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REVISTA DE ARTE & LITERATURA

saracura
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AMANDA DAMÁSIO
ANNE SAMPAIO
AQUAIB
EMERSON F. OLIVEIRA
GIORDANA FERRO
ISABELA DA CUNHA
MATEUS GRUBER
NATASHA DE ALBUQUERQUE
XARXEL
UÉ PRAZERES
YASMIN KOZAK
saracura
REVISTA DE ARTE & LITERATURA

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saracura
REVISTA DE ARTE & LITERATURA

1
AMANDA DAMÁSIO
ANNE SAMPAIO
AQUAIB
EMERSON F. OLIVEIRA
GIORDANA FERRO
ISABELA CUNHA
MATEUS GRUBER
NATASHA DE ALBUQUERQUE
XARXEL
UÉ PRAZERES
YASMIN KOZAK

CURITIBA
2020
Sumário

08 AMANDA DAMÁSIO

18 ANNE SAMPAIO

22 YASMIN KOZAK

28 AQUAIB

30 ISABELA CUNHA

36 MATEUS GRUBER

38 NATASHA DE ALBUQUERQUE

40 UÉ PRAZERES

46 EMERSON F. OLIVEIRA

52 GIORDANA FERRO

58 XARXEL

74 BIOGRAFIAS
[…]
amanda damasio

[…] Então, o portão de ouro reluzente não existe. Já varri todo o


solo de nuvem em que ele possa estar espetado, não o vi. Talvez
eu tenha vindo sem aquilo que seja preciso para vê-lo - como é
impossível para um cego entender um arco-íris. Mas é como se
eu fosse um balão preso a um cordão umbilical que me fornece
quantidades infinitas de hélio. O cordão em si também é tão longo
que não sei se começa na terra, ou no mar de lava debaixo dela,
ou nas criaturas debaixo das ondas alaranjadas. Não sei disso.
Mas é a única coisa que não sei. Agora tenho aquilo que a Hilda
chamava de Lucidez Obscena. Não consigo possuir nenhum
corpo – mas sei do que são feitas as veias de todos, as seivas das
árvores, a fome das larvas.
Não houve anjo que me apresentasse meus aposentos. Acho
que agora todos foram retirados do cargo e foram substituídos
por essa consciência que ganhei assim que fui declarada morta
nesse nosso planetinha redondo. Agora tão pequeno que eu
posso engoli-lo. Poderia ser um pedaço de poeira no meu quarto,
eu nem saberia.
Foi uma morte besta, não foi? Sempre tive medo de ter uma
morte besta como a que tive. Acho que os heróis televisivos
conseguiram banalizar até a morte. Até o amor. Tinha que ser
uma morte fruto de luta, pelo menos: com os outros, consigo
mesmo, tanto faz. Tinha que ser um amor ou muito difícil ou
muito fácil. Mas a minha não foi nada disso. Claro, eu estava em
desvantagem em relação à bala de chumbo brilhante, mas nem
fui o motivo dela ser disparada. Foi apenas um menino brincan-
do com a arma do pai, a fim de saber o que é esse tal de poder
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que dá frio na barriga. Uma bala perdida, encontrada em mim.
Rasgou uma artéria. Espero que o menino esteja feliz agora. É
um herói televisivo, de qualquer forma. Matou sem vontade de
matar. Brincando. Talvez seja Deus, esse menino. Às vezes eu me
encontrava ali no caminho da bala justamente por Deus estar

amanda damasio
brincando. Talvez eu tenha sido uma pecinha que caiu sobre o
tabuleiro. Ou aquela que se perdeu e alguém substituiu por um
botão.
Eu conheço esse menino melhor, agora, morta. Não teria sabido
nada sobre ele se não tivesse na (falta de) mira dele. Sei que es-
condeu a arma debaixo de um vão apertado da mesinha ao lado
da cama do seu pai. Sei que gostou do barulho, que fechou os
olhos quando disparou o tiro. Acho que tem a fraca sensação de
que agora é dono de uma morte. Dono da vida de uma pessoa.
É como um personagem de jogo que ganhou pontos. Cai sobre
ele a gravidade da vida. Da vida alheia, aquela que a gente nunca
toca. A gente acha que sim, mas não, nunca toca. Compartilhar
histórias, garrafas de vinho, filhos, sexo animal, não é nada. Nunca
saberemos o que é ter uma certidão que não é a nossa.
Sabe, eu quase acreditei nisso aquela vez quando você veio em
casa e me ouviu ler poemas do Alberto Caeiro. Eu estava triste,
de cabelo sujo colocado pra cima, com uma camisa com man-
chas variadas. Falamos sobre morte, aquele dia, se lembra? Você
disse que não pensava muito nisso. E agora, pensa mais sobre a
minha morte do que sobre a sua. Sente-se imortal frente a ela,
de algum jeito.
Sei que recebeu a notícia pelo WhatsApp, olha que idiotice. Achou
que era brincadeira, apesar de imediatamente ter começado a
suar frio e o seu coração de passarinho ter disparado. Ligou de
volta para quem tinha lhe contado, incrédulo, caiu sobre a cadeira
da escrivaninha em prantos.
Foi ao velório, abraçou apertado a minha mãe. Gastou o salário
de um mês em flores – flores cujo aroma nunca vou sentir, ou
cujas pétalas nunca vão ser arrancadas numa brincadeira de
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bem-me-quer-mal-me-quer – que eu faria provavelmente pen-
sando em você. Foi um presente mais pra você do que pra mim,
sabe. Todo o velório é dedicado à família e amigos, não ao morto.
É um ritual de passagem dedicado àqueles que não passaram
pra lugar nenhum.
amanda damasio

Não chegou perto do caixão. Se pudesse ter um último desejo,


escolheria ter um caixão fechado. Ou que a bala estivesse arran-
cado meu rosto fora. Essa é a vez em que a última impressão é a
que fica. E vai ficar, como trauma, naqueles que amo. Eu, bran-
ca, em roupas formais que não usaria porque nunca fui formal,
sem sorriso ou olhar, fria, o sangue parado nas veias como um
rio que seca.
Mas acontece que essa consciência súbita me faz ser grata,
apenas. Grata por ela mesma, inclusive. Grata por eu ter agora
o acesso a todas as realidades possíveis. Gostaria muito de ter
te dito como é isso. Que nosso planetinha é nada. É um orvalho
numa flor. Acho que teria te feito bem.
Agora não são mais ruas ou trajeto de ônibus que percorro.
Existe um caminho cravejado de estrelas mortas que sustentam
meu peso – percebi que também sou uma delas. Os universos
são como buracos brilhantes que se enfileiram ao lado desses
caminhos suspensos no nada. Vou passando de casa em casa
como um político dedicado à sua imagem. Existem lugares sem
essas palavras nas quais escrevo essa carta. Ganhei a capacidade
de falar todos esses idiomas, como uma certidão de morta. Não
tenho mais corpo que preencha espaço. O meu ficou naquele
cemitério sujo da nossa cidade. Eu entendo tudo num enten-
dimento que nunca pode ser expresso num papel. Nem em
palestra. Nem em filme. Nem em poema. É infinito. […]

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Sede(s)

amanda damasio
Ele gostava muito de suco de laranja. Da cor alegre, do cheiro,
da acidez da fruta misturada ao doce do açúcar. Por isso, resol-
veu tentar plantar uma laranjeira no sítio onde vivia solitário. Já
tinha uma pá velha e algum resto de adubo, só faltava a muda
da planta, que comprou depois num mercadinho há alguns
quilômetros de casa. Plantou-a um pouco longe do seu jardim,
para ter bastante espaço para esparramar suas raízes.
Aguava-a diariamente, retirava-lhe os bichos, pensando no tanto
de suco de laranja natural que poderia fazer em breve. A estação
da fruta estava chegando. A árvore havia espichado, cravado na
terra fofa um tronco forte e alto, fazendo uma rodela de sombra
em volta de si.
Depois, começaram a aparecer, em vez de brotinhos de fruta,
pequenos risquinhos pretos e manchas vermelhas nas folhas.
Pareciam pelinhos espalhados sobre o verde da planta, mistu-
rados a alguns pontos avermelhados e disformes, apenas no
lado direito dela. Concluiu já que era um tipo de praga: borrifou
veneno sobre o topo dela.
O problema, porém, apenas piorou. Os cabelinhos cresceram e
a árvore acabou ficando com um lado todo peludo. Ele tentou
cortar fora essa parte, em vão.
Acordou um dia e viu de longe alguns pedacinhos brancos mistu-
rados à cabeleira da árvore. Quando chegou perto, viu que eram
dentes. Dentes, molares, humanos como os dele, nascendo aos
poucos, criando uma arcada dentária entre folhas que se cruza-
vam. Ficou paralisado, sem saber o que fazer. Acabou optando
para deixar crescer o que diabos era aquilo – de qualquer forma,
doente deste jeito, a árvore morreria logo.
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Mas não foi o que aconteceu. Começava a brotar uma fruta estra-
nha entre os cabelos e folhas. Foi tudo muito rápido. Desenvolveu
uma pele que se espalhou pelo tronco e escondeu os dentes.
Depois, dois olhos como miolos de flor, uma boca de madeira
amanda damasio

malfeita, um nariz adunco. Os cabelinhos todos se juntaram em


cima, no topo do que parecia uma cabeça.
Chamou um vizinho, com a propensão de arrancar a parte estra-
nha fora. Os dois se colocaram em volta, examinando a estranha
fruta. O outro homem acabou por ficar com dó e convenceu o
colega a não tirar essa parte da planta, e esperar mais um pouco.
Parecia especial. Às vezes poderia até lhe fazer um bom dinheiro.
O outro bufou e concluiu que sem ajuda não tomaria decisões
em relação à planta.
Um dia, andando pelo jardim a cuidar das outras flores e arbustos,
ouviu uma voz. Virou-se para o portão, mas não havia ninguém
lá. Seguiu o som, indo em direção à árvore.
Era a cabeça, a fruta estranha, que falava. Era um vozeirão gra-
ve – realmente, aquele rosto parecia mais masculino do que
feminino. As veias do pescoço desciam pelo tronco misturadas
às cordas vocais, que vibravam.
A cabeça tratou de explicar que tinha a boca seca e sofria muito
por isso. Não sabia como resolvê-lo. Aliás, não sabia como havia
nascido ali, entre aquelas folhas. Não tinha nome e nem pernas
para descobri-lo, ou inventá-lo.
O homem estranhou muito – preferia as laranjas pelas quais
tanto esperava – mas resolveu ajudá-la. Pelo jeito, a planta estava
com sede. Pegou uma longa mangueira e despejou muita água
sobre a cabeça, que parecia deliciar-se.
Perguntou-lhe muitas coisas da sua origem. Se lembrava de algo
além disso, de estar em algum útero além dali, de outro mundo.
Mas planta era desconhecida até para consigo. Não sabia de
nada sobre si. Começou a falar por ser esta uma parte da sua
natureza, tanto quanto brotar.
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O homem, todos os dias, aguava-a abundamente e contava so-
bre as coisas desse mundo. Tentou explicar sobre os comércios,
os amores e os trabalhos, mas a planta raramente entendia.
Geralmente, acabava desistindo de compreender esse mundo

amanda damasio
que parecia tão alheio a ela, e pedia mais água.
Sua sede era cada vez maior. Parecia algo como um vício. Agora,
estava raramente satisfeita, mesmo se fossem atirados sobre ela
baldes e mais baldes cheios d’água.
Uma noite, atacado pela insônia, o homem percebeu que talvez
as laranjas nunca tivessem nascido justamente por causa da
cabeça. Toda a energia e força da planta deveriam estar focadas
no rosto e na voz de homem.
Além dos constantes pedidos de água irritantes da planta, que
agora deveriam ser feitos inclusive no meio da noite, a árvore
reclamava e reclamava sobre o mundo que nunca iria conhecer.
Sobre não ter nome, nem amor, nem comércio. As contas de água
estavam cada vez mais caras, o homem cada vez mais cansado.
Decidiu que se não havia laranjas por vir deixaria a planta morrer
sozinha, de sede, sem refrescar-se sob o sol quente do verão. E
assim foi.
A cabeça, desesperada, soltava gritos desesperados de homem
assassinado, noite e dia. Chorava muito, as lágrimas de sal cor-
tando riscos brancos no tronco. Implorava por água, reclamava
muito do sol flamejante. Agonizava.
O homem custava por ignorá-la, mas, pelo menos, sentia que
estava resolvendo algo que deveria ter feito antes. Só queria as
laranjas, porque deveria sentir-se responsável pela cabeça e por
sua sede?
Acordou, então, em completo silêncio. Um dia bonito e fresco.
Foi visitar a árvore e a cabeça estava dependurada, cadavérica,
ainda com sinais de desespero e tortura. As veias ligadas ao
tronco pareciam ter estourado.
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Cortou-a fora e fez um enterro de homem para ela. Enterrou-a
e sobre o seu túmulo fez uma cruz com dois galhos da própria
árvore. Rezou algumas ave-marias, com medo de ter assassinado
algo humano. Mas os olhos eram de flores, não é? E as veias não
tinham sangue, só seiva…
amanda damasio

Em poucos dias já haviam flores e frutas salpicadas pela copa da


planta. Contente por ter feito a escolha certa, pegou as laranjas
mais maduras e fez finalmente o suco que tanto queria tomar.
Pelo qual tanto esperou.
Não surpreendeu-se quando teve que cuspir fora o líquido. Era
amargo e tinha gosto de sangue.

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Como um galo canta de manhã

amanda damasio
Percorria a faixa azul. Era domingo, afinal. Dia de presença obri-
gatória na Missa Geral, o que também lhe exigia um relatório dos
temas tratados no encontro. Respondia um questionário moral
– abrangia desejos e ações. Pensou em impurezas essa semana?
Não. Esforçou-se para percorrer a hierarquia de grupos? Sim.
Percebeu algum traço de revolta em algum parente, vizinho ou
amigo? Não. Sim. Não. Não. Sim.
Normal. Da rotina. Como um galo canta de manhã.
Depois da missa e do relatório entregue, à noite, se desbloqueiam
as linhas do lazer. Os trajetos aparecem na tela dos aparelhos que
cada um deve ter em mãos. Sempre. É de ordem constitucional,
ordem máxima, inclusive estimulada pela igreja. Por Deus. Para
nenhuma ovelha se perder.
As linhas são reorganizadas toda a semana. Nunca percorrem
os mesmos lugares – para que não se reconheça onde está. Isso
pode trazer a revolta – aquela coisa que colore as bochechas de
vermelho e mata.
0223 percorria silenciosamente uma de suas opções de lazer – a
conquistou depois de preencher as 20.000 horas dedicadas ao
País e a seu Deus, trabalhando, se mantendo puro e compro-
vando com os registros de seu aparelho. Os trabalhos que lhe
eram dados variavam pouco – por ser jovem, sua força era muito
útil nos campos de trigo, cuidando das máquinas dentuças e
impedindo que falhassem.
Sua nova faixa desbloqueada de lazer o levava a um grande sho-
pping. Ali, diferente de antes, poderia comprar rações de melhor
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qualidade, e, quem sabe, conseguir experimentar um pouco
de café. Seu pai falava muito do café, do cheiro, da energia que
provocava. Ficou raríssimo depois da Reforma – dizia-se que era
perigosamente estimulante.
Ali dentro, sentiu-se grato por seu esforço. Com o aparelho na
amanda damasio

mão, continuou percorrendo as linhas que os levavam às lojas,


aos passeios destinados a ele e ao seu grupo, agora, prateado.
De segunda linhagem.
O passeio o levou até uma padaria específica. Sentiu o cheiro
do pão. Aproveitou esse momento. Há pouco tempo, uma nova
discussão veio à tona – a de que o olfato era perigoso e poderia
causar revoltas e revoluções. Seduzir. Os gostos e o tato, também.
Viu na missa. Fez um relatório sobre. Por isso, seriam entregues
aos indivíduos máscaras e luvas que lhe ajudariam a conquistar
a pureza e percorrer suas linhas em paz, sem distrações.
Pensou que a Reforma lhe trouxe meios de ir superar sua natu-
reza má do ser humano. Aquela de sentir coisas, de ser irracional,
sexual. Se deixar levar. Por sorte, não conseguia se lembrar muito
da época em que essas coisas feias lhe eram permitidas.
Ouviu dizer, ainda, sobre um tempo em que faixas não estavam
no chão e as pessoas poderiam percorrer os caminhos livremente,
sem saber pra onde estavam indo. Imagina, que confusão! Pra
onde iria, agora, se sumissem as faixas? Quem melhor do que o
próprio País pra te dizer aonde ir? Fica mais prático. As opções
são dadas e, com certeza, são as melhores.
Passou um tempo sentado nas mesinhas da padaria, ao ar livre,
tentando ignorar o cheiro do pão.
Recebeu uma notificação em seu aparelhinho.
Dizia para se apressar a percorrer as faixas que o levavam ao seu
dormitório. Caso contrário, poderia perder seus novos privilégios.
Nunca havia recebido ordem parecida. Com pressa, pegou o trem
para a Cidade Dormitória. Tentou se acalmar. Aqueles indivíduos
agitados também eram acusados de revoltosos. Irracionais. Sexuais.
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Suava frio. Trabalhava tanto pra se manter puro. Pra desbloquear
novos caminhos. Todos aqueles que Deus poderia lhe oferecer.
Mesmo assim, desesperou-se. Já fora do trem, resolveu correr
as duas quadras de distância que o levariam para seu quarto.
As faixas no chão não apareciam na tela do objeto. Tentou lem-

amanda damasio
brar-se dos caminhos e acabou se perdendo. Entrou numa rua
sem dormitórios, vazia.
O aparelhinho detectou sua rapidez e apitou muito alto. 0223 pa-
rou. Essas eram as diretrizes. E as notificações, seriam ignoradas?
Guardas ouviram o barulho e vieram ao seu encontro. Perguntaram
sobre sua pressa. Algumas pessoas que também voltavam pra
casa passavam, cumprimentando os guardas, ignorando 0223.
Eles viram a tela nua de faixas. O jovem tentou explicar que ten-
tava voltar pra casa pra entender o acontecido. Suava.
O espancaram até a morte ali mesmo. As pessoas continuavam
percorrendo seus trajetos.
Normal. Da rotina. Como um galo canta de manhã.
Afinal, o que faria uma ovelha perdida?

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anne sampaio

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anne sampaio
anne sampaio

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anne sampaio

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Habitar em mim
yasmin kozak

Abraço. Encontro entre corpos. Entrelaçar-se no corpo do outro que


se torna moradia, é habitar e oferecer habitação a um corpo: emerge o
novo corpo, entre o da artista e o do participante.

O​Abraço​se​confi​gura​por​meio​de​uma​troca​de​mensagens.​Os​cor-
pos entrelaçados se correspondem. Troca de sensações: a sensação
da respiração na nuca, o suor, os odores que se misturam. O toque, por
si só, aguça os sentidos, e é ainda mais intenso, quando dois corpos
estranhos entram em contato: os músculos se contraem; o olfato tor-
na-se mais apurado; a visão torna-se difusa, a reação é de se retrair.
Invasão da distância íntima, termo utilizado por Edward T. Hall (1977,
p. 108) para se referir à distância “de praticar amor e de lutar, confortar
e proteger”. A presença inquietante daquele estranho que não se faz
esquecer, provoca estímulos no corpo que funcionam como sinais de
invasão:

À distância íntima, a presença de outra pessoa é inconfundível e pode,


às vezes, ser esmagadora, devido ao grande aumento de insumos senso-
riais. A vista (muitas vezes distorcida), o olfato, o calor do corpo da outra
pessoa, o som, o cheiro e a sensação da respiração, tudo se combina
para assinalarum inconfundível envolvimento com o outro corpo (Op. cit.,
loc. cit.).

O momento do abraço é o ápice das sensações. As mensagens trocadas


se dão por meio da escrita na pele. A artista torna-se mensageira. Em
seu corpo, longe de seu campo de visão, o participante escreve uma
mensagem ao seu destinatário. A pele é uma grande página escrita.

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yasmin kozak
Entrelaçada ao corpo do participante, a artista conclui o rito com a pa-
lavra “ENTRE”, desenhada nas costas daquele que a habita. Entre. Lugar
impalpável. A sua existência depende da existência de outros corpos.
Preposição. Entre dois corpos, entre duas peles. É limite, é intervalo.
Entre.Verbo. Convite à habitação.

Deixa que minha mão errante adentre, atrás, na frente


Em cima, em baixo [sic.], entre.
(Elegia, Caetano Veloso)

​ pele se configura como um grande livro, onde as escritas são efême-


A
ras; desaparecem com o tempo. A página torna-se branca novamente,
mas a mensagem, escrita na pele da artista, não desaparece por com-
pleto, torna-se parte do corpo. Entre o volúvel e o infindável, a palavra
desaparece em sua aparência, mas se faz presente em sua essência.
A escrita é absorvida pela pele, que torna-se sua guardiã, até que se
inicie um novo rito. A mensagem pode então ser repassada. Trata-se
de uma tentativa de eternizar aquilo que se escapa: a palavra etérea
que, ao ser escrita, se imortaliza mas, ao ser escrita na pele, demonstra
a sua efemeridade, e logo se apaga. Incorporada à pele, a mensagem
dissipa-se em sussurros em direção ao ouvido do destinatário. Outro
ciclo tem início.

Abraço. Encontro entre corpos. Entrelaçar-se no corpo do outro que se


torna moradia...

Referências:
HALL, E. A Dimensão Oculta. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.
VELOSO, Caetano. Elegia. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/caetano-velo-
so/44723/>

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foto: Carolina Stonoga

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yasmin kozak
yasmin kozak

25
foto: Carolina Stonoga
foto: Mateus Gruber

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yasmin kozak
yasmin kozak

27
foto: M. Neppel
Gabriel, de verdade.
aquaib

Era noite de segunda-feira em Salvador, tinha saído para dar um passeio


que nesse momento estava quase acabando. Andando pela rua, ouvi o
barulho de uma bola quicar no paralelepípedo ou no meio fio, logo senti
algo na barriga, não lembro se frio, não sei se vazio. O susto foi inevitável e
eu tentava disfarçar. Ecoava na minha cabeça que eu deveria continuar à
andar. Receosa, pensei em voltar o caminho, ao tentar tirar a curiosidade
do que aconteceu ali, vi um menino brincando sozinho.
Olhei para trás e o dono da bola sorriu. Eu sorri de volta. Na tentativa abrupta
de ser gentil, ainda chutei a bola. Ele tinha postura de homem em face e
sorriso juvenil. Suas roupas não estavam tão limpas quanto as minhas. E
o encontro foi tão inesperado que no momento, apenas agradeci por não
estar ali sozinha. Do encontro à primeira fala, passou muito pouco tempo.​
“Tá indo lá pra baixo? ”, ele disse. E antes mesmo de que eu elaborasse um
pensamento, ele falou “eu vou pra lá também” e então, deu segmento.
A bola que ele trazia, acompanhava a inclinação da ladeira, e eu profunda-
mente, não achei que ele fosse acompanhar meus passos por ela inteira.
Andou atrás, tocou a bola, chamou de M ​ essi, ​e brincou. Por fim, já na pra-
ça, sentou ao meu lado, parecia mesmo uma criança inofensiva, um tanto
apreensiva, reparei que estava desarmado. Comecei a perguntar de sua
vida e o que ali ele fazia. Em meio à tanto interesse meu, de repente ele se
abria mas, ao mesmo tempo se fechava. Quando eu desistia de perguntar,
era aí que ele falava.
Falou que se chamava Gabriel e tinha 18 anos, falou também sobre sua
história e sobre alguns de seus planos. Depois de alguns minutos eu tinha
esquecido de reparar como estava o céu, nesse momento minha única
vontade era de ter as palavras dele anotadas num papel. Não sei qual foi a
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razão de existir tanto interesse de ambas as partes, eu só concordava com
ele e deixava que ele falasse.
De bola nos pés, ele não calçava nada. Falava sobre uma vida vivida de
verdade, talvez na carne. Talvez não fosse a verdade de Gabriel, mas era
um montante de verdade e dor, ainda na carne.

aquaib
Por mais que a verdade de Gabriel cisme e pasme, é a verdade de qual-
quer outro Gabriel, M
​ arcos, Pedro ou Daniel, q
​ ue roda por aí nessa cidade,
procurando e confiando em quem lhe sorri de volta ou cumprimenta,
contando e mostrando sua vida sem saber se o outro quer ouvir e aguenta.
Carnificina foi sua oficina e primeiro emprego, a bola veio depois, mas
antes mesmo dela passar pelos pés, ele sentiu o gelo do ferro nos dedos,
nas mesmas mãos que agora carregam cicatrizes, a bola e o medo. Em
cada minuto de conversa, Gabrielcontava um segredo. Se abriu, sorriu,
não sei se mentiu, mas sei que o Gabriel que se viu, de longe, já não era
mais o mesmo.
Trocava as bolas no meio do discurso, falou que trocou balas à mando de
quem mais alto gritava, sua bola estava em suas mãos, e essas estavam
bem sujas, não sei se suadas. No meio de suas falas, em seus contos agres-
sivos, ele disse sorrindo “ p
​ assa a bola ”​ , passei a bola ao Gabriel, que soltou
a bola na hora para segurar o que pediu. O peito apertava à cada palavra
de Gabriel, até que ele disse “ ​sabia que eu já segurei um fuzil?”
Gabriel já atirou em jaca, já se protegeu com faca e fez sexo sem segurança,
tem duas vidas de adulto no corpo de uma criança, ele também fez uma
criança e nem sabe qual o seu cheiro, sabe o nome porque carrega um
outro e o mesmo. Acredita que os problemas se resolvem com revolver,
se acha invencível, feito ​comigo ninguém pode.
Gabriel é ele e todos os outros aqueles que vivem e viveram aquilo que
ele contou, é todo menino de rua que já viveu o ódio e conhece pouco do
amor. É a mente subversiva de uma criança perdida, baseada numa vida
infantil resumida em exploração familiar e estendida. Gabriel é de verda-
de, verdade na carne e fora dela, a boca dele fala tudo aquilo que Gabriel,
Marcos, Pedro ou Daniel espera. Não sei se Gabriel tem muita esperança,
só sei que verdadeiramente Gabriel além de homem, ainda é uma criança.

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Tinta Fresca
isabela da cunha

E como escrever se não para alguém?


Escreves para si.
Há uma sombra que vaga o pensar do poeta
O último toque ainda impresso.
Os lábios, os olhos e o corpo na tela.
A mente, a vida – tinta.
Tudo pinta, descobre e encobre.
Desvenda-te.
Como o tempo sem relógio ou calendário.
Somos folhas brancas e rabiscadas
Tintura livre
Água que corre
Onda líquida
Espuma do mar que serpenteia na areia
Dissolve-se
Somos sensações.

30
Multidão

Escrever e imaginar faces


O poeta é apaixonado por um rosto que não conhece.

isabela da cunha
Deleita-se em seu corpo.
Sente seus lábios e olhos,
Inebria-se em seus cabelos perfumados e macios… que
deslizam pelos ombros nus.
É apaixonado pela imagem de um só corpo dentre a
multidão.
Entre todos os desejos, ele descreve apenas um:
Anseia por (re)encontrá-lo!

Roubo o Tempo
Escrevo para roubar o tempo
O tempo que me rouba
Me rouba e me devolve tudo.

Num paralelo, em um mundo particular,


De infinitos instantes;
Paisagens cálidas como beijos,
Profundas como um olhar pode ser.
O tempo é tudo, e perto dele, não somos nada, ao
mesmo tempo que…
Podemos ser tudo.
Somos o instante que se diz AGORA.

31
Fusão

Um momento só meu
Entre o êxtase e a loucura de dois mundos
isabela da cunha

Entre a fusão e o silêncio


Um sussurrar
Uma chama que é fogo e desmoronamento
Poemas e canções no calor da noite
Uma luz tênue e suas paredes
Luzes e histórias a ansiar
Uma dialética insaciável
Um fulgor intermitente
Este eu que só pertence a mim.

Retrato de Luz

Pois a luz que de ti emana


Retrata a doçura que em teu peito dorme e,
Se faz gesto em seu íntimo calar.

Presente

As estações
O mar aberto
Um flash que alcança quilômetros em um segundo.
Percorre estradas
Trilha canções
Eternizando sensações e gostos.
ESTE momento, é o que temos de mais valioso.

32
isabela da cunha
Encontro

Não sei em qual existência já havíamos marcado este


encontro…
Eu adoro a maciez alva da tua pele
O perfil do teu sorriso
A mordida presa nos lábios
O cheiro que envolvem as voltas que formam teus ca-
belos
Tua nuca
Tuas costas…
Te tenho em mim
O lado escuro da lua.

Todos temos um mistério


Que permanece encoberto
Como a beleza oculta da lua
O mistério paira ardente
No querer que não se prende
Transporta, enlaça e solta
Como o espaço pontilhado de estrelas.
Brilha!
Brilha como a dança dos corpos, ou dos olhos?

33
isabela da cunha

Singular

Há momentos em que são difíceis descrever,


pela singularidade do encanto que se eterniza na me-
mória.
O tempo é presente a ser vivenciado no presente, na
íntegra.
É “chama bela e alta”, do sorrir brilho cálido do
olhar.

Devaneios

O que se faz quando o poema encontra o lábio?


Se apaixonar diante da estante…
Caminhar com sua alma antiga a viver várias vidas
pela cidade que venta.
O calor da xícara e o pensar,
Transcendem lembranças não escritas,
No limiar irrequieto do pensamento.

34
Mergulho

O mar à espera de um mergulho.


Os bancos à espreita de histórias.

isabela da cunha
Enche teu peito do ar doce e gelado da noite.
Liberta o âmago.
Dance suave como as partículas nas luzes.
Tenha o repouso calmo das folhas que beijam o chão.
Tenha a ousadia prateada do luar!

Sensações

Encantos do tempo.
Ter a xícara fumegante nas mãos gélidas,
para trazer à tona a lembrança íntima do inverno.
Do frio cobrindo a face
Do vento descendo as ruas
Do ar pincelando poemas nos vidros
Das gotas que deslizam e limpam
Da intensidade das cores no céu
Dos perfumes que marcam o tempo
Das trilhas sonoras irrequietas do pensamento.
O ápice do sentir.
Ou dos sentidos?

35
A PERFEIÇÃO É SER QUEM É
mateus gruber

Meu coração sorri para todos no planeta, a minha alma se eleva

ao ver qualquer um, sinto o amor vir da menor das criaturas, seja

fechando os olhos quando o vento toca meu rosto, seja quando

a água da chuva toca meu corpo. Não importa a cor da sua pele,

se você sabe palavras estrangeiras, se o seu cabelo não é liso, se

você não é musculoso, finalmente é possível se amar, porque a

perfeição é ser quem você é.

36
A COROA NÃO MACHUCA MAIS

mateus gruber
A minha própria coroa, construída com a essência das estações,

prevê que a era futura será muito boa. Afirma no topo da cabeça,

invicta, que o amor chegará a todos os corações. Ninguém mais

se sentirá machucado ou ferido. Os sorrisos já partidos serão

consertados, reconstruídos. A coroa dessa rainha, nunca deixará

de brilhar a majestade neste mundo dos homens postiços.

37
Expectativas para uma artista
de verdade
natasha de albuquerque

O que é ser uma artista em tempos de crise?

Trabalhadora insana como uma artista


Faz da vida uma arte como uma artista
Produz tudo sozinha como uma artista
Está antenada no mundo como uma artista
É politizada como como uma artista
Lê todos os livros de arte como uma artista
Se diverte como uma artista
Têm todo tempo do mundo como uma artista
Faz milagres como uma artista
Tem amigos como uma artista
Só trabalha como uma artista
Só se diverte como uma artista
Dá abraços quentes como uma artista
Sabe dialogar com todos como uma artista
Se expõe como uma artista
É original como uma artista
Usa roupas bacanas como uma artista
Faz muito sucesso como uma artista
Tem técnica como uma artista
Tem ideias geniais como uma artista
Executa suas ideias geniais como uma artista

38
natasha de albuquerque
Uma artista sempre tem uma carta na manga,
uma ideia pronta e 10 séries para apresentar.
Artista não precisa de dinheiro
não precisa ir ao banheiro porque já caga em performance
e sabe que todo mundo vai olhar.
A criatividade enche o tanque de gasolina
que leva pra todas as vernissages e todos os eventos
de arte.
“Não custa nada dar uma ajudinha no evento só pra se
divulgar”
Artista só come e bebe de graça
porque artista de verdade não tem conta pra pagar.

Para ser artista precisa:


Ser uma pessoa muito evoluída como uma artista
Saber resolver os problemas do mundo como uma artista
Se dar muito bem como uma artista
Saber compreender o outro como uma artista
Saber decodificar o mundo como uma artista
Ser a antena do mundo como uma artista
Se virar como uma artista
e estar muito contente por ser artista

https://vimeo.com/343568339

39
ué prazeres

40
MORTA
41
42
43
foto: Lucas Colossal
É O ESTADO

DELA
44
ué prazeres

45
Ensaio de uma crítica sobre a crítica
emerson f. oliveira

Se existisse uma matriosca de no- minha jornada, o ensaio saiu dos


menclaturas, qual seria a boneca palcos, instalou-se na prosa e seu
maior, o jornalismo ou a literatura? conceito se tornou algo que não é
(Neste caso, considera-se o jornalismo absoluto, o tempo pode desmanchar
clássico, escrito). A resenha estaria ou remodelar, a partir de ação natu-
dentro da crítica ou as duas seriam ral, do próprio autor ou de outrém. A
a mesma boneca? Na tentativa de partir disso, percebo ensaio e crítica
responder precisamente, eu entraria como práticas muito semelhantes,
e provavelmente me perderia em distinguindo-se em suas finalidades.
outras analogias, em um labirinto
Enquanto recurso literário de divulga-
de contextos linguísticos, históricos
ção e análise de trabalhos artísticos,
e regionais, portanto sigo a linha em
a crítica se tornou fundamental para
que a relatividade e a fluidez ameni-
zam a preocupação por buscar um acesso, divulgação e debate. Quem não
tratado absoluto para tais definições conhece um trabalho, é apresentado
(“tratado”, aliás, outro termo literário a ele. Quem precisa apresentar seu
apto à variações). Massaud Moisés trabalho, possivelmente tem espaço.
certamente definiu tudo isso de for- Quem quer questionar, pode adquirir
ma direta, séria, concisa e coesa, sem argumentos.
redundâncias nem loopings. A crítica, assim como o ensaio, pode
Em meu primeiro contato com “en- assumir uma narrativa pessoal sem
saio”, impregnou-se um significado uma obrigatória demanda por em-
para a palavra a partir de minha basamento empírico, teórico ou de
experiência até então, que limitava algum outro modo científico, porém
o termo a uma questão teatral. Dessa prezando por senso crítico, ético ou
forma, ensaio é uma tentativa — não racional, ainda que opinativo. Este
definitiva — de preparar e aprimorar formato literário-jornalístico dispensa
uma obra cênica. Posteriormente em referências bibliográficas, epígrafes ou
46
“como afirmou Foucault”. A ausência questão da adaptação ao meio ambiente
de embasamento e referencial teóri- virtual. Citaria o evolucionismo dar-
co torna o texto ainda mais passível winista ou afim para construir uma
de refutação. Sendo uma impressão analogia, mas me falta leitura para
particular, a presença da opinião um paralelo em relação às demandas

emerson f. oliveira
particular atesta o diferencial entre midiáticas contemporâneas. Além
uma crítica e uma tese, porém o hibri- de planejar o futuro e buscar novas
dismo literário não isola os modelos fronteiras, uma solução é adminis-
de utilizarem recursos distantes de trar de forma exemplar o que se tem
seus postulados. Os conceitos con- (conteúdo e público), desde que o ma-
vergem e divergem conforme quem, terial seja honesto e relevante (para
onde, quando. quem?). Por outro lado, na imprensa
clássica, a crítica depende do difusor
*** que depende de investidores, patro-
cinadores e apoiadores para manter
Como material jornalístico, a crítica a produção. É válido considerar o
gera demanda por acesso, tornando o paradoxo no qual o jornalismo clás-
veículo dependente de um conteúdo sico se encontra: manter a publicação
popular, seja crítica, resenha, ensaio viva enquanto público e concorrên-
ou a nomenclatura de preferência au- cia (principalmente novas práticas
toral. De qualquer forma, seja em um jornalísticas) migram cada vez mais
portal de notícias online ou revista intensamente para mídias digitais.
impressa especializada, indepen- Sim, é possível sobreviver nos dois
dentemente do tipo do veículo de ambientes, mas seria manter deter-
comunicação, são necessários diversos minados conteúdos online restritos
fatores para garantir a sobrevivência a assinantes a forma mais rentável,
da mídia, como acessos, assinaturas, longeva e chamativa de gerir o projeto?
engajamento, fidelização, feedback, A internet pode servir como labora-
entre outros fatores. Logo é impor- tório para novos autores, permitindo
tante que o conteúdo seja alcançável prática, experimentações e compar-
e interessante ao grande público ou tilhamento de trabalhos em plata-
nicho especializado. Seria essa de- formas gratuitas e independentes,
manda por criar conteúdo popular mas o retorno financeiro é baixo se
uma tarefa dos autores ou veículos de a escrita permanece assim, como
comunicação? Resta, na verdade, a singelo portfólio. A permanência nes-
47
sas mídias resiste como espaço para da obra, porém, se alguns temas são
publicações autorais (considerando nebulosos para o público em geral,
que o autor produza conteúdo com não há tanta força nessa forma de
carteira assinada em outro veículo) análise. Pode soar como pedantis-
ou simples hobby. mo se vangloriar intelectualmente
emerson f. oliveira

Apesar de pesares, a busca por solu- em certos casos, ​verbi gratia usar
ções de sobrevivência da crítica, do expressões latinas ou parafrasear
jornalismo literário, cultural e geral, Heidegger numa resenha sobre Lars
não deve ocupar mais tanto tempo e von Trier.
espaço neste ensaio. Divagação flutuante ao redor de um
objeto sem restrição criteriosa ou
*** padrão de movimento, frases soltas,
desconexas e/ou subjetivas.
Sobre a questão estrutural e narrati-
É um equilíbrio delicado formular
va, uma crítica-resenha pode tomar
um modelo ideal para uma resenha.
dois rumos distintos, um descritivo,
outro analítico, ou tudo junto.
***
Descrever a história, relatar sinopse
e trama, revelar spoilers leves ou As artes plásticas, visuais e performa-
graves conforme a preocupação ética tivas, contemporâneas principalmente
do autor, pode causar curiosidade ou (a performance pode ser vinculada a
repulsa do público, seja por temas rituais tribais, e até cênicos, adqui-
atraentes ou desprezíveis. rindo o status de arte no século XX,
A versão analítica em si tem duas portanto “performance contempo-
vertentes, a íntima, do autor enquanto rânea” pode soar como pleonasmo),
leitor (aqui, “leitura” se enquadra aparentam-se demasiadamente erudi-
além da literatura, mas também na tas para o grande público, causando
percepção interpretativa, seja de li- um certo isolamento desses temas
vro, filme, produto, o que seja) e sua no jornalismo cultural, dependente
experiência; e a dimensão acadêmica, de alcance e popularidade, recur-
apresentando referências explíci- sos inalcançáveis devido ao pseudo-
tas da produção da obra ou aquelas -eruditismo classista que transpira
percebidas, também possibilitando erroneamente a arte contemporânea
citações para justificar a interpretação (novamente reforço que a utilização
48
desta nomenclatura se foca em per- A crítica e a reflexão são substituídas
formance, artes visuais e plásticas, por distração e imediatismo. Não há
imponho, portanto, a distinção en- protesto contra o entretenimento, in-
tre estas manifestações artísticas e dústria cultural, mercado de consumo
cinema, literatura, música e afins, etc, não, visto que o caos constante

emerson f. oliveira
ainda que tudo seja contemporâneo). da contemporaneidade sutil e cinica-
Tal distanciamento, como me disse mente nos induz a buscar formas de
Yasmin Kozak, artista curitibana e distração. Álcool, Arte, academia… A
amiga, ocorre como efeito reverso dos emergência inspira o maior número
movimentos artísticos no século XX, de atividades com o menor gasto de
que pretendiam se aproximar ainda tempo para viver um dia.
mais do público, tirar a arte das mol- A telefonia móvel surgiu como uma
duras, deixar tudo mais acessível, solução para sintetizar todas as de-
mas obtiveram o oposto, por provável mandas diárias pessoais, profissionais
efeito de carência de contexto, apro- e, principalmente, sociais. Por exem-
fundamento, bagagem teórica ou con- plo, o s​ crolling apresenta um método
tato anterior com formas similares distrativo e terapêutico de desligar a
de arte. cabeça e entrar num transe em piloto
Além disso, a arte, na era digital, automático em que rapidamente se
tornou-se, de certa forma, item de os- percebe e analisa pouco do material
tentação, concebido pelo status social, exposto em uma rede social.
para que outros vejam e admirem, Não há tempo para a contemplação.
não a arte, quem compartilhou pelo Enquanto um filme como Roma de-
simples contato superficial com um manda atenção e paciência, no mesmo
produto artístico. Contudo, por vezes, espaço de tempo é possível navegar
algumas pessoas não têm a intenção por várias redes sociais e grupos de
de esbanjar condescendentemente mensagem, resolver questões acadê-
intelecto, todavia o ato de mostrar micas e profissionais. Prioridades. O
determinados conteúdos é estereotipa- imediatismo e a enxurrada de infor-
do como ostentação rasa, desprezando mação e conteúdo aumenta o critério
se há conhecimento ou engajamento para seleção de ocupações e procras-
real pelo que se expõe. Não é neces- tinações, portanto, se uma pessoa não
sário interpretar, seja um não-objeto se interessa por tal tipo de obra, não há
ou uma pintura gótica, basta mostrar. razão para ler sua crítica. Cito Roma
49
não como obra absoluta do cinema Cardoso, Paul Beatty, Albert Camus e
emerson f. oliveira

contemplativo ou filme do século, Clarice Lispector, quiçá por efeito de


mas, a partir de opiniões alheias, proximidade e tendência à populari-
a maior parte dos comentários de dade de conteúdos anglófonos-estadu-
quem conheço sobre o filme orbitam nidenses, causando estranhamento
entre o tédio e a sonolência. Não há a outras línguas e linguagens. Não
problema em não se ocupar com a há nesse antagonismo uma crítica
contemplação, preferências variam. sobre superficialidade de temas da
literatura “popular”, mas existe uma
A rotina social atual em geral di-
diferença na produção narrativa,
minui o tempo para leituras. Nesta
em como se conduzem histórias e
subtração, não se inclui a literatura,
o quanto elas se aprofundam em
especificamente a comunidade de
questões psicológicas, subjetivas ou
pessoas que leem acima da média
desconexas.
(2,43 livros inteiros por ano, segundo
a pesquisa Retratos de Leitura no Todo mundo tem pressa, mas a leitu-
Brasil, divulgada em 2016). Além de ra, a interpretação e a contemplação
quem trabalha com mercado editorial, requerem tempo. Prioridades. Porém,
pesquisa e crítica, esses humildes tanto a produção quanto a crítica
cidadãos mantém o hábito de ler ro- ainda são prioridades para algumas
tineira e religiosamente, um estilo de pessoas.
vida engajado, aplicando nas leituras
mais tempo e foco. Aliás, dois livros ***
é muito pouco para quem lê muito,
muito pouco. Quem lê Ken Follet, A crítica opinativa é, por vezes, dou-
Jojo Moyes, Stephen King e Agatha trinária inconscientemente, porque
Christie, entretanto, supostamente, o leitor, condicionado ao apreço pelo
não tem paciência para Dulce Maria autor da resenha, antecipa seu pró-

50
prio julgamento, sem discernimento cessitam de mais tempo para redigir

emerson f. oliveira
próprio, nem flexibilidade para um um texto, tornando incompatível a
conteúdo distante de sua zona de vivência em um mercado que exige
conforto. conteúdo imediato e constante.

A relatividade entre bom e ruim, e a Deve-se considerar também as ex-


avaliação numérica, condicionam o periências pessoais e profissionais
leitor a um julgamento antecipado. conforme o percurso de cada crítico.
Deve-se considerar igualmente no O desconhecimento diante conceitos
julgamento a conjuntura na qual ou perspectivas relacionados a obra
certa obra foi percebida, pois talvez e ao mundo podem deslegitimar um
não houvesse sintonia entre espec- texto tempos após sua produção e
tador e obra, desconfigurando uma publicação.
outra possível interpretação. Ade-
Em suma, criticar a crítica é relevante
mais, dificulta-se a criteriosidade nas
não apenas a quem produz, opina e
avaliações quando filmes recebem
consome, é uma prestação de serviço,
a mesma nota, apesar de diferenças
pois a produção e a análise de arte e
em estética, formato, narrativa, geo-
afins contribui para novas percepções
grafia. Contudo, se convém ao autor
sobre o mundo. Deve-se, de qualquer
utilizar métodos como dar estrelas
forma, compreender o lugar onde a
ou recomendar que o público não
obra foi produzida e está inserida na
experimente tal obra, pratica-se a
sociedade e sua relevância cultural,
individualidade crítica, opinativa,
narrativa, visual etc. Em caso de di-
como queira.
vergência ideológica ou estética entre
A crítica acadêmica requer pesquisa, opinião e conteúdo, pode-se apresentar
antes disso, de conhecimento refe- razões para refutar o objeto e/ou seu
rencial, portanto muitos autores ne- movimento.

51
giordana ferro

Um sonho pousou no quarto


Estranhei o ocorrido,
Havia muito tempo que o quarto estava vazio
E por isso, intrigada, o observei.
O cômodo, que antes era vazio
Foi modificado com a sua inusitada presença
Vi-me apegada ao sonho
E decidi que não o deixaria partir
pensei em fechar a janela por onde ela havia entrado
Pensei em alimentá-lo, acarinhá-lo,
Porém, quando vi...
ele partiu
antes mesmo que eu pudesse decidir o que fazer primeiro

________________________

Ah, se você descobrisse


Que o caminho
para o meu coração é
Tão simples...
Que a chave está a seu alcance...
Que as palavras cabalísticas
Estão na ponta da sua língua...
Mas longe de mim tal loucura
De revelar que o caminho é a poesia
E o resto... O que era e onde estava?
Do que estamos falando?
Coração? Que coração?

52
Queria eu poder pegar com as mãos
Toda a angústia e medo do povo
E levar para longe da sua mente,

giordana ferro
Aliviar as dores dos marginais
Pois, afinal, não sou eu um dos tais?
“Aliviai as cargas uns dos outros”
Porque a caminhada árdua é,
Para quê olhar para trás?
Andarás tu de marcha ré?
Afinal, o que somos aqui na terra?
Pó e orgulho?
Deus!! Tem misericórdia de mim!!
O porquinho-da-índia fugiu
Recusando as minhas ternurinhas.

________________________

“Eu quero aquela estrela”


Disse meu coração
A partir daí não tive mais sossego
“Eu quero aquela estrela”
Era só o que me pedia
E infelizmente, não podia atender seu desejo
Comecei a adoecer:
Os dias não tinham mais cor
As noites não tinham mais paz
Meu sorriso se foi
Nada tinha graça
”Eu quero aquela estrela”
Não aguentava mais tanto lamento
Deixei meu coração partir
Atrás da bendita estrela.

53
E ela resolveu partir,
Em seu coração arquitetou o plano,
Simplesmente iria sair,
Iria embora para não mais voltar.
giordana ferro

O que ela queria?


Nem mesmo ela sabia
Para onde iria?
Para qualquer lugar
É uma peregrina em terra estranha,
Não é amada, não é querida,
Seu jeito irrita, não se enquadra,
Mas ela tem um plano de fuga,
Ela vai embora e não voltará
Não darão falta dela no dia em que partir,
Não levarão em conta o seu tempo de servidão,
Então, assim que soar a buzina
Ela entrará no seu período de Jubileu,
Naquele dia ela ultrapassará a porta,
E pode ser que a chamem de volta.
Mas será tarde demais,
Porque da porta para fora ela terá um outro nome.

________________________

Eu gosto dos meus cabelos,


Eu gosto dos seus cabelos,
Eu gosto de cabelos.
Qual é o problema?
Prefiro testemunhar o vôo de dois pássaros
Do que ter um na mão
E priva-lo da liberdade,
Eu não seria mais livre
Prendendo quem nasceu
Para abraçar o céu”.

54
Paredes brancas,

giordana ferro
Baú de vime,
Chão gelado,
Brisa que corta,
Sábado amado,
Mundo do avesso,
Vejo pessoas andando
No teto da sala,
Enquanto o tempo segue
Eu busco lembrar
Das minhas ideias de criança.

________________________

Dolorosos são os dias


Em que os versos são concebidos,
Eles ficam no peito,
Dá uma tristeza... Um sono,
Uma paixão...
São tristes os dias apaixonados.
Nada tem graça,
Tudo faz sentido,
E nesse estado contraditório
De apatia e paixão,
No ápice da melancolia,
Nascem os versos.
Dói ser poeta

55
giordana ferro

Dedica-me palavras doces


Tão doces quanto as mangas,
Quem sabe assim,
Por um pouco de tempo,
Eu seja tão feliz
Quanto uma criança que espera
O cumprimento de uma promessa

________________________

Da janela do ônibus
Eu vejo o céu nublado,
Com o coração em pedaços
Fiz uma prece,
Logo a chuva fria adentrou a janela,
Alívio me trouxe as lembranças
Do meu tempo de criança,
Dos dias chuvosos,
Da vontade de tomar banho de chuva,
Do frio de doer os ossos,
Lembro do vento
Que vinha cantando
Trazendo o beijo
Que ressecava os lábios.

56
giordana ferro
Ela queria abraçar o vento,
Ela queria apagar o sol,
Ela queria prender o tempo,
Em um pequeno anzol.

________________________

Esta será a última noite,


Noite que irá parir o último sonho,
Não espero que amanhã
Eu torne a este lugar,
Este será o último copo,
Beberei até a última gota da indiferença,
E que isso machuque tanto
Que me faça perder os sentidos...
... perder os sentimentos...
Esta é a última vez que penso,
Me jogo de peito aberto no deserto,
Na boca de um peixe,
Na fornalha ardente,
Na cova dos leões,
Quem sou eu, meu Deus?
No ápice da minha angústia
As palavras somem,
Minha oração é só sentimento,
Só Jesus Entende.

57
Eram muitos
xarxel

Quando o carro trombou em Mia o celular em sua mão voou


para o chão e quebrou. Houve aquele choque inicial em que to-
dos pararam para olhar o acidente, e pareceu que o som cessou
por um segundo. Em seguida, vários sussurros: “Ela morreu?”,
“Alguém conhece ela?”. Sussurros que, de tão volumosos, for-
mavam um grito ininteligível; o abafado que a atropelada não
teve a oportunidade de gritar. Não ouviu o carro buzinando, pois
usava fones de ouvido, e não viu o carro vindo, pois olhava para o
celular. Agora estava caída no chão, com seu jeans rasgado em
seus joelhos sangrando.
A motorista, em choque até então, saiu do carro e correu até a
moça. Tocou-a delicadamente, esperando reação. Uma multidão
já se formava. Algumas pessoas com o celular apontando para
a tragédia, gravando. A motorista tentou examinar quais partes
mais sofreram com o impacto, e no meio disso, Mia mexe a ca-
beça de leve.
— Moça, você tá bem? Você passou no meio da rua, eu tentei
buzinar, mas você não saiu da frente, eu tentei frear, mas já não
dava tempo, desculpa, você tá bem? — disse a motorista.
Ainda meio zonza, Mia ganha consciência do tanto de pessoas
que estão em sua volta. Sente um pequeno desespero. Multidões
a assustavam. Viu uma moça que estava particularmente perto
e se deu conta de sua pergunta.
— Eu tô bem, foi só um toquin--Ai! – sentiu que seus cotovelos
tinham servidos para amortecer o impacto do para-brisa e doíam
como o inferno. Mal conseguia mexê-los.
— A gente devia chamar a ambulância, espera só um minuto –
disse a motorista.
58
— Não! — exclamou Mia – Olha, não precisa de ambulância, eu consigo me
levantar e pedir um über — subiu lentamente, com extrema dificuldade para
articular os braços e viu seu celular destruído, jogado toscamente no asfalto.
Não conseguiu sustentar-se por muito tempo e tombou, sendo segurada
pela motorista.

xarxel
— Não, não. Você vai pro hospital, sim. Eu moro aqui perto, vou te levar para
minha casa e a gente espera lá.
Mia não tinha muitas opções, não conseguia andar sozinha. Aceitou, porque,
pelo menos assim, não ficaria diante tantas pessoas, e a ansiedade que lhe
acometia começava a aumentar e a deixar ansiosa. Sentia que ficava sem ar.
Na casa da mulher que lhe ajudava, pensaria em algo.
A motorista, cujo o nome era Martha, realmente morava perto, tanto que, não
fosse as lesões de Mia, poderiam ir a pé. Mia descobriu, também, que Martha
era enfermeira que voltava de seu trabalho. A enfermeira tentou consolá-la
dizendo que se conseguia andar e se apoiar com os braços não tinha quebrado
nada. Ela falava como se fosse boas notícias, mas, pela situação, parecia mais
sarcasmo. Dizia sobre muitas coisas mais, que Mia não conseguiu concentrar-
se em ouvir. Ficava pensando na multidão que lhe encarava a pouco. Além
disso, seus machucados pulsavam dor, agora que a adrenalina ia embora. Por
isso, não falou muito, não conseguia manter uma linha de raciocínio lógica.
Também, o menos que essa desconhecida soubesse dela, melhor.
Ao chegar à casa de Martha, estranhou. Todas as paredes eram cobertas por
um papel de parede que lembrava pinturas rupestres, com pequenos dese-
nhos de humanos em posições diferentes. O que não se igualava às pinturas
antigas, era que não havia animais de caçada, ou fogueiras, ou árvores, ou
lanças. Eram apenas humanos todos virados, respeitosamente, para uma
figura redonda brilhante e enorme que parecia ser o Sol. Vários desses Sóis
podiam ser encontrados em diferentes paredes da casa. Mia foi colocada
no sofá da sala, ofegante. A decoração tirava sua tranquilidade. Embora não
fossem humanos reais, ela julgava ser mais do que o necessário. O sol, fora de
casa, se punha enquanto ela encarava, imóvel, a parede. Estava zonza de dor,
que lhe alcançara a cabeça. Sentia-se girando, com a noção de profundida-
de confusa. Teve a sensação de ver os homenzinhos na parede se mexendo.
Então fechou os olhos por um segundo.
59
— Mia! — disse mais fortemente Martha. — Você tá aqui comigo? Eu fui al-
cançar o meu celular para ligar para ambulância e quando voltei você tava
parada e de olhos fechados.
— Não, você não pode ligar para a ambulância. – respondeu Mia, retomando
conta de si. — Olha, você não é uma enfermeira? Por que você não faz algum
xarxel

tipo de reparo em mim? Sei lá, não precisa ser tão elaborado nem nada, só
precisa ser bom o suficiente pra eu voltar para casa. Eu não quero ir para o
hospital, é uma escolha pessoal, ok? Não ligue para uma ambulância.
— Não é uma boa ideia. Você realmente deveria ver um médico melhor prepa-
rado do que o que eu tenho aqui em casa. O que aconteceu com você pode ter
sido meio grave. — Na fala de Martha, Mia pode perceber um tom de desafio.
— Martha. É Martha, né? Escuta Martha – fez o possível para aproximar-se dela
— eu sou meio que ninguém. Eu prefiro ser ninguém, não gosto de chamar
atenção. O motivo não importa pra você, nem eu gostaria de te falar. Mas, se
você ligar pra ambulância eu vou sair da sua casa. Eu não tenho identidade,
nem CPF, sou invisível dentro da sociedade. Por lei, eu não existo. Isso nunca
pega bem. Isso dito, eu também sinto muita dor. Então se você puder me
ajudar seria maravilhoso. Se não puder tudo bem, eu saio daqui agora, mas
eu não posso ir pra hospital nenhum.
Martha fazia cara de quem acaba de levar uma bronca, emburrecida, mas,
também, decidida — Ok. Eu vejo o que eu posso fazer com o que eu tenho
em casa... Mas você vai ter que passar a noite aqui. Já tá ficando tarde e você
provavelmente vai precisar trocar alguns curativos amanhã.
— Não, não vai precisar de tudo isso.
— Eu insisto. Não ir para um atendimento apropriado já é ruim o bastante.
Amanhã de manhã, quando eu estiver saindo pro trabalho eu te levo, pode ser?
Mia não teve a energia para discutir. Martha estava certa. E com o celular
quebrado, ela não poderia nem ligar para algum conhecido vir lhe buscar.
Consentiu com a cabeça e a encostou no sofá. Não era o plano ideal, mas era
um plano.
Olhou para o teto e percebeu que o papel de parede ia lá, também. Estra-
nhou, uma vez mais. A casa toda era com esses homenzinhos. Era um gosto
estranho, uma sensação estranha.

60
Mia pensou que Martha pudesse ser devota a alguma religião. Cristã? Não,
aquilo era muito diferente. Era quase como uma ilusão de ótica olhar para
isso, na situação que Mia se encontrava. Sempre dava para ver de soslaio uma
parte na parede que estava vazia, cabendo mais homenzinhos, mas quando
você olhava para a parte do soslaio, ela estava preenchida por vários. Então,

xarxel
de canto de olho de novo, via-se um lugar vazio, e o ciclo se repetia.
Enquanto Martha fazia curativos, a noite começava a aparecer. Teve que tirar
algumas pedrinhas do joelho ralado de Mia para fazer a atadura de gaze. Sobre
os cotovelos não tinha muito que ser feito, toda a área estava inchada. Passou
um gel com cheiro bem forte e recomendou que não o mexesse muito. Tam-
bém preparou uma janta para comerem. Mia não tentou ajudar, mas lhe fez
companhia na cozinha. A cozinha era, também, cheia de homenzinhos. Ela,
interessada e desconfortável, resolveu perguntar do que se tratava aquele
papel de parede.
— Ah, sim. Às vezes eu me esqueço que é algo estranho pras pessoas. – disse
Martha. – Só uma correção, não é um papel de parede, eu mesma pintei tudo.
Não vou dizer que foi um processo rápido, mas quando eu vejo tudo isso, hoje
em dia, me orgulho. Eu sou uma pessoa espiritual. No meu quarto, eu tenho
minhas ferramentas de rituais e tudo mais... Essas imagens, elas não signifi-
cam devoção a algo em específico, mas algo iluminado, que traz redenção, e
que todos os humanos almejam isso. O ateu comumente acredita na ciência,
o cristão a santidade, o budista o equilíbrio... Não importa do que é chamado,
é algo. Acredito nisso. Tem me ajudado muito a conquistar meus objetivos, a
manter o foco. Tudo que tem acontecido, me coloca um passo a mais na di-
reção certa. Você acha que é coincidência você parar aqui hoje? Eu não acho.
Acho que tudo acontece por algum motivo. Eu senti que você era diferente.
Pode-se dizer que eu não sou sua típica pessoa normal, também, ou eu teria
mandado você embora. Por isso ofereço a casa por uma noite.
Mia sentiu-se intimidada pela fala de Martha, sem razão aparente. Não era
uma pessoa de fé, ela própria, mas a convicção com que eram ditas aquelas
palavras demonstrou autoridade no assunto. Talvez fossem todas aquelas pe-
quenas figuras, abarrotados na parede. Parecia uma multidão infinita. Porque
uma multidão? Parece que foi feito para que Mia se sentisse desconfortável.
Sentiu que a cozinha tinha diminuído. Uma pontada forte lhe doeu na cabe-

61
xarxel

ça, a dor não estava lhe deixando em paz, e o ambiente macabro, iluminado
por uma luz meio amarelada, não ajudava. Tudo era alinhado para que Mia
sentisse uma sensação de vertigem, pois não conseguia achar um lugar na
parede para fixar os olhos onde não tivessem pinturas. Sempre achava um
cantinho no canto do olho, mas era só olhar para lá e ele estava preenchido.
Ficar virando a cabeça dessa forma só piorou a tontura que sentia, e agora
sua cabeça recebia pontadas de dor. Começou a ficar ansiosa novamente.
— Hein! Tem ou não? Mia, eu não tô gostando dessa situação. Tô perguntan-
do se tem algo que você não come? – Mia focou o rosto de Martha e pôde
respirar. Martha vestia uma risada piedosa.
— Me deixa ligar pra um hospital.
— Não! Eu tô ok. Só me dói um pouco a cabeça. Você tem um neosaldina ou
um dipirona? Eu vou ficar bem.
Martha lhe deu um remédio em silêncio. Mia tomou ele, e também um copo
de água gelada. Assim que o jantar ficou pronto, comeram, sem trocar mui-
tas palavras, e Mia foi logo em seguida para o quarto de visitas deitar. Sentia
que não ia conseguir ficar muito tempo acordada de qualquer jeito. Martha
disse para lhe chamar caso qualquer coisa acontecesse, apagou a luz, fechou
a porta e deixou Mia no quarto, sozinha.
Mia ficou de barriga para cima, com seus dois braços esticados. Queria me-
xê-los o menos possível, ainda doíam. Tentou respirar algumas vezes para se
acalmar, mas tivera um dia que não acabava nunca. Queria dormir, acordar
no dia seguinte e voltar para sua casa. Esse papel de parede, ou melhor, essa
pintura, já tinha dado o que tinha que dar, deixava ela extremamente des-
confortável. Dava graças a deus que a luz estava desligada. Assim não podia
ver mais nada.

62
xarxel
Só o teto sem luz. O negro do escuro. Essa coisa que não tinha muita dimensão.
Teve uma sensação estranha sobre o teto. Não conseguia vê-lo e não tinha
certeza de quão alto estava. Ele parecia subir e descer, quase como numa
dança. Mia ouviu Martha sussurrando algo, embora não entendera o quê.
Depois Martha riu, e sussurrou mais. O estranho foi que em momento algum
Mia conseguira desvencilhar seu olhar do teto. O teto lhe prendera a visão, em
sua dança. Fez força para deixar de vê-lo, tentou colocar a mão sobre os olhos
ou virar o rosto, mas seu corpo não respondia, estava fraco demais. Começou
a ficar ansiosa. Tentou fechar os olhos e conseguiu, mas assim o teto descia
como que para esmagá-la. Abriu-os na hora. Começou a ficar ofegante. Por
que não conseguia se mexer? Simplesmente parar de olhar para o teto sem
profundidade? Tentou fechar os olhos novamente, mas já não conseguia
mais identificar quando estava com as pálpebras abertas ou fechadas. Tudo
era escuridão que cegava. Percebeu que não sentia as extremidades do seu
corpo. Nesse momento, nem mesmo os olhos, conseguia mexer. Tornou-se
prisioneira completa daquela falta de dimensão. Tentou gritar, e viu que não
tinha voz alguma. Também não conseguia ouvir mais nada. Entregou-se ao
medo, pois era tudo que conseguia sentir naquele momento. Nem mesmo
sentia-se deitada; perdera agora o tato. Tinha se emergido aquela escuridão,
não sentia mais nada seu, era, assim como todo o resto, tudo; ou nada. Era
inacabável, sem dimensões, como o teto. Não era mais Mia, apenas era.

Depois de um tempo, que poderia ser milésimos de segundos ou milhares de


séculos, o tudo tornou-se uma iluminação igualmente cegante e interminável.
Sentiu cheiro de tinta fresca.

63
Mortificação
xarxel

Meu pai costumava ter uma opinião bem forte sobre todos os
assuntos. Homem bem assertivo, o que ele falava era a verdade,
não tinha muita paciência para pessoas que discordavam dele.
Eu quando criança era bastante passivo as coisas que ele falava,
escutava quase sempre com brilho nos olhos de estar aprenden-
do coisas novas da figura mais sisuda que eu conhecia. O jeito
que ele falava as coisas… Eu lembro como ele mexia suas mãos
de cima pra baixo, marretando sua coxa no final das frases de
impacto. Como tirava o boné quando ouvia alguma coisa que não
agradava, passava a mão pela cabeça e colocava o boné de novo;
depois ele te encarava com um olhar penetrante, daqueles que
faz um sujeito engasgar no meio da fala. Eu tinha impressão de
encarar pedra de lápis lazuli, duas esferas azuis cortantes, frias.
Eu tinha calafrios quando ele fazia essa cara. Mas, eu era criança,
não entendia as entrelinhas do que ele dizia.
Meu pai era um homem com opinião. Felizmente, eu nunca tive
que discutir com ele sobre muitas coisas, embora não concordasse
com todas. Ele morreu antes que eu tivesse coragem de contra-
dizê-lo. E mesmo no caixão depois de morto, pela sua pálpebra
eu continuava a sentir aquela reprovação, como se ele sempre
soubesse que no fundo eu não concordava com suas ideias, mas
nunca admitiu isso abertamente, pois preferia acreditar no filho
perfeito. Sem pensar duas vezes, posso dizer que tinha medo do
meu pai, eu sempre ficava em guarda quando ele estava por
perto. Não que ele tenha feito algo ruim pra mim diretamente,
isso ele nunca fez. Nunca encostou um dedo se quer em mim.
Mesmo assim, era como se ele tivesse tocado dentro de minha
mente. Suas palavras eram veneno que entravam pelos ouvidos
64
e corroía tudo que tivesse por dentro, desfazia sinapses, matava neurônios.
Como disse, eu sempre fui passivo, nunca tive coragem de discordar dele. Só
sentia seu veneno, sem saber onde encontrar algum antídoto.
Uma obsessão do homem era com porcos. Ele os odiava. Um ódio puro, ge-
nuíno, que sempre me pareceu totalmente descabido. Ele falava que eram

xarxel
sujos, nojentos, que tinha asco deles, que queria acabar com todos esses
animais sem serventia para o mundo.
Às vezes, quando começava a falar sobre porcos, perdia a tarde inteira, listando
os mesmos pontos aos quais sustentavam o argumento de que porcos são
imprestáveis. Nunca entrou nada de porco dentro de casa, só o pensamento
disso já era gatilho o suficiente para o tirar do sério e começar a falar dos ne-
gativos aspectos de um porco. Morávamos no campo, então as pessoas que
entravam na nossa casa eram literalmente escolhidas a dedo. Alguns poucos
vizinhos que rodeavam nossa casa e família que se dispunha a ir passar alguns
dias em meio a muito mato. Tínhamos alguns hectares de plantação de cana,
e meu pai gostava de morar por perto, cumprindo assim dois objetivos: ati-
rando em qualquer invasor que desafiasse entrar por lá, gostava mesmo de
escolher quem entrava dentro de seu território, já que não se dava bem com
quase ninguém; e engrandecia seu ego falar que tudo aquilo era dele. Não
confiava que alguém ficasse cuidando de lá por ele. Cuidávamos de alguns
animais, como cachorros de estimação, tivemos um coelho, galinhas para o
abate. Mas nunca porco. Porco era nojento, não era de Deus.
Essa loucura do meu pai ia tão longe que ele e meus tios tinham uma tradição
mensal. Pegavam um porco, subiam uma montanha e o matavam lá. Eram
as únicas vezes que lembro de ver ele sorrindo: quando voltava de seu ritual
do porco. Com algum sangue espalhado pelo corpo, ar de satisfeito, meu pai
aparecia no horizonte depois de uma tarde inteira aproveitando esse evento.
Iam com uma espingarda e variados itens cortantes. Torturavam o bicho. Eu
acho que isso os fazia sentir poderoso, como se o mundo se bastasse den-
tro daquela tarde onde eles tinham a oportunidade de fazer o que desse na
cabeça com um animal indefeso. Isso era uma das coisas das quais eu não
concordava, não achava justo. Mesmo assim, era uma tradição incrível para
meu pai, ele dizia que vinha da era do pai dele. Ele quis me introduzir a isso.
Eu não conseguia falar não para meu pai.
65
Já era algo que eu esperava. Ele comentava sobre isso sempre. Acho que por
ele sentir que eu não era como ele queria, esperava que quando eu entrasse
na sua tradição nós conseguíssemos nos conectar mais. Dava pra sentir que
ele era um pouco decepcionado por eu ser como era, mas a esperança de que
eu matasse um porco e entendesse como ele pensava, mantinha nele uma
xarxel

ponta de esperança. Dizia “Esse aqui ainda vai matar muito porco fedido” para
seus amigos, e dava risada. Eu dava risada junto e concordava com a cabeça,
mas o pensamento desse dia chegando me dava frio na espinha. Parecia
que o lugar da minha cabeça em que o veneno do meu pai tinha corroído
ardia. Eu nunca quis ir. Concordava, porque não sabia dizer não. Porque todo
mundo olhava. Porque eu estava no meio dos amigos do meu pai, e gostava
de me sentir mais velho. Mas, tentava ao máximo empurrar a data pra mais
tarde. Quando não consegui arranjar desculpa nenhuma mais, tive que ir.
Com doze anos foi minha primeira experiência.
Lembro da energia dele naquele dia, nunca mais o vi daquele jeito. Estava
arrumando as coisas, e levava a espingarda usual, mas pegou vários itens de
tortura a mais. Podia dizer que aquele dia meu velho se orgulhava de mim.
Não vou mentir me sentia muito bem com todo aquele mimo. Passava a mão
nos meus cabelos, me olhava com sorriso, ao invés da carranca habitual… Eu
conseguia perceber que estava orgulhoso.
Não esqueço do dia, quando saímos depois do almoço. Estava garoando de
leve, então partimos com casacos. Uma pistola em meu bolso. Meu pai levava
uma mochila e meus tios levavam cervejas, e carnes, e cigarros. Quando che-
gássemos ao ponto da montanha onde acontecia o ritual, o bicho já estaria
lá, foi-me dito. Fui rindo durante parte do percurso, pois me sentia adulto.
Ofereceram-me cervejas e cigarros. Aceitei. Foi bom o sentimento de ser
grande, não nego. O sol se escondia por trás de uma neblina cinza escura,
parecia que a qualquer momento poderia chover. Isso de forma alguma pa-
raria o evento. Nada pararia aquilo. Eu estava num ponto onde eu não podia
voltar mais. Nada pararia aquilo. E eu fazia parte... Não, era a peça principal
do que estava acontecendo. Subitamente comecei a sentir uma palpitação
e uma vontade fortíssima de sair correndo de volta pra casa. Não o fiz. Estava
no meio dos adultos, mas não pertencia a eles. Continuei andando, quieto,
apreensivo. Perceberam minha mudança de atitude, mas não fizeram gran-

66
de caso. Só falavam alguma besteira pra mim, e eu retribuía com uma risada
amarela. Bastava. As nuvens eram pesadas e pareciam repousar sobre minhas
costas. Sentia que carregava peso extra, peso que não queria ou deveria estar
carregando. Olhei para meus pais, meus tios, todos riam. Eu senti vontade
de chorar. Mas, quem seria eu se chorasse no meio daqueles homens? Um

xarxel
fraco, um sujo. Que nem um porco? Acho que não, mas eu nunca vou saber
ao certo. Não chorei, carreguei o peso todo o caminho até o ponto do acon-
tecimento. Bebi cerveja, fumei cigarro. Se estou falando dos venenos desses
dias, posso incluir também isso: ouvi meu pai.
Chegamos ao local. Lá estava o porco ao qual meu pai era obcecado em odiar.
Era grande, segurado por dois outros homens fortes. Vendo-o, quando crian-
ça não senti muita coisa. Entenda que eu estava envenenado. Hoje, quando
lembro, minha vontade é de gritar. Meu pai olhou pra mim genuinamente
feliz e começou um discurso sobre minha iniciação. O porco se debatia e
grunhia. Tinha os olhos desesperados e pelos empapado de suor. Olhava pra
mim sabendo o que eu faria em seguida. Eu conseguia ver um ferimento
ou outro em sua superfície, o que indicava que já tinham começado com
a tortura. Comecei a ficar tenso na medida em que meu pai terminava seu
discurso. Tinha certeza de que não queria fazer aquilo, mas teria que fazê-lo.
Passou pela minha cabeça várias possibilidades para tentar contornar aquela
situação; fingir passar mal, errar o tiro, confrontar meu pai. Não fiz nada disso.
Acho que esperava algum tipo de milagre que faria com que eu não tivesse
que enfrentar a minha realidade. Nada aconteceu.
Eram no total cinco homens passado dos quarenta anos, incluindo meu pai,
todos com uma voracidade impressionante. Eles estavam ali para me ver ma-
tar o porco. Eu senti a pressão do mundo sobre mim, não me importava mais
ser parte dos homens, quis voltar a ser criança. Queria me colocar em posição
fetal e chorar que nem um bebê até virar efetivamente um feto, voltando para
fase de gestação e deixando de existir completamente. Mas, meu pai tinha
acabado o discurso. E eu sabia o que vinha em seguida. Entregou-me a es-
pingarda, e disse que era hora de matar meu primeiro porco. Tive vontade de
perguntar “Por quê?”. Não perguntei. Só olhei pro meu pai pedindo clemência.
Ele não notou. Se notou, não deu clemência. Aproximei-me lentamente da
criatura amedrontada. Ele tremia por inteiro, se debatia contra os homens

67
que o seguravam. Queria aquela situação menos que eu, e isso me fez criar
empatia, pelo pobre ser. Naquele momento comecei a reparar no porco, em
partes as quais não havia reparado antes. Seus olhos choravam mais do que
a chuva que seguia e gritavam piedade. Sua boca gritava “por favor, não”.
Olhei pro meu pai pensando “por favor, não”. Ele agachou pra mim e disse:
xarxel

— Filho, já te disse diversas vezes como porcos são imundos, não devem existir.
Olha pra ele. Olha como é suja sua cor. Olha como seu nariz é grande. Olha
pra essa boca estranha. Parece que foi feita para que tivéssemos pena? Essa
raça acaba com nosso país. Está em todo lugar atualmente, espalhando sua
nojeira por todo canto. Estão nas casas, nos restaurantes, parece que estão
em todo lugar. Parece que estão se procriando mais, nunca vi tantos deles
quanto atualmente. Essa coisa nojenta parece natural pra você? Na bíblia se
diz coisas contra eles, e quem somos nós para questionar a palavra divina?
Porcos não merecem nossa piedade, não merecem a gente pensando duas
vezes. São um pedaço de carne. Mata essa criatura asquerosa, ele vai estar
melhor assim. Todos estaremos melhor assim.
Continuei olhando para ele por alguns segundos. Depois olhei pra todo mun-
do me cercando, tinham um olhar presunçoso de dúvida. Aquilo, ao mesmo
tempo, deu raiva e medo. Coloquei a espingarda na testa daquele infeliz que
se esgoelava em choro, e pedidos de misericórdia. Minha mão tremia. Final-
mente comecei a chorar, o que tornou a visão de toda cena embaçada. Ten-
tei respirar fundo, mas ao invés disso solucei. Saber que eu chorava me fazia
pensar que meu pai sentia vergonha de mim, e que meus tios davam risada
do quão fraco eu era. Aquele ambiente me deixou claustrofóbico, não tinha
saída daquele lugar horrível, daquelas pessoas horríveis. Senti-me também
horrível. Um grito especialmente alto do porco, me fez gritar junto. A emoção
fez um dedo meu puxar o gatilho. Então, entendi porque meu pai falava que
porcos são sujos. Naquele dia eu voltei pra casa com a roupa suja de barro, o
corpo sujo de sangue e a alma suja de culpa.

68
Sem Tom

xarxel
Meu violino é empoeirado.
Eu assopro ele
E como quem não quer nada
Tiro umas notas desafinadas
Ando de um lado pro outro
Com um cigarro e um pijama
Dedilhando suas cordas desgastadas
Sem me preocupar com o som..
Eu só quero ouvi-lo
O arco desliza
Como se eu soubesse o que faço
Toco um dó-dó-dó sem mimimi
A música não é boa
Mas me faz dançar.
Eu não sei tocar violino
Apenas toco ele como toco a vida

69
Talvez ovos, com certeza queijo
xarxel

...
Puta merda essa sensação de novo. Odeio essa bosta. Me faz
sentir como se eu não aproveitasse minha vida de verdade. Essa
sensação filhadaputa que mal consigo descrever. É quando eu
paro, olho pra algo e como a pensar criticamente sobre isso… Não,
não é bem isso. É tipo quando, sinto um lapso de consciência.
É, algo assim. Parece que eu tava dormindo minha vida toda.
Um bom tempo, pelo menos. Fazendo tudo mecanicamente,
tudo dentro de uma rotina que me prendia sempre fora do mo-
mento que estava sendo vivido. E agora eu consigo ver o agora
e perceber que antes eu não estava vivendo ele, só fazendo o
que eu precisava fazer, porque eu precisava fazer. Como se eu
tivesse no piloto-automático esse tempo todo, mas agora eu
estou operando no manual. Não faz muito sentido. Em tese eu
vivo todo agora no agora, mas parece que antes eu vivia o agora
sem perceber que o agora era aquela hora. Olha só! Eu já perdi
a sensação de novo, mas voltou. Essa sensação é ruim, porque
me faz sentir imbecil de estar preso dentro de algo que eu não
percebo que eu tô. E, tão rápido quanto vem, vai.

70
xarxel
... Já deve estar brava, porque....

Será que alguém mais sente isso? Será que alguém mais sente ódio disso?
Tomara que sim, porque senão isso significa que sou eu que não tô vivendo
minha vida direito. Mas que merda essa sensação. Por que não dá pra viver
sempre no agora, sempre consciente de meus atos? Isso! Exatamente isso!
Consciência. Quando eu tenho esses lapsos de consciência, parece que eu
não estava consciente pelo resto do tempo. O que é mentira, provavelmen-
te. Se for pra falar a verdade, porém, queria que durasse mais. Eu só odeio a
sensação, porque ela vai embora depressa, se eu me sentisse consciente pra
sempre uma vez que sentisse a sensação, eu amaria. Tipo um Matrix. Talvez
seja realmente um Matrix. Talvez não. Eu nunca acordei de algum lugar. Talvez
seja um Neuromancer, pai do Matrix.
… Outros filmes incluem…

Ou será que eu não acordei mesmo? Ou melhor ainda: será que faz diferença?
Todo mundo tá “preso” na Matrix, e não tem muitos Neos. Eu que não seria.
Eu acho que eu sou só mais uma pessoa. Olha pra todo mundo nesse ponto.
Aquele cara tá mexendo no celular desde que eu cheguei. Eu acho que ele tá
mais preso que eu. Se for pra eu ser qualquer coisa pelo menos eu sou qual-
quer coisa de boa qualidade. Aquelas duas senhoras conversando: elas estão
71
falando frases prontas, não há nada do que elas digam eu não tenha ouvido
em outro lugar antes. Falo isso como se fosse muito original. Falo isso como
se nesse exato pensamento tudo que eu penso agora não tivesse passado na
cabeça de alguém, talvez com as mesmas exatas palavras. Quanta escolha
xarxel

a gente tem de verdade? Sinto claustrofobia dentro dessa rotina, mas não
sentimos todos? E quem possivelmente não sente, não tá preso também?
Quero dizer, a gente almoça e janta a hora que a gente almoça e janta por
pura convenção. Quem escreveu, onde, que eu não posso fazer uma refeição
às 15h da tarde ou às 5h da madrugada? Mesmo assim eu não faço. É uma
prisão. Tudo é uma prisão. Pensamentos são uma prisão. Eu aqui pensando
sobre isso como se isso fosse pensamento meu. Quantas pessoas possivel-
mente já não se perguntaram isso? Quantos caminhos iguais essas pessoas
não passaram igual aos meus caminhos?
… Acho que esse ano ainda…

Minha vida é patética. Mas, pensando assim, a de todo mundo é. Se for pra
eu não ser especial pro bem, eu também não sou especialmente mal. Sou,
assim como todo mundo, igual. Penso que nem millennial, que tristeza. Com
os problemas de uma juventude sem tempo, que tenta recriar os anos se-
tenta com a tecnologia do século XXI. Será que meus avós se preocupavam
com isso? Minha preocupação é quebrar esse galho várias vezes até eu ver
“315” num ônibus pra voltar pra casa, e ainda assim eu me acho uma pessoa
amaldiçoada. Será que eles eram tão ocupados em não passar fome em criar
uma vida minimamente digna para seus filhos, meus pais, que não tinham
tempo pra se perguntar se o agora dele tá sendo vivido ao máximo? Eu sinto
que sim. E isso me faz sentir culpa. Na minha idade, meu pai e minha mãe
72
tinham sua prole e uma casa. Eu tenho um notebook dado de presente, uma
graduação ao qual e não sinto que me esforço o suficiente e um quarto que
eu tenho preguiça de limpar. É isso a que se resume minha vidinha insossa.
… Se eu conseguir fazer em meia…

xarxel

Minhas preocupações são de alguém amador. Requer coragem pra aceitar
isso. Ou será que requer? Quantas perguntas eu me faço, sou produto mes-
mo de uma filosofia pós-modernista que acha legal questionar tudo, até a
própria natureza do ser. Se eu pelo menos tivesse base teórica pra falar disso,
mas penso sem base, e me frustro por não chegar em resposta nenhuma.
Nem tenho gás pra pesquisar sobre. E depois fico mal com uma sensação de
descontentamento, de que eu não vejo minha vida passar, que eu não apro-
veito ela enquanto ela acontece. Talvez nenhuma base teórica preencheria
o vazio dessa sensação. Talvez sim. Eu sei que eu não vou descobrir porque
tenho preguiça de pesquisar sobre assunto. E também acredito que nenhum
livro teórico vai estar escrito “Aaaaai, bem, não se preocupa não, todo mundo
sente isso às vezes”. Mas que eu odeio essa sensação, eu odeio. Mas que espe-
ro que ela volte, eu espero. Quero sentir que eu tenho vida às vezes, mesmo
que isso me faça sentir que eu não vivo maior parte do tempo. Quem sabe
não é exatamente assim, mesmo. Sentir-se dormente pela maior parte do
tempo pra conseguir aproveitar os momentos em que se sente alerta. Pelo
menos eu sinto algo. Olha como eu sou produto do meu tempo mesmo, é
até meio triste. Engraçado, enquanto eu penso sobre essa sensação ela não
está presente.
315!
…Recapitulando, eu vou chegar em casa, comer…

73
Biografias
Amanda Maria Damásio Teixeira nasceu em 1998, é estudante de Letras Vernáculas e Clás-
sicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e trabalha com tradução e revisão de
texto. Teve crônicas publicadas na Folha de Londrina e é ganhadora do Concurso Nacional
de Contos e Poesias pela FAFIMAN por dois anos consecutivos: em 2016 ficou em 1º lugar na
categoria Conto, e em 2017 ficou em 2º lugar na categoria poesia.
Anne Marie Sampaio nasceu em 1989 em Curitiba, Paraná, é artista visual e trabalha princi-
palmente com ações site-specific, com as quais propõe uma reflexão sobre os usos e funções
de diferentes tipos de espaços. Com suas instalações, performances, vídeos e textos, Anne
Marie leva em conta as particularidades de cada local onde suas obras são ativadas, criando
situações que deslocam as funções estruturais ou conceituais daquele site específico. Ao
fazê-lo, seus trabalhos propõem não apenas uma mudança de perspectiva sobre a relação
que mantemos com o espaço, mas também no que diz respeito à relação que preservamos
uns com os outros devido ao compartilhamento do mesmo espaço. Anne Marie Sampaio
é bacharel em Artes Visuais (UFPR, BR) com especialização em História da Arte Moderna
e Contemporânea (EMBAP, BR) e mestrado em Belas Artes (KASK, BE). Atualmente vive e
trabalha em Bruxelas, Bélgica.
Aquaib nasceu em 1998 em Salvador, Bahia, é negra e lésbica. Sempre foi muito observado-
ra e gostava de dialogar sobre tudo que instiga a questionar e de alguma forma reformular
mseu ponto de vista. O tempo passava e as repreensões de terceiros eram cada vez mais
humilhantes, sentiu que falar sobre o que seu olhar detecta, com as pessoas que confiava,
não era nada satisfatório. Passou à escrever, apenas. Escrevia, guardava e em algum momen-
to voltava àquilo com uma nova percepção e reflexões sociais. Hoje ainda escreve e voltou
à dialogar sobre, de modo que essa fala seja significativa para pessoas que eu não conhece
também, sugerindo olhares mais profundos, partilhando pontos de vista, aprendendo cada
vez mais sobre ser sensível e enxergar poesia no correr dos dias.
Emerson Ferreira de Oliveira nasceu em 1991 e vive em São Paulo. É escritor e jornalista
busca perceber os reflexos da Literatura na vida, e vice-versa, com foco na produção con-
temporânea entre diversos temas, como Psicologia, Política e História.
Giordana Di Paula Ferro nasceu em 1986 em Taquari, Rio Grande do Sul. Mudou-se para
Londrina-PR aos 17 anos, onde constituiu alicerces fortes para a firmarem na terra. Casou-se
aos 22, dedicou-se exclusivamente ao marido e as filhas por aproximadamente 7 anos. Aos 29
resolveu voltar a estudar, e ingressa no curso de Letras Vernáculas e Clássicas na Universida-
de Estadual de Londrina (UEL). Procura aprofundar-se nas pesquisas qualitativas relativas à
Sociolinguística e Educação, no entanto a Literatura sempre foi uma paixão. Como a escritora
tem contato com a Bíblia Sagrada desde os 7 anos há muita alusão à passagens Bíblicas. É

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cristã, mas não está vinculada à nenhuma denominação religiosa.
Isabela da Cunha nasceu em 1987 em Florianópolis, e atualmente reside em Palhoça, Santa
Catarina. Fez Bacharelado em Administração, Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de
Filosofia e Sociologia e Licenciatura em Filosofia. Escrever sempre foi libertador, colocar no
papel o encantamento dos instantes é como reter o tempo. Gosta de poetizar o cotidiano.
Mateus Gruber nasceu em 1997 em Curitiba, Paraná, onde reside. É Técnico em Processos
Fotográficos formado pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR), e cursou Licenciatura em Artes
Visuais na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Natasha de Albuquerque nasceu em 1991, é artista com trabalhos em arte contemporânea,
performances, fotografias e vídeos. Possui mestrado em Arte Contemporânea na linha de
Poéticas Contemporâneas e graduação em Artes Plástica licenciatura/bacharelado pela Uni-
versidade de Brasília (UnB). Sua produção perpassa questões como corporeidade, crítica da
normalidade, sexualidade, deboche , ironia e hibridização das linguagens. Já participou de
40 exposições coletivas com obras individuais e também participou em dezenas de eventos
de arte como membro do grupo Corpos Informáticos desde 2011. Possui artigos científicos
e capítulo de livro publicados na área de Artes.
Ué Prazeres nasceu em 1995 em Paulista, Pernambuco, e reside em Curitiba, Paraná. É artista
visual e designer de moda. Pesquisa sobre a racialização do discurso na arte ao conceituá-la na
categoria de “afro-brasileira”, e também sobre a invenção do negro no inicio da modernidade
atlântica, numa perspectiva anticolonial. Em paralelo à pesquisa artística, tem se dedicado
a estudar a história recente da curadoria.
Xarxel nasceu em 1996 em Cambé, Paraná. É graduando no curso de Letras - Vernáculas e
Clássicas na UEL (Universidade Estadual de Londrina) e bolsista em projetos de pesquisa há
dois anos e meio. Escreve há seis anos, e em suas produções tenta capturar o estranho, o
absurdo, misturando elementos corriqueiros com o insólito. Tenta dar ao leitor uma sensa-
ção de inquietação na leitura e, então, forçar o pensamento sobre as estruturas socialmente
fixadas e a própria realidade.
Yasmin Kozak nasceu em 1992 em Curitiba, Paraná. Formou-se em Bacharelado e Licencia-
tura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Já participou de algumas
exposições como a I e a III Edição do Circuito Universitário da Bienal Internacional de Curi-
tiba, e da exposição “Teu Corpo é Luta”, em Arte Londrina 5, no Departamento de Artes da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Também participou como artista convidada da X
Mostra de Artes da UFPR, no Museu de Arte da Universidade (MuSA). Em 2018 foi convidada
a participar da Semana de Performance da Bienal Internacional de Curitiba, na qual realizou
o trabalho Cartas aos Mortos e, em 2019 foi selecionada para o Projeto Permanente de De-
senvolvimento e Experimentação em Artes Visuais do SESC Paço da Liberdade.

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Edição
M. Neppel e Maria A. B. Souza
Revisão
M. Neppel
Projeto gráfico
Vulpin
Ilustração da Capa
Vulpin

Corruíra Editora
corruira.wordpress.com

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


AOS AUTORES.

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ISBN 978-65-990313-0-4

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