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* Cf. do mesmo Autor: “Evento comunicativo e interpretação de um texto bíblico”, em: REB 63 (2003)
295-319.
** Massimo GRILLI, sacerdote diocesano e italiano; estudou em Roma, Frankfurt e Jerusalém; doutorou-se
em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, com a tese: Comunità e Missione: le direttive di
Matteo. Indagine esegetica su Mt 9,35-11,1, EH XXIII/458, Frankfurt/Main 1992; autor de muitos artigos sobre
temas bíblicos e de hermenêutica em revistas especializadas; colaborou na tradução da Bíblia Piemme, com um
comentário sobre o Evangelho de Mateus; Diretor do Projeto Evangelho e Cultura, Projeto de exegese intercultu-
ral; professor de teologia bíblica e coordenador de mestrado da área de teologia bíblica da Pontifícia Universidade
Gregoriana – Roma.
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author mixed some well-known literary devices, how he re-edited them and
placed them at the service of a communication that has as its basic content
the identity of Jesus and the fact that His fate is one of suffering. The reader
is invited to read the event, not so much by focusing on “what really happe-
ned”, but rather on the “meaning” of the events about to take place. Having
realized that the path of Jesus and His followers entails the cross (Mk
8:32-9:1), the reader will be able to realize that God has the power to trans-
figure the way of the cross into a way of resurrection and of life. In itself, the
transfiguration event offers the interpretative key for the reader to unders-
tand the facts about to happen in the history of Jesus and, consequently, in
the history of all believers.
Introdução
1. Cf. Evento comunicativo e interpretação de um texto bíblico, em: REB 63 (2003) 295-319.
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4. A famosa inscrição de Priene (Ásia Menor) do ano 9 a.C. narra a data do nascimento do imperador César
Augusto com estas palavras: o dia de nascimento do deus foi para o mundo o início – por seu intermédio – de
boas notícias (tôn euaggeliôn). Nesta inscrição, de fato, o nascimento do imperador Augusto auspiciava boas no-
tícias. Marcos, por seu lado, com um genitivo objetivo, faz com que a Boa-Notícia (singular!) se centre no Mes-
sias-Jesus.
5. Não tratarei aqui da questão textual referente a hyiou tou theou, pois não nos diz respeito diretamente.
Considero a forma breve mais segura (cf. R. PESCH, Marco, I, 139-140), ainda que o testemunho marcano sobre
Jesus como Filho de Deus esteja fora de discussão (cf. 1,11; 15,39).
6. Por essa razão, alguns autores consideram Mc 1,2b (citação de Ml e Ex) como uma glosa posterior. Po-
rém, essa hipótese não tem qualquer base textual de apoio.
7. As citações bíblicas são da tradução da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), São Paulo
2001.
A transfiguração do caminho 79
8. Em alguns textos proféticos do AT (Is 40,1-11; 55,6-11 e Ml 3,1-3) o tema do caminho do Senhor é de-
senvolvido em ligação com o tema da conversão e do perdão dos pecados, ao passo que, em Ez 36,24-27 e Is
63,7–64,11, se interligam o caminho do Senhor e a obra do Espírito.
9. Para uma análise mais aprofundada, cf. E. MANICARDI, Il cammino di Gesù nel Vangelo di Marco.
Schema narrativo e tema cristologico (AnB 96), Roma 1981, 148-170.
10. Só en ekeinais tais hêmerais, em 8,1; 13,19.24. Mas cf. Lc 2,1.
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14. Temos aqui uma única recorrência marcana do verbo anachôrein, que exprime o desejo de encontrar
um refúgio em caso de perigo. O sentido em nosso contexto é mais neutro.
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quecer as regiões dos pagãos, como Tiro e Sídon), Marcos apresenta Je-
sus subindo a uma montanha a fim de ali instruir o grupo dos mais ínti-
mos, os Doze (3,13-19). A introdução é solene (3,13), e a identificação
pessoal mediante o nome de cada um dos discípulos (3,15-19) revela a
importância que Marcos atribui a estas personagens. O leitor também é
informado das funções dos Doze, sintetizadas em duas: a) ficar com Je-
sus e b) partilhar com ele a missão de anunciar (3,14).15 Até o momento,
portanto, vão-se configurando à volta de Jesus diferentes círculos de pes-
soas: desde o círculo mais distante, composto pelos adversários (3,6), ao
círculo intermédio, composto pela multidão que o admira, até ao círculo
mais próximo, o dos discípulos que o acompanham e dos Doze.
A seqüência seguinte, em 3,20-35, e o ensino por meio de parábolas,
em 4,1-34, constituem uma ulterior confirmação e desenvolvimento
deste processo de aproximação/afastamento em relação a Jesus. Nesta
linha, surgem primeiro os parentes que vêm buscá-lo por acharem que
Jesus está louco (3,21); surgem depois os escribas, para quem Jesus é
um endemoninhado (3,22); a multidão que o segue admirada (4,1); e,
por fim, os discípulos com os Doze, ou seja, os mais íntimos. Esta posi-
ção especial reservada aos discípulos também se pode notar na função
indispensável que o plano de Deus lhes destina. No capítulo das parábo-
las, Jesus fala disso abertamente, ao estabelecer uma distinção clara en-
tre os discípulos mais os Doze (4,10), e os outros: “a vós é confiado o
mistério do Reino de Deus. Para aqueles que estão fora tudo é apresenta-
do em parábolas, de modo que, por mais que olhem, não enxerguem, por
mais que escutem, não entendam, e não se convertam, nem sejam perdo-
ados” (4,11-12). Entre os discípulos e os que estão fora estabelece-se
pois uma clara distinção: enquanto os que estão fora recebem um ensino
velado, em parábolas, aos discípulos e aos Doze é facultada a possibili-
dade de receberem o mistério do Reino de Deus. Uma vez que nada se
diz sobre o conteúdo, o leitor fica na expectativa de que o sucessivo de-
senvolvimento da narração lho revele.
Na perícope imediatamente posterior (4,35-41), porém, Marcos pro-
voca no leitor um grande abalo, porquanto, depois de apresentar os dis-
cípulos como os destinatários do mistério do Reino, afinal, por ocasião
de uma tempestade, acaba por revelar a falta de fé dos mesmos discípu-
los. Ao atravessarem o Mar da Galiléia, assistem a uma manifestação de
15. Cf. K. STOCK, Boten aus dem Mit-Ihm-Sein. Das Verhältnis zwischen Jesus und Zwölf nach Markus
(AnBib 70), Roma 1975.
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lato do assassinato de João Batista (6,14-29). Será isso sinal de que a re-
jeição é um elemento constitutivo da missão?
O regresso da missão indica um novo desenvolvimento narrativo
(6,30-35), uma vez que os apóstolos se tornam partícipes e mediadores
de um evento extraordinário: a multiplicação dos pães em virtude da
qual Jesus, em pleno deserto, dá de comer a cinco mil homens (6,30-44).
Mais ainda: os discípulos testemunham uma manifestação cujo cenário
é o lago e cujos únicos destinatários são os discípulos (6,45-53). Apa-
rentemente, é precisamente Jesus quem provoca a manifestação: de cer-
to modo, a expressão mandou entrar no barco os discípulos (6,45) resul-
ta violenta; exprime verbalmente a veemência (anankazô) com que Je-
sus gostaria que os seus discípulos embarcassem para fazer a travessia.
O motivo torna-se claro logo em seguida: Jesus vai ao encontro dos seus
discípulos em dificuldades, caminhando sobre as águas. No entanto,
eles não só não o reconhecem como acabam por ficar apavorados quan-
do o vêem andar sobre as águas. Daí a dureza com que o narrador co-
menta o episódio: De fato, não tinham compreendido nada a respeito
dos pães. O coração deles estava endurecido (6,52). A raiz com que se
exprime o endurecimento do coração é pôroô, a mesma que o narrador
utilizara em 3,5 para descrever a atitude dos adversários de Jesus. Natu-
ralmente, o objeto da incompreensão não é tanto o milagre dos pães,
como, e acima de tudo, a pessoa de Jesus e o seu mistério, que eles ti-
nham obrigação de já ter entendido a seguir à multiplicação dos pães. De
qualquer modo, é a primeira vez que o leitor tem diante de si de maneira
tão evidente o tema da cegueira dos discípulos: o coração endurecido
deles significa a incapacidade de acreditarem, o que coloca os discípu-
los, de fato, entre “aqueles que estão fora: por mais que olhem, não en-
xergam, por mais que escutem, não entendem” (4,11-12).
No capítulo sétimo, o caminho de Jesus é progressivamente apresen-
tado como conducente à libertação (7,1-23) e à salvação (7,24-30). Em
seguida, no capítulo oitavo, Marcos narra um segundo milagre dos pães
(8,1-9), com uma outra travessia do lago em que os protagonistas são,
uma vez mais, os discípulos. A incompreensão deles é, também aí, total,
de tal modo que as perguntas de Jesus passam também a ser mais pre-
mentes e mais pungentes: “Por que discutis sobre o fato de não terdes
pães? Ainda não entendeis, nem compreendeis? Vosso coração conti-
nua endurecido? Tendo olhos, não enxergais, e tendo ouvidos, não ou-
vis? Não vos lembrais? Quando reparti cinco pães para cinco mil pes-
soas, quantos cestos recolhestes, cheios de pedaços?” “Doze”, respon-
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deram eles. “E quando reparti sete pães com quatro mil pessoas, quan-
tos cestos recolhestes, cheios de pedaços?” “Sete”, responderam. Jesus
então lhes disse: “E ainda não entendeis?” (8,17-21). Estes escassos
versículos contêm sete perguntas16 que os discípulos mal tiveram tempo
de rebater, a não ser com duas respostas muito breves. Em nenhuma ou-
tra passagem do Evangelho Jesus faz tantas e tão prementes perguntas
como aqui. Como em 6,52, também aqui o narrador salienta a relação
com os pães do milagre; e, como em 6,52, também aqui o acento recai
sobre o coração endurecido. A insistência sobre o dever de entender,
sem que seja claramente explicado o objeto dessa compreensão, torna as
perguntas ainda mais obscuras. O leitor sabe, no entanto, que a experiên-
cia de uma vida em comum e as próprias experiências de que todos co-
mungaram deveriam ter levado os discípulos a tirar as devidas ilações
quer sobre a pessoa quer sobre a missão do Mestre. Por conseguinte, e
com toda a evidência, a construção do leitor-modelo empreendida por
Marcos desde o início da sua narrativa atinge aqui um ponto crucial. O
leitor é convidado a ultrapassar a compreensão dos discípulos. O que é
que se vai agora então passar? A cura de um cego, no fim da seção
(8,22-26). Ora, tendo em conta as palavras sobre o tema da cegueira em
8,18, o leitor só pode conceber esta cura como um gesto simbólico. Che-
gou o momento de ver e de compreender, mas, como o coração dos dis-
cípulos está endurecido, Jesus toma de novo a iniciativa, restituindo a
vista a um cego. Nasce assim no leitor uma nova expectativa.
Entretanto, chegamos ao segundo momento da nossa análise, a sa-
ber: o contexto imediato de compreensão da transfiguração.
16. Cf. G. PERINI, Le domande di Gesù nel Vangelo di Marco. Approccio pragmatico: ricorrenze, uso e
funzioni, Roma 1998, 76-79.
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1. Arquitetura do conjunto
17. Cf. E. NARDONI, La transfiguración de Jesús y el diálogo sobre Elías según el evangelio de San Mar-
cos, Buenos Aires 1977, 40.
18. Assim também C.A. EVANS, Mark 8:27-16:20 (WBC 34B), Dallas (Texas) 2001, 10.
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19. Antes do nosso texto, o termo hê hodos encontra-se em 8,3, mas sem uma particular relevância teológi-
ca: referia-as às pessoas que, se mandadas embora para casa sem alimento, desfaleceriam pelo caminho.
20. Pouco antes, em 9,30, uma indicação mais genérica informava o leitor de que Jesus e os seus discípulos
estavam passando pela Galiléia.
21. A expressão peran tou Iordanou, talvez mais do que além do Jordão, deve ser interpretada como região
do Jordão.
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a. Os três anúncios
Os três anúncios da Paixão destacam-se imediatamente como verda-
deiras estruturas de suporte e como pilares da arquitetura narrativa. O lei-
tor não tem dificuldade em reconhecê-los, uma vez que todos eles saem
da boca de Jesus, todos referem o sofrimento do Filho do homem, e to-
23. Entre a halakah e a haggadah existe uma relação muito estreita, porque “quem possui o midrash haggá-
dico e não tem as halakôt é um forte desarmado. Quem tem as halakôt e não possui o midrash haggádico é um
fraco armado” (Abôt 29). Na mentalidade hebraica a haggadah é demasiado ambígua para a vida, ou seja, é mui-
to genérica e, por si só, não tem força suficiente para educar; por outro lado, a halakah recebe o seu fundamento e
o seu valor da haggadah, sem a qual ela tornar-se-ia um peso insuportável.
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Conclusão
Nossa seção (a primeira da segunda parte do Evangelho) revela-se
mais unida e mais orgânica do que as precedentes, seja a nível geográfi-
co – pois descreve o caminho de Jesus desde as povoações de Cesaréia
de Filipe até à entrada em Jerusalém –, seja pelo fato de sua construção
assentar sobre o princípio da tripartição, um princípio que alguns auto-
res consideram ser o alicerce da história da Paixão no seu todo.24 Em
todo o caso, através deste modelo formal tripartido, o leitor apercebe-se
da existência de uma estrutura sólida, bem como de um discurso que se
aprofunda cada vez mais. O destino do Filho do Homem e o dos discípu-
24. Cf. R. PESCH, Il Vangelo di Marco. Parte II: Introduzione e commento ai cap. 8,27-16,20, Brescia
1980-82, 36-64.
A transfiguração do caminho 95
los passa assim a ser compreendido como um caminho que deve ser se-
guido. De fato, halakah significa caminho a seguir e a seção é composta
por halakôt cristãs, que, junto com os relatos (haggadah), formam uma
das seções mais fascinantes do Evangelho de Marcos.
É neste contexto que se insere o relato da transfiguração.
I. A transfiguração
2
E seis dias depois,
Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João,
e [fê-los] subir a um lugar retirado, no alto da montanha, a sós.
—————————————
3
E foi transfigurado diante deles,
e sua roupa ficou muito brilhante, tão branca
como nenhuma lavadeira na terra conseguiria torná-la assim.
—————————————
4
E apareceram-lhe Elias e Moisés
e falavam com Jesus.
—————————————
5
E Pedro então tomou a palavra e disse a Jesus:
“Rabi, é bom ficarmos aqui;
vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra
para Elias”.
6
Na realidade, não sabia o que devia falar,
pois eles estavam tomados de medo.
—————————————
7
Desceu, então, uma nuvem, cobrindo-os com sua sombra.
E da nuvem saiu uma voz:
“Este é o meu Filho amado. Escutai-o!”
—————————————
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8
E, de repente, olhando em volta,
não viram mais ninguém:
só Jesus estava com eles.
—————————————-
II. O diálogo
9
E ao descerem da montanha, Jesus ordenou-lhes
que não contassem a ninguém o que tinham visto,
até que o Filho do Homem fosse ressuscitado dos mortos.
10
Eles ficaram pensando nesta palavra e discutiam entre si
o que significaria “ressuscitar dos mortos”.
——————————————-
11
Perguntaram a Jesus:
“Por que dizem os escribas que primeiro deve vir Elias?”
12
Ele respondeu:
“Sim, Elias vem primeiro, para pôr tudo em ordem.
Por outro lado, como está escrito a respeito do Filho do Homem
que ele deve sofrer muito e ser desprezado?
13
E eu vos digo mais: também Elias veio,
e fizeram com ele tudo o que quiseram,
[exatamente] como está escrito a seu respeito”.
25. A transformação celeste é “uma imagem muito difundida na literatura apocalíptica”; R. PESCH, Mar-
co, II,120. Dn 12,3 afirma que: “Os sábios resplandecerão como o esplendor do firmamento...”
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No v. 7, com um kai egeneto (2x), tem início uma nova fase da reve-
lação que inclui símbolos teofânicos como a nuvem e a voz. A expressão
kai egeneto é já conhecida do leitor, uma vez que apareceu no relato do
batismo de Jesus (1,9).26 Um outro elemento narrativo importante é a
voz, em virtude da qual se estabelece um forte paralelismo entre o nosso
texto e o relato do batismo: kai phônê egeneto ek tôn outranôn (1,11).
A narração interrompe-se subitamente no v. 8, e o advérbio exapi-
na/de repente apanha o leitor de surpresa. Além de a proposta de Pedro
não receber qualquer resposta, acima de tudo não foi adiantada qualquer
palavra explicativa para os eventos. Oudéna eidon allá ton Iêsoun mo-
non – não viram mais ninguém: só Jesus estava com eles – remete para o
versículo inicial (v. 2) e funciona como uma primeira conclusão.
tão hão de assistir à chegada do Reino de Deus com poder (9,1), os dis-
cípulos objetam, dizendo que um outro evento decisivo deve acontecer
primeiro: a vinda de Elias, anunciada por Ml 3,22 com base no que está
escrito em 2Rs 2,11-12 (Mc 9,11). Jesus encerra o discurso afirmando
que Elias já veio (9,13). Portanto, Mc 9,11-13 é muito mais compreensí-
vel depois de 9,1. Além disso, não é de se excluir que, originariamente,
aqueles logia estivessem na seqüência que acaba de ser exposta.29 Mas,
por que razão terá Marcos inserido a narração da transfiguração entre
9,1 e 9,11-13? A resposta a esta pergunta torna-se vital e o leitor é cha-
mado a encontrar uma resposta. O segundo passo desta análise aju-
dar-nos-á a entender estes aspectos misteriosos da articulação do texto.
2. A mensagem
Primeira cena: Mc 9,2-8
“E seis dias depois” (v. 2) refere-se a Mc 8,27, dia da confissão de
Pedro, ou à instrução sobre a cruz que tem seu início em 8,31?30 Ou tra-
tar-se-á antes de uma nota de carácter mais “tipológico” do que tempo-
ral? Alguns comentaristas de Marcos julgam tratar-se da tipologia da
festa das Tendas (conhecida em Lv 23,34 como he heortê skenôn: cf. skê-
nê em Mc 9,5), que era celebrada seis dias depois do Kippur. A encerrar
esta festa, no sétimo dia, o povo vestia-se de branco (cf. Mc 9,3). É o ele-
mento das tendas aquele que se poderia revestir de alguma importância
nesta evocação da festa judaica (como veremos); no entanto, esta narra-
tiva da transfiguração tem uma diversidade de elementos, dos quais ape-
nas alguns poderiam estar relacionados com a festa das Tendas. Outros
comentaristas consideram que o texto remete para Ex 24, uma passagem
que nos relata a subida de Moisés ao Monte Sinai, onde a glória do Se-
nhor cobria toda a montanha durante seis dias e onde, no sétimo dia,
Deus chamou Moisés do meio da nuvem (Ex 24,15-16). Esta referência
é possível, mas o paralelo entre Jesus e Moisés não deve ser compreen-
dido sic et simpliciter, porquanto, para Marcos, Jesus tem no plano salví-
fico um lugar que Moisés não tem, conforme a voz no-lo revela logo a
seguir. É possível que seis dias depois corresponda ao primeiro dos vá-
rios elementos que exprimem a função revelatória do evento. A referên-
36. Em Marcos, o verbo ôphthê aparece apenas aqui, e é típico das aparições celestes do ressuscitado (cf.
1Cor 15,5-8; Lc 1,11 etc.).
37. Cf., p. ex., HERVÉ DE BOURG-DIEU, em PL 158, 615-616.
38. O leitor já sabe muito bem que Elias faz parte do mundo celeste (cf. 2Rs 2 que fala do arrebatamento de
Elias aos céus), contudo, para Moisés, torna-se mais difícil, porque o texto de Dt 34,5 fala da morte e da sepultura
de Moisés. Todavia, uma tradição hebraica afirma também que Moisés foi arrebatado aos céus (SifréDt. 357 e mi-
drash haggadol sobre Dt 34,5). Cf. R. PESCH, Marco, II, 122.
39. Esta tradição foi, em larga medida, retomada pelo NT, sobretudo na conclusão da nossa seqüência,
onde Jesus afirma que Elias já veio “e fizeram com ele tudo o que quiseram” (Mc 9,13; cf. também Mc 6,17-29).
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42. E. Schweizer, no comentário ao Evangelho de Marcos, diz que na LXX Isaac é a única pessoa que é
chamada filho dileto, amado.
43. Bahîr de Is 42,1 é traduzido na LXX eklektos mou (cf. Mc 12,6).
44. Em 4,3 afirma explicitamente: kai edidasken autous en parabolais polla, kai elegen autois en tê dida-
chê autou: akouete.
45. M. HORSTMANN, Studien zur markinischen Christologie. Mk 8,27-9,13 als Zugang zur Christusbild
des zweiten Evangeliums (NTA 6), Münster 19732, 88-90.
46. O imperativo akouete não significa apenas escutar, mas também obedecer, paralelamente a šama{, que
em hebraico significa, exatamente, as duas coisas juntas (cf. Ex 6,12 e Mt 18,15-16 etc.).
104 M. Grilli
alusão a Mc 8,31-33, onde Pedro não quer aceitar o plano de Jesus, tor-
nar-se-ia, nesse caso, muito mais provocante.
A conclusão interrompe repentinamente a visão. Sobressai o advér-
bio exapina em virtude do lugar que ocupa no início, o qual se refere,
não ao particípio periblepsamenoi, mas ao aoristo eidon. Marcos realça
o retorno à “normalidade” e o fim da “experiência”,47 através de uma fra-
se pleonástica, reforçada por alla, equivalente a ei mê. Trata-se de um si-
nal claro para os leitores do período pós-pascal, a quem já não é dado ver
Jesus. É a esses destinatários que se ordena prestar ouvidos a Jesus.
47. Eidon aqui significa uma experiência sensível: cf. S. LÉGASSE, Marco, 832, nota 60.
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48. Cf. M. TRIMAILLE, Le récit de la Transfiguration comme récit interprétatif, em L. PANIER, Le temps
de la lecture. Exégèse biblique et sémiotique (LeDiv 155), Paris 1993, 169.
49. O artífice deste ponto de vista, que vê em Elias o precursor do Messias, talvez seja o próprio Marcos,
pois não conhecemos no judaísmo nenhum testemunho desta perspectiva.
50. Observações interessantes sobre este assunto podem ser encontradas em A. FUMAGALLI, Gesù croci-
fisso, straniero fino alla fine dei tempi. Una lettura di Mt 25,31-46 in chiave comunicativa, EH XXIII/707,
Frankfurt am Main 2000, 127s.
51. R. PESCH, Marco, II, 117. Neste sentido, o Jesus do relato da transfiguração poderia também ser defi-
nido como “a realização de uma complexa multiplicidade”: H. BALTENSWEILER, Die Verklärung Jesu. Ereig-
nis und synoptische Berichte (ATANT 33), Zürich 1959, 119.
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52. Pe. Marcos é sacerdote da Diocese de Ilhéus, BA, mestre em teologia bíblica e doutorando pela Pontifí-
cia Universidade Gregoriana – Roma; atualmente também exerce as funções de pároco da Missão Católica de
Língua Portuguesa de Frankfurt, Diocese de Limburg, na Alemanha.