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Razão e Sensibilidade

Reflexão sobre a escultura no fim dos anos 60

Rosalind Krauss

"Lembranças.
todo roteiro e toda encenação sempre foram construídos sobre ou por lembranças. É preciso
que se mude isso. "Départ dans la l'affection et le bruit neufs"
Jean-Luc GODARD

Quando observo a que ponto os termos "pós-minimalismo" e desmaterialização" se


instalaram na terminologia crítica contemporânea, sou levada a interrogar-me sobre a
disjunção extrema existente entre seu valor estratégico e sua capacidade de significar. De
fato, se tomo a política de seu uso, seu significado me escapa, por mais que ele se aplique
à arte que designam.

O termo pós-minimalismo opera uma cisão de natureza histórica entre o minimalismo e


Donald Judd, Robert Morris, Frank Stella, Carl Andre, e o trabalho de uma geração mais
jovem que começou a se fazer conhecer no final dos anos 60. Enfatizando a divisão
temporal entre essas duas gerações de artistas, a palavra "pós-minimalismo" atesta
também sua função de marco conceitual: ele assinala a uma divergência de orientação
(propósito, SENS) entre os dois grupos, uma mudança de sensibilidade que
corresponderia a uma mudança de tempo histórico. Da mesma forma, "desmateriali-
zação" tem uma função de referencial cronológico:assinala um novo episódio da história
da arte: algumas obras se teriam liberado da prisão material e concreta do "objeto". O uso
desses dois termos parece pressupor que os recortes do tempo histórico determinam o
perfil do significado e definem toda a profundidade das obras. Encontramos a mesma
hipótese quando, diante da questão: "O que significa essa pintura de Stella?", a resposta
é: "trata-se de sua relação com Jasper Johns e com Barnett Newman". A pergunta tratava
da significação, a resposta -inevitavelmente- do contexto histórico. Os dois seriam então
sinônimos? De forma alguma.

Há uma ironia singular neste recurso à história como operadora de significado. Tal
postura se inscreve paradoxalmente numa tradição que se afasta da idéia do ato originário
de demolição histórica. De fato, toda leitura da arte moderna se sente, cedo ou tarde,
constrangida de virar-se para Manet e falar de seu ataque à pintura histórica. Esses relatos
contentam em nos fazer reviver o momento da subversão, em que os modelos de valor
propriamente acadêmico -a história, o clacissismo - teriam sido CULBUTÉS para servir
de receptáculo às percepções de uma consciência moderna. Nascidos de uma estratégia
histórica, o Olympia e o Déjeuner, enquanto estruturas inteiramente consagradas às
formas e às significações do presente, teriam sido erigidas sibre os programas deixados
pelos grandes mestres. A força desta construção teria sido depositar na ruptura histórica
um fundamento legítimo de valor

Este tipo de narrativa é de singular inconstância: ela faz de um momento em que a


história se vê revogada o prólogo de uma crônica no curso da qual esta mesma noção de
história se fortalece. Descartada enquanto origem de valor, a história não deixou de
permanecer nos anais da arte moderna como fonte de significado, e, conseqüentemente,
de explicação. Cada empreendimento artístico só pode ser levado em conta na medida em
que aprofunda a lógica de uma convenção formal particular, substitui uma convenção
por outra ou tenta transgredir plenamente a noção de convenção. Qualquer que seja a
posição de um dado ato artístico frente àqueles que o precederam, a descrição de sua
significado se encontra geralmente bem ancorado na lógica hermética da paternidade, de
reduções em filiações estéticas que compõem a história da arte moderna. O significado,
no presente, torna-se um coeficiente do passado, e explicação se insere num modelo
historicista.

Os termos "pós-minimalismo" e "desmaterialização" continuam a operar dentro deste


modelo, e por isso são construções que congelam o significado em infinitas regressões e
negações. Nenhum dos dois rótulos permite conceber em termos realmente positivos o
conteúdo das obras que caracterizam. Nenhum descreve realmente a modalidade
particular da consciência ou da realidade suscitada pelas obras que designam. Conhecer
esta modalidade permitiria pôr em maus lençóis a bela roupagem histórica. Basta
considerar o paradigma de significado a partir do qual opera a arte dita "pós-minimalista"
para medir a que ponto ela se opõe ao conteúdo da forma desmaterializada do
conceitualismo e para apreender as verdadeiras continuidades semânticas que ligam o
"pós minimalismo" à arte minimalista.

É claro que, visto de fora, o postulado de uma continuidade entre minimalismo e pós-
minimalismo parecerá evidaente. Para o observador não iniciado, as estratégias de um e
do outro são perfeitamente similares. O uso que Mel Bochner faz da série de números
cardinais, ou a maneira como Richard Serra elabora uma forma projetando chumbo
fundido no ângulo de uma parede, descolando os pedaços endurecidos, projetando o
chumbo novamente, descolando de novo... podem se parecer com a construção de uma
fileira de caixas por Judd, a um alinhamento de tijolos de André, à divisão de uma
superfície em tiras de Stella. Todos esses processos aprticipam de uma mesma implaca-
bilidade e testemunham a seriedade com que estes artistas, para retomar as palavras de
Judd, colocam "uma coisa depois da outra". Como as modalidades de elaboração são
aparentadas, podemos achar que é irrelevante precisar que as tiras de Stella se inscrevem
num suporte de tela, enquanto Mel Bochner e Dorothea Rockburne aplicam suas marcas
diretamente na parede. Da mesma forma, pode parecer inutilmente sutil lembrar que as
construções de Judd, Morris e Andre põe em jogo formas geométricas racionais,
enquanto as de Serra são decorrentes de seu processo de fabricação. O observador
ingênuo, que não vê ruptura entre estes trabalhos, tem dificuldades em compreender por
que um grupo é distinguido do outro pelo prefixo "pós" , com valor de rótulo histórico. E
este observador ingênuo tem do seu lado o senso comum, ele está correto. O único erro
está em enfatizar uma similaridade de procedimento em vez de uma outra, mais crucial
e igualmente manifesta, que diz respeito a um consenso sobre as condições necessárias à
significação.

Apenas uma crítica ofuscada pela lógica pendular da alternância histórica pode se
permitir negligenciar as objeções de nosso observador naïf. Insistindo em sublinhar a
recusa do objeto que implicam os números ou as marcas de lápis traçadas diretamente na
parede, este tipo de crítica faz de "desmaterialização" uma noção classificatória. Mas o
termo é muito vasto para ser realmente operatório: "desmaterialização" é uma categoria
que não permite diferenciar , por exemplo, a obra de Sol LeWitt, Bochner, Rockburne e
Richard Tuttle, de outros tipos de arte que prescindem do objeto – como em Robert
Barry, Joseph Kosuth ou Douglas Huebler. O termo não nos permite apreciar o quanto a
significação nos trabalhos do primeiro grupo se opõe radicalmente ao tipo de conteúdo
(aos modelos de formulação da significação) veiculado pelos trabalhos do segundo grupo.
Pois o conceitualismo desenvolvido por este último grupo mostra um profundo tradi-
cionalismo face à questão da significação. Robert Barry foi perguntado, em entrevista
sobre o "Prospect 69" em que consistia seu trabalho para esta exposição:

"O trabalho é feito de idéias que as pessoas terão a partir da leitura desta
entrevista. A obra é inacessível ao conhecimento na sua totalidade porque ela
existe no espírito de um número muito grande de pessoas. Cada pessoa pode
apenas conhecer de fato a parte da obra presente em seu espírito"

A resposta de Barry é um equivalente verbal da Série de Gases Inertes, que ele realizou
no mesmo ano. As fotografias de locais nos quais supõe-se que gases invisíveis foram
liberados implicam o mesmo gênero de localização no seio da consciência de cada um
dos diferentes espectadores: a obra deve ser completada pela adjunção de uma imagem
mental do gás (invisível) à imagem concreta da paisagem. Como cada uma dessas
imagens mentais é, por natureza, privada, "Cada pessoa pode apenas conhecer de fato a
parte da obra presente em seu espírito".

Essa noção do privado, de um vínculo constitutivo entre a significação e o espaço mental


do indivíduo, impregna ainda o pensamento de Heubler, Aprofundando as idéias de
Barry sobre a natureza privada da experiência, Heubler nega ao tempo e ao espaço seu
status de realidade transpessoal. " Do meu ponto de vista, declara, é perfeitamente correto
dizer que o tempo é aquilo que cada um de nós diz que ele é, em qualquer momento
dado" Para tomar um outro exemplo, Lucy Lippard escreve sobre as cartas postais "I got
up" ou os telegramas "I am alive" de On Kawara:

"O fascínio exercido pelas notações precisas e obsessivas de Kawara quanto à


sua situação no mundo (tempo e espaço) deve-se ao fato de que elas permitem
que a cada vez se convença de que o artista está são e salvo. Ao mesmo tempo,
as notações são desprovidas de qualquer pathos, sua objetividade testemunhando
o isolamento voluntário que caracteriza o modo de vida assim como a obra do
artista"

"Objetividade" é um predicado curioso quando se trata de qualificar a idéia profun-


damente subjetiva de que nós só podemos tomar alguém como vivo (ou acordado)
porque ele no-lo diz. Assim como Barry e Huebler, On Kawara situa a arte nos limites
daquilo que o positivismo lógico chamou de "linguagem protocolar" – a das impressões
sensoriais, das imagens mentais e das sensações privadas. Esta linguagem implica a
impossibilidade de verificação exterior do significado das palavras que utilizamos para
designar nossa experiência privada: a significação é prisioneira desse registro de
impressões sobre uma tela de controle do próprio indivíduo. Segundo os termos da
linguagem protocolar, meu "verde" e minha "enxaqueca" designam aquilo que vejo e
sinto, assim como seu "verde" e sua "enxaqueca" designam algo que você possui. O
carátar distinto de nossos "verdes" vem das diferenças de nossas retinas, e nenhum de
nós tem meios de verificar os fatos separados a que se referem nossas palavras. De
acordo com este raciocínio, se pode considerar impossível verificar o sentido destas
palavras: "tempo" ou 'verde" significam então, "aquilo que cada um de nós diz que ele é,
em qualquer momento dado" .

É esta noção de privado e de linguagens privadas que distinguem esses artistas da arte
minimalista/pós-minimalista, e por isso é importante explorar as diversas formas passa-
das e presentes da linguagem privada e compreender suas implicações. De início, não
surpreende que os artistas imersos na "linguagem protocolar" se interessem muito pela
intenção. Pensemos nestas afirmações de Kosuth:

As obras de arte são proposições analíticas. Vistas em seu contexto – enquanto


arte –, elas não fornecem nenhuma informação de ordem factual. Uma obra de
arte é uma tautologia, no sentido em que é uma apresentação das intenções do
artista: este diz que tal obra é arte, o que significa dizer que ela é uma definição
de arte. Portanto, que ela seja arte é uma verdade a priori.

A construção exclusiva da obra de arte em torno da noção de intenção faz referência


direta à noção de interioridade, a um espaço mental privado. "Este é um retrato de Iris
Clert se assim o digo" telegrafou Rauschenberg em 1961. Esta idéia de ato artístico
circunscrito e definido pela intenção se apóia geralmente em uma leitura específica de
Duchamp – da Fonte, por exemplo, urinol colocado sobre um pedestal e assinado
"R.Mutt / 1917". Esta leitura que se atém à questão da intenção pode ser resumida mais
ou menos da seguinte forma:

A obra de arte acabada é resultado de um processo de formação, de fabricação, de


criação. Em certo setido, ela é a prova de que se completou um processo, assim como a
pegada na terra é prova da passagem de um indivíduo. A obra de arte é, portanto, índice
de um ato de criação que tem suas raízes na intenção de fazer uma obra. A intenção aqui
é entendida como uma espécie de evento mental preexistente, inacessível à visão, mas
testemunhado pela obra après coup. Os readymades são freqüentemente interpretados
como representações ou hipóstases da pura intenção: como os objetos em questão não
foram construídos pelo artista, mas unicamente escolhidos por ele, o status artístico do
objeto residiria apenas na sua capacidade de registrar esta decisão e de, por assim dizer,
dar conta desta decisão no mundo físico. De acordo com tal leitura, a Fonte de Duchamp
funciona como uma expressão da intenção que tinha o artista de fazer uma obra.

Parece bastante lógico dizer que "a arte é a expressão de alguma coisa", e à questão
"expressão de que?" responder : "expressão do artista, daquilo que ele tinha em mente –
ou expressão da maneira como ele viu algo." No caso do Expressionismo Abstrato essas
respostas devem ter sido particularmente pertinentes, já que as primeiras leituras de
Pollock e De Kooning lhes fizeram grande eco. (ainda que, no caso de Pollock, comen-
tários posteriores tenham abandonado essa concepção.) Nesta lógica da "expressão", os
críticos, de início, consideravam cada marca inscrita sobre a tela como emanando de um
Mim privado de onde provinha a intenção e deixar esta marca. Nesse sentido, a superfície
da obra se assemelhava a um mapa, transcrevendo as tendências contraditórias da
personalidade do artista, do seu Mim inviolável.

Aqui começa a aparecer o tipo de tradicionalismo que eu atribuía a certas formas de arte
conceitual. De fato, é possível esboçar um vínculo entre a maneira como a intenção/ex-
pressão ode constituir um modelo temporal e a maneira como o ilusionismo pictórico
pode constituir um modelo espacial

Consideremos diversos tipos de espaços ilusionistas: a grade ortogonal da perspectiva


clássica, o continuum mais nebuloso da paisagem atmosférica, a profundidade infinita,
indeterminada, da abstração geométrica. Em cada uma dessas imagens, o espaço é um
dado prévio necessário à visibilidade dos eventos pictóricos – das figuras e dos objetos
representados. Nós supomos que o fundo (o último plano) de uma pintura preexiste de
alguma forma às figuras; e mesmo depois que as figuras estão dispostas no fundo, parece-
nos que ele "continua" por trás delas para servir-lhes de suporte. Na pintura ilusionista "o
espaço" constitui uma categoria cuja existência precede o conhecimento daquilo que ele
encerra; neste sentido, é um paradigma da consciência que é o fundo sobre o qual os
objetos são constituídos. Ao nível mais abstrato, a representação pictórica é uma espe-
culação sobre a natureza da figuração. Esta não seria possível não fosse a graça de
consciência funcionando no seio de um espaço mental preexistente, um espaço que
permitiria todas as relações, todas as diferenciações, todas as constituições de entidades
perceptíveis. É portanto um cartesianismo bem parado que serve de fundo ao ilusionismo
ocidental.

Assim, da mesma forma como a intenção pode ser, como dissemos, assemelhada a um
evento mental necessariamente privado, interno, exteriorizado através da seleção de
objetos, os objetos que aparecem no interior de um espaço pictórico podem ser vistos
como emergentes de um conjunto de coordenadas interiorizadas e previamente orde-
nadas. À medida em que nos deslocamos na história da pintura para a arte americana do
pós-guerra, quer dizer, do expressionismo abstrato, estes dois espaços prévios ( o fundo
da tela e o espaço mental privado dotado de intenções) se fundem e se tornam cada vez
mais tema dos próprios trabalhos

É claro que a significação de uma tentativa que procure minar o ilusionismo não pode ser
dissociada da bagagem que acompanha a representação pictórica no Ocidente. A rejeição
do ilusionismo implica em um desvio fundamental na noção de consciência constitutiva e
de toda "linguagem protocolar" de um Mim privado: é a recusa definitiva de um espaço
que precede a experiência, que espera passivamente para ser ocupado, e de um modelo
psicológico no qual o Mim já se encontra provido de significações antes de qualquer
contato com o mundo exterior. . Se queremos falar do anti-ilusionismona arte dos anos
60, não podemos limitar nosso discurso a uma ideologia da forma

Comumente se diz que a pintura de Frank Stella é estruturada de maneira dedutiva, no


sentido de que todas as diferenciações internas da superfície derivam da configuração dos
seus limites. Assim, nas primeiras pinturas negras, como Die Fahne hoch, notamos como
Stella parte dos pontos médios das cotas verticais e horizontais, e , pela repetição regular
de listras, organiza os quatro quadrantes da tela em um conjunto duplo inversões
espelhadas. Nas pinturas em alumínio mais recentes, em que as telas começam a tomar
formas específicas, as listras, em uma espécie de progressão centrípeta, fazem eco de
forma ainda mais evidente à forma do suporte e parecem depender ainda mais de sua
configuração literal. Não parece ser muito difícil notar essas coisas, nem adicionar que
essa superfície, que se repete como flashes regulares a configuração das suas bordas,
teve por efeito demitir o espaço ilusionista e alcançar a planaridade. Diremos então que
se trata da planaridade de um objeto, de uma coisa não lingüística: e nisso estaremos
errados, como sempre acontece quando nos contentamos com meias verdades. Anda não
dissemos o suficiente.

Os signos que assombram as primeiras pinturas de Stella são mais do que simples
significantes de suas formas literais. Die Fahne hoch! e Luis Miguel Dominguin são
estruturadas de forma dedutiva, mas as duas pinturas chegam à configuração particular de
uma cruz. Podemos, é claro, pensar que isso é acidental. Também podemos considerar
que é por acaso que a Cruz se assemelhe ao signo mais primitivo de um objeto num
espaço: a vertical da figura projetada contra um a linha horizontal de um fundo
indefinido. Mas a relação tridirecional [the three way relationship] que se estabelece na
superfície listrada destes quadros permitem argumentar em favor de uma conexão lógica
entre o aspecto cruciforme de toda figuração(1), de toda intenção de localizar uma coisa
em seu mundo, e a maneira como o signo convencional – neste caso, a Cruz – é natu-
ralmente oriundo de um referente do mundo. Cada tela nos põe na presença , não da
capacidade de Stella de inventar formas, nas de um emblema particular oriundo do
repertório comum dos signos – cruzes, estrelas, encadeamento de anéis, etc. – que
pertencem, por assim dizer, à linguagem do mundo. Com essas pinturas, Stella apresenta
um relatório convincente da gênese inicial desses signos, do modo como se encontram
engendrados em uma série de operações naturais e lógicas
Parece então que a lógica da estrutura dedutiva é indissociável da lógica do signo.As duas
parecem se sustentar mutuamente e exigem que levemos em conta a história natural da
linguagem pictórica [pictorial language] enquanto tal. O verdadeiro sucesso dessas
pinturas é não só estarem totalmente imersas na significação, mas também fazer a
significação depender apenas de sua superfície(2) – não apenas do exterior, do público,
mas também de um espaço que não é de modo algum um significante do a priori ou do
caráter privado da intenção.

A significação da eliminação do ilusionismo operada por Stella(3) só pode ser


compreendida em sua relação com a vontade de manter toda significação no interior das
convenções (semiológicas) de um espaço público de pôr em evidência a forma como o
espaço ilusionista pôde servir de modelo para um espaço privado, para um espaço do
Mim, este concebido como uma entidade constituída antes de seu contato com o mundo.

Esta concepção do Mim já era questionada no final dos anos 50 por Becket e pelo
Nouveau Roman. Ela era também um ponto de partida particularmente importante para a
filosofia do segundo Wittgenstein, para quem os jogos de linguagem eram uma terapia
que visava a romper o laço lógico entre significação e pensamento. No Caderno marrom,
por exemplo, Wittgenstein pergunta o que significa dizer que conhecemos uma melodia:
que, antes de cantá-la, nós a assobiamos rapidamente em silêncio? Ou que temos uma
imagem da partitura na cabeça – uma imagem mental da melodia – e que lemos as notas
enquanto cantamos? Nosso conhecimento desta melodia depende de a termos estocado
em algum lugar dentro de nós, como pérolas alinhadas num fio e prontas a serem
extraídas de nossas bocas? Ou deve-se simplesmente ao fato de cantar a melodia, ou de
ouví-la muitas vezes para poder dizer: "Assim está certo" ? Nas Investigações filosóficas,
a questão da melodia e de como saber onde ela está localizada quando afirmamos
conhecê-la é estendida às imagens da memória e aos fundamentos de toda pretensão de
conhecimento. Wittgenstein procurou muitas e muitas vezes romper os vínculos entre as
certezas implicadas por tais afirmações e a imagem de um espaço mental no interior do
qual definições e regras seriam conservadas a espera de serem aplicadas. Seu trabalho,
em decorrência, consistia em destruir a concepção de um espaço mental privado (a
acessível somente ao Mim ) no qual as significações e as intenções existiriam antes de
serem lançadas no espaço do mundo. Wittgenstein nos intima a aceitar um modelo de
significação livre de toda tentativa de legitimação de um Mim privado.

A característica essencial da arte americana no fim dos anos 60 foi ter posto em jogo a
verdade deste modelo. Conseqüentemente, analisar a obra de Stella, Morris, Judd ou
Andre unicamente como um projeto de reorganização formal é passar ao largo da
significação mais fundamental deste trabalho. Ademais, corremos o risco de não
compreender ou de interpretar erradamente a maneira como esta mesma noção de
significação persiste em parte da arte do presente.

A obra de Mel Bochner, por exemplo, consiste em uma tentativa de projetar o fato
lingüístico sobre o fato perceptivo – não para sublinhar o caráter não substancial de um
em oposição à materialidade do outro, mas para demonstrar experimentalmente o quanto
eles se encontram em relação de fecundação recíproca. Em Mesurements, Group B, 1967,
Bochner inscreveu nas paredes de uma sala suas dimensões , fazendo assim aparecer o
espaço sobre a imagem de sua própria épura [blueprint], sem que seja possível perceber a
anterioridade de um em relação à outra. O ilusionismo é anulado na experiência deste
objeto em extensão (a parede) que serve de base à extensão aritmética e à extensão de
uma geometria abstrata encarnada por essas cotas, através das quais a dimensão de
projeta no mundo.

Em Axioma da Indiferença, um conjunto de proposições lingüísticas é posta em relação


com um conjunto de fatos físicos, um corroborando o outro. Uma parede, que divide a
obra ao meio, separa seus oito elementos em dois grupos de quatro, o que torna invisível,
de um lado e de outro, a configuração global da forma física ou da proposição verbal da
obra. A integridade da forma e a integridade da entidade proposicional tornam-se uma
questão de reconstrução, de memória. Esta aparece aqui como dependente da linguagem,
da mesma forma como a linguagem é um coeficiente da exterioridade, ou seja, de uma
presença sempre potencial. "A experiência imediata, escreve Bochner, não se constitui
num domínio independente. As lembranças são tipos de restos, não de sensações mas de
verbalizações passadas". Além disso, Axiom of Indifference, como 7 Properties of
Between formam entidades compostas nas quais a proposição verbal e o fato físico acon-
tecem em um único ato de percepção. A verificação é portanto imediata, e a obra funcio-
na como uma espécie de modelo que permite atribuir a um enunciado o valor de verdade
pública. Esteticamente, estas obras estão ligadas a uma concepção mais ampla da noção
de modelo: seu objeto antes de tudo insistir na exterioridade, no caráter público do espaço
no qual residem a verificação e a significação

Assim, minha tese é que, na última década, certos artistas manifestaram a necessidade de
explorar a exterioridade da linguagem e, em conseqüência, da significação. Na mesma
época, essa necessidade encontrou paralelo no trabalho de certos escultores : a descoberta
do corpo como exteriorização completa no Mim.

(...)

A significação na obra de muitos escultores minimalistas de deve à forma como elas se


tornam um enunciado metafórico do Mim mergulhado na experiência. Por exemplo, os
três L-Beans de Robert Morris (1965) servem como uma espécie de analogia com a forma
como a intenção e a significação dependem fundamentalmente do corpo no instante em
que ele emerge no mundo a cada particularidade de seus movimentos e gestos . De fato,
pouco importa se compreendemos ou não que os três L (em pé, deitado ou apoiado em
suas extremidades) são idênticos: na verdade é impossível percebê-los como tal. Nossa
experiência da forma de cada L depende evidentemente da sua orientação no espaço que
a obra divide com nosso próprio corpo: é assim que o tamanho dos L se modifica
segundo a relação específica do objeto com o chão, em termos de escala global como em
termos de comparação interna entre cada um dos braços dos L. Segundo Marcia Tucker,
os L-Beans fazem pensar

na manipulação de volumes por uma criança, como se fossem imensas peças de


um jogo de construção, A necessidade de modificação e de exploração das
possibilidades inerentes à própria forma é característica da visão sincrética da
criança, na qual o aprendizado de uma forma pode ser transposta a qualquer
variante desta forma

Mas esta análise, parece, vai precisamente ao encontro da experiência real que temos da
obra: ela coloca a idéia de identidade sobre um mundo de diferenças. Em certo sentido,
caímos na armadilha daquilo que Morris chama de "constante conhecida", esta unidade
cartesiana ideal que o trabalho em questão leva precisamente a considerar como um
resquício nostálgico das formas de explicação passadas. Raciocinar em termos de
"constante" é ignorar o modo como essa mesma "constante" se remete, na escultura, a
uma espécie de ficção que sai de cena pouco a pouco para dar lugar à noção de diferença
absoluta, no seio da especificidade do espaço real. . Se inscrevendo no espaço da
experiência – esse que nosso próprio corpo ocupa – os L-Beans anulam as coordenadas
axiomáticas de todo espaço ideal. Recorremos a essas coordenadas quando pensamos o
espaço como uma grade perfeita – cujas linhas, todavia, parecem se confundir na
profundidade por causa de nosso ponto de vista particular. Tudo se tornará claro,
pensamos, se podermos nos imaginar sobrevoando o espaço e corrigindo as distorções de
nossa perspectiva – restabelecendo assim o paralelismo absoluto da grade. Mas a
significação da experiência da profundidade não reside em nada no postulado deste
sobrevôo ideal

Como escultor, Morris sempre tentou pôr e cheque a diagramática. Nas peças compostas
de elementos de fibra de vidro feitas em 1967-1968, ele evita que a configuração
específica da obra apareça como uma figura – algo destacado do "fundo" da estrutura
"real" do objeto. De fato, enquanto uma estrutura interna fixa poderia reforçar no
espectador a noção de um Mim anterior a qualquer experiência, estas unidades, por serem
separadas e permutáveis, sugerem a idéia de um Mim existente somente nesta
experiência momentânea de exterioridade

Em seus escritos, Morris aborda freqüentemente o contexto conceitual de seus trabalhos e


o dos artistas de que é próximo. Num de seus primeiros ensaios, "Notas sobre Escultura",
ele evoca seu interesse particular por fortes gestalts tridimensionais. "A característica de
uma gestaslt, escreve, é que uma vez estabelecida, todas as informações que a ela dizem
respeito, como gestalt, se esgotam (não procuramos, por exemplo, a gestalt de uma
gestalt)." A crítica que se desenvolveu em torno do minimalismo desde o fim dos anos 60
interpretou estranhamente estas palavras como se elas revelassem uma espécie de
cartesianismo latente. A gestalt seria uma unidade ideal, imóvel, que perduraria além das
particularidades da experiência, tornando-se o fundamento de toda experiência. Isso é
ignorar as noções mais fundamentais da gestalt, segundo as quais as propriedades da "boa
gestalt dependem inteiramente de seu contexto. A significação de um trapézio, e portanto
de sua gestalt, depende de ele ser visto como figura bidimensional ou como um quadrado
deitado, visto em perspectiva – significação que não pode de forma alguma anteceder a
experiência. O próprio Morris destaca : "Trata-se de aspectos da apreensão que não
coexistem com o campo visual, e sim são efeitos dele)

De diferentes formas e com estratégias diversas, Juss, Andre, e Flavin também atacam a
persistência do cartesianismo em suas obras, fazendo a significação depender do espaço
exterior. Esta idéia de fusão na experiência, de uma realização do Mim na exteriorização,
é evidente nas Prop Pieces que Serra começa a fazer em 1969. Em uma metáfora
surpreendentemente abstrata, estas sobras sugerem um processo constantemente
renovado do corpo buscando sua própria coesão, através de uma forma que é percebida
como atingindo (en train de atteindre) a coesão. A precariedade particular dessas Prop
Pieces, feitas de elementos distintos, evocam uma tensão entre a unidade conceitual de
formas simples e as condições reais de sua união física in situ. One Ton Prop (House of
Cards) é um cubo (portanto uma forma "ideal") percebido ao mesmo tempo como
dependente da manutenção de certas condições reais. House of Cards trata também do
espaço interior como se ele fosse constantemente acessível a uma visão exterior, e como
se ele fosse inteiramente definido pelo ato de percepção do equilíbrio que constrói seu
exterior. . Assim, a interioridade (o "Para Si") se torna claramente uma função da
exterioridade (o "Para o Outro").(4)

Godard disse uma vez que a maior parte dos filmes se revelam uma forma de lembrança,
e que todos pareciam estranhamente conjugados no passado. Para evitá-lo, ele preferia
não escrever seus filmes com antecedência, e esperar a noite anterior à filmagem para
esboçá-la, obrigando seus atores a improvisar no momento da gravação. O que ele
procurava era a desordem, as passadas em falso, do presente vivido. Assim fazendo,
Godard definia uma sensibilidade para a qual a história, enquanto narração no passado,
era então obsoleta.

Este ensaio começou com outro caso de rejeição da história, o caso de Manet. Agora vejo
que foi um mau exemplo. A conduta de Manet era profundamente histórica : consistia em
se livrar do conteúdo de uma história em particular, mas não da forma da história. Afim
de criticar o passado, de torná-lo caduco ou simplesmente de ultrapassá-lo, Manet tinha
que incorporá-lo em sua obra. Era necessário que o protótipo dos grandes mestres
servisse de fundo para as formas do presente. A história transparecia por trás dessa
justaposição. A significação do presente se construia sobre os restos incorporados do
passado.

O objetivo deste ensaio era, antes de mais nada dar conta das razões pelas quais tal
procedimento se tornou inaceitável aos olhos de certos artistas desses últimos 10 anos.
Citei os nomes de alguns, mas é claro que há muitos outros. Para eles, nada de continuar
propondo a superação de uma determinada posição anterior. Fazer arte em resposta a uma
formulação do passado histórico é fechar-se no espaço solipsista da memória. Eis porque
esses artistas não propõem, por exemplo, uma nova concepção de intenção : isso os faria
cair na arapuca de um espaço mental privado já balizado na velha concepção. O espaço
no qual eles existem, aquele a que devem responder, é precisamente o espaço em que a
significação se constrói no momento mesmo de sua projeção no mundo. E a arte que
criam só pode fazer o mesmo.

(1)Pictoriality – Seguindo a argumentação da autora sobre a interrelação entre um


referente de figuração (horizonte/figura) e um referente simbólico (a cruz) no dispositivo
convencional de Stella, o termo Pictoriality poderia ser traduzido tanto como
"pictorialidade" quanto por "figuração"

(2) Johns, com as bandeiras, os números e, em especial, as pinturas com as cores


nomeadas, parece fazer a mesma coisa: construir um discurso que emerge apenas
dos fatos bidimensionais da tela, projetando-se dela para a "linguagem do mundo"

(3) para Krauss, portanto, o ilusionismo não se opõe à abstração, nem o


antiilusionismo pode ser identificado na maior parte das tendências modernistas.
Talvez possamos pensar em exceções como o dadaísmo e o Construtivismo Russo

(4) Trata-se, portanto, de uma arte verdadeiramente pós-expressionista

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