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A TRANSFIGURAÇÃO DO CAMINHO

Leitura de Mc 9,2-13 a partir da sua instância


comunicativa*

Pelo Prof. Pe. Dr. Massimo Grilli**


Roma – Itália

Síntese: O relato da transfiguração de Jesus no Evangelho de Marcos


(9,2-13) é aqui abordado a partir da sua função comunicativa. O Autor, de-
pois de apresentar o modo como o leitor é construído na primeira parte do
Evangelho (Mc 1,1–8,26), analisa o contexto narrativo em que está situado
o relato da transfiguração (8,27–10,52) e, finalmente, propõe uma leitura
do texto (Mc 9,2-13). O estudo realça sobretudo o modo como o autor bíbli-
co entreteceu certos esquemas literários muito difundidos, e o modo como
foram reeditados e colocados ao serviço de uma comunicação que tem por
conteúdo fundamental a identidade de Jesus e o seu destino de sofrimento.
O leitor é convidado a ler o evento não sob a perspectiva de “o que” acon-
teceu, mas, sobretudo, de acordo com o “significado” de tudo o que está
prestes a acontecer. Nesta passagem do Evangelho, após dar-se conta de
que o caminho de Jesus e dos seus seguidores se identifica com o caminho
da cruz (Mc 8,31–9,1), o leitor vai poder conhecer o poder que Deus tem de
transfigurar o caminho da cruz em caminho de ressurreição e de vida. Em
si mesmo, o evento da transfiguração oferece ao leitor a chave de interpre-
tação dos fatos que estão para acontecer na história de Jesus e, conseqüen-
temente, na história de todos os fiéis.
Abstract: The account of Jesus’ transfiguration in the Gospel of Mark
(9:2-13) is approached from its communicative function. Having presented
how the reader is built in the first part of this Gospel (Mk. 1:1-8:26) the author
analyzes the narrative context in which the account of the Transfiguration
is inserted (8:27 – 10:52) and he finally proposes the specific reading of the
text (Mk 9:2-13). Above all, the study helps us to perceive how the Biblical

* Cf. do mesmo Autor: “Evento comunicativo e interpretação de um texto bíblico”, em: REB 63 (2003)
295-319.
** Massimo GRILLI, sacerdote diocesano e italiano; estudou em Roma, Frankfurt e Jerusalém; doutorou-se
em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, com a tese: Comunità e Missione: le direttive di
Matteo. Indagine esegetica su Mt 9,35-11,1, EH XXIII/458, Frankfurt/Main 1992; autor de muitos artigos sobre
temas bíblicos e de hermenêutica em revistas especializadas; colaborou na tradução da Bíblia Piemme, com um
comentário sobre o Evangelho de Mateus; Diretor do Projeto Evangelho e Cultura, Projeto de exegese intercultu-
ral; professor de teologia bíblica e coordenador de mestrado da área de teologia bíblica da Pontifícia Universidade
Gregoriana – Roma.
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author mixed some well-known literary devices, how he re-edited them and
placed them at the service of a communication that has as its basic content
the identity of Jesus and the fact that His fate is one of suffering. The reader
is invited to read the event, not so much by focusing on “what really happe-
ned”, but rather on the “meaning” of the events about to take place. Having
realized that the path of Jesus and His followers entails the cross (Mk
8:32-9:1), the reader will be able to realize that God has the power to trans-
figure the way of the cross into a way of resurrection and of life. In itself, the
transfiguration event offers the interpretative key for the reader to unders-
tand the facts about to happen in the history of Jesus and, consequently, in
the history of all believers.

Introdução

Num artigo anterior de caráter mais especificamente teórico,1 parti


do pressuposto de que a Bíblia é Palavra de Deus expressa em lingua-
gem humana e que, portanto, obedece às leis da relação humana que se
estabelece nos textos escritos. Nesta perspectiva, a análise de um texto
bíblico nos põe em relação com uma alteridade que jamais poderá ser
eliminada, uma alteridade que terá de ser assumida, num contexto de in-
ter-relação que nos interpela a um envolvimento mais sério e profundo.
Para ilustrar este tipo de leitura, escolhi o relato da transfiguração se-
gundo São Marcos e desenvolverei o assunto em três momentos:
I. No início, procurarei compreender a construção do leitor ao longo
do relato que precede o texto escolhido: os eventos para os quais o leitor
foi preparado, as expectativas que nele foram despertadas etc.; .

II. Em segundo lugar, analisarei o contexto narrativo no qual Marcos


inseriu o relato da transfiguração;
III. Enfim, examinarei o texto em que se encontra o relato da transfi-
guração, procurando compreender a sua instância comunicativa.

1. Cf. Evento comunicativo e interpretação de um texto bíblico, em: REB 63 (2003) 295-319.
A transfiguração do caminho 77

I – A construção do leitor em Mc 1,1–8,27

Sempre que um autor cria uma narrativa,2 constrói um itinerário com


sua trama, suas complicações e reviravoltas (clímax) e, por fim, suas re-
soluções. A disposição da narrativa é muito importante numa leitura de
tipo pragmático, porque é através dessa disposição que se concretiza
uma estratégia direcionada ao leitor. O leitor é convidado a percorrer o
trajeto previsto pela estratégia do autor e a cooperar, passo a passo, na
compreensão do modelo construído pelo autor do texto. À medida que a
narrativa avança, os contornos do leitor-modelo tornam-se cada vez
mais claros e definidos. Em regra, o leitor não é introduzido imediata-
mente no mistério da narrativa; é acompanhado, degrau a degrau, até ní-
veis cada vez mais profundos e envolventes.
Tomada no seu todo, também a narrativa de Marcos é um macrotexto
que, como qualquer outra narrativa, se apresenta como um tecido com-
posto por partes, seções3 etc., tecido esse que serve para introduzir o lei-
tor-modelo no mistério da narrativa.
Em que momento do processo narrativo nos encontramos quando
damos início à leitura do relato da transfiguração? Que tipo de leitor foi
construído até esse momento?

1. O prólogo: Mc 1,1-13. O caminho do Messias-Jesus


Mc 1,1-13 constitui o prólogo do Evangelho e a primeira página da
narrativa. Geralmente, ao iniciar um relato, o autor apresenta as coorde-
nadas da leitura e o “estatuto” da narração. Deste modo, Marcos intro-
duz os seus leitores na trama, fazendo-os passar através de um grande
pórtico onde estão, em gérmen, as linhas de força da sua mensagem.
Logo no primeiro versículo, o evangelista nos apresenta sua narrati-
va como uma arché euaggeliou – o início (fundamento) de uma boa no-
2. Quando nestas páginas utilizar certos termos como “autor”, “Marcos”, “Leitor” etc., obviamente refi-
ro-me sempre ao autor e ao leitor implícitos (leitor-modelo), de acordo com o que já expliquei no primeiro artigo.
3. Baseando-me numa convergência de critérios, que não vou aqui explicitar, considero a obra de Marcos
composta por um prólogo (1,1-13) e por duas partes (1,14–8,26 e 8,27–16,8). Entendo por “partes” as divisões
mais amplas de uma obra, enquanto que por “seções” entendo as divisões sucessivas (p. ex.: a primeira parte do
Evangelho é constituída por três seções: 1,14–3,6; 3,7–6,6a; 6,6b–8,26). Por subseções entendo a divisão mais
ampla do que cada perícope (p. ex., a subdivisão das seções de Mc 8,27–10,52 em três subseções). Eis pois a or-
dem que dou às divisões: a “perícope” (ou “passo”), o “parágrafo” (numa narrativa: “cenas”), a “seqüência”, o
“verso” e os “segmentos”.
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tícia. O leitor competente conhece o termo euaggelion, porque já existia


na literatura greco-romana anterior a Cristo.4 Com este título, Marcos
diz ao seu leitor, pelo menos, duas coisas:
a) que a história que ele escreve é um euaggelion/Boa-Nova;
b) que esta Boa-Nova tem o Messias-Jesus como seu objeto.5
Em seguida, o autor apresenta uma inversão narrativa que, do ponto
de vista pragmático, é importante levar em consideração: a seqüência
narrativa apresentaria primeiro o evento (João Batista) e depois o seu
comentário (as citações escriturísticas). Marcos prefere inverter a ordem
e começar pela apresentação da chave interpretativa, conferindo-lhe,
deste modo, uma importância primária.
A chave interpretativa consiste numa citação que o autor atribui à au-
toridade do profeta Isaías (1,2a), embora, na realidade, se trate de um
aglomerado de três passagens diferentes, no qual somente a última é ex-
traída de Isaías: Ex 23,20; Ml 3,1 e Is 40,3.6 Assim diz a citação:
Eis que envio à tua frente o meu mensageiro (Ex 23,20).
E ele preparará teu caminho (Ml 3,1).
Voz de quem clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as
veredas para ele (Is 40,3).7
É necessário, desde logo, observar que, em Ex 23,20, fala-se de um
anjo enviado à frente do povo para guardá-lo ao longo do caminho rumo
à terra prometida, ao passo que, em Ml 3,1, o anjo é enviado para prepa-
rar o caminho do próprio Deus, por ocasião de sua vinda ao Templo. É o
próprio Deus que vai chegar, precedido de um anjo e acompanhado de
um segundo anjo.
Em Marcos, o anjo não prepara o caminho de Deus. Tampouco pre-
para o caminho do povo durante o êxodo. Para o segundo evangelista, o

4. A famosa inscrição de Priene (Ásia Menor) do ano 9 a.C. narra a data do nascimento do imperador César
Augusto com estas palavras: o dia de nascimento do deus foi para o mundo o início – por seu intermédio – de
boas notícias (tôn euaggeliôn). Nesta inscrição, de fato, o nascimento do imperador Augusto auspiciava boas no-
tícias. Marcos, por seu lado, com um genitivo objetivo, faz com que a Boa-Notícia (singular!) se centre no Mes-
sias-Jesus.
5. Não tratarei aqui da questão textual referente a hyiou tou theou, pois não nos diz respeito diretamente.
Considero a forma breve mais segura (cf. R. PESCH, Marco, I, 139-140), ainda que o testemunho marcano sobre
Jesus como Filho de Deus esteja fora de discussão (cf. 1,11; 15,39).
6. Por essa razão, alguns autores consideram Mc 1,2b (citação de Ml e Ex) como uma glosa posterior. Po-
rém, essa hipótese não tem qualquer base textual de apoio.
7. As citações bíblicas são da tradução da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), São Paulo
2001.
A transfiguração do caminho 79

anjo prepara o caminho de Jesus. Que compreensão tem o leitor deste hê


hodos (Mc 1,2), deste caminho de Jesus? Os textos veterotestamentários
de referência já advertem que o caminho em questão não é um caminho
real, embora também este esteja presente. O caminho é, aqui, um símbolo:
trata-se da obra de Jesus englobada na idéia de caminho, ou seja, trata-se
do seu próprio destino. Contudo, o leitor ainda não entende em que senti-
do este caminho deverá ser entendido. Por enquanto, a percepção do lei-
tor, obtida através das citações escriturísticas, não vai além da noção de
que o caminho de Jesus evoca a presença de Deus no meio do seu povo
ou, a partir de um outro ponto de vista, que o caminho do Senhor, a que
se referia o Primeiro Testamento e que no decurso da História de Israel
foi repetidamente consumado, esse mesmo caminho é agora proposto
novamente, e de maneira muito particular, no destino de Jesus.
Os versículos 4-8 acrescentam à citação um outro desenvolvimento,
na medida em que apresentam João a proclamar o batismo de conversão
para a remissão dos pecados (4-6) e a anunciar a chegada de um mais
forte, que irá batizar com Espírito Santo (7-8). Os leitores são assim le-
vados a pressentir que este novo desenvolvimento os atinge enquanto lei-
tores, porquanto este caminho, que se realiza no caminho de Jesus
(1,2b-3), significa conversão, remissão dos pecados e imersão no Espíri-
to. O leitor competente não estranhará esta relação entre o caminho do
Senhor e a necessidade de conversão, nem estranhará tampouco a rela-
ção entre o perdão e o Espírito, uma vez que estes temas já estão presen-
tes nos profetas8. Deste modo, o leitor é levado a perceber que o caminho
do Senhor é uma via que, além de implicar o destino de Jesus, diz respei-
to também ao leitor e ao seu próprio destino.9
Em Mc 1,9-13 é impressionante a solenidade da fórmula inicial – kai
egeneto en ekeinais tais hêmerais –, que introduz o batismo de Jesus. No
Evangelho de Marcos, tal expressão não volta a ser utilizada.10 Por seu
lado, a expressão kai euthys (v. 10), tipicamente marcana, é um sinal a
exigir a atenção do leitor, pois conecta dois episódios: a voz celeste e a
tentação. A voz celeste interpreta o evento do batismo, pelo que, a partir
deste momento inicial em diante, percebe que o caminho de Jesus não é

8. Em alguns textos proféticos do AT (Is 40,1-11; 55,6-11 e Ml 3,1-3) o tema do caminho do Senhor é de-
senvolvido em ligação com o tema da conversão e do perdão dos pecados, ao passo que, em Ez 36,24-27 e Is
63,7–64,11, se interligam o caminho do Senhor e a obra do Espírito.
9. Para uma análise mais aprofundada, cf. E. MANICARDI, Il cammino di Gesù nel Vangelo di Marco.
Schema narrativo e tema cristologico (AnB 96), Roma 1981, 148-170.
10. Só en ekeinais tais hêmerais, em 8,1; 13,19.24. Mas cf. Lc 2,1.
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um caminho qualquer, mas o caminho do Filho de Deus (1,11), animado


e fortalecido pela ação do Espírito Santo (1,12). Porém, o súbito apareci-
mento de um segundo kai euthys salienta o paradoxo de que o caminho
do Filho de Deus é um caminho sujeito à tentação (1,13). O recurso a
uma conjugação do particípio presente com as formas do verbo eimi
acaba por funcionar sobretudo como perífrase do imperfeito. A nível re-
tórico, o uso dessa perífrase confere mais vigor à continuidade da ação.
Parece que Marcos pretende, desse modo, chamar a atenção, não tanto
(ou, pelo menos, não exclusivamente) para o fato da tentação, mas para
sua duração. Fica também a impressão de que deseja apresentar o cami-
nho de Jesus como um confronto constante com as forças satânicas. E
não diz mais nada; o leitor não é informado, por exemplo, sobre a natu-
reza da tentação.11 Dir-se-ia portanto que, de certo modo, a intenção de
Marcos é a de impelir o seu leitor para adiante. Ele mesmo é que terá de
descobrir onde Satanás vai intervir com o fito de desviar o caminho de
Jesus da senda de Deus.

2. Primeira seção: Mc 1,14–3,6. A via do Messias e a rejeição por parte


dos inimigos12
Em Mc 1,14, o leitor encontra-se de imediato confrontado com um
outro paradoxo, dado que é com este sumário que o início da viagem do
Evangelho se desencadeia:
Meta de to paradothênai ton Iôannên
êlthen ho Iêsous eis tên Galilaian
kêryssôn to euaggelion tou Theou... (Mc 1,14).
Temos aqui a prisão de João precisamente no momento em que Je-
sus dá início à proclamação do Evangelho. Apesar de os dois eventos se
relacionarem entre si numa seqüência temporal (meta de to... êlthen ho
Iêsous), ao leitor não escapa a nuance de presságio contida na prisão de
João. Tal como em 1,1, encontramos uma vez mais to euanggelion, mas
desta vez com um “genitivus auctoris”: tou Thou. É o próprio Deus a ori-
gem da Boa-Notícia e do kairos, o momento decisivo da história da sal-
vação (notar peplêrôtai em 1,15). O último hemistíquio é um apelo aos
leitores: metanoeite kai pisteuete en tô euangeliô. O leitor-modelo fica

11. Diversamente de Mateus e Lucas.


12. Para este parágrafo e os seguintes, cf. K. STOCK, Vangelo e discepolato in Marco, em: RdT 19 (1978) 1-7.
A transfiguração do caminho 81

sabendo assim que a conversão, ou seja, a fé na Boa-Nova, constitui a


resposta apropriada à mensagem de salvação.
Os primeiros dois pares de irmãos que seguem Jesus (1,16-20) são
efetivamente um modelo de resposta. As duas cenas do chamamento es-
tão muito estilizadas. A estilização favorece a identificação. Em outras
palavras, cada leitor é chamado a identificar-se no momento da resposta
dos quatro irmãos, expressa pelo sintagma e puseram-se a segui-lo. Crer
no Evangelho de Deus significa seguir Jesus. Mas, não se diz nada ainda
sobre aquilo em que consiste o seguimento. O leitor fica surpreso com a
prontidão desta resposta, mas fica à espera de que a mesma se revista de
conteúdos.
Através da expressão e entraram em Cafarnaum, a unidade seguinte
(1,21-38) revela-nos que Jesus já não está sozinho. Acompanham-no os
seus discípulos. Marcos encerra a atividade de Jesus numa jornada
ideal:13 Jesus entra numa sinagoga (1,21b-28) e, depois, numa casa (de
Simão: 1,29-31); vai à porta da cidade (1,32-34) e, depois, a um lugar
deserto (1,35-38). O conteúdo da mensagem consiste em ensinar com
autoridade (1,21b-22), em exorcizar (1,23-27.32-34), em curar
(1,30-31.32-34) e culmina na oração (1,35-38). O leitor não poderá ficar
indiferente, desde o início do relato, ao verbo que Marcos usa para sali-
entar a estupefação do povo. Exeplêssonto é um termo composto
(ek-plêssô) que chama a atenção para um desmesurado estado de admi-
ração. Causa ainda maior espanto a razão de tal admiração não dizer tan-
to respeito ao conteúdo do ensinamento, quanto (e sobretudo!) ao modo
(hôs exousian echôn; cf. também em 1,27). O leitor é, pois, levado a
compreender que Jesus não é mais um escriba; a sua autoridade não pro-
vém de uma autoridade externa (Rabbi Aqiba disse ...), mas interna.
A conclusão da jornada e o início de um novo dia (1,35-45) deixam o
leitor com uma profunda sensação de espanto, e ao mesmo tempo tam-
bém com algumas perguntas. Até aqui é tudo positivo: o convite ao se-
guimento é acolhido por aqueles que irão ser os mais íntimos de Jesus
(1,29-31.35-38); desperta-se na multidão a consciência de estar assistin-
do eventos extraordinários (1,22.28); o entusiasmo cresce dia após dia
(1,32-33.37b); todos o procuram (v. 38) e de toda parte vinham a ele (v.
45). No entanto, o seu comportamento é bastante invulgar; por duas ve-
zes o narrador chama atenção para o fato de que, em vez de se exaltar,
Jesus retira-se para lugares desertos (1,35.45). Mas, não tinha Ele vindo

13. As indicações temporais estão em 1,21b; 1,29; 1,32 e 1,35.


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para anunciar o Reino? Qual a razão do silêncio e da solidão? A resposta


será dada pouco a pouco.
A partir de 2,1 até 3,6, Marcos prossegue com a apresentação do ca-
minho de Jesus sob a perspectiva da sua exousia/autoridade e respeita-
bilidade. Não é por acaso que este é o termo dominante desta primeira
seção (1,22.27; 2,10). Em 2,1–3,6, a exousia de Jesus é apresentada em
cinco discussões com três grupos diferentes: os escribas, os fariseus e os
herodianos. Ao mesmo tempo em que o ensinamento de Jesus tem lugar
em situações concretas, é revelada a sua autoridade na interpretação da
lei mosaica: sobre o perdão dos pecados (2,1-12), sobre a comensalida-
de com os pecadores (2,13-17), sobre o jejum (2,18-22) e, em duas situa-
ções, sobre o sábado (2,23-27; 3,1-6). Todavia, eis que surge um outro
paradoxo: em alguns grupos específicos torna-se evidente uma crescen-
te oposição, ao ponto de, na conclusão da última discussão, o leitor ser
informado de uma reunião secreta dos fariseus com os herodianos no in-
tuito de eliminarem Jesus (3,6). Não se adianta explicitamente qualquer
razão formal para uma decisão daquela envergadura, embora as discus-
sões deixem transparecer em Jesus uma atitude e um comportamento
que o terão caracterizado como subversivo em matérias fundamentais,
como a autoridade para perdoar pecados (2,1-12), o comportamento em
relação aos pecadores (2,13-17) e ao preceito do sábado (2,23-27). O lei-
tor não pode deixar de ficar desconcertado com o fato, espantoso, de este
episódio – coincidente com o final da primeira fase da atividade de Jesus
– culminar numa sentença de morte.

3. Segunda Seção: Mc 3,7–6,6a – A via do Messias e a rejeição por parte


dos mais próximos
O início da segunda seção é semelhante ao da primeira. A abri-la, en-
contramos um sumário (3,7-12) no qual o mar da Galiléia faz de pano de
fundo das ações de Jesus, e onde o mesmo Jesus comparece na compa-
nhia dos seus discípulos e da enorme multidão que o procura. Uma vez
mais, ao entusiasmo da multidão contrapõe-se, por parte de Jesus, a ân-
sia de “se retirar” (3,7a).14 Após referir que confluíam para Jesus pesso-
as oriundas de todas as condições sociais e de todas as proveniências
(desde os ambientes religiosos por excelência, como a Judéia e Jerusa-
lém, até as regiões religiosamente suspeitas, como a Iduméia, sem es-

14. Temos aqui uma única recorrência marcana do verbo anachôrein, que exprime o desejo de encontrar
um refúgio em caso de perigo. O sentido em nosso contexto é mais neutro.
A transfiguração do caminho 83

quecer as regiões dos pagãos, como Tiro e Sídon), Marcos apresenta Je-
sus subindo a uma montanha a fim de ali instruir o grupo dos mais ínti-
mos, os Doze (3,13-19). A introdução é solene (3,13), e a identificação
pessoal mediante o nome de cada um dos discípulos (3,15-19) revela a
importância que Marcos atribui a estas personagens. O leitor também é
informado das funções dos Doze, sintetizadas em duas: a) ficar com Je-
sus e b) partilhar com ele a missão de anunciar (3,14).15 Até o momento,
portanto, vão-se configurando à volta de Jesus diferentes círculos de pes-
soas: desde o círculo mais distante, composto pelos adversários (3,6), ao
círculo intermédio, composto pela multidão que o admira, até ao círculo
mais próximo, o dos discípulos que o acompanham e dos Doze.
A seqüência seguinte, em 3,20-35, e o ensino por meio de parábolas,
em 4,1-34, constituem uma ulterior confirmação e desenvolvimento
deste processo de aproximação/afastamento em relação a Jesus. Nesta
linha, surgem primeiro os parentes que vêm buscá-lo por acharem que
Jesus está louco (3,21); surgem depois os escribas, para quem Jesus é
um endemoninhado (3,22); a multidão que o segue admirada (4,1); e,
por fim, os discípulos com os Doze, ou seja, os mais íntimos. Esta posi-
ção especial reservada aos discípulos também se pode notar na função
indispensável que o plano de Deus lhes destina. No capítulo das parábo-
las, Jesus fala disso abertamente, ao estabelecer uma distinção clara en-
tre os discípulos mais os Doze (4,10), e os outros: “a vós é confiado o
mistério do Reino de Deus. Para aqueles que estão fora tudo é apresenta-
do em parábolas, de modo que, por mais que olhem, não enxerguem, por
mais que escutem, não entendam, e não se convertam, nem sejam perdo-
ados” (4,11-12). Entre os discípulos e os que estão fora estabelece-se
pois uma clara distinção: enquanto os que estão fora recebem um ensino
velado, em parábolas, aos discípulos e aos Doze é facultada a possibili-
dade de receberem o mistério do Reino de Deus. Uma vez que nada se
diz sobre o conteúdo, o leitor fica na expectativa de que o sucessivo de-
senvolvimento da narração lho revele.
Na perícope imediatamente posterior (4,35-41), porém, Marcos pro-
voca no leitor um grande abalo, porquanto, depois de apresentar os dis-
cípulos como os destinatários do mistério do Reino, afinal, por ocasião
de uma tempestade, acaba por revelar a falta de fé dos mesmos discípu-
los. Ao atravessarem o Mar da Galiléia, assistem a uma manifestação de

15. Cf. K. STOCK, Boten aus dem Mit-Ihm-Sein. Das Verhältnis zwischen Jesus und Zwölf nach Markus
(AnBib 70), Roma 1975.
84 M. Grilli

Jesus, mas na realidade, perante o Mestre no barco, ficam cheios de


medo e com falta de fé (v. 32). A pergunta conclusiva: “Quem é este, a
quem até o vento e o mar obedecem?” (4,41), revela não só as interroga-
ções suscitadas nos discípulos pela identidade de Jesus, mas também o
seu desconcerto. Levantam perguntas sobre a pessoa de Jesus, mas ainda
não são capazes de encontrar as respostas.
Os eventos contidos no capítulo quinto incidem sobre o extraordiná-
rio poder de Jesus, capaz de libertar dos demônios uma região pagã intei-
ra (5,1-20), e capaz até de vencer a própria morte (5,21-43). Nessas mes-
mas passagens, porém, o leitor depara-se uma vez mais com o paradoxo
da rejeição: os habitantes daquela região começaram a “suplicar a Jesus
que se fosse embora do território deles” (5,17); por seu lado, os nazare-
nos e conterrâneos de Jesus continuavam céticos (6,1-6a). Enquanto a
primeira seção se encerrava com a rejeição por parte dos adversários de
Jesus (3,6), a segunda encerra-se com a rejeição por parte dos nazarenos.
Em vez de suscitar um progresso da fé, ao contínuo progredir do poder de
Jesus em obras sucede-se uma crescente oposição: além de rejeitado pelos
inimigos, tampouco é Jesus aceito por seus compatriotas. O leitor compe-
tente conhece a história de Israel e, principalmente, a rejeição que os pro-
fetas sofreram por parte do seu próprio povo. Daí a pergunta, espontânea:
do mesmo modo que o destino dos profetas, não estará o destino de Jesus
marcado pela incompreensão e pela rejeição (5,4)? O leitor atento não
poderá deixar de se dar conta de que as últimas palavras desta segunda
seção são apistia autôn – a incredulidade deles (6,6a).

4. Terceira seção: Mc 6,6b–8,26 – A via do Messias e a incompreensão


dos discípulos
Tal como as duas seções precedentes, também a terceira seção se ini-
cia com um brevíssimo sumário (6,6b) que apresenta o ensinamento de
Jesus, seguido de uma seqüência sobre o discipulado, com o envio dos
Doze (6,7-13). O leitor apercebe-se de que a crise em Nazaré, longe de
levar Jesus a um abandono da sua missão, significou antes uma intensifi-
cação da mesma, uma vez que passou a percorrer os povoados da região
(6,6b) e a enviar os Doze (6,7-13). Na sua qualidade efetiva de mestre e
taumaturgo, Jesus transforma-se no modelo dos missionários. Aos Doze
é confiado também o ministério da palavra e da ação poderosa. Todavia,
o leitor não pode deixar de notar que o envio dos Doze (6,7-13) está in-
crustado entre a rejeição de Jesus por parte dos nazarenos (6,1-6a) e o re-
A transfiguração do caminho 85

lato do assassinato de João Batista (6,14-29). Será isso sinal de que a re-
jeição é um elemento constitutivo da missão?
O regresso da missão indica um novo desenvolvimento narrativo
(6,30-35), uma vez que os apóstolos se tornam partícipes e mediadores
de um evento extraordinário: a multiplicação dos pães em virtude da
qual Jesus, em pleno deserto, dá de comer a cinco mil homens (6,30-44).
Mais ainda: os discípulos testemunham uma manifestação cujo cenário
é o lago e cujos únicos destinatários são os discípulos (6,45-53). Apa-
rentemente, é precisamente Jesus quem provoca a manifestação: de cer-
to modo, a expressão mandou entrar no barco os discípulos (6,45) resul-
ta violenta; exprime verbalmente a veemência (anankazô) com que Je-
sus gostaria que os seus discípulos embarcassem para fazer a travessia.
O motivo torna-se claro logo em seguida: Jesus vai ao encontro dos seus
discípulos em dificuldades, caminhando sobre as águas. No entanto,
eles não só não o reconhecem como acabam por ficar apavorados quan-
do o vêem andar sobre as águas. Daí a dureza com que o narrador co-
menta o episódio: De fato, não tinham compreendido nada a respeito
dos pães. O coração deles estava endurecido (6,52). A raiz com que se
exprime o endurecimento do coração é pôroô, a mesma que o narrador
utilizara em 3,5 para descrever a atitude dos adversários de Jesus. Natu-
ralmente, o objeto da incompreensão não é tanto o milagre dos pães,
como, e acima de tudo, a pessoa de Jesus e o seu mistério, que eles ti-
nham obrigação de já ter entendido a seguir à multiplicação dos pães. De
qualquer modo, é a primeira vez que o leitor tem diante de si de maneira
tão evidente o tema da cegueira dos discípulos: o coração endurecido
deles significa a incapacidade de acreditarem, o que coloca os discípu-
los, de fato, entre “aqueles que estão fora: por mais que olhem, não en-
xergam, por mais que escutem, não entendem” (4,11-12).
No capítulo sétimo, o caminho de Jesus é progressivamente apresen-
tado como conducente à libertação (7,1-23) e à salvação (7,24-30). Em
seguida, no capítulo oitavo, Marcos narra um segundo milagre dos pães
(8,1-9), com uma outra travessia do lago em que os protagonistas são,
uma vez mais, os discípulos. A incompreensão deles é, também aí, total,
de tal modo que as perguntas de Jesus passam também a ser mais pre-
mentes e mais pungentes: “Por que discutis sobre o fato de não terdes
pães? Ainda não entendeis, nem compreendeis? Vosso coração conti-
nua endurecido? Tendo olhos, não enxergais, e tendo ouvidos, não ou-
vis? Não vos lembrais? Quando reparti cinco pães para cinco mil pes-
soas, quantos cestos recolhestes, cheios de pedaços?” “Doze”, respon-
86 M. Grilli

deram eles. “E quando reparti sete pães com quatro mil pessoas, quan-
tos cestos recolhestes, cheios de pedaços?” “Sete”, responderam. Jesus
então lhes disse: “E ainda não entendeis?” (8,17-21). Estes escassos
versículos contêm sete perguntas16 que os discípulos mal tiveram tempo
de rebater, a não ser com duas respostas muito breves. Em nenhuma ou-
tra passagem do Evangelho Jesus faz tantas e tão prementes perguntas
como aqui. Como em 6,52, também aqui o narrador salienta a relação
com os pães do milagre; e, como em 6,52, também aqui o acento recai
sobre o coração endurecido. A insistência sobre o dever de entender,
sem que seja claramente explicado o objeto dessa compreensão, torna as
perguntas ainda mais obscuras. O leitor sabe, no entanto, que a experiên-
cia de uma vida em comum e as próprias experiências de que todos co-
mungaram deveriam ter levado os discípulos a tirar as devidas ilações
quer sobre a pessoa quer sobre a missão do Mestre. Por conseguinte, e
com toda a evidência, a construção do leitor-modelo empreendida por
Marcos desde o início da sua narrativa atinge aqui um ponto crucial. O
leitor é convidado a ultrapassar a compreensão dos discípulos. O que é
que se vai agora então passar? A cura de um cego, no fim da seção
(8,22-26). Ora, tendo em conta as palavras sobre o tema da cegueira em
8,18, o leitor só pode conceber esta cura como um gesto simbólico. Che-
gou o momento de ver e de compreender, mas, como o coração dos dis-
cípulos está endurecido, Jesus toma de novo a iniciativa, restituindo a
vista a um cego. Nasce assim no leitor uma nova expectativa.
Entretanto, chegamos ao segundo momento da nossa análise, a sa-
ber: o contexto imediato de compreensão da transfiguração.

II – Mc 8,27–10,52 como contexto de interpretação da


transfiguração

Neste segundo ponto pretendo demonstrar que, a nível comunicati-


vo, Mc 8,27–10,52 constitui a unidade narrativa à luz da qual a narrativa
da transfiguração deve ser interpretada. Para tanto, é necessário identifi-
car os sinais que o autor colocou no caminho do leitor, a fim de que pos-
sa tomar consciência da intencionalidade pragmática do texto, ou seja,
da sua estratégia comunicativa. Destacarei, portanto, o conjunto de indi-
cadores e motivos que, de acordo com a intenção do autor, conferem coe-

16. Cf. G. PERINI, Le domande di Gesù nel Vangelo di Marco. Approccio pragmatico: ricorrenze, uso e
funzioni, Roma 1998, 76-79.
A transfiguração do caminho 87

são à seção em apreço. Por uma questão de clareza didática, começarei


por expor os resultados da investigação num quadro-resumo e depois
darei as explicações necessárias.

1. Arquitetura do conjunto

8,27-30 O ponto de virada. A confissão de Pedro

I. 8,31-9,29 Primeira subseção. No caminho, rumo à Galiléia


A 8,31–9,1 Tríptico
8,31-32a Primeiro anúncio da Paixão
8,32b Reação de Pedro
8,33–9,1 Réplica/instrução de Jesus
B 9,2-29 Haggadah
9,2-13 Transfiguração de Jesus
9,14-29 A cura de um epiléptico
————————————————————
II. 9,30–10,31 Segunda subseção. Da Galiléia para a Judéia
A’ 9,31-50 Tríptico
9,30-31 Segundo anúncio da Paixão
9,32 Reação dos discípulos
9,33-50 Réplica/instrução de Jesus
B’ 10,1-31 Halakah
10,1-12 O discípulo e o mandamento divino
10,13-16 O discípulo e o acolhimento do Reino
10,17-31 O discípulo e a radicalidade do seguimento
————————————————————
III. 10,32-52 Terceira subseção. No caminho, rumo a Jerusalém
A” 10,32-45 Tríptico
10,32-34 Terceiro anúncio da Paixão
10,35-40 Reação de Tiago e João
10,41-45 Réplica/instrução de Jesus
B” 10,46-52 Haggadah
Cura do cego de Jericó
88 M. Grilli

2. O ponto de virada: Mc 8,27-30


No início da segunda parte do Evangelho de Marcos, o leitor não en-
contra indícios claros, razão pela qual alguns autores vêem em 8,31 um
novo início, ao passo que outros apontam 8,27, e outros ainda 8,22, com
o episódio da cura do cego.17 A nível lexical e sintático encontramos um
início em 8,31. É aí que, pela primeira vez, encontramos um anúncio da
Paixão, introduzido por uma fórmula que marca claramente um início:
kai êrxato didaskein autous ... / e começou a ensinar-lhes...
Este indício dá a entender que é a confissão de Pedro imediatamente
precedente, em 8,27-30, que assinala a conclusão e o ápice de toda a pri-
meira parte do Evangelho. Com efeito, é na confissão de Pedro que se
resolvem todas as anteriores tensões narrativas e semânticas. Em 8,27,
Jesus faz pela primeira vez, e de maneira direta, uma pergunta explícita
sobre a sua identidade. Ao ser feita neste ponto e, ao mesmo tempo, pelo
fato de ser feita ex abrupto pelo próprio Jesus, esta pergunta transfor-
ma-se numa síntese do caminho precedente. A nível literário e de conteú-
do, ela constitui, sem dúvida, o ápice de um percurso, uma vez que a ne-
cessidade de compreender a identidade de Jesus fora a “linha conduto-
ra” de toda a parte precedente. Com a resposta de Pedro, que reconhece
o Cristo em Jesus (8,29), tudo levaria a crer que foi alcançado o objetivo,
porquanto, na confissão da messianidade de Jesus, tão almejada e tão
cuidadosamente preparada ao longo de todo o percurso, o leitor como
que encontra um ponto de chegada.
Todavia, uma análise mais minuciosa indica que Mc 8,27-30 não é
somente um ponto de chegada, mas também um ponto de partida. E isto,
pelo fato de o v. 30 estar virado, não para trás, mas para diante. Marcos
não explica a razão de os discípulos serem intimados a não contarem
nada sobre a messianidade de Jesus. Essa ordem aponta para uma clarifi-
cação que, por ora, não é fornecida. Para entender as coordenadas da
messianidade de Jesus, enunciadas em 8,27-29, é necessário prosseguir.
Por conseguinte, a função da perícope 8,27-30 não é apenas a de conclu-
ir o discurso precedente, mas também a de abrir ao discurso subseqüen-
te. A sua função é a de clímax, de ponto de viragem, ou seja, pretende-se
transportar o leitor de uma parte da narrativa para a outra.18 Trata-se,
portanto, de uma perícope-ponte, uma passagem com que se encerra a

17. Cf. E. NARDONI, La transfiguración de Jesús y el diálogo sobre Elías según el evangelio de San Mar-
cos, Buenos Aires 1977, 40.
18. Assim também C.A. EVANS, Mark 8:27-16:20 (WBC 34B), Dallas (Texas) 2001, 10.
A transfiguração do caminho 89

primeira parte do Evangelho e se abre a segunda. Efetivamente, esta sua


função torna-se evidente pelo fato de Pedro ser mencionado tanto em
8,29 (a confissão) como em 8,32 (a perícope seguinte).

3. Elementos de coesão em Mc 8,27–10,52


3.1. O caminho/hê hodos
O leitor já conhece o tema do caminho desde do início da narrativa
(Mc 1,2-3). Porém, nunca se deparou com uma concentração do termo
tão óbvia: das 16 ocorrências marcanas do termo hê hodos – a via, o ca-
minho –, 7 delas encontram-se nesta seção: 8,27; 9,33.34; 10,17.32.
46.52. O que impressiona não é tanto o número quanto a localização e a
importância desses textos. A primeira ocorrência dá-se em 8,27,19 quan-
do Jesus, acompanhado dos seus discípulos, se encaminha em direção a
Cesaréia de Filipe (8,27), a sul do monte Carmelo. Marcos não refere se
o grupo efetivamente chegou a Cesaréia; o que lhe interessa, acima de
tudo, é o tema do caminho.
Depois de 8,27, a primeira vez que se menciona nitidamente uma
deslocação é em 9,33, quando o grupo chega a Cafarnaum.20 O interesse
do autor parece pois centrar-se em situar no caminho todos os eventos
referidos entre 8,27 e 9,33 . Ora, aquilo que encontramos em 9,33.34 é
precisamente a pergunta de Jesus aos discípulos sobre a discussão que ti-
veram no/pelo caminho. Somos assim informados da resposta embara-
çante, exatamente porque, pelo caminho, tinham discutido sobre quem
era o maior.
No início do capítulo 10 encontramos uma passagem crucial: o leitor
é informado da chegada de Jesus à Judéia.21 É a primeira vez que se men-
ciona uma ida de Jesus à Judéia, embora em 3,7 tenha sido referida a
multidão – proveniente também da Judéia – que acorria a Jesus. Em 10,1
o leitor começa a dar-se conta de que o caminho talvez tenha uma dire-
ção, embora Marcos a ele se refira sempre através do tema da via ou ca-
minho (10,17). Em 10,32, é finalmente indicada com maior precisão a

19. Antes do nosso texto, o termo hê hodos encontra-se em 8,3, mas sem uma particular relevância teológi-
ca: referia-as às pessoas que, se mandadas embora para casa sem alimento, desfaleceriam pelo caminho.
20. Pouco antes, em 9,30, uma indicação mais genérica informava o leitor de que Jesus e os seus discípulos
estavam passando pela Galiléia.
21. A expressão peran tou Iordanou, talvez mais do que além do Jordão, deve ser interpretada como região
do Jordão.
90 M. Grilli

meta da viagem: Jerusalém. No entanto, mesmo nesta ocasião Marcos


não renuncia à locução en tê hodô, e afirma: estavam a caminho, subin-
do para Jerusalém. O leitor conhece finalmente a meta, uma meta que se
torna cada vez mais próxima com a chegada a Jericó (10,46). Depois de
partirem de Jericó, volta de novo e com mais premência o tema do cami-
nho, com duas referências (v. 46 e 52), exatamente no ponto em que che-
ga a seu termo a nossa seção.
Em 11,1 Jesus encontra-se em Betfagé e Betânia, subúrbio de Jeru-
salém. Chegamos, portanto, à meta. Através desta chegada a Jerusalém
o leitor compreende que a etapa definitiva da história se inicia nesse
ponto. De 11,1 em diante, toda a atividade de Jesus se vai desenvolver
em Jerusalém e no templo. O caminho atingiu a sua meta.
Neste ponto, o leitor deve perceber que a viagem tem uma conotação
simbólica. As numerosas recorrências da expressão en tê hodô, sem ul-
teriores explicações, fazem desta viagem um símbolo teológico funda-
mental que clama por uma interpretação.

3.2. O esquema narrativo: anúncio, reação, instrução


Outro elemento de que depende a coesão da seção é, sem dúvida, o
rígido esquema narrativo tripartido. Após a confissão de Pedro (8,27-30)
tem início uma seção invariavelmente caracterizada por três quadros,
estruturados segundo um esquema ternário. Cada quadro contém três
momentos, cuja disposição é a seguinte:22
a) em primeiro lugar está sempre o anúncio que Jesus faz do cami-
nho da Paixão
b) segue-se a reação dos discípulos
c) e, por fim, uma réplica-instrução de Jesus.

a. Os três anúncios
Os três anúncios da Paixão destacam-se imediatamente como verda-
deiras estruturas de suporte e como pilares da arquitetura narrativa. O lei-
tor não tem dificuldade em reconhecê-los, uma vez que todos eles saem
da boca de Jesus, todos referem o sofrimento do Filho do homem, e to-

22. Cf. E. NARDONI, La transfiguración.


A transfiguração do caminho 91

dos têm como destinatários diretos os discípulos e os Doze (o terceiro


anúncio faz uma referência direta aos Doze: 10,32).
Pode-se dizer que o primeiro anúncio (em 8,31) constitui um verda-
deiro início, não só porque há um sinal lingüístico disso mesmo em êr-
xato didaskein/começou a ensinar-lhes, mas também porque o leitor re-
conhece que, na economia narrativa do segundo Evangelho, esta é a pri-
meira vez que Jesus fala direta e abertamente da sua própria morte. O
anúncio é apresentado como didachê e tem por conteúdo o sofrimento
(pathein), a rejeição (apodokimazô) por parte dos anciãos, dos sumos
sacerdotes e dos escribas, a sua morte violenta (apokteinô) e, finalmen-
te, a ressurreição (anistêmi).
O segundo anúncio encontra-se em 9,31 e, tal como o primeiro, tam-
bém é apresentado como didachê. O conteúdo é expresso por meio do
tema da entrega (paradidômi) às mãos dos homens, da morte violenta
(apokteinô) e da ressurreição (anistêmi).
O terceiro anúncio encontra-se em 10,33-34. Apesar de as coordena-
das serem as mesmas, este terceiro anúncio apresenta-se mais circuns-
tanciado do que os outros dois: fala-se de um tipo de sofrimento que in-
clui a entrega aos pagãos, o escárnio, o ser cuspido e flagelado antes de
ser morto e ressuscitado.
O leitor encontra-se, portanto, diante de um esquema fixo que se re-
pete por três (!) vezes, o qual se torna não só em pilar de suporte da histó-
ria, mas também em sinal comunicativo de suma importância: o interes-
se acaba, assim, por se concentrar neste núcleo que passa a ser central.

b. A reação dos discípulos


Aos três anúncios da Paixão sucedem-se sempre as reações dos des-
tinatários. Este elemento distingue-se, também ele, pela presença de cer-
tos traços comuns. Primeiramente, os protagonistas são sempre os discí-
pulos: Pedro em 8,32b, todos os discípulos em 9,32, e em 10,35-40 os fi-
lhos de Zebedeu. A nível formal temos, primeiramente, o fato de a pri-
meira reação de Pedro estar ligada apenas por um kai ao anúncio que Je-
sus faz da Paixão (8,32b), ao passo que, no segundo caso, anúncio e rea-
ção são postos em relação através do elemento conectivo de (9,32). Esta
conjunção de tem um valor claramente adversativo; por meio dela, o
narrador mostra ao leitor a distância que existe entre Jesus e os discípu-
los que não querem aceitar o caminho da cruz, distância essa que o leitor,
92 M. Grilli

por sua vez, é chamado a suprimir. Na terceira reação – a dos filhos de


Zebedeu (10,35ss) –, a ligação ao precedente anúncio da Paixão é uma
ligação de natureza meramente semântica. Aos olhos do leitor, o pedido
dos filhos de Zebedeu de, na glória (10,37), ficarem um à direita e o ou-
tro à esquerda, além de inoportuno denota também uma total incompre-
ensão das palavras de Jesus. Finalmente, a nível narrativo, é de maneira
extremamente sintética que Marcos exprime a primeira reação de Pedro
e a segunda dos discípulos: à primeira o evangelista concede apenas
meio versículo (8,32b), e à segunda um versículo (9,32), ao passo que,
no que toca à reação dos filhos de Zebedeu, o relato é formulado em for-
ma de diálogo entre Jesus e os dois (10,35-40), e este diálogo, por sua
vez, torna-se mais amplo com a ulterior intervenção dos outros dez
(10,41-45).
De qualquer maneira, as três reações estão marcadas pelo tema da in-
compreensão e do deficiente entendimento. O leitor começa, por um
lado, a perceber que o mistério de Jesus se torna mais claro, porquanto o
caminho se configura cada vez mais como um caminho de Paixão e de
cruz; por outro lado, o leitor verifica que a reação dos discípulos é cada
vez mais obtusa, uma vez que, embora “compreendam” finalmente, na
verdade “não querem” seguir o Mestre ao longo daquele caminho.

c. As instruções/ações de Jesus em resposta à rejeição/má compreen-


são dos discípulos
Por causa da incompreensão dos discípulos segue-se uma réplica de
Jesus. Em si mesma, esta réplica não era estritamente necessária, uma
vez que, do ponto de vista narrativo, o desenvolvimento poderia ter se-
guido por outros caminhos. Em Mc 4,41, por exemplo, na parte final da
tempestade acalmada, quando os discípulos perguntavam: Quem é este,
a quem até o vento e o mar obedecem? (4,41), não recebem qualquer
resposta da parte de Jesus. Naquela ocasião Jesus nem explicou, nem es-
clareceu. Um pouco antes, censurara os discípulos pela sua falta de fé,
mas não se seguiu a isso um diálogo nem tampouco um discurso para
que os discípulos pudessem chegar à compreensão. Confrontado pois
com o desentendimento ou rejeição por parte dos discípulos na questão
da aceitação da cruz do seu Mestre, Jesus poderia ter ficado em silêncio.
Todavia, um dos elementos importantes que confere unidade à nossa se-
ção é o fato de, à rejeição por parte dos discípulos, se seguir sempre uma
réplica/instrução.
A transfiguração do caminho 93

É importante notar também que a réplica de Jesus às incompreen-


sões dos discípulos está bem articulada. Ou seja, o narrador concebeu o
terceiro elemento do tríptico de tal modo que, à réplica imediata de Je-
sus, seguem-se ulteriores instruções ou ações. Temos assim uma cate-
quese por ondas sucessivas (waves): parte-se de um núcleo central e,
posteriormente, este centro dilata-se em sucessivas halakah e/ou hagga-
dah. Os gêneros halákico e haggádico têm como função específica pro-
longar os eventos do passado à história dos leitores. A halakah é efetiva-
mente entendida pelo judaísmo como atualização legislativa da história
da salvação. Sua função é dizer ao leitor como deve ser entendido “hoje”
o caminho do povo de Deus na Lei do Senhor. Por seu lado, a haggadah
é a atualização narrativa da história da salvação, uma vez que a Escritu-
ra, além de “lei”, é também, e acima de tudo, “história”: uma história
que diz respeito às mirabilia Dei, e às suas efetivas manifestações”.23
No nosso contexto, os eventos salvíficos narrados ao longo da seção,
centrados na morte-ressurreição de Jesus, mediante a interpretação ha-
lákica e haggádica, atingem os leitores de todos os tempos, instruin-
do-os e educando-os no “caminho” do Senhor.
Vejamos estes aspectos de maneira mais detalhada.
Primeira réplica de Jesus (8,33–9,1) e sucessiva haggadah (9,2-29).
Perante a reação de Pedro (v. 32b), Jesus começa por dirigir-lhe uma re-
preensão surpreendentemente severa (v. 33); em seguida, como que numa
nova onda, dirige-se à multidão e aos discípulos (v. 34) para lhes explicar
o que significa tornar-se seguidor do crucificado (opisô mou/após mim;
cf. 8,34–9,1). Em 9,2-29 o gênero literário muda. Já não se trata de uma
instrução, mas de uma narração, ou melhor, de duas: a da transfiguração e
a da cura de um epiléptico. Uma leitura atenta revela, no entanto, que am-
bas as narrações dizem respeito ao tema da cruz desenvolvido por Jesus
nas anteriores instruções (cf. 9,9-10 e 9,26-27). Além disso, em ambas as
narrações os leitores são interpelados de maneira direta (cf. 9,11-12 e
9,28-29). O autor realiza, portanto, uma operação significativa: o símbolo
central que é a cruz é submetido a uma expansão tal que atinge a vida dos
leitores no seu próprio contexto existencial.

23. Entre a halakah e a haggadah existe uma relação muito estreita, porque “quem possui o midrash haggá-
dico e não tem as halakôt é um forte desarmado. Quem tem as halakôt e não possui o midrash haggádico é um
fraco armado” (Abôt 29). Na mentalidade hebraica a haggadah é demasiado ambígua para a vida, ou seja, é mui-
to genérica e, por si só, não tem força suficiente para educar; por outro lado, a halakah recebe o seu fundamento e
o seu valor da haggadah, sem a qual ela tornar-se-ia um peso insuportável.
94 M. Grilli

Segunda réplica de Jesus (9,33-50) e sucessiva halakah (10,1-31). À


segunda reação negativa dos discípulos perante o anúncio de Jesus
(9,32) segue-se uma longa instrução sobre a qualidade e o sentido do
serviço cristão (9,33-50). As três unidades sucessivas – o mandamento
de Deus, o acolhimento do Reino e a posse da vida eterna (10,1-31) –
constituem ulteriores ondas de parênese didática acerca da verdadeira
dimensão da ação cristã. Através, pois, das várias instruções, o leitor é
encaminhado para uma aceitação da cruz como motivo estruturante do
seu agir. É, uma vez mais, o motivo da cruz que subjaz a este corpo de
ensinamentos, como demonstra o logion sobre os primeiros e sobre os
últimos, colocado no início e na conclusão da parênese (9,35//10,31). O
leitor compreende que a cruz significa alteração em certos valores e que
tudo isso tem implicações sobre o seu próprio viver e sobre o seu morrer.
Terceira réplica de Jesus (10,41-45) e sucessiva haggadah (10,46-52).
A última réplica e a narrativa haggádica que se lhe segue ocupam menos
espaço do que as anteriores, mas são de uma densidade impressionante. O
narrador entendeu que, ao episódio dos filhos de Zebedeu e da indignação
dos outros dez (10,35-41), devia seguir-se uma primeira instrução de Je-
sus sobre a alteração dos cargos na comunidade dos discípulos de Cristo
(10,42-45), e, em seguida, o relato da cura de Bartimeu (10,46-52). O fi-
nal desta narrativa, em que o cego Bartimeu segue a Jesus no caminho,
oferece a chave de interpretação, quer do contexto imediato, quer de toda
a seção. A intervenção de Jesus dá, portanto, aos discípulos/leitores a pos-
sibilidade de captarem o verdadeiro significado da cruz e de seguirem o
Messias crucificado ao longo do caminho da vida.

Conclusão
Nossa seção (a primeira da segunda parte do Evangelho) revela-se
mais unida e mais orgânica do que as precedentes, seja a nível geográfi-
co – pois descreve o caminho de Jesus desde as povoações de Cesaréia
de Filipe até à entrada em Jerusalém –, seja pelo fato de sua construção
assentar sobre o princípio da tripartição, um princípio que alguns auto-
res consideram ser o alicerce da história da Paixão no seu todo.24 Em
todo o caso, através deste modelo formal tripartido, o leitor apercebe-se
da existência de uma estrutura sólida, bem como de um discurso que se
aprofunda cada vez mais. O destino do Filho do Homem e o dos discípu-

24. Cf. R. PESCH, Il Vangelo di Marco. Parte II: Introduzione e commento ai cap. 8,27-16,20, Brescia
1980-82, 36-64.
A transfiguração do caminho 95

los passa assim a ser compreendido como um caminho que deve ser se-
guido. De fato, halakah significa caminho a seguir e a seção é composta
por halakôt cristãs, que, junto com os relatos (haggadah), formam uma
das seções mais fascinantes do Evangelho de Marcos.
É neste contexto que se insere o relato da transfiguração.

III – O relato da transfiguração em chave comunicativa

I. A transfiguração
2
E seis dias depois,
Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João,
e [fê-los] subir a um lugar retirado, no alto da montanha, a sós.
—————————————
3
E foi transfigurado diante deles,
e sua roupa ficou muito brilhante, tão branca
como nenhuma lavadeira na terra conseguiria torná-la assim.
—————————————
4
E apareceram-lhe Elias e Moisés
e falavam com Jesus.
—————————————
5
E Pedro então tomou a palavra e disse a Jesus:
“Rabi, é bom ficarmos aqui;
vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra
para Elias”.
6
Na realidade, não sabia o que devia falar,
pois eles estavam tomados de medo.
—————————————
7
Desceu, então, uma nuvem, cobrindo-os com sua sombra.
E da nuvem saiu uma voz:
“Este é o meu Filho amado. Escutai-o!”
—————————————
96 M. Grilli

8
E, de repente, olhando em volta,
não viram mais ninguém:
só Jesus estava com eles.
—————————————-
II. O diálogo
9
E ao descerem da montanha, Jesus ordenou-lhes
que não contassem a ninguém o que tinham visto,
até que o Filho do Homem fosse ressuscitado dos mortos.
10
Eles ficaram pensando nesta palavra e discutiam entre si
o que significaria “ressuscitar dos mortos”.
——————————————-
11
Perguntaram a Jesus:
“Por que dizem os escribas que primeiro deve vir Elias?”
12
Ele respondeu:
“Sim, Elias vem primeiro, para pôr tudo em ordem.
Por outro lado, como está escrito a respeito do Filho do Homem
que ele deve sofrer muito e ser desprezado?
13
E eu vos digo mais: também Elias veio,
e fizeram com ele tudo o que quiseram,
[exatamente] como está escrito a seu respeito”.

1. Os componentes formais da narração da transfiguração


A narração divide-se claramente em duas cenas (9,2-8 e 9,9-13), en-
quadradas na moldura topográfica da subida (9,2) e da descida do monte
(9,9). Dentro destas duas cenas há um conjunto de seqüências em que
aparece o relato da transfiguração (primeira cena), e o diálogo que se lhe
segue (segunda cena).

Primeira cena. Mc 9,2-8: o evento da transfiguração


O v. 2 tem por função mudar o quadro de referência e, desse modo,
preparar o leitor para um novo e inesperado evento, subseqüente à longa
parênese sobre a necessidade da cruz. A expressão seis dias depois –
A transfiguração do caminho 97

algo estranho num Evangelho como o de Marcos, onde raramente apare-


cem referências temporais precisas – é possível que contenha uma cono-
tação temporal referente a um acontecimento anterior; poderia tratar-se
também de um elemento “tipológico”. Outros elementos tipológicos de
certa importância são a referência ao alto monte – que em todas as reli-
giões é o lugar da revelação de Deus – e ao segredo, expresso através de
kat’idían monous/eles apenas (monous é aqui uma redundância), ele-
mentos que preparam o leitor para um evento inesperado de revelação.
A descrição do evento tem seu início no v. 2b. Um leitor competente
não estranhará nem o léxico, nem as categorias utilizadas: os fenômenos
de transformação (cf. metamorphoô / transfigurar-se – no v. 2b) estão
presentes tanto na mitologia pagã como na literatura apocalíptica judai-
ca. Também o esplendor da roupa e a cor branca traduzem uma simbo-
logia apocalíptica: são símbolos da condição celeste, reflexo da glória
de Deus e/ou da ressurreição (cf. Dn 10,6; 12,3; Ap 2,17; 6,2 etc.).25 Di-
ante do leitor começa, pois, a delinear-se a natureza do evento: trata-se
de uma revelação do tipo apocalíptico.
No v. 4, inicia-se uma nova seqüência com a aparição de duas novas
personagens que pertencem à esfera divina. A aparição de personagens
celestes é freqüente no gênero epifânico e apocalíptico. Contudo, é es-
tranho que Marcos mencione primeiro Elias – cronologicamente poste-
rior a Moisés. Marcos não diz nada sobre o conteúdo da conversa, ao
contrário de Lucas, que se apressa em fazê-lo (Lc 9,31). O que para Mar-
cos tem de verdadeira importância é o fato de falarem “entre si”.
No v. 5 a intervenção de Pedro interrompe a descrição da revelação,
remetendo-nos para o mundo humano. É significativo que, após a pro-
fissão de fé (Mc 8,27-30), seja novamente o próprio Pedro quem toma a
palavra em momentos decisivos da história de Jesus. O leitor sabe tam-
bém que é freqüente Pedro apresentar-se como porta-voz dos outros,
como claramente podemos verificar também no nosso texto (cf. hêmas
no v. 5). De certo modo, ele representa o mundo dos discípulos e dos lei-
tores. Impressiona-nos que nem Jesus (a quem Pedro dirige a palavra)
nem as outras duas personagens dão crédito à proposta de Pedro. So-
mente uma observação do narrador (v. 6) põe o leitor de sobreaviso: a in-
tervenção de Pedro é, uma vez mais, imprópria.

25. A transformação celeste é “uma imagem muito difundida na literatura apocalíptica”; R. PESCH, Mar-
co, II,120. Dn 12,3 afirma que: “Os sábios resplandecerão como o esplendor do firmamento...”
98 M. Grilli

No v. 7, com um kai egeneto (2x), tem início uma nova fase da reve-
lação que inclui símbolos teofânicos como a nuvem e a voz. A expressão
kai egeneto é já conhecida do leitor, uma vez que apareceu no relato do
batismo de Jesus (1,9).26 Um outro elemento narrativo importante é a
voz, em virtude da qual se estabelece um forte paralelismo entre o nosso
texto e o relato do batismo: kai phônê egeneto ek tôn outranôn (1,11).
A narração interrompe-se subitamente no v. 8, e o advérbio exapi-
na/de repente apanha o leitor de surpresa. Além de a proposta de Pedro
não receber qualquer resposta, acima de tudo não foi adiantada qualquer
palavra explicativa para os eventos. Oudéna eidon allá ton Iêsoun mo-
non – não viram mais ninguém: só Jesus estava com eles – remete para o
versículo inicial (v. 2) e funciona como uma primeira conclusão.

Segunda cena. Mc 9,9-13: o diálogo durante a descida do monte


As duas seqüências contidas nos v. 9-13 (9-10 e 11-13) estão ligadas
entre si pela moldura topográfica da descida da montanha.27 Numa ótica
espacial, portanto, após a cena caracterizada pelo movimento ascenden-
te (v. 2), temos a outra, marcada pelo movimento descendente (v. 9).
No entanto, a nível narrativo, enquanto os v. 9-10 estão no seu devi-
do lugar e fazem sentido, os v. 11-13, que constituem a última seqüência,
causam dificuldade, na medida em que apresentam um vínculo muito tê-
nue28 com a narrativa anterior: “Elias deve vir primeiro”, mas primeiro
do que o quê? O contexto exige que a pergunta dos discípulos sobre a
vinda de Elias (v. 11) seja relacionada com a ressurreição de Jesus (v.
9-10); só que, neste caso, a lógica do texto torna-se quase incompreensí-
vel: onde está escrito que a vinda de Elias deva preceder a ressurreição
do Filho do Homem?
A objeção dos discípulos expressa em 9,11 seria muito mais compre-
ensível se fosse entendida como uma objeção à afirmação da chegada do
Reino com poder (9,1). Além do mais, tanto em 9,1 como em 9,13 temos
o verbo vir (elêlytyian – elêlythen), como sinal lingüístico de conexão.
Se 9,11-13 aparecesse depois de 9,1, teríamos uma notável coerência de
pensamento: à afirmação de Jesus, segundo a qual alguns dos que aqui es-

26. Em 1,9, no entanto, é inicial.


27. É precisamente S. LÉGASSE, L’Evangile de Marc, 2 vols., LD 4.5, Paris 1997 (tr. it., Marco, Roma
2000, 454) quem chama a atenção para o fato de que o diálogo acontece na descida da montanha.
28. A ligação é constituída apenas pela figura de Elias (v. 4-5 e 11-12).
A transfiguração do caminho 99

tão hão de assistir à chegada do Reino de Deus com poder (9,1), os dis-
cípulos objetam, dizendo que um outro evento decisivo deve acontecer
primeiro: a vinda de Elias, anunciada por Ml 3,22 com base no que está
escrito em 2Rs 2,11-12 (Mc 9,11). Jesus encerra o discurso afirmando
que Elias já veio (9,13). Portanto, Mc 9,11-13 é muito mais compreensí-
vel depois de 9,1. Além disso, não é de se excluir que, originariamente,
aqueles logia estivessem na seqüência que acaba de ser exposta.29 Mas,
por que razão terá Marcos inserido a narração da transfiguração entre
9,1 e 9,11-13? A resposta a esta pergunta torna-se vital e o leitor é cha-
mado a encontrar uma resposta. O segundo passo desta análise aju-
dar-nos-á a entender estes aspectos misteriosos da articulação do texto.

2. A mensagem
Primeira cena: Mc 9,2-8
“E seis dias depois” (v. 2) refere-se a Mc 8,27, dia da confissão de
Pedro, ou à instrução sobre a cruz que tem seu início em 8,31?30 Ou tra-
tar-se-á antes de uma nota de carácter mais “tipológico” do que tempo-
ral? Alguns comentaristas de Marcos julgam tratar-se da tipologia da
festa das Tendas (conhecida em Lv 23,34 como he heortê skenôn: cf. skê-
nê em Mc 9,5), que era celebrada seis dias depois do Kippur. A encerrar
esta festa, no sétimo dia, o povo vestia-se de branco (cf. Mc 9,3). É o ele-
mento das tendas aquele que se poderia revestir de alguma importância
nesta evocação da festa judaica (como veremos); no entanto, esta narra-
tiva da transfiguração tem uma diversidade de elementos, dos quais ape-
nas alguns poderiam estar relacionados com a festa das Tendas. Outros
comentaristas consideram que o texto remete para Ex 24, uma passagem
que nos relata a subida de Moisés ao Monte Sinai, onde a glória do Se-
nhor cobria toda a montanha durante seis dias e onde, no sétimo dia,
Deus chamou Moisés do meio da nuvem (Ex 24,15-16). Esta referência
é possível, mas o paralelo entre Jesus e Moisés não deve ser compreen-
dido sic et simpliciter, porquanto, para Marcos, Jesus tem no plano salví-
fico um lugar que Moisés não tem, conforme a voz no-lo revela logo a
seguir. É possível que seis dias depois corresponda ao primeiro dos vá-
rios elementos que exprimem a função revelatória do evento. A referên-

29. Cf. R. PESCH, Marco, II, 128-134.


30. Lucas inicia o seu relato com aproximadamente oito dias depois destas palavras (9,28).
100 M. Grilli

cia a Ex 24 não é impossível. Nesta óptica, horos hypsêlon/ monte altís-


simo não deve ser procurado no mapa geográfico.31 Para a tradição reli-
giosa, o monte é o lugar que aproxima a terra ao céu e, por conseguinte, é
o lugar privilegiado para a revelação. Esta expressão remete o leitor
competente para os outros textos de Marcos nos quais a montanha foi
mencionada (3,13; 6,46), e, sobretudo, para a tradição bíblica da monta-
nha de Deus (Ex 19,3; 1Rs 19,8 e Gn 22,2.14; cf. também Jub 18,7). Na
tradição hebraica, os montes Sinai, Horeb e Moriá são os “montes de
Deus” (cf. Jub 18,7).32 Também nos escritos apocalípticos o monte é o
lugar das revelações especiais de Deus (Ez 40,2; Ap 21,10). A intenção
do texto é orientar o leitor para o contexto teológico da “revelação”. Os
elementos iniciais da narrativa preparam para uma revelação peculiar de
Deus, e a expressão kat’idian monous confirma-o. Kat’idian foi utiliza-
da em relação aos discípulos em 4,34 e 6,31-32 (cf. também 7,33); mo-
nos em 4,10 (os discípulos) e 6,47 (Jesus). Salienta-se assim o caráter se-
creto, ao mesmo tempo em que a mente do leitor evoca as manifestações
peculiares de Deus ao longo da história da salvação.
O verbo que descreve este evento é metamorphoô, mas o termo de
referência é a apocalíptica judaica, onde temos a transformação dos elei-
tos (cf. Hen 38,4; 4 Esd 7,97 etc.), e não a mitologia pagã. Metemerphô-
thê é um passivo divino; embora teoricamente fosse possível que na lín-
gua koinê se usasse o passivo em lugar do médio,33 o contexto em ques-
tão, onde o evento é atribuído a Deus, mostra que se trata de um passivo
divino.34 Segundo Marcos, a transformação luminosa dá-se nas vestes e
não no rosto, como em Mateus (17,2) e em Lucas (9,29). O realce atribuído
ao brilho das vestes (v. 3) que ultrapassa a capacidade humana – nota ti-
picamente marcana – pode uma vez mais ser explicado a partir do pano
de fundo apocalíptico, onde a veste remete para a identidade da pessoa, e
a cor branca remete para a esfera celestial e para a ressurreição.35

31. A identificação com o Tabor ou com o Hermon é tradicional.


32. As citações que seguem são dos livros apócrifos que fazem referência à nossa temática: Jubileus (Jub),
Henoc (Hen) etíope, Esdras (Esd), Apocalipse de Sofonias (ApcSof), Testamento de Jó (Test.Jó), Apocalipse de
Elias (ApcEl) etc.
33. Neste caso, a tradução seria: e Jesus transfigurou-se diante deles.
34. R. PESCH, Marco, II, 119.
35. Dn 7,9; Ap 1,14; 3,4-5; 4,4; 6,11; 20,11 etc.
A transfiguração do caminho 101

A aparição de Elias e de Moisés (v. 4)36 é repentina, e a pergunta sobre


a função dessas duas personagens tem dado origem a diversas conjeturas.
A opinião clássica é a de que Elias e Moisés representam a Lei e os Profe-
tas a testemunharem em favor de Jesus: o AT a serviço da Cristologia. A
posição mais extrema deste ponto de vista é representada por uma certa
corrente teológica que pensa em Elias e em Moisés como representantes
do AT, destinado a desaparecer (cf. v. 8) com a chegada do Novo.37 Tra-
ta-se de uma suposição que não encontra qualquer confirmação no texto.
Uma outra interpretação baseia-se no fato de o colóquio entre as três figu-
ras possuir um carácter familiar (syllalountes). Nos escritos apocalípticos,
falar com seres celestes é sinal de comunhão (cf. Apc Sof. 13,2 e Hen. etío-
pe 70,11 e, sobretudo, Test. Jó 50) e, conseqüentemente, no nosso texto, o
diálogo seria sinal da participação futura de Jesus no mundo celeste, o
mesmo mundo a que Elias e Moisés já pertencem.38 Nossa preferência vai
para a leitura que parte da tradição hebraica, onde Elias e Moisés, além de
serem homens da glória celeste, também são (sobretudo) profetas que so-
freram e que vivenciaram nesse sofrimento a salvação de Deus. Elias per-
tence ao conjunto de figuras escatológico-proféticas que sofreram perse-
guição (talvez seja este o motivo pelo qual ele é mencionado em primeiro
lugar: cf. os v. 11-13). O texto de 1Rs 19,10 aproxima-se de outras passa-
gens sobre o violento destino infligido aos profetas; por seu lado, o Apc de
Elias 35 e Ap 11 sustentam que, quando Elias voltar, será submetido à
morte.39 Mas, apesar de tudo isso, Deus interveio e salvou Elias; Hen.
etíope 89,52 interpreta o arrebatamento de Elias aos céus como uma ope-
ração de salvamento da perseguição. Também Moisés é visto nesta linha
do profeta sofredor que expia – tradição que se conservou em Hb 11,26 – e
também ele pôde muitas vezes experimentar a intervenção de Deus que o
salvou das mãos do faraó e das mãos de todos os que queriam sua morte.
Por conseguinte, Elias e Moisés testemunham a presença do Deus salva-
dor no destino de morte infligido pelos homens aos seus enviados. No
nosso contexto, Elias e Moisés testemunham a intervenção e a salvação de

36. Em Marcos, o verbo ôphthê aparece apenas aqui, e é típico das aparições celestes do ressuscitado (cf.
1Cor 15,5-8; Lc 1,11 etc.).
37. Cf., p. ex., HERVÉ DE BOURG-DIEU, em PL 158, 615-616.
38. O leitor já sabe muito bem que Elias faz parte do mundo celeste (cf. 2Rs 2 que fala do arrebatamento de
Elias aos céus), contudo, para Moisés, torna-se mais difícil, porque o texto de Dt 34,5 fala da morte e da sepultura
de Moisés. Todavia, uma tradição hebraica afirma também que Moisés foi arrebatado aos céus (SifréDt. 357 e mi-
drash haggadol sobre Dt 34,5). Cf. R. PESCH, Marco, II, 122.
39. Esta tradição foi, em larga medida, retomada pelo NT, sobretudo na conclusão da nossa seqüência,
onde Jesus afirma que Elias já veio “e fizeram com ele tudo o que quiseram” (Mc 9,13; cf. também Mc 6,17-29).
102 M. Grilli

Deus no momento da Paixão do profeta escatológico: do mesmo modo


que Deus esteve presente na história de Israel, salvando seus profetas,
também há de estar presente no destino de sofrimento do seu Filho, sal-
vando-o da morte.
Os v. 5-6 apresentam a reação de Pedro ao evento. A proposta de fa-
zer três tendas foi interpretada como uma referência à festa das Tendas.
Nesta festa, Israel celebrava sua caminhada pelo deserto com a shekinah
de Jhwh no meio do seu povo. Mas esta festa prefigurava também a futu-
ra e definitiva morada de Deus no meio dos seres humanos (cf. Zc
14,16). Ao evocá-la, estaria Marcos referindo-se à definitiva e escatoló-
gica plenitude que Jesus trouxe com a sua vinda? Não se sabe ao certo,
sobretudo se tivermos em conta que o narrador menciona a inoportuna
intervenção de Pedro: ou gar ê[i]dei ti apokrithê[i] – não sabia o que
devia falar (v. 6). O motivo dessa inconveniência também não é referi-
do. O leitor já conhece as reações de Pedro (cf. 8,32-33) e também sabe
que, muitas vezes, essas reações não estão em sintonia com o plano de
Deus. Só que desta vez não é de todo claro onde está o problema, até por-
que temos um conjuntivo do verbo apokrinomai precedido pelo pretéri-
to mais-que-perfeito do verbo oida. Em geral, os comentaristas tradu-
zem: “não sabia aquilo que dizia”. Mas, nesse caso, para que servirá o
conjuntivo? Talvez fosse mais exato traduzir: “e não sabia o que dizer”.
Deste modo, o leitor compreende que a reação de Pedro decorreu da sua
incapacidade de entender o que estava acontecendo. É possível que Pe-
dro estivesse confuso e até “gaguejante”.40 O medo a que se faz menção
não é, por isso mesmo, o temor numinoso que toma posse do indivíduo
quando este entra em contato com o divino ou faz uma experiência teo-
fânica; neste caso, trata-se sobretudo do medo proveniente da não-com-
preensão do evento.
O texto oferece dois sinais, cuja função é ir ao encontro da confusão
de Pedro e dos discípulos (e do leitor?): designadamente, a nuvem e a
voz celeste, que fornecem a correta interpretação do evento. O leitor
sabe que a nuvem e a voz têm uma função importante na teologia do AT:
são sinais teofânicos (Ex 24,15-18; 40,34s; cf. também Test. Jó 42,3).
Como a nuvem que cobria a tenda do encontro no deserto41 era sinal da
presença invisível de Deus, também a nuvem que com a sua sombra co-
bre Jesus e os seus companheiros (Moisés e Elias) é aqui sinal da presen-

40. S. LÉGASSE, Marco, 447-448.


41. Em Ex 40,35 encontramos o mesmo verbo episkiazô.
A transfiguração do caminho 103

ça divina ao longo do caminho do seu Filho. A voz (cf. também Ex


24,16) tem o seu paralelo no batismo (cf. 1,11), embora com duas dife-
renças no nosso texto: a) não é dirigida a Jesus mas aos discípulos/leito-
res, e b) contém a ordem de escutá-lo. Desde logo, o texto diz aos leito-
res que Jesus é ho hyios mou ho agapêtos. Temos aqui uma alusão ao Sl
2,7, um salmo messiânico onde lemos: Tu és o meu Filho, eu hoje te ge-
rei! Todavia, a citação do Sl 2 é completada pelas expressões ho agapê-
tos e akouete autou. É possível que ho agapêtos contenha uma referên-
cia a Gn 22,2 (12.16), onde Deus ordena a Abraão que tome seu filho
amado;42 no entanto, é mais provável e mais conforme ao contexto, que
se esteja traduzindo aqui o hebraico bahir de Is 42,143. O Sl 2,7 seria,
portanto, uma combinação de palavras provenientes, sobretudo, da des-
crição do servo de Is 42,1, e tudo isso para exprimir duas coisas:
a) a relação singular que existe entre Deus e Jesus, o Filho;
b) e o modo em que esta filiação se vai revelar: o destino de sofri-
mento.
A ordem escutai-o (que não estava no batismo) é uma citação livre
de Dt 18,15, onde Moisés fala de um profeta que vem depois dele e é
como ele, enviado por Deus, a quem se deve prestar ouvidos. É sobretu-
do no contexto das parábolas44 que Marcos sublinha para os leitores o
dever de escutar o ensinamento de Jesus. Aí, a necessidade de escutar é
justificada pela significativa centralidade da palavra (cf. ho logos em
4,15.16.18.20.33). No nosso contexto, porém, a ordem de prestar ouvi-
dos parece bastante estranha, uma vez que, na transfiguração, nenhum
ensinamento de Jesus nos é dado. Horstmann45 propôs uma relação com
Mc 8,38, onde kai tous emous logous indica que o ensinamento de Jesus
continua nas palavras do Senhor, presente na comunidade. A ser isso
verdade, compreender-se-ia melhor a função pragmática de akouô. Tra-
tar-se-ia de um sinal relevante para os leitores, chamados a escutar/obe-
decer46 a didachê de Jesus sobre a Paixão do Filho do Homem (8,31). A

42. E. Schweizer, no comentário ao Evangelho de Marcos, diz que na LXX Isaac é a única pessoa que é
chamada filho dileto, amado.
43. Bahîr de Is 42,1 é traduzido na LXX eklektos mou (cf. Mc 12,6).
44. Em 4,3 afirma explicitamente: kai edidasken autous en parabolais polla, kai elegen autois en tê dida-
chê autou: akouete.
45. M. HORSTMANN, Studien zur markinischen Christologie. Mk 8,27-9,13 als Zugang zur Christusbild
des zweiten Evangeliums (NTA 6), Münster 19732, 88-90.
46. O imperativo akouete não significa apenas escutar, mas também obedecer, paralelamente a šama{, que
em hebraico significa, exatamente, as duas coisas juntas (cf. Ex 6,12 e Mt 18,15-16 etc.).
104 M. Grilli

alusão a Mc 8,31-33, onde Pedro não quer aceitar o plano de Jesus, tor-
nar-se-ia, nesse caso, muito mais provocante.
A conclusão interrompe repentinamente a visão. Sobressai o advér-
bio exapina em virtude do lugar que ocupa no início, o qual se refere,
não ao particípio periblepsamenoi, mas ao aoristo eidon. Marcos realça
o retorno à “normalidade” e o fim da “experiência”,47 através de uma fra-
se pleonástica, reforçada por alla, equivalente a ei mê. Trata-se de um si-
nal claro para os leitores do período pós-pascal, a quem já não é dado ver
Jesus. É a esses destinatários que se ordena prestar ouvidos a Jesus.

Segunda cena: Mc 9,9-13


Os v. 9-13, apesar de estarem artificialmente ligados entre si (cf. su-
pra), têm uma função importantíssima para os leitores que acabamos de
referir.
Na seqüência formada pelos v. 9-10 encontramos a ordem de Jesus
aos discípulos de não revelarem o fato antes da ressurreição do Filho do
Homem. A ordem para ficarem calados traz à nossa memória a ordem
dada por Jesus depois da profissão messiânica (8,30). Desta vez, contu-
do, temos um elemento novo: uma limitação temporal. Efetivamente, a
proibição de falarem, feita por Jesus, é válida somente antes da ressur-
reição do Filho do Homem. Os três discípulos não compreendem (v.
9-10), mas o leitor encontra aqui um elemento fortemente proléptico: a
transfiguração tem a ver com o evento da ressurreição, por ser, de algum
modo, figura e antecipação da própria ressurreição.
Na última seqüência (v. 11-13), o diálogo sobre Elias é portador de
uma luz nova. Já salientamos que o texto de Mc 9,11-13 se compreende-
ria melhor depois de Mc 9,1, onde se fala da vinda do Reino de Deus
com poder. A nova colocação que Marcos deu a seu material manifesta
uma outra intenção estratégica: os v. 11-13 oferecem uma resposta à per-
gunta dos discípulos sobre o significado da ressurreição (v. 10). Se Elias
já veio (v. 13), isso significa que Jesus é o restaurador do Reino de Deus
com poder, do qual Elias deveria ser o precursor (cf. Ml 3,23-24 e Eclo
48,10). Jesus é, portanto, o enviado escatológico que restabeleceu o Rei-
no de Deus com poder, através da sua morte e ressurreição. Ressurgir
dos mortos significa, pois, o poder definitivo que Deus possui de resta-
belecer o seu Reino, a despeito do fato de os homens terem feito a Elias

47. Eidon aqui significa uma experiência sensível: cf. S. LÉGASSE, Marco, 832, nota 60.
A transfiguração do caminho 105

(precursor do Messias marcado pelo sofrimento48) e ao próprio Messias


aquilo que quiseram (9,13).49

3. A função comunicativa da narrativa


Gostaria de concluir este comentário sobre o relato da transfiguração
com duas perguntas: uma sobre a função do gênero literário em chave
comunicativa, e outra sobre a função comunicativa da transfiguração no
contexto da trama narrativa do Evangelho de Marcos.
Se compararmos a compreensão clássica do gênero literário, própria
da Formgeschichte, com a compreensão que dele tem a ciência da co-
municação, dar-nos-emos conta de uma significativa incongruência.
Classicamente, qualquer gênero caracterizava-se e compreendia-se na
relação forma-conteúdo – Sitz im Leben; do ponto de vista comunicati-
vo, porém, o gênero funciona como um código de acesso à compreen-
são. Os elementos de um gênero despertam no leitor determinadas ex-
pectativas e, ao mesmo tempo, preparam-no para aderir a uma nova per-
cepção dos eventos com que se depara. Deste modo, um texto apocalíp-
tico, por exemplo, despertará no leitor um conjunto de expectativas e de
atitudes que o ajudarão a ler o momento de crise em que eventualmente
se encontre e a fazer-lhe frente.50 Se aplicarmos esta brevíssima conside-
ração ao relato da transfiguração, desde logo nos daremos conta de que a
transfiguração se apresenta como um gênero literário misto, porquanto,
ao lado de traços típicos do gênero epifânico (aparecer, ver...), teofânico
(nuvem, voz...) e apocalíptico (as vestes brancas, a nuvem, a voz...),
Marcos inseriu também outros motivos que pertencem mais propria-
mente a um tipo de “midrash cristológico”.51 Também poderíamos dizer
que esquemas literários conhecidos, que por si mesmos são susceptí-
veis de criarem determinadas expectativas, foram misturados uns com
os outros, readaptados e postos a serviço de uma comunicação, cujo

48. Cf. M. TRIMAILLE, Le récit de la Transfiguration comme récit interprétatif, em L. PANIER, Le temps
de la lecture. Exégèse biblique et sémiotique (LeDiv 155), Paris 1993, 169.
49. O artífice deste ponto de vista, que vê em Elias o precursor do Messias, talvez seja o próprio Marcos,
pois não conhecemos no judaísmo nenhum testemunho desta perspectiva.
50. Observações interessantes sobre este assunto podem ser encontradas em A. FUMAGALLI, Gesù croci-
fisso, straniero fino alla fine dei tempi. Una lettura di Mt 25,31-46 in chiave comunicativa, EH XXIII/707,
Frankfurt am Main 2000, 127s.
51. R. PESCH, Marco, II, 117. Neste sentido, o Jesus do relato da transfiguração poderia também ser defi-
nido como “a realização de uma complexa multiplicidade”: H. BALTENSWEILER, Die Verklärung Jesu. Ereig-
nis und synoptische Berichte (ATANT 33), Zürich 1959, 119.
106 M. Grilli

conteúdo fundamental consiste na identidade de Cristo e no seu destino


de sofrimento. Em causa está uma estratégia suscetível de provocar um
deslocamento de perspectiva e de gerar um novo centro: a pessoa de Je-
sus. Por isso, os esquemas utilizados e os motivos evocados convidam o
leitor a ler o evento, não tanto em chave de “o que” aconteceu, mas, so-
bretudo, em chave de “significado”. O relato da transfiguração abre a
mente do leitor para o significado do que está para acontecer. Na unida-
de anterior, o leitor aprendera que o caminho do seguimento é o caminho
da cruz, na pertença a Cristo e no dom da própria vida. Neste momento,
o leitor fica sabendo que Deus tem poder para transfigurar o caminho da
cruz, transformando-o em caminho de ressurreição e de vida. Em si
mesmo, o evento da transfiguração oferece ao leitor a chave interpretati-
va do que vai acontecer. O caminho de sofrimento do Filho do Homem
deve ser integralmente lido a partir desta nova luz. Nesta chave, a hag-
gadah da transfiguração é, acima de tudo, o poder do Reino de Deus que
se manifesta no Filho, o Servo sofredor, e que, da parte dos leitores, exi-
ge escuta e participação.
Endereço do autor:
Via Del Casaletto 128,1
00181 Roma – ITALIA
Tel./fax: (00xx) 39/06/5820-2458
E-mail: ma_grilli@hotmail.com

Tradução: Pe. Marcos Antônio Cardoso Alcântara52


Steinkleestr.26
D – 60435 Frankfurt am Main – ALEMANHA
Tel./fax: (00xx) 49 69 9541-6869
E-mail: malcantara@web.de // alcantara@libero.it

52. Pe. Marcos é sacerdote da Diocese de Ilhéus, BA, mestre em teologia bíblica e doutorando pela Pontifí-
cia Universidade Gregoriana – Roma; atualmente também exerce as funções de pároco da Missão Católica de
Língua Portuguesa de Frankfurt, Diocese de Limburg, na Alemanha.

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