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Resenha do livro As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário de

Robert Castel; tradução de Iraci D. Poleti, 4ª edição – Petrópolis: editora Vozes,


2003.

Wallace dos Santos de Moraes1

Objetivamos nesta pesquisa discutir as principais teses de Robert Castel explicitadas


em As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário (2003). A metodologia
empregada para o desenvolvimento desta resenha está baseada no seguinte caminho.
Primeiro, situaremos as teses do autor entre duas concepções de análises das ciências
sociais. Depois, de forma geral apresentaremos os principais pressupostos da obra seguidos
da necessária contextualização e problematização de suas ideias.

Escrever uma história dos assalariados e dos que vivem à margem do sistema
capitalista, isto é, dos que nada ou pouco consomem, - tal como proposto por Robert Castel
em “As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário”(2003) - é um desafio que
pode trilhar por vários caminhos, dentre eles destacamos principalmente dois:

1) que entenda os trabalhadores como historicamente expropriados,


explorados e subordinados pelos proprietários, sendo que alguns não
entraram nesta lógica: a) porque não existia espaço para mais explorados
(nesse sentido, havia/há, um excedente de mão de obra); ou, mais remota
b) como resistência a trabalhar, ganhando pouquíssimo e produzindo
riquezas para outros.

2) o sistema capitalista é a melhor forma possível de organização da


economia e suas instituições, o Estado, a propriedade privada e as
desigualdades são frutos do desenvolvimento histórico porque foram
produzidas para suprir as necessidades da sociedade.

1
Doutor em Ciência Política; Prof. Adjunto da UFF/PURO. Membro do INCT/PPED e do NIS (Núcleo
de Investigação Social)
Desnecessário dizer que se trata de interpretações absolutamente antagônicas e
inconciliáveis, sendo a primeira uma perspectiva da classe trabalhadora, dos destituídos dos
meios de produção com forte base histórica; e a segunda, do ponto de vista dos vencedores,
dos proprietários, mas dedutiva, baseada em interesses de pequena parcela da população.
Nas últimas décadas, interpretações do tipo da primeira têm sido rechaçadas por variadas
formas pejorativas.

Ao mesmo tempo, existem interpretações que procuram uma saída endógena ao


capitalismo, tentando amenizar a exploração, propondo sobretudo intervenções estatais que
garantam o maior número possível de consumidores. O livro de Robert Castel se insere
neste segmento.

O objetivo do livro de Robert Castel é, à primeira vista, através de um resgate


histórico, fazer uma análise da situação dos trabalhadores da Idade Média aos dias atuais,
privilegiando as diferenças e semelhanças entre a vulnerabilidade das massas. Neste sentido,
sua hipótese é de que existe homologia na estrutura social entre os vagabundos antes da
revolução industrial e diferentes categorias de “inempregáveis” dos nossos dias. Isto é, não
significa que os conteúdos concretos de noções como estabilidade, instabilidade ou expulsão
do emprego sejam os mesmos, ao contrário, Castel reconhece suas diferenças que estão
relacionadas com o tempo, mas a questão que se deve atentar é que o estudo dessas
transformações históricas nos possibilita verificar o que essas cristalizações comportam de
novo e de permanente ao longo do tempo. A obra também tem como objetivo acoplado ver
as transformações das condições do assalariado. O pressuposto de progresso perpassou por
toda descrição até a nova organização da sociedade no mundo atual. Ao mesmo tempo que o
autor recorre à história para fazer sua análise, ele incorpora categorias sociológicas para
melhor entender o processo.

A obra está dividida em duas partes tendo cada uma quatro capítulos com suas
respectivas introduções e conclusões. A sociedade pesquisada foi a francesa, tendo por vezes
alguns exemplos da Inglaterra e alguns mais esporádicos de outros países. Na primeira parte,
ele estuda a situação do trabalho entre a Idade Média e a época Moderna, privilegiando as
relações sociais e os direitos que a acompanham. Na segunda parte, o autor verifica a
criação de uma sociedade salarial, cujo fulcro é o ganho de vários direitos sociais,
possibilitando o bem-estar do trabalhador e do sistema, não obstante, esta sociedade cai por
terra com o crescimento do individualismo, característica central do neoliberalismo.

Cabe-nos agora perguntar: neste livro de pouco mais de seis centenas de páginas,
qual a principal tese de Castel? Centrado no século XIX, ele descreve duas teses antagônicas
e inconciliáveis; trata-se do paternalismo que defende a paz social com exaltação das classes
dirigentes como generosas para as classes trabalhadoras e, por outro lado, dos defensores da
existência da luta de classes que naturalmente afirmam que proletários e donos dos meios de
produção são inimigos. O autor rechaça as duas teses, apresentando a sua, constituída pela
defesa de um Estado que mediasse os conflitos existentes na sociedade, notadamente entre
as classes sociais, reprimindo qualquer tentativa de tomada de poder pelas classes
subalternas; mas não apenas isto, o Estado deve agir sobre as causas dos problemas sociais
de modo que possa impedir e controlar o antagonismo destruidor entre dominantes e
dominados. Explicitamente segue sua defesa:

“Trata-se, de fato, de duas posições inconciliáveis. Desde então, as


construções de uma política sem Estado ameaçam levar a um impasse. (...) O
discurso da paz social prepara, assim, as condições da luta de classes que quer
esconjurar. Através de sua recusa em fazer do Estado um parceiro implicado no
jogo social, deixa face a face, sem mediações, dominantes e dominados. Desde
então, a relação de forças realmente poderia inverter-se, e aqueles que nada
têm a perder poderiam decidir querer ganhar tudo. Quem poderá impedi-los
disso? O Estado, sem dúvida. Mas um Estado liberal está reduzido ao papel de
policial que intervém de fora para reprimir as turbulências populares (...), sem
poder agir sobre suas causas nem preveni-las. Exatamente em nome da paz
social, seria necessário que o Estado fosse dotado de novas funções para
controlar esse antagonismo destruidor” (Castel, 2003: 344)

Continuando na posição de rechaçar tanto os filantropos quanto os socialistas, Castel


propõe um novo sentido ao social: “não mais dissolver os conflitos de interesses pelo
gerenciamento moral nem subverter a sociedade pela violência revolucionária, mas negociar
compromissos entre posições diferentes, superar o moralismo dos filantropos e evitar o
socialismo dos „distributivistas‟” (Castel, 2003: 345). Isso é o que ele entende por social.
Faz-se necessário mais um esclarecimento: ele afirma que o mercado faz parte do social.
Aprofundando a discussão, o autor assevera aquilo que é fundamental no seu entender: “é
saber como a ação do poder público pode impor-se de direito enquanto são excluídas as
intervenções diretas sobre a propriedade e sobre a economia” (Castel, 2003: 345). Sua
proposta é fazer alterações profundas que trabalhem para respeitar o trabalhador sem tocar
nas questões da propriedade privada dos meios de produção e da economia.

Respondendo a reivindicação dos trabalhadores, segundo a qual o primeiro direito do


homem é o de viver, contido na declaração dos direitos humanos, Castel conclui o seguinte:
“não é possível expressar melhor a maneira como os operários redefinem a questão social a
partir de suas próprias necessidades. A única forma social que pode assumir o direito de
viver, para os trabalhadores, é o direito ao trabalho. É o homólogo do direito de propriedade
para os abastados” (Castel, 2003: 350).

A citação acima acaba de estabelecer a diferenciação de classe sem que Castel goste,
em outras palavras, o trabalhador tem que trabalhar, está fadado a produzir riqueza, mas
deve ter este direito que é equivalente ao direito do patrão de ter sua propriedade para
produzir riqueza.... para si. O trabalhador não tem o direito de ser proprietário, pois são
mundos diferentes. Neste ponto a filiação com o pensamento liberal não poderia ser mais
evidente.

Com o fim do Antigo Regime, Castel defendeu por várias vezes ao longo da obra
que o homem agora tinha a liberdade de trabalhar. O fenômeno da alienação, do
“estranhamento”, passou longe de seu pensamento.

Com efeito, ele descreve o que chamou de sociedade salarial no pós-guerra


(Segunda) trata-se de um processo de “desindividualização”, no seu entender, que insere o
trabalhador em regimes gerais, convenções coletivas, regulações públicas do direito do
trabalho e da proteção social. Neste caso, nem tutela, nem simples contratos, mas direitos.
“O mundo do trabalho na sociedade salarial na forma, para falar em termos exatos, uma
sociedade de indivíduos mas, sobretudo, um encaixe hierárquico de coletividades
constituídas na base da divisão social do trabalho e reconhecidas pelo direito” (Castel, 2003:
600).

Castel confirma sua proposta ao lembrar do seguro obrigatório que “representa uma
reforma considerável, ratificando pela lei uma transformação nas relações entre os parceiros
sociais, empregadores e empregados, proprietários e não-proprietários” (Castel, 2003: 412).

No terceiro quartel do século XX, Castel descreve uma França na qual cerca de 83%
da população é assalariada, em suas palavras, com “uma poderosa sinergia entre o
crescimento econômico com seu corolário, o quase-pleno-emprego, e o desenvolvimento
dos direitos do trabalho e da proteção social” (Castel, 2003: 493). Este é o modelo de
organização do trabalho visto pelo autor, descrevendo as conquistas sociais do século XX.

Castel descreve a lei de 13 de julho de 1973 que exige que o patrão prove a
existência de uma „causa séria e real‟ – portanto, em principio objetiva e verificável – para
justificar a demissão.

Uma das hipóteses do livro ao tratar a questão do crescimento econômico e das


proteções sociais é que estas determinaram aquelas e não o contrário. (Castel, 2003: 502).
Corroborando para sua conjectura, Castel cita o exemplo da Seguridade social em 1945/46
na França devastada pela guerra e cuja produção havia caído aquém do limiar atingido em
1929. Ele conclui que isso é determinado pela vontade política.

Na sua conclusão Castel resgata seus principais pontos desenvolvidos ao longo do


trabalho e apresenta o conceito de individualismo negativo que incluiu basicamente o
vagabundo ou no seu conceito, o desfiliado, aquele que não se inclui/deixou incluir na
sociedade cadastrada ou na sociedade salarial, o que tinha despeito pelas leis e ordem,
chamada amiúde de pública, o que se negava a produzir riquezas para os proprietários, o que
foi expulso do campo, o que foi cassado, enforcado, degolado, maltratado, o que buscava
uma vida “fácil”, um mal para o sistema que devia ser eliminado, enfim, um individualista
negativo, nas palavras do autor.

Perguntamos ao escritor: qual o núcleo da questão social hoje? “A existência de


„inúteis para o mundo‟, de supranumerários e junto com eles a instabilidade e a
vulnerabilidade das massas”. Sua descrição histórica apontou que do modelo de corvéia até
a sociedade salarial coube ao Estado apagar os traços mais significativos da subordinação, e
por outro lado, compensar com garantias e direitos, bem como com o acesso ao consumo
além da satisfação das necessidades vitais, sobretudo no primeiro mundo.

O intelectual vê o processo de desregulamentação do Estado como um processo de


individualização que ameaça a sociedade com uma fragmentação, frente a coesão
conseguida na sociedade salarial, que a tornaria ingovernável tendo como resultado uma
polarização entre os que podem associar individualismo e independência e os que tem sua
individualidade como falta de vínculos e de proteções sociais. A grande questão é como
superar este problema. Com certeza, responde Castel, “o poder público é a única instancia
capaz de construir pontes entre os dois polos do individualismo e impor um mínimo de
coesão à sociedade. Depois de rechaçar tanto o neoliberalismo quanto uma possível volta ao
Estado interventor do início da década de 1970, o autor condensa sua proposta para os
problemas apontados ao longo da obra:

O recurso é um Estado estrategista que estenda amplamente suas


intervenções para acompanhar esse processo de individualização, desarmar
seus pontos de tensão, evitar suas rupturas e reconciliar os que caíram
aquém da linha de flutuação. Um Estado até mesmo protetor porque, numa
sociedade hiperdiversificada e corroída pelo individualismo negativo, não há
coesão social sem proteção social. Mas este Estado deveria ajustar o
melhor possível suas intervenções, acompanhando as nervuras do processo
de individuação. (Castel, 2003: 610).

Sua tese não tem nada de inovador, vários intelectuais já a defenderam. O problema
é que idealizando uma alternativa entre duas teses antagônicas, Castel simplesmente mantém
toda a estrutura do capitalismo tal como defendida por uma das teses e absolutamente
díspare da outra. Na verdade, sua proposta é leniente e não questiona em nada o sistema do
capital, sendo apenas uma variante da mesma tese paternalista, portanto não seria um meio
termo eqüidistante das teses opostas, mas muito próxima do que é defendido pelo
liberalismo. O diferencial é que, para impedir que as classes oprimidas assumam o poder,
em função da possível alteração da correlação de forças, ele defende que o Estado ataque
suas “causas”, mas não aquelas que efetivamente mantém a extração de mais-valor. Na
verdade sua proposta é um engodo, pois sob o argumento de atacar as causas, o intelectual
ataca os efeitos.

Por outro lado, Castel reconhece que a miséria é resultado da industrialização:


“Existe uma indigência que não é devida à ausência de trabalho, isto é, ao trabalho
„liberado‟. É filha da industrialização” (Castel, 2003: 284). O problema do pauperismo,
tratado largamente no capítulo V, é visto como um problema ligado ao desemprego e é
agravado pela ausência do Estado para ajudar aos pobres que segundo o pressuposto
histórico de Castel sempre precisaram de ajuda. Logo, se o problema é o desemprego e ele
não tem nenhuma segurança, a política correta, segundo ele, consiste na intervenção do
Estado que deve garantir o trabalho para as classes laboriosas. Aliás, querer que os pobres
trabalhassem (para as classes dominantes) também foi historicamente o desejo dos
proprietários, como muito bem mostrou o autor. Entretanto, dessas reflexões temos uma
questão a tratar que diz respeito à existência de um grande exército industrial de reserva que
sempre foi importante para o capitalismo, por vários argumentos/fatos lógicos. Todavia,
Castel passa ao largo deste assunto, tendo-o citado apenas na nota 11 do capítulo V. É
evidente que a partir deste tópico surge uma discussão importante, pois um grande número
de desempregados tem como resultados: 1- manter o salário de quem trabalha baixo,
favorecendo ao proprietário e 2- como derivado do primeiro, faz com que os trabalhadores
tenham medo de perder seu emprego, abstendo-se de fazer greve, enfrentar o empregador
etc.. Desta forma, a “paz social” para o “mercado” é mantida! É notadamente sabido que
com a adoção da política neoliberal praticamente em todo o mundo, o número de
desempregados e de miseráveis aumentou substantivamente, juntamente com o declínio do
poder aquisitivo daqueles que se mantiveram empregados e paradoxalmente o número de
greves diminuiu vertiginosamente. Portanto, negligenciar este fenômeno em pleno
neoliberalismo constitui em uma falta grave.

Castel ainda produziu um histórico da propriedade privada em um capítulo


exclusivo. Segundo o autor, os constituintes da Revolução Francesa (lei de 18 de março de
1793) “realmente inseriram o direito de propriedade entre os direitos humanos, e a própria
Convenção votou, por unanimidade, uma lei punindo com a morte „qualquer pessoa que
proponha ou tente estabelecer leis de reforma agrária ou quaisquer outras leis ou medidas
subversivas em relação às propriedades territoriais, comerciais ou industriais” (Castel, 2003:
392). O texto acima é absolutamente claro e objetivo, entretanto Castel consegue ter uma
dúbia interpretação para o mesmo, senão vejamos: “mas estas disposições podem ser lidas
de duas maneiras: como uma defesa incondicional da propriedade privada ou como o
reconhecimento de seu caráter eminentemente social.” E ele justifica:

“Foi um equívoco, sem dúvida privilegiar demasiado a primeira


interpretação. É necessário dizê-lo ainda? Nenhum homem é
verdadeiramente cidadão se não é proprietário. O que é a pátria? O solo
onde se nasceu. E como amá-la se não se está ligado a ela por nenhum
vínculo? Aquele que só tem que sacudir o poeira dos pés para deixar um
lugar pode amá-la? No último plano, a imagem do vagabundo, do „pé
empoeirado‟ sem fé nem lei porque é sem eira nem beira. A propriedade é o
que funda a existência social, porque encastra e territorializa. É o remédio, e
sem dúvida o único remédio para a época, contra o mal social supremo, a
desfiliação” (Castel, 2003: 392).

São vários os comentários necessários para esclarecer o pensamento do autor.


Primeiro, ele atribui à existência da propriedade privada como gênese da nação. Como se a
existência de nações fosse a melhor coisa do mundo. Se o autor recorresse a história como
se propôs no início do trabalho saberia que em nome da nação, da pátria e dos Estados
milhões de pessoas morreram e tivemos como resultado genocídios, guerras, covardia,
campos de concentração, perseguições, muros... que existem até hoje. A lista é
interminável. Vários estudos sobre a formação dos estados-nação demonstram o quanto a
maioria delas foi forjada por fatores econômicos e de poder (ver Eric Hobsbawm – Nação e
nacionalismos (1991) e Benedict Anderson – Nação e consciência nacional (1983), dentre
outros). De acordo com a interpretação de Castel que elegeu os ciganos e nômades de modo
geral como o mal a ser combatido, o homem só se apega a terra se existe a propriedade
privada, entretanto a causa da mobilidade dos camponeses foi justamente o contrário, isto é,
saíram de suas terras com a expulsão feita pelos poderosos proprietários. Até hoje existe
uma migração em todo o mundo pela falta de possibilidade de se fixar em determinados
lugares, não pela falta de espaço, mas pela falta de terras disponíveis porque existem
propriedades privadas. A migração se dá então pela impossibilidade de se constituir uma
propriedade coletiva ou comum. Por fim, o amor exacerbado à pátria e à própria terra, as
quais Castel se refere, é resultado do egoísmo e da ganância daqueles que constituíram a
propriedade, e não o contrário. Isto é, a ganância juntamente com toda a violência cria a
propriedade privada que favorecerá poucos em detrimento de muitos, e depois a reboque da
perspectiva do mercado foram criados os Estados e as nações (Ver Hobsbawm, 1991).

Todavia, Castel está preocupado em estabelecer um tipo de propriedade que esteja


eqüidistante da proposta socialista e da liberal. Para tanto ele se coloca a seguinte indagação:
“É possível superar essa contradição que atravessa a concepção puramente liberal da
propriedade e, pelo menos para alguns de seus usos, reconhecer nela mesma e colocar em
primeiro plano sua utilidade coletiva?” (Castel, 2003: 396). Para chegar a sua defesa de
propriedade social ele recorre aos escritos de alguns republicanos progressistas francesas do
final do século XIX e início do XX. Mas o que seria a propriedade social vislumbrada por
Castel? Ele responde: “a propriedade social está no coração do desenvolvimento dos
serviços públicos. Estes representam bens coletivos que deveriam permitir uma redução das
desigualdades, colocando à disposição de todos oportunidades comuns e, em primeiro lugar,
a instrução. Assim poder-se-á dar um conteúdo concreto ás funções do Estado republicano
(...)” (Castel, 2003: 397). Ao mesmo tempo, ao longo da obra percebe-se claramente a
preocupação em não parecer socialismo ou projeto coletivista. Contudo, afirma Robert
Castel, essa forma de propriedade social encarnada nos serviços públicos permanece uma
propriedade coletiva também no sentido de que é impessoal. Não é apropriável por um
indivíduo particular (Castel, 2003: 398).

Com a tese de propriedade de transferência, uma espécie de seguro social com um


sistema de garantias jurídicas, Castel afirma ter encontrado o meio termo entre a propriedade
privada burguesa e o modelo de propriedade socialista. Neste sentido, o Estado tem papel
peremptório.
O objetivo subjacente de Castel baseia-se na perspectiva de manter a estrutura do
capitalismo funcionando, da melhor forma possível, sem que ele produza os seus
descontentes. A partir deste diapasão, ele propõe que os “desfiliados” tenham um seguro que
instaure uma forte relação de pertencimento social para essas populações as margens do
sistema de consumo e que sendo assim causam uma ameaça ao próprio sistema.

Concluindo a resenha sobre a obra em questão, faz-se necessário um último


comentário. O autor optou por vislumbrar uma alternativa possível para os problemas
gerados pelo capitalismo. Sua saída foi a defesa de um Estado social tal como o do terceiro
quartel do século XX na França, sem rupturas no sistema de propriedade e da economia.
Esta alternativa consubstancia-se em alternativa dentro do próprio sistema capitalista, uma
alternativa possível diria o autor e seus defensores. O que não é bem visto na descrição de
Robert Castel é o não reconhecimento dos problemas, para a classe trabalhadora, do advento
da propriedade privada moderna. É a não descrição da violência que a constitui e da
violência cotidiana para mantê-la que possibilitou ao autor chegar às conclusões de defesa
do Estado interventor, passando-se por generoso para as classes que vivem do trabalho.

Robert Castel não concebe alternativa ao capitalismo, embora queira que as pessoas
vivam com dignidade. Pensar em alternativas ao capitalismo não significa automaticamente
defender o capitalismo de Estado, ou socialismo autoritário, desenvolvido na URSS, mas
precisamos pensar em alternativas que privilegiem a liberdade que só pode se concretizar na
igualdade. A Academia parece estar presa à dogmas, ou à instituições que assumiram status
de intocáveis, quase ao nível do “sagrado”. Infelizmente, para tristeza das ideias, parece que
nunca mais ousaremos sem que fiquemos dizendo mais do mesmo., acostumando-nos
acriticamente com a camisa de força que nos abraça.

A proposta de Castel é razoável num meio em que vemos até defesas de penas de
morte, em meio a afirmação da auto-regulação do mercado. Entretanto, indubitavelmente
não aponta nem um pouco para a emancipação do trabalhador que continuará produzindo
riquezas para os proprietários.
De uma vez por todas, devemos entender que podemos arrebentar a camisa de força
que nos prende, denunciando o capitalismo e suas mazelas na busca pela emancipação do
trabalhador.

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