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Rosalind Krauss
"Lembranças.
todo roteiro e toda encenação sempre foram construídos sobre ou por lembranças. É preciso
que se mude isso. "Départ dans la l'affection et le bruit neufs"
Jean-Luc GODARD
Há uma ironia singular neste recurso à história como operadora de significado. Tal
postura se inscreve paradoxalmente numa tradição que se afasta da idéia do ato originário
de demolição histórica. De fato, toda leitura da arte moderna se sente, cedo ou tarde,
constrangida de virar-se para Manet e falar de seu ataque à pintura histórica. Esses relatos
contentam em nos fazer reviver o momento da subversão, em que os modelos de valor
propriamente acadêmico -a história, o clacissismo - teriam sido CULBUTÉS para servir
de receptáculo às percepções de uma consciência moderna. Nascidos de uma estratégia
histórica, o Olympia e o Déjeuner, enquanto estruturas inteiramente consagradas às
formas e às significações do presente, teriam sido erigidas sibre os programas deixados
pelos grandes mestres. A força desta construção teria sido depositar na ruptura histórica
um fundamento legítimo de valor
É claro que, visto de fora, o postulado de uma continuidade entre minimalismo e pós-
minimalismo parecerá evidaente. Para o observador não iniciado, as estratégias de um e
do outro são perfeitamente similares. O uso que Mel Bochner faz da série de números
cardinais, ou a maneira como Richard Serra elabora uma forma projetando chumbo
fundido no ângulo de uma parede, descolando os pedaços endurecidos, projetando o
chumbo novamente, descolando de novo... podem se parecer com a construção de uma
fileira de caixas por Judd, a um alinhamento de tijolos de André, à divisão de uma
superfície em tiras de Stella. Todos esses processos aprticipam de uma mesma implaca-
bilidade e testemunham a seriedade com que estes artistas, para retomar as palavras de
Judd, colocam "uma coisa depois da outra". Como as modalidades de elaboração são
aparentadas, podemos achar que é irrelevante precisar que as tiras de Stella se inscrevem
num suporte de tela, enquanto Mel Bochner e Dorothea Rockburne aplicam suas marcas
diretamente na parede. Da mesma forma, pode parecer inutilmente sutil lembrar que as
construções de Judd, Morris e Andre põe em jogo formas geométricas racionais,
enquanto as de Serra são decorrentes de seu processo de fabricação. O observador
ingênuo, que não vê ruptura entre estes trabalhos, tem dificuldades em compreender por
que um grupo é distinguido do outro pelo prefixo "pós" , com valor de rótulo histórico. E
este observador ingênuo tem do seu lado o senso comum, ele está correto. O único erro
está em enfatizar uma similaridade de procedimento em vez de uma outra, mais crucial
e igualmente manifesta, que diz respeito a um consenso sobre as condições necessárias à
significação.
Apenas uma crítica ofuscada pela lógica pendular da alternância histórica pode se
permitir negligenciar as objeções de nosso observador naïf. Insistindo em sublinhar a
recusa do objeto que implicam os números ou as marcas de lápis traçadas diretamente na
parede, este tipo de crítica faz de "desmaterialização" uma noção classificatória. Mas o
termo é muito vasto para ser realmente operatório: "desmaterialização" é uma categoria
que não permite diferenciar , por exemplo, a obra de Sol LeWitt, Bochner, Rockburne e
Richard Tuttle, de outros tipos de arte que prescindem do objeto – como em Robert
Barry, Joseph Kosuth ou Douglas Huebler. O termo não nos permite apreciar o quanto a
significação nos trabalhos do primeiro grupo se opõe radicalmente ao tipo de conteúdo
(aos modelos de formulação da significação) veiculado pelos trabalhos do segundo grupo.
Pois o conceitualismo desenvolvido por este último grupo mostra um profundo tradi-
cionalismo face à questão da significação. Robert Barry foi perguntado, em entrevista
sobre o "Prospect 69" em que consistia seu trabalho para esta exposição:
"O trabalho é feito de idéias que as pessoas terão a partir da leitura desta
entrevista. A obra é inacessível ao conhecimento na sua totalidade porque ela
existe no espírito de um número muito grande de pessoas. Cada pessoa pode
apenas conhecer de fato a parte da obra presente em seu espírito"
A resposta de Barry é um equivalente verbal da Série de Gases Inertes, que ele realizou
no mesmo ano. As fotografias de locais nos quais supõe-se que gases invisíveis foram
liberados implicam o mesmo gênero de localização no seio da consciência de cada um
dos diferentes espectadores: a obra deve ser completada pela adjunção de uma imagem
mental do gás (invisível) à imagem concreta da paisagem. Como cada uma dessas
imagens mentais é, por natureza, privada, "Cada pessoa pode apenas conhecer de fato a
parte da obra presente em seu espírito".
É esta noção de privado e de linguagens privadas que distinguem esses artistas da arte
minimalista/pós-minimalista, e por isso é importante explorar as diversas formas passa-
das e presentes da linguagem privada e compreender suas implicações. De início, não
surpreende que os artistas imersos na "linguagem protocolar" se interessem muito pela
intenção. Pensemos nestas afirmações de Kosuth:
Parece bastante lógico dizer que "a arte é a expressão de alguma coisa", e à questão
"expressão de que?" responder : "expressão do artista, daquilo que ele tinha em mente –
ou expressão da maneira como ele viu algo." No caso do Expressionismo Abstrato essas
respostas devem ter sido particularmente pertinentes, já que as primeiras leituras de
Pollock e De Kooning lhes fizeram grande eco. (ainda que, no caso de Pollock, comen-
tários posteriores tenham abandonado essa concepção.) Nesta lógica da "expressão", os
críticos, de início, consideravam cada marca inscrita sobre a tela como emanando de um
Mim privado de onde provinha a intenção e deixar esta marca. Nesse sentido, a superfície
da obra se assemelhava a um mapa, transcrevendo as tendências contraditórias da
personalidade do artista, do seu Mim inviolável.
Aqui começa a aparecer o tipo de tradicionalismo que eu atribuía a certas formas de arte
conceitual. De fato, é possível esboçar um vínculo entre a maneira como a intenção/ex-
pressão ode constituir um modelo temporal e a maneira como o ilusionismo pictórico
pode constituir um modelo espacial
Assim, da mesma forma como a intenção pode ser, como dissemos, assemelhada a um
evento mental necessariamente privado, interno, exteriorizado através da seleção de
objetos, os objetos que aparecem no interior de um espaço pictórico podem ser vistos
como emergentes de um conjunto de coordenadas interiorizadas e previamente orde-
nadas. À medida em que nos deslocamos na história da pintura para a arte americana do
pós-guerra, quer dizer, do expressionismo abstrato, estes dois espaços prévios ( o fundo
da tela e o espaço mental privado dotado de intenções) se fundem e se tornam cada vez
mais tema dos próprios trabalhos
É claro que a significação de uma tentativa que procure minar o ilusionismo não pode ser
dissociada da bagagem que acompanha a representação pictórica no Ocidente. A rejeição
do ilusionismo implica em um desvio fundamental na noção de consciência constitutiva e
de toda "linguagem protocolar" de um Mim privado: é a recusa definitiva de um espaço
que precede a experiência, que espera passivamente para ser ocupado, e de um modelo
psicológico no qual o Mim já se encontra provido de significações antes de qualquer
contato com o mundo exterior. . Se queremos falar do anti-ilusionismona arte dos anos
60, não podemos limitar nosso discurso a uma ideologia da forma
Os signos que assombram as primeiras pinturas de Stella são mais do que simples
significantes de suas formas literais. Die Fahne hoch! e Luis Miguel Dominguin são
estruturadas de forma dedutiva, mas as duas pinturas chegam à configuração particular de
uma cruz. Podemos, é claro, pensar que isso é acidental. Também podemos considerar
que é por acaso que a Cruz se assemelhe ao signo mais primitivo de um objeto num
espaço: a vertical da figura projetada contra um a linha horizontal de um fundo
indefinido. Mas a relação tridirecional [the three way relationship] que se estabelece na
superfície listrada destes quadros permitem argumentar em favor de uma conexão lógica
entre o aspecto cruciforme de toda figuração(1), de toda intenção de localizar uma coisa
em seu mundo, e a maneira como o signo convencional – neste caso, a Cruz – é natu-
ralmente oriundo de um referente do mundo. Cada tela nos põe na presença , não da
capacidade de Stella de inventar formas, nas de um emblema particular oriundo do
repertório comum dos signos – cruzes, estrelas, encadeamento de anéis, etc. – que
pertencem, por assim dizer, à linguagem do mundo. Com essas pinturas, Stella apresenta
um relatório convincente da gênese inicial desses signos, do modo como se encontram
engendrados em uma série de operações naturais e lógicas
Parece então que a lógica da estrutura dedutiva é indissociável da lógica do signo.As duas
parecem se sustentar mutuamente e exigem que levemos em conta a história natural da
linguagem pictórica [pictorial language] enquanto tal. O verdadeiro sucesso dessas
pinturas é não só estarem totalmente imersas na significação, mas também fazer a
significação depender apenas de sua superfície(2) – não apenas do exterior, do público,
mas também de um espaço que não é de modo algum um significante do a priori ou do
caráter privado da intenção.
Esta concepção do Mim já era questionada no final dos anos 50 por Becket e pelo
Nouveau Roman. Ela era também um ponto de partida particularmente importante para a
filosofia do segundo Wittgenstein, para quem os jogos de linguagem eram uma terapia
que visava a romper o laço lógico entre significação e pensamento. No Caderno marrom,
por exemplo, Wittgenstein pergunta o que significa dizer que conhecemos uma melodia:
que, antes de cantá-la, nós a assobiamos rapidamente em silêncio? Ou que temos uma
imagem da partitura na cabeça – uma imagem mental da melodia – e que lemos as notas
enquanto cantamos? Nosso conhecimento desta melodia depende de a termos estocado
em algum lugar dentro de nós, como pérolas alinhadas num fio e prontas a serem
extraídas de nossas bocas? Ou deve-se simplesmente ao fato de cantar a melodia, ou de
ouví-la muitas vezes para poder dizer: "Assim está certo" ? Nas Investigações filosóficas,
a questão da melodia e de como saber onde ela está localizada quando afirmamos
conhecê-la é estendida às imagens da memória e aos fundamentos de toda pretensão de
conhecimento. Wittgenstein procurou muitas e muitas vezes romper os vínculos entre as
certezas implicadas por tais afirmações e a imagem de um espaço mental no interior do
qual definições e regras seriam conservadas a espera de serem aplicadas. Seu trabalho,
em decorrência, consistia em destruir a concepção de um espaço mental privado (a
acessível somente ao Mim ) no qual as significações e as intenções existiriam antes de
serem lançadas no espaço do mundo. Wittgenstein nos intima a aceitar um modelo de
significação livre de toda tentativa de legitimação de um Mim privado.
A característica essencial da arte americana no fim dos anos 60 foi ter posto em jogo a
verdade deste modelo. Conseqüentemente, analisar a obra de Stella, Morris, Judd ou
Andre unicamente como um projeto de reorganização formal é passar ao largo da
significação mais fundamental deste trabalho. Ademais, corremos o risco de não
compreender ou de interpretar erradamente a maneira como esta mesma noção de
significação persiste em parte da arte do presente.
A obra de Mel Bochner, por exemplo, consiste em uma tentativa de projetar o fato
lingüístico sobre o fato perceptivo – não para sublinhar o caráter não substancial de um
em oposição à materialidade do outro, mas para demonstrar experimentalmente o quanto
eles se encontram em relação de fecundação recíproca. Em Mesurements, Group B, 1967,
Bochner inscreveu nas paredes de uma sala suas dimensões , fazendo assim aparecer o
espaço sobre a imagem de sua própria épura [blueprint], sem que seja possível perceber a
anterioridade de um em relação à outra. O ilusionismo é anulado na experiência deste
objeto em extensão (a parede) que serve de base à extensão aritmética e à extensão de
uma geometria abstrata encarnada por essas cotas, através das quais a dimensão de
projeta no mundo.
Assim, minha tese é que, na última década, certos artistas manifestaram a necessidade de
explorar a exterioridade da linguagem e, em conseqüência, da significação. Na mesma
época, essa necessidade encontrou paralelo no trabalho de certos escultores : a descoberta
do corpo como exteriorização completa no Mim.
(...)
Mas esta análise, parece, vai precisamente ao encontro da experiência real que temos da
obra: ela coloca a idéia de identidade sobre um mundo de diferenças. Em certo sentido,
caímos na armadilha daquilo que Morris chama de "constante conhecida", esta unidade
cartesiana ideal que o trabalho em questão leva precisamente a considerar como um
resquício nostálgico das formas de explicação passadas. Raciocinar em termos de
"constante" é ignorar o modo como essa mesma "constante" se remete, na escultura, a
uma espécie de ficção que sai de cena pouco a pouco para dar lugar à noção de diferença
absoluta, no seio da especificidade do espaço real. . Se inscrevendo no espaço da
experiência – esse que nosso próprio corpo ocupa – os L-Beans anulam as coordenadas
axiomáticas de todo espaço ideal. Recorremos a essas coordenadas quando pensamos o
espaço como uma grade perfeita – cujas linhas, todavia, parecem se confundir na
profundidade por causa de nosso ponto de vista particular. Tudo se tornará claro,
pensamos, se podermos nos imaginar sobrevoando o espaço e corrigindo as distorções de
nossa perspectiva – restabelecendo assim o paralelismo absoluto da grade. Mas a
significação da experiência da profundidade não reside em nada no postulado deste
sobrevôo ideal
Como escultor, Morris sempre tentou pôr e cheque a diagramática. Nas peças compostas
de elementos de fibra de vidro feitas em 1967-1968, ele evita que a configuração
específica da obra apareça como uma figura – algo destacado do "fundo" da estrutura
"real" do objeto. De fato, enquanto uma estrutura interna fixa poderia reforçar no
espectador a noção de um Mim anterior a qualquer experiência, estas unidades, por serem
separadas e permutáveis, sugerem a idéia de um Mim existente somente nesta
experiência momentânea de exterioridade
De diferentes formas e com estratégias diversas, Juss, Andre, e Flavin também atacam a
persistência do cartesianismo em suas obras, fazendo a significação depender do espaço
exterior. Esta idéia de fusão na experiência, de uma realização do Mim na exteriorização,
é evidente nas Prop Pieces que Serra começa a fazer em 1969. Em uma metáfora
surpreendentemente abstrata, estas sobras sugerem um processo constantemente
renovado do corpo buscando sua própria coesão, através de uma forma que é percebida
como atingindo (en train de atteindre) a coesão. A precariedade particular dessas Prop
Pieces, feitas de elementos distintos, evocam uma tensão entre a unidade conceitual de
formas simples e as condições reais de sua união física in situ. One Ton Prop (House of
Cards) é um cubo (portanto uma forma "ideal") percebido ao mesmo tempo como
dependente da manutenção de certas condições reais. House of Cards trata também do
espaço interior como se ele fosse constantemente acessível a uma visão exterior, e como
se ele fosse inteiramente definido pelo ato de percepção do equilíbrio que constrói seu
exterior. . Assim, a interioridade (o "Para Si") se torna claramente uma função da
exterioridade (o "Para o Outro").(4)
Godard disse uma vez que a maior parte dos filmes se revelam uma forma de lembrança,
e que todos pareciam estranhamente conjugados no passado. Para evitá-lo, ele preferia
não escrever seus filmes com antecedência, e esperar a noite anterior à filmagem para
esboçá-la, obrigando seus atores a improvisar no momento da gravação. O que ele
procurava era a desordem, as passadas em falso, do presente vivido. Assim fazendo,
Godard definia uma sensibilidade para a qual a história, enquanto narração no passado,
era então obsoleta.
Este ensaio começou com outro caso de rejeição da história, o caso de Manet. Agora vejo
que foi um mau exemplo. A conduta de Manet era profundamente histórica : consistia em
se livrar do conteúdo de uma história em particular, mas não da forma da história. Afim
de criticar o passado, de torná-lo caduco ou simplesmente de ultrapassá-lo, Manet tinha
que incorporá-lo em sua obra. Era necessário que o protótipo dos grandes mestres
servisse de fundo para as formas do presente. A história transparecia por trás dessa
justaposição. A significação do presente se construia sobre os restos incorporados do
passado.
O objetivo deste ensaio era, antes de mais nada dar conta das razões pelas quais tal
procedimento se tornou inaceitável aos olhos de certos artistas desses últimos 10 anos.
Citei os nomes de alguns, mas é claro que há muitos outros. Para eles, nada de continuar
propondo a superação de uma determinada posição anterior. Fazer arte em resposta a uma
formulação do passado histórico é fechar-se no espaço solipsista da memória. Eis porque
esses artistas não propõem, por exemplo, uma nova concepção de intenção : isso os faria
cair na arapuca de um espaço mental privado já balizado na velha concepção. O espaço
no qual eles existem, aquele a que devem responder, é precisamente o espaço em que a
significação se constrói no momento mesmo de sua projeção no mundo. E a arte que
criam só pode fazer o mesmo.