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CIÊNCIA, TÉCNICA E PRODUÇÃO DE MASSA*

Gilles Gaston GRANGER

Há de se observar que uma das primeiras conse-

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quências dessa situação foi o taylorismo, doutrina de
racionalização das produções mediante uma frag-
Quando os saberes técnicos ainda não estão mentação e uma especialização extremas das tarefas,
impregnados de conhecimento científico, o e uma cronometragem rigorosa de seu encadeamen-
trabalho artesanal que os desenvolve leva à to, sendo tudo concebido e planificado de antemão,
produção de obras muito individuadas. Isso porque com vistas a obter as melhores condições possíveis
esses saberes comportam não só esquemas comuns de rendimento (cf. Frederick W. TAYLOR, Princípios de
de produção, técnicas básicas indispensáveis à reali- organização científica, 1911). Trata-se, portanto, de
zação de um determinado efeito, à criação de um suprimir toda operação, todo gesto não estritamente
determinado tipo de objeto, mas também receitas e necessário, e de negar toda iniciativa aos executan-
manhas cuja posse não é estritamente necessária, tes: “Vocês não estão aqui para pensar”, costumava
mas dão ao artesão a possibilidade de singularizar o dizer-lhes Taylor. Essa formulação extremista da
seu produto, nele exprimindo, por assim dizer, al- normalização representa, evidentemente, o exato
guma coisa de si mesmo. É esta utilização dos aspec- oposto das técnicas artesanais, e se pretendia a rea-
tos e dos elementos à primeira vista supérfluos, com lização mais perfeita do assédio da técnica pela ciên-
vista a tornar significativo o produto de um trabalho, cia.

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que chamo de efeito de estilo. Ora, o progresso das
técnicas, na maioria das vezes, leva, ao contrário, a
uma normalização cada vez mais rigorosa das ações A evolução posterior das técnicas, porém,
e dos produtos, condição indispensável da baixa dos demonstrou, especialmente em nosso perí-
custos e da produção em massa. O ator técnico já não odo bem contemporâneo, que uma tal con-
é, então, o artesão, e sim, por um lado, o engenheiro cepção era, pelo menos parcialmente, inadaptada a
e, por outro, o executante, operário ou “técnico”. uma Idade da ciência. Além dos grandes inconveni-

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entes que ela comporta no plano humano, a taylori-
zação já não corresponde corretamente às condições
Não há dúvida de que essa normalização de funcionamento ótimo das máquinas. Se a caracte-
seja ao mesmo tempo a consequência e o rística mais evidente da técnica impregnada de ciên-
sinal de uma penetração das técnicas pelo cia é a universal extensão do emprego de máquinas
conhecimento científico. Pois é a ciência que, primei- cada vez mais poderosas, complexas e refinadas, é
ro, exige uma redução de seus objetos a esquemas óbvio que o progresso técnico recente consistiu, em
abstratos, em teoria perfeitamente substituíveis, e, primeiro lugar, numa verdadeira mutação de sua
por exemplo, na química, introduz a noção de corpo espécie. Podemos dizer, simplificando muito, que a
puro. Para poder aplicar conhecimentos estabeleci- máquina foi primeiramente um instrumento de
dos pela ciência, os técnicos devem selecionar cada transformação dos movimentos: a alavanca, a rolda-
vez mais os materiais de acordo com normas estri- na, máquinas “simples” por excelência, e até a má-
tas, codificar os procedimentos, ordenar os ciclos de quina de tecer. Depois ela se tornou meio de produ-
execução. Sem dúvida, também aqui um motor pode- ção, ou seja, também de transformação, de energia: a
roso dessa tendência é de natureza econômica, ex- máquina a vapor, o motor elétrico ou à explosão.
trínseca, por conseguinte, às considerações tanto Mais recentemente, enfim, apareceram as máquinas
técnicas quanto científicas: ganhar tempo, produzir de processar informação, cujo antepassado é a má-
cada vez mais… Mas a necessidade de normalização quina de calcular de Pascal, e o primeiro exemplar
não deixa de ser, em primeiro lugar, uma condição moderno, o computador monstruoso ENIAC, da Fila-
da aplicação das ciências. délfia [nos Estados Unidos], que em 1946 ainda ocu-
pava toda uma sala, com suas 18 mil válvulas e sua
magra memória ativa de 200 bits… Hoje, fantastica-
mente aperfeiçoadas e miniaturizadas, essas máqui-
* In Gilles Gaston GRANGER, A ciência e as ciências. São Paulo, Editora
da UNESP, 1994, pp.36-39. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Materi- nas estão associadas cada vez mais intimamente às
al para uso didático, disponível no blog CRÔNICAS DE ESCOLA: outras máquinas “energéticas”, de que garantem a
http://edu74.wordpress.com
regulação e o funcionamento diversificado. Cada vez alização técnica, resultante do cada vez maior refi-
mais, a máquina ganha espaço nas funções e nas namento das máquinas, e uma exigência aparente-
tarefas do executante. Graças às aplicações da ciên- mente oposta de polivalência, de competência gene-
cia em diferentes áreas, elas se torna, num sentido ralizada, ou antes de capacidade de adaptação dos
sem dúvida muito modesto, “inteligente”, ou seja, executantes técnicos, consequência da rapidez evo-
capaz de discernir posições e formas no espaço, de lutiva das técnicas existentes e da criação de técnicas
manipular e deslocar adequadamente objetos, pal- novas.
par e reconhecer certas propriedades físicas, desco-
Assinalaremos aqui, apenas para registro, o proble-
brir anomalias. De modo que o aspecto mais repeti-
ma assim proposto aos políticos pela formação dos
tivo das tarefas, há pouco justamente codificado pelo
jovens. Limitar-nos-emos a observar que a relação
taylorismo, é em grande medida transferido para a
do técnico com máquinas cada vez mais aperfeiçoa-
máquina, e o papel do executante consiste cada vez
das, embora seja consequência de uma ciência –
mais no exercício de uma tecnicidade de segundo
oculta, no entanto –, dispensa de certa maneira que
grau: um saber de supervisão, de manutenção do
se recorra ao conhecimento científico. Por certo, isso
bom andamento, de reconhecimento das falhas e dos
não ocorre no nível mais alto da hierarquia técnica,
incidentes de funcionamento, de conserto das má-
onde, pelo contrário, tendem a se unir o cientista e o
quinas. No limite, ocorre até uma comunicação entre
engenheiro. Mas nos níveis de execução, mesmo
o homem e a máquina que ele utiliza. A parte infor-
muito altos na hierarquia técnica, o espírito científi-
macional desta última é dotada de uma função de
co corre o risco de se apagar ante um espírito estri-
simbolização que lhe permite fornecer ao operador
tamente técnico, que daria preferência ao sucesso em
informações sobre o seu próprio funcionamento. É o
detrimento da explicação. Assim, para contrabalan-
caso do piloto de avião moderno em seu cockpit, do
çar esse efeito negativo, convém, sem dúvida, res-
usuário de um computador diante do seu equipa-
ponder ao problema de formação que acabamos de
mento. O executante técnico deve, assim, ser capaz
mencionar, aceitando dar um lugar importante no
de interpretar essas mensagens e responder a elas,
ensino a uma cultura científica geral, aparentemente
tomando decisões.
desinteressada e não diretamente eficiente, e até,
Decorre desta nova tecnicidade uma tensão, presen- sem dúvida, a uma cultura humanista, à cultura em
te na sociedade atual, entre uma exigência de especi- sentido estrito.

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