proposta de ensino-
aprendizagem dos instrumentos de cordas? Assim, propõe como
objetivo geral investigar como as metodologias ativas "ABP-Problema
e ABP-Projetos" contribuem para a construção de uma proposta de
ensino-aprendizagem dos instrumentos de cordas friccionadas,
centrada na interação professor-aluno.
Por conseguinte, ao final da pesquisa pretendemos apresentar
uma proposta didático-pedagógica fundamentada nas orientações de
metodologias ativas, com a intenção de avançar na formulação de
proposituras teórico-metodológicas significativas para o ensino-
aprendizagem dos instrumentos musicais. Nesse sentido, foram
selecionados dois projetos sociais no Brasil para investigar o processo
de ensino-aprendizagem dos instrumentos de cordas. A principal
justificativa dessa escolha reside no fato de se tratar de duas instituições
de excelência no ensino coletivo e tutorial e de referência no meio
musical.
Iniciamos a pesquisa com a leitura e análise dos Projetos Políticos
Pedagógicos de duas instituições buscando compreender as diretrizes

Pesquisa e Música 93
político-pedagógicas presentes nesses documentos, as orientações aos
processos formativos de professores e alunos que usam instrumentos
de cordas; como são formalizadas as competências didático-
pedagógicas construídas durante o desenvolvimento das práticas
pedagógicas de docentes e como se desenvolvem os conhecimentos, as
habilidades, as capacidades práticas e teóricas dos discentes que usam
esses instrumentos.
Após a leitura dos dois PPPs, iniciamos a observação do processo
de ensino-aprendizagem dos projetos. A realização das observações
do ensino-aprendizagem com os instrumentos de cordas foi registrada
por meio de um diário de prática pedagógica. Para uma melhor
organização do que seria observado, dividimos o diário em categorias:
1- O contexto socioeducativo; 2- O processo formativo docente/
discente; 3- Os saberes docentes e discentes; 4- O desenvolvimento das
práticas docentes; 5- Uso de metodologias ativas. Com essa
configuração, tivemos uma visão do ensino-aprendizagem desses
instrumentos musicais, como os professores e alunos atuam nesse
processo.
Durante a etapa da observação dos projetos foi possível perceber
que os professores dominam os saberes voltados para o tocar do seu
instrumento, mas a maioria das aulas é ministrada no modelo centrado
na transmissão, repetição e memorização de conceitos e habilidades
técnicas. Esse achado do campo de investigação reforça a justificativa
de nossa pesquisa, pois evidencia a necessidade de repensarmos o
processo de ensino-aprendizagem de professores e estudantes de
instrumentos de cordas nos projetos sociais. Para tanto, é preciso buscar
novas metodologias de ensino-aprendizagem que transcendam o
modelo tradicional de ensino, centrado na transmissão e repetição de
conteúdo.
Acreditamos que as metodologias ativas podem se mostrar
favorecedoras da autonomia dos alunos e fortalecedoras da motivação
pelo aprendizado dos instrumentos de cordas nos dois projetos.
Investigamos como as "Aprendizagem baseada em problemas" e
"Aprendizagem baseada em projetos" podem transcender esse modelo
de ensino-aprendizagem e promover práticas mais criativas e
significativas a todos os estudantes de instrumentos de cordas. Para
tanto, vários autores vêm nos ajudando com suas teorias a
compreender o fenômeno social em estudo e situar nossa pesquisa no
contexto do ensino-aprendizagem em metodologias ativas e do ensino
dos instrumentos musicais (coletivo e tutorial).

94 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Caminhos Rumo ao Emprego de Metodologias Ativas

Almeida (2012, p. 72) afirma que o desafio posto aos docentes é


colocar-se como mediador das aprendizagens dos alunos, uma vez que
"a multiplicidade de possibilidades de acesso ao conhecimento requer
auxílio para a sua assimilação". Para essa autora, mediar a relação
dos alunos com o conhecimento é articular a teoria e a prática numa
perspectiva transformadora, ou seja, é saber-fazer com que os alunos
trabalhem o conhecimento nas dimensões de sua aquisição, produção
e socialização, e tenham apoio para acessá-lo, problematizando-o,
recriando-o. Essa perspectiva é orientadora da formação, segundo a
mesma autora, contrapõe-se à concepção dita tradicional, que sustenta
a proposta de que o ensinar é transferir conhecimentos e de que os
alunos se formam sendo meros reprodutores de técnicas, hábitos,
pensamentos e ações, repassados/praticados pelo professor. Ensinar,
segundo esse ponto de vista, para Pimenta e Anastasiou (2002, p. 183),
"se identifica com "transmitir, de geração a geração, os valores, os modos
de pensar, os costumes e as práticas".
Portanto, é a partir dessa perspectiva que, de acordo com Almeida
(2012), se embasa o entendimento de que o ensino seja algo estático
que, muitas vezes, deixa de criar espaço para as características e
necessidades dos sujeitos em formação. Assim, um dos complexos
desafios da educação musical nos dias atuais é conseguir desenvolver
uma prática pedagógica consistente, criativa, dinâmica e efetiva no
ensino musical, sem deixar que esse ensino se transforme em práticas
repetitivas, obsoletas, não convergentes com a realidade educacional
requerida pelo momento e, principalmente, requerida pelo conjunto
dos futuros profissionais do campo musical, notadamente, aqueles que
decidiram pela vertente formativa dos instrumentos de cordas
friccionadas.
Freire (2007, p. 47), em seu livro "Pedagogia da Autonomia:
saberes necessários à prática educativa", discorre no capítulo dois que
"ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades
para a sua própria produção ou a sua construção". O autor destaca
que ensinar é criar condições para que os estudantes possam construir
e produzir conhecimento, ao contrário de apenas receptores ou
depositários desse conhecimento. É preciso vivenciar o conhecimento
e não apenas recebê-lo. É necessário produzir conhecimento e socializá-
lo, de modo que, realmente, a construção dos saberes seja eficiente.
Freire aponta para o processo de migração do ensinar para o aprender

Pesquisa e Música 95
e para a mudança do foco do professor para o aluno, em que este
passa a assumir também a responsabilidade pelo seu aprendizado e a
valorizar o processo do aprender com desenvoltura e autonomia. Assim,
o processo que centraliza a aprendizagem no estudante valoriza a
autonomia e, consequentemente, desenvolve o potencial da
aprendizagem.
Em decorrência dessa compreensão, dizemos que o bom professor
é aquele que instiga seu aluno a buscar a apreensão da realidade com
comprometimento e motivação e juntos se relacionam de forma
dialógica na busca de uma educação decente e inovadora. Nesse
sentido, é necessário reconhecermos o ensino como uma arte prática,
que requer criatividade, intuição e improvisação docente para resolver
satisfatoriamente situações, conforme afirmam Pearson e Cage (1989,
apud CONTRERAS, 2002). Nessa mesma direção, Cunha comenta: "[...]
aprender não é estar em atitude contemplativa ou absorvente, frente
aos dados culturais da sociedade, e sim estar ativamente envolvido na
interpretação e produção destes dados" (CUNHA, 1989, p. 31).
Ampliando essa discussão, Candau (2013) refere que a didática
no contexto de ensino-aprendizagem precisa ser repensada, devendo
buscar uma "didática fundamental", que valorize a
multidimensionalidade do ser humano em seu processo formativo,
incluindo o aprender e o avaliar, o que implica abandonar a "didática
instrumental", na qual o professor é alguém que detém o saber e o
aluno é alguém que apenas o imita. Ausubel (1982) defende que o
conhecimento prévio do aluno é a chave para uma aprendizagem
significativa, ou seja, um fator importante que repercute positivamente
no aprendizado do aluno. Desconsiderar esses aspectos, ocorre o que
Ausubel define como aprendizagem mecânica, ou seja, uma
aprendizagem que não interage com conceitos importantes existentes
na estrutura cognitiva dos alunos, de modo que estes passam somente
a decorar conteúdos e a realizar procedimentos ensinados pelos
professores. Ainda segundo esse autor, para que, de fato, haja uma
aprendizagem significativa são necessárias duas condições: (i) é preciso
existir uma disposição do aluno para aprender algo e (ii) o conteúdo a
ser aprendido tem que ser potencialmente lógico e psicologicamente
significativo para o aluno.
Outros autores, como Bruner (1971; 1977) e Dewey (1973),
trazem também contribuições significativas para o ensino-
aprendizagem. Defendem uma participação ativa do aluno no processo
de aprendizagem. Bruner argumenta que ensinar não é transferir
conhecimentos, mas ensinar o aluno a pensar e a resolver problemas

96 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


por si mesmos, aprender por descoberta. Considerando essa percepção,
os professores devem criar situações em que os alunos, por meio da
solução de problemas, descubram o conteúdo que vai ser aprendido e
incorporado em sua estrutura cognitiva (MOREIRA, 1999). A base da
pedagogia Deweyana fundamenta-se na aprendizagem pela
experiência, ou seja, uma educação prática, que permite ao aluno
construir e reconstruir o conhecimento a partir de situações concretas.
Moreira (1999) destaca que Dewey sempre insistiu na necessidade de
estreitar/considerar a relação teoria-prática. Na sua concepção, o
aprendizado se dá quando compartilhamos experiências, quando
trocamos experiências e ideias e quando, no dia a dia, alcançamos o
sucesso educacional. Assim, é necessário orientar o aluno a pensar de
forma reflexiva, crítica também, a entender, a exemplo de Dewey, ao
dizer que a melhor maneira de aprendermos é considerar todos esses
aspectos, associando-os, articulando-os, ao processo investigativo
(MOREIRA, 1999).

Cenário Contemporâneo de Ensino-Aprendizagem dos


Instrumentos Musicais

Iniciamos este subitem reforçando que o ensino-aprendizagem


dos instrumentos musicais ainda está baseado em modelos de ensino
que têm como foco a transmissão oral mestre-aprendiz. Emprega (ou
se orienta) um modelo individual, conhecido como modelo tutorial
(VASCONCELOS, 2001) que se fundamenta na transmissão de
informações e de conteúdos, aliados à obtenção de domínio de
habilidades técnicas e fisiológicas. Comparativamente, esse modelo tem
expressiva semelhança com o conhecido formato "mestre-aprendiz"
desenvolvido no artesanato, em que o artesão, de forma oral, transmite
tudo que aprendeu ao seu aprendiz, como nos dizem Pimenta e
Anastasiou (2002). Ou seja, um modelo que preza pela formação do
cantor e músico virtuoso e é voltado para o aprendizado da música
erudita ocidental (CERQUEIRA, 2009). Dessa forma, a pesquisa vem
confirmando que no Brasil, ainda, é bastante valorizado o predomínio
de um ensino de instrumento musical voltado para a "transmissão do
conhecimento" (HALLAN, 1998).
Resultados parciais dos dados de nossa pesquisa vêm
identificando que o ensino tutorial ainda é largamente utilizado nos
estudos e aprendizagens nos cursos de música, focando basicamente
no aprendizado da técnica instrumental contemplada em métodos,
tratados e sistemas de escalas e de repertórios, que, em grande parte,

Pesquisa e Música 97
são estrangeiros, formando músicos eruditos exclusivamente para
bandas e orquestras, como salienta Vasconcelos (2001, p. 7):

As imagens do solista e da orquestra têm sido elementos


recorrentes na configuração social, simbólica e na
organização pedagógica do ensino especializado, através do
nível de formalização, de organização, de estandardização,
da divisão do trabalho e das representações sociais.

No Brasil, o ensino-aprendizagem dos instrumentos musicais


ainda valoriza com certa predominância os modelos tutoriais de ensino
tradicional que focam na relação professor-aluno, em detrimento de
privilegiar um ensino ativo e coletivo. Nesse sentido, a pesquisa aponta
que esse modelo tradicional privilegia a poucos, principalmente porque
submete os estudantes a exames de habilidades técnicas específicas,
além de exigir desses estudantes o domínio de noções básicas para a
leitura e a execução de partituras musicais. Nesse modelo de ensino, o
professor detém o conhecimento e explica-o aos alunos, que por sua
vez, que exercem a tarefa de absorvê-lo, fazer anotações, memorizá-lo
conforme foi explicado, repassado pelo professor. Trata-se de um
formato de aula em que o aluno não tem participação ativa, tampouco
interativa. Essa modalidade de ensinar não prevê a participação do
aluno é mínima e se de algum modo acontecer essa participação
discente ela se apresenta de forma mínima, tendo em vista que a ênfase
principal consiste na reprodução de conteúdo em vez de buscar a
originalidade da criação artística do aluno. É, na verdade, como ressalta
Galamian (1962, p. 7): "o professor deve sempre ter em mente que o
seu objetivo máximo é tornar o estudante autossuficiente".
Como refere esse autor, o método que orienta o aluno para a
reprodução, para a repetição não conduz a esse resultado, dado que
segundo seu entendimento, a interpretação, primícia da execução
musical, não pode ser ensinada diretamente, porque apenas uma
concepção criativa e pessoal é verdadeiramente artística. A
interpretação de segunda mão, derivada do professor, não pode ser
considerada "genuína arte criativa", logo, essa forma de transmitir o
conhecimento e impor a sua própria interpretação a todos os alunos
não surte o efeito que se espera, nem para o aluno nem para o professor.
Recomenda, por conseguinte, que o professor deveria estimular a
iniciativa própria do aluno e, esforçar-se constantemente para que
este se aproprie dos conhecimentos musicais. Nesse sentido, fica claro
que, até mesmo para a pedagogia da performance, esse modelo não é
recomendado.
98 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.
Comporta dizer, também, que no ensino de instrumentos
musicais, o professor não precisa estar preocupado em fazer somente
com que os estudantes decodifiquem partituras, não deve estar
preocupado com execuções de modelos preestabelecidos ou com a
memorização de regras e sinais musicais, aspectos que não mais se
sustentam como os mais importantes a serem valorizados, seja para o
professor seja para o aluno, desde que entendamos que o processo de
ensino-aprendizagem que deve prevalecer e, portanto, ser valorizado,
é a criatividade do aluno, sua expressão artística e sua autonomia.
A propósito do modelo de ensinar (explicação/memorização)
considerado inadequado para o cenário contemporâneo do ensino-
aprendizagem de instrumentos musicais friccionados, no que concerne
à aula e a sua concretização a literatura registra que necessita revelar-
se uma relação conjunta e interconectada entre aquele que ensina
(professor) e aquele que aprende (aluno), ambos articulados com o
objeto de conhecimento, razão por que, na atualidade, não combina
com a expressão "dar aula", visto que a aula em si no contexto das
metodologias ativas, é um acontecimento pedagógico. É um momento
mágico. Nela, o professor transforma, pedagogicamente pelos processos
cognoscentes, na sua ação prática, a matéria enquanto conteúdo a
ser comunicado, discutido, estudado.
Mesmo assim considerada, ainda representa um modelo que vem
sendo difundido e praticado desde a implantação dos primeiros
conservatórios e escolas de músicas especializadas no Brasil do século
XIX (ROCHA, 2015) e que, na maioria das vezes, é justificado como a
melhor forma de conseguirmos resultados eficientes, pois valoriza a
exclusividade de atenção a um único estudante, não atentando para o
fato de que significativa parte de nossas aprendizagens ocorrem em
comunidade, uns com os outros, de forma coletiva, interativamente.
Sendo assim, nosso objeto de estudo centra-se na ideia de que o
ensino-aprendizagem dos instrumentos musicais deve ser interativo e
dinâmico, a partir de um ensino sistemático, coletivo, eficiente, crítico-
reflexivo, ativo e inovador, convergindo com as ideias de Perrenoud
(2000, p. 11) quando diz, em seu livro Novas competências para ensinar,
que "prática reflexiva, a profissionalização, o trabalho em equipe e por
projetos, autonomia e responsabilidade crescentes, pedagogias
diferenciadas" são aspectos imprescindíveis ao desenvolvimento de
práticas docentes inovadoras.

Pesquisa e Música 99
Metodologias Ativas no Ensino de Instrumentos Musicais

As metodologias ativas de ensino-aprendizagem, no âmbito da


educação, têm suas bases teóricas sustentadas nos ideais e fundamentos
da escola ativa, motivo pelo qual são conhecidas, também, como
"Metodologias Ativas", "Escola Nova" "Pedagogia Nova" e
"Escolanovismo". A Escola Nova foi um movimento renovador de
ensino surgido no final do século XIX e início do século XX (DI GIORGI,
1992), que veio contrapor-se ao modelo de ensino considerado
"tradicional", apresentando uma concepção moderna e humanista de
educação.
O movimento da Escola Nova ganhou força no Brasil,
particularmente no ano de 1932, a partir do Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova, que objetivava a defesa de um sistema único de
ensino, de uma educação ativa e funcional, com um currículo que
atendesse aos interesses dos alunos, a qualificação de professores
(formação universitária), a universalização da escola pública, leiga,
laica e gratuita (LEMME, 2005), sobre esse movimento, no Brasil,
citamos como seus precursores Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira,
Lourenço Filho, entre outros.
A Escola Nova tem como foco o ensino democrático que, por
sua vez, apresenta novos ideais, a exemplo de colocar a criança como
centro da educação. Um dos pressupostos da Escola Nova concebe
que a criança procurava desenvolver (era capaz) o que ela trazia
consigo, desde sua concepção no ventre materno, exigindo que todas
aprendessem, em vez de simplesmente dominar conteúdos. Outro
postulado é que o professor assume o papel de mediador do processo
de ensino-aprendizagem. Com isso, descentralizava-se a totalidade do
ensino realizado pelo professor, centralizando-o na aprendizagem do
aluno, ou seja, o professor passava a ser um mediador nesse processo
(DI GIORGI, 1992).
O fato é que as ideias da Escola Nova contribuíram para o
desenvolvimento do pensamento científico dentro das instituições de
ensino, do desenvolvimento da autonomia dos alunos, da valorização
do seu conhecimento prévio e da promoção de uma educação mais
humanista. As metodologias ativas defendem o processo de migração
do ensinar para o aprender; a mudança de foco do professor para o
aluno, em que este passa a assumir, também, a responsabilidade pelo
seu aprendizado e pela valorização do processo de aprender com
desenvoltura e autonomia.

100 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Assim, as mais recentes propostas educacionais estão
privilegiando metodologias ativas, participativas e problematizadoras
de aprendizagem e o aprendizado integrado como novas abordagens
de ensino, que podem ser combinadas ou correlacionadas com os
métodos tradicionais. "Torna-se, portanto, obsoleta a formação
baseada apenas na transmissão de conhecimentos, pois ela não mais
consegue responder às exigências de nosso século, que regularmente
busca uma formação mais sólida nos aspectos sociais, comportamentais
e relacionais" (SOUZA; IGLESIAS; PAZIN, 2014, p. 289).
Existe uma variedade de pedagogias ativas que podem orientar
o aluno a aprendizagens dinâmicas, criativas, significativas, voltadas
para sua autonomização, a exemplo, citamos: Aprendizagem Baseada
em Problemas; Aprendizagem Baseada em Projetos; Design thinking;
Estudo de caso; Aprendizagem baseada na reflexão sobre a experiência;
Ensino com pesquisa; Mapas conceituais; Jogos pedagógicos;
Aprendizagem baseadas em times; Sala de aula invertida, entre outras.
Todas utilizam a problematização como estratégia de ensino-
aprendizagem eficiente, reconhecendo os estudantes como sujeitos do
processo de aprendizagem, comprometidas em favorecer a ampliação
das condições de aprendizagem do aluno. Assim, todas têm como
propósito elevar a motivação dos alunos, mobilizar os alunos para uma
aprendizagem significativa e envolvê-los de forma criativa e
colaborativa.
Nesse âmbito, em que várias metodologias contribuem para uma
aprendizagem ativa, escolhemos como objeto de nossa pesquisa
analisar descritivamente dois formatos metodológicos: Aprendizagens
Baseadas em Projetos e Aprendizagens Baseadas em Problemas, tendo
em vista a divulgação e a socialização de metodologias ativas como
possibilidades de romper com paradigmas do ensino convencional,
centralizando a produção e a compreensão do conhecimento nos
alunos, sem desvalorizar seus conhecimentos prévios. Partimos do
entendimento de que as duas ABPs buscam valorizar a interação em
grupo e acompanhar de forma significativa o progresso de cada aluno.
Consequentemente, postulando que o aprendizado de instrumentos
musicais possa ocorrer a partir de situações reais e de problemas
concretos que, posteriormente, são vivenciados pelos alunos na
concretude de sua vida profissional.
A Aprendizagem Baseada em Problemas compreende uma
metodologia ativa que, nas últimas décadas, vem conquistando espaço
no cenário educacional em diversas instituições de ensino. De acordo
com Barrows (1986), essa modalidade de aprendizagem tem por

Pesquisa e Música 101


essência a utilização de problemas como ponto de partida para a
aquisição de novos conhecimentos, o que possibilita uma aprendizagem
centrada no estudante, sendo os professores tutores desse processo.
Para Delisle (2000, p. 5), trata-se de "uma técnica de ensino que educa
apresentando aos alunos uma situação que leva a um problema que
tem de ser resolvido".
Em Bender (2015), temos que a aprendizagem baseada em
projetos representa um modelo de ensino que, de forma cooperativa,
busca soluções a partir do confronto de questões e de problemas
significativos do mundo real. Afirma ser uma abordagem de ensino
eficiente e que resulta, em geral, em altos níveis de desempenho, de
desenvolvimento de habilidades por meio de tecnologias e pelo
envolvimento dos alunos com o conteúdo e com as aprendizagens. Os
conteúdos são sempre trabalhados na perspectiva de despertar o
interesse dos alunos, pois são apresentados, exatamente, como
acontecem na vida real. O autor reforça que se trata de uma técnica
de ensinar e de aprender: "empolgante e inovadora", que pode ser
definida pela utilização de "projetos autênticos e realistas, baseados
em uma questão, tarefa ou problema altamente motivador e
envolvente, para ensinar conteúdos acadêmicos aos alunos no contexto
do trabalho cooperativo para a realização de problemas" (BENDER,
2015, p. 15). A recomendação desse autor é que, como resultado do
trabalho em grupo, pode ser elaborado um produto final que, por
conseguinte, pode ser uma demonstração prática, vídeos digitais ou
algum outro produto (BENDER, 2015).
Temos, portanto, a convicção de que as duas ABPs são abordagens
de ensino diferenciadas no processo de ensino-aprendizagem dos
estudantes de cordas friccionadas, pois estimulam os estudantes de
maneira ampla e diversificada no desenvolvimento de suas tarefas e,
consequentemente, na sua formação para saber administrar/resolver
vários e complexos desafios com que se deparam no contexto
socioeducacional deste século XXI.
Assim, concordamos com Figueiredo (2012, p. 87) quando nos
diz:

[...] o estudo e a análise dos "métodos ativos" em educação


musical pode constituir-se como uma parte relevante do
processo que visa subsidiar propostas para o ensino de música
na contemporaneidade. As perspectivas de diversos autores
poderão se tornar referências para novas abordagens,
considerando que tais perspectivas já foram amplamente

102 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


utilizadas em diversos contextos e, por esta razão, já oferecem
resultados que nos auxiliam a avaliar cuidadosamente a
possibilidade de aplicação de diferentes abordagens para a
educação musical em diferentes contextos. O cuidado maior
está sempre no estudo criterioso das propostas do passado,
compreendendo de que forma tais propostas podem ocupar
espaço na educação contemporânea. O trabalho com o corpo,
o uso da voz, a criação musical, a experiência musical a
partir de diferentes vivências, são todos elementos trazidos
por eminentes educadores que conceberam a educação musical
para todos. Tais elementos são perfeitamente aplicáveis nos
dias de hoje, desde que devidamente contextualizados para
que continuem cumprindo um papel metodológico relevante
na formação musical das futuras gerações.

Sobre métodos ativos no ensino-aprendizagem de instrumentos


musicais, como é o caso da problematização e da discussão
empreendida na presente pesquisa, acatamos as considerações desse
autor e dos demais teóricos que subsidiam essa discussão em torno
das ABPs empregadas na educação musical de hoje e das futuras
gerações.

Considerações Finais

No contexto dessas considerações finais abrimos espaço,


primeiramente, para fazer breves registros sobre a etapa de observação
e, segundo, para tratar acerca dos achados da pesquisa na interface
com alguns dizeres corroborativos em relação às metodologias ativas
no ensino-aprendizagem de instrumentos musicais.
Durante as etapas de observação previstas na presente pesquisa,
notamos que os professores dos dois projetos dominam os saberes
voltados para o tocar de seu instrumento, mas suas aulas são
ministradas nos moldes da transmissão, repetição e memorização de
conceitos e habilidades técnicas, configurando que se mantêm
articuladas a paradigmas conservadores (Tradicional, Tecnicista). O
seu fazer pedagógico está ancorado em pressupostos que não levam
em consideração os sujeitos envolvidos na construção das aulas, seus
saberes e seus fazeres, pois têm como foco a preparação moral de seus
alunos.
No processo observacional, evidenciou-se, também, que faltam
aos professores os elementos teórico-práticos para a compreensão de
como ensinar de forma significativa, de como o ensino envolve os

Pesquisa e Música 103


alunos para que ganhem maior espaço no contexto formativo, de modo
que possam se constituir como sujeitos ativos e autônomos. O processo
de ensino-aprendizagem requer a articulação do ensino com a pesquisa,
com a descoberta, com o estímulo à busca por novos conhecimentos e
pelo autoconhecimento. São aspectos que não se alcançam sem que
os professores compreendam a importância da valorização dos
conhecimentos prévios dos alunos, assim como sem que elaborem
estratégias de ensino capazes de orientar os alunos a construírem seus
próprios conhecimentos.
Faz-se necessário, desse modo, que os professores incentivem seu
alunado a pensar e a aprender de forma inteligente, a solucionar os
problemas do seu aprendizado. É fundamental que os professores o
incentive, que tenham uma visão clara dos objetivos do processo de
ensino-aprendizagem, de modo que seus propósitos não estejam
focados somente em ensinar conteúdos e avaliar a devolutiva do que
foi ensinado aos alunos. A compreensão que emerge é que os
formadores de futuros músicos se comprometam com a formação de
sujeitos empenhados com as transformações sociais em benefício das
maiorias e que sejam, também, competentes e brilhantes músicos. Essa
é, em linhas gerais, a dimensão ética da profissão docente.
Diante do exposto, consideramos que as metodologias ativas
oferecem possibilidades potencializadoras de desenvolvimento da
autonomia do aluno, fazendo com que assuma o lugar de sujeito de
seu processo de aprendizagem. Nessa ressignificação da relação
professor-aluno-conhecimento, o papel do professor ganha outro peso
e outras atribuições. De detentor do conhecimento e direcionador das
ações dos estudantes, passa a assumir o papel de mediador e
organizador das relações favorecedoras do aprendizado. De autoridade
centralizadora e controladora, o professor passa a partilhar decisões e
escolhas com os novos sujeitos ativos no contexto da sala de aula.
"Nesse sentido, as estratégias que promovem aprendizagem ativa podem
ser definidas como sendo atividades que ocupam o aluno em fazer
alguma coisa e, ao mesmo tempo, o levam a pensar sobre as coisas
que está fazendo" (BARBOSA; MOURA, 2013, p. 56), cabendo dizer,
por conseguinte, que a aprendizagem ativa ocorre quando:

[...] o aluno interage com o assunto em estudo - ouvindo,


falando, perguntando, discutindo, fazendo e ensinando - sendo
estimulado a construir o conhecimento ao invés de recebê-lo
de forma passiva do professor. Em um ambiente de
aprendizagem ativa, o professor atua como orientador,

104 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


supervisor, facilitador do processo de aprendizagem, e não
apenas como fonte única de informação e conhecimento
(BARBOSA; MOURA, 2013, p. 55).

Na verdade, a aprendizagem ativa constitui-se uma possibilidade


organizativa do ensino, que se revela mais eficaz e prazerosa quando
comparada com métodos de ensino centrados exclusivamente na aula
expositiva, no repasse de informações e na avaliação reprodutora,
como evidenciam as pesquisas de vários autores, como apontados em
passagens deste artigo. Em outras palavras, o elemento fundamental
que caracteriza um ambiente de aprendizagem ativa é a atitude de
partilha das decisões e das ações, bem como a valorização da atuação
dinâmica dos alunos em contraposição a uma atitude passiva,
geralmente associada a modos verticalizados de organização do ensino.
Não se pretende aqui advogar pela exclusividade das metodologias
ativas, especialmente as ativas ABPs Problemas e Projetos, no processo
de ensino-aprendizagem de instrumentos musicais, mesmo
reconhecendo que sua presença vem ganhando espaço em vertentes
variadas do conhecimento nas últimas décadas, e que este fato ocorre,
também, na área de música, fazendo-se necessário que os professores
de instrumentos musicais utilizem a combinação dessas metodologias
ativas com as convencionais, como elementos que integram as bases
de compreensão e sustentação da docência, mediante o entendimento
de que se trata de um processo e que sua modificação não se opera
com radicalidade e rapidez. Mas sim num movimento que pressupõe
formação, apoios institucionais e desejo de melhorar a ação formadora
por parte dos próprios professores.
Os achados desta pesquisa permitem reafirmar acerca da
importância de buscarmos novas metodologias de ensino-
aprendizagem, metodologias capazes de transcender os atuais formatos
organizadores, orientadores e efetivadores dos modos de ensinar,
sustentados na transmissão e repetição de conteúdo. Buscamos, nesse
sentido, por metodologias capazes de incentivar uma postura reflexiva,
ativa, crítica, que valorizem opiniões, saberes e autonomia dos alunos,
sustentadas no diálogo, na motivação, no pensamento crítico e no
desenvolvimento da inteligência dos alunos.
Encerrando, reiteramos que a pesquisa se encontra em
desenvolvimento e esperamos que, mediante sua processualidade, as
próximas etapas contribuam com o aprofundamento da discussão
teórica e metodológica no que concerne ao ensino-aprendizagem de
instrumentos musicais friccionados (coletivo e tutorial), na interface

Pesquisa e Música 105


com o emprego de metodologias ativas. Assim, reforçamos que o
propósito que nos move e que nos encaminha a prosseguir rumo à
consolidação de nossa pesquisa, cujo propósito se amplia no sentido
de contribuir com a área de educação musical ao analisar criticamente
os processos atuais de ensino-aprendizagem dos instrumentos de
cordas friccionadas, articulando-os às bases teóricas das metodologias
ativas na busca por proposições inovadoras no campo da educação
musical.

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Pesquisa e Música 109


Apresentações de mão esquerda: Estudo
Comparativo entre as Classificações de Abel
Carlevaro e Eduardo F ernandez.
Fernandez.

Cauã Borges Canilha1


Edelton Gloeden2

1 Introdução

O ato de tocar um instrumento musical envolve diversas


movimentações e finas habilidades específicas que dificilmente podem
ser mapeadas em sua completude, variando sutilmente de um intérprete
para outro. Todavia, as pesquisas sobre mecânica instrumental, no
campo da performance musical, vêm gerando debates e resultados
positivos e auxiliando o diálogo entre a teoria e a prática instrumental
na procura por resultados mecânico-instrumentais mais eficientes e
conduzindo a um processo mais racional, controlado e inteligente. A
teorização, análise e ordenamento de aspectos mecânicos auxiliam
no aprofundamento e maior autoconsciência sobre movimentações já
conhecidas e, ademais, estimulam a criação de novas soluções técnicas.
A revisão teórica aqui proposta procura alertar para uma maior
conscientização de um aspecto mecânico específico do violão: as
apresentações de mão esquerda. Apesar de ser um texto comparativo
entre propostas teóricas, seu conteúdo deve servir de base e/ou
aprofundamento sobre aspectos da prática instrumental violonística,
sendo direcionado essencialmente para tal.
Neste texto confrontaremos as propostas de classificação das
apresentações de mão esquerda de Abel Carlevaro (1916-2001) e
Eduardo Fernandez (1952). Abel Carlevaro foi um dos mais influentes
teóricos do violão do séc.XX, além de destacado instrumentista,
professor e compositor. Em seu livro Escuela de la guitarra: Exposición

Prof. Substituto da UFPI, Mestre em Performance Violão pela USP. cauabcanilha@gmail.com


1

Prof. Doutor da Universidade de São Paulo (USP). edeltongloeden@uol.com.br


2

Pesquisa e Música 111


de la teoría instrumental (1979), o autor expõe uma visão racional sobre
os elementos técnicos (até então pouco usual entre os métodos de
violão), defendendo um trabalho consciente que "obedeça a vontade
superior do cérebro"3 (CARLEVARO, 1979, p.31, tradução nossa4). Este
tipo de abordagem fica bastante clara nos seus Cadernos I-IV da Serie
didáctica para guitarra (1974), nos quais o autor propõe exercícios
isolados de qualquer contexto musical (nem todos possuem esta
característica, mas grande parte sim), concentrando-se em aspectos
técnicos e mecânicos, visando sua conscientização e aprimoramento.
As abordagens mais encontradas nos métodos até então eram baseadas
em exercícios de técnica aplicada - uma mescla entre exercícios técnicos
puros e obras musicais construídas sobre estas técnicas.
Atualmente essa abordagem focada em exercícios técnicos puros
já está solidificada na didática do violão (acreditamos que em parte
pela contribuição de Carlevaro). No Brasil, a influência deste autor é
fortemente notada pela ampla utilização de seus livros e pelos seus
diversos alunos (regulares ou esporádicos) que lecionam ou lecionaram
em conservatórios e universidades de nosso país. Muitos de seus
discípulos se tornaram importantes intérpretes a nível mundial, como
Álvaro Pierri, Baltazar Benitez e Eduardo Fernandez, este um dos alunos
mais destacados.
Fernandez é um dos intérpretes de maior relevância no cenário
violonístico há muitos anos, destacando-se pela sua capacidade
técnico-musical e pelo seu profundo conhecimento sobre diversos temas
relacionados ao instrumento e música em geral (ademais,
gradativamente se firma como competente compositor). Aluno e
fomentador da obra de Carlevaro, Eduardo Fernandez, em sua carreira,
progressivamente se desvia e expande os conceitos de seu professor.
Em Técnica, Mecanismo, Aprendizaje. Una investigación sobre llegar a
ser guitarrista (2000), Fernandez apresenta novas perspectivas quanto
aos processos de aprendizado técnicos e mecânicos. O autor defende a
aquisição de habilidades instrumentais através de sensações cinestésicas
e neuromotoras, concedendo "à subjetividade do executante o direito
à existência; os métodos tradicionais negam este direito, já que estão
baseados na repetição ou na cópia desde o exterior, ou em uma análise
externa dos movimentos"5 (FERNANDEZ, 2000, p.12-13). Apesar de
3
"Obedece a la voluntad superior del cerebro"
4
Todas as traduções deste trabalho foram realizadas pelos autores.
5
"(...) a la subjetividad del ejecutante el derecho a la existencia; los métodos tradicionales niegan
este derecho en los hechos, ya que están basados en la repetición o en la copia desde el exterior,
o en un análisis externo de los movimientos".

112 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


recente, esta publicação já está estabelecida como um dos mais
importantes materiais sobre o assunto, sendo largamente conhecida e
abordada tanto em meios informais quanto acadêmicos.
Visto que muitas vezes os conceitos de mecânica e técnica são
confundidos ou abordados de forma muito similar, se faz necessário
desde já diferencia-los. Para tal, utilizaremos a proposta conceitual de
Eduardo Fernandez; esta proposta nos permite abordagens específicas
de aprendizado para cada caso (técnico ou mecânico), e assim
trabalharemos a aprendizagem das apresentações dentro do campo
específico da mecânica. Para Fernández "mecanismo é o conjunto de
reflexos adquiridos que tornam possíveis o tocar violão"6, enquanto
técnica "é a capacidade concreta de poder tocar uma determinada
passagem da maneira desejada"7 (FERNÁNDEZ, 2000, p. 14). Ou seja,
mecanismo trata de reflexos e sensações neuromotoras que tornam
possível a capacidade geral ou abstrata de tocar, enquanto técnica
refere-se à aplicação destes em contextos musicais específicos, a fim
de obter o resultado musical desejado. Assim sendo, a aquisição do
mecanismo é anterior à da técnica.

2 Apresentação de mão esquerda

De forma muito resumida, ao tocar violão, a principal função


dos dedos de mão esquerda consiste em pressionar as cordas sobre a
escala do violão, definindo assim as alturas dos sons produzidos. O
polegar atua na parte de trás do braço do violão, servindo de apoio,
em oposição aos dedos indicador, médio, anelar e mínimo (abreviados
respectivamente como 1, 2, 3 e 4). A maneira como estes quatros dedos
estão distribuídos pelas casas e cordas na escala do violão indica a
apresentação de mão esquerda, concebida como a forma na qual o
complexo motor esquerdo é colocado a fim de determinar o alcance
horizontal e disposição dos dedos no braço do violão. Carlevaro define
apresentação de mão esquerda como "a forma como se dispõem os
dedos em relação à escala do violão, resultado de uma ação determinada
pelo complexo motor mão-braço"8 (CARLEVARO, 1979, p.77). Para
entendermos como Carlevaro e Fernandez constroem suas classificações
para os tipos de apresentação e criarmos um parâmetro claro de

6
"Liamaremos os mecanismos al conjunto de reflejos adquiridos que hacen posible tocar la guitarra".
7
"[...] la capacidad concreta de poder tocar un pasaje determinado de la manera deseada".
8
Carlevaro também utiliza o termo aparato motor para se referir a este.

Pesquisa e Música 113


comparação entre estas, dividiremos a exposição das apresentações
entre as em âmbito natural (quando cada um dos quatro dedos se
encontra pressionando ou frente a uma casa adjacente) e as em âmbito
reduzido (quando existem sobreposições, ou seja, dois ou mais dedos
são colocados em uma mesma casa).

3 Apresentações em âmbito natural

Nas apresentações em âmbito natural a colocação da mão


esquerda estará de forma que cada um dos dedos 1, 2, 3 e 4 esteja,
respectivamente, frente a uma casa adjacente (pressionando ou não
alguma corda, mesmo quando "no ar"). As apresentações em âmbito
natural não possuem sobreposições (dois ou mais dedos em uma
mesma casa) característica fundamental, como veremos, das
apresentações em âmbito reduzido.
Carlevaro (1979, p.78) e Fernandez (2000, p.26) concordam em
denominar como apresentação longitudinal a qual os dedos se dispõem
em uma linha paralela à corda. Ou seja, a apresentação é considerada
longitudinal quando cada dedo se localiza em um espaço adjacente
frente a uma mesma corda. Assim, podemos deduzir que a sua
utilização se dará basicamente em escalas e linhas melódicas, como
na figura abaixo (Figura 1). Eduardo Fernandez, por avalia-la como a
menos complexa, a estabelece como a apresentação básica, a partir
da qual serão construídas as demais através da inserção de
transversalidades (2000: p.26).

Figura 1: exemplo de apresentação longitudinal


por Carlevaro e Fernandez (produção nossa9).

Todas as figuras e imagens contidas neste texto são de produção dos autores.
9

114 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Se longitudinal é a apresentação na qual os dedos estão alinhados
a uma única corda, as demais apresentações em âmbito natural (ou
seja, sem sobreposições) são as quais os dedos estão distribuídos em
casas adjacentes em mais de uma corda. Fernandez divide estas
situações em dois grupos: apresentações em diagonal A e B e
apresentações não-retilíneas. Nas apresentações em diagonal A e B, os
dedos estão alinhados em um único sentido em diferentes cordas.
Quando os dedos do 1 ao 4 estão, respectivamente, no sentido das
cordas agudas Fernandez chama de diagonal A e quando no sentido
das cordas graves diagonal B (FERNADEZ, 2000, p.31). Isso fica claro
no exemplo abaixo (Figura 2):

Figura 2: exemplos de apresentações em diagonal A e B,


propostas por Fernandez (produção nossa).

No exemplo acima, os dedos 1, 2, 3 e 4 estão respectivamente


entre a segunda e quinta casa na apresentação Diagonal A e entre a
quinta e oitava casa na Diagonal B, ou seja, cada dedo em uma casa
adjacente, distribuídos em cordas em único sentido. Também se pode
notar nos exemplos acima que as apresentações em diagonal não
precisam ser necessariamente em cordas adjacentes (no exemplo de
Diagonal A a terceira corda não é pressionada e no Diagonal B a quarta
corda não é pressionada).
As apresentações chamadas por Fernandez de não-retilíneas
(FERNANDEZ, 2000, p.32) são as em âmbito natural nas quais os dedos

Pesquisa e Música 115


não estão alinhados à uma única corda (longitudinal) nem dispostos
em apenas um sentido (diagonais). Ou seja, isso implicará que estejam
em disposições não-lineares. No exemplo abaixo (Figura 3), os quatro
dedos se encontram no âmbito das quatro primeiras casas do violão,
porém não existe linearidade quanto à disposição transversal destes.

Figura 3: exemplo de apresentação não-retilínea, proposta


por Fernandez (produção nossa).

Eduardo Fernandez comenta que as apresentações não-retilíneas


podem incluir grande variedade de distribuições transversais e que
"cada uma destas apresentações requer uma atitude levemente distintas
do braço e dos dedos, e por isso uma sensação diferente, ou melhor,
uma constelação diferente de sensações"10 (FERNANDEZ, 2000, p. 33).
O autor recomenda realizar uma tabela com diferentes apresentações
não-retilíneas e treiná-las a fim de criar um mapa mais detalhado do
braço do violão e melhorar a leitura a primeira vista.
A classificação proposta por Carlevaro para as apresentações em
âmbito natural em diferentes cordas é menos complexa. O autor
denomina estas como apresentações mistas, por considera-las uma
transição entre uma apresentação longitudinal e transversal - que
veremos a seguir (1979, p. 80). Ou seja, as apresentações que Fernandez
classifica como diagonais e não-retilíneas são abarcadas dentro do

10
"Cada una de estas presentaciones requiere una actitud levemente distinta del brazo y los
dedos, y por ende una sensación diferente, o más bien una constelación diferente de sensaciones"

116 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


conceito de mistas para Abel Carlevaro (logo, as Figuras 2 e 3 são
exemplos de apresentações mistas para Carlevaro).

4 Apresentações em Âmbito Reduzido

Consideramos apresentações em âmbito reduzido às quais se faz


necessária a colocação de dois ou mais dedos em uma mesma casa em
diferentes cordas (situações estas denominadas sobreposições11) e sua
consequência óbvia é uma transversalidade mais acentuada dos dedos
na escala através do ajuste do complexo motor esquerdo.
Para Carlevaro, a apresentação será transversal quando dois ou
mais dedos estiverem localizados em um mesmo espaço e em diferentes
cordas (CARLEVARO, 1979, p.79), ou seja, sempre quando existir uma
ou mais sobreposições de dedos. Já Eduardo Fernandez qualifica como
apresentação transversal apenas aquela em que os quatro dedos estão
colocados em um único espaço (FERNANDEZ, 2000, p. 32), ou seja,
uma apresentação com transversalidade máxima, com três
sobreposições simultâneas. Em seguida detalharemos, mas já
ressaltamos que o acento da transversalidade é realizado através do
afastamento do cotovelo (e complexo esquerdo como um todo) em
relação ao corpo do violonista, no mesmo sentindo já comentado na
apresentação diagonal A. Abaixo, exemplos do que cada autor considera
apresentação transversal.

11
É importante frisar que o que chamamos de sobreposição Carlevaro e Fernandez chamam de
contração. Consideramos que o termo contração, em português, remete uma ideia de tensão
muscular indesejada e que as transversalidades devem ser utilizadas justamente para evitar tais
enrijecimentos, transferindo o trabalho de ajuste e colocação dos dedos para o braço e punho
esquerdo. Para nós, o termo contração é mais bem utilizado em passagens nas quais os dedos
(ao invés de todo complexo motor esquerdo) são responsáveis diretos pela diminuição do
alcance longitudinal de mão esquerda.

Pesquisa e Música 117


Figura 4: exemplos de apresentações transversais para
Carlevaro e Fernandez (produção nossa)

Na foto podemos notar que no exemplo de Carlevaro os quatro


dedos estão colocados em duas casas enquanto na apresentação
transversal de Fernandez todos estão (obrigatoriamente) em uma única
casa. A apresentação transversal de Fernandez também é, obviamente,
considerada transversal na visão de Carlevaro, porém a apresentação
transversal de Carlevaro não pode ser assim denominada no conceito
de Fernandez. Logo, o conceito de apresentações transversais de
Carlevaro abarca maior número de casos que o de Fernandez. Estes
casos não abarcados por Fernandez são divididos em dois grupos:
apresentações intermediárias entre diagonal e transversal para as
retilíneas, e as construídas através contrações para as não-retilíneas
(denominamos sobreposições o que Fernadez chama de contração12).
As primeiras serão basicamente situações nas quais os quatro dedos
atuam em âmbito reduzido (duas ou três casas) e em apenas um sentido
- das cordas graves para as cordas agudas e vice-versa. Ou seja, entre
diagonal A (quatro casas, âmbito natural) e transversal (uma casa). O
exemplo Transversal (Carlevaro) da Figura 4, no conceito de Fernandez
é considerado um caso de apresentação intermediária entre diagonal e
transversal.

12
Novamente, Fernandez conceitua contração, justamente, como esta sobreposição de dedos
causada por uma apresentação não-retilíneas em âmbito reduzido (FERNANDEZ, 2000, p.34).

118 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Abaixo temos um exemplos de apresentação não-retilínea com
contração. Percebe-se uma colocação em âmbito reduzido, abarcando
três casas, com sobreposição entre os dedos 2-3 (na terceira casa),
mas não existe uma linearidade, um único sentido, entre os dedos (o
dedo 2 está em uma corda mais grave que o 1, o 3 em uma mais aguda
que o 2 e o 4 em uma mais grave que o 3).

Figura 5: exemplo de apresentação não-retilínea com


contração, proposta por Fernandez (produção nossa).

As apresentações de Fernandez (Longitudinal, Não-retilínea,


Diagonais A e B, Transversal, Intermediária entre diagonal e transversal
e Não-retilínea com contração) englobam grande parte das possibilidades
básicas de tipos de apresentação de mão esquerda, sendo
complementadas basicamente pelas apresentações que incluem
aberturas de mão esquerda. O mesmo pode-se dizer dos três tipos de
apresentações de Carlevaro até aqui vistas (Longitudinal, Mista e
Transversal), classificadas de apresentações de formas simples, nas quais
todo complexo atua com uma única finalidade. Carlevaro classifica
como apresentações de forma combinada as que fazem necessária uma
combinação de apresentações simples (por exemplo, alguns dedos
colocados em apresentação transversal e outros em apresentação
longitudinal). Na prática, essas apresentações de forma combinada
serão construídas através de contrações ou aberturas (distensões)
(CARLEVARO, 1979, p.81). Para o autor, as colocações com aberturas

Pesquisa e Música 119


e contrações devem ser pensadas a parir da musculatura do braço e
da mão, devendo se tornar situações estáveis, sem tensões e
desconfortos (ocasionados quando oriundo do trabalho isolado dos
dedos). Eduardo Fernandez acredita que a construção dessas sensações
se dê a partir da hipótese abaixo:

Para o tratamento de ambos os casos, contrações e distensões,


proponho que nos atenhamos à seguinte hipótese: toda
situação de contração ou de distensão (ou ambas
simultaneamente, coisa que pode ocorrer de acordo às
definições sugeridas) pode ser construída a partir de uma
apresentação em diagonal ou a partir de uma longitudinal.
Esta hipótese nos será muito valiosa na construção da
sensação neuromotora que necessitamos, enquanto que por
outra parte a ideia mesma da construção de uma posição a
partir de outra, ou seja, a ideia de uma deformação de certa
posição base para obter outra, nos será de grande ajuda no
trabalho sobre técnica13. (FERNANDEZ, 2000, p. 34).

A partir de agora, passamos a analisar a construção da mecânica


das apresentações. Em seu Diccionario de la escuela de Abel Carlevaro,
Alfredo Escande é pontual ao afirmar que "uma apresentação correta
será resultado de um conhecimento prévio, adquirido através de um
tempo e assimilado de tal maneira que seja reflexo fiel de uma atitude
mental" (ESCANDE, 2006, p. 30). Eduardo Fernandez se aprofunda
ainda mais nesse sentido. O autor defende a conscientização do
mecanismo como uma construção mental pessoal do corpo físico do
violão (FERNANDEZ, 2000: p. 28), que a aprendizagem dos
movimentos ocorre através da aquisição de sensações (inicialmente
de forma consciente e posteriormente cinestésica) e, por fim, que são
arquivadas através de repetições inteligentes (id., 2000, p. 13). De
acordo com sua proposta, é recomendável que, após a construção
sensorial auxiliada pela visão, se "absorva a sensação corporal" dos

13
Para el tratamiento de ambos casos, contracciones y distensiones, propongo que nos atengamos
a la siguiente hipótesis: toda situación de contracción o distensión (o ambas simultáneamente,
cosa que puede ocurrir de acuerdo a las definiciones sugeridas) puede ser construida a partir de
una presentación en diagonal o a partir de una longitudinal. Esta hipótesis nos será muy valiosa
en la construcción de la sensación neuromotora que necesitamos, mientras que por otra parte la
idea misma de la construcción de una posición a partir de otra, o sea, la idea de una deformación
de cierta posición base para obtener otra, nos será de invalorable ayuda en el trabajo sobre
técnica.

120 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


diferentes tipos de apresentação sem o recurso visual, ampliando os
níveis de conscientização e a "sensibilidade fina" de mão esquerda.
Para ambos os autores (Fernandez e Escande) a mecânica que
determina a apresentação deve ser atribuída a todo complexo motor
esquerdo. Defendem que uma distribuição racional do trabalho de mão
esquerda evita tensões desnecessárias e possíveis lesões decorrentes de
hábitos negativos - normalmente, excessivamente focados na atuação
dos dedos - como alerta Carlevaro:

(...) os dedos não trabalham isoladamente senão que, pelo


contrário, atuam formando uma unidade com a mão e o
braço. Antes da atitude de movimento de um dedo é
imprescindível pensar na atitude do braço, porque dele
depende quase sempre o movimento e a localização dos
dedos. A atuação de um só dedo deve ser consequência da
disposição do todo o complexo motor (mão - pulso - braço).
E mais ainda, o que comumente se atribui a um problema
claramente digital, exclusivamente dos dedos, se torna algo
muito mais complexo e equilibrado que parte diretamente
da mente, fazendo participar todo o braço e a mão, para
que, como consequência final, atue o dedo. Desta forma,
além das possibilidades técnicas, se alcança um maior
controle, se consegue um relaxamento muscular e se evita o
cansaço prematuro. (CARLEVARO, 1979: p. 77. Tradução
nossa14)

O autor vai além ao afirmar que o trabalho dos dedos só se dá


em um segundo momento na construção de uma apresentação.

14
(…) los dedos no trabajan aisladamente sino, por el contrario, actúan formando una unidad con
la mano y el brazo. Antes dela actitud de movimiento de un dedo es imprescindible pensar en
la actitud del brazo, porque de él depende casi siempre el movimiento y la ubicación de los
dedos. La actuación de un solo dedo debe ser consecuencia de la disposición de todo el complejo
motor (mano-muñeca-brazo). Es más aun, lo que comúnmente se atribuye a un problema
netamente digital, exclusivamente de los dedos, se torna en algo mucho más complejo y
equilibrado que parte directamente de la mente, haciendo participar todo el brazo y la mano,
para que, como consecuencia final, actúe el dedo. En esta forma además de las posibilidades
técnicas, se logra un mayor control, se consigue el "relax" muscular y se evita el cansancio
prematuro.

Pesquisa e Música 121


É de destacar que, com respeito ao tempo, podemos definir
duas etapas bem diferenciadas ainda que unidas para um
mesmo fim. A primeira corresponde à atuação do braço
associado com a mão, obedecendo esta ao trabalho do
primeiro. E recém na segunda etapa dos dedos, uma vez
localizados pelo braço, estarão em condições de colocar-se
sobre o diapasão15. (CARLEVARO, 1979, p. 78)

Carlevaro afirma que nas apresentações longitudinais o cotovelo


tende a aproximar-se do corpo enquanto nas apresentações transversais
tende a afastar-se do corpo (1979, p. 78-79). Da mesma maneira,
Fernandez destaca que na apresentação diagonal A o cotovelo tende a
afastar-se do corpo do instrumentista, e na diagonal B a aproximar-se
do corpo (2000, p.32). Concluímos que o movimento horizontal de
afastamento ou aproximação do cotovelo em relação ao corpo
(movimento lateral) pode servir como uma referência importante a
ser conscientizada nos ajustes de apresentação. As apresentações em
diagonal B (ou, mais ainda, situações com sobreposições inversas)
podem ser consideradas extremas quanto ao cotovelo estar próximo
ao corpo; as apresentações transversais com todos os dedos colocados
numa única casa podem ser consideradas extremas quanto ao cotovelo
afastado do corpo. Logo, percebemos que a tendência natural é de um
gradativo afastamento lateral do cotovelo ("para fora", distanciando-
se do corpo do violonista) quanto maior for o grau de transversalidade
da apresentação.
Outro fato para o qual Eduardo Fernandez alerta refere-se à
distância entre os trastes, diferente ao longo do braço. Abaixo, o autor
comenta que essa diferente distância modifica sutilmente a colocação
da apresentação longitudinal e que essas pequenas diferenças devem
ser conscientizadas. Acreditamos que a mesma busca de consciência
deva ser considerada em relação às demais apresentações.

15
Es de destacar que, con respecto al tiempo, podemos definir dos etapas bien diferenciadas
aunque unidas para un mismo fin. La primera corresponde a la actuación del brazo asociado con
la mano, obedeciendo ésta al trabajo del primero. Y recién en la segunda etapa los dedos, una
vez ubicados por el brazo, estarán en condiciones de disponerse sobre el diapasón.

122 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Devemos mencionar (...) que como as distâncias entre os
trastes não são uniformes, senão que diminuem à medida
que a altura das notas aumenta, o estudo da posição
longitudinal deve ter em conta isto. (...) Uma das possíveis
maneiras de aprender e adquirir as diferentes apresentações
longitudinais correspondentes a diferentes posições é
simplesmente praticar a colocação da apresentação
longitudinal em diferentes posições. Deste modo, se
estabelecerá paulatinamente na memória neuromotora esta
importante dimensão do mecanismo da mão esquerda; não
esqueçamos que estudar mecanismo, o que estamos fazendo
é construir em nosso corpo nosso próprio violão, e é desejável
que haja uma correspondência estrita entre esta construção
mental e o violão físico. Outro ponto importante a mencionar
é que quando se toque em posições superiores à IX a
apresentação não pode ser a mesma que as posições mais
baixas. O braço, e ainda às vezes todo o corpo, deve ajudar
para que as pontas dos dedos cheguem à corda em direção
perpendicular ao plano das cordas; neste caso, a posição
deverá necessariamente ajustar-se16. (FERNANDEZ, 2000,
p. 28).

Ainda neste sentido, enfatizando o ajuste do punho, Carlevaro


afirma que a mecânica das primeiras posições é diferente das últimas,
e que cada posição terá características particulares que devem ser
percebidas e trabalhadas:

16
Debemos mencionar a esta altura que como las distancias entre los trastes no son uniformes,
sino que disminuyen a medida que la altura de las notas aumenta, el estudio de la posición
longitudinal debe tener en cuente este hecho. Esta presentación se coloca desde el dorso de la
mano. Una de las posibles maneras de aprender y adquirir las diferentes presentaciones
longitudinales correspondientes a diferentes posiciones es simplemente practicar la colocación
de la presentación longitudinal en diferentes posiciones. De este modo, se establecerá
paulatinamente en la memoria neuromotora esta importante dimensión del mecanismo de la
mano izquierda, no olvidemos que al estudiar mecanismo, lo que estamos haciendo es construir
en nuestro cuerpo nuestra propia guitarra, y es deseable que haya una correspondencia estricta
entre esta construcción mental y la guitarra física. Otro punto importante a mencionar, es que
cuando se toque en posiciones superiores a la IX la presentación no puede ser la misma que
para posiciones más bajas. El brazo, y aun a veces todo el cuerpo, debe ayudar para que las
puntas de los dedos lleguen a la cuerda en dirección perpendicular al plano de las cuerdas; en
este caso, la posición deberá necesariamente ajustarse.

Pesquisa e Música 123


Na medida em que a mão vai se distanciando do corpo (até
a primeira posição), a mecânica requer uma participação
do punho que, se dobrando através do movimento do braço,
permite apresentar os dedos transversalmente. Esta
participação complementar do pulso se faz necessária
naquelas posições nas quais o braço vai perdendo seu âmbito
de ação17. (CARLEVARO, 1979, p.79-80).

Por fim, outro detalhe prático diz respeito à distância vertical


entre as cordas, que aumenta sutilmente em direção à região aguda
da escala. Além das cordas se afastarem levemente, também ficam
mais distantes da escala, um pouco "mais altas" em relação ao braço,
o que requer uma percepção sutil na diferença de pressão colocada.
Fernandez defende que a percepção de todos esses "detalhes" aqui
expostos deve ser considerada no estudo a fim de conduzir a
aprendizagem mecânica de forma completa, não apenas baseada em
aspectos visuais externos, mas a partir do manejo das sensações.

Creio necessário insistir em que o manejo da sensação é a


chave para a aprendizagem, e rogo ao estudante que se
abstenha de tratar de ver o movimento "de fora", a menos
que o faça com a intenção expressa de construir um
mecanismo diferente ao exposto. Ainda assim, quando
concebido, será necessário internalizá-lo18. (FERNANDEZ,
2000, p. 29).

Após discutir a construção de apresentações isoladas, os autores


versam sobre a mudança entre diferentes apresentações. Fernandez
parte da ideia que se temos as sensações de ambas as apresentações (a
de saída e a de chegada) gravadas no nosso repertório "cinestésico"
mecânico, a mudança entre elas não deve configurar um problema;
deve-se simplesmente passar de uma sensação à outra.

17
En la medida que la mano se va alejando del cuerpo (hacia la primera posición), la mecánica
requiere una participación de la muñeca que, doblándose a través del movimiento del brazo,
permite presentar los dedos transversalmente. Esta participación complementaria de la muñeca
se hace necesaria en aquellas posiciones en las que el brazo va perdiendo su ámbito de acción.
18
Creo necesario insistir en que el manejo de la sensación es la clave para el aprendizaje, y ruego
al estudiante que se abstenga de tratar de ver el movimiento "desde afuera", a menos que lo haga
con la intención expresa de construir un mecanismo diferente al expuesto. Aún así, cuando lo
haya concebido, le será necesario internalizarlo.

124 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


A passagem de uma apresentação qualquer a outra de mesmo
tipo, combinado ou não com uma mudança de posição, deve
praticar-se com um caso especial de translado, onde todo o
aparato motor do braço esquerdo atuará como um conjunto.
Se se adquiriu a sensação de apresentação, e de bloco de
ação dos translados, a integração de ambos os elementos
não deveria ser problemática. A passagem de uma
apresentação qualquer outra de um tipo diferente não requer
maior comentário, dado que pelo processo de construção
que temos realizado todos os blocos de apresentação e de
ação estarão incorporados19. (FERNANDEZ, 2000, p. 33)

Este processo inclui aspectos menos subjetivos que devem ser


lembrados, como a movimentação do polegar. Por estar atuando na
parte de trás do braço, não pressionando diretamente as cordas, o
polegar se torna desfavorecido visualmente e muitas vezes não recebe
a devida atenção. Todavia, a má colocação deste dedo é geralmente
um dos aspectos responsáveis por desconfortos mecânicos e dores
físicas, sendo indispensável sua boa colocação para uma construção
mecânica saudável.

Como em todo trabalho sobre mudanças de apresentação, é


importante permitir que o polegar da mão esquerda
acompanhe o movimento; para tanto, a parte do polegar
que se apoia sobre o braço será diferente antes e depois da
mudança de apresentação. A omissão deste elemento causaria
uma aguda tensão que se sentiria na base do polegar de mão
esquerda20. (FERNANDEZ, 2000, p. 34).

19
El pasaje de un presentación cualquiera a otra del mismo tipo, combinado o no con un cambio
de posición, debe practicarse como un caso especial de traslado, donde todo el aparato motor
del brazo izquierdo actuará como un conjunto. Si se ha adquirido la sensación de presentación,
y el bloque de acción de los traslados, la integración de ambos elementos no debería ser
problemática. El pasaje de una presentación cualquiera a otra de un tipo diferente no requiere
mayor comentario, dado que por el proceso construcción que hemos realizado todos los
bloques de presentación y de acción estarán incorporados.
20
Como en todo el trabajo sobre cambios de presentación, es importante permitir que el pulgar de
la mano izquierda acompañe el movimiento; por lo tanto, la parte del pulgar que se apoya sobre
el mástil será diferente antes y después del cambio de presentación. La omisión de este elemento
causaría un aguda tensión que se sentiría en la base del pulgar de la mano izquierda.

Pesquisa e Música 125


Por fim, após compararmos e revisarmos a visão dos dois autores
quanto às classificações de apresentações de mão esquerda, suas
características de colocações na escala do violão e suas movimentações
inerentes, finalizamos com uma citação de Fernandez, que reitera que
a aquisição e desenvolvimento das apresentações deve ser guiada a
fim de alcançar uma colocação estável e eficiente de mão esquerda:

(...) a apresentação deve ser estável (o que implica que seja


possível mantê-la por um tempo prolongado sem realizar
esforço excessivo) e eficiente (as ações necessárias para
colocar e manter a apresentação devem se realizar com o
mínimo esforço muscular possível)21. (FERNANDEZ, 2000,
p.26).

5 Conclusões

De modo geral, podemos considerar a organização proposta por


Carlevaro como sendo de mais rápida compreensão, por classificar as
apresentações baseando-se principalmente no seu alcance: longitudinal
e mista para as em âmbito natural e transversal para as em âmbito
reduzido. Através da sua divisão entre as apresentações de forma simples
e forma combinada, Carlevaro delimita as formas regulares (simples) e
isola as formas irregulares (combinadas), com ou sem aberturas ou
contrações. Já a organização de Fernandez tem maior número de
divisões, o que pode torna-la um pouco mais intricada, porém também
evidencia a linearidade das apresentações (retilíneas e não-retilíneas) e
seu sentido (diagonal A ou B). A tabela abaixo (Tabela 1) divide os
conceitos de Carlevaro e Fernandez entre apresentações em âmbito
natural e âmbito reduzido22.

21
(...) la presentación debe ser a la vez estable (lo que implica que sea posible mantenerla por un
tiempo prolongado sin realizar un esforzó excesivo) y eficiente (las acciones necesarias para
colocar y mantener la presentación deben realizarse con el mínimo de esfuerzo muscular
posible). As formas combinadas de Carlevaro não podem ser inseridas na tabela devido a sua
irregularidade.
22
As formas combinadas de Carlevaro não podem ser inseridas na tabela devido a sua irregularidade.

126 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


CARLEVARO FERNANDEZ
Âmbito natural .Longitudinal .Longitudinal
.Mistas .Diagonal A e B
.Não-retilíneas
Âmbito reduzido .Transversal .Intermediárias entre diagonal e
transversal
.Não-retilíneas com contração
.Transversal
Tabela 1: apresentações de Carlevaro e Fernandez
divididas de acordo com seus âmbitos.

As vantagens instrumentais a partir de uma maior percepção e


desenvolvimento da mecânica das apresentações dizem respeito a uma
mais profunda conscientização das demandas mecânicas das passagens
técnico-musicais. Ao adquirir e ampliar a consciência das
apresentações necessárias em cada passagem, o instrumentista deverá
gerar uma colocação de mão mais natural e, espera-se, com menos
tensões. Com a gradual absorção dos conceitos é natural que o
intérprete desenvolva uma melhor propriocepção quanto às suas
limitações e pontencialidades, podendo assim escolher digitações
favoráveis às suas características pessoais - e, eventualmente, evitar
digitações desfavoráveis. A análise das apresentações também poderá
auxiliar na identificação dos motivos de uma passagem ser considerada
"difícil" tecnicamente, quando houver uma complexa distribuição dos
dedos de mão esquerda no braço do violão. A partir da análise detalhada
da apresentação o intérprete pode conduzir um estudo focado na
superação desta dificuldade específica, já sabendo dos movimentos que
podem auxilia-lo neste processo (como a percepção sobre a colocação
do cotovelo). Situações com aberturas, contrações, sobreposições
inversas ou quaisquer disposições desconfortáveis de mão esquerda
poderão também ser mais facilmente percebidas e melhor
compreendidas, possibilitando estratégias de estudo extremamente
focadas.
Outro ponto importante diz respeito à atividade didática,
frequente entre a maioria dos violonistas profissionais. A
conscientização e os conhecimentos adquiridos em relação às
apresentações de mão esquerda deverão exercer efeito positivo nas
aulas. Quanto maior o domínio e destreza na percepção da colocação
de mão esquerda, mais saudável será o desenvolvimento técnico e
mecânico dos seus alunos (evitando colocações equivocadas da mão,
futuros problemas técnicos relacionados a tensões e, inclusive,

Pesquisa e Música 127


situações de enfermidades como tendinites e afins). Obviamente, o
modo como essas informações serão tratadas em aula deverá ser
analisado caso a caso, não sendo fundamental o ensino teórico sobre
esses pontos; estes poderão ser trabalhados mesmo em situações em
que os conceitos não sejam nominalmente discutidos e que os alunos
os absorvam sem consciência teórica - como ocorre no ensino de violão
a crianças e no ensino de jovens e adultos interessados na prática
instrumental como lazer. Nestes casos, é responsabilidade do professor
elaborar estratégias para que o aluno aplique estes conhecimentos na
prática mesmo sem o domínio conceitual.
Por fim, acreditamos que os conceitos propostos pelos autores
devam alertar o instrumentista para uma maior consciência da
mecânica envolvida nas apresentações de mão esquerda e, assim,
contribuir na busca por soluções inteligentes para dificuldades
específicas do repertório. Fernandez comenta que

Tudo que implique uma prática em condições variáveis,


criativas, inventivas não somente nos ajudará a afirmar e
acelerar a aprendizagem do mecanismo, senão que ademais,
desterrará totalmente a rotina23. (FERNANDEZ, 2000, p.30)

Ou seja, quanto maior a percepção e conhecimento sobre os


movimentos envolvidos no ato de tocar um instrumento, mais
ferramentas existirão para a condução de um estudo mais rico e
criativo. Esperamos assim, que este texto possa auxiliar no sentido de
alertar para a utilização destas informações na prática instrumental
diária (solucionando passagens musicais específicas) e na prática
profissional geral (como elemento a ser incorporado na prática
didática) e que, por fim, possa servir de base para uma maior
propriocepção relacionada aos tipos de apresentações e movimentações
necessárias durante o ato de executar seu instrumento, além de suscitar
o interesse pelo debate e procura por novos conceitos e ideias sobre o
tema.

23
Todo lo que implique un práctica en condiciones variables, creativas, inventivas no solamente
nos ayudará a afirmar y acelerar el aprendizaje del mecanismo, sino que además, desterrará
totalmente la rutina.

128 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Referências

CANILHA, Cauã. Uma análise mecânica sobre os 25 Etudes


Mélodiques et Progressives Op.60 para violão, de Matteo
Carcassi. Dissertação (Mestrado). USP, São Paulo, 2017.

CARLEVARO, Abel. Escuela de la Guitarra. Buenos Aires: Barry


Editorial, 1979.

CARLEVARO, Abel. Serie didáctica para guitarra. Cuadernos


I-IV. Buenos Aires: Barry Editorial, 1974.

ESCANDE, Alfredo. Diccionario de la escuela de Abel


Carlevaro. Nomenclatura alfabética: definiciones y explicaciones.
Buenos Aires: Barry Editorial, 2006.

FERNÁNDEZ, Eduardo. Técnica, mecanismo, aprendizaje. Una


investigación sobre llegar a ser guitarrista. Montevideo: ART Ediciones,
2000.

Pesquisa e Música 129


RELA TO DE EXPERIÊNCIA Sobre a
RELATO
Coordenação do Curso de Música de uma
Instituição Pública - 2013 A 2015.

Daniel Lemos Cerqueira


UFMA/UEMA/UNIRIO/FAPEMA

INTRODUÇÃO

Em conversas com professores sobre o cargo de coordenador de


curso, é bastante comum trata-lo como um "perda de tempo", "esforço
em vão", "chateação gratuita" ou até mesmo "mal necessário". Estas
qualificações certamente se referem às diversas exigências,
responsabilidades e acúmulo de atividades sobre o coordenador de
curso que, além de não gerar benefícios financeiros, acadêmicos ou
profissionais interessantes ao docente, raramente proporcionam pelo
menos reconhecimento, além de não o aliviar das obrigações que já
possuíra como "docente comum". Traduzindo em um bordão: "quando
ninguém está reclamando, é porque o coordenador de curso está se
matando de trabalhar". O relato de Pereira, ao tratar sobre a criação
de um curso de Computação, traduz muito bem este sentimento:

Lidávamos com os alunos da primeira turma e o seu


"irrefutável" argumento: "Nós somos cobaias de tudo aqui -
tudo de ruim acontece conosco e depois é consertado". Não
podíamos contra-argumentar que a escolha foi deles - quem
se inscreveu no vestibular, fez a prova, foi aprovado e decidiu
se matricular foi cada um desses alunos. Nada do que
fazíamos era reconhecido pelos alunos. Só conseguiam se
lembrar dos problemas acontecidos, nunca do esforço para
resolvê-los. (PEREIRA, 2006, p. 1)

Sendo assim, o presente artigo apresenta um relato de experiência


na coordenação de um curso de Licenciatura em Música em uma
instituição pública de ensino superior. Justifica-se a relevância deste

Pesquisa e Música 131


trabalho por ser um tema que, mesmo fazendo parte do cotidiano das
instituições de ensino, é muito raramente tratado em artigos
acadêmicos. Além disso, é importante registrar os desafios de docentes
que se propõem a gerir um curso, dada a situação totalmente adversa
em que se encontram, tendo que sacrificar momentaneamente sua
carreira acadêmica e artística - esta última uma exclusividade dos
docentes da área de Artes - em prol dos interesses de alunos, professores,
funcionários e demais indivíduos da comunidade ligada ao curso em
questão.
Este é um lado da administração pública pouco atendido, mas
que pode servir de exemplo para reflexão sobre as políticas públicas de
uma maneira mais ampla. É evidente que a coordenação de curso não
é um cargo visado por quem pretende usar a administração pública
para benefício próprio, assim, estas condições laborais poderiam ser
estendidas para outros cargos públicos. Dessa forma, a mentalidade
de quem pretende assumir um cargo público seria trazer contribuições
para a instituição e a comunidade envolvida.

1 ATRIBUIÇÕES DO COORDENADOR DE CURSO

Inicialmente, foi realizada uma pesquisa sobre referências que


tratam sobre o exercício da coordenação de curso em nível superior.
Boa parte da literatura constitui-se por relatos de experiência na
coordenação de cursos à distância, focando mais no uso de ferramentas
tecnológicas e nas metodologias pedagógicas do que no exercício da
administração em si, a exemplo dos trabalhos de Neves Júnior et al
(2007), Bagatin et al (2010), Jaber-Silva et al (2014). Poucos foram os
trabalhos encontrados sobre a coordenação de cursos presenciais, e
todos eles abordam a gestão em instituições privadas. Pereira (2006)
aborda a criação de um curso de Computação no interior de Minas
Gerais, enquanto Leoni et al (2008) tratam sobre a coordenação do
curso de Enfermagem da Universidade Estácio de Sá/RJ. Não foram
encontrados artigos ou documentos que tratam especificamente da
gestão de cursos de graduação na área de Música. Ressalta-se que, no
caso específico desta área, a maioria dos cursos são oferecidos por
instituições públicas.
Tratando acerca das competências e responsabilidades inerentes
ao exercício da coordenação de curso, Franco (2002) aborda de forma
abrangente o tema, tendo em mente o que se espera de um coordenador
de curso "ideal". O autor classifica as atribuições deste cargo em quatro
vertentes (FRANCO, 2002, p. 5-17):

132 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


♦ Funções políticas: tratam do respeito e apoio que o
coordenador precisa manter para concretizar suas decisões,
dentro e fora da instituição. Franco afirma que o
coordenador precisa ser uma referência em sua área,
estimular a produção de conhecimento, representar muito
bem o curso, promover sua publicidade e manter o diálogo
com empresas, instituições e comunidade externa ao curso;
♦ Funções gerenciais: remetem às ações e procedimentos
para manutenção e desenvolvimento dos recursos físicos e
humanos do curso. Dentre as funções enumeradas pelo
autor, destacam-se a supervisão de laboratórios e
equipamentos, aquisição de livros e atualização da
bibliografia, conhecer a movimentação do acervo
bibliográfico, estímulo e controle da frequência discente,
registro acadêmico de discentes e agilidade no
encaminhamento de processos;
♦ Funções acadêmicas: concretização e avaliação da
estrutura curricular e do projeto pedagógico do curso.
Algumas funções são a elaboração, execução e atualização
do projeto pedagógico, sincronização do curso com o
projeto institucional, desenvolvimento interessante e
atrativo das atividades obrigatórias e complementares,
qualidade e regularidade das avaliações aplicadas no curso,
estímulo à realização de atividades de extensão, pesquisa
e participação em eventos da área, orientação e
acompanhamento de monitores e realização do estágio
supervisionado obrigatório e não-obrigatório, mantendo
diálogo com instituições potenciais como campo de estágio;
♦ Funções institucionais: responsabilidades sobre o
desempenho e imagem do curso perante a sociedade,
representando a instituição. Franco atribui aqui as funções
de responsabilidade pelo desempenho dos discentes no
"Provão" (atual ENADE - Exame Nacional de Desempenho
de Estudantes) e em exames de sua classe profissional (a
exemplo do que ocorre com a Ordem dos Advogados ou no
Conselho Federal de Contabilidade, entre outros), inserção
e "empregabilidade" dos ex-alunos no mercado de trabalho,
acompanhamento de egressos, reconhecimento e
renovação do curso perante o Ministério da Educação e
regionalidade do curso, atendendo às particularidades da
região onde o mesmo se insere.
Pesquisa e Música 133
Nesse sentido, Casarin (2015) atribui metas que devem ser
cumpridas pelo coordenador de curso, assemelhando-se às funções
definidas por Franco:

1) Conceitos positivos nas avaliações do MEC - ENADE e AGC


(Avaliação de Cursos de Graduação);
2) Baixos índices para as variáveis: Desistências -
Transferências - Trancamentos de Matrículas (a soma destas
três variáveis resulta na evasão);
3) Elevados índices para as seguintes variáveis: C/V (relação
candidato/vaga) - número de ingressantes - número de
formandos - número de alunos matriculados;
4) Elevado nível de relacionamento e integração entre os
seguintes segmentos acadêmicos: coordenador - professor -
aluno - gestores da IES. (CASARIN, 2015, p.1)

Nota-se, conforme o discurso dos autores, que além de todas as


atribuições institucionais, acadêmicas, políticas e procedimentais às
quais está sujeito o coordenador de curso, ele acaba ainda se tornando
"refém" dos processo de avaliação dos cursos, atualmente feito pelo
MEC a partir do SINAES - Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior - e de seu principal instrumento avaliativo: a prova do ENADE.
A partir de 2008, o MEC passou a divulgar anualmente o IGC - Índice
Geral de Cursos - que é obtido através do desempenho dos cursos de
graduação de todo o país no SINAES. Bittencourt et al (2009, p.670)
afirmam que "a grande repercussão da divulgação do IGC pela imprensa
transformou este indicador num poderoso e polêmico instrumento de
marketing institucional e de formação de opinião pública". Para as
instituições privadas, diferentemente das instituições públicas de ensino
superior, o sucesso no SINAES acaba se tornando um mecanismo de
sobrevivência institucional, sendo preocupante a pressão à qual estão
sujeitos os coordenadores de curso dessas instituições.

1.1 Sobre Departamentos Acadêmicos

Algumas funções de coordenador de curso atribuídas por Franco


não foram mencionadas no item anterior. São elas:

O Coordenador deve ser responsável pelo estímulo e controle


da freqüência docente (...) O Coordenador deve ser
responsável pela indicação da contratação de docentes (...)O
Coordenador de Curso deve ser responsável pelo engajamento

134 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


de professores e alunos em programas e projetos de extensão
universitária. (FRANCO, 2002, p. 9-14).

Nas instituições de ensino superior que ainda possuem


Departamentos Acadêmicos, tais atribuições remetem ao Chefe do
Departamento, que tem como principal responsabilidade tratar de
assuntos ligados ao corpo docente. Segundo Franco (2002, p.3), a Lei
nº 9.394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação, as instituições não
precisam mais possuir Departamentos Acadêmicos em sua estrutura
organizacional, sendo esta uma obrigatoriedade da Lei nº 5.540/1966.
Todavia, a LDB em vigência também não menciona a extinção deles.
Franco continua:

Na prática, porém, tais departamentos eram apenas setores


carreirocêntricos, ou seja, um departamento para cada curso
oferecido e, quando muito, alguns poucos departamentos
gerais, sem grande expressão na vivência acadêmica. (...)
No passado não distante em muitas instituições, havia
duplicidade de atribuições e funções, fossem as cometidas
aos chefes de departamentos, fossem as cometidas aos
coordenadores de cursos. Foram mesmo famitas muitas as
entidades educacionais que optaram pela existência de
departamentos carreirocêntricos, conforme foi referido.
(FRANCO, 2002, p. 3)

Entretanto, o que se tem observado em instituições que não


possuem Departamentos Acadêmicos é que todas as funções e
responsabilidades desse setor acabam recaindo sobre o coordenador
do curso - fato que se configura também como centralização de poder1
, indo em contraponto ao que versa o Federalismo e a Constituição
Federal de 1988 (RABAT, 2002, p.11).
Além de constituir uma política atual do MEC, é bastante
provável que a extinção dos Departamentos Acadêmicos tenha o
propósito de cortar gastos, pois haverá apenas um gestor para todos
os assuntos - e problemas - relacionados a um curso de graduação.

"No nível político-institucional, a centralização de poder própria do regime autoritário já chegou


1

ao fim, a partir da tentativa embrionária, representada pela constituição de 1988, de repartição de


poderes, descentralização de decisões e, naturalmente, recuperação da estrutura e dos ideais
federativos. Soma-se a isso um fator de descentralização mais estrutural." (RABAT, 2002, p.11)
Este trecho demonstra que a centralização da tomada de decisões é uma característica própria de
modelos autoritários de gestão.

Pesquisa e Música 135


Além disso, não se define com clareza quem irá gerenciar recursos
financeiros para viagens a serviço e hospedagem para participação
em eventos, papel fundamental de intercâmbio científico, artístico e
cultural promovido pelos Departamentos Acadêmicos.

2 RELATO DE EXPERIÊNCIA

2.1 Considerações iniciais

A priori, mostra-se oportuno tecer um breve histórico sobre o


curso objeto do presente trabalho. O curso de Licenciatura em Música,
criado pela Resolução CONSUN nº 96, de 31 de Outubro de 2006, veio
suprir uma antiga demanda pelo curso em sua região, caracterizada
por ter uma cultura rica e muito particular, porém, praticamente
inexplorada em termos de conhecimentos técnico-musicais. Sendo um
curso relativamente recente, sua primeira turma ingressou no 1º
semestre de 2007. Neste momento, a instituição contava com três
professores efetivos da área de Música e uma sala específica para
ministração de disciplinas para o curso. A frequência de ingressantes
é de trinta alunos por semestre, sendo que no Vestibular da época,
aplicava-se um Teste de Habilidades Específicas em Música (THEM)
juntamente com as provas das demais áreas do conhecimento, a
exemplo do que ocorre na grande maioria dos cursos de graduação
em Música do país.
À medida que a quantidade de turmas foi aumentando, a
necessidade de haver espaços físicos, equipamentos, instrumentos
musicais e professores também aumentou. Todavia, nem o projeto
pedagógico do curso e o Plano de Estratégico Desenvolvimento
Institucional (PEDI) previam este crescimento, dificultando ainda mais
a já difícil providência por recursos nas instituições públicas. Abaixo,
segue um quadro demonstrativo da situação do curso até o ano de
2013, obtido a partir de documentos oficiais do curso (tabela 1):

136 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Tabela 1 - Estatísticas do curso de Licenciatura em Música desde 2007
Docentes Docentes Vagas do Número de Proporção
Período
Efetivos Ativos Substitutos curso Turmas Discente/Docente
2007/1º 3 0 30 1 10
2007/2º 4 1 30 1 6
2008/1º 4 2 90 3 15
2008/2º 4 1 120 4 24
2009/1º 3 1 150 5 37,5
2009/2º 7 0 180 6 25,7
2010/1º 8 1 209 7 23,2
2010/2º 8 1 239 8 26,5
2011/1º 7 1 268 9 29,8
2011/2º 7 1 297 10 37,1
2012/1º 7 3 322 11 32,2
2012/2º 5 4 352 12 39,1
Fonte: Coordenação do Curso de Música

A seguir, apresenta-se um quadro comparativo entre os recursos


físicos disponíveis de cursos de graduação em Música de alguns
instituições públicas de ensino superior no país (tabela 2):

Tabela 2 - Espaços físicos para cursos de Música em algumas Universidades


públicas brasileiras

Instituição
Especificação
UFRN UDESC UFSJ UFSCar Pesquisada
Ano de criação do curso 1996 1994 2006 2007 2007
Ano da consulta 2003 2007 2008 2007 2012
Salas exclusivas do curso 26 10 4 3 3
Laboratórios 1 1 5 7 1
Salas de estudo de discentes 20 5 10 1 0
Auditórios de Música 2 1 1 0 0
Gabinetes de professor 2 1 17 2 1
Bibliotecas de Música 1 0 1 0 0
Depósitos ou Almoxarifado 1 1 1 0 1
Somatório de espaços 53 19 39 13 6

Fonte: Coordenação do Curso de Música

Pesquisa e Música 137


Diante da situação crítica em que se encontrava o curso, o Centro
Acadêmico de Música (CAMUS) realizou uma manifestação no dia 26
de Outubro de 2012, na mesma semana em que o curso fora avaliado
pelo MEC, tendo obtido nota 3. Tal fato foi registrado pela comissão
avaliadora no relatório de avaliação do curso:

Durante a visita in loco, presenciou-se uma manifestação dos


alunos, que começou na sede do curso e se estendeu até à
Reitoria, em que reivindicavam melhorias para o curso de
música. A manifestação foi feita através de performance
musical de banda, em que os alunos portavam faixas com as
seguintes frases: "não queremos aplausos, queremos
professores"; "Música também é profissão"; "Luto pelo curso
de Música"; "Queremos o Centro de Artes prometido há anos";
"Juntos pelo curso de Música." (COMISSÃO DE AVALIAÇÃO
DO MEC, 2012, p. 8)

Em dezembro de 2012, seguindo uma tendência observada desde


o segundo ano após a criação do curso - 2009, no caso - houve nova
renúncia ao cargo de coordenador de curso, a sexta em três anos.
Diante das consideráveis dificuldades em que o curso se encontrava,
os docentes ficavam até o limite de suas forças emocionais.
Assim sendo, a função de coordenador de curso foi assumida
em janeiro de 2013, sendo mantido no cargo até as eleições de março
de 2013, tornando-se candidato único e vindo a ser o primeiro
coordenador eleito na trajetória do curso.

2.2 Primeiro ano da gestão - 2013

Os desafios mais significativos deste momento eram: manter as


conquistas feitas pelas administrações anteriores; favorecer a
integração entre os membros do Colegiado do curso; estabelecer um
padrão de produção artística e bibliográfica; buscar melhorias de
recursos materiais e humanos; retornar o THEM no acesso às vagas
de graduação.
Aproveitando o fato da instituição estar substituindo o sistema
de gestão acadêmica pelo SIGAA, elaborado pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), a Coordenação de Música elaborou
um Manual de uso do sistema para os alunos, ilustrado com imagens
dos principais comandos do sistema. Mesmo havendo material
semelhante disponibilizado na internet por outras instituições, este
manual se diferenciava por possuir uma escrita simples e direta,

138 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


contemplando os comandos mais utilizados, e acabou sendo exportado
para a Pró-Reitoria de Ensino. Entretanto, a maior dificuldade era
habituar os alunos a utilizar o novo sistema, pois antes de sua
implementação, todo o gerenciamento acadêmico era feito
presencialmente pela coordenação. Isso gerava uma dificuldade imensa
de atendimento, além de consumir o tempo do coordenador de curso
na resolução de problemas como cancelamento manual de matrículas,
notas erradas no histórico escolar e demais procedimentos cotidianos
que não contribuem para o futuro do curso em longo prazo. Somando-
se a isso, a falta de recursos para atividades rotineiras - como, por
exemplo: impressoras defeituosas, servidores que encaminhavam
memorandos e ofícios para os setores errados, processos que
demoravam a ser respondidos, entre outros - dificultavam ainda mais
o trabalho administrativo. Cabe ressaltar que o curso só foi ter seu
primeiro técnico-administrativo em Novembro de 2014, tendo
trabalhado até então com bolsistas administrativos e um funcionário
contratado. Até lá, até a redação de atas das reuniões do Colegiado de
Música era feita pelo coordenador de curso.
Três anos antes do SIGAA ser implementado, o coordenador de
curso - em seu mandato pro-tempore, de 2010 - elaborou uma página
virtual, disponibilizando documentos do curso (o projeto pedagógico,
estruturas curriculares, planos de disciplinas, normas complementares)
e informações gerais (mapa das salas, vestibular, arquivos modelos de
apresentação e trabalho de conclusão, entre outros). Reforçando a
afirmação de diversos autores, a utilização de recursos de Tecnologia
da Informação e Comunicação (TIC) contribui muito para a agilidade
e organização da gestão dos cursos de graduação:

O desenvolvimento de modelos e práticas de gestão, em


especial aqueles associados ao uso das novas tecnologias da
informação, provocam grandes transformações nos processos
de gestão das IES, em todos os níveis. (FRANCO, 2002, p. 1).

A página do curso - feita em código HTML e hospedada em http:/


/musica.ufma.br - foi constantemente revisada pelo coordenador, sob
o objetivo de tornar o acesso à informação mais rápido a partir de
uma interface gráfica simples e direta. Uma integração com o domínio
http://www.blogspot.com, instalada em Fevereiro de 2014, permitiu
que docentes e discentes do CAMUS passassem a utilizar esta página
para divulgação de eventos, cursos, projetos, oficinas, concertos e shows
internos e externos à instituição, havendo divulgação até mesmo de

Pesquisa e Música 139


concursos públicos para a área de Música. Assim, a página se tornou
um grande portal inclusive para músicos independentes, alunos e
professores de outras instituições. O gráfico a seguir demonstrando a
quantidade de acessos mensais até 07 de Março de 2015 (figura 1),
havendo uma média de 1.373 visitas por mês:

Figura 1 - Quantidade de acessos mensais à página virtual do Curso de Música


(consulta em 07/03/2015)

Com relação ao estabelecimento de uma produção artística e


bibliográfica mínima, é interessante observar a afirmação de Franco:

O Coordenador deve ser um líder reconhecido na área de


conhecimento do Curso. É certo que essa liderança a que se
faz alusão resultará do conceito atribuído pelos pares do
Coordenador, internos e/ou externos. O grau de
reconhecimento poderá ser local, regional, nacional ou até
mesmo internacional. Ele será reconhecido como líder na
sua área de conhecimento à medida que se transforme em
referência na área profissional do Curso que dirige. (...) É
possível dizer-se que o exercício da liderança por parte do
Coordenador de Curso seja talvez a condição primeira para
o sucesso do curso. No mínimo, será exemplo para os docentes
e para os estudantes. (FRANCO, 2002, p. 5).

Torna-se evidente, então, que não basta o coordenador de curso


possuir conhecimentos administrativos ou pedagógicos: ele tem que
ser um especialista em sua área do conhecimento. Dozza, ao tratar
sobre a formação de professores de Artes para a educação básica,
ilustra a situação:

140 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


O processo de revisão das licenciaturas iniciado na década
de 80 trouxe para o debate a questão pouco resolvida da
relação conteúdos específicos/ conteúdos pedagógicos na
formação de professores e foi acrescido da discussão sobre o
papel social desses cursos numa sociedade desigual e
excludente como a brasileira. Formar que professores para
quais demandas? (DOZZA, 2009, p.320).

Ressalta-se que, devido à falta de sólido conhecimento específico,


a área de Artes passou pela árdua experiência da polivalência,
concebida através do ensino da disciplina de Educação Artística,
instituída pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 5.692/
1971. Desde a implementação da LDB nº 9.394/1996, observa-se uma
significativa mudança na concepção do ensino de Arte na Educação
Básica, buscando extinguir a polivalência do ensino de Educação
Artística que, após vinte e cinco anos de adoção no ensino básico,
disseminou concepções negativas sobre a Arte. Como consequência,
sentida ainda nos dias de hoje, observa-se a fata de respeito com que
grande parcela da sociedade brasileira trata o artista profissional e o
conhecimento artístico.
Dentre as concepções pedagógicas que reforçam a irrelevância
da disciplina Educação Artística perante os demais componentes
curriculares da Educação Básica em sua época, destacam-se as
seguintes colocações:

O sistema educacional não exige notas em artes porque arte-


educação é concebida como uma atividade, mas não como
uma disciplina de acordo com interpretações da lei
educacional 5692. Algumas escolas exigem notas a fim de
colocar artes num mesmo nível de importância com outras
disciplinas; nestes casos, o professor deixa as crianças se
auto-avaliarem ou as avalia a partir do interesse, do bom
comportamento e da dedicação ao trabalho. (BARBOSA,
1989, p.171).

Continuando:

Os cursos foram, com raríssimas exceções, implantados e


trabalhados como um laissez-faire, um deixar fazer "qualquer
coisa", partindo ora de uma sensibilização apenas primeira,
ora de simplistas apropriações de sucatas e/ou "lixo-limpo"
para grotescas reproduções copistas (...) (FRANGE, 2002,
p.40).

Pesquisa e Música 141


Sendo assim, em se tratando de uma Licenciatura, voltada à
formação de professores para a Educação Básica - como é no caso do
curso em pauta - é imperativo que o coordenador do curso zele pelo
conhecimento específico da área, ainda mais frente às dificuldades
históricas em que se encontra a Música e o ensino de Arte.
Cumprindo esta missão, o coordenador do curso conduziu
paralelamente um projeto de extensão com dois bolsistas e um
voluntário, apoiado pela Pró-Reitoria de Extensão, voltado à
composição e adaptação de repertório da cultura regional para a
formação de Piano, Canto, Trombone e Violoncelo (inicialmente),
contemplando ensaios, divulgação e realização de concertos, sendo
sua página hospedada em http://musica.ufma.br/grupomusical.
Houve, ainda, digitalização de partituras do Inventário Pe. João
Mohana, presente no Arquivo Público do Estado do Maranhão. O
musicólogo João Berchmans (UFPI) versa sobre a importância deste
Inventário:

Este acervo é uma importante coleção de obras musicais


recolhidas pelo padre e médico maranhense, João Mohana,
e que representa uma amostra da produção musical do
Maranhão do século XIX e primeira metade do século XX.
Este conjunto de peças musicais, que totaliza 2.125 obras,
foi adquirido e organizado pelo Arquivo Público do Estado
do Maranhão, em 1987, estando hoje sob sua guarda na rua
de Nazaré, no 218, no centro histórico de São Luís, em um
setor específico relacionado à produção musical maranhense.
Como fazia parte de um espólio particular, até então
desconhecido dos pesquisadores, é possível hoje dimensionar
a sua importância para a música brasileira, caracterizando-
se pela multiplicidade de formas - sinfonias, missas, aberturas
sinfônicas, peças para solista e de câmara - de gêneros -
religioso, popular, operístico, camerístico - e de funções -
concertos comemorativos, festividades religiosas, temporadas
líricas e de concertos, cerimônias de caráter militar, e
divertimentos e saraus, podendo-se ter uma idéia do perfil
musical da sociedade maranhense de então. (CARVALHO
SOBRINHO, 2004, p.16-17).

Com relação ao projeto, mesmo estando longe de atingir os


resultados esperados, a iniciativa proporcionou motivação a docentes
e discentes, estimulando-os a realizar ações semelhantes.

142 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Outro importante trabalho conduzido foi o Subprojeto de Artes
do PIBID - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência,
apoiado pela CAPES (página: http://musica.ufma.br/pibidartes). Esta
coordenação de área, que estava vaga devido ao desligamento do
coordenador anterior da instituição, foi assumida no mesmo tempo
que a coordenação do curso. Havia os seguintes desafios: restabelecer
a produção do subprojeto e finalizá-lo, desmembrando-o nos
subprojetos de Artes Visuais, Música e Teatro. O subprojeto de Artes
possuía vinte bolsistas estudantes, sendo dez de Artes Visuais e dez de
Música. Apesar da concepção polivalente do subprojeto, ele fora
conduzido com base nas especificidades de cada linguagem artística,
com planejamento didático e de conteúdo próprio de Artes Visuais ou
de Música. Mesmo sendo uma medida trabalhosa - era como se fossem
conduzidos dois subprojetos diferentes - ela fora necessária para
cumprir com o ideal da Arte-Educação de erradicar o ensino polivalente,
possuindo amparo na LDB nº 9.394/1996, nas Diretrizes Curriculares
Nacionais dos cursos de graduação em Artes Visuais (Resolução CNE/
CES 01/2009) e Música (Resolução CNE/CES 02/2004), e nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Arte:

O ensino do teatro, da música, da dança, das artes visuais e


suas repercussões nas artes audiovisuais e midiáticas é tarefa
a ser desenvolvida por professores especialistas, com domínio
de saber nas linguagens mencionadas. (BRASIL, 2006, p.
202).

Sendo assim, o subprojeto de Artes proporcionou a formação


em áreas específicas do conhecimento artístico para a Educação Básica,
trabalhando em parceria com o Colégio Universitário (COLUN/UFMA)
e o Liceu Maranhense. Em Julho de 2013, foram elaborados os
subprojetos de Artes Visuais, Música e Teatro, aprovados em Dezembro
de 2013 pela CAPES. Suas atividades foram iniciadas em Fevereiro de
2014, concomitantemente com o encerramento das atividades do
subprojeto de Artes.
O subprojeto de Música (página: http://musica.ufma.br/pibid),
por sua vez, deu continuidade ao trabalho específico nesta linguagem
artística, contemplando atividades de formação de banda de fanfarra,
canto coral, pesquisa musicológica sobre História da Música
Maranhense, ensino de teoria musical e prática de musicalização para
a Educação Básica, mantendo parceria com o COLUN/UFMA e o Centro
Integrado do Rio Anil (CINTRA), sendo esta última a maior escola de

Pesquisa e Música 143


ensino básico da América Latina, possuindo mais de nove mil alunos
ativos.

2.3 Segundo ano da gestão - 2014

Em 2014, um grande desafio já se apresentou à coordenação de


curso: a necessidade de retornar o Teste de Habilidades Específicas em
Música (THEM) no processo seletivo de acesso às vagas de graduação.
Desde a criação do curso, em 2007, os candidatos às vagas de
Licenciatura em Música faziam, além das provas "normais" do
vestibular, um teste de conteúdos e habilidades musicais. Além de ser
uma práxis comum na grande maioria dos cursos técnicos e de
graduação em Música no país desde a década de 1930 (CERQUEIRA,
2012, p.465-466), a aplicação desta prova é prevista no projeto
pedagógico do curso em questão.
A partir de 2010, a instituição aderiu ao Sistema de Seleção
Unificado (SiSU) na totalidade de suas vagas, abolindo por completo o
vestibular tradicional - diferentemente das demais instituições de ensino
superior, que foram aderindo aos poucos a este novo sistema. Uma
provável razão para esta adesão total e repentina é descrita por Luz e
Veloso:

A aceitação naturalizada evidencia o quão forte uma política


nacional pode ser, principalmente quando se coloca em
destaque o "auxílio financeiro" como contrapartida da
aceitação. Um jogo político que ilude a instituição na
utilização de sua autonomia em aceitar ou não tal processo,
mas que amarra a sua decisão ao aporte de investimentos,
que historicamente se construíram precariamente nas
instituições públicas de educação superior. (LUZ; VELOSO,
2014, p.81).

Apresenta-se a seguir uma breve explicação sobre a implantação


e funcionamento do SiSU:

Em 2010, através da Portaria Normativa nº 02/2010 o


Ministério da Educação propôs a implantação de um novo
sistema de seleção, visando à unificação e padronização do
Concurso Vestibular, realizado anualmente por todas as
Instituições de Ensino Superior do Brasil. Este procedimento
foi denominado como SiSU - Sistema de Seleção Unificado.
(...) este sistema baseia-se na nota final do Exame Nacional

144 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


do Ensino Médio (ENEM) como critério para ingresso nos
cursos de Graduação das instituições que aderiram ao presente
sistema. Assim sendo, a instituição informa o número de
vagas disponíveis em cada curso ao Ministério da Educação,
para disponibilizar as informações no sistema. (CERQUEIRA,
2010, p.1-2).

A problemática acerca da adesão ao SiSU, especificamente na


área de Música, é a impossibilidade de adotar uma prova de habilidade
específica, sendo permitido computar apenas a nota do ENEM. Todavia,
tal fato só seria reforçado legalmente pelo MEC a partir de 2011:

9. Finalizando, informamos: (...)


ii - Cursos na modalidade EAD (ensino a distância) e cursos
que exijam prova de habilidade específica não poderão ser
ofertados por meio do Sisu. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
2011, p.2).

Entretanto, desde 2010, a instituição passara a adotar uma forma


alternativa de aderir ao SiSU e ainda exigir o THEM. Para tal, o Edital
exigia que o candidato apresentasse um "documento comprobatório
de habilidades musicais", que poderia ser um diploma de curso técnico
em Música ou um "certificado de aptidão musical" expedido pela
coordenação do curso para os candidatos aprovados no teste. Esta
forma de conduzir o teste trouxe inúmeros transtornos à coordenação,
pois vários candidatos que passavam no SiSU sem fazer o teste entraram
com um mandado de segurança, obrigado o curso a realizar o teste
para o candidato. No primeiro semestre de 2010, foram aplicados treze
testes por mandado de segurança, e para cada aplicação, era necessário
cancelar aulas e convocar professores.
Diante do problema e da falta de diálogo com a administração
central da instituição para com o assunto, a aplicação do teste foi
cancelada pelo Gabinete do Reitor no primeiro semestre de 2013,
tornando o acesso às vagas de graduação em Música exclusivo pelo
SiSU, com base nas notas do ENEM. A falta do teste trouxe impactos
negativos imediatos, sendo os mais relevantes:

♦ Índice altíssimo de desistência logo no primeiro período,


superando 50% de ingressantes (os dados serão demonstrados
adiante);
♦ Alteração da proposta pedagógica de diversas disciplinas que,
devido ao ingresso de alunos sem nenhuma experiência musical,

Pesquisa e Música 145


tiveram de contemplar conteúdos elementares não previstos nas
ementas.

A discussão sobre a adoção do THEM não é consenso entre as


instituições de ensino superior (CERQUEIRA, 2012, p.466). Em todos
os casos, a proposta de formação do curso e o projeto pedagógico devem
ser respeitados. Entretanto, o que se observa em muitas instituições é
uma pressão política pelo fim da prova de habilidades específicas para
os cursos que a adotam, enquanto aqueles que não a possuem ficam
imunes a esta coação. Os cursos de áreas que tradicionalmente adotam
o teste vendem a imagem de que são a favor da "inclusão social" e
contra a "elitização" - conceitos frágeis e questionáveis que, na verdade,
tem sido utilizados recorrentemente por partidos políticos.
Com relação ao caso específico em pauta, duas breves analogias
ilustram bem a situação vivenciada pelo curso de Licenciatura em
Música neste momento:
♦ Em cursos superiores na área de Exatas, não se ensinam
operações aritméticas elementares como adição, subtração,
multiplicação ou divisão;
♦ Nos cursos de graduação em Letras, os alunos não precisam ser
alfabetizados quando ingressam.

O que estava acontecendo no curso de Música é justamente isso:


conceitos elementares de alturas, durações, intensidade e timbre tinham
de ser ensinados no primeiro período, bem como os respectivos signos
que representam estes parâmetros, ou seja: a partitura. Este é mais
uma consequência da precariedade do ensino de Música na Educação
Básica, que não possui carga horária satisfatória, regularidade ou
organização de conteúdo - ao contrário do que acontece com Português
e Matemática que possuem, em média, carga horária superior a 2.000
horas cada uma apenas no ensino fundamental (PELLEGRINI, 2006),
enquanto Arte possui 640 horas divididas entre Artes Visuais, Dança,
Música e Teatro, à critério da escola.
Ainda, sobre o perfil do ingressante, cabe ressaltar que na
localidade onde o curso se insere, há diversas Escolas de Música
gratuitas e projetos sociais de inclusão através da Música, cujos
participantes muitas vezes optam por continuar seus estudos em nível
superior. Sendo assim, a retirada do THEM não os permite ter seus
conhecimentos musicais reconhecidos no processo seletivo,
beneficiando os candidatos que estão estudando somente para o ENEM.
É natural que quem está estudando Música paralelamente obtenha

146 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


um desempenho menor no ENEM, sendo assim, o THEM assume o
papel de valorizar quem possui conhecimento musical, e não de
meramente "excluir" candidatos - problema este que, segundo a análise
de Luz e Veloso, não foi resolvido pelo SiSU:

O discurso de uma possível democratização do acesso


disseminada para a defesa do ENEM e SiSU, apresentando-
os como uma política que inibiria a desigualdade do acesso,
não consegue alcançar os objetivos de uma democratização.
Seus critérios continuam os mesmos, e a lógica da "igualdade
de oportunidade" continua a mesma construída
historicamente no ingresso ao ensino superior brasileiro.
(LUZ; VELOSO, 2014, p.82).

Sem o THEM, muitos candidatos em potencial não passavam


no SiSU, sendo que muitos deles já atuavam na área e realmente
gostariam de fazer um curso superior de Música - diferente dos
candidatos provindos da política de demérito acadêmico estabelecida
pelo SiSU, que segue a lógica de pedir matrícula no curso em que obteve
nota suficiente para passar, mas sem necessariamente querer fazê-lo.
Por fim, como forma de resolver esta grave problemática
pedagógica do curso e fazer valer o cumprimento de seu projeto
pedagógico e a autonomia do corpo docente, foi movido um processo
no Ministério Público Federal, em Julho de 2012. A procuradoria deu
causa favorável à administração central, recomendando a alteração
do projeto pedagógico do curso. Em reunião extraordinária do
Colegiado de Música realizada em 25 de Outubro de 2013, os membros
foram unânimes em reiterar a importância do THEM para o
funcionamento do curso, descartando a alteração do projeto
pedagógico do mesmo. Em processo posterior junto ao MEC - onde o
Reitor da instituição fora obrigado a se manifestar - o caso foi
finalmente levado ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão
(CONSEPE), que aprovou por unanimidade a adoção do THEM.
Dessa forma, o teste voltou a ser aplicado, mas fora do SiSU - tal qual
conforme idealizado pela coordenação do curso - passando o ingresso
a ser gerenciado a partir da soma das notas do THEM (provas escrita
e prática) com a média das notas do ENEM.
Dados sobre as últimas turmas do curso revelam os impactos
dos diversos formatos de processos seletivos adotados nos quatro
últimos anos (tabela 3):

Pesquisa e Música 147


Tabela 3 - Estatísticas das sete últimas turmas do curso (consulta em 13/
03/2015)

Turma THEM Ingressantes Ativos Trancados Cancelados


2012.1 Sim (*) 29 17 (58,6%) 2 10 (34,5%)
2012.2 Sim (*) 22 14 (63,6%) 4 4 (18,9%)
2013.1 Não 29 16 (55,2%) 1 12 (41,4%)
2013.2 Não 30 16 (53,3%) 0 14 (46,7%)
2014.1 Não 31 24 (77,4%) 3 4 (12,9%)
2014.2 Sim 28 27 (96,4%) 0 1 (3,6%)
2015.1 Sim 30 28 (93,3%) 0 2 (6,7%)

Conforme o quadro (tab. 3), as turmas que ingressaram em


2012.1 e 2012.2 chegaram a ter o teste, porém, este fora feito através
do mecanismo de certificação (*). O índice de desistência destas turmas
é alto - fato já esperado porque o mecanismo de certificação
apresentava problemas, pois até certificados de participação em
festivais estavam sendo aceitos como documento comprobatório pelo
setor responsável pelas matrículas. Os ingressantes entre 2013.1 e
2014.1 entraram por intermédio do SiSU, sendo que as turmas de
2013.1 e 2013.2 apresentaram a maior taxa de desistência na pesquisa.
Surpreendentemente, a turma de 2014.1 tem um índice baixo de
desistência. A experiência coordenador do curso com a turma, que
ministra disciplina no primeiro período da estrutura curricular,
demonstra que estes alunos possuem um desejo muito grande de
estudar, sendo a maioria proveniente de grupos musicais de igrejas,
sendo esta uma turma diferenciada. A partir de 2014.2, as turmas
passaram a ingressar através do THEM em conjunto com o ENEM,
conforme critérios que valorizam o conhecimento musical. Os dados
comprovam o baixíssimo nível de desistência. Houve candidatos que
se mudaram de cidades do interior para fazer o curso, pois desejam se
tornar referência na área quando retornarem para seus locais. A
dinâmica das aulas com a turma de 2014.2 foi completamente diferente
das turmas anteriores, pois os alunos concluíam mais rapidamente as
atividades, com competência e - especialmente - motivação.
Em termos administrativos, a volta do THEM trouxe muito
trabalho à coordenação de curso, pois todo o processo seletivo fica sob
responsabilidade deste setor: inscrições, divulgação, elaboração e
aplicação das provas, publicação do resultado, realização das
matrículas e resposta a recursos jurídicos - sempre existe esta demanda.
Esta seria uma vantagem do SiSU: a instituição não tem nenhum gasto

148 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


com o processo seletivo, que é regido pelo MEC. Outra dificuldade é a
falta de apoio da administração central, que somente permitiu a
aplicação do THEM após ordem judicial. Todavia, os benefícios são
inestimáveis, principalmente para quem vive o cotidiano do curso. Vale
muito a pena este esforço.
Outro importante momento da coordenação do curso foi a
participação no I Encontro Nacional do Ensino Superior das Artes,
realizado na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) entre 24 e 26
de Março de 2014. Pela primeira vez na história da Universidade
brasileira, houve uma reunião entre o governo e membros da área de
Artes para discutir políticas públicas de Cultura e Educação para as
Artes. Os debates revelaram questões que ressoam em todas as
instituições, destacando-se:
♦ As áreas das Artes são marginalizadas das políticas institucionais,
inclusive em assuntos de sua própria competência - fato que
geralmente é assumido por Pró-Reitorias de Extensão,
Departamentos de Cultura ou equivalentes;
♦ Não existe um plano de carreiras voltado às necessidades e
particularidades do magistério artístico, a exemplo do que ocorre
nas Universidades do Estado de São Paulo (UNICAMP, 1993);
♦ Quando a instituição precisa de uma apresentação musical,
espetáculo cênico ou exposição visual sem remuneração, sempre
se recorre aos Departamentos e Coordenações das áreas de Artes
- e quando tem recurso, nunca os consulta.

Assim, a área de Artes vai se mantendo "apesar" das instituições,


onde o artista se vê obrigado a justificar o porquê de sua prática a
cada projeto proposto. Além disso, soma-se o desinteresse e falta de
conhecimento da instituição para tratar sobre assuntos da área, a
exemplo do que ocorrera com a retirada da prova de Música do
vestibular. Espera-se que a participação neste momento possa
proporcionar debates e ações futuras, a exemplo do que já se vê nos
Conselhos de Cultura nas variadas instâncias. Reforça-se que a
coordenação do curso ainda participou da formulação de resoluções
para a instituição, participando de todas as consultas públicas para as
Normas Regulamentadoras do Ensino da Graduação, Normas de
Estágio Supervisionado e Normas da Carreira de Magistério Superior.
Por fim, como consequência das discussões políticas e
administrativas sobre a Música vivenciadas nos últimos tempos, o
coordenador de curso organizou em parceria com a Setorial de Música
do Conselho Estadual de Cultura o primeiro "Encontro de Músicos",

Pesquisa e Música 149


voltado à discussão sobre a carreira de músico, suas relações de
trabalho, assistência previdenciária e a formação de um Fórum
Permanente no Estado, para consolidar um espaço formal de
participação popular nos músicos nas formulações de políticas públicas
para a Cultura.
A experiência do Fórum Nacional de Música (FNM) reforça a
importância de criar uma entidade semelhante no Estado. Seguem
algumas reivindicações discutidas no FNM que se concretizaram,
segundo a Cartilha do FNM:

Os integrantes do FNM participaram ativamente do processo


de criação das Câmaras Setoriais, das duas Conferências
Nacionais da Cultura e do Colegiado Setorial da Música
propondo e debatendo diretrizes para a construção de uma
política pública para o setor musical em seus múltiplos
aspectos (formação, patrimônio, direito autoral,
regulamentação profissional, fomento, produção, difusão,
consumo, etc.). O FNM participou também das reuniões na
Cúpula Social do Mercosul em Brasília (2006) e dos
seminários sobre as mudanças na Lei de Direito Autoral
promovidos pelo Ministério da Cultura em todo o país. (...)
Através de uma reivindicação do FNM e posterior mobilização
de deputados e senadores, foi aprovada a Lei 11.769/2008
que institui o ensino obrigatório de música nas escolas. (...)
Num movimento inédito de mobilização nacional o FNM
chamou a atenção da imprensa e da opinião pública para a
situação da Ordem dos Músicos do Brasil, promovendo
manifestações em vários estados que resultaram na derrubada
do presidente nacional da entidade, empossado no cargo pelos
militares desde 1964. Concomitantemente aos fóruns
estaduais, em cada estado e região os músicos começaram a
se organizar em coletivos, associações e cooperativas,
seguindo uma tendência nacional de articulação da classe
impulsionada pela convocação oficial do governo federal.
Essas entidades, por sua vez, cada uma procurando atender
às demandas locais de seus integrantes, vieram a fortalecer
e respaldar as ações dos fóruns estaduais. (...) Atualmente o
FNM é o guardião do Plano Setorial da Música, que possui
as diretrizes fundamentais de políticas públicas para o setor
musical construída nos últimos anos. Entre as principais
reivindicações estão a criação da Agência Nacional da
Música, a revisão da lei dos direitos autorais e a
regulamentação da profissão de músico, entre outras. (KA,
2013, p.3-4).

150 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Sendo assim, este evento foi o primeiro passo na tentativa de
articular os músicos e demais profissionais da área, a fim de participar
ativamente da formulação de políticas para o setor.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ter sido uma fase de intenso trabalho, esta etapa como
coordenador de curso permitiu consolidar administrativamente uma
estrutura básica para o desenvolvimento e realização de atividades
musicais na instituição. É fundamental reforçar que o conhecimento
específico da área de Música - suas particularidades, problemáticas e
desafios - foi essencial para situar o curso perante a realidade nacional,
e assim propor mudanças à altura das instituições mais qualificadas
da área. Não se pretende falar aqui em "qualidade do ensino", pois
como afirmam Souza e Rodrigues, "o conceito de qualidade tornou-se
repetitivo nos documentos e discursos que acompanham as propostas
de ação no campo educativo e é utilizado para justificar determinadas
estratégias de políticas educativas" (SOUZA; RODRIGUES, 2014, p.1),
esvaziando assim o sentido do termo. Logo, pensa-se em defender e
concretizar os ideais vistos como mais adequados à área de Música,
com base na própria experiência como pianista e professor, acreditando
que este exemplo trará benefícios para discentes, docentes e toda a
comunidade ligada ao curso.
Apesar do escopo limitado da coordenação de curso, procurou-
se uma gestão para além dos limites institucionais, a partir da
participação e organização de trabalhos e eventos em nível regional e
nacional. Por fim, a essência de profissão de músico é viver de um
sonho, nos levando a enfrentar todos os preconceitos e dificuldades no
longo percurso da profissão. Espera-se que este espírito sonhador, possa
servir como exemplo, para assim continuarem batalhando na
realização de seus sonhos. É importante lembrar que no caso do
coordenador de curso, ele também vive os sonhos de outros.

Pesquisa e Música 151


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154 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


NOS SONS DE OUTRORA: V estígios da
Vestígios
Cultura Material Escolar na Obra
Pedagógica V illalobiana
Villalobiana

Ednardo Monteiro Gonzaga Monti

INTRODUÇÃO

Como um toque de clarim na madrugada clara de uma vida


nova, os hinos e as canções cívicas, de um civismo puro e
sadio, aprendidos com alegria nas escolas espalhar-se-ão
festivamente pelos céus do Universo1.
Heitor Villa-Lobos

A música acompanha a vida das pessoas e de muitas instituições.


O registro dessa expressão artística é um suporte para memória, uma
fonte para a História. As partituras guardam e retratam em suas
páginas, pela musicografia, vestígios das experiências sonoras e
manifestações de um indivíduo, de uma comunidade, de um povo, de
uma nação; os selos dos seus editores apontam os vínculos dos
compositores e suas instituições, as marginálias indicam as datas dos
ensaios e apresentações de quem as manusearam; entre os
pentagramas, as claves, as notas e as figuras rítmicas, encontram-se
muitas poesias que conservam dados das alegrias e vitórias
conquistadas, das dores de significativas perdas, das reivindicações de
militantes inconformados com o governo, com um regime, ou
manifestações a seu favor. Além disso, esta arte também interfere nos
rumos da História na medida em que se articula política e
pedagogicamente com a cultura.

1
VILLA-LOBOS, Heitor. Boletim Latino-Americano de Música, Rio de Janeiro, fev.1946, p.
544.
As Canções Escolares focalizadas no presente artigo fazem parte
do repertório constituído para o projeto de canto coletivo conhecido
no Brasil como Canto Orfeônico, desenvolvido pelo músico e educador
Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e adotado oficialmente no ensino
público brasileiro. Esta proposta musical-pedagógica foi implantada
na década de 1930 e tornou-se obrigatória, inicialmente na então
capital da República. Depois, se multiplicou pelos estados brasileiros
em diferentes estabelecimentos de ensino primário e secundário.
Na Era Vargas, para a implantação e ampliação da disciplina
Canto Orfeônico, houve a necessidade da organização de materiais
específicos que se desdobraram em novos materiais da cultura escolar.
O Maestro Villa-Lobos2 brasileiro, com o objetivo de atender à demanda
daquele período, sistematizou as canções num conjunto de coletâneas.
Dentre outros cancioneiros pedagógicos desse período, no presente
artigo focalizam-se as Canções Escolares do Canto Orfeônico - Volume I.
Vale destacar que o primeiro volume da coleção aqui em questão, de
1940, está dividido pelas seguintes temáticas: Canções de Ofício, Canções
Militares, Canções Patrióticas, Canções Escolares e Canções Folclóricas.
As peças da categoria Canções Escolares, de um modo geral, são
de execução mais simples devido à finalidade sinalizada no próprio
tema da seção. Em outras palavras, essas músicas foram compostas e
direcionadas à necessidade de repertórios para serem cantados por
alunos ainda pequenos ou muito jovens, em seu dia a dia nas escolas.
Enquanto as músicas dos outros agrupamentos são mais difíceis pelo
seu caráter performático - uma vez que essas, musicalmente mais
apoteóticas, eram utilizadas nas grandes concentrações orfeônicas -
as Canções Escolares possuem letras e construções melódicas bem
acessíveis para utilização no interior das instituições de ensino.
Portanto, estas eram composições mais ligadas à cultura escolar do
período, à rotina e ao interior das comunidades educativas, em geral
com poesias e paisagens sonoras vinculadas à organização do tempo e
do espaço escolar. Assim, a partir de tal recorte, neste estudo são
valorizadas as peças entendidas como mais expressivas da coleção,
para uma reflexão sobre a cultura material da escola.

2
Doravante os termos com letra maiúscula referem-se aos seguintes elementos: Conservatório e
Instituição - ao Conservatório Nacional de Canto Orfeônico; Maestro - ao músico Heitor Villa-
Lobos; Hinário e Cancioneiro - ao Canto Orfeônico - Volume I.

156 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Nesta direção, os pensamentos de alguns autores são
fundamentais como interlocução teórica. Juntamente com Swanwick
(1991), compreende-se que as escolas são importantes agentes no
processo de transmissão da música como um discurso cultural no qual
os alunos são herdeiros de um conjunto de valores e práticas. E, por
meio dessa linguagem artística, as crianças e os jovens podem aprender
conteúdos significativos e construir competências relevantes para a
vida, além de serem habilitadas para participações em atividades
musicais cotidianas. Esse pressuposto do campo da educação musical
pode ser articulado com a ideia de Abreu Junior (2005), quando se
compreende que existe uma cultura material no ambiente escolar
patenteada não somente no caráter concreto dos objetos, mas,
igualmente, revelada no e pelo emprego desses objetos que são um
esteio material sinalizador de subjetividades.
Assim, com os conceitos de Swanwick (1991) e Abreu Junior
(2005), busca-se neste texto investigar uma prática musical, o Canto
Orfeônico, como um discurso cultural e seus desdobramentos nos
objetos e utensílios escolares, tais como: instrumentos e hinários. Nessa
direção, juntamente com Mignot (2010), entende-se que a cultura
material da escola é impregnada de registros, evidências de um
cotidiano passado, agendas educativas de outrora que sinalizam o
currículo explícito ou oculto e a cultura que se transmite ou se produz.
Então, a partir dos pressupostos mencionados, investe-se numa
reflexão sobre possíveis cruzamentos das práticas de canto coletivo
com os objetos e suas marcas, levantando-se as seguintes questões:
como o Canto Orfeônico - Volume I, elemento que integrou a cultura
material da escola na Era Vargas, foi constituído? De que maneira as
Canções Escolares sugerem e podem ter influenciado as relações dos
orfeonistas com o espaço escolar e outros elementos da cultura
material da escola?
Para responder as questões mencionadas, no primeiro tópico
deste texto há análises do Canto Orfeônico - Volume I, como suporte de
um discurso cultural e das técnicas musicais e pedagógicas utilizadas
na sua construção. O Hinário, em si, é entendido como um elemento
da cultura material da escola, uma vez que esse cancioneiro foi
publicado em forma de livro e distribuído nas instituições de ensino.
Seguem, então, na segunda seção deste trabalho, algumas reflexões
sobre as letras e as estruturas musicais - perpassando por elementos
como ritmo, melodia, harmonia e timbre das músicas -, que compõem
a seção Canções Escolares.

Pesquisa e Música 157


O CANTO ORFEÔNICO - VOLUME I: UM ELEMENTO DA
CULTURA MATERIAL DA ESCOLA

A obra pedagógica de Villa-Lobos, aqui em questão, é constituída


por peças criadas pelo próprio Maestro e por outras músicas que foram
catalogadas em seu estado natural e depois arranjadas para a execução
no ambiente escolar, endossadas pela SEMA (Superintendência de
Educação Musical e Artística do Distrito Federal) e pelo Conservatório
Nacional de Canto Orfeônico. Em todas as edições do Hinário, há o
registro nas capas: obra "Aprovada pela Comissão Nacional do Livro
Didático". Assim, percebe-se a forte ligação da obra musical-pedagógica
com o governo, com uma função referencial, também chamada de
curricular ou programática, na qual o livro didático pode ser a tradução
de um programa, um "suporte privilegiado dos conteúdos educativos,
o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo
social acredita que seja necessário transmitir às novas gerações."
(CHOPPIN, 2003, p.553)
As primeiras edições do primeiro volume da coleção Canto
Orfeônico foram publicadas pela editora: Irmãos Vitale Editores, que
era empresa bastante respeitada no meio dos músicos de concerto,
pois divulgava a obra de músicos eruditos e acadêmicos como Oscar
Lorenzo Fernández e Cesar Guerra Peixe, assim como métodos de piano
e outros instrumentos. Depois, o próprio Conservatório Nacional de
Canto Orfeônico começou a editar e a publicar o hinário.
Nos primeiros anos da década de 40 do século passado, o
Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (CNCO)3 funcionou no 7º
andar do Edifício Piauí, situado na Avenida Almirante Barroso, nº 72,
na cidade do Rio de Janeiro. Um espaço físico pequeno, insuficiente
para abrigar a coordenação de um ambicioso projeto musical-
pedagógico de abrangência nacional. Anos depois da fundação a
Instituição foi transferida para da Praia do Flamengo 132.
O Conservatório também abrigou os trabalhos de editorações
das partituras, algumas produções gráficas e um curso de formação
artífice; medidas que foram tomadas para ampliar e agilizar a produção
dos hinários, como o Canto Orfeônico - I Volume, e das partituras
utilizadas pelos docentes e discentes das escolas de todo o Brasil. A

3
Instituição que foi criada para o controle da formação dos professores legalmente habilitados
para atuar como educadores musicais, em todo território nacional, e para produzir o material
didático do projeto pedagógico musical villalobiano.

158 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Formação de Músico Artífice, de acordo com a Lei Orgânica do Ensino
do Canto Orfeônico, foi criada para atender aos propósitos do projeto
musical e era organizada da seguinte maneira:

1.º Período

Cópia de Música
1) Cópia em papel liso e com pentagrama.
2) Execução de matrizes para mimeógrafo.

Gravação Musical
1) Preparação de chapas de chumbo para gravação.
2) Tiragem de provas de chapas.
3) Gravação.

Impressão Musical
1) Impressão em mimeógrafo.
2) Reprodução de cópias heliográficas.

2.º Período

Cópia de Música
1) Cópia em papel vegetal.
2) Execução de matrizes para mimeógrafos.

Gravação Musical
1) Gravação

Impressão Musical
1) Impressão em máquina rotativa.
2) Reprodução de cópias em Rotofóto.

(VILLA-LOBOS, 1946, p.564)

Assim, percebe-se que a primeira edição do Canto Orfeônio -


Volume I, em 1940, foi publicada, pela editora Irmãos Vitale, num
contexto em que o Maestro e sua equipe de trabalho sentiam falta de
profissionais na área gráfica para cópias de textos, gravações
fonográficas e impressão de partituras, devido ao aumento da
necessidade de publicações de materiais que as práticas orfeônicas
demandavam. Nas palavras do educador musical:

Pesquisa e Música 159


Sendo flagrante em nosso meio a carência de músicos-artífices
especializados nos serviços de cópias, gravação e impressão
de música em todas as suas modalidades, não só para as
casas editores de música como para o ensino de Canto
Orfeônico, em particular e que, como é do conhecimento de
todos, essa falta de profissionais acarreta maior
encarecimento dos referidos serviços, tornando mais onerosa
a publicação de músicas no Conservatório Nacional de Canto
orfeônico, este estabelecimento, necessitando para a sua
secção de pesquisas, de uma equipe de gravadores e copistas,
instalou o curso de formação de músico-artífice. Este curso
tem por fim preparar profissionais tecnicamente habilitados
para os trabalhos acima mencionados. (VILLA-LOBOS, 1946,
p. 564).

Segundo as palavras de Villa-Lobos no Boletim Latino Americano


de Música (1946), não foi difícil a implantação da gráfica e dos cursos
para uma publicação dentro dos moldes desejados pelo Conservatório.
Ambas as criações eram principalmente justificadas pelas reduções de
custos inevitáveis com as produções, pois a Instituição dirigida pelo
Maestro também era responsável por fornecer as partituras, em forma
de livros, para os professores de todo Brasil. Assim, a segunda edição
do Canto Orfeônico - Volume I, distribuída nas escolas públicas
brasileiras e vendida para as instituições privadas, foi impressa pelo
próprio Conservatório. Este fato indica custos mais baixos para maior
divulgação da obra pelo país, o apoio do Governo ao projeto e o
fortalecimento das práticas orfeônicas no Brasil.
Vale destacar que o Maestro brasileiro teve contato com o Canto
Orfeônico na França, país berço desse método de educação musical,
onde existia uma editora exclusiva, com gráfica própria para a
produção dos hinários. Nesse sentido, pode-se pensar que Villa-Lobos,
ao implantar uma gráfica orfeônica no Brasil, utilizou modelos
semelhantes aos adotados pela cultura material escolar francesa.
Assim, juntamente com as ideias de Mignot e Gondra, percebe-se que:

No movimento de constituição do Estado Nacional é possível


evidenciar empréstimos e diálogos com modelos
internacionais nos mais diversos domínios. No campo da
instrução, este fenômeno também é observável na produção
das instituições educativas, na legislação educacional, nos
livros estrangeiros, nas traduções, no modelo de imprensa,
materiais pedagógicos, métodos de ensino e até vocabulário
empregado. (MIGNOT e GONDRA, 2010, p.7).

160 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Assim percebe-se que o Canto Orfeônico - Volume I, como um
elemento da cultura material da escola, é fruto de "uma busca por
operar mudanças na educação nacional, tomando como parâmetro
experiências realizadas no estrangeiro" (MIGNOT, GONDRA, 2007, p.8).
Pelo que parece, Villa-Lobos fez como os "educadores de um modo
geral e reformadores, em especial, [que] lançaram mão de uma série
de estratégias para se aproximarem do que havia de mais moderno em
termos de educação." (Idem) Em outras palavras, o livro didático em
questão era portador de empréstimos das técnicas consideradas como
mais avançadas do período.
O hinário Canto Orfeônico - Volume I - que circulava nas escolas
brasileiras, nas bibliotecas e entre os professores de música - reverberava
as investigações lideradas por Villa-Lobos com um grupo de músicos
investigadores que se dedicava especificamente ao Centro de Pesquisas
Musicais do Conservatório. Este grupo de pesquisa realizava seu
trabalho por meio de viagens para catalogação de peças nos diferentes
estados brasileiros, para registrar a música em seu estado puro,
original, conforme cantada pelos camponeses, índios e outros grupos.
(GOLDEMBERG, 1995)
Se, por um lado, na captação de repertório, o Centro de Pesquisas
Musicais funcionava no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico;
por outro lado, o Centro de Coordenação, que era responsável pela
divulgação do repertório orfeônico, também procedia na perspectiva
de intercâmbio, porém num contexto interno. Era esta divisão que
promovia, por meio de reuniões semanais, a "formação continuada"
dos professores Especialistas em Música e Canto Orfeônico. Os docentes
já formados, dos diferentes estados brasileiros, e os alunos candidatos
ao magistério da disciplina Música e Canto Orfeônico encontravam-se
para debater sobre questões pedagógicas e fazer leituras de novas peças
de canto coletivo para as escolas. Ou seja, no Centro de Coordenação
os educadores musicais aprendiam como fazer uso dos itens da cultura
material da escola; dos hinários publicados pelo Conservatório, com o
conteúdo selecionado pelo Centro de Pesquisa, e dos espaços físicos.
Em outras palavras, a utilização do Hinário no Conservatório
fazia as canções reverberarem nas instituições de ensino, na medida
em que, nas reuniões, os professores tinham contato com o repertório
que deveria ser utilizado nos dias festivos, nas concentrações orfeônicas
e no cotidiano escolar. Assim, percebe-se que "há de fato uma cultura
material na escola que se manifesta vivamente pela concretude não só
dos objetos, mas, também, das práticas empreendidas com esses [e
através desses] objetos." (ABREU JUNIOR, 2005, p. 146).

Pesquisa e Música 161


AS CANÇÕES ESCOLARES: DA PAISAGEM SONORA À
CULTURA MATERIAL

Na prática musical-pedagógica, na utilização do Canto Orfeônico


- Volume I, dentre outras peças, as Canções Escolares eram mais ligadas
ao cotidiano escolar. Musicalmente parece que a escola, nessa
categoria, foi considerada como um lugar específico. "Do mesmo modo
que o templo designa um território litúrgico que provoca um
comportamento especificado, a escola delimita um espaço que requer
igualmente determinados comportamentos e atitudes geradoras de
valores" (FERNANDES, 2005, p. 20).
Nesse sentido, em termos relacionados ao objetivo aqui proposto,
percebe-se que as Canções Escolares foram construídas com
especificidades ligadas à rotina escolar, o que não acontece nas outras
modalidades do Hinário, nas quais muitas peças folclóricas e regionais
são frutos das catalogações da equipe de pesquisa do Conservatório,
associadas aos arranjos do músico brasileiro responsável pelo projeto.
As Canções Escolares não foram coletadas na cultura popular, mas
compostas com fins específicos. Disto depreende-se certa
intencionalidade, talvez a principal do cancioneiro, pois as canções
em questão são as primeiras do livro, muitas delas são marchas - ritmo
que é mencionado no subtítulo da obra: "Marchas, Canções e Cantos
marciais para Educação Consciente da unidade de tempo" -; além de
formarem a maior categoria do Hinário, pois o cancioneiro é composto
por 41 músicas e suas respectivas poesias, e o grupo aqui investigado,
com 13 peças, compõe 29,3% do total.

1. Meus brinquedos - Música de Júlia Dickie, arranjo de H. Villa-


Lobos;
2. Vamos crianças4 - arranjo de H. Villa-Lobos;
3. Vamos companheiros - do livro Alvorada de F. Losano, arranjo
de H. Villa-Lobos;
4. Carneirinho de algodão - letra de Sylvio Salema, música de H.
Villa-Lobos;
5. Soldadinhos - poesia de Narbal Fontes, música de Sylvio Salema,
arranjo de H. Villa-Lobos;

4
Há peças em que os autores não são mencionados no Hinário, apenas consta o nome de Villa-
Lobos como arranjador.

162 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


6. Marcha escolar (meu sapinho) - letra e música de Sylvio
Salema, arranjo de H. Villa-Lobos;
7. Marcha escolar (volta do recreio) - letra de Catarina Santoro,
música de E. Villalba Filho, arranjo de H. Villa-Lobos;
8. Marcha escolar (ida para o recreio) - arranjo de H. Villa-Lobos;
9. Marcha escolar (passeio) - arranjo de H. Villa-Lobos;
10. Marcha escolar (vocalismo) - arranjo de H. Villa-Lobos
12. Canção escolar - música de Assis Pacheco;
13. Dia de Alegria - letra de Catarina Santoro, música de H. Villa-
Lobos.

Meus Brinquedos, a primeira peça da categoria Canções Escolares,


e também a que abre o hinário orfeônico villalobiano, numa linguagem
que se pretende infantil, apresenta regozijo, alegria e diversão, aspectos
articulados com um elemento comum da cultura infantil, do universo
da criança: uma bola "macia e grande". Na primeira pessoa do singular,
as crianças cantavam que gostavam de brincar. Assim, percebe-se que
a intenção de Heitor Villa-Lobos era abrir espaço para que, por meio
da "brincadeira", as crianças vivenciassem as experiências musicais
orfeônicas nas escolas brasileiras.

Figura 2. Canção escolar Meus Brinquedos5

5 Nessa peça,
VILLA-LOBOS, Heitor.aCanto
criança, ao Rio
Orfeônico. cantar, chama
de Janeiro, um
1940. 1.º dos p.
volume, elementos da
4. Fonte: Acervo
do Centro de Memória da Educação Brasileira - ISERJ.

Pesquisa e Música 163


cultura material para a brincadeira. Quase sempre presente na escola,
a bola, macia e grande como um brinquedo, pode representar no
contexto escolar: saúde, energia, informalidade e "possibilidades de
atividades que provocam valiosas experiências corporais,
enriquecedoras da cultura corporal das crianças em geral".
(MARTINELI, FUGI, MILESKI, 2009, p.256). Na partitura, não existe
indicação de dinâmica, entretanto, todas as notas da música estão
sinalizadas com staccato6, o que parece remeter-se a uma bola bastante
saltitante que ajuda no controle rítmico, marcando o pulso, mantendo
o andamento e que, ao mesmo tempo, é um vibrante estímulo aos
movimentos.
Na sequência, na segunda peça do hinário, Vamos Crianças, há
referências ao canto e à alegria como elementos inerentes ao
"trabalho". Dessa maneira, nas atividades escolares, sons como "hum-
hum-hum!, lá-lá-lás!, ah-ah-ah!", na segunda e na terceira vozes,
perpassam a paisagem sonora com marcas da leveza do mundo infantil
de outrora ao lado do trabalho, como um dever escolar. Assim, depois
da chamada com a bola, mencionada na primeira canção, as músicas
que seguem são vinculadas aos deslocamentos dentro dos espaços
escolares ou como uma chamada para alguma atividade. A canção
Vamos Crianças podia ser utilizada para qualquer tipo de atividade no
interior das instituições de ensino.

6
Do italiano, significa desligado. Durante a execução de uma música, separam-se "as notas das
suas vizinhas por um perceptível silêncio de articulação que recebe uma certa ênfase." O seu
oposto é o legato. "O staccato é notado com um ponto, um traço vertical ou um sinal em forma
de cunha". (GROVE, 1994, p. 896).

164 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Figura 3. Partitura da canção Vamos Crianças7

Nessa música, numa perspectiva bastante semelhante às Canções


de Ofício, há referências ao trabalho como um momento de alegria,
que faz muito bem para a coletividade e dignifica o homem. Portanto,
parece que, com as Canções Escolares, o Maestro pretendia construir a
representação do trabalho como algo relevante desde a infância. Dessa
maneira, as Canções Escolares referem-se à criança, cuja profissão é
ser estudante, e transforma os utensílios escolares, os uniformes e os
brinquedos em instrumentos de trabalho.
Dentre as canções da temática em questão, encontram-se outras
marchas que têm como objetivo a organização dos deslocamentos de
rotina para espaços escolares pré-determinados. Nessa perspectiva, são
bastante significativas a ida e a volta ao recreio aqui analisadas, por
serem momentos em que as crianças gozavam de certas liberdades.
Por exemplo, na canção Marcha Escolar - Ida para o Recreio -, de Villa-
Lobos, pode-se perceber a postura que os docentes esperavam dos
orfeonistas como transeuntes dos corredores escolares.

7
VILLA-LOBOS, Heitor. Canto Orfeônico. Rio de Janeiro, 1940. 1.º volume, p. 5. Fonte: Acervo
do Centro de Memória da Educação Brasileira - ISERJ.

Pesquisa e Música 165


Marcha Escolar8
(Ida para o recreio)

Vamos colegas,
Findo é o estudo
Esqueçamos tudo
Vamos recrear
Todos em alas
Como bons soldados
Bem perfilados
Já marchar, marchar!

Todos alerta,
De cabeça erguida,
Posição correta,
Vamos dois a dois
Em linha certa
Todos aprumados,
E bem ritmados,
Caminhemos, pois!

Todos em fila,
Num alegre bando,
A' vóz do comando,
Marchemos, assim!
No campo aberto,
Como é bom a gente
Ir livremente,
Recrear, enfim!

Encontra-se, nos primeiros versos do texto da canção, o recrear


como uma aparente valorização da autonomia. E, nos versos que
seguem, bem como nas segunda e terceira estrofes, imperativos
referindo-se a comportamentos uniformes, insinuando que a tal
liberdade deveria ser experimentada pelos alunos nos espaços escolares
de maneira padronizada: "Todos alerta", "Todos aprumados", "Todos
em filas" e "Bem perfilados". Ou seja, uma mensagem na perspectiva
da disciplina, chamando os alunos "A' vóz do comando" no momento
do intervalo.

8
VILLA-LOBOS, Heitor. Canto Orfeônico. Rio de Janeiro, 1940. 1.º volume (p. 16 - 17). Fonte:
Acervo do Centro de Memória da Educação Brasileira- ISERJ.

166 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Na Marcha Escolar - Volta do Recreio, encontram-se referências
às representações patrióticas associadas aos sinais sonoros que
aparecem na introdução9 e na coda10 vocal de oito compassos, na forma
de melisma com a sílaba lá e no final das estrofes com a sílaba tim.
Nesses trechos, Villa-Lobos parece arranjar a peça com ferramentas
musicais onomatopaicas, que simulam os objetos da cultura material
da escola que são utilizados para sinalizar de maneira sonora a
organização do tempo.

Marcha Escolar11
(Volta do Recreio)

La! La! La-la! La! La! La! La-la! La!


La! La! La-la! La! La! La! La-la! La!

Quando o sinal nos tornar a chamar,


Para as salas depressa voltar
Vamos! Crianças! Vamos!
Quando o sinal tocar!
Tim! Tim! Tim! Tim! Tim!

Nosso dever bem sabemos cumprir


E direito as lições preparar!
Eia! Avante! Eia!
A pátria adorar!
Tim! Tim! Tim! Tim! Tim!

Quando o sinal nos chamar!


Tim! Tim! P'ra estudar!
Vamos todos bem depressa
Eia! Crianças! Quando o sinal tocar!

La! La! La-la! La! La! La! La-la! La!

9
Seção preparatória, geralmente em andamento lento, acrescentada como início de um movimento
extenso. O conceito é antigo, mas o termo está associado principalmente à música dos períodos
clássico e romântico. Em alguns casos, a introdução é tão importante que a palavra é incluída no
título da obra. (GROVE, 1994, p. 4).
10
A última parte de uma peça ou melodia; um acréscimo a um modelo, um forma padrão. Na fuga,
a coda é o material musical que surge após a última entrada do sujeito e, na forma sonata, o que
vem após a recapitulação. (GROVE, 1994, p.205).
11
VILLA-LOBOS, Heitor. Canto Orfeônico. Rio de Janeiro, 1940. 1.º volume (p. 14 - 15). Fonte:
Acervo do Centro de Memória da Educação Brasileira - ISERJ.

Pesquisa e Música 167


La! La! La-la! La! La! La! La-la! La!
Ei!

A Marcha Escolar - Volta do Recreio parece uma chamada


ao trabalho, os sons dos sinais escolares dessa canção sugerem
dinâmica e agilidade na volta do recreio, representações do dever a ser
cumprido depois do descanso, que leva à edificação para "A pátria
adorar". A melodia da canção em questão - que simula, com Tim!
Tim! Tim! Lá! Lá! Lá!, os sons emitidos pelo sinal da escola, que pode
ser um aparelho elétrico ou um sino - parece reforçar as ordens contidas
nas letras; as lições e os demais trabalhos escolares como um
instrumento de adoração à pátria, ou seja, o estudo/dever como versão
infantil de um caminhar rumo ao progresso.
Assim, a canção "soa" como um sinal de ativação das diferentes
percepções e dos movimentos necessários para desenvolver as
atividades escolares, para o dever ser "bem" cumprido e as lições serem
preparadas "direito". Ou ainda, num paralelo com o trabalho - uma
bandeira do governo de Getúlio -, como as sirenes das fábricas ou de
outras indústrias, onde a hora é bem marcada: "Quando o sinal tocar!".
É curioso observar que uma canção tenta ordenar a saída para o
recreio, pois as crianças deviam ter o hábito de sair correndo
desordenadamente, enquanto a outra tenta apressar a volta às salas
de aula, pois as crianças não deviam querer retornar, remanchando.
A canção intitulada como Soldadinhos é a quinta peça do primeiro
volume. O título no diminutivo remete às representações do tamanho,
da estatura dos pequeninos e, portanto, objetivava remeter ao mundo
infantil e ao campo da afetividade. Entretanto, como as outras canções,
traz o mundo da ordem ao ambiente escolar, ao ensino e à
aprendizagem.

168 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Figura 4. Imagem da partitura da canção Escolar Soldadinhos12

A leitura da letra dessa canção revela versos que tratam


das representações e valores da força. Nela, os elementos da linguagem
escrita não são os que mais evidenciam as representações da cultura
material da escola. Na verdade, os elementos musicais, combinados,
sugerem um conjunto discursivo que possivelmente geravam
ancoragens relevantes aos objetos educativos e à construção da
ideologia nacionalista na Era Vargas.
Em relação à composição musical da peça Soldadinhos,
por um lado, percebe-se na música em si, acima disposta graficamente
em forma de partitura, que há semelhança das células e fragmentos
rítmicos nos compassos 2, 4, 6 e 8 com o "toque de caixa", utilizado
pelas bandas militares, o que evidencia o foco na figura do soldado -
título da peça -, como exemplo de bom cidadão que dá a vida pela
pátria, de prontidão no serviço, de postura ereta e de disciplina
impecável, numa "marcha contente e feliz" de educação coletiva. Por
outro lado, nota-se que, ao cantá-la, representavam-se os sons dos

12
VILLA-LOBOS, Heitor. Canto Orfeônico. Rio de Janeiro, 1940. 1.º volume (p. 8 -9). Fonte:
Acervo do Centro de Memória da Educação Brasileira - ISERJ.

Pesquisa e Música 169


instrumentos musicais por meio da voz. Mesmo com a ausência do
instrumento musical de percussão bastante útil no processo de
musicalização, no que tange ao aspecto rítmico, a caixa13 e seus sons
eram "presentes" como instrumento musical pedagógico.
Outras representações militares também aparecem no aspecto
musical da peça. Além do ritmo de marcha e da melodia da segunda
voz, que é repleta de onomatopeias que parecem o rufar dos taróis, -
"Prr-rá! Pra!" -, dos desfiles de 7 de setembro, há combinações melódicas
na primeira voz, em forma de arpejos, que se assemelham a execução
do toque de clarim, o que forma um efeito sonoro de textura marcial
comum às bandas sinfônicas militares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, percebe-se nas análises aqui propostas, que o hinário


Canto Orfeônico - Volume I tornou-se um utensílio da cultura material
da escola e, num estudo de suas duas primeiras edições, pode ser
entendido como um elemento que demonstra a consonância do projeto
musical villalobiano com o governo de Getúlio Vargas. O Estado investiu
de maneira tal que o hinário deixou de ser publicado por uma empresa
privada para tornar-se uma produção exclusiva do Conservatório
Nacional de Canto Orfeônico, em 1942. Em outras palavras, o próprio
governo federal passou a subsidiar a edição e impressão com a compra
de um maquinário próprio e com a manutenção de artífices
especializados formados no interior da Instituição, além de divulgá-lo
e distribuí-lo por escolas de todo o país, como no modelo francês, que
era referência mundial de orfeonismo.
Diferente das canções folclóricas do Canto Orfeônico - I Volume,
as peças da categoria Canções Escolares insinuam vestígios das
vivências musicais das crianças em "verdadeiros" pelotões. Ao cantá-
las e analisá-las musicalmente, percebe-se que era viável a execução
de momentos cívicos no cotidiano, patriotismo em doses homeopáticas,
difundidos cotidianamente no interior dos prédios e pátios daquela
instituição, sem a presença de instrumentos, nos simples deslocamentos

13
Caixa, tarola, tarol caixeta clara ou, na designação original em inglês, snare drum, é um tipo de
tambor, debimenbranofone composto por um corpo cilíndrico de pequena seção, com duas
peles fixadas e tensionadas através de aros metálicos, com uma esteira de metal, constituída por
pequenas molas de arame colocadas em contato com a pele inferior que vibram através das
ressonâncias produzidas sempre que a pele superior é percutida, produzindo um som repicado,
característico das marchas militares. (GROVE, 1994).

170 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


diários de rotina. A paisagem sonora, gerada pela textura e pelo caráter
marcial dessas canções, como sugere a música, possivelmente fazia as
crianças sentirem-se no ambiente musical das bandas sinfônicas, como
numa parada militar infantil, seja na entrada ou na saída da Escola
Primária, seja na ida ou na volta do recreio.
Nessa perspectiva, o hinário orfeônico em questão, por meio das
Canções Escolares, além de serem elementos da cultura material escolar,
eram, aparentemente, capazes de simular no dia a dia os instrumentos
musicais geralmente ausentes no patrimônio de muitos setores das
escolas brasileiras no período. Por meio deles, a voz, como um toque
de clarim, era utilizada para suprir as carências materiais, os
instrumentos, nas aulas de música.

REFERÊNCIAS

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cultura material escolar. In: Pro-Posições (Unicamp), Campinas, v.
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Pesquisa e Música 171


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Música. 1946.

172 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


A HISTÓRIA EM RET ALHOS: Investigação
RETALHOS:
sobre a Música em Teresina entre 1852 e
Teresina
1920

Francisco Adriano dos Santos1


João Berchmans Carvalho Sobrinho2

1 INTRODUÇÃO

As transformações no Brasil do século XIX mudaram


significativamente a sociedade de um modo geral. Um dos mais
expressivos eventos ocorridos foi à vinda da família real portuguesa
para o Brasil, o que ocasionou mudanças nas estruturas sociais e
culturais das grandes cidades. Outro fator posterior e determinante
foram as intensas batalhas ocorridas pela independência que levaram
a ruir toda uma estrutura colonial/imperial presente até então.
Em meados do século XIX as questões administrativas internas
no Piauí se deram nas áreas econômicas e politicas o que foi um fator
importante para a criação e mudança da capital de Oeiras, nos sertões
do Piauí, para Teresina, que nasce para ser um ponto central de
comércio que liga o Piauí às províncias vizinhas por terra e ao poder
central do Brasil (capital - Rio de Janeiro) pelo rio Parnaíba e em
seguida por mar.
Aos poucos a cidade se moderniza e com elas os meios de
convivências sociais e a cultura produzida. Os traços de civilidade
outrora galgados começam a aparecer à medida que a cidade cresce e
com ela seus meios de comunicação e de produção cultural. A música
está no cerne dessa sociedade nascente e emana por todos os lados, a

1
Graduando em música pela Universidade Federal do Piauí, artigo apresentado para obtenção de
titulo de licenciatura em música. e-mail: franciscoadrianoviolao@gmail.com.
2
Professor Doutor da Universidade Federal do Piauí, Doutor em Música - Musicologia/
Etnomusicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, e-mail.
berchmans@ufpi.edu.br

Pesquisa e Música 173


priori, com o fazer cívico e patriótico das bandas locais, posteriormente,
com as mais diversas manifestações que vão surgindo, ao passo
enquanto a cidade se moderniza. A música era vista como diretamente
relacionada às sociabilidades emergentes impostas pela nova ordem
do progresso e da civilização. Fazer e amar a música significava
distinguir-se enquanto humano e civilizado. (QUEIROZ, 2008, p.68).
O referido recorte temporal se dá pela inicial criação da cidade e
suas manifestações musicais existentes até o ano de 1924, que
caracteriza-se pelo declínio do teatro musical teresinense, um dos pilares
da vida musical da cidade, que acaba perdendo espaço para novas
formas de diversão. Neste contexto, nossa investigação incide sobre
informações relevantes relacionadas à história musical da cidade e
dos personagens relacionados ao cenário musical presente neste recorte
temporal.
A importância desta pesquisa se dá pelo valor histórico de se
resgatar as manifestações musicais locais como forma de compreender
como se deram os processos de desenvolvimento da música e do gosto
musical, contidos na essência da vida social teresinense, assim o
presente trabalho espera servir como fonte de informações para
trabalhos futuros que possam contar a história da música na cidade e
no estado e assim contribuir para o resgate, divulgação e a utilização
pedagógica do material obtido.
O interesse particular sobre o tema surgiu do questionamento
do porquê de não haver estudos e consequentemente, publicações sobre
a história da música no e do Piauí e, em especial, Teresina. Entre os
trabalhos que servem de aportes bibliográficos para a pesquisa, está o
de Tito Filho (1975) que aborda a vida cultural de Teresina no entorno
da construção do Teatro 4 de Setembro. As abordagens de Queiroz
(2008) e seu olhar sobre os adventos da modernidade e as mudanças
ocorridas na vida social da cidade de Teresina com relação ao lazer.
Ainda serão necessárias às contribuições de Freitas (1988) e Dias (2008)
sobre a história de Teresina e também o trabalho de Ferreira Filho (2009)
sobre a história da educação musical no Piauí.

174 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


2 PANORAMA MUSICAL DO SÉCULO XIX

Na Europa o século XIX corresponde ao período do Romantismo


na música. Grout e Palisca (1995, p. 571) advertem sobre a ambiguidade
do termo romantismo:

Os termos clássico e romântico são particularmente


problemáticos. Ambas as palavras, no sentido em que são
utilizadas na literatura, nas belas-artes e na história geral,
têm uma multiplicidade de acepções muito maior do que a
que lhes atribuímos na história da música.

Destaca-se nesse período grande número de compositores


europeus de reconhecida destaque como: Chopin, J. Strauss, Verdi, Liszt,
Tchaikovsky, etc. Compositores de vastas e diversificadas obras nas mais
diversas formas musicais, circulavam por toda Europa divulgando seus
trabalhos.
A efervescência musical europeia e suas diversificadas
formas musicais influenciaram no repertório dos músicos profissionais
e amadores, sobretudo, no continente americano. No caso do Brasil,
os principais músicos brasileiros do período tiveram influências das
escolas europeias. Essa influência é vista por Monteiro (2005, p. 36)
que assim a descreve:

Classicismo, com Haydn (através das relações Brasil-Áustria


e a vinda de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo
operístico, com as obras de Piccini [Puccini?], Cimarosa,
David Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de
Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por José
Maurício.

José Maurício Nunes Garcia foi um dos notáveis nomes em


destaque nos anos iniciais do século XIX, sobretudos, por ter sido
escolhido para mestre de capela, junto com Marcos Portugal, da Real
Capela de Música no Rio de Janeiro.

Pesquisa e Música 175


Figura 1 - D. João ouvindo o Padre José Maurício ao cravo. Fonte:
Museu Histórico Nacional (website)

Para Monteiro (2005, p. 34) durante todo o período joanino,


houve no Rio de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída
basicamente em dois setores, o da Corte, onde a qualidade era
imprescindível, e o de fora da Corte em que a funcionalidade era festiva
e mítica.
Na figura a seguir estão relacionados alguns dos compositores
do período.

Figura 2 - cronologia dos compositores brasileiros. Fonte: do autor

176 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Outras mudanças ocorridas no período Regencial Brasileiro no
que compete ao cenário artístico-musical brasileiro ocorreram por
conta da missão artística francesa onde

Seguindo as orientações de Antônio Araújo de Azevedo, o


Conde da Barca, D. João aceitou a ideia de receber um grupo
de artistas vindos da França, cuja tarefa seria, segundo o
decreto de 12 de agosto de 1816, estabelecer uma Escola
Real de Ciências, Artes e Ofícios [...] promovendo progresso
na agricultura, mineralogia, indústria e comércio.
(TREVISAN, 2017, p.14).

A missão chega a março de 1816 e traz dentre outros, o arquiteto


Granjean de Montigny, autor de projetos de edificação urbana e
também os pintores Nicolas Tauny e Debret. (FAUSTO, 1995, p.217).
Acrescenta-se a esses, Joachim Lebreton, Auguste Marie Taunay
(escultor), Simon Pradir (gravador), Sigismund Nuekomm (compositor,
organista e mestre de capela) e François Ovide (engenheiro mecânico).
(TREVISAN, 2017, p.22).
Outras instituições importantes foram criadas com destaque para
a Biblioteca Real (atual Biblioteca Nacional), a Academia de Belas Artes,
Real Teatro de São João, Jardim Botânico. Outras melhorias no cenário
cultural segundo Fausto (1995) foram "o acesso aos livros, [...] veio a
publico o primeiro jornal editado na colônia".
A música no Piauí no início do século XIX se desenvolve
acompanhando as tendências do cenário nacional. As cidades que mais
se destacaram foram Oeiras e Parnaíba. Ferreira Filho (2009) afirma
que além de ser a primeira capital do Piauí, a cidade de Oeiras entrou
também para a nossa história como sendo seu principal centro de
produção musical até o final do século XIX. Segundo Reis (2006 apud
FERREIRA FILHO, 2009, p. 86) o fazer musical em terras oeirenses
era uma atividade, sobretudo, coletiva, caracterizada pelo agrupamento
de pessoas em bandas, pequenas orquestras e diversos outros tipos de
conjuntos musicais, como as mulheres bandolinistas.
Já a cidade de Parnaíba é onde se tem notícia dos primeiros
acontecimentos envolvendo música na província. Ferreira Filho (2009,
p. 89) argumenta que em razão de sua intensa atividade portuária,
era uma cidade de economia aquecida e que possuía um considerável
trânsito de viajantes sendo que o desenvolvimento ocasionado pelas
atividades comerciais portuárias certamente favoreceu o aparecimento
de corais, bandas e orquestras na única cidade litorânea do Piauí. O

Pesquisa e Música 177


fato é que naquela cidade alguns comerciantes ricos e influentes
mantinham grupos musicais para seus divertimentos e de seus visitantes
convidados.
As citações mais importantes sobre a vida musical de alguns ricos
comerciantes de Parnaíba são de dois viajantes: Henry Koster
(considerado um dos mais importantes cronistas sobre o Nordeste
brasileiro3) e Louis-François Tollenare (rico comerciante e tratadista)
que citaram em seus trabalhos um pouco de suas observações a respeito
dos gostos musicais de seus hospedeiros parnaibanos. Dias (2008, p.
220) e Ferreira filho (2009, p. 90) citam a passagem que há no livro de
Henry Koster sobre o assunto:

Fui introduzido nas casas dos primeiros negociantes e


plantadores. O coronel Simplício Dias, de Parnaíba, onde
possui magnífico solar, é rico e tem caráter independente.
Conta entre os seus escravos uma banda de Música, os quais
fizeram o aprendizado em Lisboa e no Rio.

Ferreira Filho, 2009 p. 90) a respeito da citação acima faz a


seguinte consideração:

Muito embora, segundo Kostner, o ofício da Música tenha


sido aprendido fora do Piauí - Lisboa e Rio de Janeiro - é
muito razoável se supor que os instrumentistas mais
experientes praticassem, naturalmente, a transmissão de
conhecimentos musicais aos novatos durante o dia a dia dos
trabalhos da orquestra, uma vez que a troca de informações
e conhecimentos entre os músicos é uma das principais
características dos grupos de câmara e das bandas de Música.

Já Monteiro (2005) diz que na verdade era necessário atender


um desejo de manter a pompa, a ostentação e a visibilidade de um
gosto; mas para isso era necessário que houvesse mão de obra
suficiente. Ainda sobre a formação de músicos no Brasil, Napolitano
(2002) expõe que a atividade musical profissional ainda era vista, em
meados do século XIX, como uma forma de trabalho artesanal, logo,
"coisa de escravos". Em outra passagem o autor ressalta que:

3
KOSTER, Henry. Onordeste.com (website). disponível em< http://onordeste.com/onordeste/
enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Henry+Koster&ltr=h&id_perso=1674> visitado em:
22/07/2016.

178 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


[...] O grosso da atividade musical, sobretudo no plano da
interpretação instrumental, era realizado por negros e
mestiços, muitos deles ainda escravos. Estes escravos músicos
eram altamente qualificados e suas atividades diárias se
concentravam no aperfeiçoamento da sua técnica. É notória,
mas ainda pouco estudada, a importância da Real Fazenda
de Santa Cruz, um verdadeiro conservatório só para escravos,
cuja tarefa era a de divertir a Corte Imperial. (NAPOLITANO,
2002, p. 29 - 30).

Portanto, relacionando essa passagem com o fato de que havia


uma aproximação grande entre Simplício Dias e a corte portuguesa,
principalmente com Dom Pedro I, como cita Dias (2009, p. 221),
entende-se que seus escravos podem perfeitamente terem passado por
formação tanto no Rio de Janeiro quanto em Lisboa como cita Koster.
Simplício Dias foi um dos comerciantes parnaibanos mais
influentes de seu tempo era letrado com formação na Europa e
mantinha relações comerciais dentre essas a exportação de produtos
como algodão, fumo, arroz, milho, carne e madeira. Para esse fim
herdou de seu pai cinco barcos, cujo três eram exclusivos para a
exportação de carne e seus subprodutos. (DIAS, 2008, p. 220).
Outra menção à riqueza e valores cultos e civilizados de Simplício
Dias está em no trabalho de Tonellare intitulado Notas dominicais. A
passagem em questão é citada por Ferreira Filho (2009, p. 90) e Dias
(2008, p. 220) que diz:

A cerca de 150 ou 180 léguas a leste de São Luiz e sobre o


continente, há a pequena cidade de Parnaíba, perto da qual
se cultiva o melhor algodão do país, muito superior a todas
as qualidades do Maranhão. Parnaíba recebe os produtos da
interessante capitania do Piauí, de que Oeiras é a Capital. É
em Parnaíba que se acha a excelente propriedade do Sr.
Simplício Dias da Silva, um dos mais opulentos particulares
do Brasil. Calcula-se em 1.800 o número dos seus escravos
[...]. O senhor Simplício Dias viajou na França e na
Inglaterra, e ali aprendeu conhecer o respeito devido à
civilização: ocupa-se das artes, vive em um luxo asiático,
mantém músicos com grande dispêndio.

Essas duas menções mostram a pouco interesse dentro de solo


piauiense até então pelo fazer musical. Ainda que esse interesse no
Brasil de um modo geral fosse do mesmo modo restrito e de recorrência
nas camadas mais abastadas (NAPOLITANO, 2002, p. 30).

Pesquisa e Música 179


Quanto à educação na província sempre foi um problema muito
sério os relatos de iniciativas de se promover educação pública dão a
entender que esta nunca despertou interesse nem dos jesuítas que por
aqui tiveram e nem da coroa, a pesar dos insistentes pedidos formais
dos provincianos desde o século XVIII. A tabela abaixo mostra algumas
tentativas de se implantar instituições educacionais na em Oeiras.

1749 Os jesuítas tentaram criar o Seminário do Rio Parnaíba com a intenção de formar sacerdotes.
Não chegou a funcionar sendo transferido para Caxias.

1757 Foram criadas as primeiras escolas primárias a que se tem notícia, eram duas, uma para
meninos e outra para meninas. Porém, estas escolas não obtiveram êxito.

1795 Junta Governativa solicitou à coroa em vão que fosse criada em Oeiras uma cadeira de
primeiras letras, pois em todo vasto território piauiense não havia uma só escola.

O governador Luiz Antônio de Sarmento Maia suplicou à coroa a criação de escolas porem
1805 somente em 1815 foi criada uma cadeira de primeiras letras, bem como nas Vilas de Parnaíba
e Campo Maior. Chegaram a funcionar, mas por pouco tempo.

O governador Baltasar de Sousa Botelho e Vasconcelos dirigiu um ofício ao rei expondo a


1818 situação em que se encontrava a instrução pública e apontando a necessidade de criar em
Oeiras uma cadeira de Latim. Atendendo a esse reclamo, uma resolução real mandou criar a
referida cadeira e atribuiu para os vencimentos do professor a quantia de 300$000 anuais.

1824 O ensino público no Piauí estava resumido às cadeiras de Latim de Oeiras e Parnaíba, e às
escolas primárias de Oeiras, Campo Maior e Valença.

Tabela 1 - Iniciativas de instituir a educação publica em Oeiras. Fonte:


Reis (2009, p. 81 - 84.).

Ferreira Filho (2008, p. 88) argumenta que até a segunda metade


do século XX não há registro algum da presença de disciplinas de
Música na grade curricular das escolas regulares da cidade, incluindo
aí o Liceu Piauiense, que foi a principal instituição educacional do
estado durante muitos anos e que funcionou em Oeiras de 1845 a
1852.
Os grandes empreendimentos envolvendo música século XIX em
Oeiras foi as duas bandas - Banda Vitória e Banda Triunfo - existentes
na época e a recém-criada Escola de Educandos Artífices que, segundo
Ferreira Filho (2008), "foi o embrião da banda da polícia militar".

180 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Figura 3 - Banda de música Vitória de Oeiras [191?]. Fonte: Ferreira Filho
(2008)

Os Estabelecimentos de Educandos Artífices ficaram bastante


conhecidos no século XIX por ser uma instituição pública voltada a
formar ofícios onde privilegiavam os meninos pobres e desvalidos das
cidades brasileiras. Cunha (2005 apud SILVA, 2010, p. 28) adverte que
o primeiro Colégio a funcionar no país foi em 1840, no estado do Pará.
Naquela mesma década foram fundados outros no Maranhão (1842),
São Paulo (1844) e Piauí (1849). Nos anos 1850 seguiram-se as
instituições de Alagoas (1854), Ceará (1856), Sergipe (1856), Amazonas
(1858), Rio Grande do Norte (1859) e Paraíba (1865).
Esse estabelecimento do Piauí foi criado em Oeiras em 1849 que
até então ainda era capital e posteriormente transferiu-se para Teresina
a nova capital sob decreto do então presidente da província. "Com a
mudança de capital, o ilustre presidente Dr. Saraiva, não abandonou a
obra tão profícua, posto que dispendiosa, da continuação da casa de
educandos artífices na nova capital". (FREITAS, 1988, p. 120).
As aulas de música dentro da instituição só viriam acontecer
em 1856, segundo Ferreira Filho:

Pesquisa e Música 181


"Contando em 1856 já com algo em torno de 48 alunos
matriculados, o Educandos Artífices passou a ter Música em
seu currículo por determinação do Conselheiro José Antônio
Saraiva. Transferido para Teresina através da mesma
resolução que transplantava o Liceu, o Estabelecimento dos
Educandos Artífices parece ter continuado seu programa de
Música ainda por algum tempo". (FERREIRA FILHO, 2008,
p. 97).

O estabelecimento de Educandos Artífices fez tanto sucesso em


Teresina que em 1858 "o presidente Junqueira dizia que era grande o
desejo dos pais e tutores de mandar seus filhos e tutelados para tão útil
Estabelecimento". (FREITAS, 1988, p. 125).
Bastos (1990 apud FERREIRA FILHO, 2008, p. 97) afirma que a
última notícia que se tem dessa instituição diz respeito ao
funcionamento de sua banda de Música por volta do ano de 1870.
Ferreira Filho (2008) complementa que o Educandos Artífices foi extinto
em 1873.

3 CENÁRIO MUSICAL DA CIDADE DE TERESINA FINAL DO


SÉCULO XIX ÀS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

A cidade de Teresina nos seus primeiros anos enfrentou um


processo de povoamento lento e desenvolvimento cultural de pouca
produtividade. Dias (2008 p. 270) cita Odilon Nunes sobre os primórdios
da cidade:

Ao chegar a Teresina havia boas construções na Praça da


Constituição (atual Deodoro) e Praça Saraiva, Rua da Glória,
Rua Grande, Rua Bela, estes últimos logradouros já
conhecidos por esses nomes. Viam-se também muitas cabanas
pelas circunvizinhanças, especialmente na beira do rio e em
rumo do Barrocão.

Sobre as casas de palhas construídas nos arredores no núcleo


central da cidade Nascimento (2011) ressalta que a maioria dos
moradores daquelas habitações era pobre. Para Ferreira Filho (2008,
p. 94) o desenvolvimento de uma cidade está relacionado às condições
financeiras:

182 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


O desenvolvimento cultural de um lugar está diretamente
relacionado às suas condições de aprovisionamento
econômico, ou seja, um lugar é tanto mais favorável ao
florescimento da cultura quanto mais recursos financeiros
tiver. Podemos constatar essa realidade ao recordarmos a
pujança cultural experimentada pelo Recife, no auge do ciclo
da cana-de-açúcar, ou mesmo o esplendor verificado na
remotíssima Manaus, quando nos tempos áureos da extração
da borracha.

Há de se levar em consideração que o desenvolvimento da música


nessa ainda recém-criada cidade acompanha o desenvolvimento social
da mesma. Para quem ainda tenta dar seus primeiros passos depois da
euforia dos primeiros anos de criação, Teresina agora tenta se adequar
ao conceito amplamente difundido que era civilidade, coisa que na
Europa já nem se falava. Entretanto, no Brasil ainda era um conceito
jovem que necessitava de tempo para se adaptar. O termo civilização
surgiu na segunda metade do século XVIII, na França e Inglaterra, e
passou a ser um dos conceitos centrais no discurso do Iluminismo.
Designa o esforço coletivo de levar o indivíduo a observar
espontaneamente as regras de convivência e de transformar os
costumes da sociedade. (HRUBY, 2012).
Sobre os primórdios da cidade e suas manifestações musicais,
Nunes (1993 apud FERREIRA FILHO, 2008, p. 94 - 95) argumenta
que até 1882 não encontramos referências que nos possam assegurar
da existência, em Teresina, de conjuntos musicais que se dedicassem
ao canto orfeônico e à música instrumental. Parece que se cultivava
esta última nos quartéis e nos Educandos Artífices.
A vida social da cidade está em constante desenvolvimento, o
que trouxe mudanças tanto nas relações econômicas quanto nas
relações sociais. Queiroz (2008) expõe que Teresina, 1880 é quase um
arraial, cuja vida urbana e social começa a se tornar mais complexa,
seguindo lentamente as transformações capitalistas de escala mundial.
Ainda na transferência de capital e consequentemente dos prédios
públicos a serem transferidos para a nova capital. A decisão do
Conselheiro Saraiva de incluir o Liceu Provincial e a Escola de
Educandos Artífices no rol das instituições transferidas para Teresina,
quando esta se tornou a nova capital do Piauí, em 1852, causou
estremecimento na educação de Oeiras, que entrou em decadência,
tirando de muitos jovens a oportunidade de se prepararem

Pesquisa e Música 183


adequadamente para os exames das escolas superiores do Império.
(REIS, 2006, p. 129).
O quadro abaixo apresenta algumas informações contidas em
periódicos de apresentações musicais e outras informações relacionadas
ao cenário musical e teatro musical de Teresina.

MÚSICA NOS PERIÓDICOS TERESINENSES

Informações na fonte (data,


Periódico Local Ano Dados coletados
num., vol, ano...)

NOTICIAS E
FACTOS
DIVERSOS, A nossa
música dos Educandos
vai retrogradando a
O
Teresina – olhos vistos. As peças
PROPAGA 1858 03/06/1858, ano I, pag. 3.
Piauí que ella executa são
DOR
velhas e de màu gosto,
alem de desagradarem
pela constante
repetição. [Opinião do
redator]

NOTICIAS E
FACTOS
DIVERSOS, O dia 7
de Setembro
[comemoração pela
independência do
O Brasil]
Teresina – 11/09/1858. Ano I, num.
PROPAGA 1858 À noite a musica dos
Piauí 33, pag. 4
DOR Educandos percorreo
as ruas da cidade,
acompanhada de
cidadaos de todas as
classes, reinando
sempre harmonia e
ordem.

184 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


ANUNCIOS,
THEATRO
NACIONAL Sta
THEREZA.
DOMINGO 21 DE
OUTUBRO DE 1858.
Beneficio do mestre
de musica da casa
dos Educandos -
Artífices Clemente
Maranhense Freire
de Lemos.
Logo que a banda de
música de sua direção
tiver executando a
O brilhante walça O
Teresina – 23/11/1858. Ano I, num.
PROPAGA 1858 SEGREDO, subirá a
Piauí 47, pag. 4
DOR scena pela primeira
vez neste theatro a
comédia em 2 actos,
ordenada de música O
POBRE JAQUES,
Seguir-se-há a sempre
aplaudida aria da
opera cômica – A
velhice namorada -
cantada pela sr. G. B.
de Mattos. [...] Os
intervalos serão
preenchidos com
novas e variadas peças
de música, da escolha
do beneficiado.
A chegada do Exm.
Seur. Dr. Simplicio
de Souza Mendes à
esta Cidade de volta
do Rio de Janeiro,
onde esteve com
CONSERV Teresina- 18/12/1861, ano I , num. assento n’Assembleia
1861
ADOR Piauí 20, pag. 1 - 2 Geral.
[...] As 5 horas da
tarde a Musica dos
educandos artífices se
achava em frente da
estação da companhia
de Vapor.

BAILE pela
Teresina- independência do
A EPOCA 1880 1880, pag.4,
Piauí Brasil com a presença
da banda da policia.

Pesquisa e Música 185


AULAS DE
MÚSICA no Collegio
de N. S. das Dores,
Rua Paysandu, 9.
Teresina- Ministradas pelo
A EPOCA 2 1880 1880, pag.4,
Piauí titular Gentil
Independente B.
Cavalcante e substituto
Joaquim R. Ferreira
Chaves.
PARTIDA,
apresentação da banda
de musica da policia
no cais do rio Parnaíba
A Teresina- 23 -05-1882, Ano I, num. 2, pela partida de um
1882
FLORESTA Piauí pag. 4 ilustre cidadão
Theresinense com
destino à cidade de
Parnahyba. Em 15 de
set de 1882.

Espetáculo – Theatro
A Teresina- 13/06/1882. Num. 3 ou Concordia, espetáculo
1882
FLORESTA Piauí pag. 4. em 5 atos. “Os dois
regenerados”.

MOCIDAD
AULAS DE
E Teresina-
1886 30-09-1886, pag. 2 MUSICA, relação de
PIAUHYEN Piauí
professores.
SE

ESTADOS,
Amazonas,
Desembarque.
Esperado para o dia 10
de agosto, vindo no
paquete [navio de
Teresina- luxo] D’Antelia, a
A NOTICIA 1899 3 de Agosto 1899.
Piauí companhia de
portuguesa de operolas
regida pelo maestro
portuense Thomas del
Negro. Destaque para
a cantora e atriz
Amélia Lopiccolo.

186 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


CORPO DA
POLÍCIA MILITAR
SERVIÇOS PARA
HOJE, [...] A música
do batalhão fará
retreta, hoje, no jardim
publico, das 6 ás 8
horas da noute, com o
DIARIO seguinte programa: 1ª
Teresina- 23/03/1911, ano I, num.
DO 1911 parte: 1. Anita
Piauí 23, pag. 1
PIAUHY Moreira(valsa), 2.
Kraquete, 3. Venancio
(valsa), 4. Recife
(folk). 2ª parte: 1.
Graziella (valsa), 2.
Um manicaca
(maxixe), 3. Maria
(valsa), 4. Despedida
(dobrado)
VIDA
SOCIAL/FESTAS –
Bailes realizados nas
CIDADE Teresina- 27/01/1912, Num 01, pag.
1912 casas dos Srs, Tote
VERDE Piauí 7.
Carvalho e José
Euclydes e da Sra.
Lily Lope s.

GRANDE
COMÍCIO, [...]
CORREIO
Encerrada a sessão, a
DE Teresina- 04/04/1916, ano IV, num.
1916 massa popular desfilou
THERESIN Piauí 164, pag. 2
pela Rua Barroso; ao
A
som da banda de
música do partido.

MAXIXE DAS
FLORES, letra da
música vencedora de
CHAPADA um concurso phatazia
Teresina-
DO 1918 1918, pag . 11, teatral, no teatro 4 de
Piauí
CORISCO Setembro, tocada pela
banda de musica da
policia e cantada por
um grupo de senhoras.

PROGRAMA
Das festas
comemorativas do
centenário da
independência do
O Teresina – 24/01/1923, Anno IX,
1923 Piauhy
ARRIBOL Piauí num. 28, pag. 5
24 de Janeiro
As 5 horas da manhã:
alvorada pela banda de
musica, cornetas e
clarins[...].
Quadro 2 música nos periódicos piauiense. Fonte: do autor

Pesquisa e Música 187


A música na cidade se desenvolveu em vários contextos, porém
três se sobressairam, como nos mostra o quadro 2. Nos materiais
analisados durante a pesquisa serão abordados com mais ênfase. São
eles: música de caráter cívico e solene, música de concerto, música do
teatro-musical. Esses eram os três contextos mais explorados pelos
periódicos da época assim como os mais ativos e relevantes em termos
quantitativos de registro e público.

3.1.1 Música cívica e solene

A menção jornalística mais antiga encontrada nesta consulta


aos nos periódicos Teresinenses da época de sua criação data de 1858
no periódico O PROPAGADOR onde seu redator emite opinião
depreciativa sobre o repertório executado pela Banda de Educandos
Artífices. Desde então várias menções parecidas são veiculadas em
outros periódicos da época [tabela 2].

Figura 4 - Festividade religiosa a banda a PM/PI à esquerda. Fonte: Teresina


meu Amor

A Banda da Polícia Militar de Piauí, como cita Ferreira Filho


(2008), acredita-se que foi formada a partir da instituição dos
Educandos Artífices, vinda de Oeiras assim quando esta deixou de ser
capital. Almendra Júnior (2014) define a relação entre a banda de
música e seu sentido educacional como sendo um espaço destinado à

188 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


iniciação musical disponibilizado às camadas mais populares da
sociedade. Além de seu objetivo principal - que é a performance - neste
ambiente, aprende-se a teoria e a prática musical, as habilidades
técnicas necessárias para o desenvolvimento da formação profissional
do músico instrumentista. Curioso é que nesta pesquisa não há uma
menção sobre o repertório executado por parte da Banda de Música
da Polícia Militar nem pelas outras militares que se formaram depois
desta. Nesse sentido, o conceito de Almendra Junior é apropriado, pois
uma banda que tem no seu fazer a performance não pode se dar ao
luxo de formar mal os seus componentes. Tinhorão (2008) menciona
que a formação da banda militar no período colonial era feita de forma
amadora que não primava pela qualidade, e só no a partir de 1930 é
que tiveram mais interesse pela educação de seus participes. Também
faz sentido a suposição levantada por Ferreira Filho sobre a escola de
Educando Artífices ser o embrião da banda, pois era uma instituição
de cunho assistencial e por tanto tinha o interesse nessa formação
para seus alunos (meninos) das camadas mais pobres da sociedade.
Tinhorão (1998) ressalta que a continuidade da tradição do campo
da produção de música instrumental ao gosto das amplas camadas
das cidades, iniciada em meados de Setecentos pelos ternos de barbeiros
com a chamada música de porta de igreja, ia ser garantia, a partir da
segunda metade do século XIX, pelas bandas de corporações militares
nos grandes centros urbanos. Interessante perceber que Tinhorão fala
de grandes centros urbanos. A Banda da Policia Militar por seu caráter
versátil e repertorio variado é pois, a instituição musical mais citada
pelos periódicos desde a sua criação alguns anos depois da fundação
da cidade de Teresina.
Queiroz (2008) ressalta que a música em Teresina no século XIX
ainda era muito ligada às bandas policiais, militares e estudantis e os
instrumentos são, sobretudo, os de sopro, sendo que, no século XX, as
aulas de música para ambos os sexos tornam-se cada vez mais
frequentes.
A Banda da Polícia Militar e dos Educandos Artífices eram uma
regra, uma prática musical que estava atrelada à vida social teresinense,
pois não se imaginava evento registrado pela imprensa em que essas
bandas não estivessem presentes. Para Queiroz (2008) a música entre
o final do século XIX e início do século XX está no centro da vida social
teresinense, presente em solenidades cívicas, passeatas, eventos
familiares.
As contribuições da Banda da Polícia Militar quanto sua
participação na vida social da cidade foi tão intensa que segundo

Pesquisa e Música 189


Queiroz (2008) redeu homenagens por parte de artistas locais em
reconhecimento aos serviços prestados. A criação da Banda de música
da PMPI consta na Resolução nº 909, de 17 - 07 1875, Do presidente da
província Delfino Cavalcante de Albuquerque, foi oficialmente criada
a Banda de Música do Corpo de Polícia da Província do Piauí.

Figura 5 - Resolução de criação da banda do Corpo da Polícia Militar, fonte:


Arquivo Publico do Estado do Piauí.

190 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


3.1.2 Música de concerto

Na Europa a definição de música popular e erudita não tinha


apelo segregador. Grandes concertos eram reproduzidos ao ar livre
pelo grande número de compositores que necessitariam de
reconhecimento. Segundo Napolitano (2002), na Europa, o gosto
musical das camadas da pequena burguesia e das classes trabalhadoras
não era, na sua essência, diferenciado. Normalmente, se compartilhava
a preferência por cançonetas românticas, óperas e operetas, formas
dançantes mais disseminadas na vida social como um todo, como as
polcas e as valsas, assim como por música instrumental de concerto.
Já no Brasil na virada do século XX "apesar de combatida pelos
críticos mais exigentes, a música popular, cantada ou instrumental, se
firmou no gosto das novas camadas urbanas, seja nos extratos médios
da população, seja nas classes trabalhadoras, que cresciam
vertiginosamente." (NAPOLITANO, p.11).
A partir do século XX o cenário se modificou com uma maior
participação da sociedade no desenvolvimento do amadorismo e com
maior número de apresentações de artistas de renome nacional e
internacional nos teatros locais, causando assim uma maior
diversificação no cenário. Queiroz (2008, p.68) em resumo dos anos
iniciais do século XX em Teresina afirma que:

[...] partir da passagem para o século XX, as aulas


particulares de música, tanto para o sexo masculino quando
para sexo feminino, tornam-se cada vez mais frequentes.
Contatos mais regulares com a Europa, a compra de novas
partituras, a importação de instrumentos como pianos,
violões, violetas, violoncelos e bandolins.

Tal situação ocasionou uma maior diversidade no repertorio


praticado pelos grupos componentes do cenário ao qual, segundo
Queiroz (2008) observa-se intensa convivência entre a música popular
e a música erudita. Ao lado de Wagner, Verdi, Strauss, Debussy, Donizetti,
Gounod, Mozart e outros, figuravam os maestros locais, alguns de
reputação formada, outros obscuros compositores de uma só música.
Em geral, a música erudita brasileira do início do século XX
buscava em sua essência um sentido mais nacionalista com base nas
manifestações folclóricas brasileiras buscando explorar esses temas e
trazê-los para este cenário. Sobre esses movimentos Ferreira (2011 p.
210) expõe que:

Pesquisa e Música 191


No início do século XX, os jovens músicos brasileiros eruditos
provocaram discussões e polêmicas sobre a estética da música.
E assim como nas outras artes, eles refletiam e se
aproximavam da proposta do Modernismo brasileiro, pois
retratavam a dinâmica social das camadas populares. Os
compositores brasileiros aproximaram-se cada vez mais da
cultura popular. Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Chiquinha
Gonzaga e outros buscavam em suas criações a mistura e o
espelhamento na cultura popular brasileira.

Portanto, o cenário musical teresinense se dividia entre músicas


provindas da Europa introduzidas no cenário da cidade pelos egressos
dos cursos de bacharelados (QUEIROZ, p.13), e por influência de
Sigismund Nuekomm dentre outros compositores que a introduziram
a partir do século XIX, música de câmara, música para piano, música
para bandas, música sinfônica. Neukomm, nascido no berço do
classicismo, a Áustria, onde reinava a magnífica obra de seus
conterrâneos Mozart e Joseph Haydn, inaugura esses repertórios em
nosso país (LANZELLOTE, 2016). E por outro lado estão também nesse
cenário, músicas populares como as cançoneta, modinhas, o samba,
valsas, tangos dentre formas musicais utilizadas para animar os bailes
(QUEIROZ, 2008, p.71). "Dentre os bacharéis e outros personagens
locais que cultivavam a música e incentivavam o seu desenvolvimento
em Teresina constavam Higino Cunha [...]; Abdias Neves; Gonçalo de
Castro Cavalcante." (QUEIROZ, 2008, p.75)

Queiroz (2008, p.77) sintetiza a cena musical Teresinense do


século XX:

De um ponto de vista geral, vários aspectos são recorrentes


no universo da música: a incidência e a preferências por
número reduzido de compositores e pelas mesmas músicas,
o que revela talvez uma limitação na oferta de partituras; o
gosto pela ópera e pelas operetas; a moda insistente e criticada
da execução de valsas e de tangos; a emergência do samba;
o grande número de compositores eventuais; a falta de
educação do publico para a audição da música clássica; a
grande frequência dos dobrados e a dependência dos
promotores de eventos das bandas militares.

192 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


A vida musical da cidade mudara drasticamente nesse início de
século XX pela introdução de novas formas musicais e também
instrumentos. Acrescenta-se a isso o maior número de instituições
particulares que contemplaram música em seus currículos e também
o aumento no número de professores de música na cidade assim como
da diversidade de interesses pelo fazer musical. Queiroz (2008) ressalta
que "a moda dos concertos musicais trouxe para a cena um grande
número de senhoras e senhoritas. Algumas musicistas tinham certa
fama local, parcialmente criada e reforçada pelo noticiário generoso
da imprensa".
Ainda sobre essas musicistas Queiroz (2008) aborda que além
de piano, observou-se certa preferência das mulheres pelos
instrumentos de cordas - notadamente o violino e o bandolim. A
aquisição de instrumentos era feita diretamente da Europa, ou do Rio
de Janeiro.
A febre de piano que tomou conta da cidade [Rio de Janeiro]
acabou alimentando as casas de edição de partituras que foram
surgindo, incrementando entre nós um primeiro mercado musical, à
base de partituras de polcas, modinhas e valsas (NAPOLITANO, 2002,
p.30). Segundo Queiroz (2008, p.72) coisa parecida aconteceu em
Teresina e relata como era de difícil transporte e apenas em poucas
residências dispunham do instrumento que eram trazidos por
comerciantes que visitavam a Europa e o sul do Brasil.

Figura 6 - Praça Rio Branco decada de 50. Fonte: SEMPLAN - Teresina:acervo


fotografico.

Pesquisa e Música 193


Os concertos eram executados em clubes particulares e em praças
públicas sobretudo na praça Rio Branco. Em geral eram bandas
militares que animavam os concertos na praça Rio Brando4, aos
domingos, e mesmo em outros dias da semana. (QUEIROZ, 2008, p.
75). Segundo a mesma autora, o jardim da praça Rio Branco,
urbanizado e modernizado, passara a ser o local de encontro e passeio
da juventude. Outro ponto de encontro de jovens, velhos e famílias de
um modo geral eram os clubes sociais que eram espaços restritos onde
se encontravam os burgueses desta cidade e geralmente o clube era
um lugar onde se sociabilizava os costumes adquiridos pela transmissão
oral ou visual e os gostos pela dança e pela música. Segundo Queiroz
(2008) os clubes musicais começam a aparecer em 1907, e os dois
mais importantes, que agregaram número significativo de amadores
foram o Clube Lítero-Musical e o Clube Monteverdi ambos compostos
em sua maioria por mulheres. Tiveram atuação regular pelo ao menos
ate 1909.
Os bailes dos clubes foram as mais difundidas e generalizadas
diversão em Teresina, aconteciam com muita frequência por qualquer
motivo. (QUEIROZ, 2008, p. 80). Quanto ao repertório havia uma
preferência por tango, valsas e xote.
Já em 1917 nasce outros novos empreendimentos no cenário
até então visto como amador. Seu fundador foi maestro Pedro Silva.
Em uma pequena biografia Tito Filho (1987) descreve um pouco da
vida desse importante maestro:

Nasceu Pedro Silva em Teresina, ano de 1892. Morreu em


1974, na antiga capital da República [Rio de Janeiro]. [...]
Pedro Silva, músico e maestro, organizador, harmonizador
e regente da Banda de Música do 25º Batalhão de Caçadores,
de Teresina, que tanto animou a praça Rio Branco dos velhos
tempos românticos nas retretas do coretinho central. Muito
novo, no começo do século, criou, com Jônatas Batista, o
Clube Recreio Teresinense, que levou a cena, no respeitável
Theatro 4 de Setembro, as peças "Natal de Jesus" e "Jovita".
Esse dois piauienses - Jônatas e Pedro - tornaram-se as duas
principais figuras da vida teatral da capital piauiense durante
anos.

4
A referida praça está localizada por trás da igreja matriz do Amparo (A primeira igreja de
Teresina) e é uma das mais antigas de Teresina.

194 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Pedro foi também fundador da sociedade teatral "Amigos
do Palco", de amadores inteligentes.
Entre 1917 e 1925, o 4 de Setembro viveu grandes temporadas
com as revistas de Jônatas musicadas por Pedro: "O Bicho",
sátira ao popular jogo criado pelo barão de Drummond, no
Rio; "Frutos e Frutas", "O Coronel Pagante", entre outras.
O ativo maestro ainda fundou o Pálace, na Praça Rio Branco,
animada casa de diversões de muita frequência, e
posteriormente arrendou o Theatro 4 de Setembro, instituindo
a empresa Silva e Companhia, quando trouxe a Teresina
célebres companhias teatrais de outras terras.
Passando a residir no Rio de Janeiro, trabalhou em estações
de rádio como a Mayrink Veiga e a do Ministério da Educação,
época em que muito difundiu o folclore do seu Piauí.

Nessas poucas linhas dessa breve biografia de Pedro Silva


podemos constatar sua importância para o cenário musical da cidade
também sua contribuição para o resgate do folclore do Piauí. Nos moldes
das missões empreendidas por Mario de Andrade em 1930.
A sua empresa Silva e Companhia tinha um espaço de divulgação
no Jornal O Arrebol onde se via as chamadas dos espetáculos teatrais
e também as seções de cinema dentre outras atividade do Palace que
fora fundado em 1919. Tito Filho (1975, p. 78 grifo do autor) descreve
o Palace: "Salão vasto, ventiladores giratórios, bom palco, mobília. Motor
a diesel. Orquestra de cordas. Servia de cinema e teatro".
A empresa Silva e companhia tinha uma orquestra própria
chamada "Seis bemóis" sob a direção de Napoleão Teixeira. (TITO
FILHO, 1975, p.79)
O teatro 4 de Setembro era a principal casa de espetáculos no
inicio do século XX em Teresina por ele passaram grandes nomes da
música e uma infinidade de músicos amadores. O teatro, na época,
era o centro cultural da cidade concentrando a maioria dos espetáculos.

Pesquisa e Música 195


5

Tabela 3 - recitais e apresentações no 4 de Setembro. Fonte: Tito Filho


(1975)

5
Abertura.

196 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


3.1.3 Musica teatral

A Ópera segundo Grout e Palisca (1995, p. 316) é uma obra que


combina solilóquio6, diálogos, cenário, ação e música continua (ou
quase continua). A Ópera, sobretudo a Italiana, foi, desde seu
nascimento, o gênero mais cultuado entre os europeus logo foi o mais
vislumbrado pelos compositores de todas as épocas posteriores ao seu
nascimento.
A ópera desde então vem se sofisticando e passando por
modificações que acompanham as tendências composicionais e
estruturais do período a qual está entrelaçada. Vários gêneros de operas
tomam forma na Europa do século XIX. (GROUT:PALISCA, 1995, p.628.
No Brasil o gênero operístico mais difundido foi a ópera séria
nos moldes italianos, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro. Adverte
Andrade (1964) que devemos estar atentos às particularidades de sua
produção e recepção em longo período do teatro brasileiro do século
XIX. Com cenário nacional marcado pela ópera italiana (o melodrama
italiano), especialmente no Rio de Janeiro, grande centro operístico
do país à época, a consolidação das polcas no mercado musical para a
pequena burguesia e o revival das modinhas, surgia também um espaço
musical importante: o teatro de revista (e as operetas, sua versão mais
"séria"), que será o grande foco da vida musical brasileira e carioca até
meados dos anos 20. (NAPOLITANO, 2002, p. 31, grifo do autor).
O gênero opereta nasceu na França e de lá foi exportado e
difundido por toda Europa e posteriormente pelas Américas. A primeira
opereta francesa (aquela que inaugurou o gênero e, também, a dança
denominada cancã) foi Orfeu no Inferno, de Offenbach, que estreou
em Paris, em 1858. Em 1865, esta mesma opereta aportou no Rio de
Janeiro, em versão integral, apresentando-se no Alcazar Lyrique,
empresariada por Monsieur Arnaud. (VENEZIANO, 2003, p. 59).
A casa espetáculo Alcazar7 no Rio de Janeiro revelou o interesse
de um amplo publico pelo teatro musical.

6
Refere-se a partes solistas ou monólogo.
7
Teatro particular idealizado pelo artista francês Joseph Arnaud, proprietário e empresário que
pretendeu. dar à casa de espetáculos a feição dos cabarés de Paris. Inauguração em 17 de
fevereiro 1859. Fechamento 1877.

Pesquisa e Música 197


Figura 7 - coristas do inicio do século. Companhia Arruda, Teatro São José de
SP. Fonte: Veneziano (2011).

Em terras teresinenses o desenvolvimento do teatro musical se


dá, sobretudo nas operetas trazidas pelas companhias que por aqui
passaram durante o século XIX e XX assim como o desenvolvimento
dos amadores locais. "Informações de 1886 dizem respeito à realização
de espetáculo no Teatro 24 de Janeiro. As evidências são de que o
drama e a comédia encenados eram de responsabilidade de amadores
locais". (QUEIROZ, 2008, p. 25)
As companhias tinham uma grande aceitação do publico,
principalmente do masculino, os quais se extasiavam com a beleza
das atrizes. Mesmo com as condições econômicas e demográficas da
cidade, as dificuldades de locomoção das trupes de artistas e as
complicações para a montagem dos espetáculos, não foram poucas as
companhias e os espetáculos e eventos de que Teresina foi palco
(QUEIROZ, 2008, p. 22).
Os centros de espetáculos os quais se noticiavam, nos periódicos
locais da época, a presença de companhias foram Teatro Santa Teresa,
Teatro Concórdia e Teatro 4 de Setembro. Muito desse material dos
periódicos foi explorado por Arimatéia Tito. É desse material que
teremos as melhores e maiores menções sobre o cenário artístico-
musical da cidade no final do século XIX e início do século XX.

198 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Rotatividade de artistas

Os grandes centros e consequentemente os com maior número


de companhias eram Rio e São Paulo, porém no norte destacava-se a
província (posterior estado) do Pará. Ao referir-se sobre as
movimentações externas das primeiras companhias paraenses Salles
(1994, p. 407) escreve: "não apenas recebíamos com muita frequência
companhias viageiras externas. A partir de certo momento, nossos
artistas também começaram a viajar, conquistaram a praça de Manaus
e seguiram a faixa litorânea, chegaram até o Rio de Janeiro".
É notório o número de menções de Tito Filho às companhias
paraenses em solo teresinense. O intercambio era intenso entre as
companhias paraenses e teresinenses ao passo que se tornavam cada
vez mais diversificadas e com números cada maior de espetaculares. A
tendência ao teatro musical já havia sido percebida pelas companhias
teatrais que andavam às voltas com sua viabilidade econômica.
(MERCARELLI, 2003, p.23).
Passaram por Teresina um grande número de companhias
vindas de diversas partes do país e também internacionais.

Pesquisa e Música 199


8

Tabela 4 - Companhias (Operetas e revistas) passaram por teresina. Fonte:


Tito Filho (1975), Salles (1994), Queiroz (2008).

8
Companhia dramática da empresa Rocha Pereira.

200 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


O Teatro de Revista ou simplesmente Revista foi outro gênero de
teatro surgido junto à opereta, busca explorar satiricamente os cenários
sociais e politicos do ano, daí também o termo Revista de ano. O teatro
de revista, como a opereta, também nasceu francês. Em seguida, foi
para Portugal e, de lá, veio para o Brasil. Chegou até nós como revista
de ano, pois era um tipo de teatro musical e divertido que passava em
revista os acontecimentos do ano anterior (VENEZIANO, 2011, p.62).
Em suma nos primeiros anos do século XX viu-se a "...glória
do choro e do Teatro de Revista e a consolidação do carnaval e do
samba..." (NAPOLITANO, 2002, p. 32). Segundo Veneziano (2011), no
Brasil, as duas primeiras tentativas foram malogradas. O público não
gostou e a culpa foi colocada no excesso de sátiras políticas. Em 1877,
Arthur Azevedo escreveu sua primeira revista de ano: O Rio de Janeiro
em 1877. O público aceitou melhor.
Em Teresina, segundo Queiroz (2008), a partir de 1908 e nos
anos seguintes, há maior movimentação teatral. Em Janeiro foi
fundado o Clube Dramático 24 de Janeiro, tendo à frente o ator C.
Gastão (Gastão Pereira citado por Tito Filho (1975) e sua mulher entre
os amadores locais participantes estavam Jônatas Batista, Eurípedes
Nunes e Maria dos Reis.
Sobre a estreia da revista de Jônatas Batista, Tito Filho (1975)
reproduzindo a fala de um redator relata que:

Em 3 e 6 de setembro de 1908, o 4 de setembro viveu grandes


noites com a revista de costumes teresinenses "Teresina de
improviso", escrita por Jônatas Batista, musicada por Pedro
Alcântara Filho. Interpretação de Gastão Pereira, a mulher e
os cunhados, com a ajuda de amadores. Muita pilhéria.
Grande sucesso.

Essa revista segundo Queiroz (2008) marcaria o início de nova


era no Teatro de Teresina. Ao contrário das revistas francesas e as do
Alcazar que exploravam muito o apelo sexual, esse tipo de peça a de
Jônatas foi tida como comportada.
Mencarelli (2003, p. 22 - 23) expõe um fato curioso sobre o teor
das revistas de Alcazar:

Os calorosos debates travados pela imprensa em torno da


revolução ou da perversão moral que o Alcazar representava
[...] Muitas boas famílias, reconhecidas por Machado de

Pesquisa e Música 201


Assis, não o frequentavam, mas compravam os livrinhos com
canções do Alcazar ou seguiam as modas ditadas pelas
alcazarianas. As canções divulgadas na casa, ainda que
fossem compreendidas apenas pelos membros da elite que
falavam francês - e Machado de Assis inclui entre ele o chefe
da Polícia a quem direciona suas cartas - repercutiam suas
letras de duplo sentido e investiam nas personalidades
provocadoras e moralmente ambíguas das divertes-cantoras,
pois é certo também que a prostituição associou-se desde
cedo as casas de diversão no estilo Alcazar.

No curso das correntes artísticas a escorrerem pela cidade ainda


em 1914 o Clube Amigos do Palco levou à cena em março a revista de
costumes locais, Teresina por dentro, a repercussão não foi boa por
parte do publico. (QUEIROZ, 2008, p.41).
Em 1917, Jonatas lança a revista O bicho, musicada por Pedro
Silva. A revista estreou em 7 de Julho envolvendo cerca de 40 amadores
e 20 números de música, teve um grande sucesso e uma boa critica
por parte da imprensa local. Em setembro do corrente ano começa os
ensaios da nova revista de Jônatas musicada por Pedro Silva intitulada
Frutos e Frutas. Esta não foi bem-vista pelo redator de A Notícia, por
excessos de ditos e gestos maliciosos. (QUEIROZ, 2008, p. 44).
Aguiar (2012) afirma que a concepção de um teatro decadente
se torna frequente na imprensa de fins do século XIX e início do século
XX. Já no início da década 1920 começa o declínio do Teatro musical,
sendo um dos grandes responsáveis o cinematógrafo que ganhou espaço
nos grandes centros nacionais. Sobre essa ascensão do cinematógrafo
Rodrigues (2003) afirma que todas as regiões do Brasil, de acordo com
as relevantes significações no contexto sociopolítico e econômico do
país, passaram por processos semelhantes de reconhecimento do
cinema. Pois é notável que a arte cinematográfica desafiou a sociedade
e suas práticas até então conhecidas como cultura, como o teatro, as
óperas, a pintura, as diversões circenses, etc. O gosto pelo teatro foi
diminuindo gradativamente ao passo que os cinematógrafos e
manifestações como carnaval, o samba, o Rock e. a sociedade se
modernizando (novo elementos culturais) aos poucos iam suprimindo
o espaço que antes era do Teatro.

202 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


4 CONCLUSÃO

Podemos concluir analisando os dados coletados que as


manifestações musicais contidas no cotidiano da cidade, nos três
cenários apresentados, desde sua concepção às primeiras décadas do
século XX estiveram sempre ligadas à música popular e urbana e em
menor grau à música erudita, sejam as músicas dançadas nos bailes
dos clubes sociais (festas particulares), sejam representações do teatro
musical (operetas e dramas musicais), sejam as músicas dançadas nas
festividades carnavalescas (carnaval de rua a partir de 1920) ou a
música executa pelas bandas militares (solenidades). O
desenvolvimento dessas manifestações só pode ser entendido quando
relacionadas ao contexto do estado e os movimentos musicais
existentes no Brasil do século XIX.
Teresina, em seus anos iniciais, apesar da poucos registros de
manifestações sempre voltada às solenidades cívicas comemorativas,
percebe-se que pela iniciativa de alguns egressos vindos de cursos
superiores, um esforço constante de transformar o quadro, como se
refere Queiroz (2008), de "marasmo cultural" pelo qual passava a
cidade.
Concordando com o exposto por Ferreira Filho (2009) apenas
com a evolução comercial e o consequente aumento considerável no
fluxo cultural (artes e música) é que a cidade vai desenvolvendo uma
vida musical mais ativa. O fluxo de artistas é decorrente não só do
fator econômico regional, mas também das mudanças significativas
na sociedade brasileira de um modo geral dentro do século XIX.
Sobre o cenário de desenvolvimento social Calmon (2002) ressalta
que houve três grandes núcleos de expansão: o de S. Paulo, que
abrangeu o sul do país e o oeste; o da Bahia, que encontrou, de um
lado, a irradiação paulista, do outro as tentativas, simultâneas, de
povoamento do norte; e o do Pará, entre o Maranhão e o Amazonas.
Portanto, as influências vindas desses três grandes centros formaram
o estado do Piauí e influenciaram ativamente o cenário musical
teresinense. No cenário musical o teatro musical (operetas e dramas
musicais) teve uma significativa evolução dentro da cidade a partir
dos anos 1900. Isso se deve ao crescimento expressivo dessas
manifestações no território aumentando assim o interesse amador pelo
teatro e pelas operetas. Então se forma um novo cenário, ainda que
com um sentido amador nas manifestações musicais.
Já na década de 1920, com os avanços tecnológicos e novas
formas de divertimentos, observa-se a decadência o teatro musical e a

Pesquisa e Música 203


ascensão dos cinematógrafos e também de outras manifestações
musicais.

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208 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


COMPOSIÇÃO MUSICAL COMO
PENSAMENTO LITERAL: R eflexões sobre o
Reflexões
Conceito de Escritura em Música

Rafael Moreira Fortes1

1 INTRODUÇÃO

Como se dá o processo de compor uma música fixando-a em um


papel? Precisando um pouco mais a questão: quais são as instâncias
do pensamento, e qual a ordem destas, no complexo procedimento
que envolve a organização de materiais musicais em um registro? Os
materiais musicais (temas, sonoridades, transições etc.) são realizados
(improvisados?) em um instrumento, ou então cantarolados
mentalmente em um processo de audiação 2, e posteriormente
transcritos para um papel (ou um gravador)? Ou a ordem seria inversa:
a própria inscrição de notas e rascunhos no papel é o dispositivo que
permite pensar as sonoridades e estruturas almejadas? Não há dúvidas
de que as estratégias variem amplamente entre os compositores, cada
um seguindo os meandros de suas próprias intuições criativas. No
entanto, a própria dificuldade de se afirmar categoricamente que tal
ordem é a prevalente nos leva à consideração sobre a forte ligação
entre o ato de registrar e o ato de se pensar, conceber e organizar o
que será registrado.

1
Professor assistente da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Doutorando em musicologia pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Mestre em composição pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Outras publicações em: https://ufpi-
br.academia.edu/RafaelFortes.
2
Anglicismo do termo Audiation: "Audiação se dá quando se ouve música por meio de lembrança
ou criação (o som não estando fisicamente presente) e se infere significado musical de modo
similar a percepção aural em que se ouve música que está de fato sendo performada" (GORDON,
1976, tradução do presente autor).
Esta relação é pensada por meio do conceito de escritura
(écriture), que busca se distanciar do termo "escrita" e a mera função
transcritiva nele compreendida. Neste sentido, em música, o conceito
de escritura sugere o entendimento do processo composicional como
um pensamento literal (pensée à la lettre), "interiormente normatizado
por seus próprios dispositivos de escritura3" (NICOLAS, 2005, p.1). Ou
seja, com este conceito, a relação entre "o ato de registrar e o ato de se
pensar, conceber e organizar o que será registrado", adquire caráter
endógeno: o pensamento se origina, desenvolve e transforma a partir
da textualidade que o caracteriza. Pensar e escrever são um só e mesmo
processo, em uma relação de espelhamento, de interconectividade.
Mas quais as consequências destas afirmações? Se existe uma
forma de pensamento musical que é intrínseca ao seu processo de
escrita, o que isso nos diz sobre a composição musical? O que entra
em jogo quando se afirma que existe uma instância intrínseca ao
pensamento, que é, no entanto, ao mesmo tempo, externa? A questão
parece circundar um certo solipsismo: a relação entre os processos de
escrita e pensamento é subjetiva demais para ser posta à luz de um
debate filosófico, compartilhável entre uma comunidade acadêmica e
passível de desenvolvimentos. De modo que o melhor seria o seu
abandono, relegando-a à categoria de falsa questão filosófica. No
entanto, um certo incômodo parece acompanhar esta condição, um
incômodo que parece estar presente no desenvolvimento de muitas
das linguagens humanas. Leia-se, por exemplo, esse misterioso relato
de Pierre Boulez:

"[...] a escrita propriamente dita nos deixa diante de casos


particulares para os quais a tradição - tão longínqua como
imediata - não poderia nos dar sequer um indício de solução,
ela nos deixa desprovidos de astúcias; (BOULEZ, [1963] 2007,
p. 25, grifo meu).

Em um certo jogo de linguagem em que substantivos adquirem


caráter animado, a escrita é posta aqui como eixo de uma antinomia
com a tradição. É tida como algo que se desprende, quase como um
elemento subversivo, da própria tradição que a forjou, ou que ela ajudou
a forjar. Neste desprendimento, as "astúcias", os lugares comuns e
clichês que o compositor compartilha com outros artistas e com o

3
"intérieurement normées par leur propre dispositif d'écriture"

210 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


público são insuficientes para solucionar os problemas causados pela
condição grafada do pensamento composicional. A especificação da
escrita "propriamente dita" remete à possibilidade de pensá-la como
instância autônoma, que não desempenha uma função secundária
no ato composicional, e que, se tomada por si só, pode levar a situações
perigosas. Além disso, remete à possibilidade de se discernir situações
em que não se trataria da escrita "propriamente dita", mas sim de uma
escrita subserviente, transcritora. Uma escrita, esta sim, que não traria
problemas insolúveis à tradição.
Esse trecho de Boulez reflete a condição de exterioridade que
acompanha a noção de pensamento literal. Exterioridade vista com
desconfiança por possibilitar uma nova relação com o veículo associado
à tradição: a voz. Como veremos na primeira seção deste capítulo,
escrita e voz, literal e oral, serão, no desenvolvimento das linguagens
humanas, duas forças antagônicas que representam, respectivamente,
a negação e a afirmação da presença, da autoria, da plenitude da
entidade mesma daquele que fala e pensa. A voz, forma primeira no
processo de externalização do pensamento (ou daquilo que se
consideraria como interno, e por isso externalizável) é um veículo
privilegiado na configuração da consciência, do Logos, do eu. A escrita,
por outro lado, é suspeita de uma exterioridade secundária, que não
representa fielmente a consciência pensante que a originou, e, por
isso mesmo, um perigoso suplemento na narrativa da configuração e
da origem desta consciência original.
A observação desta dicotomia na história do pensamento
ocidental europeu, como realizado, principalmente, por Jacques
Derrida, encaminha a problematizações sobre a natureza e a origem
da razão humana. No escopo desta discussão, o presente capítulo se
ocupa em apresentar, desenvolver e comentar alguns desdobramentos
que estas concepções envolvem, procurando relacioná-las com um
quadro teórico musicológico. Para tanto, primeiramente o conceito de
escritura é apresentado no escopo da filosofia derridiana e de
comentadores de sua obra como Evando Nascimento e a dupla Lucia
Santaella e Winfried Nöth. São assim desenvolvidos alguns tópicos
importantes de seu pensamento relacionados com o conceito de
escritura, como a metafísica da presença, o logocentrismo, a
desconstrução, o rastro, o significante do significante e a lógica do
suplemento. Na segunda seção aborda-se como o conceito de escritura
foi pensado na literatura musicológica e sua relação com o conceito
de obra musical. São estudados textos de Carlos Alberto Figueiredo,
Carl Dahlhaus, Sergio Kafeijan, Hugues Dufourt, François Nicolas,

Pesquisa e Música 211


Pierre Boulez e Rogério Barbosa. Diversos paralelismos são realizados,
nesta seção, em relação ao pensamento derridiano, demonstrando os
possíveis pontos de contato entre os escritos estudados. Espera-se assim
ampliar e enriquecer a raiz dos questionamentos que iniciaram este
texto.

2 DERRIDA E A ESCRITURA (o transbordamento da


linguagem)

Um dos temas de maior reiteração na filosofia derridiana é a


relação entre a escrita e o logos (em sua acepção associada à razão e à
verdade transcendentais) na tradição da filosofia ocidental europeia.
Em "A farmácia de Platão" ([1972] 2005), o autor trabalha esta relação
a partir, principalmente, do trecho final do diálogo platônico entre
Sócrates e Fedro, denominado "Fedro ou Da Beleza" (2000 [s.d.], p.
120-130). Neste trecho, em meio a um debate sobre as qualidades e
classificações da arte da oratória, Sócrates narra uma história cuja
função é similar à de uma fábula em que a moral adverte sobre os
perigos da escrita. Trata-se de uma antiga lenda egípcia4 em que Toth
("Deus a quem é consagrado a ave que chamam Íbis") submete suas
invenções ao deus-supremo Tamuz ("o monarca", "Amon") para serem
aprovadas antes de sua apresentação ao povo egípcio. Em meio às
invenções dos números, do cálculo, da geometria, da astronomia e do
jogo de dados, os caracteres gráficos (escrita) são apresentados por
último como um phármakon (termo traduzível, sintomaticamente,
tanto por remédio como veneno) que "tornará os egípcios mais sábios
e os ajudará a fortalecer a memória" (id., p. 121).
No entanto, Tamuz rejeita esta última invenção argumentando
que a escrita tornará os homens esquecidos, já que cessarão de exercer
sua memória: "depositando, com efeito, sua confiança no escrito, é do
fora, graças a marcas externas, e não do dentro e graças a si mesmos,

4
Desenvolve-se em paralelo à história alguns comentários por parte dos interlocutores acerca de
sua veracidade. Sócrates a prenuncia afirmando que esta lhe "foi transmitida pela tradição
antiga", não podendo então afirmar se é verdadeira ou falsa, mas justificando: "se por nós
mesmos pudéssemos descobrir a verdade, importar-nos-íamos com o que os homens dizem?".
Ao fim da história, Fedro desafia a fala de Sócrates: "Com que facilidade inventas, caro Sócrates,
histórias egípcias e de outras terras, quando isso te convém". A tréplica de Sócrates apela para
o estatuto da verdade que sua lenda contém, assim como as falas dos oráculos antepassados,
que, não importando de que material provinha sua mediunidade, no caso, o carvalho, ainda assim
falavam a palavra dos deuses.

212 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


que se rememorarão das coisas." (apud DERRIDA, 2005, p. 49). A
sabedoria concedida ao povo seria apenas aparente, pois os
conhecimentos prescindiriam da sabedoria verdadeira que se
fundamenta na memória. Assim, o sábio é aquele que fala e,
principalmente neste ato, exterioriza a sabedoria essencial. A escrita,
como exterioridade secundária, não pode atestar a veracidade de uma
sabedoria, já que o que se manifesta por meio dela é apenas uma
repetição do que foi dito. Assim, aqueles que a usarem "parecerão bons
para julgar muitas coisas, quando, na maior parte do tempo, estarão
privados de todo julgamento" (ibid.).
O argumento da personagem da lenda é complementado mais à
frente por Sócrates:

"O maior inconveniente da escrita, parece-se, caro Fedro, se


bem julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes
de seres vivo mas, se alguém as interrogar, manter-se-ão
silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos [escritos]:
falam das coisas como se estivessem vivas, mas se alguém os
interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se
a repetir sempre a mesma coisa Mais: uma vez escrito, um
discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem
como aos que podem não compreendê-lo e, assim, nunca se
chega a saber a quem serve e a quem não serve[...] tem
sempre a necessidade da ajuda de seu autor, pois não é capaz
de se defender nem de se proteger a si mesmo." (PLATÃO,
2000, p. 123).

Na argumentação de Tamuz/Sócrates a legitimidade do discurso


é atestada pela presença de quem o enuncia. Em um certo sentido, a
presença do autor é requisitada com um viés prático, para não haver
mal entendidos, para que aquilo que foi escrito corresponda àquilo
que foi pensado e dito, para evitar interpretações múltiplas e
indesejadas. Mas também se fala aqui de uma presença "do dentro",
que atestaria um conhecimento interior e inerente, ao qual a memória
teria o privilégio de acessar. Ela é oposta a um conhecimento "do fora",
inautêntico pois desprovido de um autor que ateste e se comprometa
com sua veracidade. A ausência do autor também leva ao problema
do destino equivocado da mensagem: sem a relação entre o enunciador
e o remetente, estabelecendo um fundamento para a transmissão da
sabedoria, a consistência do logos é fragmentada, podendo cair nas
mãos de "quem não serve". Enfim, a escrita padece do mesmo problema
da pintura, que se aparenta como um ser vivo mas não possui a sua

Pesquisa e Música 213


presença. O que lhe confere o caráter de falsidade é portanto o seu
silêncio, a sua incapacidade de falar, necessitando, deste modo, "da
ajuda de seu autor pois não é capaz de se defender nem de se proteger
a si mesma".
Derrida identificará nestas passagens, como já havia realizado
em Gramatologia ([1967] 2008), principalmente nos textos de
Rousseau, Lévi-Strauss e Saussure, o que denominou como metafísica
da presença, ou seja, "o privilégio da presença como valor supremo, em
prejuízo de qualquer diferimento, repetição ou diferença em todos os
sentidos do termo." (NASCIMENTO, 2004, p. 21). A metafísica da
presença é identificada como uma característica inerente a uma
determinada linhagem histórica da filosofia, incentivada, desde Platão,
pela oposição primordial Presença/ausência. A partir desta são
derivadas dicotomias em que um dos termos é sempre afirmativo da
identidade e da essencialidade, enquanto o outro é negativo e
contingente, remetendo-se à diferença. Assim, Mente/matéria,
Universal/particular, Humano/animal, Significado/significante,
Homem/mulher, Fala/escrita, dentre outras, são polos que, como
Derrida se empenha em demonstrar, subjazem grande parte das
argumentações filosóficas.
A metafísica da presença então é associada a três privilégios
basilares identificados por Derrida no pensamento ocidental: o
logocentrismo, o fonocentrismo e o falocentrismo5. O logos, a fala e o
falo seriam os eixos de afirmação da identidade dessa cultura, os modos
de representar seus universais e seu mundo das ideias. Associa-se a
estes três privilégios a metáfora da paternidade. Além disso: recai sobre
esta invenção a suspeita do parricídio: "o pai suspeita e vigia sempre a
escritura" (DERRIDA, 2005, p.22), pois ela pode trair o discurso
originário. A fala é plena pois possui a garantia de um pai, alguém
que a autorize por meio de sua presença. O pai-supremo Tamuz
repreende portanto a orfandade da escrita, pois não poderá defender-
se a si própria, pois carece de uma instância superior que a aprove.
Dizendo aquilo que não se sabe a quem pertence, a escritura pode
suplantar a sabedoria do deus-pai, usurpar seu poder, não a partir de
um embate justo entre duas presenças, mas a partir do perigoso e
dissimulado vazio que a constitui.

5
A filosofia de Derrida é uma importante referência bibliográfica nos estudos feministas e na
teoria Queer. Ver, por exemplo, as coletâneas de artigos Derrida and feminism: recasting the
question of woman (1997) e Derrida and queer theory (2017).

214 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


É o que se identifica, por exemplo, neste trecho de Saussure, no
qual a temática da representação como uma secundariedade
incompleta e vazia reaparece de modo bastante similar à fala de Sócrates
acima. Os milênios que separam os dois escritos alteram, entretanto,
o veículo - da pintura para a fotografia. Aqui, a usurpação da escrita é
denunciada em um tom que aponta para a necessidade de separação
categórica entre as duas instâncias (língua e escrita), embora haja o
reconhecimento da "mistura íntima" de ambas. Uma separação
necessária para que se mantenha a pureza do natural (língua),
ameaçada pela estranha relação que deve manter - pois não tem como
apenas livrar-se - com seu espelho artificial (escrita).

"Língua e escrita são dois sistemas de signos distintos; a única


razão de ser do segundo é representar o primeiro; o objeto
linguístico não se define pela combinação da palavra escrita
e da palavra falada; esta última constitui, por si só, tal objeto.
Mas a palavra escrita se mistura tão intimamente à palavra
falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar o papel
principal; chega-se a dar tanta e maior importância à
representação do signo vocal do que ao próprio signo. É como
se acreditássemos que, para conhecer uma pessoa, valesse
mais a pena contemplar sua fotografia do que seu rosto."
(SAUSSURRE, 1972, p. 45, grifo meu).

Frente a essa situação, a atividade derridiana consiste, em parte,


em investigar a tradição filosófica com uma postura crítica, de modo
a encontrar as manifestações dessas dicotomias. O texto derridiano,
no entanto, não se limita a identifica-las, apontando seus problemas
para recomendar soluções, como se se tratasse de uma crítica kantiana.
A metafísica da presença é um componente intrinsecamente
entrelaçado ao pensamento filosófico ocidental: uma empreitada de
tal modo expurgativa consistiria em negar a validade e opor-se à
filosofia, em recusar-se a acompanhar e compreender suas nuances6.
Derrida não é apologético da morte de ícones ou da atestação do fim
de metanarrativas. Mesmo quando se refere à morte da fala, ressalta
que "antes de falar de desaparecimento, deve-se pensar em uma nova
situação da fala, em sua subordinação em uma estrutura cujo arconte7

6
Para um exemplo deste tipo de postura, ver RORTY (1982), expoente do pragmatismo norte-
americano.
7
Arconte: Magistrado da Grécia Antiga, originalmente com poder de legislar e dignidade vitalícia
próxima à realeza.

Pesquisa e Música 215


ela não será mais" (DERRIDA, 2008, p. 10). Assim, sua atividade se
assemelha mais a de um estudante compenetrado e exigente; a de um
leitor ativo que realiza uma arqueologia do gesto da escrita filosófica.
Não se trata portanto de inverter a ordem das dicotomias que
fundamentam a metafísica da presença, conferindo valor positivo ao
polo negativo, mas de demonstrar como a construção dos valores
consiste na intrinsecabilidade desta relação; de demonstrar a
dependência de um polo, arbitrariamente concebido como positivo, de
seu duplo conceitual.
Assim, as oposições filosóficas são compreendidas como frutos
de seus próprios jogos de linguagem, com sua tendência de, ao enunciar
juízos analíticos, operar a partir de seus mecanismos internos. É no
interior da linguagem que os processos de separar, categorizar, modelar
por analogia, excluir etc. são realizados, afastando-se das idiossincrasias
do mundo empírico. Portanto, a tarefa de Derrida consiste em parte
em apontar os movimentos de abstração do pensamento filosófico e
apresentá-los como os meandros da construção de um discurso
linguístico que se pretende fora da linguagem, ou seja, consiste em
identificar, ressaltar e denunciar a materialidade, da fala e da escritura,
que dá suporte às especulações metafísicas.
Desconstrução é o nome dado a esta espécie de investigação.
Apontando para a semelhança etimológica entre texto e tecido, Derrida
compreende a escrita filosófica como "uma composição heterogênea
feita de muitos fios, os quais uma vez entrelaçados implicam múltiplas
camadas de leitura" (NASCIMENTO, 2004, p. 15). Assim, desfazendo
o imbricado entrelaçamento das múltiplas linhas que compõe os textos
que se propõe a investigar, Derrida constrói possíveis leituras em novas
formas textuais. Partindo de um texto original, a desconstrução
aproxima-se e afasta-se deste texto de modo a gerar mais e mais
secundariedades e exterioridades, multiplicando assim a atividade da
leitura e a atividade de pensamento que ela implica. Essa operação
performatiza o argumento de que o texto escrito, assim como a fala,
não é capaz de estabelecer uma linha unívoca entre o logos (o saber, a
verdade, a razão) e sua materialidade escrita; performatiza a crítica à
metafísica da presença desconstruindo a noção de autoralidade e
autenticidade textual. A relação que se pretende inabalável entre o
querer-dizer e o escrito é substituída por um jogo em que os textos se
interpenetram. Um jogo apenas possível pois destituída a crença da
presença de um logos em sua materialização textual.

216 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Desconstruir a presença pressupõe então a crítica à origem do
texto, ou seja, a primeiridade (do autor, do significado, do logos) em
relação à qual se poderia identificar derivações em um encadeamento
genealógico. Implica em criticar o ideário de uma origem que
"pressupõe um centro interno ou externo, habitado pela verdade, que
se manifestaria por meio de cópias, simulacros, como simples
deslocamentos de metáforas" (SANTIAGO, 1976, p. 59). Com a crítica
da primeiridade de uma presença fora-da-língua, o texto deixa de ser
compreendido como representação de uma origem, re-presentificada
a partir de sua repetição, mas passa a operar como um vestígio, um
rastro de uma alteridade inalcançável (pois a origem do Outro é
também ausente). A esse respeito Santaella e Nöth dissertam:

"cada repetição ou iterabilidade do signo já significa a


modificação deste signo em um processo, no qual não pode
existir nem uma primeira nem uma última vez. Portanto, a
diferenciação 'entre a simples presença e a repetição sempre
já começada deve ser apagada'. Derrida opõe à ideia da
presença fenomenológica, como último ponto de referência
da representação, seu conceito da différance, e isto significa
o adiamento infinito da presença e a diferença inanulável
dentro do signo que, dividido em si mesmo, leva consigo
vestígios de outros signos. (SANTAELLA e NÖTH, 1997, p.
25, grifo original).

É a partir desta visão crítica que Derrida compreende uma


reformulação do papel da escritura em sua intrínseca relação com a
linguagem. Observa esta reformulação como um movimento histórico
em que o conceito de linguagem começa a se desprender da
fundamentação metafísica que a amparou durante séculos, em que,
"deixando de designar uma forma particular, derivada, auxiliar da
linguagem em geral [...] 8, o conceito de escritura começava a
ultrapassar a extensão da linguagem." (DERRIDA, 2008, p.8"). Este
movimento histórico é associado a uma espécie de secularização da
metafísica vivenciada pela cultura e a ciência dos anos 60 em geral:
uma época que viu a autoridade do discurso científico/filosófico/
acadêmico, do discurso oficial, fundamentado por falas e escritos

8
entendida como comunicação, relação, expressão, significação, constituição do sentido ou do
pensamento etc., deixando de designar a película exterior, o duplo inconsciente de um significante
maior, o significante do significante.

Pesquisa e Música 217


originários, ser suplantada pela sistematização, digitalização e
formalização possibilitada pelas novas tecnologias9.
Assim Derrida lia a sua condição cultural. Referindo-se, por
exemplo, à biologia cibernética, "que fala hoje de escritura e pro-grama,
a respeito dos processos mais elementares da informação na célula
viva" (ibid., p. 11), Derrida observa a rejeição da hipótese vitalista10
por uma ciência cada vez mais regida pelo grama, pela grafia, pela
técnica. Uma ciência capaz de "desalojar de seu interior todos os
conceitos metafísicos - e até mesmo os da alma, de vida, de valor, de
escolha, de memória - que serviam antigamente para opor a máquina
ao homem" (ibid.). Estas características seriam então fruto de uma
condição na qual o sistema de notação que servia de anexo a tais
atividades, encontra-se agora arraigado a "essência e o conteúdo dessas
atividades mesmas" (ibid.), ou seja, uma condição na qual a ciência
passa a operar mais intensamente segundo os mecanismos internos
da formalização, digitalização e sistematização, nos quais o autor
identifica a lógica escritural.
Em Gramatologia (op. cit.), principalmente, esta condição
cultural será examinada a luz dos conceitos da linguística saussurriana,
um sistema de pensamento que reflete a atualização da metafísica da
presença no contexto do estruturalismo do século XX. A dicotomia que
fundamenta a leitura de Derrida está presente no conceito de signo,
resultante da oposição entre um significado (que representa o conceito,
o ente abstrato do signo) e um significante (que representa a
materialização em uma imagem acústica ou símbolo gráfico). É a partir
da apropriação destes termos, o que se poderia denominar como uma
das técnicas da desconstrução, que Derrida afirma sobre a linguagem
que "o significado infinito que parecia excedê-la deixa de tranquiliza-
la a respeito de si mesma, de contê-la e de cerca-la." (ibid., p. 7).

9
No pensamento semiológico, contemporânea a essa fase de Derrida, esta condição é expressada
da seguinte forma: "[a semiologia] interpreta uma exigência difundida nas várias disciplinas
contemporâneas, que justamente procuram, aos mais variados níveis, reduzir os fenômenos que
estudam a fatos comunicacionais" (ECO, 2013 [1967], p.3), fatos que podem ser traduzidos em
"unidades de informação ou bits" (ibid., p.11).
10
Vitalismo: "uma hipótese científica ultrapassada que defende que organismos vivos são
fundamentalmente diferentes de entidades inanimadas por conterem elementos não físicos ou
serem governados por princípios próprios. É a posição filosófica caracterizada por postular a
existência de uma força ou impulso vital sem a qual a vida não poderia ser explicada." (BECHTEL
e ROBERT, 1998.)

218 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


O argumento de Derrida poderia ser formulado da seguinte
maneira: a certeza de um ente/conceito abstrato que fundamenta a
secundariedade do significante, que fornece a certeza e univocidade
de sua designação, é abalada pela própria mobilidade que constitui o
jogo entre escritura e linguagem, uma mobilidade que se manifesta
desde sua origem (inalcançável). A relação entre fala e escrita é sempre
regida pela tensão entre o fora-do-jogo (a metafísica) e a materialidade
do significante. Compreender esta mobilidade possibilita pensar no
significante livre de sua secundariedade: pensar que o que jogo realiza
é, em si, uma produção de significantes de significantes em um
encadeamento sem limites. No entanto, a condição cultural apontada
por Derrida intensifica este transbordamento da linguagem, implicando
em uma cultura em que o jogo entrega-se a si mesmo, "apagando o
limite a partir do qual se acreditou poder regular a circulação dos
signos" (ibid.). Assim fala-se de um impulso cultural regido não mais
pelo "sistema do ouvir-se falar da substância fônica" (ibid., p.9), pela
dominância do logos manifestado pela oralidade, mas pela lógica do
suplemento.
Sobre esta, Nascimento explica que:

"o verbo suprir detém o duplo sentido de acrescentar algo a


um todo aparentemente completo (a escrita em relação à
fala), mas também de substituir, de suplementar essa
aparente completude, indo além de sua limitação totalizante.
Esse é o risco do suplemento: ao se acrescentar a uma
identidade prévia (do logos, ou da phoné auto-identificada,
una, homogênea), a escrita pode supri-la, destituindo-a no
ato mesmo de representar. O perigoso suplemento corrói a
lógica da identidade que sustenta a metafísica da presença.
(NASCIMENTO, 2004, p. 29).

3 ESCRITURA E MUSICOLOGIA (a condição da escrita


musical)

A história da musica no ocidente, enquanto arte escrita, é pautada


por periódicas reformulações do jogo entre a notação e a sensorialidade
sonora. A notação musical em papel inicia seu percurso histórico com
uma função transcritiva, de modo a registrar informações em um
suporte durável, manuscrito e, posteriormente, impresso. Com o
desenvolvimento técnico desta prática, a música, antes sob o regime
estrito da oralidade, na qual a memória desempenhava importância
fundamental, passa a ser documentada, armazenada e distribuída. A

Pesquisa e Música 219


partir desta mudança paradigmática, as práticas culturais passam por
inúmeros desenvolvimentos. Esta nova condição possibilita que práticas
baseadas na mesma disposição temporal das alturas sejam realizadas
em locais e tempos diversos. Possibilita que a música seja materializada
em uma forma textual, passível, portanto, de interpretações e
execuções. Opera-se assim uma radical transformação sobre o fazer
musical e sobre a percepção do fenômeno sonoro: paralelo ao
desenvolvimento da escrita musical, desenvolvem-se os conceitos de
composição e obra musicais. Como afirma Bonnet (1988, p. 211), "a
notação escrita é um dado fundante da noção de composição (assim
como, aliás da de interpretação)".
O advento do conceito de obra na música é tardio em relação às
artes plásticas, que tiveram seu florescimento registrado na antiguidade
clássica. Uma das razões para este atraso pode ser verificada no modo
como a música é experenciada: "como um processo ou uma
performance, e não como uma forma que confronta o ouvinte"; como
uma arte que "força a si mesma sobre o outro ao invés de ser observada
de uma distância segura11" (DAHLHAUS, 1990, p. 220). A delimitação
destes processos nos contornos do conceito de obra, transformando-
os em um objeto fechado, autorreferente e orgânico, é uma das
trajetórias mais significativas da história da música notacional. Uma
relação tão interconectada que se poderia afirmar que "a notação em
pauta [...] é a forma notacional associada com o conceito de obra"12
(ibid., p. 226). O desenvolvimento do conceito de obra se cristaliza nas
salas de concerto com a cultura burguesa no século XVIII. É neste
período que o "arquitetônico aspecto da forma, a claridade alcançada
pela repetição das seções, [...] o aspecto 'lógico', o desenvolvimento de
temas e motivos que, com sua distribuição em um movimento inteiro,
transmite a coerência interna de um processo musical13" (ibid., p. 222),
assumem a centralidade da experiência musical nesta cultura. A forma
musical independente do processo ou performance que a manifesta
passa a ser observada de uma "distância segura", como uma estrutura

11
"For music is directly and primarily experienced as a process or a performance, and not as a
form which confronts the listener. It forces itself upon one instead of being observed from a safe
distance."
12
Staff notation [...] is the notational form associated with the work concept".
13
[...] The architectonic aspect of form, the clarity achieved by the repetition of sections [...] the
logical aspect, the development of themes and motifs whose distribution over a whole movement
imparts an inner coherence to the musical process".

220 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


que se apresenta ao ouvinte por meio dos sentidos. Uma estrutura
garantida, sobretudo, pelo desenvolvimento das técnicas de escrita e
de sua crescente veiculação.
Uma segunda razão para o atraso da consolidação do conceito
de obra decorre de uma importante distinção, apontada por Goodman
(1968), entre as artes alográficas e as artes autográficas. As primeiras
definem-se por prescindirem do autógrafo do artista, ou seja, da marca
de sua interação com um determinado material (tinta, mármore,
concreto). Uma arte é alográfica devido à condição de transponibilidade
de seu conteúdo sem a consequente alteração do conjunto de
informações que ela transmite, ou seja, por sua possibilidade de
reedição. Neste sentido, a música compartilha com a literatura o caráter
de obra de arte alográfica. Por exemplo, a reedição de uma sinfonia de
Beethoven (supondo-se que não haja alterações decorrentes de induções
ou descobertas histórico-musicológicas) não altera em nada o conjunto
de coordenadas que constitui a obra, assim como uma nova edição de
Dom casmurro é ainda a mesma obra com uma capa diferente. Assim,
em Beethoven, a disposição temporal das alturas num plano
bidimensional (com suas respectivas articulações, intensidades e
indicações de expressão), sua estrutura, é portanto independente do
meio que a veicula. O mesmo não se pode afirmar sobre uma arte
autográfica como, por exemplo, o Tríptico de Francis Bacon, realizado
em óleo sobre tela, em três painéis de 198 x 147,5 cm cada14. Estas
informações (material e dimensões) são parte constituinte da obra.
Uma outra realização desta, sua hipotética reedição, assim argumenta
Goodman, é uma falsificação. Este ato seria então impossível de se
realizar em uma obra alográfica, já que seu estatuto ontológico não se
encontra em sua manifestação material. Neste sentido, a definição de
Goodman é categórica:

Chama-se autográfica a uma obra de arte se, e só se, a


distinção entre original e falsificação é significativa, ou
melhor, se, e só se, mesmo a mais exata duplicação da obra
não conta imediatamente como genuína. Se uma obra de
arte for autográfica, podemos também chamar autográfica
a essa arte. Assim, a pintura é autográfica e a música não é
autográfica: é alográfica. (GOODMAN, apud CARON, 2011,
p.16).

14
Atualmente em posse de Coleção National Gallery of Australia em Camberra, AU.

Pesquisa e Música 221


A especificidade técnica da condição alográfica da música é um
dos principais fatores para o tardio desenvolvimento de sua definição
enquanto obra. Muito se escreveu sobre música na antiguidade15, mas
a mudança que passa a se instaurar com o desenvolvimento da notação
é a possibilidade de se escrever a música. A atitude contemplativa é
substituída pela substancialização e pela concreção, fundando o terreno
para o surgimento do conceito de autoria. Com o desenvolvimento da
notação, as práticas composicionais passam a operar, ou são
possibilitadas a operar, na integralidade do evento musical,
circunscrevendo, em uma relação recíproca e retroalimentar, sua
duração e suas possibilidades de realização sonora. Uma radical
mudança, por exemplo, em relação a determinadas práticas do Cantus
Firmus que possibilitavam a "inclusão ou exclusão de vozes pelo próprio
compositor ou qualquer outro", podendo ser lidas,
contemporaneamente, como "obras abertas", "na qual,
consequentemente, o papel do compositor se revela secundário"
(FIGUEIREDO, 2010, p.28). A prática coletiva musical passa neste
momento a intensificar a diferenciação dos papéis de seus atores, e
isso se dá justamente pela possibilidade de abstrair o encontro, de prever
sua realização em um plano simbólico/notacional. Assim, é na
passagem para o século XVI, "que o conceito de autor, em música, vai
se solidificando, associado com o próprio conceito de uma obra musical
estabilizada e identificável" (ibid., p. 29).
Fala-se deste modo sobre a notação como o desenvolvimento de
um sistema simbólico que permite a manipulação do sonoro em um
campo especulativo. Um campo que não agencia diretamente o
fenômeno sonoro, assim como um escultor agencia de modo
autográfico o mármore, mas que provê os meios de organizar, combinar
e arranjar suas sucessões temporais e suas qualidades (articulações,
intensidades e modos de expressão), além de dispor os agentes de sua
realização (cantores e instrumentistas). Assim, a notação passa a servir
como uma poderosa ferramenta organizacional, transformando o
fenômeno sonoro em material musical. Como afirma Bonnet:

15
Ver MATHIESEN, 2011, p.257-272.

222 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


"A notação escrita é um dado fundante da noção de
composição (assim como, aliás da de interpretação); ela
oferece a possibilidade - ponto capital - de fazer da partitura
um lugar de especulação. Desde o século XII, os compositores
começaram efetivamente a elaborar uma combinatória
sofisticada a partir de símbolos abstratos. No Ocidente, essa
atitude parece ser constitutiva da arte musical. (BONNET,
1988, p.211, grifo meu).

Afirmar que a notação musical oferece a possibilidade de fazer


da partitura um lugar de especulação possui algumas implicações. Em
sua raiz etimológica, especular (speculo) significa "observar de lugar
alto, estar de sentinela, de atalaia" (HOUAISS, 2008, p. 1227) isto é,
observar o fenômeno sonoro de um ponto do qual se tem uma visão
privilegiada. Este ponto é justamente o fora-do-tempo da performance.
Com o desenvolvimento da escrita, a experiência subjetiva do tempo é
tornada homogênea em um campo objetivo de relações estruturais,
em que o compositor pode operar não mais se reportando diretamente
à prática. O tempo da contemplação e da imersão na presença, quer
seja a de si ou a da experiência religiosa, passa a adquirir um
movimento dialético resultante da combinatória de elementos abstratos.
Um movimento que não reafirma a representação da estabilidade divina
ou da natureza, mas, por meio de sua artificialidade e seu
distanciamento, engendra a mudança e encadeamento de estados de
espírito. O perigoso suplemento da escritura afasta assim o fazer
musical do lugar de afirmação da tradição e das sensorialidades
estabelecidas. O seu lugar é o fora, o comentário, a rubrica, que no
entanto espelha a ação e a impulsiona.
A notação provoca assim uma interpenetração das categorias
do tempo (categoria subjetiva, intuitiva e imersiva) e do espaço
(categoria objetiva, visível, compartilhável), em que o tempo "aspecto
interior da consciência " passa a ter no espaço o seu "correlato exterior".
Deste modo, "o tempo, cuja concretude subjetiva não possui começo,
fim ou direção, passa a contar com a representação objetiva, abstrata
e direcional de uma linha" (KAFEIJAN, 2014, p. 49). Nesta condição, a
temporalidade "não é mais escoamento e passagem, mas meio de
realização" (DUFOURT, 2007a, p.26). A partir desta geometrização do
tempo, que passa a adquirir dimensões (verticalidades, horizontalidades
e diagonalidades), o som passa a ser especulado, projetado em uma
superfície plana e "observado de um lugar alto". Pode-se pensar neste
sentido em uma topologia do som, ou seja, do mapeamento de seu

Pesquisa e Música 223


estado contínuo em um plano discreto por meio de uma modelagem
analógica. Assim como na construção de um mapa, o território dos
sons é modelado em uma projeção visual de suas coordenadas.
Uma outra implicação do termo especulação consiste em
compreender a partitura como ambiente de estudo teórico, associado
ao raciocínio abstrato, mas, ao mesmo tempo, de concreção do som
no registro simbólico. Assim, em outra acepção etimológica, especular
é criar um jogo de espelhos em que "a premissa de que estruturas sonoras
possam se tornar símbolos gráficos valida a premissa de que símbolos
gráficos possam se tornar estruturas sonoras" (ibid., p.19). Neste jogo,
o som e os gestos sonoros, imateriais, ganham um corpo simbólico, em
que o aspecto contínuo de suas temporalidades passam a ser
especulados em uma permanência abstrata.
É por permanecer, estratificado de seu ciclo vital, de sua duração
imanente, que o material musical passa a ser usado em uma nova
forma de movimentação. Uma movimentação decorrente da elaboração
estrutural e sua capacidade de engendrar diferenças a partir da cisão
dos parâmetros sonoros. Toda a ampla gama de possibilidades de
diferenciação e variabilidade torna-se visível na projeção visual, de um
modo que suplanta os limites instaurados pelas possibilidades físicas
dos músicos, além de estimular a superação destas. O som
corporificado (tornado imagem) é assim identificado, comparado e
modificado segundo a própria lógica de sua representação. Assim, é a
partir do desenvolvimento da notação que a música de concerto entra
no jogo de espelhos da representação, no qual se retroalimenta a
experiência vivida com os signos e suas combinações. Como disserta
Dufourt:

"A notação musical permanece dividida entre duas exigências


antagônicas que se interpenetram, que se estraçalham
mutuamente sem conseguir explicitar suas oposições: de um
lado os resquícios de uma experiência vivida, com suas
relações espontâneas, seu poder de memória, suas intuições
dinâmicas que prolongam, de algumas forma, os esquemas
de ação; de outro, a ordem da composição das relações
espaciais, o poder signalético e combinatório da notação, a
exatidão dos esquemas construtivos, em resumo, o regime
da quantidade, dos condicionamentos explícitos e das
implicações precisas." (DUFOURT, 2007b, p.12, grifo meu).

224 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


O conceito de escritura, em música, surge para diferenciar o
processo de especulação e elaboração por meio do sistema simbólico,
do ato da mera escrita, de inscrever símbolos em um papel com a função
transcritiva. Quando se fala em escritura, portanto, pressupõe-se as
etapas de um processo composicional intrinsecamente interligado à
sua projeção em um sistema simbólico. Segundo François Nicolas, as
noções de escrita da música e escritura musical podem ser
diferenciadas da seguinte forma: na primeira, "a música está em posição
de objeto em relação à escrita: sua função é escrever a música; na
segunda, ela está em posição de sujeito (gramatical): é a música que
escreve, que se escreve16" (2007, p.1). No primeiro caso a escrita é
compreendida como uma secundariedade: sua função é transcrever
uma ideia musical, situada em instância anterior à sua materialidade.
No segundo caso, escrita e música são indissociáveis, apresentando
uma lógica relacional imanente. A escritura musical não se refere,
portanto, a um meio que possibilita a representação das ideias sonoras,
mas ao próprio topos da música notacional enquanto pensamento
criativo. Neste sentido, o conceito de escritura implica em compreender
a composição musical como um pensamento literal (pensée à la lettre),
"interiormente normatizado por seus próprios dispositivos de
escritura17" (NICOLAS, 2005, p.1). Segundo esta perspectiva, não
haveriam ideias musicais em si, dissociadas dos agenciadores de sua
produção (instrumentos, gravações, algoritmos, notação etc.), pois a
ideia musical não é uma anterioridade, cuja transposição lograria à
máxima pureza, mas uma expressão própria ao meio que a veicula.
Esta visão é corroborada por Boulez, que compreende a
vasta utilização do termo escritura como uma recorrente referenciação
ao "atear da imaginação" e a "realização da invenção":

"Talvez se trate, antes de mais, do único meio de transcrição


que podemos ter, transcrição das ideias, das intenções, do
imaginário, seja qual for o domínio a que ele pertence. Mas
na experiência apercebe-se que a escrita não é apenas um
meio de descodificação do pensamento, meio, no fim de
contas, relativamente neutro, que não teria nenhuma
influência sobre o pensamento ou a imaginação, meio que

16
"Dans la première, la musique est en position d'objet pour l'écriture: il s'agit d'écrire la
musique; dans le seconde, elle est en position de sujet (grammatical): c'est la musique qui écrit,
qui s'écrit."
17
"intérieurement normées par leur propre dispositif d'écriture"

Pesquisa e Música 225


não participaria na invenção, mas que tão só transmitiria a
sua mensagem e transcreveria a sua informação. Mesmo
numa reflexão superficial, escrita e pensamento não são entre
si indiferentes, estão irremediavelmente ligados pela
significação: o que se diz está inelutavelmente apenso ao
modo como se diz - mais ainda na música do que alhures,
onde estado da linguagem e poder da expressão remetem
um para o outro. (BOULEZ, [1990] 2013, p.356).

Para Boulez, no entanto, é possível considerar que o conceito de


escritura vai além da questão da materialidade, sendo possível se falar
de escritura inclusive em culturas de tradição puramente oral, que,
"embora não seja individualmente redigida, obedece a leis de arranjo,
de desenvolvimento, de responsabilidade dos elementos entre si" (2013,
p. 357). Isto porque o autor equipara fielmente o conceito de escritura
à noção de combinatória e à elaboração. É assim, observando a ampla
gama de acepções que o termo adquire, que vê o conceito sendo
aplicado como "escrita pictural" e "escrita arquitetural18" (ibid., p.356).
O argumento de Boulez assemelha-se, neste particular, a um discurso
estruturalista, pleiteando a redutibilidade das práticas culturais a leis
que se projetam em estruturas. Deste modo, em transcrições de práticas
orais "através das múltiplas variantes de um mesmo canto, recolhidas
aqui e acolá, pode fazer-se referência a um modelo absoluto, de que
elas derivam" (ibid.). No entanto, uma acepção diferente e mais precisa
é contemplada logo à frente:

"Começo, pois, por dizer que a escrita, o que concebo como


tal, ultrapassa muito o domínio do signo escrito propriamente
dito. Gostaria, no entanto, de acrescentar, logo a seguir, que
o fato material do escrito influencia o fenômeno mais geral,
mais global da escrita. Trate-se de uma tradição oral secular
ou de uma manipulação por uma máquina qualquer de
fenômenos sonoros, a combinatória dos elementos não se

18
"Há, agora, a tendência a designar por "escritura" [...] não apenas os gestos físicos da inscrição
literal, pictográfica ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita [...] tudo o que
pode dar lugar a uma inscrição em geral literal ou não, e mesmo que o que ela distribui no espaço
não pertença à ordem da voz: cinematografia, coreografia, sem dúvida, mas também, 'escritura'
pictural, musical, escultural etc. Também se pode falar em escritura atlética e, com segurança
ainda maior, se pensarmos nas técnicas que hoje governa estes domínios, em escritura militar ou
política" (2008, p.11).

226 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


submete aos mesmos constrangimentos. O próprio fato de
ver o que se escreve acarreta um modo de pensamento que
implica uma complexidade de ordem diferente [...]"(BOULEZ,
2013, p.357-358, grifo meu).

O fato de "ver o que se escreve" coloca o compositor em uma


situação de observador da própria obra e do próprio ato composicional.
Não se trata de uma recepção estésica do próprio ato poiético, pois a
obra ainda não está sendo realizada, mas de uma duplicação das
instancias no campo da poiesis. "Ver o que se escreve" implica em
imaginar o que se ouvirá no futuro. Remetendo novamente à
especulação, a estrutura gráfica é um campo para se intuir e pensar
sobre a manifestação sonora que acontecerá em outro local e tempo.
A sensibilidade que se desenvolve no ato da especulação remete
portanto a uma alteridade dos sentidos, em que se realiza um
pensamento escritural. Este pensar não é uma abstração pura pois
está carregada de memórias da gênese do evento musical. O pensamento
escritural se dá em um momento que coaduna portanto duas instâncias
temporais: a lembrança (projeção do passado) e a especulação (em
mais uma acepção: projeção no futuro).
Desenvolve-se assim um "modo de pensamento que implica uma
complexidade de ordem diferente", em que "a escrita e o pensamento
estão irremediavelmente ligados pela significação". Neste sentido,
Barbosa (2008) pensa três momentos fundantes do pensamento
escritural, implicando os atos de ver, ouvir, escrever, sentir e pensar19.
Segundo Barbosa (id., p. 72-73), num primeiro momento, há a
separação dos sentidos. Não há fusão entre as duas atividades, há um
paralelismo em que não se tocam, mas se contemplam, emulando-se
mutuamente. "O objeto que a escuta apreende é de natureza diferente do
que a escritura planeja, arquiteta": cada uma opera segundo sua ordem
interna, tendo a outra apenas como um dispositivo remoto. Se o ouvido
imagina algo, "o visto é sombra, reflexo ou fantasma que se delineia
impreciso a partir de uma ressonância": trata-se aqui do plano do
contínuo e da temporalidade subjetiva. De outro lado, a visão intui
com todo seu potencial de abstração, convertendo todas as diferentes
naturezas do sonoro para a sua ordem homogênea e geométrica. O
tempo, aqui objetificado, é passível de operações estranhas ao

18
Sua trajetória discursiva estabelece diálogo explícito com os três momentos do Ritornello, de
Deleuze e Guattarri, principalmente o terceiro momento.

Pesquisa e Música 227


comportamento sonoro, como a retrogradação, a inversão, a
compartimentação etc. Assim, "trajetórias convertem-se em perfis, gestos
em figuras, processos em estruturas".
O segundo momento trata do amálgama das duas instâncias, de
sua fusão completa, indissociável. "O ouvido apreende o que o olho lhe
induziu a ver, o olho vê intensidades a partir de uma memória da escuta".
Trata-se aqui de algo mais do que uma sinestesia cognitiva, mas de
um sentir e pensar através da ordem operacional do outro. A alteridade
conduz a atividade dos sentidos, levando a um pensar próprio da
relação dinâmica.
Em um terceiro momento, os sentidos abrem o "'pensar' para um
'lado de fora'". O pensamento musical opera a partir de potencias
expressivas e afetivas que impulsionam os sentidos para novos
territórios. São linhas de fuga decorrentes da intensidade da relação
dinâmica que envolve a escritura, mas que não a desterritorializam
por completo, pois, "o recircular contínuo da linha assegura uma
consistência no 'pensar' - um território - que o protege do caos".
Assim, finalmente, para Barbosa:

"A escritura, na medida em que detém o fluxo do tempo e


põe à distância o fenômeno sonoro, é um trabalho não
somente sobre o som, para organizá-lo, mas também sobre
a sensação, para desenvolver um pensamento do sensível.
Graças a esse distanciamento, a escritura ultrapassa a mera
função de simbolização do fenômeno sonoro e possibilita a
não-redução do pensamento do sensível ao imediato da
sensação. Com a fixação dos sons no espaço gráfico, a
imaginação pode tratar a composição temporal como uma
organização de proporções e forças, uma repartição de
espaços, um contraste de materiais expressivos, enfim, um
jogo de intensidades cuidadosamente conjugadas."
(BARBOSA, 2008, p. 27).

4 Conclusão/preâmbulo

O presente capítulo se ocupou em apresentar e organizar um


quadro teórico, buscando suscitar reflexões para futuras investigações.
Vimos na segunda seção que, no âmbito da musicologia, o conceito de
escritura adquire uma ampla gama de usos e significados, refletindo a
intensa relação entre escrita e criação. A noção de pensamento literal
de François Nicolas é corroborada por diversos autores, instigando

228 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


reflexões sobre temporalidade, autoria, processos de modelagem,
expressividade dentre outros. A desconfiança com a escrita, no entanto,
observada no escrito introdutório de Boulez (uma desconfiança
bastante corroborada por Derrida), não foi encontrada com muita
replicação no discurso musicológico selecionado. Aqui, a relação entre
criação e escrita adquire um caráter que se poderia caracterizar como
otimista, em que a condição escrita do pensamento musical é tida como
a chave hermenêutica na compreensão de processos históricos e
criativos.
A leitura derridiana do conceito de escritura, na primeira seção,
nos faz pensar sobre os conflitos presentes nesta relação. Diante desta
revisão bibliográfica, é possível formular com maior consistência as
seguintes questões: como e por meio de quais formulações e
pensamentos a metafísica da presença se manifesta no ambiente da
criação musical e na musicologia? O que poderia ser pensado, em
música, como a expressão do Logos segundo o qual o suplemento da
escritura poderia representar um perigo, um afastamento da origem?
Uma revisão da linhagem de musicólogos alemães como E.T.A Hoffman,
A.B. Marx, Heinrich Schenker, Arnold Schoenberg dentre outros,
apresenta indícios, alguns explícitos e outros mais subjacentes, a partir
dos quais uma leitura derridiana nos permitiria uma interessante
revisão. Revisão esta que, infelizmente, requer uma dimensão maior
que a do presente capítulo.

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232 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


A Experiência Laborarte1 e a Experiência
Barrica 2: A Construção da Identidade
Musical Maranhense a partir de suas
Culturas P opulares
Populares
Rogério Leitão

"E lá vai Mimoso


Com todo o seu guarnicê
Mas um dia a casa cai
E é Mimoso que vai te comer"

(Ronald Pinheiro)

Este é um recorte do nosso trabalho de pesquisa desenvolvido


durante o programa de mestrado PROFARTES no período de 2016/
2017/2018 na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O objeto
de pesquisa articula as batidas tradicionais do Boi da Ilha3 com a música
popular urbana através do instrumento bateria. O que apresentamos
aqui é o III capítulo dessa investigação, referindo-se à análise desse
momento de ressignificações e releituras da música popular tradicional
maranhense, sobretudo a partir da década de 1970, onde as brincadeiras
( as manifestações da cultura popular tradicional) começaram a
dialogar, de fato, com o repertório da canção popular urbana,
construindo, a partir de então, uma identidade musical/cultural
maranhense a partir de suas batidas e de sua musicalidade tradicional.
Chegamos a um ponto do trabalho mais direcionado para as
questões etnomusicológicas pertinentes às releituras e resignificações.
As culturas populares chegando ao convívio urbano das cidades,
conectando-se às canções urbanas brasileiras na produção da música

1
Laboratório de Expressões Artísticas, fundado em 1972 com a participação de um grupo de
artistas de várias linguagens.
2
Companhia Barrica do Maranhão, fundado em 1985
3
O Boi da ilha é um dos sotaques aceitos atualmente, característico principalmente da região de
São Luís do Maranhão.

Pesquisa e Música 233


de nosso país. Nos primeiros capítulos tentamos entender como se
comportam os sons no contexto tradicional do Bumba-Boi da Ilha e
qual a sua relação com as comunidades onde se desenvolvem e com a
sociedade de maneira geral, agora o nosso foco é direcionado para as
transformações e adaptações sofridas por essa música e qual sua
importância para a construção de uma identidade musical
maranhense, sobretudo produzida em São Luís do Maranhão, durante
as décadas de 1970 e 1980 representando um momento de aproximação
entre a música tradicional e a música popular. Nossa abordagem
coaduna com nosso ponto de interesse do objeto de investigação em
curso: as batidas e as levadas utilizadas nessas releituras.
Buscamos, portanto, dar continuidade à articulação entre a
pesquisa de viés antropológico dos capítulos I e II com a pesquisa de
caráter sociológico que se inicia neste III capítulo e continua no
seguinte, o IV. Ambas seguem metodologias semelhantes, com o
aproveitamento da nossa observação participante, que desenvolvemos
desde as nossas primeiras andanças na área da cultura e da música
popular, aproveitando o nosso convívio com atores importantes dentro
desse processo. Dialogando com os mestres populares
concomitantemente com artistas compositores dentro desse contexto
de resignificação dessas culturas. Como bem apontam Stéphane Beaud
e Forence Weber, em seu "Guia Para A pesquisa de Campo. Produzir e
analisar dados etnográficos" (2007), são áreas acadêmicas que
compartilham metodologias semelhantes: "A divisão entre sociologia e
antropologia não tem mais razão para existir hoje. Puramente acadêmica,
não corresponde a programas de pesquisa diferentes (Beaud, Stéphane.
2007 p. 13).
Desta forma nosso trabalho continua a percorrer os parâmetros
etnomusicológicos que transitam entre as abordagens antropológicas,
sociológicas e musicológicas. A nossa observação vem sendo
desenvolvida desde nossa entrada no grupo Laborarte no final da
década de 1980, e vêm permanecendo até os nossos dias como músico
da Companhia Barrica, motivando escrevermos um pouco sobre essas
experiências, as quais são comuns a tantos outros artistas da cidade
de São Luís.
Juntamente com as entrevistas e depoimentos compõem o nosso
corpo de pesquisa para essa parte do trabalho. Nosso percurso continua
a seguir esses parâmetros, que já vêm norteando a nossa narrativa.
Segundo Beaud/Weber “a observação continua sendo a principal
ferramenta da etnografia, sua melhor arma. A entrevista é seu
complemento mais ou menos indispensável. Conforme as pesquisas nos

234 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


apoiamos mais em uma que na outra.” (Beaud, Stéphane, 2007, p. 118)
A abordagem que nos interessa aqui diz respeito aos diálogos
que estes locais estabelecem com os ritmos das culturas populares
maranhenses, sobretudo em relação as suas produções artísticas.
Reiteramos aqui o recorte desse tema, nosso objeto de investigação
questiona agora como essa musicalidade percussiva do Boi da Ilha
inseriu-se nas novas abordagens musicais a partir dos anos de 1970,
fazendo parte dessa identidade construída a partir desse período, na
cidade de São Luís. Essa questão já vem sendo pesquisada e debatida
também nas academias, citamos aqui o trabalho de mestrado no
programa PGCULT "Música Popular Maranhense e a Questão da
Identidade Cultural Regional" (2012), de Ricarte Almeida Santos, o
trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em Música da UEMA
"Aquém do Estreito dos Mosquitos" (2014) de Josias Sobrinho, o trabalho
do músico e professor José Alves Costa "A Música Popular Produzida
em São Luís-MA, na Década de Sessenta do Século XX" (2011)4, também
o trabalho de José Pereira Godão "O Boizinho Barrica à Luz de Uma
Estrela" (primeira edição em 1987). São trabalhos que ajudarão no
diálogo e debate acerca desse começo da utilização de células rítmicas
próprias do Maranhão e de toda sua percussividade na produção da
música popular urbana feita por aqui.
É nesse sentido que abordaremos os trabalhos desenvolvidos em
dois locais que fizeram e ainda fazem parte desse processo. O Laborarte
da década de setenta, representa um pioneirismo na cena da música
popular em São Luís e sua articulação com as culturas populares. O
Laborarte contava com um Departamento de Som, onde eram
desenvolvidas pesquisas e práticas musicais que se alinhassem a área
da cultura popular. Seus ecos ainda são percebidos através de uma
cultura popular forte, com o Tambor de Crioula de Mestre Felipe e o
Cacuriá de Dona Teté, além da capoeira angola do Mestre Patinho.
Já A Companhia Barrica da década de oitenta, representa uma
abordagem a partir do bairro boêmio e cultural da Madre Deus5 e
redondezas, artistas com uma forte influência do Boi da Madre Deus,

4
Nós fomos contemporâneos no curso da UEMA, e apresentamos nossos trabalhos na mesma
época.
5
A Madre Deus é um dos redutos culturais mais antigos da cidade de São Luís. Podemos destacar
duas casas de tambor de mina: a Casa de Nagô e a Casa das Minas, referência da religiosidade
afro-maranhense. O Boi da Madre Deus, um dos mais antigos batalhões da ilha de São Luís, e
a escola de samba Turma do Quinto, além da batucada dos Fuzileiros da Fuzarca e de inúmeros
Blocos Tradicionais.
Pesquisa e Música 235
do samba da Turma do Quinto e das diversas brincadeiras presentes
naquele bairro.
Desta forma o terceiro e também o quarto capítulos estão
conectados com essas releituras e resignificações da música tradicional
do Bumba-Boi da Ilha. A presença da musicalidade desse sotaque,
notadamente na ilha de São Luís, proporcionando outras apropriações
e um diálogo com os outros sotaques e gêneros musicais.
Atualmente, essas formas simbólicas das culturas populares (suas
músicas), em especial o Bumba-Boi, e mais especificamente o Bumba-
Boi Sotaque da Ilha, representam um bem cultural cobiçado por
diferentes segmentos da arte e da cultura, como por exemplo, nos 400
anos da cidade de São Luís do Maranhão, com concerto da OSB,
Orquestra Sinfônica Brasileira (Anexo 26), nas diversas composições
que utilizam essa matéria prima, o hip-hop do Clã Nordestino, a "Ópera
Boi" do TAA6, os grupos de samba e pagode que já fazem o uso das
toadas em seu repertório, como exemplo o grupo "Sindicato do Samba"
e o grupo "Argumento", dentre outros, e principalmente nas canções
da música popular urbana elaboradas por compositores. Há vários
contextos, diferentes dos tradicionais, onde encontramos a presença
dessa musicalidade.
A análise desse capítulo busca entender esse processo de
identidade musical popular e urbana a partir das culturas populares
tradicionais, sobretudo as células rítmicas e a percussividade do Bumba-
Boi da Ilha e como se articularam com novas propostas artísticas,
estéticas e consequentemente pedagógicas as quais construíram novas
formações musicais nas pessoas, utilizando esta matéria prima cultural
para a formação de músicos, como nos sugere a professora Alda
Oliveira (2006) em um título de um artigo seu. "Educação musical e
identidade: mobilizando o poder da cultura para uma formação mais
musical e um mundo mais humano." (Oliveira, 2006).

A nossa experiência "laborarteana" e "barriqueira"

Gostaríamos de esclarecer uma motivação extra para essa


abordagem. Não foi ao acaso a nossa escolha por esses dois locais, que
de fato representam resistência e divulgação das culturas populares
maranhenses e que vêm, ao longo do tempo, acolhendo artistas e
formando público para esse tipo de arte. Temos uma relação afetiva

6
Teatro Artur Azevedo

236 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


com ambos e de forma bastante sucinta escreveremos algumas linhas
sobre essa questão. Experiências que nos impregnam desde os
primórdios da nossa vida artística através de vivências da música
tradicional e popular maranhenses.
Primeiramente o Laborarte dos tempos das bandas de rock da
década de 19807 (mais precisamente 1987), localizado em um casarão
no centro de São Luís, na Rua Jansen Muller, próximo à Beira Mar,
onde ensaiávamos na Sala Cecílio Sá8, que é um anexo do Laborarte
(recentemente reformada pela Companhia Vale). Nessa época iniciamos
a nossa aproximação com as culturas populares maranhenses e
também efetivamos nossos primeiros contatos com a musicalização e
a teoria musical, aprendemos o solfejo rítmico e melódico, nas nossas
andanças pelo Departamento de Som, na época dirigido por Jorge do
Rosário, com a participação de Marcos Cruz (que foi nosso professor),
Paulinho da Flauta dentre outros. (Anexo 27)
Foi o nosso início como músico baterista, acompanhando
intérpretes e compositores como Rosa Reis, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro
( atualmente usa o nome artístico de Rita Benedito), Mano Borges,
Beto Pereira (Anexo 28) e tantos outros, aproveitando a efervescência
da música popular feita em São Luís iniciada no final da década de
1980, indo até meados da década de 19909.
A Companhia Barrica, da mesma forma, representa uma
continuidade dos nossos trabalhos artísticos a partir do ano de 1997
no Grupo Bicho Terra10 e somente em 2009 no Boi Barrica11. Foi um
tempo de intenso contato com as “brincadeiras” populares do bairro
da Madre Deus o que representou (e ainda representa) um aprendizado
significativo em relação às culturas populares maranhenses. (Anexo
29)
Percebemos então, que nossas experiências nesses dois locais
foram significativas para o nosso aprendizado em música e para a
nossa construção enquanto artista e continuam sendo compartilhadas
por pessoas interessadas em aprender e vivenciar as culturas populares
maranhenses. São lugares de produção e de ensino/aprendizagem da

8
Sala de espetáculos que faz parte do Laborarte, seu nome é em homenagem ao teatrólogo
maranhense Cecílio Sá.
9
Esse período representou para os músicos um tempo de muitos trabalhos através da formação
de um mercado consumidor interessante da música popular feita no Maranhão, em cidades
como São Luís, Imperatriz, Bacabal, Pedreiras, dentre outras. naquela época.
10
Espetáculo carnavalesco da Cia Barrica.
11
Espetáculo Junino da Cia Barrica.

Pesquisa e Música 237


arte a partir dessas culturas. Representam uma alternativa para a
formação artística e consequentemente para a formação musical.
O Laborarte e a Cia. Barrica articulam duas áreas geográficas
importantes para a formação urbana e cultural de São Luís: o
Laborarte, localizado no Centro Histórico e a Companhia Barrica
localizada na Madre Deus. O percussionista Papete, no encarte do LP
Bandeira de Aço, no ano de 1978 em São Paulo, escrevendo sobre César
Teixeira, observa a importância desses dois lugares: Carlos César ainda
dorme, pois ficou madrugada afora, com os amigos, tocando violão, ora
na Madre Deus, de Tabaco e Mané Onça, ora na beira-mar de Josias e
Chico Maranhão (PAPETE, encarte Bandeira de Aço, 1978).
O Laborarte e a Companhia Barrica aqui serão analisados a partir
dessas experiências direcionadas para a construção de uma canção
urbana maranhense, de uma música urbana com características dos
ritmos e das melodias da cultura popular maranhense, cujas
peculiaridades traduzem-se também, através de suas levadas e de suas
batidas.

A Batida como identidade musical

Das características da música brasileira, muito já se vem falando.


Desde, principalmente "os modernistas", o debate sobre essa sonoridade
brasileira merece destaque. Mais recentemente autores como Luiz Tatit
e Carlos Sandroni, por exemplo, vêm consolidando e cristalizando
determinadas premissas acerca dessa música. Vejamos esse trecho:

A atuação do corpo e da voz sempre balizou a produção


musical brasileira. A dança, o ritmo e a melodia por eles
produzidos deram calibres à música popular e serviram de
âncora aos vôos estéticos da música erudita. Em todos os
períodos, desde o descobrimento, a percussão e a oralidade
vêm engendrando a sonoridade do país, ora como
manifestação crua, ora como matéria prima da criação
musical; ora como fator étnico ou regional, ora como
contenção dos impulsos abstratos peculiares à linguagem
musical. (TATIT, 2004, p.19)

De fato a musicalidade percussiva transmitida de formal oral


vem perpetuando uma rítmica ancestral, mantendo-se até nossos dias
através de seus rituais, seus instrumentos e também através de suas
batidas. Carlos Sandroni fala da batida como característica
fundamental da música brasileira. "A batida é de fato, na música popular

238 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


brasileira, um dos principais elementos pelos quais os ouvintes reconhecem
os gêneros." (SANDRONI, 2012, pag. 16)
Como apontam Tatit (2004) e Sandroni (2012), a percussão é
uma das características musicais mais evidentes na música popular
tradicional e urbana em nossos dias, podemos identificar gêneros
musicais a partir da observação e análise da sua parte rítmica Desta
forma, o nosso ponto de vista coloca-se a partir dessas batidas e levadas
do Bumba-Boi da Ilha conectados as novas instrumentações e a esses
novos contextos de produção musical.
Essas "batidas" e "levadas" são elaboradas a partir dos ritmos das
culturas populares e poderíamos ilustrar esse contexto com a síntese
dos ritmos nordestinos feita por Luiz Gonzaga através do "Baião" com
o uso apenas de sanfona, zabumba e triângulo. É um processo
observado, sobretudo durante todo o século passado, de forma que
esses ritmos enraizaram-se na música brasileira, produzindo "padrões",
"batidas" e "levadas", que são utilizadas até nossos dias. Essa
efervescência criativa tornou-se mais evidente em São Luís nas décadas
de sessenta e setenta do século vinte. Época dos primeiros "bois de
viola 12 ", tentativas de uma nova instrumentação para a música
tradicional maranhense, sobretudo em relação aos seus ritmos. José
Pereira Godão, diretor da Companhia Barrica, no livro "O Boizinho
Barrica. À Luz de uma Estrela" (2000) observa quanto diverso eram
essas resignificações no contexto desses "bois urbanos" desses "bois de
cidade" e aponta a música "Boi da Lua" de César Teixeira, como a
pioneira desse gênero.

É bom que se diga: o Boizinho Barrica tem a sina dos bois de


viola que se espalharam pelo Maranhão tecendo suas luzes.
Tem o encanto do Novilho Mágico, de Raimundo Macarrão,
quando se encanta, e o pranto do Boi de Lágrimas, quando
chora. Tem o fulgor do Boi Vaga-lume, de Mochel, quando
brilha, e segredos do Boi Sagrado de Eleazar, quando silencia.
Tem o lirismo do Boi de Eulália, de Sérgio Habibe, quando
ama, e também Catirinas dos bois de Josias, quando brinca.
De todos, ele tem um pouco. De tantos, ele tem um tempo. O
Tempo Certo do Boi Festivo, de Ubiratan, quando resiste.
Mas é o Boi da Lua, de Cesar Teixeira, o primeiro dos
boizinhos de viola, que o Barrica viaja nos astros e o mundo
da Lua, quando busca sua Estrela. (GODÃO, 2000, p.103).

12
Canções urbanas, semelhante às toadas tradicionais, mas com novas influências.

Pesquisa e Música 239


Como uma trupiada de Boi da Ilha caberia nas canções tocadas
com o violão? Qual seria a proposta percussiva para esse momento? A
capacidade artística e estética de sintetizar um batalhão inteiro, sua
percussividade e sua atmosfera. Instituições, grupos, artistas,
pesquisadores, educadores, que desenvolveram um trabalho cujos
resultados são percebidos até os nossos dias.
Sandroni (2012) observa com maestria como ocorre essa
dinâmica cultural.

No Rio de janeiro, o mesmo samba pode ser interpretado, na


época de carnaval, por 300 ritmistas e outros tantos cantores;
e em qualquer época do ano, numa versão de câmera, por
um cantor que se acompanha. Isso leva a pensar que este
instrumento se reveste na cultura em questão, de
extraordinário poder de síntese. (SANDRONI, 2012, pag. 15)

A arte tem essa característica de recriação constante, tanto em


suas formas estéticas, quanto em sua dinâmica de tempo e espaço. O
Boi deixa de apresentar-se apenas em suas comunidades de origem e
passa a arriscar-se em novas plagas. Essa "versão de câmara" a que se
refere Sandroni também ocorreu em nosso contexto ludovicense,
artistas expressando a linguagem tradicional popular apenas com o
violão. Movimento que a partir dessa época, a década de 1970, indicou
uma demanda nesse sentido de tocar os ritmos maranhenses em outros
instrumentos.
Analogamente, semelhante percepção temos do instrumento
"bateria", este instrumento representa para o músico percussionista
uma extraordinária possibilidade para expressar ritmos como o Bumba-
Boi, principalmente pela variedade de timbres e também a
independência dos membros, ideal para reprodução (de forma
estilizada) desses ritmos e de rítmicas com polirritmias.
Na realidade, as "performances" dos gêneros musicais populares
contemporâneos, como o jazz, o samba e as rumbas, privilegiam em
suas configurações o tocar percussivo, essa é uma configuração já
estabelecida, utilizando-se os padrões rítmicos para o acompanhamento
de gêneros musicais específicos. Trocando em miúdos, cada gênero
musical popular apresenta uma batida específica sua. No Brasil a
diversidade rítmica faz parte da nossa identidade cultural existindo
uma série de manifestações populares e tradicionais que evidenciam a
percussão em suas práticas. Sambas, baiões, frevos, marchas,
apresentam suas próprias levadas, presentes nas execuções musicais
em seus vários contextos.
240 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.
Dessa maneira percebemos que o estudo da música brasileira
perpassa pelo estudo da percussão brasileira. As aproximações e
articulações entre a percussão, a música tradicional e popular e a
educação musical, sobretudo através de novos modelos metodológicos
e novas abordagens epistemológicas, colocando-se nos currículos dos
cursos de música brasileiros já é uma realidade contemporânea. A
partir desse contexto procuramos, através da nossa pesquisa,
interpretar a cultura tradicional maranhense de acordo com a sua
parte rítmica e percussiva, analisando musicalmente seus ritmos e
oferecendo padrões de acompanhamento para o instrumento bateria.
A percussão representa também questões de identidade musical
(cultural) importantes no Brasil, como aponta Augusto (2010). Alguns
estilos e gêneros musicais caracterizam bem determinados grupos
sociais, comunidades ou até mesmo a própria nação. As "batidas" e as
"levadas" são peculiares a cada região brasileira, formando um grande
mosaico cultural. Em um país com tamanha diversidade cultural, é
difícil apontar apenas uma identidade musical, elas são múltiplas e
tão variadas, que essa própria diversidade torna-se sua identidade,
como diz Ortiz (2005) "(...) não existe uma identidade autêntica, mas
uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais
em diferentes momentos históricos" (ORTIZ, 2005, p. 8). É através desses
pertencimentos e da construção de identidades que o ser humano
coloca-se e articula-se dentro de um determinado grupo, dentro de
uma sociedade e a música também funciona como vetor desse processo.

A música, sobretudo a chamada 'música popular', ocupa no


Brasil um lugar privilegiado na história sociocultural, lugar
de mediações, fusões, encontros de diversas etnias, classes e
regiões que formam o nosso grande mosaico nacional. Além
disso, a música tem sido ao menos em boa parte do século
XX, a tradutora dos nossos dilemas nacionais e veículo de
nossas utopias sociais. Para completar, ela conseguiu, ao
menos nos últimos quarenta anos, atingir um grau de
reconhecimento cultural que encontra poucos paralelos no
mundo ocidental. (NAPOLITANO, 2002, p. 7).

Dentro da nossa pesquisa a diversidade da cultura popular


maranhense posiciona-se de forma marcante. Distribuídos através de
um calendário cultural anual que envolve os seus ciclos culturais:
Tambores de Mina, Tambores de Crioula, os Bumba-Bois e suas variadas
formas, As Caixeiras, os Blocos Tradicionais, as Tribos de Índios e tantas
outras manifestações populares tradicionais. Nossos entrevistados,

Pesquisa e Música 241


sobretudo, indicam essa característica como uma das peculiaridades
significativas da cultura do Maranhão, temos, portanto, a diversidade
cultural brasileira e a diversidade cultural maranhense. Ubiratan Souza,
por exemplo, que também pesquisa as culturas tradicionais e populares
brasileiras, relata essa característica: O Maranhão pra mim é o principal,
pela diversidade. Diversidade! Você vai no interior do Maranhão...nós
temos uma diversidade muito grande que ainda não foi explorada
(entrevista, 2017).
Inserido nessa teia cultural maranhense o Boi colocou-se
historicamente como elemento representativo e, guardada as devidas
proporções, o Bumba- Boi está para o maranhense, como Samba está
para o brasileiro. A festa e a devoção do Boi impregnam o "ser
maranhense", povoando seu imaginário com seus sotaques, o
compositor Chico Maranhão fala da "Nação do Boi" ao definir São Luís
do ponto de vista filosófico. "O "Sonho de Catirina" é um espetáculo da
Nação do Boi, como melhor defino São Luís do ponto de vista filosófico."
(encarte ópera boi).
Trazemos para nossa análise dois autores americanos que
articulam as questões de identidade cultural e multiculturalismo
através dessas formas simbólicas, o jamaicano Stuart Hall e o argentino
Nestor Garcia Canclini. Hall em sua análise da identidade cultural na
pós-modernidade oferece um entendimento sobre esse tema, que nos
remete às reflexões sobre um "caráter nacional brasileiro13". Hall
aborda a importância das culturas nacionais como fonte cultural do
indivíduo no mundo moderno. Segundo Hall, as culturas nacionais,

"são compostos não apenas por instituições culturais, mas


também de símbolos e representações. Uma cultura nacional
é um discurso- um modo de construir sentidos que influencia
e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos
de nós mesmos" (HALL, 2005. p. 50).

Por essa ótica a cultura nacional, ou regional, cria sentidos, são


representações onde os indivíduos podem se identificar. Se há algum
temperamento que nos caracteriza, qual o seria? E dentro da imensidão
cultural brasileira como encaixar tamanha diversidade? A afirmação
do Bumba-Boi como identidade cultural e musical maranhense, segue

13
Título do livro que também é a tese de doutoramento de Dante Moreira Lima, que aborda esse
temperamento cultural brasileiro na década de 1960.

242 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


a mesma linha do samba como música nacional brasileira,
apresentando um movimento sociocultural e artístico, todavia repleto
de tentativas de apropriações políticas.
Papete observa que as culturas populares maranhenses eram
cobiçadas, na década de 1970, por artistas de várias classes sociais,
por exemplo: Todos esses personagens fazem parte desta cidade cheia de
encantos, que é São Luís do Maranhão. Todos compositores, pobres, ricos,
classe-média, sei lá, porém integrados na cultura e nos costumes da gente
do lugar. (PAPETE, encarte Bandeira de Aço, 1978) É assim que essas
formas simbólicas criaram sentidos para uma visão de mundo do
indivíduo e para reelaboração das estruturas sociais e a música popular
cumpre essa função, como disse Napolitano (2002) "um lugar
privilegiado na história sociocultural, lugar de mediações, fusões,
encontros de diversas etnias, classes e regiões que formam o nosso grande
mosaico nacional" (NAPOLITANO, 2002, p. 7). Essa aproximação entre
culturas distintas, de mestres e compositores, de violões e tambores,
promoveu a possibilidade de uma nova percepção de pertencimento
do maranhense. E uma alternativa importante para quem quisesse
participar de atividades culturais a partir dessa matéria prima.
Marcus pereira, na contracapa do LP "Bandeira de Aço" (1978),
analisa que além desse movimento social e político houve também uma
imposição cultural hegemônica, em suas palavras "um processo de
colonização cultural interna". A crítica refere-se ao esquecimento de
gêneros musicais brasileiros e que compõem uma das mais importantes
características culturais: a sua diversidade.

Desde logo sentimos- e esta consciência está enfaticamente


registrada em toda literatura musical de Mário de Andrade-
a imensa riqueza rítmica, temática e melódica da música do
povo do Brasil. Porque então desde muito tempo, a maioria
dos compositores se ateve ao samba a ponto de este gênero-
e é apenas um gênero entre muitos outros- se confundir com
a composição musical popular como um todo? Acreditamos
que a resposta está no fato de que, com o surgimento dos
meios eletrônicos de comunicação de massa, inicialmente o
rádio e, posteriormente a televisão, passou a haver a
hegemonia de alguns centros culturais em detrimento de
outros, desenvolvendo-se um processo de colonização cultural
interna. Isto ocorreu e prossegue ocorrendo a partir do Rio
de Janeiro, primeiramente com a Rádio Nacional e
atualmente com a Rede Globo de Televisão. Mas ocorre
também a partir de São Paulo, sede das estações de rádio de
grande alcance..." (PEREIRA, Marcus. 1978, contracapa)
Pesquisa e Música 243
De fato as novas configurações socioculturais modificam
também as manifestações tradicionais e, sobretudo as produções de
música popular. No Maranhão ainda é um conflito presente em nossos
dias: Rua ou palco? Regional ou universal? Local ou global? Como
inserir, de fato, essa cultura tradicional em uma rede mundial de
comunicação? Como utilizá-la sem agredi-la? São aspectos inerentes
à dinâmica da cultura e suas reelaborações. Nessa linha de
interpretação, Nestor Garcia Canclini (1983) observa a importância
da cultura na construção de sentidos:

A cultura não apenas representa a sociedade; cumpre também,


dentro das necessidades de produção de sentido, a função de
reelaborar as estruturas sociais e imaginar outras novas. Além
de representar as relações de produção, contribui para a sua
reprodução, transformação e para a criação de outras
relações. (CANCLINI apud CARVALHO, 1995, p. 49).

As formas como os sujeitos e os grupos socioculturais articulam


os sons, tornando-os seus, produzindo e dando sentido a sua música,
faz parte desse processo de (re) produção e transformação. São essas
as releituras que desenvolvemos, através da nossa atividade como
músico baterista e professor de bateria, utilizando a matéria prima
dos ritmos maranhenses. São questões que a partir dos saberes musicais
do Bumba-Boi da Ilha etnografados no primeiro capítulo, serão
articuladas à utilização dessa rítmica percussiva na construção da
música popular urbana maranhense. As influências, sobretudo da
musicalidade percussiva peculiar do sotaque do Bumba-Boi da Ilha é o
nosso ponto de interesse, como essas levadas e essas batidas foram
incorporadas à música urbana maranhense.
Havendo essa demanda musical, fomos inserindo o nosso
instrumento bateria nas práticas artísticas e consequentemente nas
práticas pedagógicas, primeiramente pela necessidade artística de usar
esses padrões (que ainda não existiam) e depois pelos questionamentos
dos nossos alunos em relação a uma metodologia específica para
ensinar esses ritmos. Essas indagações nos levaram a pensar os ritmos
maranhenses sob uma nova perspectiva, a do processo de ensino e
aprendizagem de música, segundo assinala Margarete Arroyo (2002)
"em qualquer prática musical estão implícitas o ensino e a aprendizagem
de música", desta forma além das questões tradicionais achamos
fundamental o entendimento das características e estruturas desse tipo

244 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


de música, tanto a tradicional, quanto a popular urbana corroborando
com as diretrizes da Pedagogia Musical, que busca uma abordagem
sociocultural da educação musical. Adaptando metodologias e métodos
para diversos contextos e configurações socioculturais. A partir da área
etnomusicológica buscamos inserir esses saberes musicais no campo
acadêmico, evitando, contudo, qualquer tipo de etnocentrismo, mas,
ao contrário, uma maior articulação dessa musicalidade percussiva
maranhense em realidades mais amplas e universais, ressaltando a
nossa particularidade. "As sociedades têm histórias no curso das quais
emergem particulares identidades. Estas histórias, porém, são feitas por
homens com identidades especificas". (BERGER; LUCKERMANN, 2012,
p. 221).
Desta forma o olhar do pesquisador já não percorre apenas um
sentido, mas a ação e o contexto dialogam através de problematizações
que visam refletir sobre realidades vividas por atores reais,
proporcionando seus pertencimentos ao particular, mas também ao
todo, ao geral. Esse movimento cultural veio dos anos sessenta e
desemboca no início dos anos setenta na criação do Laborarte, que
buscava justamente essa identidade da música maranhense e a sua
articulação com o mundo. A partir daquele momento já se falava em
um gênero musical maranhense próprio, principalmente através do
Boi, o compositor Josias Sobrinho (2014) fala em "transplantar uma
categoria musical para outra". Essa diferença cultural convive com uma
contínua homogeneização globalizante e em contrapartida com uma
fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da
alteridade, segundo Hall (2005), "assim, ao invés de pensar no global
como "substituindo" o local seria mais acurado pensar numa nova
articulação entre o global e o local". (HALL, 2005, p. 77).
O compositor Josias Sobrinho (2014) opina:

A expressão musical maranhense, não fugindo à regra,


carrega em seu bojo estético, na forma e no conteúdo de
suas criações, elementos característicos do traçado histórico
do povo maranhense, aquele que nos diz das pessoas que
aqui estiveram, das que aqui estão e de como muito
provavelmente serão as futuras gerações que por aqui
andarem. (Sobrinho, 2014, p. 14).

Pesquisa e Música 245


Há outra recorrência em nossa pesquisa, que é a busca por uma
identidade musical própria. Houve em dado momento histórico essa
preocupação, e as manifestações culturais tradicionais necessitaram
transpor os limites de suas comunidades, colocando-se em outro
contexto, sobretudo o da música popular urbana. As formas simbólicas
dessas culturas, que já invadiam literalmente o espaço urbano,
tornaram-se matéria prima para as artes, em suas diversas linguagens.
Citando mais uma vez Marcus Pereira (1978), relatando a sua primeira
experiência com a música popular urbana maranhense.

E logo entrei em contato com um grupo de compositores


maranhenses que nos convidou para uma reunião boêmia
na Madre Deus, trincheira maior dos resistentes em favor da
cultura popular regional, dos tambores, do bumba-meu-boi.
E perplexos, assistimos ao desfile de composições
surpreendentes de Carlos Cesar, Josias, Ronaldo e Sérgio
Habibe. Muito antes, a partir de 1968, Chico Maranhão, cujo
apelido não deixa dúvidas, vinha me mostrando as coisas de
sua terra. Nosso encantamento foi tal que as músicas se
instalaram dentro de nós e nosso grupo passou a ter uma
senha que era cantarolar ou assobiar a fantástica música de
São Luís. (PEREIRA, Marcus. 1978, contracapa).

Outra reflexão interessante da professora Maria Goretti


Cavalcante de Carvalho, ex coordenadora do Curso de Licenciatura
em Música da UEMA e que está presente na monografia de Josias
Sobrinho (2014).

A música maranhense vem se tornando um patrimônio, que


representa uma identidade. Mas, este patrimônio musical,
carrega tensões, tanto de sua construção quanto de sua
difusão para além dos limites culturais e identitários. Apesar
de não estar congelado, estanque, e querer ser compartilhado
com a sociedade brasileira, ainda encontra barreira, limites,
embargos. Isto passa pela questão da Sustentabilidade. Como
garantir a difusão de um elemento cultural local? Como a
música maranhense poderia dar um passo a mais para
alcançar uma representação mais significativa para além
do Estreito dos Mosquitos?" (SOBRINHO, 2014, p. 34).

São esses os nossos parâmetros para a investigação e análise


dessa musicalidade genuinamente maranhense, construída através das
células rítmicas características do Maranhão. De fato, não apenas as

246 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


batidas e levadas da música tradicional articulam essa identidade
musical, mas também os padrões rítmicos adaptados para outros
instrumentos e contextos artísticos.

Primícias: a configuração da música popular urbana no


Maranhão e sua articulação com as culturas populares antes
da década de 1970

Aspectos Históricos

Gostaríamos de articular os nossos locais a serem visitados com


o que vinha acontecendo anteriormente a 1970. Durante esse percurso,
algumas das personagens dessa história já vinham delineando o
caminho. Portanto, analisamos que seria necessária uma visão, embora
panorâmica, do que vinha acontecendo em São Luís em relação às
suas culturas populares tradicionais, e como era tratada pelos
acadêmicos e artistas. Pontualmente, fornecem pistas para
investigações futuras.
As questões culturais e musicais no Maranhão vêm merecendo
atenção por parte de estudiosos pelo menos desde a década de 1970,
podemos citar aqui as obras do Padre João Mohana "A Grande Música
do maranhão" (1974) e do antropólogo Sérgio Ferretti "Tambor de
Crioula, ritual e espetáculo" (1979). Desde então diversos trabalhos
acadêmicos tentam desvendar esse mosaico cultural e artístico
maranhense. A historiadora Hidelacy Corrêa (2012) localiza o início
dos estudos sobre a cultura popular maranhense:

A expansão dos estudos sobre cultura popular no Maranhão


deu-se mediante a influência do debate nacional, iniciado
na década de 1920 mas,que, aqui, adquire expressão somente
a partir dos anos 30, quando o interventor Federal, Paulo
Ramos, adota a política nacional do Estado Novo de
cooptação de intelectuais. Da mesma maneira que foi para
o restante do país, no Maranhão, a preocupação em conhecer
o Brasil, também passava pelo conhecimento de suas
diferentes regiões. (CORRÊA, 2012 pag. 21).

E também sobre a construção simbólica do Bumba-Boi do


Maranhão:

Pesquisa e Música 247


(...) com o levantamento das pesquisas, percebi que a
construção simbólica do Maranhão, através do Bumba meu
boi, era mais complexa, na medida em que, desde a década
de 1950, a recorrência a essa imagem, para simbolizar o
Maranhão, já era frequentemente utilizada, através de
concursos dentro e fora do Estado. (CORRÊA,2012, p.

Essa imagem do Boi, aqui interpretada de forma ampla,


envolvendo seus personagens, sua dança, sua música, é um
componente importante nesse processo de formação de identidade e
de produção do sentido e de pertencimento.
Aproveitando a citação de Correa acerca do início da utilização
do Boi enquanto símbolo de identidade maranhense na década de 1950,
não poderíamos deixar de indicar o ineditismo do uso desse "brinquedo
musical" na musicalização de crianças e adolescentes, pois da década
de 1950 foi o trabalho da professora Camélia Viveiros (mãe do
compositor Chico Maranhão) intitulado "Boi Brejeiro".

Camélia Branca Costa de Viveiros (1906-1970) professora


de jardim-de-infância, fundadora de escolas públicas nos
municípios maranhenses de Matões, Bacabal, Guimarães e
Vitória de Mearim. Sua presença nesses municípios foi em
decorrência das transferências do marido, que era coletor e
fiscal de rendas. A formação artística e cultural das crianças
foi sua grande preocupação, instalando em sua residência
um palco para os ensaios. Recriou em linguagem infantil as
manifestações culturais locais, como o bumba-meu-boi, O
brejeiro, encenado no Teatro Artur Azevedo, em São Luís, e
considerado à época (1950) uma grande transgressão.
(EDUCAÇÃO & L INGUAGEM, 2008 pgs 123-135.)

O trabalho do Padre Jocy, que utilizou a partir do final da década


de 1960 elementos do Bumba-Boi nos seus trabalhos com corais
também merece nota. Percebemos a variedade de abordagens artísticas
e pedagógicas que vêm acompanhando o Bumba-Boi maranhense desde
pelo menos a década de 1950.
Observamos que esse resgate histórico é importante para uma
melhor investigação a partir da visã o das culturas populares e uma
aproximação com outros campos musicológicos, reafirmando o caráter
interdisciplinar da etnomusicologia. O Padre João Mohana, por
exemplo, revela uma extensa coleção de músicas e de compositores,
indo do erudito ao popular. Essa coleção é fonte importante para as

248 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


pesquisas em educação musical, musicológicas e também
etnomusicológicas. Duas obras na área da musicologia histórica
maranhense são dignas de registro e foram produzidas a partir desse
acervo14. "O Acervo Musical Mohana e A Vida Musical do Maranhão
Imperial: romantismo de província enquanto ornamentalismo hegemônico
na Ilha de São Luís. 1836-1892", tese defendida em 2006, na
Universidade Nova de Lisboa pelo professor Alberto Pedrosa Dantas
Filho e "A Música Religiosa de Leocádio Rayol (1849-1909) e sua relação
com o Maranhão do século XIX: um estudo musicológico, com transcrição,
análise e perspectiva histórica.", do professor João Berchmans de
Carvalho Sobrinho (2003), tese defendida na UFRGS.
Segundo Mohana "o Maranhão não foi apenas cenário de um
fenômeno literário espantoso, mas também palco de uma impressionante
criatividade musical". (MOHANA, 1995, p.114) Assim sendo,
acreditamos que essa coleção também poderia ser utilizada para
pesquisas sobre música popular e sua articulação com a música
tradicional, supondo ter havido na São Luís colonial um fenômeno
ocorrido em outros centros urbanos brasileiros, visto que "desde meados
do século XVIII, na faixa popular, assistia-se à "cancionalização" dos
batuques africanos fortalecida pelo aumento da participação de
mestiços e brancos das classes inferiores nas rodas musicais. "(TATIT,
2004, p. 25) Carvalho Sobrinho (2010) observa que a configuração
musical que aponta Mohana (1995) passa por essas rodas e saraus.

Para este grande humanista maranhense, o Maranhão teve


então um período de apogeu musical caracterizado por
diversas frentes de produção, desde as pequenas retretas
domingueiras, os concertos e óperas do Teatro São Luiz, as
Missas e Novenas à grande instrumental, até os saraus privados
nos casarões da alta sociedade. Tudo isso favorecido por
uma próspera atividade econômica fruto do ambiente
oitocentista maranhense, que caracterizaria a sociedade deste
período pela intensa atividade expressiva de produção
artística e intelectual. (SOBRINHO, 2010, p.54).

O fato importante para a nossa pesquisa é que a produção a que


se refere a coleção Mohana reúne também um repertório popular que
inclui:

14
O professor e musicólogo Alberto Dantas defende que a nomenclatura para esse trabalho de
pesquisa do Padre João Mohana seja a de Coleção Mohana.

Pesquisa e Música 249


Lundus. Habaneras, Quadrilhas, Polkas, Sambas ("tangos")
e sambas-canções, Schotisches (Chotes), Marchuinhas e
marchas carnavalescas, Canções (várias delas no estilo da
alta modinha brasileira), Galop carnavalesco (o famoso Zé
pereira), Foxes , Boleros, Frevos, Cateretês, Folclore
Trabalhado, Choros, Maxixes, Rancheira( MOHANA, 2012,
p.25).

A tessitura social e cultural em constante mudança fazia parte


também da realidade ludovicense de outrora. Poderiam de alguma
maneira, terem acontecido aproximações dos tambores maranhenses
com outros tipos de música, como a de concerto, por exemplo? Há de
se imaginar que a sociedade maranhense à época, com seu Teatro
União (1817) também estaria sujeita a toda essa influência de uma
música brasileira em formação, como por exemplo, em seus
"entremezes", pequenas peças apresentadas entre as partes dos
programas teatrais.

O estalar de dedos, típico do fandango ibérico e a introdução


de acompanhamento de viola são marcas da influência
branca e da transformação quase total dos rituais negros em
música para a diversão. Alem disso, as pequenas peças
cômicas (os entremezes) levadas ao teatro, que incorporavam
essas danças e canções populares, encarregavam-se de
difundir o gênero - a essa altura já conhecido como lundu-
entre membros da classe média nascente. (TATIT, 2004, p.25).

A nossa intenção aqui é apenas apontar que esta coleção poderia


ser utilizada também para estudos na área da música popular. Como a
música tradicional, os Bois, Os tambores de Crioula e Mina dialogavam
(ou não) com essas outras formas musicais? E como foi a dinâmica
dessa música popular urbana aqui em São Luís? Questões que a nosso
ver mereceriam uma investigação etnomusicológica interessante.

A canção urbana maranhense

Uma das formas mais utilizadas para esse movimento das


culturas populares foi sem dúvida a canção. Letras, melodias e ritmo
transformaram o século XX, segundo Tatit (2004), no século da canção.
Nesse sentido, de forma breve, gostaríamos de contextualizar esse
momento antes da década de 1970, onde nomes importantes no cenário

250 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


cancioneiro brasileiro já saíam das terras maranhenses. Segundo Luiz
Tatit "A canção popular brasileira foi se tornando, no decorrer do século
XX, uma das principais formas de manifestação artística do país." (folha
de rosto, 2004).
Citaremos aqui, dentro desse recorte do cancioneiro brasileiro,
três nomes importantes que se destacaram no cenário nacional: João
do Vale, Nonato Buzar e Chico Maranhão, embora a preocupação com
nossos ritmos e melodias ainda não houvesse acontecido. A canção
tornava-se importante forma de afirmação identitária cultural e
musical, segundo Josias Sobrinho:

As tintas que antecedem o movimento encetado pelo grupo


de músicos alinhado às hostes "laborarteanas" guardavam
em versos, quase que tão somente, as cores maranhenses de
uma geografia urbana referente a lugares de memórias
importantes para a ressignificação daquele que está alijado
do seu meio berço cultural, estrangeiro em outra paragem.
"Não há, ó gente, ó não, luar como este do sertão!", de Catulo
da Paixão Cearense em "Luar do Sertão"; "[...] eu também
vou cantar a minha, modéstia à parte seu moço, minha terra
é uma belezinha. A praia do Olho d'Água, Lençóis e Araçagi",
de João do Vale, em "Todos cantam a sua terra"; "Maranhão
que terra boa, onde o poeta nasceu. Maranhão é minha terra,
terra que Deus me deu", de Dilú Melo, em "Saudades do
Maranhão"; "Vou voltar para o mar do Maranhão, lá bem
longe onde o céu caiu no chão. Praia aberta, chão de mar.
Sorte certa, meu lugar. Saudade bateu me fez voltar", de
Nonato Buzar, em "Olho d'Água; "Quero voltar, quero voltar
pra São Luís, ilha do amor onde eu nasci, onde em criança
eu fui feliz", de Claudio Fontana, em "São Luís, Ilha do Amor".
(SOBRINHO,2014,p. 23)

Talvez tenha sido João do Vale quem primeiro tentou inserir os


ritmos tipicamente maranhenses em canções populares. Josias Sobrinho
(2014) aponta essa característica em sua pesquisa, assim como a
proximidade de João do Vale com a cultura popular tradicional
maranhense. "Há de se ressaltar que João do Vale guardava uma relação
de estreita proximidade com estes ritmos populares de raiz maranhense e
com o imaginário cultivado na memória coletiva do seu berço cultural"
(SOBRINHO, 2014, p.24).
E segue:

Pesquisa e Música 251


O negro interiorano João do Vale, de origem humilde, pobre,
retirante, entranhado de elementos populares de sua Pedreiras
natal, considerado o maranhense do século (XX), diminui a
distância entre os ritmos da cultura popular de raiz
maranhense e a criação de compositores de outra categoria
que não os cantadores da tradição, em uma composição,
"Sanharó" (João do Vale e Luiz Guimarães), gravada por
Marinês e sua gente, no LP Coisas do Norte, RCA Victor,
1963, aproximação esta registrada na gravação apenas no
discurso poético, no uso de referências explicitas a
manifestação cultural, na forma de uma toada de Tambor
de Crioula: um refrão fixo e estrofes improvisadas em desafio
entre os cantadores presentes.
Êh! Êh! Sanharó
Êh! Êh! Sanharó
Êh! Êh! Sanharó
Êh! Êh! Sanharó
Isso é tambor de crioula
Que vem lá do Maranhão
Canta guia de nós preto
Dia da libertação
Tocando nesse tambor
Eu balanço mais não caio
Viva Princesa Isabel
Oi viva treze de maio
Menina toma cuidado
Essa abelha é de amargar
Ela te morde nas costas
Onde não dá pra coçar
Se essa abelha te morde Sanharó
Morde no pé Sanharó
Morde no joelho Sanharó
Se ela sabe eu não sei Sanharó
(SOBRINHO,2014, p.24).

O compositor Nonato Buzar foi um dos primeiros a aventurar-


se ao "sul maravilha"."Descendente de libaneses passou a infância e a
adolescência no Maranhão. Em 1953, transferiu-se para o Rio de Janeiro,
para estudar Engenharia. Aprovado no vestibular desistiu do curso e
dedicou-se à música". (DICIONÁRIO Cravo Albin http://
dicionariompb.com.br/nonato-buzar acesso em 5/12/2017) Nonato
Buzar torna-se referência para vários compositores maranhenses,
como, por exemplo, e principalmente Gerude e Ronald Pinheiro.

252 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


O compositor e intérprete Chico Maranhão teve seu
reconhecimento através de um gênero musical pernambucano, o frevo,
no III Festival da Música Popular Brasileira, em 1967 com a música
"Gabriela", interpretada pelo grupo MPB4. Nessa época, Chico
Maranhão ainda não utilizava as "coisas com gosto e cheiro da cultura
maranhense" (CD ópera Boi, 2011), direcionando seu trabalho para as
canções e os samba-choros, como no antológico disco "Lances de
Agora" (1978), gravado na igreja do Desterro, no bairro do mesmo
nome, em São Luís. Chico retoma seu namoro com a cultura popular
maranhense de forma acentuada, tendo feito durante anos o "Tambor
do Chiquinho" e participado do projeto "Ópera Boi" do Teatro |Artur
Azevedo veja o que ele nos fala no encarte do CD "Ópera Boi" (2011):

Aqui estão os originais da Ópera Boi "O Sonho de Catirina"


numa terceira edição com seu libretto no encarte. Novamente
vocês vão ouvir os cacos das telhas, as folhas secas,
passarinhos, os montes de barro esquecidos nos quintais das
casas da minha cidade. Coisas com gosto e cheiro da cultura
maranhense que, de um jeito ou de outro, participaram desta
criação com suas vibrações subjetivas. Uma ópera popular.
Um tambor de Crioula. Um boi. A saga de um casal de
lavradores. Muito pouco a ver com as coisas novas, ditas
modernas. Mais um sonho sem tempo, porém pragmático.

"O sonho de Catirina" é um espetáculo da Nação do Boi,


como melhor defino São Luís do ponto de vista filosófico.
Criei assim, um som que é resultado do popular com o erudito,
à maneira Villa Lobos. Um timbre artersão somado a outro
(não menos artesão). Mas, um couro e um Strandivarius.
Um tambor onça e um arco de celo. A garganta de um
passarinho e uma cama de violas. Um, eco do outrodentro
da noite antiga de São Luís. Uma alquimia de sons onde
selecionei 15 momentos entre textos e toadas da maneira
que eu os concebi. Sua função é de servir ao maestro idéias
para arranjos sinfônicos, já que não me é possível traduzi-lo
em partituras, sou apenas um compositor intuitivo, pois minha
canção eu faço sem letra escrita, mas cantada. (CD ópera
Boi, 2011, encarte).

Para concluirmos esse breve percurso desse movimento da


canção maranhense em direção aos seus ritmos genuínos, indicamos
que a primeira tentativa concreta da utilização do ritmo tradicional
do Maranhão aconteceu no I Festival da Música Popular Brasileira no

Pesquisa e Música 253


Maranhão (1971), promovida pela prefeitura de São Luís, cujo prefeito
à época era Haroldo Tavares. A música foi "Toada Antiga" de Ubiratan
Souza e Souza Neto e contou com a participação do Bumba-Boi da
Madre Deus. Ubiratan também atuou como assistente de produção do
maestro Paulo Moura, responsável pelos arranjos e regências desse
disco, que foi gravado no Rio de Janeiro. Sobre esse festival e esse
registro fonográfico, também destacamos a participação de Ronaldo
Mota "Sem Compromisso", Oberdan Oliveira "Ladeira", José Américo
Bastos em parceria com Oberdan "1000 horas", Sérgio Habibe "Fuga e
Anti-Fuga", Giordano Mochel "Boqueirão" e o poeta Bandeira Tribuzzi
com "Louvação de São Luís".
Sobre essa música Ubiratan nos relatou a motivação para
utilização de um Boi da Ilha em sua composição e de uma forma
bastante interessante, pois observa o quanto a cidade estava
impregnada por esses sons, por essa paisagem sonora e ao mesmo
tempo o quanto esses sons eram postos à margem.

Eu acho que era uma obrigação... Já que eu era emprenhado


por esse som desde a infância, de madrugada, ouvindo essa
coisa bonita, olhando o "Pai Francisco", olhando a "Mãe
Catirina", olhando o Boi, olhando aquela efervescência
cultural fantástica. Eu tive a intenção de projetar isso mais a
nível social, vamos dizer assim, mais para a sociedade que
marginalizava esses grupos, num momento importante que
era a projeção de uma música em um festival. Essa foi a
idéia principal. Então eu inseri no meio da música, dentro
da música, que tem parceria da letra de Souza Neto, meu
parceiro eterno, eu inseri o Boi de Matraca. ( entrevista,
2017).

Acrescentaríamos que também na década de 1970 a música


tradicional do Boi tem seus primeiros registros fonográficos,
primeiramente com o Bumba-Boi da Madre Deus e pouco depois com
o Bumba-Boi de Pindaré15. Na área da música popular urbana essa
influência boeira mais uma vez torna-se evidente com a produção da
época, o movimento fica claro quando observamos o repertório do
antológico LP Bandeira de Aço, de 1978. Das nove canções gravadas,
seis apresentam o Bumba-Boi como gênero musical. Josias fala:

15
Salientamos que a música "Urrou do Boi", do amo Coxinho, já foi gravada pela cantora Maria
Betânia.

254 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


O "Bandeira de aço" também se destaca como a consagração
inicial do gênero bumba-meu-boi como categoria musical
transplantada para outra dentro do universo da produção
musical brasileira. Das nove músicas do repertório cinco são
composições do gênero, onde além das citações explicitas
ao "brinquedo popular", pulsam as rítmicas e o discurso verbal
da manifestação folclórica aliados às construções melódicas,
harmônicas e poéticas de uma geração de autores
determinados a modificar o panorama da canção cultuada
no Estado. (SOBRINHO, 2014, p.30).

Como disse Josias Sobrinho, o Bumba-Boi torna-se gênero


musical, ou seja, segundo ele, uma categoria musical transplantada
para outra dentro do universo da produção musical brasileira.
Possibilitou o diálogo entre dois locais sociais e culturais contrastantes
na prática musical (Arroyo, 2002), ou seja, a música tradicional
maranhense, sobretudo a feita aqui em São Luís, das comunidades
localizadas e já estabelecidas na capital, com outras formas artísticas
que se apropriando dessas culturas populares apresentavam novas
propostas estéticas e artísticas na produção de uma música
caracteristicamente maranhense, ou seja, com uma identidade musical
própria daqui.

O Laborarte

Fundado em 1972 pelo teatrólogo Tácito Borralho o Laboratório


de Expressões Artísticas, conhecido como Laborarte e até mesmo de
"Labô" representou um marco para as diversas linguagens artísticas
na cidade de São Luís. Poderíamos estabelecer três fases importantes
no Grupo Laborarte: a primeira fase desenvolvida pelo teatrólogo citado
que capitaneou uma série de artistas de diferentes linguagens para
compor o grupo. Uma segunda fase quando assumiu a direção o ator
Nelson Brito e uma terceira fase após o falecimento do mesmo.
Com uma proposta de utilização das culturas populares
maranhenses como matéria-prima para a composição de seus
espetáculos teatrais, mantém-se até nossos dias como espaço de
resistência da cultura popular maranhense. O percussionista Negreiros
Xavier traz um pouco dessa relação intensa entre as linguagens artística
que aconteceu ali

Pesquisa e Música 255


O Laborarte é uma particularidade, ali começa a música...
Porque é outro processo... Porque ali começa um trabalho de
pesquisa, não a música que vem de um conservatório, você
vai trabalhar a música ali na hora, sem partitura...você pensa
numa determinada cena, onde o teatro colabora muito com
isso, o teatro é uma ferramenta importantíssima no
aprendizado da música. Você não tem que ficar preso nessa
coisa mais dura da partitura. O teatro te dá uma outra
abertura...porque o cara te dá um determinado tempo e você
tem que vivenciar aquilo em termos de um ambiente, e a
músicas é um pouco isso, a música é um ambiente, onde
você começa a ter uma relação fenomenológica com a questão
musical...o ruído acontece...(entrevista com Xavier, 19/10/
2017).

O Laborarte representou muito para aquele momento, onde o


movimento em direção a uma identidade, sobretudo rítmica, se fazia
inevitável. A utilização das culturas populares era um caminho sem
volta. Cristalizou-se, dando forma a uma inquietude de artistas
maranhenses que buscavam sua própria linguagem, a partir de seus
ritmos, de suas danças.
A nosso ver em relação às nossas questões etnomusicológicas,
dois aspectos merecem destaque. Em primeiro lugar, a pesquisa e
utilização das culturas populares maranhenses, representando uma
aproximação de fato entre uma cultura tradicional e outras abordagens
artísticas/estéticas. A segunda questão refere-se aos compositores que
compuseram o Departamento de Som do Laborarte e que, de fato,
iniciaram esse movimento da canção popular brasileira utilizando os
ritmos e melodias da música tradicional maranhense. Xavier nos falou
sobre essa dinâmica de trabalho do grupo: "O grupo tinha essa relação,
essa divisão, essa compartimentalização...tinha o teatro, tinha a dança,
artes cênicas, literatura...tinha os departamentos".( entrevista com Xavier.
19/10/2017). Xavier foi coordenador do Departamento de Som do
Laborarte em 1976.
Evidencia pela primeira vez a questão da pesquisa dessas culturas
populares através do registro audiovisual das brincadeiras, festas e cultos
religiosos populares, assim como o diálogo com os mestres da cultura
popular. Lembramos aqui do saudoso Mestre Felipe, que desenvolveu uma
oficina de Tambor de Crioula (o que não era comum à época)
representando a possibilidade para as pessoas de outras comunidades ou
classes sociais aprenderem esse ritmo e, por outro lado, uma forma da
brincadeira expandir seus horizontes. Segundo Xavier

256 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


Eu cheguei em 1976, praticamente..depois de Sérgio Habibe.
Dando continuidade na questão das pesquisas das
manifestações, isso foi a grande sacada...foi lá que a gente
começou a trabalhar com essa idéia da pesquisa do Tambor
de Crioula, Tambor de Mina, Bumba-meu Boi, foi lá que a
gente começou a trazer pessoas, né? Como Mestre Felipe,
veio lá do São Raimundo/Coroadinho. (entrevista Xavier,
19/10/2017).

Representa para a música popular brasileira feita no Maranhão


um momento de intensa produção musical, principalmente através
dos compositores Sérgio Habibe, César Teixeira e Josias Sobrinho, e
cuja produção musical foi a espinha dorsal do LP Bandeira de Aço,
gravado em 1978, por Papete e que representa um marco para a música
popular urbana maranhense.
Alguns trabalhos acadêmicos já buscam um entendimento acerca
dessa busca de uma identidade cultural regional a partir de sua música
popular urbana. Ricarte Almeida analisa essa questão a partir do ponto
de vista do compositor Chico Maranhão sobre essa "canção maranhense
moderna", apelidada por alguns de MPM.

Os acontecimentos nos anos 70 em torno do Laborarte,


através da geração desses jovens artistas maranhenses que,
dentre outros papéis e resultados, foi mediadora do
desenvolvimento de uma nova estética musical em São Luís;
e tal estética musical passava a incorporar os elementos da
cultura popular regional, introduzindo o debate da identidade
cultural regional na produção artística naquele contexto,
como fica claro em discurso de Chico Maranhão, cantor e
compositor, em recente artigo de jornal, debatendo com este
pesquisador, dando conta das intenções daquela geração de
artistas. "Naquele momento, a afirmação da nossa identidade
era mais importante, e a música popular um vínculo
significativo, embora naquela época inconsciente. Tornando-
me então mais explícito, quero dizer que a MPM é um conjunto
de agentes, ou possibilidades com qualidades e características
específicas atuando para um mesmo fim: a construção e
afirmação de uma canção maranhense moderna. ( ALMEIDA,
2012, p. 17).

Importante destacar aqui, aproveitando a análise de Ricarte a


partir de Chico, duas questões que interessam a nossa pesquisa: o debate

Pesquisa e Música 257


da identidade cultural regional na produção artística, papel que o
Laborarte desempenhou com pioneirismo, articulando o tradicional e
o popular, promovendo, sem dúvidas uma nova (se já havia alguma)
estética para as artes maranhenses. E a construção, a partir desse debate
de uma "canção maranhense moderna", como disse Chico. Construção
que passou, inevitavelmente, por definições de padrões rítmicos e
melódicos, como observou Xavier:

Eu acho que é isso, na hora que você descobre um padrão,


que você define um pouco da melodia e o ritmo do seu
instrumento... e a própria manifestação, do seu
pertencimento...eu acho que ainda rola nessa coisa da
identidade, a nossa identidade é o Boi, mas a gente não deve
estar fechado. Agora a gente corre esse risco, dessa tentativa
muito de só regionalizar, acho que a música tem que partir
de um universo maior. (entrevista, 2017).

Outro pesquisador e historiador que investiga essas questões


relacionadas a essa canção urbana maranhense é Flávio Reis, segundo
ele, entrevistado por Josias Sobrinho (2014):

A experiência de gestação de uma música com inegável


sotaque maranhense, ou seja, a busca de uma localização
no cenário musical nacional a partir de uma canção moderna
(vale dizer, pós-bossanovista e pós-tropicalista) com
aproveitamento da riqueza melódica e rítmica encontrada
na diversidade da cultura popular, se desenvolveu a partir
dos anos 70. Continuávamos fazendo nossos xotes, choros,
sambas, mas estava em questão a fermentação de algo
diferente, de um tipo de canção que carregasse, por exemplo,
aquela "pulsação boeira", a que se referiu certa vez o
compositor Chico Maranhão, o tipo de divisão sincopada
dos ritmos do bumba-boi e do tambor de crioula. Essa
experiência, que se desenrolou principalmente a partir do
Laborarte, onde avultam os nomes de Cesar Teixeira, Josias
Sobrinho e Sérgio Habibe, mas em conexão com figuras
expressivas que não chegaram a ser integrantes do grupo,
como Chico Maranhão, Mochel, Ubiratan e, um pouco depois,
mas ainda no mesmo diapasão, Saldanha, foi algo que parece
não ter se "completado". Isso porque a cena cultural, com
todas as deficiências de uma cidade meio isolada,
principalmente naqueles tempos, com uma defasagem em
relação à efervescência cultural vivenciada nos grandes
centros desde meados dos anos 60, mas, de qualquer forma,

258 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


sendo influenciada por ela, se configura mais ou menos entre
meados dos anos 70 e início dos 80 (...) (SOBRINHO, 2014,
p.51).

Essa trinca (Sérgio, Cesar e Josias) foram os iniciadores dessa


proposta de uma linguagem musical própria, dessa busca por uma
sonoridade genuína e do aproveitamento dessa musicalidade tradicional
maranhense. Cada um com influências e formações distintas. Um de
nossos entrevistados, o percussionista Xavier Negreiros apontou bem
a predileção deles por um ou outro sotaque ou ritmo, inserindo em
seu discurso o nome de outro ator importante nessa cena musical
insipiente, Raimundo Makarra.

Eu acho que isso é uma coisa muito particular, são


particularidades. Eu acho que a melodia dele (Raimundo
Makarra) é uma coisa muito forte. Existe essa complexidade
de coisas, né cumpade? Cada um percebe essa melodia...por
isso ele fala que...o Boi chora (referindo-se á canção Boi de
Lágrimas de Makarra), tem que ter uma relação de sentimento
melódico. Sérgio Habibe tem uma percepção pro lado do
Tambor de Crioula...a música no Maranhão é muito diversa,
cada um tem uma concepção na cabeça.(entrevista, 2017).

Além do "trio laborarteano", houve outros atores importantes


nesse cenário, como o próprio Raimundo Makarra. Dois outros
compositores merecem destaque já no final da década de 1970,
Ubiratan Souza, Giordano Mochel. Estes já um pouco mais próximos
da efervescência cultural do bairro da Madre Deus.
Makarra é o autor de "Boi de Lágrimas"16 , música imortalizada
no cancioneiro maranhense, através da primeira gravação do Boizinho
Barrica.

A Companhia Barrica

A Companhia Barrica do Maranhão, ou mais precisamente a sua


brincadeira junina intitulada "Boizinho Barrica" inicia sua trajetória
no ano de 1985, conduzido por José Pereira Godão, como observa
Jeovah França no prefácio do livro "O Boizinho Barrica à Luz de uma
Estrela".

16
A música Boi de Lágrimas já foi gravada por inúmeros artistas, destacamos a cantora e
compositora carioca Leci Brandão.

Pesquisa e Música 259


(...) um trabalho que intersecciona várias experiências e
formas de expressão artística, abrangendo canto, dança,
música, literatura, artesanato e teatro de rua,
consubstanciado por uma visão eclética, cuja condução e
urdidura são realizadas pelo compositor Zé Pereira Godão,
num processo que vem amadurecendo há trinta e um anos.
(GODÃO, 2000, p.5).

O Barrica surge com essa proposta: Barrica pra todo mundo.

Um Maranhão de ritmos, danças, cânticos e tradições... De


imensa diversidade cultural. De tambores ecoando por todos
os cantos, de folguedos enfeitando as cidades, um Maranhão
de gigantesca arte popular. Como fruto desse caldeirão de
festas e sotaques, a Companhia Barrica sente-se honrada em
lhes revelar esse Maranhão de encantos, como uma caixinha
de segredos que o Brasil já não pode mais guardar. (GODÃO,
2000, contracapa).

Essa divulgação da cultura popular maranhense para o mundo


e, sobretudo para os maranhenses, é notada desde o nascimento da
Companhia com a estréia do espetáculo junino no bairro da Madre
Deus, em São Luís, em 1985, "O Boizinho Barrica á luz de uma estrela",
neste mesmo ano apresentou-se no "Festival de Inverno de Diamantina-
MG" e na "36ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência", em Belo Horizonte. A partir de então as viagens para
participação em festivais e eventos tornou-se uma constante, são 15
países já visitados por essa companhia de cultura popular.
A produção artística que inclui livros, CD'S , DVD'S, está articulada
com os espetáculos da Companhia através de três brincadeiras: Boizinho
Barrica, Bicho Terra e Natalina da Paixão, fomentando uma série de
apresentações durante todo o ano. Tendo como referencial primeiro
as formas artística da cultura popular maranhense (assim como o
Laborarte), além da questão artística, importante para consolidar essa
estética maranhense de tratar a arte, desenvolve e amplifica o universo
da arte popular, possibilitando o contato artístico entre pessoas com a
vontade de conhecer e se desenvolver nessa área ( músicos,
dançarinos...)
A concepção artística da Cia. Barrica desenvolve-se a partir do
"Teatro de Rua" integrando linguagens diversas, com atenção especial
para a música, a dança e as coreografias, e o artesanato. Esse teatro
de rua materializou-se através da construção a partir da década de
2010 da "Casa de Arte Barrica", localizada no bairro da Madre Deus.
260 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.
A Cia. Barrica faz parte de grupos classificados pelos poderes
públicos como "parafolclóricos" por um tempo e atualmente de
"alternativos", são grupos que trabalham com releituras e
resignificações, ou seja, representam uma ou várias formas artísticas
da cultura popular maranhense. Por exemplo, esta Companhia em seu
espetáculo junino, além dos sotaques do Boi maranhense, encena
através da música e da dança outras manifestações juninas como os
Cocos, os Cacuriás, as Quadrilhas Nordestinas, os Tambores de Crioula
e as Ladainhas do Divino Espírito Santo.
Mukuna (2015) em sua interpretação considerou o Boi Barrica
como um estilo de Bumba-Boi do Maranhão: O material coletado é
representativo dos vários estilos de Bumba-meu-Boi no Maranhão. Eles
são: o estilo Matraca, o estilo Zabumba, o estilo Orquestra e o novo
estilo Boi Barrica, um pastiche sátira?(MUKUNA, 2015, p.17) Nosso
ponto de vista difere com o de Mukuna sobre dois aspectos.
Primeiramente o Barrica, sob a nossa ótica, não é estilo de Boi
maranhense, ele está na categoria de grupos e companhias que
trabalham com várias manifestações da cultura popular, não se
enquadra na categoria de Sotaque, cujo significado e conceito já foi
abordado nesse trabalho. Nessa seara, o pioneiro foi o grupo Cazumbá
(1973), de Américo Azevedo Neto. Em segundo lugar, em relação ao
termo pastiche, observamos que o trabalho da Cia. Barrica é um
trabalho autoral e de representações das culturas populares, há a
tradição nas abordagens artísticas, entretanto através de novas
concepções, bem mais amplas. Nesse caso não se trata de copiar um
determinado grupo tradicional, mas resiginificar através de outras
formas artísticas esses estilos. Mukuna, da mesma forma, classificou
o Boi de Viola como um estilo ou sotaque, observem esse trecho: "A
afirmação de Américo Azevedo Neto é corroborada no Maranhão pela
presença de três estilos de matracas: Boi de Pindaré, Boi da Ilha e Boi de
Viola, que apareceu em São Luís após 1999". (MUKUNA, 2015, p.83)
Talvez por ser este pesquisador um etnomusicólogo conguês, um
estudioso que vê a realidade cultural maranhense através de uma
perspectiva exterior, tenha tido uma percepção equivocada dessa
dinâmica cultural.Notamos que o Boi de Viola surge na década de
1970, em São Luís, e não é um estilo de Boi maranhense, faz parte da
sua canção urbana, inclusive Zé Pereira Godão nos relatou através de
um depoimento que essa terminologia dos "Bois de Viola" foi uma
criação sua, para nomear esse estilo da canção urbana maranhense.

Pesquisa e Música 261


A música desenvolvida pela Cia.Barrica é autoral, feita
principalmente pelos compositores José Pereira Godão e Luís Bulcão,
algumas poucas exceções encontramos com Giordano Mochel,
Wellinton Reis, Ubiratan Sousa e Juca do Bolo. Poderíamos citar uma
música importante nesse contexto, de outro compositor chamado
Raimundo Makarra, autor de uma das canções mais conhecidas no
cenário do Boi maranhense: Boi de Lágrimas, gravada pela primeira
vez por Roberto Brandão no LP, "O Boizinho Barrica à luz de uma
Estrela", de 1987.
Observamos uma característica peculiar nesse acervo de canções
barriqueiras em relação ao Bumba- Boi, por exemplo. As músicas
produzidas revelam uma fidelidade ao sotaque escolhido, tanto em
sua composição, quanto em sua execução. Mesmo com uma perceptível
mudança em relação á música tradicional, como no caso da
instrumentação e arranjo, que se revestem com novas nuances,
observamos que a rítmica permanece, valorizando cada sotaque.
"Garota do Sobrado" é um típico boi da Ilha, que poderia ser apresentada
em uma trupiada de um Boi da Ilha tradicional. "Clareou Terreiro"
apresenta-se mais estilizada, conquistando outros espaços, como por
exemplo, no samba e pagode, já registramos aqui que essa canção
está no repertório de pelo menos dois grupos desse gênero musical na
cidade de São Luís.
Desta forma tanto o Laborarte quanto a Cia Barrica são espaços
de produção e divulgação das culturas populares maranhenses
relevantes tanto para os artistas desenvolverem as suas práticas quanto
para o público ter acesso a esse tipo de arte. Ao mesmo tempo são
inspirações para outros grupos e outras comunidades em nossa cidade
que anseiam desenvolver trabalhos cuja matéria prima seja a cultura
popular maranhense. È através dessa produção musical que
desenvolveremos a próxima parte do trabalho, utilizando as canções
populares urbanas feitas a partir da rítmica do Sotaque da Ilha e que
foram produzidas no Laborarte e na Cia Barrica durante as décadas
de 1970 e 1980.

262 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


REFERÊNCIAS

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Pesquisa e Música 265


AUTORES

FRANCISCO ADELINO DE SOUSA FRAZÃO


Professor de Música do IFPI desde agosto de 2012. Mestre em Letras
(UESPI - 2014). Especialista em Docência Superior (2011). Graduado
em Educação Artística - Habilitação em Música (UFPI - 2004).
Área de Pesquisa: Semiótica da Canção.

ALBERTO DANTAS FILHO


É carioca, licenciado em Música pela Universidade Federal de
Pernambuco, onde concluiu também estudos de Composição e
Harmonia Contemporânea com Marisa Rezende; Regência de Coro
com Marcos Júlio Sergl e Henrique Gregori; Regência de Orquestra
com Mário Câncio, Osman Gioya, Henrique Gregori, Sebastian
Johannes Grabe e Isaac Karabtchevsky , flauta com Ilma Lira e
violoncelo com Nelson Campos e Mariza Johnson. Como diretor,
destacou-se pela direção do Coro Feminino Vox Feminæ, da Escola de
Música do Estado do Maranhão, e regeu a Orquestra Sinfônica do
Projeto Viva 400, durante as comemorações dos 400 anos de fundação
de São Luís, capital, quando foram apresentadas várias obras do
repertório histórico maranhense. Doutorou-se em Ciências Musicais
pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Na Universidade Federal
do Maranhão, onde já atua há 31 anos, dirigiu o Departamento de
Artes, o Departamento de Assuntos Culturais exercendo, por várias
vezes, a Pró-Reitoria de Extensão. Fundou o Curso de Licenciatura em
Música da Universidade e participou como membro representante da
Região Norte-Nordeste do Conselho Nacional de Cultura - Ministério
da Cultura. Atualmente, coordena o Grupo de Pesquisa em Musicologia
da UFMA e o Observatório de Pesquisas em Artes do Programa de Pós-
Graduação em Artes também sa UFMA, durante mais de cinco anos,
foi consultor musicólogo do Arquivo Público do Estado do Maranhão.
É membro do RIdIM - Brasil, com importantes trabalhos sobre
iconografia musical.
ALFREDO WERNEY LIMA TORRES
É graduado em Educação Artística (Habilitação em Música) pela
Universidade Federal do Piauí (UFPI), Mestre em Letras pela
Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Doutorando em Música pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa
"Música e Cultura". Atualmente é professor de Música do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI). Atua como
violonista, tendo trabalhado como professor de violão na Escola de
Música de Teresina (EMT). Estuda as relações intersemióticas entre
música e literatura, enfocando a canção popular brasileira. Como
pesquisador, tem apresentado trabalhos em importantes eventos
nacionais e internacionais, como o "IV Congresso Internacional de
Linguística Histórica" (Universidade de Lisboa-PT) e "XXI Congreso
Internacional de Humanidades" (Universidad Metropolitana de Ciencias
de la Educación de Santiago-CL). É autor do livro Música e palavra
nas canções de Chico Buarque e Tom Jobim (Max Limonad, 2014).

CAIO CÉSAR VIANA DE ALMEIDA


É Mestre em Literatura pela Universidade Estadual do Piauí (2009)
com ênfase em semiótica da canção; É licenciado em Educação Musical
pela Universidade Federal do Piauí (2009) e possui experiência em
educação pública no ensino fundamental, médio e superior (2009 -
2019). Desde 2014 é professor efetivo do Instituto Federal do Piauí e
atua como Regente de Coral e professor de música.

CASSIO HENRIQUE RIBEIRO MARTINS


É Doutorando em Educação pela USP de São Paulo e Mestre em
Performance Musical pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006).
Foi Coordenador do Curso de Licenciatura em Música da UFPI no período
de junho de 2010 a setembro de 2013. Foi Vice Diretor da Escola de
Música da UFPI. É professor no Departamento de Música na
Universidade Federal do Piaui, onde desenvolve intensa atividade
pedagógica. Sua experiência abrange o Ensino Coletivo dos
Instrumentos de Cordas (violino, viola, cello e contrabaixo), Didática
dos instrumentos de Cordas Friccionadas, principalmente nas seguintes
áreas: execução musical, performance musical, masterclass, audições
de alunos e professores, regência, música de câmara e educação
musical. É integrante do Núcleo de Pesquisa em Música da UFPI
(NUPEMUS) onde desenvolve pesquisa na área da pedagogia do violino
e musicologia. Foi Coordenador do PIBID-Música da UFPI no período
de 2011 a 2018. Foi o fundador da Orquestra de Câmara da UFPI e

268 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


diretor artístico e regente no período de 2010-2012. Na frente da
orquestra executou o musical Fantasma da Ópera, Mamma Mia In
Concert, Opereta Vésperas de Reis de Leocádio Rayol, Magnificat de J.
S. Bach, Cantata Folclórica de Emmanuel Coelho Maciel, Sinfonias de
Haydn e Mozart. Implantou em 2010 um projeto de Orquestras e Coros
Infanto-Juvenis UFPI Para Todos na cidade de Teresina em parceria
com o Instituto Cultural Santa Rita com o apoio da UFPI. É coordenador
do Projeto Cultura no Campus e mensalmente realiza apresentações
artísticas e culturais nos campi da UFPI. É diretor artístico e
coordenador do Encontro de Cordas Friccionadas da UFPI e atualmente
assumiu a direção musical do grupo Brasil Musicâmara e Camerata
Emmanuel Coelho Maciel. Com esses grupos realiza concertos de
músicas brasileiras e desenvolve atividades de pesquisa estilística e
performática dos repertórios selecionados.

CAUÃ BORGES CANILHA


É graduado pela Universidade Federal de Santa Maria e mestre em
Performance pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo. Edelton Gloeden é doutor em Artes pela Universidade de
São Paulo e atual professor no Departamento de Música da Escola de
Comunicações e Artes.

DANIEL LEMOS CERQUEIRA


É pianista e professor de música atuante desde 1994. Apresentou-se
como solista e acompanhador em teatros, salas de concerto e espaços
culturais diversos nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas
Gerais, Espírito Santo, Goiás, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do
Sul, Bahia, Ceará, Piauí, Maranhão e Amazonas. Possui curso técnico
em piano pela Academia de Música Lorenzo Fernandez (RJ),
bacharelado em piano e mestrado em performance musical pela UFMG,
nos quais estudou com os pianistas Maria Luísa Lundberg, Miguel
Rosselini, Maurício Veloso e Ana Cláudia Assis. Desde 2009 reside em
São Luís, sendo atualmente Professor Adjunto II do Departamento de
Música da UFMA e Professor Formador no curso de Música Licenciatura
à distância da UEMA. Como acadêmico, possui nove livros publicados
e dezoito artigos nos principais periódicos brasileiros da área de Música.
Está cursando o doutorado em práticas interpretativas na UNIRIO,
com orientação do prof. Dr. Marco Túlio de Paulo Pinto e co-orientação
do prof. Dr. João Berchmans de Carvalho Sobrinho (UFPI).

Pesquisa e Música 269


EDNARDO MONTEIRO GONZAGA MONTI
Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro -
ProPEd/Uerj, com período de estágio no exterior financiado pela Capes,
realizado no programa de Pós-graduação em Memória e Crítica da
Educação da Universidad Alcalá (Madri - Espanha), mestre em
Educação pela Universidade Católica de Petrópolis. Avaliador de cursos
de graduação do Ministério da Educação/Inep. É professor permanente
de História da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Piauí, instituição na qual atua no curso de
Música. Apresentou trabalhos em eventos científicos internacionais
no Brasil, Estados Unidos, Espanha, Portugal, México, Argentina e
Colômbia.

JOÃO BERCHMANS DE CARVALHO SOBRINHO


Doutor em Música - Musicologia e Etnomusicologia - pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com período de estágio no
exterior financiado pela Capes, realizado no programa de Pós-
graduação em Música da Universidade Nova de Lisboa e no Setor de
Musicologia da Biblioteca Nacional de Portugal. Mestre em Educação
pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. É professor do Curso de
Música da Universidade Federal do Piauí. Coordena o NUPEMUS - Grupo
de Pesquisa em Música da UFPI.

RAFAEL MOREIRA FORTES


Professor assistente na Universidade Federal do Piauí (UFPI) de Teoria
Geral da Música e Percepção Musical. Doutorando em Musicologia
pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, 2016
-). Mestre em música na área de poéticas da criação musical pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2014-2016); Graduado
em Música com especialização em composição pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, 2010-2013). Como
compositor, tem suas obras executadas em concertos internacionais e
em diversas regiões do Brasil, como o Centro Mexicano pala la Musica
y las Artes Sonoras (CMMAS), a Universidade de Aveiro, a sala Cecília
Meireles e o Ibrasotope, e em eventos como o Panorama Música
Brasileira Atual da UFRJ e o Encontro Nacional de Compositores
Universitários (ENCUN). Suas obras abrangem composições
eletroacústicas, música para conjuntos de câmara, instrumentos solo
e banda sinfônica, composições para vozes de atores e têm especial
interesse para as estratégias de improvisação semi-livre e para as
interações com outras mídias, como o Vídeo-Música e as composições

270 Práticas, Formação Docente e Estudos Musicológicos.


cênicas. Como instrumentista (Saxofone e Flauta), desenvolveu
trabalhos com o trio Lanca, voltado para a improvisação guiada, com
o qual lançou o CD Roda (2017) e com o Quinteto Serra Brasilis, voltado
para a música instrumental brasileira. É integrante do quinteto
instrumental Clube do Jazz.

ROGÉRIO LEITÃO
Possui graduação pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA-
2011). Possui mestrado pela Universidade Federal do maranhão (UFMA-
2018) Desde 1997 é professor de bateria da Escola de Música do
Maranhão Lilah Lisboa de Araújo (EMEM). Autor do livro "Batucada
Maranhense: análise rítmica dos ciclos culturais, a visão de um
baterista" (2013). Músico da Companhia Barrica (Cia. Barrica) desde
1997. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Música.

Pesquisa e Música 271

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