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01 - Resenha As Metamorfoses Da Questao Social Wallace Moraes
01 - Resenha As Metamorfoses Da Questao Social Wallace Moraes
Escrever uma história dos assalariados e dos que vivem à margem do sistema
capitalista, isto é, dos que nada ou pouco consomem, - tal como proposto por Robert Castel
em “As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário”(2003) - é um desafio que
pode trilhar por vários caminhos, dentre eles destacamos principalmente dois:
1
Doutor em Ciência Política; Prof. Adjunto da UFF/PURO. Membro do INCT/PPED e do NIS (Núcleo
de Investigação Social)
Desnecessário dizer que se trata de interpretações absolutamente antagônicas e
inconciliáveis, sendo a primeira uma perspectiva da classe trabalhadora, dos destituídos dos
meios de produção com forte base histórica; e a segunda, do ponto de vista dos vencedores,
dos proprietários, mas dedutiva, baseada em interesses de pequena parcela da população.
Nas últimas décadas, interpretações do tipo da primeira têm sido rechaçadas por variadas
formas pejorativas.
A obra está dividida em duas partes tendo cada uma quatro capítulos com suas
respectivas introduções e conclusões. A sociedade pesquisada foi a francesa, tendo por vezes
alguns exemplos da Inglaterra e alguns mais esporádicos de outros países. Na primeira parte,
ele estuda a situação do trabalho entre a Idade Média e a época Moderna, privilegiando as
relações sociais e os direitos que a acompanham. Na segunda parte, o autor verifica a
criação de uma sociedade salarial, cujo fulcro é o ganho de vários direitos sociais,
possibilitando o bem-estar do trabalhador e do sistema, não obstante, esta sociedade cai por
terra com o crescimento do individualismo, característica central do neoliberalismo.
Cabe-nos agora perguntar: neste livro de pouco mais de seis centenas de páginas,
qual a principal tese de Castel? Centrado no século XIX, ele descreve duas teses antagônicas
e inconciliáveis; trata-se do paternalismo que defende a paz social com exaltação das classes
dirigentes como generosas para as classes trabalhadoras e, por outro lado, dos defensores da
existência da luta de classes que naturalmente afirmam que proletários e donos dos meios de
produção são inimigos. O autor rechaça as duas teses, apresentando a sua, constituída pela
defesa de um Estado que mediasse os conflitos existentes na sociedade, notadamente entre
as classes sociais, reprimindo qualquer tentativa de tomada de poder pelas classes
subalternas; mas não apenas isto, o Estado deve agir sobre as causas dos problemas sociais
de modo que possa impedir e controlar o antagonismo destruidor entre dominantes e
dominados. Explicitamente segue sua defesa:
A citação acima acaba de estabelecer a diferenciação de classe sem que Castel goste,
em outras palavras, o trabalhador tem que trabalhar, está fadado a produzir riqueza, mas
deve ter este direito que é equivalente ao direito do patrão de ter sua propriedade para
produzir riqueza.... para si. O trabalhador não tem o direito de ser proprietário, pois são
mundos diferentes. Neste ponto a filiação com o pensamento liberal não poderia ser mais
evidente.
Com o fim do Antigo Regime, Castel defendeu por várias vezes ao longo da obra
que o homem agora tinha a liberdade de trabalhar. O fenômeno da alienação, do
“estranhamento”, passou longe de seu pensamento.
Castel confirma sua proposta ao lembrar do seguro obrigatório que “representa uma
reforma considerável, ratificando pela lei uma transformação nas relações entre os parceiros
sociais, empregadores e empregados, proprietários e não-proprietários” (Castel, 2003: 412).
No terceiro quartel do século XX, Castel descreve uma França na qual cerca de 83%
da população é assalariada, em suas palavras, com “uma poderosa sinergia entre o
crescimento econômico com seu corolário, o quase-pleno-emprego, e o desenvolvimento
dos direitos do trabalho e da proteção social” (Castel, 2003: 493). Este é o modelo de
organização do trabalho visto pelo autor, descrevendo as conquistas sociais do século XX.
Castel descreve a lei de 13 de julho de 1973 que exige que o patrão prove a
existência de uma „causa séria e real‟ – portanto, em principio objetiva e verificável – para
justificar a demissão.
Sua tese não tem nada de inovador, vários intelectuais já a defenderam. O problema
é que idealizando uma alternativa entre duas teses antagônicas, Castel simplesmente mantém
toda a estrutura do capitalismo tal como defendida por uma das teses e absolutamente
díspare da outra. Na verdade, sua proposta é leniente e não questiona em nada o sistema do
capital, sendo apenas uma variante da mesma tese paternalista, portanto não seria um meio
termo eqüidistante das teses opostas, mas muito próxima do que é defendido pelo
liberalismo. O diferencial é que, para impedir que as classes oprimidas assumam o poder,
em função da possível alteração da correlação de forças, ele defende que o Estado ataque
suas “causas”, mas não aquelas que efetivamente mantém a extração de mais-valor. Na
verdade sua proposta é um engodo, pois sob o argumento de atacar as causas, o intelectual
ataca os efeitos.
Robert Castel não concebe alternativa ao capitalismo, embora queira que as pessoas
vivam com dignidade. Pensar em alternativas ao capitalismo não significa automaticamente
defender o capitalismo de Estado, ou socialismo autoritário, desenvolvido na URSS, mas
precisamos pensar em alternativas que privilegiem a liberdade que só pode se concretizar na
igualdade. A Academia parece estar presa à dogmas, ou à instituições que assumiram status
de intocáveis, quase ao nível do “sagrado”. Infelizmente, para tristeza das ideias, parece que
nunca mais ousaremos sem que fiquemos dizendo mais do mesmo., acostumando-nos
acriticamente com a camisa de força que nos abraça.
A proposta de Castel é razoável num meio em que vemos até defesas de penas de
morte, em meio a afirmação da auto-regulação do mercado. Entretanto, indubitavelmente
não aponta nem um pouco para a emancipação do trabalhador que continuará produzindo
riquezas para os proprietários.
De uma vez por todas, devemos entender que podemos arrebentar a camisa de força
que nos prende, denunciando o capitalismo e suas mazelas na busca pela emancipação do
trabalhador.