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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE, EDUCAÇÃO E HISTÓRIA DA


CULTURA

O discurso de classe, dominância e relações de poder de Marx sob a


ótica das formações continuadas na área de Educação Básica no Brasil.

São Paulo

Brasil

2021
Natalia Miaci Nogueira Lima e Silva
1. Introdução

O objetivo do presente ensaio é discorrer sobre os escritos de Karl Marx, suas principais
ideias e qual a relação entre elas e os programas de formação continuada na área de
educação, ultimamente tão frequentemente ofertados em instituições públicas e
privadas.

Karl Marx, pensador e teórico fortemente influenciado por Adam Smith e David Ricardo,
tem como grandes temas de suas obras as classes sociais, a economia, a política e a
dinâmica existente entre estes elementos. Ainda que, de fato, a proposta marxista para
o maior dilema da sociedade (a extrema desigualdade) fosse um sistema político que
nunca chegou a ser aplicado, o comunismo, seus ideais reverberam até os dias
presentes. Weffort (2001), sobre os temas centrais de Marx, afirma que

É uma constante no marxismo a preocupação com as relações entre


a economia, as classes e a política. É parte obrigatória de uma lógica
emprenhada em descobrir no movimento do real as leis de seu
processo de transformação. (...)Marx apresenta a sua dialética, que
ele chama de racional, contra a “dialética “mistificada” de Hegel.
No tocante às classes sociais, apesar de não ser o primeiro autor a mencioná-las (o
próprio admite em seus textos que Smith já havia mencionado o termo “classes sociais”,
porém não o havia desenvolvido da maneira merecida), Marx é mundialmente
conhecido por sua visão das estratificações sociais. Para o pensador, a sociedade se
divide entre um grupo dominante, a burguesia, que é dono dos meios de produção e,
consequentemente, do capital. No prefácio de Contribuição à Crítica da Economia
Política, Marx (2008) afirma que

(...)na produção social da própria vida, os homens contraem relações


determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações
de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais.”
Contudo, não se resume a poder financeiro o que pertence à classe dominante,
segundo Marx. Pertence também a ela a dominância das ideias, das artes, dos conceitos
estéticos, entre outros. Com isso, podemos interpretar que a classe dominante, além de
ter posse do maior montante de dinheiro, determina os valores e tendências de
comportamento da sociedade como um todo. Em O Manifesto do Partido Comunista,
Marx (1998), revela que

(...) toda classe que aspira à dominação [...] deve conquistar primeiro
o poder político, para apresentar seu interesse como interesse geral,
ao que está obrigada no primeiro momento.
Tal conceito será revisitado no presente ensaio quando chegarmos na análise do cenário
da educação básica brasileira no que diz respeito à formação continuada dos
professores.

Sobre a economia, ressalta em suas obras que as mazelas do capitalismo como sistema
econômico, que, sob sua perspectiva, reduz todas suas vantagens e benefícios a um
único item, a produtividade. Ao mesmo tempo, enquanto um pequeno grupo de fato se
beneficiaria dessa produtividade, uma grande massa trabalhadora poderia ser
prejudicada à medida que o lucro fosse priorizado. Em outras palavras, em sua
interpretação, quanto menor o salário do trabalhador, maior o lucro. Também decorre
de Marx os termos “valor de mercado” (por quanto determinado produto pode ser
comercializado) versus “valor de trabalho” (quanto tempo e dinheiro foram investidos
na produção de determinado produto), o que pode ser compreendido inclusive como
uma referência à representação da prioridade ao capital versus prioridade ao social.
Parte destes dois termos um terceiro termo que aqui interessa mencionar, o “fetichismo
da mercadoria”: consumidores enxergam a mercadoria somente em termos de
mercado, desconsiderando assim seu valor-trabalho, ignorando a possibilidade de
considerar em que condições tal produto foi feito e comercializado. Poderíamos
mencionar aqui diversos exemplos de sites ou marcas que vendem produtos vistos como
objetos de desejo, com evidências investigativas de trabalho escravo. Porém, como
nesta reflexão o foco é na área de educação, aplicaremos estes conceitos a outros
produtos.

No que diz respeito à política, Marx afirma que a figura do Estado é uma ferramenta de
gerenciamento de um sistema que privilegia o grupo que se encontra dominante no
momento. Em trechos de seus textos, reflete sobre como o ser humano busca por poder
através da economia, da aplicação das leis e até mesmo através da educação vigente. A
fim de exprimir como esta cadeia social se coordena em uma espécie de engrenagem
completamente interligada que se retroalimenta, Marx (1998) afirma em O manifesto
do Partido Comunista que

(...) A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura


econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas
sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida
material condiciona o processo em geral de vida social, político e
espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser,
mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.

Para Marx, a solução para a sociedade seria uma revolução em que a classe trabalhadora
tomasse os meios de produção e, desta maneira, não houvesse figura dentre a
sociedade com mais poder do que outra, diminuindo, em teoria, a desigualdade, a
pobreza, e, por consequência, a criminalidade, inclusive. Tal conceito nos interessa
mencionar para compreender quem dá subsídio às grandes corporações do meio
educacional para que elas conquistem espaços tanto na educação pública como privada.

2. Desenvolvimento

Marx afirma que um grupo que aspira conquistar o poder deve apresentar suas
ideias como ideias interessantes a todos e não apenas a uma minoria dominante.

Na área da Educação, existe uma tendência visível de convencer educadores e


instituições de que a melhor maneira de formar professores é a formação
continuada. Tal discurso aparece em âmbito público e privado e através de
pesquisas, algumas inclusive financiadas por grandes investidores da área da
Educação (Editores, produtores de conteúdo digital, criadores de tecnologias em
geral, instituições financeiras, ente outros...).

Além de tirar espaço, ainda que não intencionalmente, dos estudos dos grandes
teóricos da Educação, as formações continuadas, abrem espaço para
determinadas tendências educacionais ainda pouco praticadas, com pouca
certificação ou comprovação científica de funcionalidade.
Uma dessas tendências é o que se chama de Metodologias Ativas. Ainda é um
termo novo, existem poucas publicações e estudiosos que tenham publicado
sobre o tema, mas ele tem sido vendido como uma grande solução para um
sistema educacional tido como falido. Em seu conceito, como o próprio nome
sugestiona, metodologias ativas seriam qualquer metodologia que tivessem o
aluno como sujeito do processo de aprendizagem, investigando, interagindo,
pesquisando, registrando, construindo, entre outros. Uma proposta que vai
obviamente de encontro à educação tradicional, que mantém o aluno em uma
posição passiva. Para Prince (2004),

A aprendizagem ativa é geralmente definida como qualquer método


instrucional que envolva os alunos no processo de aprendizagem. Em
suma, aprendizado ativo exige que os alunos façam atividades de
aprendizagem significativas e pensem sobre o que estão fazendo.
Embora essa definição possa incluir atividades tradicionais como a
lição de casa, na prática, a aprendizagem ativa refere-se sobretudo a
atividades que são realizadas na sala de aula. O núcleo da
aprendizagem ativa são a atividade dos alunos e o engajamento no
processo de aprendizagem. A aprendizagem ativa geralmente é
contrastada com a tradicional palestra, situação em que estudantes
recebem passivamente informações vindas de um instrutor.

Existem diversas maneiras de praticar uma metodologia ativa, seria possível


produzir outro material para discorrer apenas sobre isso. Porém, por uma
questão de logística, compartilharemos neste espaço duas experiências bem
sucedidas que simbolizam bem o conceito de Metodologias Ativas: Gêneros e
tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas e Os gêneros
escolares- das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Ambos os registros
pedagógicos se encontram na obra Gêneros orais e escritos na escola (2004).

A crítica deste ensaio não é contra a Metodologia Ativa, se vê nela muitos traços
de grandes teóricos da educação como Vygotsky com sua teoria interacionista
ou Piaget com seu posicionamento mundialmente conhecido como
construtivista.

O que este ensaio se propõe a observar de maneira crítica é a distância entre o


que os poucos autores originais conceituam como Metodologia Ativa e o que é
tido como o mesmo nos ambientes escolares e nos cursos de atualização de
professores oferecidos nos maiores centros de formação de país. Há claramente
uma associação proposital do termo em questão a elementos tecnológicos, fato
que pode ser facilmente comprovado por uma busca por “cursos metodologia
ativa” (Imagens 1 e 2).

Esta ideia errônea de que metodologias ativas são necessariamente


relacionadas ao uso de algum elemento tecnológico conectado à internet se
encontra tão banalizada que os próprios professores reproduzem discursos que
perpetuam o conceito de que a educação de qualidade é aquela que utiliza
diversos aplicativos, gadgets, sites, etc.

Darling-Hammond (2009) apud MARICONI (2017) indicam que

(...)Os professores julgam ser mais importante a formação


continuada que lhes dá oportunidades de construir in loco o
conhecimento do conteúdo acadêmico, aliado a como ensiná-lo aos
alunos, sem perder de vista nem o contexto local, nem os recursos
específicos das escolas, nem as diretrizes escolares, nem os sistemas
de prestação de contas, etc.
Tal comportamento e sua reprodução é interessante e conveniente aos
conglomerados empresariais da Educação: vende-se a ideia de que a educação
de qualidade é a que adota uma metodologia que, por sua vez, exige a compra
e utilização de produtos caros para a realidade da educação brasileira. Já
acompanha automaticamente a venda dessas ideias à possibilidade de
investimento em tecnologia educacional através da compra (ou financiamento,
pagando juros teoricamente justos) de tais produtos. Como a formação
continuada está em alta, certamente tais produtos serão descartados e outros
serão ofertados dentro de um determinado período, gerando ainda mais lucro
para os que Marx possivelmente nomearia como “o grupo dominante da
Educação Brasileira”.

Cabe mencionar aqui que tais ideias têm sido reproduzidas não apenas dentro
de escolas privadas, teoricamente com poder aquisitivo mais elevado, mas
também dentro das escolas públicas, apoiadas por grupos governamentais. O
documento de alcance nacional Formação Continuada de Professores:
Contribuições da literatura baseada em evidências (2017), por exemplo,
pesquisa feita através da Fundação Carlos Chagas, foi financiada por um grupo
composto por empresas privadas, bancos e ONGs ligadas à educação. Para
Marx, Governo (Estado, neste contexto) e grupo dominante (grandes empresas
da Tecnologia, Educação e instituições financeiras) caminham juntos rumo ao
lucro e apoio mútuo.

Além disso, não há a preocupação visível em tirar o professor da figura central


do processo de aprendizagem, o que seria um item indispensável para uma
metodologia ativa. O que se reproduz, em alguns casos, é justamente uma
estrutura escolar muito similar até a uma estrutura tradicional, porém com
elementos tecnológicos que substituem algumas ferramentas tradicionais,
ocasionalmente facilitando para o professor a realização da aula. Porém, do
ponto de vista do aluno, pouca coisa de fato muda (professor passa um conteúdo
através de uma tela ao invés de uma lousa, ou faz uma verificação de
aprendizagem através de um questionário online ao invés de uma folha de papel,
por exemplo).

Outra crítica a este discurso tão normalizado sobre boa educação equivaler
necessariamente ao uso de tecnologias educacionais é que ele exclui dessa
possibilidade de proposta comunidades escolares menos privilegiadas, que,
mesmo com o apoio governamental, não conseguem ter acesso a todo o combo
estrutural necessário presente na imagem idealizada. A falta de recursos
financeiros (desigualdade, segundo Marx) somada à falta de boa formação
educacional (que não simplesmente reproduza ideias prontas, mas que busque
nos autores suas propostas originais) pode transformar uma boa formação, que
em teoria deveria ser um direito de todos, em um produto a se comprar. Neste
ponto, vê-se necessário retomar o que conceituamos na introdução como

fetichismo da mercadoria (de Marx): já que a educação enquanto produto


obedece a lógica do mercado (se faz em sala de aula o que vende mais), o
consumidor deste “produto” o compra (para seus filhos, no caso) sem pensar em
tudo que existe por trás de tamanha cultura da digitalização escolar, tantas vezes
forçada e despreparada, escondida atrás de nomes pedagógicos que soam
comercialmente bem.
3. Conclusão

Conclui-se através da presente reflexão que o conceito de Marx sobre classes


sociais, economia, política e como os três elementos se conectam e alimentam
uma interdependência é compatível com o cenário da formação de educadores
na Educação Básica brasileira, onde grandes grupos donos de iniciativas
privadas (grupo dominante), com o apoio do governo (Estado), seguem
vendendo suas ideias como sendo vantajosas para a sociedade como um todo
(proletariado), distorcendo o conceito de Metodologias Ativas e permitindo que
seus interesses financeiros e políticos sigam sendo atendidos.

4. Bibliografia

• Weffort Colen, Francisco. Os Clássicos da Política. 2º Volume. ED.


Ática. (2001)
• Marx, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política.2º Volume.
São Paulo. Ed. Expressão popular. (2008)
• MARX; ENGELS. Manifesto Comunista. São Paulo. Ed. Boitempo.
(1998)
• ROJO, R. ; CORDEIRO, G. (Orgs.). Gêneros orais e escritos na
escola. Campinas: Mercado de Letras. (2004)
• MORICONI, Gabriela Miranda (coord.) Formação continuada de
professores: contribuições da literatura baseada em evidências. São
Paulo. FCC. (2017)
• Prince, M. Does Active Learning Work? A Review of the Research.
Journal of Engineering Education, Volume 93. (2004).
• DARLING-HAMMOND, L.; WEI, R.; ANDREE, A.; RICHARDSON, N.;
ORPHANOS, S. Professional learning in the learning profession: a
status report on teacher development in the United States and
abroad. Dallas, TX: National Staff Development Council. (2009)
5. Anexos
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