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Arqueologia de interface: Warburg,

memória e imagem

José Geraldo de Oliveira


Doutorando na Universidade Autônoma de Barcelona e
professor do Centro Universitário FIAM-FAAM
E-mail: zooliveira@uol.com.br

A
conexão entre imagem e interface já está colocada. O que se
pretende é o estudo de um elemento novo que é a memória.
Aby Warburg é a chave, já que para ele as imagens são memó-
rias sociais. O Atlas Mnemosyne se configura como um con-
junto de elementos (sintomas) criando um “dispositivo mnemônico” que
gera conhecimento. A ideia é estudar a arqueologia da interface através
dos vários dispositivos de memória, onde é possível perceber a interferên-
cia do homem na memória cultural que, culminaria nas ideias contempo-
râneas de arquivo e, a partir dessa arqueologia, contrapor com o que hoje
podemos chamar de interface tecnológica mediada pelos novos dispositi-
vos narrativos audiovisuais.
Palavras-Chave: Aby Warburg; interface; imagem; memória; videojogos.

Revista Communicare
Artigos 141

Interface archeology: Warburg, memory and


image

The connection between image and interface is already placed. What is intended is the
study of a new element: the memory. Aby Walburg is the key, because for him, the ima-
ges are social memories. The Mnemosyne Atlas configures itself like a group of elements
(symptoms), creating a “mneumonic dispositive” that generates knowledge. The idea is
to study the interface archeology through the many dispositives of memory, where it is
possible to realize the men’s interference in the culture memory that would culminate in
the contemporary ideas of Archive and, from this archeology, oppose what we call today
technology interface mediated by the new narrative and audiovisual dispositives.
Keywords: Aby Walburg; interface; image; memory; videogames.

Arqueología de la interfaz: Warburg, memoria e


imagen
La conexión entre imagen e interfaz ya está colocada. Lo que se pretende es lo estu-
dio de un nuevo elemento que es la memoria. Aby Warburg es la clave, ya que para
él las imágenes son memorias sociales. El Atlas Mnemosyne se configura como un
conjunto de elementos (síntomas) criando un “dispositivo mnemónico” que genera co-
nocimiento. La idea es estudiar la arqueología de la interfaz por medio de los diversos
dispositivos de memoria donde es posible percibir la interferencia del hombre en la
memoria cultural que culminaría en las ideas contemporáneas de archivo y, a partir de
esa arqueología, contraponer con lo que hoy podemos llamar de interfaz tecnológica
mediada por nuevos dispositivos narrativos audiovisuales.
Palabras clave: Aby Warburg; interfaz; imagen; memoria; videojuegos.

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Em 1995, o romancista William Gilson roteiriza Johnny Mnemonic para


o artista visual e cineasta Robert Longo materializar, numa estética cyber-
punk, o que representaria a memória em uma sociedade futurista do ano de
2021, em que piratear informação torna-se tão comum que a internet e os sa-
télites não são mais confiáveis. Assim, a única forma segura de “transportar”
dados é fisicamente, no cérebro do agente mnemônico. É curiosa a distopia
de como a memória é tratada, ou seja, algo transportável fisicamente, de um
repositório de conhecimento a uma nova forma de economia ou mercadoria.
A chegada da internet e a sua rápida implementação nos leva a de-
tectar a aparição de um novo “modelo mental”, a interface, apontada por
Josep M. Català como o surgimento de uma plataforma que busca o fun-
cionamento e a tensão entre técnica, indivíduo e sociedade e em que essas
inter-relações se desenvolvem de maneira mais associada com as novas
realidades. Para o autor, o conceito de interface está além da simples rela-
ção entre a máquina e o usuário, pois tem um alcance transcendental para
compreender a nova situação híbrida que se produz na natureza sociotéc-
nica em que nos encontramos. A sua fenomenologia da interface tem um
enfoque mais amplo e pode ser considerada como o projeto de uma com-
preensão mais completa do mundo.
Neste ensaio, pretendo realizar uma pequena incursão ao que passo
a chamar de “protointerface”, a partir da perspectiva da arte da memória,
que buscou, a partir da mnemotécnica, associar-se a uma representação ou
visão de mundo em seus respectivos períodos. Podemos, assim, detectar a
utopia da busca do conhecimento através das imagens mentais e represen-
tações que se materializam em dispositivos que, posteriormente, tornaram-
-se aparatos de representações coletivas e que nos levaram à formulação de
modelos mentais de pensamento, como o teatro grego e a câmara escura,
até chegarmos à interface.
Assim, a ideia da interface vai além de um neologismo da revolução
digital e passa a atuar como “agente modelador da percepção”, situado entre
o real e o virtual, um espaço tecnológico e, ao mesmo tempo, cognitivo em
que acontece o processo de “interação”.

A memória e a representação do mundo

Mnémosyne rege, desde o início dos tempos, as relações entre memória


e criação, conhecimento e poesia, ciência e artes. Sob a sua égide, há 2.700
anos, iniciam-se as artes da memória na Grécia, abrindo caminho para uma
arte global, combinando, pela primeira vez, o lugar e a memória, o espaço
e o tempo, a representação e o movimento e a imagem e o pensamento. Da

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aventura de Mnémosyne e Zeus nascem as nove musas que passam a inspirar


a criação artística e científica e se consolidam os diversos modelos de conhe-
cimento, entre eles a ideia de um pensamento visual.
A arte da memória sempre esteve associada à retórica, como uma téc-
nica que possibilitava ao orador aprimorar a sua memória, e o poeta ao ser
possuído pelas musas, recuperaria a “memória primordial” e teria acesso às
realidades originais. Os relatos de Cícero em De oratore, revela como Simô-
nides inventou essa arte associando-a como uma das cinco partes da retóri-
ca (inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronunciatio). Além de Cícero,
outras descrições podem ser encontradas no anônimo AdC. Herennium libri
IV e em Institutio oratoria, de Quintiliano. Esses estudos pioneiros se inte-
graram posteriormente na tradição europeia, tornando Mnémosyne a matriz
de todas as artes inventadas e do conhecimento humano.
O Ad Herennium de ratione dicendi é o único documento completo e
remanescente da Antiguidade grega e latina. Escrito entre 86 e 82 a.C., nele o
autor define a memória como um atributo importante para o orador e a dis-
tingue entre natural e artificial. A primeira é inserida na alma no nascimen-
to, junto com o pensamento e as outras faculdades. A segunda é fortalecida
pelo treinamento técnico de imprimir “lugares” e “imagens” na memória, o
que poderia ser uma “rede exocerebral” ou “circuitos externos de memórias”,
de que Roger Bartra, em Antropología del cérebro (2007), destaca a “avassa-
ladora complexidade com que essas sustentam a memória coletiva”.
Hoje, detectamos que a nossa memória foi transferida para dispositivos
externos – os desktops (mesa de trabalho), os laptops (em cima do colo) ou
os smartphones –, diferentemente do que ocorria antes da invenção de Gu-
tenberg. Então, uma memória treinada era fundamental, já que a articulação
das imagens na memória implica, em certa medida, a psique como um todo,
pois ocorre uma apropriação da “arquitetura da época” para a elaboração dos
“lugares de memória” e do “repertório figurativo”. São estes que permitem a
fixação das imagens, como acontece em outras artes. E nesses lugares de me-
mória é que se constitui, como nas outras artes, a periodização já verificada
nas eras clássica, gótica e renascentista. Essas “visões fantasmagóricas”, que
habitam arquiteturas imaginárias de períodos históricos cronologicamente
definidos, também irão ser “experivenciadas” pelo “experimentador” como
adequadas para a impressão da linha do pensamento em sua memória.
A associação entre o pensamento, o lugar e a imagem, talvez, seja o
primeiro dispositivo criado pelo homem para armazenar e organizar a me-
mória. É também onde podemos encontrar a ideia de uma paisagem mental
que já não está mais separada do lugar, uma vez que as artes da memória
expõem a ligação entre pensamento, lugares (loci) e imagens (imagine).

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Isso se torna uma criação humana, inseparável do lugar e uma nova maneira
de expressar ideias por meio de imagens, que não é mais efêmera, mas cons-
titui uma ferramenta no exercício do pensamento.
O “vagar” coloca em movimento um dispositivo mnemônico e imagé-
tico que possibilita ao homem que entra no percurso reduzir o seu nível
de consciência, deixar livre a imaginação criativa e assim produzir conheci-
mento. O percurso é divido em sequências onde são armazenados, em uma
ordem específica cronológica ou lógica, os itens a serem lembrados. Cada
sequência cria uma imagem mental que será projetada em lugares quando
revisitado mentalmente pelo vagar. Esse vagar e a construção de imagens
mentais podem ser associados à interface.
A interface utilizaria, portanto, os registros correspondentes ao imagi-
nário para expressar tanto o imaginário como as outras formas de conheci-
mento. Nesse sentido, seu funcionamento se equipararia ao dos outros meios
que também gestionam o conhecimento geral através das linguagens especí-
ficas daquelas regiões mentais das que são diretos representantes. O teatro
gestiona o simbólico e o imaginário através do real; a literatura processa o
real e o imaginário através do simbólico; e, finalmente, a interface se ocuparia
do real e do simbólico através das formas do imaginário (Català, 2010, p.158).
A arte da memória prenuncia a chegada das imagens em movimen-
to. Nestes espaços f ísicos ou criados artificialmente, é possível encontrar,
numa proposta arqueológica, “acoplamentos dialéticos” de lugares-ima-
gens que se tornam uma inteligência emotiva a partir de narrativas mentais
criadas durante o percurso. Da mesma forma que revela um marcador (sin-
toma), um lugar (loci), individualizado e intimista dos antigos palácios da
memória que hoje se tornam porosos e coletivos com a chegada das novas
tecnologias, eles permitem a passagem para a construção de um grande
número de possibilidades e dispositivos com infinitas combinações que
renovam o conceito de “labirinto”. Um vagar significativo entre enigmas
simbólicos com um percurso ligado pela “realidade expandida” das novas
paisagens virtuais e formado por links e hiperlinks.
Esses “dispositivos”, atualmente, são elevados ao status de “enigmas
simbólicos narrativos”, como podemos perceber no videogame Dear Esther1
. Uma obra hipermídia que, sem apresentar uma estrutura de conflito como
na maioria dos videojogos, leva o usuário a realizar uma exploração espacial
que o remete a um universo de memórias visuais, emocionais e simbólicas
de um “jardim da memória”. No momento em que o usuário reconstrói uma
1. The Chinese
nova narrativa por meio de uma “experiência emocional virtualizada”, recon-
Room for Microsoft figura também o campo de percepção do imaginário surgido dos intercâm-
Windows, Mac OS X
and Linux, 2012. bios mentais. Assim, as metáforas visuais se inserem na criação de “mundos

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possíveis” por ocorrer uma ruptura dinâmica entre a imaginação e a realida-


de, o que nos leva a entender a visualidade nos processos de interatividade
incorporada tecnologicamente.

Raymond Llulle e o movimento das imagens

Na era medieval, pelas mãos do filósofo catalão Raymond Llulle (1272-


1316), encontramos a arte da memória baseada na alegoria da Arbor Scien-
tiae [figura 1]. Ali se estrutura um conjunto de conhecimentos agrupados
em florestas, sendo a imagem da árvore uma metáfora para o crescimento
da natureza e do saber e “ilustra um fenômeno central em história cultural,
a naturalização do convencional, ou a apresentação da cultura como se fosse
natureza, da invenção como se fosse descoberta” (Burke, 2003, p. 82).

Figura 1 – Raymond Llulle, Arbor Scientiae, 1515; e o Sistema detalhado do


conhecimento humano, da Encyclopédie, de Diderot e d’Alembert, 1751-1765.

Llulle também concebe um modo diferente de representar o mundo, bus-


cando na origem cabalística uma representação alfanumérica. Ao mover os
mecanismos imaginários, cria-se uma combinatória de letras que recriam o
mundo. O llullismo se espalha rapidamente pela Europa até o século 17, apesar
da perseguição implacável do inquisidor catalão Nicolau de Eymerich (1320-
1399), no século 14. Suas ideias alcançam dimensões extraordinárias no Renas-
cimento, sobretudo, por causa de seus seguidores, entre eles Nicolau de Cusa.

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Acreditava-se que sua arte podia ser usada por aquelas três faculdades da
alma que Santo Agostinho definiu como reflexo da Trindade no homem.
Como intellectus, era uma arte que permitia conhecer ou encontrar a
verdade; como voluntas, era uma arte para treinar a vontade pelo amor da
verdade; como memoria, era uma arte da memória para a rememoração da
verdade (Yates, 2007, p. 220).

Llulle introduz o movimento nas imagens e a abstração (imaginação)


na especulação mental. Diferentemente da arte clássica, não exigia o es-
forço de incitar a memória por meio de similitudes corporais dramáticas
e emocionais, mas levava à criação de uma frutífera interação entre a arte
da memória e as artes visuais. Ele concebeu uma máquina lógica [figura 2],
constituída por círculos concêntricos contendo palavras que, dispostas em
uma certa ordem, formavam perguntas e respostas. Ao mover os mecanis-
mos imaginários, cria-se uma combinatória de letras que recriam o mundo.
Isso dá ao llullismo um caráter quase algébrico ou cientificamente abstrato.
Essas combinações não figurativas são uma forma de alcançar o conheci-
mento, por meio de dispositivos simbólicos. O pesquisador André Lemos,
em As estruturas antropológicas do ciberespaço, afirma que:

da mesma forma, a metáfora da teia (web), que liga todas as informações


disponíveis no planeta, serve hoje como imagem para o ciberespaço. As
interfaces gráficas são também metáforas e alegorias para a busca de
informações. Manipular os ícones revela a essência da manipulação mágica.
Dessa forma, a manipulação mágica do mundo, como a manipulação de
dados no ciberespaço, se situam na mesma dinâmica (Lemos, 2008, online).

Esta transição, para uma arte “combinatória”, é um momento chave na


mecanização do conhecimento.

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Figura 2 – Reprodução de uma das máquinas de Llulle na tradução francesa


de Ars Brevis (1901). O disco central e os dois anéis são móveis.

Teatro das ideias e da memória de Giulio Camillo

A arte da memória teve o seu apogeu na Itália, entre os séculos 15


e 16, e muito se deve ao conceito de “Teatro da Memória”, de Giulio Ca-
millo. O filósofo da renascença propõe o modelo de um espaço teatral
composto por 49 degraus, onde estariam presentes textos e imagens ba-
seados em mitos e arquétipos, filosofia, números, estrelas e planetas, cuja
posição no teatro determina o significado de cada imagem [figura 3]. O
praticante da arte da memória (usuário), ao penetrar no fluxo e mover-
-se nas múltiplas direções em que as informações suscitavam, ingressa-
ria num mundo de transformação interior (imersão), no sentido de um
aperfeiçoamento crescente que, num primeiro momento, seria de ordem
retórica, para posteriormente evoluir ao “espiritual, mágico, divino”, um
espetáculo “imitável e memorável”.

L’idea del Teatro pode ser considerado uma “tessitura” por entre textos,
imagens, ideias que remetem à imagem de um “grande teatro da memória e
da sapiência, no qual textos e imagens se cruzam a todo instante, enquanto
revelam sentidos e partem novamente (...) numa cintilação momentânea,
momento em que a imagem tornar-se-ia signo do divino, ligar-se-ia à
essência celeste que ela encarna e tornar-se-ia intercambiável com essa
essência (Almeida, 2005, pp. 27-46).

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O teatro de Giulio Camillo forjou a visão de um sistema universal de


armazenagem e recuperação da memória e, da mesma forma, um sistema ou
um dispositivo simultaneamente aberto e fechado, sempre passível de atua-
lizações. Nesse sentido, o teatro se torna um dispositivo interfásico, uma vez
que propõe ao usuário uma atuação e, ao mesmo tempo, a possibilidade de
mudar de plataforma ou de passar a outro nível.
A construção de seu teatro marca o momento em que a memória se des-
loca do interior da mente para o mundo exterior. A memória natural, por mais
elaborada que fosse sua organização – graças às técnicas da memória artificial
–, não deixava de ser um lugar mental, um mecanismo ou uma capacidade, que
se escondia nas profundezas da estrutura da mente humana. Camilo a retirou
desse poço, antecipando-se em uns 400 anos à revolução dos computadores,
que constituiria um segundo, e bastante mais afortunado, intento nesse sentido.
É um teatro que buscava representar o mundo, e não transformá-lo. O
“usuário”, ao penetrar nesse espaço de representações, entrava também em
um processo de busca de conhecimento.

Figura 3 – Teatro da memória, de Giulio Camillo.

O homo nexus de Giordano Bruno

A Ars Magna, pensada por Llulle, foi elevada por Giordano Bruno ao
status de link, onde “aprender pensamentos” se transforma em “aprender
2. Alain Montess, a pensar” para nutrir, hoje, a cultura digital. Segundo François Boutonnet
A arte da memória (2013), Bruno tenta uma síntese corajosa da arte clássica da memória de
online (2002), dispo-
nível em <http://re- Llulle, ao animar imagens combinatórias e ao passar a utilizar os dispo-
cherche.univ-lyon2. sitivos de engrenagens em cenas marcantes e seres estranhos do antigo
fr/grimh/>. Acesso
em 6/5/2015. Palácio da Memória 2.

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Giordano Bruno (1548-1600) luta, desde os meados do século 16,


para romper as fronteiras inabaláveis que separam, ainda hoje, a ciên-
cia da consciência e a imaginação. Seus dispositivos (Rodas da memória)
antecipam a importância das interações no desenvolvimento da Ciberné-
tica [figura 4]. Inspirado por Raymond Llulle e seu antecessor, Nicolaus
Copernicus, Bruno cria o que seriam os links no conceito contemporâ-
neo. Ou seja, janelas que se abrem para novas conexões no centro do seu
trabalho. Bruno estava interessado na natureza das ideias e no processo
associativo operante na mente humana. Incorpora elementos da Cabala
e do neoplatonismo para impulsionar uma revolução global no modo de
pensar que, “comparado a Giulio Camillo, utiliza de forma mais audacio-
sa imagens e signos notoriamente mágicos, dentro da tradição da memó-
ria oculta” (Yates, 2007, p. 261).

Figura 4 – Rodas da memória, de Giordano Bruno.

Giordano Bruno emprega as cenas marcantes das antigas Artes da me-


mória, que são arquiteturas reais e imaginárias, mas em suportes totalmente
desmaterializados, engrenagens impulsionadas por mecanismos complexos.
Esses dispositivos funcionam como instrumentos heurísticos que
procuram criar e encontrar, a partir de um procedimento simplificador
(não simplista), respostas variáveis, menos que imperfeitas, para um deter-
minado problema e que podem atualizar a infinidade de combinações que
compõem um quadro da realidade.
Em uma época de escuridão, Bruno propõe a ideia do homo nexus 3 ,
para o que Alfred Elton van Vogt cunha, em Voyage of the Space Beagle
(1950), o termo “nexialismo”, referindo-se a uma ciência que não seria
a simples soma de disciplinas que compõem o conhecimento humano,
3. Do latim nexus:
mas uma ciência em que houvesse uma interligação ou nexus entre todas. ligação; conexão.

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O herói nexialista Elliot Grovessnor, que inspirou várias séries de Star


Treck, apesar de não deter uma habilidade específica, como os demais tri-
pulantes da nave, conseguia integrar diferentes ciências (psicologia, quími-
ca e f ísica, entre outras) na busca de soluções que davam sobrevida a to-
dos da nave. Uma oposição à visão atual de um universo de especialização,
onde o importante é ter uma visão do todo ou pensar “out of the box”.
Se na Idade Média a oratória perdia sua força, no Cristianismo ela reaparece:

A arte da memória era um sistema que comunicava o mundo cultural com


o microcosmos interior. E não só abria um canal de comunicação: permitia
que com os artif ícios da cultura se manifestassem as esferas da alma. Essa
introdução forçada dos poderes da imaginação em elevadas partes racionais
da alma foi um desafio para a escolástica cristã (Barta, 2007, p. 190).

Jacques Le Goff, em História e memória (1990), lembra dos homens-


-memória dessas sociedades ágrafas, desde os funcionários da memória, os
mnemon (arquivistas), e revela um período em que se “venerava os velhos,
sobretudo porque se via neles homens-memórias, prestigiosos e úteis”, similar
ao que acontece no romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, adaptado ao
cinema por François Truffaut (1966). Em uma sociedade totalitária em que as
palavras designam coisas, mas sem referencial gráfico para representar as pa-
lavras, a leitura torna-se um ato criminoso. Montag, um bombeiro responsável
pela queima dos livros, passa a roubá-los e a lê-los. Denunciado pela sua mu-
lher, ele foge e é levado à “terra dos homens-livro”, ou memorizadores. “Um dia
seremos chamados, um a um, para recitar o que aprendemos. Então, os livros
serão novamente impressos. E quando a nova idade das trevas chegar, aqueles
que vieram depois de nós farão como nós fizemos”, afirma o personagem.
Para “o acadêmico de nenhuma academia” Giordano Bruno, a relação
entre memória, linguagem e imagem é uma ciência como magia. Em Tratado
da magia (2008), define que “magos” seriam “homens sábios com capacidade
de agir”. Da mesma maneira que podemos observar que no centro de sua filo-
sofia está a ideia de que há uma “continuidade entre as ideias, as palavras, os
símbolos e as coisas concretas, os objetos, as substâncias e os seres vivos”, ou
seja, o pensador procura estabelecer uma “ligação” com o todo e criar uma
verdadeira antropologia dos links.
No final do século 16, Giordano Bruno irá representar uma espécie de
clímax dessas interações. Depois da Reforma (início do século 16) e da cria-
ção da imprensa por Gutenberg (meados do século 15), se fará um longo
silêncio sobre a arte da memória, sobretudo após a morte de Bruno na fo-
gueira, em 17 de fevereiro de 1600.

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Palácios das memórias e os Mind Map

A “técnica de lugares” usada até o Renascimento em muitas variações.


A abadia, com suas dependências e os objetos a serem colocados em dife-
rentes lugares do espaço, será útil como âncora mnemônica (memórias arti-
ficiais) para as diferentes etapas do discurso, como técnica para lembrar os
elementos representados [figura 5].

Figura 5 – Sistema de memória de uma abadia e imagens para serem usadas


no sistema mnemônico. Johannes Romberch, Congestorium Artificiose Me-
moriae, Veneza, 1533.

No antigo Palácio da Memória, o percurso mental ativa a máquina de


memória que estimula a máquina de imagem. O deslocamento cria imagens
que geram pensamento. Na Idade Média, o deslocamento torna-se f ísico nos
caminhos da oração ou nos passeios pelos jardins renascentistas. O cami-
nhar convida à mobilidade do olhar e ao mesmo tempo convida à mobilidade
das imagens. Hoje, vagar nas potencialidades digitais torna-se um percurso
divertido, interativo e imersivo. Os Mind Map (mapas mentais) criam novas
ferramentas de conhecimento.
Até aqui tentei realizar um percurso de recuperação da arte da me-
mória, mas buscando localizar nesses processos do que denomino “pro-
tointerface”, tentando identificar o que Josep Català desenvolve como

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modelo mental. Já em 2005, o pensador catalão afirma que a interface


se apresenta como um espaço epistemológico, que funciona por meio de
um procedimento hermenêutico. Ele sublinha a ideia do interativo de
“caráter temporal, dialético que, através do movimento, da fluidez e das
transformações que alcançam a própria plataforma de atuação, revela a
instabilidade de todo o conjunto” (Català, 2005, p.574). Essa aparência de
um paradoxo de pensamento, a meu ver, revela ou demonstra uma grande
simplicidade. A interface é um espaço que gera conhecimento: “Visto que
a interface pretende resolver, em sua própria constituição, alguns con-
frontos contemporâneos entre o saber e a arte, entre o que é científico
e o que é senso comum, entre o mundo real e o mundo do pensamento”
(Català, 2005, p. 574).

Pensamento visual ou pensamento por imagens

O historiador alemão Aby Warburg também antecipa o conceito de hi-


perlinks na sua Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg, onde material-
mente criou a “política da boa vizinhança”. Para ele, a solução de um proble-
ma não estava contida nos livros que buscava, mas talvez no livro que estava
ao lado, o bom vizinho.
No início do século 20, Aby Warburg foi um dos primeiros explorado-
res da readaptação das artes da memória e continuou com suas pesquisas.
Inicia o Atlas Mnémosyne, nome dado a um ambicioso projeto inconcluso:
um atlas iconográfico que iria catalogar e reconstruir a memória visual do
Ocidente, em sua cadeia de Pathosformeln. Nesse projeto podemos encon-
trar semelhanças com o Teatro de Giulio Camillo, buscando e redescobrin-
do, nas origens das invenções vanguardistas, dispositivos de vários milha-
res de anos de artes antigas da memória.
O pensador alemão centrou a sua atenção nas representações de figu-
ras em movimento, fez do desfile das imagens um instrumento de análise e
o seu projeto, durante a década de 1920, seria consagrado à elaboração de
uma metodologia da montagem. Warburg alterou a própria ideia de repre-
sentação, que deve ser entendida, a partir daí, não como forma de pensar,
mas como “comparecimento”, ou seja, já não se trata apenas de compreen-
der, mas de produzir efeitos.
Na origem desse deslocamento, é possível reconhecer a influência do
pensamento de Friedrich Nietzsche, com quem Warburg lidou mais do que
qualquer outro historiador no âmbito estrito de sua disciplina, cujas leis,
aliás, ele pulveriza por dentro, introduzindo na análise das obras a questão
do devir e do fluxo.

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Historiador de arte e mentor da iconologia moderna, apesar da dis-


ciplina sempre esteja associada ao nome de Erwin Panofsky, como afirma
George Didi-Huberman (2003). Embora sua disciplina não tivesse um nome,
como o “filólogo dos objetos e de suas imagens” gostava de reforçar, em seu
trabalho, a destruição da ideia de imagens evolucionistas da história cultural
e declarava impraticáveis as periodizações tradicionais.
Warburg entra na história da arte pela porta do Renascimento – ou
“sobrevivência” da Antiguidade. No Nascimento de Vênus e a Primavera,
obras de Sandro Botticelli, que foi o corpus da tese de doutorado do jovem
Warburg, aparece pela primeira vez a preocupação pelas continuidades e
“sobrevivências” da Antiguidade clássica. Gesto e movimento e a relação
entre a mentalidade primitiva e a expressão corporal violenta foram os
principais temas de interesse de Warburg. Sobretudo as “sobrevivências”
desses conceitos desde a Antiguidade clássica. Ele continuou a analisar as
imagens que são transferidas de uma cultura para a outra em diferentes
espaços de tempo sem, no entanto, permanecerem inalteradas. Interessa-
va-se pela análise das relações complexas entre o artista e o seu meio, com
destaque para os aspectos como o papel do comitente (quem encomenda)
na produção artística e a relação dos artistas com os modelos literários
circulantes, especialmente no que diz respeito ao exame dos mecanismos
de transmissão e sobrevivência cultural da Antiguidade.

O sopro de Boticelli coloca a vela em movimento

Em 1903, Warburg envia uma carta a sua esposa após assistir a uma
apresentação da bailarina americana Isadora Duncan 4, que durante a sua
estadia em Florença ficou impressionada com a Primavera de Botticelli
[figura 6] e criou a coreografia Tanzidyllen em que utilizou várias figuras
da pintura na tentativa de repetir e reelaborar os gestos da famosa tela.
Warburg se interessou pela apresentação, porque a dança era uma dis-
ciplina artística diretamente envolvida nas suas elaborações teóricas do
Pathosformel (forma do patético) que vinha amadurecendo naqueles anos.
Conceito que, como concebido pelo pesquisador, não é apenas um gesto 4. Linda Selmin.
ou uma posição, mas um movimento que envolve todo o corpo e investe L’americana scalza.
Un inedito di Aby
em um Pathos intensamente expressivo e de “sobrevivência” das formas
Warburg su Isadora
antigas e de gestos expressivos, desde o Renascimento até os tempos con- Duncan. Disponível
temporâneos. A atenção à dança de Isadora Duncan mostra que as suas em <http://www.en-
gramma.it/engram-
pesquisas também estavam em constante movimento e que não eram limi- ma_v4/warburg/
tadas apenas aos estudos das formas do Renascimento, mas a um método fittizia1/34/duncan.
html>. Acesso em
que poderia ser expandido sempre. 21/5/20015.

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154 Arqueologia de interface: Warburg, memória e imagem

Figura 6 – Acima, a Alegoria da primavera, de Sandro Botticelli. Tempera so-


bre madeira (1482), Galeria Uffizzi. Abaixo, espetáculo de Tanzidyllen botticel-
leschi, de Isadora Duncan (1903).

O Museo Cartaceo, conhecido como “museu de papel”, modelo de cata-


logação fornecido pelo mecenas e colecionador italiano Cassiano Dal Pozzo
(1588-1657), no início do século 17, foi uma das origens de Mnemosyne, “mas
a exegese warburgiana permaneceu estranhamente muda sobre essa origem”
(Michaud, 2013). Muito antes da descoberta da fotografia, do Atlas de War-
burg e do Museu Imaginário de André Malraux, o trabalho de Cassiano Dal
Pozzo, constituído por milhares de gravuras ou desenhos que abarcam os
campos da zoologia, da botânica e da geologia, assim como da arte e da ar-
quitetura, já existira. Esse modelo foi responsável pela circulação na Europa,

Revista Communicare
José Geraldo de Oliveira 155

em grande escala, de uma história da arte e da ciência narrada por imagens


e não apenas por palavras. Já não era mais necessário viajar até a fonte do
saber, elas viajavam em papel, na intenção de exteriorizar visualmente todo
o conhecimento humano da época.
O “museu de papel” pretendia tornar visível e classificar, às vezes por
princípios iconográficos, o saber universal dos homens sobre a natureza e
sobre a história. A construção do Atlas Mnemosyne – tributário do nasci-
mento das primeiras agências fotográficas (Alinari, Anderson, Braum etc.)
que, a partir do fim do século 19, procuraram montar um inventário siste-
mático das obras de arte que faziam circular não mais sob a forma de gravu-
ras ou desenhos, mas sob a forma de cópias fotográficas – parece inscrever-
-se na linhagem direta dos musei cartacei. No entanto, o Atlas não constitui
a versão contemporânea deles (Michaud, 2013, p. 319).
Observando a prancha C [Figura 7], podemos perceber que o Atlas foi
concebido como uma sucessão de mapas diacrônicos, destinado a acompa-
nhar a migração das imagens ao longo da história das representações, mas
não se limita em apenas descrever estas migrações: ela as produz, ou seja
busca produzir um efeito, inclusive nas camadas mais prosaicas da cultu-
ra moderna. A prancha C aborda a epistemologia e a prática da criação de
símbolos. Podemos perceber as polaridades que Warburg frequentemente
traçava entre uma visão de mundo astrológico-demoníaca e uma visão ma-
temático-racional. O que se torna visível com o foco na concepção inicial
do sistema solar de Johannes Kepler e a forma como ele é construído com
os cinco sólidos platônicos e a sua posterior descoberta de que os planetas
têm órbitas elípticas. A figura exemplar de Marte é representada em formas
míticas e matemáticas. Enquanto isso, o domínio do céu do Graf Zeppelin
sugere a promessa da tecnologia5.
Assim, Warburg pensa a imagem como uma estrutura cinemática, dentro
da problemática do movimento, isto é, da montagem. As cadeias de imagens
são dispostas como ideogramas, de maneira a produzir uma nova linguagem
na história da arte que se aparenta com a sintaxe visual de Serguei Eisenstein,
ou seja, uma imagem é sempre um organismo complexo, não natural e o re-
sultado de uma montagem de espaços heterogêneos (Michaud, 2013, pp. 325-
326). Assim, Warburg pensava com imagens consteladas e montagens que
envolviam a questão do movimento como fundamento da reflexão e também
como uma nova dimensão nas disposições bidimensionais do Atlas.

5. Claudia Wede-
A montagem – pelo menos no sentido que aqui nos interessa – não pohl. Disponível em
é a criação artificial de uma continuidade temporal a partir de “planos” <http://warburg.
library.cornell.edu>.
descontínuos agenciados em sequências. É, pelo contrário, um modo de Acesso em 5/6/2015.

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156 Arqueologia de interface: Warburg, memória e imagem

desdobrar visualmente as descontinuidades do tempo da obra em toda a


sequência da história (Didi-Huberman, 2002, p. 474).

Figura 7 – Prancha C. Evolução das ideias sobre Marte. Superação da concep-


ção antropomórfica de imagens – Sistema Harmônico – Signo.

Assim, a memória oferece sustentação decisiva para a análise desses


movimentos, com o que retornamos ao engrama. As imagens para Warburg
são tanto objetos materiais como formas de pensamentos, modos de conce-
ber, de pensar com imagens. De tal modo que as imagens produzidas pela

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José Geraldo de Oliveira 157

interferência do homem na cultura se vinculam com sua capacidade de


simbolização, ou seja, a “cultura” é o resultado dessa interferência na rea-
lidade social e, ao mesmo tempo, na memória social, que poderá culminar
com as novas ideias de “arquivo”.
Para Warburg, as imagens são sempre formas de uma memória social,
elementos do imaginário, memórias artísticas e emocionais. Na Introdução
à Mnemosyne, de 1929, ele afirma que:

Tanto a memória da personalidade coletiva como a do indivíduo vem


socorrer de modo todo peculiar o homem artístico, que oscila entre a visão de
mundo matemática e a religiosa: ela não o faz criando prontamente o espaço
de reflexão, e sim atuando junto aos polos limítrofes do comportamento
psíquico, de modo a reforçar a tendência à contemplação serena ou à
entrega orgiástica. Ela aciona mnemonicamente a herança indelével, não
com uma tendência primariamente protetora, mas com a inserção na
obra de arte, formando o estilo, o ímpeto pleno da personalidade crédula,
tomada pelo phóbos passional e abalada pelo mistério religioso – assim
como, por outro lado, a ciência, ao fazer seus registros, grava e transmite a
estrutura rítmica na qual os monstros da fantasia se tornam os condutores
da vida que determinam o futuro (Warburg, 2015, p.365).

Em seus estudos, o pensador alemão resgata o rigor empiricista de Char-


les Darwin, criado no livro A expressão das emoções, nos homens e nos ani-
mais, que vai além do projeto de sustentar a teoria da evolução e inaugura o
estudo dos aspectos biológicos do comportamento, seguindo a vertente da
neurociência. O naturalista, com uma aguçada percepção emocional, serve de
inspiração para Warburg, que estava preocupado em compreender as emo-
ções – e é de onde ele recupera o conceito de “rastro”, “deslocamento” e “antí-
tese”. Do antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917), recupera as ideias
da teoria das sobrevivências culturais: o presente, enquanto lugar, memória e
tecido de passados múltiplos. Didi-Huberman valida a obra de Tylor ao afir-
mar que “o que faz sentido em uma cultura é com frequência o sintoma, o
impensado, os aspectos anacrônicos da cultura e os detalhes triviais”. De Sig-
mund Freud, vem a ideia de que a “formação do sintoma constitui mais um in-
terpretante” e a de “desdobrar os modelos temporais, corporais e semióticos”.
O referencial dialético das construções warburgianas se transforma no
choque dos conceitos de Jacob Burckhardt, de onde vem o Ethos apolíneo,
que seria uma inteligência organizada e na contramão do Pathos dionisíaco
de Friedrich Nietzsche, ou a energia natural, instintiva e pagã. Aliás, a re-
lação de Warburg e Nietzsche tem também como ponto comum a psicose

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158 Arqueologia de interface: Warburg, memória e imagem

que leva à curiosidade científica. Não à toa Warburg mantinha um retrato


do autor de A gaia ciência enfermo colado na parede de seu quarto, numa
inequívoca identificação com o filósofo:

“É certo que o bom Deus está presente em todas as partes?”, perguntou uma
menina à sua mãe: “Acho que isto não está bem”. Uma advertência para os
filósofos! Deveriam honrar o pudor com que a natureza se oculta nos enigmas
e nas incertezas heterogêneas. “O bom Deus se esconde nos detalhes” será
a resposta de Warburg à criança, e o seu modo velado de honrar ao mesmo
tempo a advertência e a memória de Nietzsche (Stimilli, 2005, p. 22).

A resposta à menina de Nietzsche, “Deus está nos detalhes”, demons-


tra não apenas a sua necessidade de olhar a história nos entremeios das
tramas da análise iconográfica, mas uma construção antropológica do ho-
mem e dos seus vestígios sem enigma. Olhar os detalhes não é uma solução
do dilema, mas a abertura para novos dilemas que surgem nas “histórias
de fantasmas para gente grande”, ou seja, uma expansão metodológica da
Kunstwissenschaft (ciência da cultura) que “abre caminho, conserva e dá
curso a uma estrutura rítmica na qual os monstros da fantasia se trans-
formam em guias da vida que decidem o futuro” (Warburg, 2015, p.365).
Giorgio Agamben diria que a cultura é um processo de Nachleben, ou seja,
de transmissão, recepção e polarização. Isto abre o horizonte para com-
6. Dossiê War-
preendemos por que o pensador concentrava a sua atenção no problema
burg. Organização dos símbolos e da existência na memória social 6.
de Cezar Bartho-
lomeu. Revista Primogênito de uma família judia, como um típico colecionador benja-
Arte&Ensaios nº miniano, Warburg juntava tudo o que pudesse contribuir para a reconstrução
19. PPGAV-EBA/
UFRJ. 2009. Dis- e a explicação do meio social, assim como as imagens do passado tornam-
ponível em http:// -se importantes como “documentos humanos”7. A sua preocupação principal
w w w. p p g a v. e b a .
ufrj.br/wpcontent/ com as imagens era quanto ao seu uso na interpretação da história, ou seja,
uploads/2012/01/ seu valor sintomático8. Assim, se reconstruirmos o seu cenário original co-
ae22_dossie_Cezar-
-Bartholomeu_Aby- locando-as no meio cultural em que surgiram, se descobrirmos os laços que
- Wa r b u r g _ G i o r -
gio-Agamben1.
as vinculam aos seres humanos do passado, elas irão revelar algo do quadro
pdf. Acesso em psicológico de sua época e de seu estado e atitudes dominantes, ou seja, a
20/4/2015.
memória como uma construção humana, a capacidade do colecionador de
7. GOMBRICH, E.
H. Arte e ilusão. São
retirar o objeto de um contexto a fim de redimir e criar uma nova constelação.
Paulo: Martins Fon- É uma metodologia anacrônica de compreensão de documentos
tes, 1995.
e imagens, também sugerida por Benjamin, como uma “história lida no
8. WOODFIELD,
Ricard (org.). Gom-
contrafluxo”, aflorando evidências da ação do homem em espaço e tempo
brich essencial. Por- diferentes. A esse olhar de uma periodização histórica criado pelo desfazer,
to Alegre: Bookman,
2012. Warburg chamou de “evolucionismo geral”. Ele prefere a ideia de uma

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José Geraldo de Oliveira 159

iconologia do intervalo, que seria um método historiográfico das imagens


a partir de determinados gestos, que é percebido por um olhar atento aos
detalhes. As possíveis lacunas, entre um campo e outro do Atlas, podem
ser preenchidas pelas indicações que a própria memória faria emergir e
onde os conceitos de “sobrevivência” e “Pathos-formeln” enxertariam à
história da arte uma perspectiva impregnada de afetos e distante de uma
objetividade espaço-temporal linear.
O Atlas inacabado de Warburg, e não poderia ser de outra forma, já
que se ele fosse finalizado iria contrariar a própria essência do método, con-
figura-se como um sistema mnemotécnico “interfásico” de uso privado, no
qual o erudito e psicótico Aby Warburg projetou e procurou resolver seus
conflitos psíquicos pessoais. Em Mnemosyne, constatamos que o destino
das imagens também só pode ser apreendido em termos de montagens, des-
montagens e remontagens perpétuas. Daí que toda a teoria warburguiana da
memória tenha acabado por se organizar em torno da noção operatória de
intervalo (Didi-Huberman, 2013, p. 236).
Assim, esse dispositivo ou aparato revela uma maneira de encarar o
estudo da tradição das imagens e a interpretação do problema histórico, tor-
nando-se um “diagnóstico” do “homem ocidental lutando para se curar de
suas contradições e para encontrar, entre o antigo e o novo, sua própria mo-
radia vital” (Didi-Huberman, 2013, p. 236).
Esse método mnemônico, ao abranger toda uma construção social que
ele faz ressurgir, pode ser a raiz da construção de uma espacialidade para as
imagens. Ao dispor essas imagens em uma prancha, tal qual as mesas de ri-
tuais, “uma forma visual do saber, uma forma sábia de ver” (Didi-Huberman,
2013, p. 236), revela a exposição de um pensamento. É um modo de tentar
dar “dimensionalidade” a um aparato ou dispositivo do exercício do conhe-
cimento ou, como se refere Català ao falar de interface, expor o pensamento.
E, a partir disso, construir o conhecimento baseado nos deslocamentos pro-
postos pela mnemônica warburguiana. Essa ideia dos deslocamentos é algo
que o conceito da interface também propõe: “Um pensamento complexo de
caráter multidimensional especialmente preparado para produzir conheci-
mento multi, inter e transdisciplinares” (Català, 2011, p.22).

Distopia x realidade

Com o surgimento da “multimídia”, o retorno das artes da memória


será ainda mais espetacular. Esse trabalho de recuperação que estivemos
fazendo do antigo conceito de armazenamento de conhecimento e a ima-
ginação manipulada por meio de “imagens ativas”, posicionadas em lugares

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160 Arqueologia de interface: Warburg, memória e imagem

reais ou imaginários, em arquiteturas mentais da nossa própria memória,


hoje acontece através de ícones dinâmicos na arquitetura dos computadores.
Os inúmeros locais criados pelas Artes da Memória, ao longo de 2.500
anos, ao mesmo tempo muito concretos e também muito fluidos, terão sido
como o Palácio da Memória, os jardins dos saberes, as cidades solares ou cós-
micas, os montes sagrados, o teatro do mundo, as lanternas mágicas, os teatros
cinematográficos e – a partir de agora – os teatros virtuais, estes novos espaços
de representação com seus ícones, janelas, portais, laços e hipertextos.
A arte da memória, que foi assimilada de maneiras distintas em cada
época ao longo dos séculos, passou por várias transformações, mas conser-
vou em sua essência a questão da inter-relação de imagens e de lugares, como
base para estruturar processos de concepção e o próprio sistema em que
usuários, espaços e imagens são partes em um todo organizado para estrutu-
rar e permitir o acesso a conteúdos. As múltiplas possibilidades do ciberespa-
ço surgem como uma forma contemporânea de uma construção mnemônica:
uma memória ampliada do teatro para a dimensão de toda a humanidade. O
melhor, a memória é uma parte acessível e passível de manipulação.
No final de 1997, o francês Christian Francois Bouche-Ville-Neuve
(Chris Marker) lançou Immemory, produzido pelo Centro Pompidou de Pa-
ris. Seduzido pela antiga arte da memória, ele organiza as suas memórias
como geografia, em que diferentes temporalidades e lembranças coabitam
espaços, territórios e topografias. A força de seu trabalho está numa ideia
simples: “a consciência de uma imagem que constrói a memória permanece
um campo aberto de significados, afetado de modo intenso pela linguagem
com que se confronta”. O crítico francês Raymond Bellour aponta que “toda
a tecnologia de computador pode aparecer como a dos teatros gigantes,
como artes e como equivalentes à memória da Antiguidade, da Idade Média
e do Renascimento” 9.
Chris Marker se apropria da concepção do que é ser contemporâneo,
proposta por Agamben, como sendo aquele homem “que concerne o escuro
de seu tempo, que não cessa de interpelá-lo (...), que recebe em seu rosto o
facho de trevas que provém do seu tempo” (Agamben, 2009, p.76) e mostra
um modo particular de se relacionar com o passado através das imagens que
se tornam uma forma de se relacionar com o presente, de refletir sobre os
9. Trata-se do arti-
go Le Livre, Aller, escombros do seu próprio tempo.
Retour (apologie de Pensar em uma proposta de uma “arqueologia da interface” é ir do en-
Chris Marker). Ori-
ginalmente publica- tendimento de que são ferramentas para o uso e movimento em um sistema
do em 1998 e depois
incluído na cole-
de informação, seja ele material ou virtual. É pensar como um dispositivo
tânea de Raymond atua numa zona de interstício, onde o conhecimento se concretiza através
Bellour, L’Entre-
-Images 2, em 1999. de um novo modelo mental composto por múltiplos espaços de potência

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José Geraldo de Oliveira 161

imagética. E isso se situa muito além da relação entre o usuário e a máqui-


na, proporcionada pelas novas tecnologias. Pois, embora seja um “produto
da técnica, esta por si só não pode compreendê-la porque ela mesma é o
produto de uma imaginação estruturada segundo os parâmetros da inter-
face” (Català, 2005, p. 640).
A proposta de uma formulação do conceito de “arqueologia da inter-
face” se converte em um “metadispositivo”, em que a história e a memória
se sobrepõem. E desta articulação móvel, o conhecimento a respeito da me-
mória, considerada ativa e emocional, ultrapassa o valor testemunhal e de
simples lembrança, passando a gerar conhecimento. Nas sucessivas camadas
que se abriram durante o percurso deste artigo, foi possível verificar que a
memória sempre esteve vinculada à ideia de imagens, conhecimento e luga-
res, da mesma forma que o “vagar” possibilitou organizar simbolicamente as
imagens acopladas ao suporte de uma arquitetura virtual.

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