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A morte em Santo Tomás de Aquino

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9 de julho de 2012

Ricardo da COSTA

Sidney SILVEIRA

In : SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de (org.).

Idade Média: tempo do mundo, tempo dos homens, tempo de Deus .

Porto Alegre: EST Edições (Escola Superior de Teologia), 2006,

p. 223-229 (ISBN 85-7517-165-8).

In : SANTOS, Franklin Santana (org.). A Arte de Morrer - Visões Plurais - Volume 2 .

Bragança Paulista, SP: Editora Comenius, 2009, p. 209-217

(ISBN 978-85-98472-23-2).
Resumo : O presente artigo analisa a doutrina do Aquinate sobre a morte do ser
humano. Inicia-se com uma breve contextualização histórica e social da noção da
morte na sociedade medieval para, a seguir, abordar, o tema a partir das
perspectivas teológica (a morte do homem como um castigo decorrente do
pecado original) e ontológica - e por fim , trata ainda acerca da imortalidade da
alma humana, devido a sua intrínseca incorruptibilidade.

Resumo : O presente artigo analisa a doutrina de Santo Tomás de Aquino sobre a


morte humana. Inicia-se com um breve contexto histórico e social da noção de
morte na sociedade medieval para, a seguir, abordar a doutrina de Tomás de
Aquino sobre o tema desde o teológico (a morte do homem em conseqüência do
pecado original ) e perspectivas ontológicas e, por fim, considera a imortalidade
da alma humana como consequência de sua incorruptibilidade intrínseca.

I. A morte na Idade Média


Para os senhores do mundo feudal, a morte era um momento de conciliação. Caso não
morressem no campo de batalha, na cruzada ou em alguma peregrinação, eles
sucumbiam em casa, no seu leito, junto à família e aos amigos. Era então que despojar-
se de tudo: o moribundo, lentamente, sofria a dor com a chegada da morte e partilhava
tudo o que tinha, em uma grande formalidade pública. Todos os de sua casa, da família,
cercavam-no, ouviam suas decisões, a partilha, o desejo final. E, muitas vezes, a morte
era pressentida; aqueles homens, principalmente os oratores , tinham premonições,
visões que a anunciavam.1

Assim, tinha tempo para preparar o seu ritual coletivo, pois a boa morte cristã deveria
ser lenta, nunca súbita.2 Nessa morte preparada, ninguém morria só. O trespasse desse
mundo se transformava em festa, momento máximo da amizade entre os homens, do
convívio social e, sobretudo, da confirmação dos votos vassálicos.3  Todos
acompanham a passagem do moribundo para o além - inclusive as crianças, suas e dos
seus.4 Todos contemplavam o fim do corpo e como a morte é justa, pois iguala os
diferentes em vida.

Neste cenário, o choro e as lágrimas são uma criança eminentemente feminina: a


senhora e as suas damas de companhia ficar perto do corpo e gritar, rasgar como
vestes, arrancar os cabelos, carpir. Era a sua (importante) função pública5, pois o
gemido feminino era um  ritual gemido . As mulheres eram agentes essenciais do  rito
funerário6, e esse era um antigo  ritual fruitivo  que trazia a morte lenta e regradamente.
Era mesmo um prelúdio, a mudança para um estado superior7  - no caso, é claro, de
aquela alma ser agraciada por Deus e levada ao Paraíso, pois se acreditava que a maior
parte delas iria para o Inferno. Portanto, uma grande preocupação de todos não era com
a morte, e sim com a salvação de suas almas.8 Uma passagem da  Crônica de Hainaut ,
por exemplo, nos conta a procura do conde Balduíno pelas relíquias e explica: na agonia
íntima do último encontro com os homens, o conde congregava os seus, e implorava o
toque das relíquias sagradas, em busca da salvação de sua alma e do perdão de seus
pecados. Mas, principalmente, ele desejava uma concórdia feudal para que uma
congregação de seus homens prosseguisse após sua morte com seus filhos. “As portas
do outro mundo começavam a entreabrir-se para ele”.9

Assim, no decisivo momento da morte, aqueles homens, os poderosos, miravam para


cima, refletiam sobre quão frágil era a existência, como era pequeno, frívolo e cheio de
escândalo o século presente, e como era grande o poder de Deus e pequena a fraqueza
dos homens.10 O instante da morte era a última oportunidade de reconciliação com o
Criador. Sua presença foi tão forte e constante nas mentes dos homens de então que,
entre 1150 e 1250, surgiu a representação da morte sob a forma do esqueleto
empunhando uma foice.11

Mas cabe indagar: qual o lugar, nessa sociedade eminentemente analfabeta, para os
escritores, os pensadores? O que diziam sobre a morte? Como esse era um tema
presente no imaginário de todos os medievais, era natural que muitas páginas tenham
sido escritas por eles, já que, na Idade Média,  os homens viviam para morrer . Para a
nossa breve análise deste tema tão caro aos medievais, selecionamos um pensador,
talvez, o maior de sua época, Tomás de Aquino (1225-74), cuja obra, embora tenha se
alimentado da seiva comum das verdades da fé cristã, alçou -se muito acima do seu
tempo, buscando, pelo viés filosófico, a conciliação entre a fé e a razão.

II. A morte de acordo com Tomás de Aquino


No estudo intitulado “Tomás de Aquino e o nosso tempo: o problema do fim do
homem”, o filósofo Henrique C. de Lima Vaz adverte que a interpretação de uma
experiência que encontrou uma expressão teórica em textos do passado, pressupõe a
possibilidade de referir essa mesma experiência - e também a sua expressão - ao
presente, no ato da leitura.12

No caso de Tomás de Aquino, além dos problemas de hermenêutica suscitados pela


tentativa de interpretação de escritos compostos em época tão distante da nossa, uma
atitude de prudência é aconselhável, se nos aproximamos do Doutor Angélico com o
propósito de vislumbrar a harmoniosa justaposição dos elementos de seu vasto
sistema, no qual cada parte se ordena e é proporcionado a um fim específico, e cada
um desses fins, por sua vez, conduz a outros, no horizonte metafísico que tem Deus
como princípio e fim último de todos os entes.

Assim, como metodologia convém seguir o conselho do próprio Tomás, que, no


pequeno texto intitulado “O modo de estudar” ( De modo studendi ) recomenda: os
estudiosos não devem pronunciar-se de forma apressada acerca do que pesquisam.13
Feita esta advertência preliminar, registre-se que o presente estudo sobre a morte em
Tomás de Aquino buscará orientar-se por duas linhas mestras.
Uma dessas linhas parte do movimento que o teólogo dominicano DM Chenu apontou
no plano da  Suma Teológica : a  Prima Pars   trata da criação das coisas por Deus; a 
Secunda Pars referência  -se ao retorno de tudo ao seu princípio criador e ordenador, ou
seja, o próprio Deus; e a  Tertia Pars   estuda as condições cristãs para esse retorno,
nenhum caso particular do homem.14 O exemplarismo divino e o retorno da imagem
(homem) ao seu modelo (Deus) originado o eixo dos escritos morais de Santo Tomás, e
veremos como a morte do homem, para o Aquinate, se insere no contexto moral - que
se efetiva a partir dos atos livres do ser humano.

Por esta razão, é conveniente destacar que, segundo Tomás de Aquino, o ato
propriamente humano orienta-se pela vontade15, a qual é movida pela razão.16  Sendo
assim, como é natural no homem agir com algum grau de conhecimento do fim em
vista do qual idade, de qualquer um dos atos só pode dizer-se “bom” ou “mau” quando
for voluntário, pois uma ação involuntária - não movida pelo  apetite racional  (expressão
com que o Doutor Angélico designa a vontade) - não pode ser considerada boa ou má
sob o aspecto moral.17

Aqui nos deparamos com o cerne desta primeira linha mestra:  a morte humana como
conseqüência do mal moral , que a tradição judaico-cristã convencionou chamar de
“pecado original”, um ato de livre escolha para cuja execução ocorreu o concurso da
razão e da vontade .

Para Santo Tomás, a vida eterna não é outra coisa senão a própria bem-aventurança18 à
qual o homem foi destinado a Deus. Contudo, para alcançá-la, se requer dele a retidão
da vontade19, que tem a sua consecução na liberdade e, por isso, o Aquinate afirma que
é essencial para qualquer pena (e a morte, para ele, é uma pena, decorrente do pecado
original) ser contrária à vontade20  e, por conseqüência, à liberdade, que é o seu
sucedâneo.21

No chamado “estado de inocência original” ao homem foram concedidos os dons


preternaturais que o auxiliavam a evitar os erros22  e efetivar, a partir do exercício da
liberdade, o seu destino à beatitude eterna, inclui os verdadeiros bens (e dentre estes, a
vida, fonte de todos os demais). Pressuposta esta paradisíaca realidade, perdida com a
queda de Adão e Eva, Santo Tomás passa a distinguir - com relação ao mal do ponto de
vista ontológico - entre o mal que consiste na privação de uma forma ( ato primeiro , que
é o simples  ato de ser  de cada ente) e o mal que consiste na orientação de uma ação (
ato segundo , atinente às intenções).23  A morte corresponde à primeira dessas
distinções, referente à privação da forma, pois é a privação, no corpo humano, da sua
forma substancial: a alma ( anima ). É o chamado “mal de pena”.

À segunda distinção corresponde o chamado “mal de culpa”, que é uma desorientação


da vontade24, ou seja, quando esta escolhe pseudos bens, ou bens contingentes, que
obstam a consecução da felicidade perene, embora, sejam portadores de algum 
quantum   de bem e de prazer, pois todos os entes, pelo simples ato de ser ( actus
essendi ), são portadores de algum bem25 e, por isso, são apetecíveis, já que o mal não
tem essência, pois é a privação de bem nos entes26  - e, por esta razão o mal,  em si
mesmo , não pode mover o apetite racional da vontade, pois os homens agem sempre
buscando algum bem (real ou aparente) em suas ações. Neste horizonte metafísico,
cumpre enfatizar que  só o que é  pode ser apetecível pela criatura racional que idade
em vista de um fim que, necessariamente, tenha  razão de bem .

Na perspectiva da procedência de tudo a partir de Deus, mencionada acima,


dimensionam-se a vida e a morte do homem. Em termos concretos, o homem vive  a
partir de sua alma , que é o princípio do movimento e primeiro ato natural de um corpo
organizado27, a qual procede de Deus28, que a cria no momento do nascimento e não
antes29, pois, convém-lhe estar unida ao corpo.30

Assim, vivendo a partir de uma alma incorruptível unida a um corpo corruptível, o


homem morre, de acordo com Santo Tomás, por ter sido incapaz de manter a justiça
original do estado de inocência em que foi criado - no qual operavam, sob o controle da
razão, todas as faculdades da alma sem desordem alguma.31Nesse estado, a
ordenação da faculdade intelectiva da alma ao bem supremo, que é Deus, era perfeita.
A desordem na vontade e o ofuscamento da razão com o pecado original.

Nesta perspectiva, a morte do homem é considerada antinatural, e o filósofo saliente


isso frisando que a alma racional, de acordo com a sua incorruptibilidade, está
adaptada ao seu fim específico, que é a bem-aventurança perpétua.32 Na economia da
salvação das almas e de sua recondução a Deus, insere-se a Encarnação do Verbo, pois
é na pessoa do Cristo (que, por união hipostática, reúne em si como naturezas humana
e divina, deificando a carne pela união com o Verbo33) que ao homem é dada uma
oportunidade de recuperar a possibilidade de unir-se ao Criador.

A segunda linha orientadora deste escrito se configura no plano ontológico. Uma das
dificuldades de abordar o tema da morte em filosofia e, mesmo em teologia, é que se
trata do evento único na vida humana não suscetível de se transformar em  experiência .
Como frisa Aristóteles, muitas recordações de uma mesma coisa chegam a constituir
uma experiência.34 Mas como seria possível recordar de algo irrepetível, justamente o
episódio singular que põe fim à existência? Henrique de Lima Vaz salientea que duas
coisas concorrem para qualquer tipo de conhecimento e, particularmente, o filosófico: a
anámnesis  (recordação) e  nóesis  (pensamento).35

Por isso, a morte pode tão-somente ser pensada, testemunhada, observada, etc., mas
nunca será um experimento, passível de verificação posterior, e isto faz dela,
necessariamente, um mistério para qualquer campo de conhecimento.36Na melhor das
hipóteses, o homem está condenado a ter um simulacro de experiência da morte, a
partir da que sobrevém aos seus semelhantes. Como frisa José Ignácio Murillo, a
resposta ao enigma da morte acaba por se dar, geralmente, no âmbito da religião.37Mas
isto não implica dizer que a filosofia não pode dizer nada a respeito do fato
inquestionável da finitude da vida. E o Aquinate o faz.
Para Santo Tomás, a morte pode ser natural com respeito ao corpo, mas não é com
respeito à alma. Na tentativa de dimensionar o problema da morte humana como
sendo  a do corpo , em Tomás de Aquino, lembramos o seguinte: ontologicamente, o
mal físico que decorre da corrupção do corpo e faz o homem sofrer e, cujo grau
máximo, é a morte, com a destruição conseqüente do corpo, não é a negação de um
bem possível, mas a privação de um bem natural, isto é, de uma perfeição devida à
natureza de determinado ser, como diz Leonel Franca.38

Por esta mesma razão, não é um mal físico para uma pedra não ter pernas, pois
naturalmente não as têm. Nela, não ter pernas é negação; mas no homem, não tê-las é
privação de um bem específico, integrante de sua natureza.39  Para Leonel Franca, a
morte não entrou no mundo pela corruptibilidade intrínseca (e filosoficamente
inquestionável) da matéria, mas por uma iniciativa infeliz do espírito, o qual perdeu o
dom de preservar a matéria da corrupção.40

Em relação à incorruptibilidade da alma, Santo Tomás demonstra-a de várias maneiras,


como a partir da premissa de que nenhuma coisa se corrompe naquilo em que se
aperfeiçoa, porque as mudanças para a perfeição e para a corrupção são contrárias, e a
alma humana se aperfeiçoa pela ciência e pela virtude, às quais tende por natureza;
pela ciência, tanto mais a alma se aperfeiçoa quanto mais considera as coisas
imateriais; e pela virtude, a perfeição consiste em não seguir as paixões corpóreas, mas
em refreá-las.41

Neste horizonte, ele considera o  perfectivo próprio do homem , segundo a alma, como
algo incorruptível, pois a operação própria do homem é o conhecimento intelectivo,
segundo o qual ele se diferencia dos animais irracionais. “Ora, o conhecimento
intelectivo tem por objeto os universais e os incorruptíveis como tais. Como as
perfeições de um ser são proporcionadas aos sujeitos perfectíveis, também a alma será
incorruptível ”.42

O filósofo argumenta medieval contra os que dizem que a alma separada do corpo não
efetiva nenhuma operação, dizendo que há operação da alma humana, como a
intelecção e a volição, que independem da situação.43  Para Santo Tomás, o intelecto
apreende a coisa abstraindo da matéria, que é princípio da individuação, o que não
acontece com os sentidos, pois estes se referem às coisas particulares, e o intelecto
chega aos universais pela abstração da matéria individual44, pois, enquanto o intelecto
elabora o conceito universal de “homem” e de “cadeira”, os sentidos captam apenas 
este  homem e  esta  cadeira.

Da imaterialidade total estas duas operações da alma - a intelecção e a volição -, o


Aquinate conduz-nos às substâncias conhecidas da matéria, como a alma dos homens
e os anjos.45  A respeito nestas últimas, conclui que, se há algo imperfeito em algum
gênero, por prioridade de natureza haverá, antes dele, algo perfeito, pois o mais perfeito
tem prioridade sobre o menos perfeito.46  No caso dos anjos ou substâncias isoladas,
uma operação máxima - que é a intelecção - não proviria dos materiais sentidos, pois os
anjos não estão, desencadear, unidos a nenhum corpo.47
Um conjunto de artigos da  Suma contra os Gentios   conduz à demonstração da
incorruptibilidade das substâncias intelectuais, a partir de várias premissas, assim
como do fato de serem tais substâncias subsistentes. Assim, por exemplo, como o
sensível é objeto próprio dos sentidos, o inteligível é objeto do intelecto. Limitea Tomás
de Aquino, neste contexto, que os sentidos podem corromper-se pela excelência do seu
objeto, como acontece com o olho humano, ao contemplar um objeto excessivamente
luminoso. Entretanto, o intelecto jamais se corrompe pela excelência do objeto
inteligível, mas, ao contrário, aperfeiçoa-se, sendo o inteligível a própria perfeição do
intelecto.48

Todavia, como a substância intelectual, no caso do homem, está unida ao corpo, alguns
filósofos anteriores ao Aquinate pensaram que todas as operações da alma humana
beneficiam às operações do corpo, ou ainda que a união corpo / alma não era
substancial, mas acidental - como Platão nos induz a concluir, com uma proposição
famosa de que a alma se encontra no corpo como o piloto em seu navio e, por isso, a
alma apenas se serve do corpo - como faz o piloto com o navio, no sentido de que este
o conduza ao seu fim.49

Tem-se aqui um esboço sumário da doutrina tomista sobre a morte humana50, a qual se
respalda na perspectiva teológica - a da morte como  decorrência do pecado original  - e
se consuma na análise da estrutura ontológica da alma racional, em duas (dentre as
várias) obras em que Santo Tomás aborda o tema, com diferentes relatos acerca da
impossibilidade de sua extinção, pelo fato de ser intrinsecamente incorruptível e
subsistente.

Em relação ao destino da alma, após a morte, Tomás aborda a questão em diferentes


escritos, mas se trata de um assunto que faz parte de um tema que foge ao escopo
deste artigo: o da escatologia.

Suma contra os Gentios , Capítulo LXXIX - Corrompido o corpo, a


alma não se corrompe
1.   Depreende-se claramente do acima exposto que se pode demonstrar que a alma
humana não se corrompe, após a corrupção do corpo. Com o efeito, foi acima referido
(c. LV) que toda substância intelectual é incorruptível. Ora, foi também caracterizada
que a alma humana é uma determinada substância intelectual (c. LVIss). Logo,
necessariamente a alma humana é incorruptível.51

2.   Além disso, nenhuma coisa corrompe-se naquilo que constitui a sua perfeição,
porque as mudanças para a perfeição e para a corrupção são contrárias. Ora, a
perfeição da alma humana consiste em certa abstração do corpo. Com efeito,
aperfeiçoa-se a alma humana pela ciência e pela virtude, pois, pela ciência, tanto mais é
aperfeiçoada quanto mais considerações como coisas imateriais, e a perfeição da
virtude consiste em o homem não seguir como paixões corpóreas, mas em refreá-las e
temperá-las pela razão. Logo, a corrupção da alma não consistirá em ela separar-se do
corpo.

3.  Porém, se se afirmar que a perfeição da alma consiste em sua separação do corpo


segundo uma operação, e a corrupção na separação segundo o ser, não se objeta
corretamente. Com efeito, uma operação da coisa demonstração a sua substância e o
seu ser, porque toda coisa ópera enquanto ser e a operação própria da coisa segue-lhe a
natureza. Por isso, não é possível aperfeiçoar a operação de uma coisa se não é
segundo a perfeição de sua substância. Agora, se uma alma aperfeiçoa-se na sua
operação por deixar o corpo, uma substância incorpórea não ficará menos perfeita no
ser por ter feito o corpo.

4.  Além disso, o perfectivo próprio do homem segundo a alma é algo incorruptível, pois
uma operação própria do homem, enquanto o homem, é o conhecimento intelectivo,
segundo o qual ele se diferencia dos animais, das plantas e dos corpos inertes. Ora, o
conhecimento intelectivo tem por objeto os universais e os incorruptíveis como tais.
Como as perfeições de um ser são proporcionadas aos sujeitos perfectíveis, também a
alma humana é incorruptível

Notas
1. Georges DUBY,  O ano mil . Lisboa: Edições 70, 1986, p. 80-83.
2. A melhor narrativa sobre a morte na Idade Média é ainda, a nosso ver, o
pequeno livro de Georges DUBY,  Guilherme Marechal, ou o melhor cavaleiro do
mundo  (Rio de Janeiro: Graal, 1987). Também cabe ressaltar que, para toda a
tradição assentada desde o protocristianismo, a morte lenta é bem vista, por ser
uma oportunidade de santificação para a alma, que, no sofrimento, torna-se capaz
de se voltar para Deus. Por sua vez, a morte súbita era temida na medida em que
reduzia como chances de arrependimento do pecador, chances para que
meditasse sobre os seus pecados e os confessasse a Deus, representado pelo
sacerdote  in persona Christi .
3. G. DUBY, “Quadros”. In : G. DUBY, Georges e Ph. ARIÈS, (dir.). História da vida
privada 2. Da Europa feudal à Renascença . São Paulo: Companhia das Letras,
1990, p. 65-66.
4. Ph. ARIÈS,  Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média . Lisboa:
Teorema, 1989, p. 24
5. G. DUBY,  Damas do século XII. A lembrança das ancestrais . São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, p. 20-21.
6. E. LE ROY LADURIE,  Montaillou. Cátaros e católicos numa aldeia francesa - 1294-
1324 . Lisboa: Edições 70, s / d, p. 282.
7. G. DUBY,  Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo . Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1987, p. 10
8. E. LE ROY LADURIE,  op. cit ., p. 289.
9. G. DUBY, “Quadros”,  op. cit. , p. 95
10. Llibre dels fets del rei en Jaume . Barcelona: Editorial Barcino, 1991, vol. II, I, 34-
38, p. 6
11. Heitor MEGALE, “Apresentação”. In: HÉLINAND DE FROIDMONT. Os Versos da
Morte. Poema do século XII. São Paulo: Editorial Ateliê, 1996, p. 09
12. HC de LIMA VAZ,  Escritos de Filosofia I - Problemas de Fronteira . São Paulo:
Edições Loyola, 1998, p. 37
13. “Tardiloquum te esse iubeo et tarde ad locutorium accedentem”. TOMÁS DE
AQUINO -  De modo studendi , § 3 (tradução para o português do filósofo Paulo
FAITANIN [Uff], em versão ainda não editada, gentilmente cedida pelo autor).
14. Suma Teológica, Biblioteca de Autores Cristianos  (BAC ), p. 34. Santiago
Ramírez, em outra edição da Suma Teológica da BAC, afirma de modo semelhante
que na  Primeira Parte  da  Suma , Tomás de Aquino apresenta Deus em si mesmo
- um em essência e trino em pessoas -, além de criador, conservador e governador
de todas as coisas; na  Segunda Parte , investiga e analisa os meios adequados
para conduzir como criaturas racionais e livres à posse do fim último e supremo
que é Deus, assim como os objetivos e tropeços que podem apartá-las desse
ditoso fim; e, na Terceira Parte, assinala o caminho que conduz a Deus, na pessoa
do Cristo. Vide TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Salamanca: Biblioteca de
Autores Cristianos (BAC), 1947, Introdução, p. 2-3.
15. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , Iª IIª, q. 1. a. 1, Resp .; Suma Teológica ,
Iª IIª, q. 6. a. 1., Resp.
16. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , Iª IIª, q. 9. a. 1. Para Tomás de Aquino,
não tocante como suas operações, a vontade humana, que ontologicamente é
perfeita para querer o bem, pode dizer-se imperfeita quando a razão, que a
alimentação, está em erro e leva o agente a inclinar-se a um bem (ou falso bem)
que lhe seja impróprio (“Praecedit igitur in voluntate peccatum accionis defectus
ordinis ad rationem”,  Suma contra os Gentios , III, cap. 10, 9. A edição que
compulsada no trabalho é a editada em Caxias do Sul, pela Escola Superior de
Teologia São Lourenço de Brindes, 1990. A tradução desse texto é de lavra de D.
Odilão de Moura OSB e D. Ludgero Jaspers OSB.
17. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , III, cap. X, 6.
18. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 64. a. 2, Resp.
19. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , Iª IIª, q. 4. a. 4. Ressalve-se que, embora
necessária à beatitude ou bem-aventurança, a retomada é apenas um ponto de
partida, pois, para o Aquinate, a bem-aventurança é uma operação da parte
intelectiva da alma humana, porque, após alcançá -la, a vontade repousa e como
que pára de querer, pois se move buscando o fim somente quando este não está
presente. Assim, a essência da bem-aventurança consiste em um ato do
entendimento (ver  Suma Teológica, Iª IIª, q. 3. a. 4), quando a vontade gozosa
descansa no fim já conseguido. A infelicidade máxima, em contrapartida, é a
impossibilidade formal de alcançar a bem-aventurança, caso dos demônios e dos
condenados à pena eterna, que tanto mais obrigado porque neles ainda requer
uma necessidade natural à virtude e o desejo de beatitude. Eis a situação aflitiva
dos condenados ao inferno: trata-se da permanência do apetite racional do bem,
associada à impossibilidade de alcançá-lo. Ver  Suma Teológica , Iª IIº q. 85. a. 2,
Ad.3.
20. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 94. a. 3, Resp.
21. Ao longo da  Prima Secundae  da  Suma Teológica , há uma explicação
circunstanciada das causas que anteriores o “ato livre”: a razão é causa formal do
ato livre humano, enquanto os paixões do apetite sensível influenciam sobre uma
maneira pela qual o objeto se apresenta à vontade. Por fim, a vontade é movida
em função do fim que persegue, que é uma beatitude perfeita, o bem supremo que
é Deus. Veja Jean-Pierre TORREL, OP  Iniciação a Santo Tomás de Aquino - sua
pessoa e sua obra . São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 285.
22. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 94. a. 4
23. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 48 a. 6
24. Há um consenso entre pensadores de orientação tomista de que como
paixões diminuem a liberdade humana, pelo ofuscamento da razão, embora os
atos continuem sendo voluntários. Neste sentido, diz-se que o ato propriamente
humano (voluntário e racional) pode não se dar em sua perfeição, por
impedimentos próximos ou remotos. Os impedimentos próximos serão:  a )
cognoscitivos  (ignorância, inadvertência, erro e esquecimento); b )  volitivos
 (concupiscência, medo, paixões e hábitos); c )  executivos  (violência). Já os
impedimentos remotos seriam:  a )  naturais (temperamento, caráter, propriedade,
idade e sexo)  b ) patológicos  (neurastenia, histeria, epilepsia, etc.); c ) 
sociológicos  (educação, ambiente social etc.). Antonio Royo MARIN. Teología
moral para seglares . Madrid, (BAC), 1957, p. 49-65.
25. Dado que para o Doutor Angélico, uma culpa consiste em um ato desordenado
da vontade, e a pena, na privação de algumas coisas de que a vontade se utiliza
para operar, Santo Tomás diz que a culpa tem maior razão de mal do que a pena ,
sendo esta uma dada privação da graça e da glória. Suma Teológica , I, q. 48 a. 6
26. TOMÁS DE AQUINO,  De Malo , q.1, a.1, Resp.
27. TOMÁS DE AQUINO,  A unidade do intelecto contra os averroístas . Lisboa:
Edições 70, 1999, p. 47; e ARISTÓTELES,  De anima , II, 1, 412 b.
28. Para Santo Tomás, nas procissões divinas, tudo o que procede do Verbo se
chama geração. Mas ele adverte que usa o termo em dois sentidos: no primeiro,
trata-se da passagem do algo do não-ser ao ser, chamada criação; no segundo,
trata-se da origem de um ser vivente a partir do seu princípio vital e de movimento.
Este último tipo de geração, dá o nome de nascimento. (“Sciendum est quod
nomine generationis dupliciter utimur. Uno modo, communiter ad omnia
generabilia et corruptibilia, et sic generatio nihil aliud est quam mutatio de non
esse ad esse. Alio modo, proprie in viventibus, et sic generatio significat originem
alicuius viventis a principio vivente coniuncto. Et haec proprie dicitur nativitas ”).
Ver  Suma Teológica , I, q. 27. a. 2. Resp.).
29. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 90. a. 2. Resp. (“Respondeo
dicendum quod anima rationalis non potest fieri nisi per creationem”).
30. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 90. a. 4. (“Anima autem, cum sit
pars humanae naturae, non habet naturalem perfectionem nisi secundum quod est
corpori unita. Unde non fuisset conveniens animam sine corpore creari”). O
Aquinate ressalta que, sendo o homem um composto de forma e matéria, no qual
a alma é (a única) forma substancial, esta só está em estado de perfeição
enquanto unida ao corpo, embora possa subsistir de modo imperfeito sem ele, por
ser incorruptível. Por esta razão, não seria congruente que a alma fosse criada
antes do corpo, mas juntamente com ele, porque Deus cria tudo sempre
complementar à perfeição. Ela não recebe o existir antes de estar unida ao corpo
(“Non igitur competit naturae ordini quod anima fuerit prius creata a corpore exuta,
quan corpori unita”,Suma Contra os Gentios , II, cap. 83, 1660).
31. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , Iª IIª, q. 85. a. 5. (“... per peccatum primi
parentis sublata est originalis iustitia, per quam non solum inferiores animae vires
continebantur sub ratione absque omni deordinatione, sed totum corpus
continebatur sub anima absque omni defectu, ut in primo habitum est”).
32. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , III, q. 2. a. 2. Anúncio. 3
33. TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 48 a. 6
34. ARISTÓTELES,  Metafísica , I, 1, 981a.
35. “A filosofia assume como tarefa pensar tematicamente o seu próprio passado
- anámnesis e nóesis - e nesta rememoração pensante, reinventar os problemas
que deram origem” - Marcelo PERINE (org.). Diálogos com a cultura contemporânea
- homenagem ao Pe. .Henrique C. de Lima Vaz , São Paulo: Edições Loyola, 2003, p.
66
36. Mesmo a Medicina, embora tão próximo do fenômeno da morte, não pode
fazer dela uma “experiência”, no sentido aqui, pois todos os seus avanços dizem
respeito antes de tudo à preservação da vida e da saúde humana, sendo a morte,
justamente , a frustração de todos os seus esforços.
37. José Ignacio MURILLO. El valor revelador de la muerte - estudio from Santo
Tomás de Aquino . Navarra: Cuadernos de Anuario Filosófico de la Universidad de
Navarra. 1999, p. 13
38. Leonel FRANCA. A psicologia da fé - O problema de Deus . São Paulo: Edições
Loyola, 2001, p. 316.
39. José Ignacio MURILLO,  op. cit ., p. 55: “La naturaleza (...) no es otra cosa que
la realidad irredutível de algo, en cuanto principio de actividad. En el caso del
hombre, la naturaleza es la unión de un alma espiritual con un cuerpo that
necesita to llevar a cabo su actividad propia, entendre ”.
40. Leonel FRANCA,  op. cit ., p. 327
41. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , II, cap. 79, pág. 1599.
42. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , II, cap. 79, pág. 1601.
43. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , II, cap. 79, pág. 1624.
44. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , II, cap. 82, pág. 1641 e 1642.
45. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , II, cap. 91
46. É importante observar que, para o Aquinate, não ser humano as operações
anímicas do entendimento e da vontade não são a mesma coisa do que se passa
com os anjos. Enquanto as primeiras, de acordo com Santo Tomás, são passíveis
de demonstração racional, quanto aos anjos, propriamente, o Angélico antigo que
a sua existência não é demonstrável pela razão humana, mas uma verdade de fé
ratificada pela autoridade das Escrituras, embora um seja dado razoável e
fundamentalado, mas não o termo de uma demonstração filosoficamente
necessária. Santo Tomás afirma que os anjos são realidades intermediárias entre
Deus e as criaturas corpóreas, e estão sempre em movimento porque estão
“sempre entendendo”. Ver TOMÁS DE AQUINO,  Suma Teológica , I, q. 50 a. 1
47. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , II, cap. 96, 1812.
48. TOMÁS DE AQUINO,  Suma contra os Gentios , II, cap. 55, 1306-1307.
49. No artigo intitulado “Tese de Platão sobre a união da alma intelectiva com o
corpo” (Positio platonis de unione animae intelectualis ad corpus), na  Suma
Contra os Gentios  (II, 57, 1326), Santo Tomás cita  ad tertium a tese de Platão de
que a alma está no corpo como o marinheiro no navio, concluindo que, sendo
assim, a união de ambos se daria por um contato apenas virtual, mas não
substancial. Cumpre observar, contudo, que não obstante esta diferença
ontológica fundamental, que resultará em teses diametralmente opostas, como a
de que a alma é mais perfeita e conhece melhor quando despojada do corpo
(Platão), e a de que a alma humana, sem o corpo , subsiste de modo imperfeito
(Santo Tomás), há aproximações entre os dois filósofos. Uma delas consiste na
tese - desenvolvida n'A República - de que os machos próprios de cada ente os
corrompe. Mas, no caso da alma humana, o seu mal, que é o vício, por maior que
seja, não a destrói nem a corrompe, pois, mesmo na maldade, a alma continua a
existir. Por isto, se a alma não pode ser destruída pelo mal do corpo, que lhe é
totalmente alheio, nem pelo seu próprio mal, que é o vício, ela será, portanto,
indestrutível. Ver, PLATÃO, A República , 610-611a.
50. Com respeito à morte dos animais irracionais, o ponto de vista de Santo
Tomás é totalmente diverso, pois a alma deles, para o Angélico, não sendo capaz
de efetivar nenhuma operação sem a intermediação de algum órgão corporal, é
necessariamente, mortal, e se extingue juntamente com o próprio corpo deles.
51. Edição citada, vol. I, p. 319.

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