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Ricouer
Pretendemos realizar um recorte temático da obra de Paul Ricouer, A Metáfora Viva, que
mostre o desenvolvimento da questão da metáfora, de Aristóteles passando pela
Tropologia e, finalmente, buscaremos elucidar o entendimento contemporâneo sobre o
tema, aos olhos de Paul Ricouer. Com isso, atingiremos um dos «eixos de sua filosofia».
[1]Acompanharemos o percurso do autor que inicia sua análise num nível retórico,
atravessa o nível semântico e finaliza alcançando um nível hermenêutico. Para isso se
dar, a metáfora como uso desviante da palavra deve ceder lugar ao enunciado como
predicação impertinente que compõe o discurso e este a obra propriamente dita. É
evidente que não abrangeremos todos os pontos da obra supracitada de Ricouer,
procuramos, em vez disso, ressaltar os pontos que consideramos fundamentais para sua
teoria sobre a metáfora.
1. A metáfora em Aristóteles
Entretanto, dizer que a metáfora e, por sua vez, a imaginação remetem para um
mundo outro, pode levar à conclusão da falta de referencial dessa linguagem. Ricouer
sublinha esse problema, porém afirma que há uma referencia de segundo grau, que será
mais primordial. Em outras palavras, remodelando nosso campo semântico e nos
desenraizando de nossas práticas linguísticas habituais, a metáfora do discurso poético
desloca-nos para a pura facticidade ontológica de nossa pertença ao mundo. A ficção
aponta em duas direções então: para algures, e para a própria realidade redescrita. O
modelo científico, pensa Ricouer, seria paralelo às ficções do discurso poético, no seu
caráter heurístico de abrir novas interpretações do mundo. Ricouer afirma existir um
paradoxo na ficção, que, ao mesmo tempo em que anula a percepção do mundo
condiciona um aumento da nossa visão das coisas. Decorre daí que o discurso simbólico
ou ficcional tem sempre pretensões de refazer a realidade.
2. A tropologia
Fontanier define metáfora como: «apresentar uma ideia sob o signo de outra ideia
mais evidente ou mais conhecida»[13] porém permanece enclausurado na primazia da
palavra como núcleo da significação, em vez de creditar essa força à predicação.
Vimos que a interpretação que considera a metáfora como uso desviante de uma
palavra não dá conta de todo o escopo interpretativo aberto por Aristóteles sobre a
questão. Ricouer pensa que tanto o filósofo grego quanto a tropologia extravasaram o
domínio da palavra rumo ao da frase, ao delimitar o que é a metáfora. Ricouer propõe,
então, o enunciado metafórico como contendo o núcleo semântico produtor da metáfora.
Temos que ter em vista que o deslocamento de base realizado por Ricouer, da palavra
para o enunciado, não anula os trabalhos de Aristóteles e da tropologia sobre a questão,
somente os suplementa.
A metáfora cria uma rede de interações e faz emergir uma nova significação que é
passível de repetição ao longo do tempo. Nesse sentido a metáfora, como já ressaltamos,
é um acontecimento semântico, uma instituição que atribui sentido, num determinado
contexto. Se os usos públicos do novo escopo semântico for adotado por uma
comunidade linguística ele pode se sedimentar e tornar uma parcela da linguagem
corrente. Por isso a distinção de Ricouer entre metáforas já sedimentadas na língua, e a
metáfora viva que cria acontecimento e sentido e ainda não se transformou em linguagem
usual. Partiremos agora, que estamos dotados de uma interpretação semântica da
metáfora, para a questão de como esse sentido instituído faz referência ao mundo.
Ricouer vê esse passo como fundamental para alcançar uma explicação de nível
hermenêutico sobre a metáfora.
4. Metáfora e referência
Ricouer anuncia que a questão da referência pode se dar tanto sobre a esfera da
semântica quanto na da hermenêutica. Naquela se mantém relacionada aos elementos
que concernem à estrutura da frase. Enquanto que no horizonte hermenêutico faz-se
referência a algo de extralinguístico. Enquanto a diferença entre os termos da frase
concerne ao caráter semiótico, a referência a um mundo é da ordem da semântica, como
já vimos. «O sentido é o que diz a proposição, a referência ou denotação é sobre o que o
sentido é dito.»[19] Para que possa ocorre a identificação de algo é necessário alguma
entidade que é. É necessária a existência de algo para que o enunciado ou o nome possa
fazer referência, possa instituir um determinado estado de coisas. Ao sair do âmbito da
palavra e da frase, para ingressar no domínio dos textos, as concepções semiótica e
semânticas já não dão conta da análise, enclausurada nos limites da frase. É daí a
necessidade do uso de uma hermenêutica.
Na acepção que Ricouer propõe, texto assume o papel de um discurso que toma a
forma da obra. A obra não se resume a mera junção de frases e discursos. A obra é
singular na sua forma final, quer seja um poema ou uma prosa. Além disso, segue alguns
tipos de normas que o plasmam em poemas ou romances, indicam o gênero literário onde
opera o texto. «Tal é a coisa à qual se dirige o trabalho de interpretação: é o texto como
obra, disposição, pertencimento a gêneros, efetuação de um estilo singular, são as
categorias próprias à produção do discurso como obra.»[20] Porém, o que é então a
hermenêutica a que fala Ricouer? Enquanto a estrutura interna da obra revela seu
sentido, seu campo semântico ocorre, ao mesmo tempo, uma referência a um mundo que
cada obra na sua singularidade institui. Inquirir sobre a transição do significado de uma
obra para o seu mundo, isto é a hermenêutica.
Precisamos nos deter nesse ponto, e nos perguntar pelo que geralmente se diz
quando denominamos certas obras por literárias. Ricouer pensa que há uma suspensão
da denotação literal, que cede espaço para a conotação. Somente quando ocorre
suspensão da referência “científica” é que pode haver obra literária. Porém, quando a
suspensão ocorre, a obra é capaz de instituir um mundo. A metáfora seria
o locusprivilegiado para o vislumbre das relações de suspensão da referência e instituição
de um mundo que a obra opera. Já estamos distante da concepção retórica que
considerava que a metáfora não trazia consigo nada de novo para o discurso. O terreno
em que se move a metáfora é o da ambiguidade. «A supremacia da função poética sobre
a função referencial não oblitera a referência (a denotação), mas a torna ambígua. A uma
mensagem de duplo sentido correspondem um emissário duplicado, um destinatário
duplicado e, além disso, uma referência duplicada – isso é nitidamente ressaltado, em
numerosos povos, pelos preâmbulos dos contos de fadas; assim, por exemplo, o exórdio
habitual dos contadores maiorquinos: «Aixo era y no era (isso era e não era)»».[21]
Ricouer afirma existir um paradoxo na ficção, que, ao mesmo tempo em que anula
a percepção do mundo condiciona um aumento da nossa visão das coisas. Decorre daí
que o discurso simbólico ou ficcional tem sempre pretensões de refazer a realidade.
Porém, Ricouer aponta que a referência de segundo grau revela com mais profundidade o
horizonte de imersão do homem na natureza. Em outras palavras, remodelando nosso
campo semântico e nos desenraizando de nossas práticas linguísticas habituais, a
metáfora do discurso poético desloca-nos para a pura facticidade ontológica de nossa
pertença ao mundo. A ficção aponta em duas direções então: para algures, e para a
própria realidade redescrita.
Por não nos ser dada a resposta unívoca que calcula completamente o real,
devemos aceitar a verdade imposta pela metáfora. Não temos acesso à verdade literal,
por isso aceitamos o baile de máscaras metafórico. Em vez de tematizar diretamente
sobre o “ser”, a verdade metafórica desloca a questão para um “ser como”.
5. Conclusão
Buscamos refazer o caminho percorrido por Paul Ricouer em A Metáfora Viva.
Achamos tal projeto valioso para entendermos com amplitude a maior possível os
mecanismos da metáfora. Perscrutaremos, nesse último capítulo, pelo embasamento
filosófico das premissas que regeram as teorias da metáfora vistas até aqui. Pois quando
colocamos o problema da referência a um mundo, temos que investigar que mundo é
esse, trabalho tradicionalmente levado a cabo pela ontologia. Antes disso, cabe aqui uma
enumeração das características da metáfora, conforme a análise de Ricouer, a título de
revisão.
BIBLIOGRAFIA
[3] Ibid, p. 24.
[7] Ibid, p. 41.
[8] Ibid, p. 49.
[9] Ibid, p. 73.
[11] Ibid, p. 83.
[12] Ibid, p. 86.
[15] Ibid, p. 115.
[16] Ibid, p. 119.
[17] Ibid, p. 121.
[18] Ibid, p. 122.
[19] Ibid, p. 333.
[20] Ibid, p. 337.
[23] Ibid, p. 482.