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Produção de textos originais dos alunos durante todo o 1º


semestre de 2021.
Ilustração da capa: Rebeca Pinho do Nascimento
Editoração da capa e do texto: Lauro Pontes
Colaboração e monitoria: Iara Machado Arendt e Felipe de
Carvalho Ferreira de Salvo Souza
Junho de 2021 – Livre cópia e distribuição.

VOLUME II – 16 artigos
1 SEMESTRE DE 2021

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ÍNDICE capítulo 8
Solidão e hiper convivência na pandemia ........................................................ 95
Capítulo 1
A república em déjà-vu: os influenciadores/influenciados digitais capítulo 9

na esteira da máquina de moer corpos e desejos ..................................... 5 Psicologia clínica brasileira e os atravessamentos da pandemia do covid-19:
reflexões entre o período de março de 2020 até março de 2021 .................. 108
capítulo 2
Múltiplas realidades nas favelas do rj pela pandemia por covid capítulo 10

19 ............................................................................................................... 12 A morte como rotina: política da morte e o luto na pandemia covid-19 ........ 118

capítulo 3 capítulo 11

Questões que atravessam pessoas trans na A clínica do autismo e a rede de atenção psicossocial infantojuvenil na cidade

contemporaneidade percebidas através de nossos olhares e do rio de janeiro: uma experiência em questão/em debate. .......................... 129

tendo como base a teoria ator-rede.......................................................... 28 capítulo 12

capítulo 4 A inserção das pessoas com síndrome de down no mercado de trabalho

O bem me quer: os enlaçes de um grupo de voluntário no através da lente da teoria ator-rede ............................................................... 140

suporte a população em situação de rua durante a pandemia capítulo 13


da covid 19 ................................................................................................ 39 O retorno da educação infantil às aulas presenciais ..................................... 153

capítulo 5 capítulo 14
Uma visão da teoria ator-rede sobre a jornada de uma mãe Redes sociais, o fio que tece a malha de relações em tempos de pandemia164
durante a pandemia do covid-19 .............................................................. 52 capítulo 15
capítulo 6 A cultura do cancelamento ............................................................................. 178
A influência do instagram na subjetividade feminina: uma capítulo 16
reflexão sobre o corpo gordo .................................................................... 64 A síndrome do impostor entre mulheres em tempos de
capítulo 7 empoderamento feminino ............................................................................ 191
A (não) percepção do que é a velhice: as afetações de cinco
subjetividades a partir da pandemia da covid-19 ..................................... 79

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Ao longo da formação do país, sobretudo a fase republicana para o
recorte das intenções deste texto, brasileiros e brasileiras foram pesados e
CAPÍTULO 1
A REPÚBLICA EM DÉJÀ-VU: OS tratados de acordo com seu “pedigree social” diretamente condicionado ao
INFLUENCIADORES/INFLUENCIADOS DIGITAIS NA ESTEIRA DA seu lado na fenda aberta pela métrica discriminatória que divide a sociedade
MÁQUINA DE MOER CORPOS E DESEJOS em pretensos bons e maus. Entre outros possíveis, acredita-se que os
critérios adotados pelo “cerol eugênico fininho” para qualificar os lados têm
relação direta com crenças e visões de mundo eleitos, cor da pele,
CARLO ALEXANDER LEITÃO LINS orientação sexual e ancestralidades, por exemplo. Todos, aparentemente,
FÁBIO VIEIRA WANDERMUREM
FERNANDA SILVA DE CARVALHO
guiados pela lógica unívoca padronizadora e vertical imposta pela “filha
HANNAH LENNANIY BARROSO FARIAS bastarda da Santa Inquisição”. Traduzindo para os menos íntimos aos
MARIA EDUARDA COTA PEREIRA UCHÔA VIANNA
lirismos e mais afeitos à ortodoxia semântica, leia-se a linguagem científica
e seus instrumentos canônicos e protocolos irrefutáveis.
Viva o Povo Brasileiro?!
Em um contexto desigual sustentado por pessoas consideradas
Pegando carona com João Ubaldo Ribeiro, deixa a gente te contar um dos
importantes e outras qualificadas como coisas a serem usadas e
segredos sobre a verdade: “não existem fatos, existem apenas histórias”.
descartadas, é previsível e razoável supor potencial exploração, sofrimento
Pois é. A versão oficial da história e das narrativas dos fatos costumam ter
imposto e adoecimento em massa (Freyre, 2007). Com os ponteiros da
mais de um lado. Na contramão disso, não é incomum a estandardização do
distribuição de poderes descalibrados, aos revestidos de status e
ponto de vista daqueles que dominam os meios de produção e ocupam os
autorização para controlar, cabe determinar os destinos dos menos
espaços de decisões políticas mais relevantes, em detrimento do
afortunados, promovendo uma atmosfera injusta e dolorosa. Os discursos e
ocultamento das leituras dos desassistidos e das tentativas de apagamento
os modos de vida são determinados por uma minoria para uma maioria que
das experiências dos menos favorecidos. A perder de vista nas construções
sofre, mesmo em situações que aparentam ilusoriamente regozijo,
sociais, as histórias dos dominadores são elevadas à condição de verdade,
recompensa e satisfação. Com o “colonizador way of life on”, estão
tornando periféricos e menores as demais proposições e registros.

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autorizadas as hierarquizações e ratificada a falácia das elites brasileiras esses atores sugere a reprodução da subjetivação normativa instaurada nos
representada pelo branco europeu no topo mais alto do pódio social. mecanismos estruturais da sociedade vigente. Seguindo as pistas dessa
Ao longo do século XX, observam-se tentativas de controle dos ímpetos, trilha, pensamos ser pertinente e necessário questionar: Como o modus
docilização dos corpos e adestramento das vontades nacionais. Sob o slogan operandi dos influenciadores digitais se mostra capaz de colocar em prática
da bandeira que grita “Ordem e Progresso” do Oiapoque ao Chuí, os o projeto de (neo)eugenização de corpos, mentes e ações e quais possíveis
reclames da ciência estéril (positivismo), da sociedade assepticamente consequências trazidas no âmbito psicológico das tessituras sociais
enquadrada (funcionalismo) e do ser/estar no mundo desalmado nacionais?
(cartesianismo) dão as cartas (Hobsbawn, 2012). De uma resistência à vacina Brasil S.A.?
novecentista a atual, sejam os higienistas ou influenciadores digitais Ao considerar as ponderações listadas acima acerca das condições
respectivamente, destacam-se discursos e lógicas que depõem contra aquilo apresentadas e das construções feitas ao longo dos anos, “é verdade esse
que demonstra ser o mais adequado para o bem-estar social. A gradação das bilhete”: o sistema capitalista só teve o trabalho de deitar (eternamente?!)
existências fica escancarada quando a importância de qualquer vida é posta em berço esplêndido no Brasil. Pense com a gente, caro leitor, sobre as
em xeque e daqueles que se esperam questionamentos em relação a tais engrenagens perversas necessárias à máquina do capital encontradas nas
desqualificações são percebidos endossos à morte e ao ser menos. margens plácidas e nos bosques verdejantes tupiniquins... poucos
No século XXI, o projeto de controle do colonizador se sofistica e reveste iluminados determinando como uma maioria esmagadora amaldiçoada tem
de novos recursos. Para dar continuidade nessa “prova secular de o direito de tocar e desfrutar suas vidas, é tudo que o burguês pediu para
revezamento de dominação” que insiste em drenar os potenciais e os Adam Smith. Ah, e não se impressione, pois tudo está endossado pelo que
desejos de todos e todas, os donos do poder parecem ter o respaldo e ser há de mais arrojado e inovador nas elaborações do conhecimento, ok?
amparados pela força e alcance das mídias digitais, a partir dos Afinal, nos idos dos 1900, só a ciência é capaz de salvar o miserável homem
influenciadores digitais. Considerada “profissão do futuro”, as atribuições acéfalo das mazelas da pobreza e da desordem social. “Saiam de cena a
dos produtores de conteúdo nas plataformas virtuais dão indícios de igreja, o império e a força militar, pois agora temos o lucro do capital para
influenciar e padronizar ações, corpos, hábitos de consumo e modos de vida. nos defender e fazer uma nação forte”, profetizaram os donos do saber.
À exemplo de uma esteira de montagem, a mensagem compartilhada por

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O casamento do capitalismo com as intenções plutocráticas dos aparenta não se realizar, nem se encaixar e, como desdobramento possível,
dirigentes do país foi digno de um enredo de Manoel Carlos no horário nobre é razoável supor espaço para geração de sintomas indesejáveis, lugares
da teledramaturgia nacional. Capital e dominação política, de mãos dadas, desconfortáveis ou, esgarçando os efeitos, até doenças como ansiedade,
rumo ao triunfo traduzidos em manipulação de subjetividades, imposição de obesidade mórbida e depressão. A sensação causada por leitura de
tendências e subjugação de mentalidades. O tripé de sustentação dessa inadequação, fracasso no exercício de papeis perspectivados por outrem ou
“relação idílica” se explica pelo individualismo encegueirado, a competição não cumprimento de metas inalcançáveis costumam ser nocivos e
predatória e o consumismo alucinante (Santos, 2006). Trocando em miúdos, aprofundar a dor dos alijados pelo mercado capitalista.
a consciência das pessoas entra em regime de cárcere quando não se Ainda, invocando Huxley com seu nem tão “Admirável mundo novo”,
consegue mais enxergar nada além dos próprios interesses, instala-se uma quanto mais nos debruçamos sobre as tessituras históricas e as conjunturas
versão pós-pós-moderna de neodarwinismo social e não há alternativas de postas na mesa, menos expectativas otimistas na proposição de rotas
escape à gincana do “Quem acumula mais?”, respectivamente. alternativas à faminta máquina de moer desejos e corpos parece que temos.
Por extensão, não é exagerado e absurdo afirmar que, despidos de nossas Em um tipo de upgrade da esteira de Ford na fabricação em série de
consciências e, por isso, estranhos à nossa capacidade de sentir/pensar/agir, máquinas, transplanta-se a métrica de dominação e controle para as
caminhamos para algo análogo ao suicídio social. Noormose ?! O divórcio da relações humanas desenvolvidas e cultivadas à luz do capitalismo. Dito de
cognição material e espiritual “rezado por Descartes”, o tratamento outra forma, as pessoas se apaixonaram pela eficiência maquínica, mesmo
possessivo agressivo do homem em relação à natureza, a necessidade de ter que destrutiva das individualidades e promovedora de mais excedentes que
mais infinda, e a ilusão de imaginar crescimento exponencial ad eternum geram, por consequência, mais insegurança e caos (Guattari, 1986). Em
compõem a lista de episódios prenunciadores de um possível desfecho época de acumular, otimizar e lucrar, não entram na “micareta do burguês”
apocalíptico não escrito pelo apóstolo João. os vestidos de cidadãos, mas aqueles com o abadá reluzente do consumidor
E assim a “sereia capitalista continua a cantar” suas odes magnéticas e feliz.
suas melodias hipnóticas para ouvintes e moucos ininterruptamente Matrix?!
durante anos, insistindo no aprofundamento das desigualdades sociais e dos Azul ou vermelha? Escolha. Já parou para pensar nas aproximações e nos
sofrimentos existenciais. Nessa orquestração musical inaudita, o homem distanciamentos existentes entre tua compreensão de mundo e as

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realidades apresentadas por Neo, Trinity e Morpheus há cerca de 20 anos ? Admita a sensação: por vezes (muitas?!), parecemos cachorros correndo
Todas as pessoas anestesiadas, sonâmbulas, total e diretamente atrás de nossos próprios rabos. O apoteótico mais do mesmo. Nossa
controladas por uma máquina central? Partindo da metáfora impressão está muito próxima à dos sujeitos presos em uma realidade que
cinematográfica, vivemos ou sobrevivemos? Pensamos autonomamente ou se repete incessantemente. É como se fôssemos ventríloquos sem controle,
somos manipulados na íntegra? Sentimos de verdade ou existem desejos e necessidades, sem direito a ter consciência do que faz, sentados
mecanismos de indução, condicionamento, treinamento e controle de no colo de um grande propositor de falas e gestos, apenas bailando ao som
emoções? Você produz pensamentos autênticos e faz proposições de uma música internalizada e impossível de interromper seu canto, mesmo
inteligentes ou se reduz a reproduzir mensagens ou ressonar apelos que te que mentalmente. Talvez um Pinóquio que não se sabe boneco de madeira
manipulam e subjugam sorrateiramente? Pensamos o que pensamos e, por isso, não sabe mentir, nem deseja ser gente de verdade. Lá e cá,
porque pensamos ou o que penso é pensado por outros para mim? Você pontos fixos, condição enraizada, instituídos e status quo que tentam
decide algo de verdade? bloquear desejos, obliterar energia e congelar pulsões em determinados
Quando você compra churros e abre mão do amendoim doce do tio da tempos e espaços.
esquina, já parou para pensar no motivo? Saliva olhando para o slogan de Grosso modo, a esquizoanálise procura problematizar, à luz de Deleuze e
determinado fast food? E a calça boca de sino que você detesta, mas ama a Guattari (1986), fundamentalismos esterilizantes e conformismos
de cós alto? Teu cabelo fica mais bonito solto, certo? Brinco comprido castradores, sugerindo que o desejo é uma força que se dá nas dinâmicas,
nunca? Detesta cachoeira, mas adora praia e bate palmas para o sol no nos trânsitos e nos movimentos. É necessário recusar conceitos universais
Arpoador? Paquetá cheira a urina, mas Copacabana não? Por que você que tudo, mas nada explicam e investir nos conhecimentos flutuantes e nos
votou em A com argumentos que nem lembra em detrimento de B? Já saberes cambiantes. É não aceitar que existem princípios inquestionáveis e
esqueceu que ficou comovido e de cara pintada nas “Diretas Já” no meio da dogmas irrefutáveis. É a busca pela desterritorialização e territorialização
Presidente Vargas, apertado por mais de cem mil outros jovens que talvez intersubjetiva. É pensar na superação da lógica da raiz e migrar para os
nem lembrem quantas bocas beijaram naquele dia? Chorou com a morte do discursos do rizoma. É perspectivar a troca e estar propenso e inclinado às
Senna, mas o Pataxó queimado por adolescentes na capital te indignou? hibridizações. É nos reconhecer como bonecos de madeira, que vivem na
Impeachment? Matrix, porém não pertencem a ela.

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Para além disso, a esquizoanálise discute as noções de inconsciente Pensando e tensionando um pouco mais a questão: Qual a subjetividade
maquínico e máquinas desejantes. Conforme nos sugere a teoria, somos que o influenciador tem? É essencial tomar nota que toda máquina tem o
máquinas desejantes dentro de outra máquina. Lembra da Matrix há três mesmo direcionamento: o desejo. Ótimo, então o influenciador quer
parágrafos? Mergulhados na construção artística, seríamos máquinas propagar a ideologia do seu mercado, né?! Calma, leitor. Já refletiu como
desejantes que “desejam” o que desejaram para gente previamente. esse desejo é constituído? O ponto de reflexão importante é cogitar que o
Ancorando em um concreto nem tão concreto assim, é possível afirmar que influenciador é uma máquina desejante reproduzido por outra máquina
no “Instagram”, o influenciador digital é uma máquina desejante, dentro da (sem quaisquer compromisso e engajamento com seu público), além de não
máquina do “Instagram” que acaba inserida em outra máquina cultural ter consciência que é uma máquina. Como assim?! Exatamente isso: o
mercadológica capitalista também. Logo, o “Instagram” reproduz os desejos influenciador parece ser uma máquina desejante que não tem consciência
mercadológicos da sociedade capitalista, e por sua vez o influenciador que é uma máquina, logo não se faz produtor de conteúdo nesse recorte.
reproduz os apelos e desejos do “Instagram”. Seria algo parecido a um reprodutor esquizofrênico de mensagens. Você
Reparou o “looping do mal”? A tal sensação do cachorro na sua aventura gosta de papagaios?
insana de correr atrás do próprio rabo e nunca obter êxito? A pessoa perdida Nessa vibe “Matrix amalgamada com 1984”, ainda cabem mais algumas
e intimamente frustrada em seu labirinto existencial? Nessa sistematização considerações pertinentes aos objetivos desse texto que relativizam e
e proposição de ideias, o influenciador se imagina produzindo conteúdo podem sugerir timidamente rotas de navegação em fase de investigação:
autoral, sendo alguém criativo e dono das melhores chamadas de marketing, Embora o mundo seja envolvido pela película do capitalismo há algum
quase a última bolacha do pacote, contudo não vai além do cumprimento tempo, e para isso se valha da hiperprodução, degradação ambiental,
de reproduções, ecolalias e mais do mesmo. Fiel discípulo de Lavousier. desinformação e outras características que já listamos, é essencial dizer que
Nesse caso, a constatação nua e crua é: o influenciador está a produção natural e saudável das coisas e dos seres não é em série; Não
esquizofrenicamente pensando produzir algo que é essencial e somos seres acabados, mas em um constante devir; e os discursos
genuinamente dele. O próprio desejo dele está condicionado às imposições percebidos no conteúdo dos influenciadores digitais nos parecem
e indexações do capitalismo. recalcitrâncias (neo)eugenistas traduzidas em corpos exaltados versus

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corpos cancelados que podem ser esvaziados em seus efeitos nas engendrados (De Waal, 2010). Novas relações afetivas? Por favor. Que tal
desconstruções feitas pela teorização de máquinas desejantes. começarmos superando a mentalidade predatória para todos coexistirem?
Se correr a “rede/máquina” te pega, se ficar a “rede/máquina” te come? Na contramão desse esforço, imagina-se que brasileiros e brasileiras,
Definitivamente somos todos enredados. Republicanos, monarquistas, alcançados ou não pelas mensagens dos influenciadores digitais, vão
anarquistas, saudosistas, flamenguistas ou influenciadores digitais estão continuar afundando no poço sem fim de suas mazelas, faltas e opróbrios. É
atravessados pelas forças de composição e de decomposição nesse novelo legítimo inferir que não ter acesso ao básico cria uma sociedade insegura e
tecido por caminhos e múltiplas existências brasileiras natas, naturalizadas mal preenchida que acaba comprando qualquer coisa vendida para ela. E
ou simpatizantes. Aqui mora, ao melhor estilo nômade, a relação entre não pense, você, que é a doença do outro, mas são as forças entrecruzadas
desejo e poder em qualquer coletivo social. Estar fora desse emaranhado de em tilt. Explicando em exemplos e episódios ilustrativos, procure imaginar,
teias não é uma opção. É como tentar respirar sem O2. A rede é inescapável nessa atmosfera adoecedora que nos impregna, que o suicídio pode ser
e o inconsciente maquínico, com todo seu aparato panóptico à disposição encarado como um mal-estar oriundo da internalização das forças do
(Focault, 1987), sabe disso. Sorte ou revés aos atores conectados? capital, deixando as pessoas em curto-circuito. Além disso, conceba o
Às pretensões capitalistas em solo nacional, seria praticamente absenteísmo como reação psicossomática às forças das pressões nocivas
impossível melhorar. Confirme essa informação com os neoliberais, por exercidas pelas cobranças feitas no trabalho pelos empregadores. O fracasso
gentileza. Lucros exorbitantes? Ok. Exaurimento dos recursos naturais? Ok. de não querer competir, aqui, deve ser o autoaniquilamento.
Apoio incondicional da opinião pública? Ok. Todos predadores de todos?! A máquina que engole “canibalisticamente” as demais máquinas
Ok. A lista não para, mas para lacrar nossas suposições, pense no “Agro é desejantes opera na base da codificação do fluxo, ou seja, sua tentativa é
tech, Agro é pop, Agro é tudo”. O agronegócio é o ápice da falta de parar o fluxo naquela pose que perpetua sua dominação, esterilização e
percepção da interdependência homem/natureza e ratifica o sempre silenciamentos. Seus tentáculos atuam através de forças centrípetas que
consumir mais e a natureza como mercadoria. Alternativas ao capitalismo sugam e destroem o múltiplo, canalizado na heteronormatividade e
irresponsável passam, por exemplo, a razão da economia deixar de ser o tornando anormal todo o resto. Projeto “Corpos em autoexclusão” ativado,
lucro para a diminuição predatória da rede da vida. Novos modos de estar beleza?! E, esquizofrenicamente, influenciadores digitais, você e eu
na terra que não sejam mediados pela mercadoria precisam ser reproduzimos esquizofrenicamente seus discursos implosivos e

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autodestrutivos, batendo palmas e no ritmo “Firework” de ser. A rede é FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,
inescapável? Aham. Então é Game Over? Hum. Queremos acreditar que não 1987.
e, por isso, fazemos um convite à superação da perspectiva do colonizador FREYRE, G. Sobrados e Mucambos. Global Editora, 2007
para leitura, apropriação e construção de mundo. Do “Eu” individual e GUATTARI, E; ROLNIK, S. MicropoIítica: cartografias do desejo. Petrópolis:
antropocêntrico para o “Eu” múltiplo, “legionário” e rizomático pode ser Vozes, 1986.
uma pista e um passo para uma longa travessia. O impossível de escapar não HALL, S. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte:
pode significar o nada a ser feito com aquilo, pois o amanhã nunca está Editora UFMG, 2003.
pronto. Para negar as predições macabras de George Orwell, sempre vai HOBSBAWN, E. A Era dos Extremos: O breve século XX (1914 – 1991). São
valer a pena apostar nas bênçãos de Guimarães Rosa, já que “Viver é uma Paulo: Companhia das Letras, 2012.
questão de rasgar-se e remendar-se”. HUXLEY, A. Admirável mundo novo. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
Referências ORWELL, G. 1984. São Paulo: Editora Nacional, 1996.
BORGES, E. (et al). A relação do consumo e as mídias sociais. In: PONTES, RIBEIRO, J. U. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Nova
L. (org). Ensaios arriscados em Psicologia Social. Rio de Janeiro: Fronteira, 1984.
Universidade Santa Úrsula, 2020, pp 112 - 122. SANTOS, B.S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
COUTO, E.; GOELLNER, S.V. (Org.). O triunfo do corpo: polêmicas 11o Ed. São Paulo: Cortez; 2006.
contemporâneas. Petrópolis: Vozes, 2012.
CREMA, Roberto. TEDxLaçador: Normose, a patologia da normalidade.
Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=qeAnV_53qNc&t=285s> Acesso em:
26/05/2021.
DE WAAL, F. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade
mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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CAPÍTULO 2 indivíduos e quais são as necessidades, complexidades que envolvem existir
MÚLTIPLAS REALIDADES NAS FAVELAS DO RJ PELA PANDEMIA na nossa sociedade.
POR COVID 19
Sabe-se que essas políticas possuem centralidade no enfrentamento ao vírus,
ALESSANDRA MIGUEZ CUNHA
FERNANDA MOTTA CARMONA
pois podem interferir na circulação da população e garantir que os habitantes
LUCIANA CRISTINA TEIXEIRA DA SILVA
LUÍSA FRÓES TENENBLAT possam manter as medidas de proteção como o isolamento, higienização
YASMIM AMORIM CRUZ
constante e acesso ao diagnóstico, tratamento e recuperação evitando a

“Sou da favela não sou o vilão disseminação em massa do vírus.


Quero mais saúde e educação
Favelado e guerreiro não é o ladrão No entanto, no caso específico do Brasil, país classificado entre as piores
– Sou da favela e tenho talento experiências e atuações relacionadas ao vírus mundialmente, vivencia-se o
Não entrem com guerra entrem com investimento”
(Vanderlei Silva – Poesia das Favelas) retrato do abandono quase completo da figura do Estado, principalmente por
não haver um direcionamento consensual sobre o posicionamento entre
Em março do ano de 2021 (dois mil e vinte um) completamos um ano que o
esfera federal, estados e municípios, além de trocas constantes dos
Brasil tem sido afetado por um vírus chamado SARS COV 2 - Coronavírus e
representantes como têm ocorrido com o Ministério da Saúde, divulgação de
suas variações, que age mundialmente como uma ameaça à vida dos
fake news interferindo na concepção que a população assume em relação a
habitantes, principalmente de grupos específicos e em condições vulneráveis.
doença e inviabilização de um plano de imunização amplo, portanto, ausência
Já se sabe que esse vírus trouxe desafios em muitas dimensões da vida, na
de uma política clara e direcionada para o enfrentamento da pandemia, que
medida que extrapola fronteiras territoriais, de sexo, faixa etária e evidencia
envolva também condições de manutenção da vida da população.
as fragilidades dos sistemas de proteção social e político dos países que
Desse modo, por meio das reflexões oriundas da disciplina Psicologia Social
desconsideram a necessidade de adoção de medidas envolvendo
que acompanha o estudo de como a sociedade e os sujeitos são afetados
investimentos em ciência, tecnologia e políticas emergenciais à população.
pelos fatos e acontecimentos com base no pensamento crítico, buscamos nos
Não se trata do papel de apenas uma política de saúde para superá-lo, mas
aproximar de moradores de favelas da capital do Rio de Janeiro - RJ por meio
políticas de saneamento e infraestrutura urbana, assistência social, já que
da Teoria Ator Rede e ouví-los como têm sido afetados pela pandemia, como
nunca foi tão necessário compreender a concepção da integralidade dos

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forma de trazer contribuições e aprendizados para a disciplina e a construção
deste artigo. Nosso tema surgiu de uma conversa entre as integrantes do grupo em
Importante destacar que segundo Tsallis; Ferreira;Moraes; Arendt (2006: 4) a que percebemos que o contexto da pandemia por covid 19 era algo que
TAR ao descrever a rede de relações, também evidencia o lugar do tínhamos de interesse em comum, ou seja, nos aproximava e inquietava,
pesquisador de “observar o que elas fazem e como aprendemos a ser querer falar de como estava sendo passar por esse momento. Entendemos
afetados por elas” , logo tão importante quanto as falas dos moradores da que poderia ser um tema necessário de se pautar e dar visibilidade através da
favela será possível encontrar as afetações do grupo diante de vivenciar essa nossa inserção acadêmica na disciplina.
imersão através do contato com a realidade que ambos fazem parte Pensar a realidade das favelas diz sobre nossa implicação enquanto
construindo uma grande teia de humanos e não humanos. sujeitos coletivos e políticos que somos e entender que também fazemos
O artigo está dividido em duas partes sendo a primeira situando os leitores parte dessa grande teia, na medida que também são pessoas que estão
sobre como a TAR contribuiu para desconstruirmos alguns entendimentos próximas a nós seja pelo trabalho doméstico de cuidar da casa, de algum
que tínhamos sobre a realidade dessas pessoas e a última parte, envolve familiar, da relação de trabalho, de fazerem parte do círculo de amizades ou
nossas afetações diante das falas dos moradores que se dispuseram a falar simplesmente, termos conhecido por frequentar ambientes em comum.
com o grupo. Quando definimos que a pesquisa se daria com moradores de favelas do Rio
Para o grupo ficou claro que o combate ao coronavírus nestes territórios de Janeiro encontramos uma primeira limitação que é a do próprio grupo
recebeu o mesmo investimento e tratamento que todas as políticas públicas realizar presencialmente as trocas devido ao período da pandemia. Logo,
já recebem – o de ausência de prioridades, de descaso, de falta de entendemos que o critério para promover esses encontros com os moradores
informações que pudessem instrumentalizar os moradores, da atuação do de favela seria através de cada integrante buscar algum contato de forma
tráfico regulando as leis de isolamento, de ações sendo realizadas por individual próximo ao seu convívio, ou local de moradia, ou que tivesse algum
projetos sociais envolvendo o terceiro setor e atores políticos e vínculo para que assim pudéssemos ouvi-los.
desinformação por parte das possíveis ajudas que poderiam ter acessado. A partir disso, tivemos a oportunidade de nos encontrarmos com diaristas,
manicures, cuidadoras, amigos e até mesmo desconhecidos que se tornaram
Construção da aproximação com os atores próximos após a troca sobre sua realidade, totalizando onze encontros com

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cada um desses atores. Cada integrante pôde se colocar disponível nessa referencial do outro sobre ser favelado, o que significa o vírus na favela e com
escuta e ser conduzido pela aventura de estar sendo deslocado do seu lugar quais recursos os moradores têm encontrado para lidar com esse período.
de conforto e conhecimento, permitindo que o morador agisse livremente a
partir do seu lugar de fala e também se afetasse pela troca. O veículo facilitador da nossa pesquisa seria a internet, o whataspp, o
Surgiram falas abertas e reflexivas sobre a relação com o território de microsoft teams, ou seja, os aplicativos que possibilitassem nossa
moradia; sobre qual a compreensão que o mesmo possui sobre o vírus e como aproximação, contato com os moradores e cada integrante se ajustou ao que
ele interferiu no seu cotidiano, nas relações de trabalho, familiares e na o entrevistado poderia acessar e se sentir acessado por nós. Essa
expectativa do futuro; hábitos e percepções que a pandemia inseriu nas aproximação com os atores ocorreu durante o mês de abril e maio de 2021.
rotinas e como ele enxergava possíveis aprendizados, suporte que poderia ter Finalmente, após esse momento, de forma individual nos debruçamos sobre
sido dado e qual relação à respeito do que viveram e o seu lugar de cidadão. a escrita da nossa vivência no campo, em escrever e conectar o que ouvimos
A visão de Latour (2012) é a de retirar o pesquisador de sua zona usual de ao que sentimos e fomos afetados por elas. É necessário destacar que essa
conforto. O autor insiste na importância de dar voz aos atores com seu tarefa foi a mais delicada e também provocadora de muitos sentimentos, pois
vocabulário próprio, evitando o risco de calá-los a partir de elaborações a TAR nos apareceu como uma teoria que academicamente era inovadora e
prévias do pesquisador. perceber que também fazíamos parte dessa grande rede, que podíamos falar
O que nos interessou influenciados pela TAR foi acompanhar cada construção de como fomos emaranhadas por essas falas, seria algo que não seria tão
dos fatos, estando disponível e acessível para fabricar junto com os atores – óbvio, mas possível à medida que fomos conhecendo e lendo sobre essa
moradores e integrantes da pesquisa – diferenças, efeitos, rastros e outros teoria, a partir das trocas em sala de aula com as dúvidas dos outros grupos e
conhecimentos sobre uma realidade não acessada por nós diretamente, mas a supervisão do professor e monitores.
que poderia estar a partir disso, sendo feita por todos nós.
Desse modo, buscamos legitimar a fala de todos os atores, evitando A fala dos moradores das favelas do Rio de Janeiro sobre a pandemia
enquadramentos teóricos prévios e interpretações que desconsiderassem a
construção dessa realidade a partir dos encontros e levando em conta o Para esse artigo, as integrantes do grupo conseguiram conversar com
onze moradores de sete favelas da capital do Rio de Janeiro - Vila Pinheiro

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(Maré), Jamelão (Andaraí), Quitungo (Brás de Pina), Parada de Lucas, Dona possamos enfocar concepções mais amplas, percebendo que essa realidade é
Marta (Botafogo), Complexo do Alemão e Rocinha. construída em certas práticas, “se fazendo”, construindo dinamicamente,
Desse público foram três homens e oito mulheres, da faixa etária materialmente, historicamente, culturalmente entre os atores que
considerados adultos, na maioria deles moradores desde quando nasceram encontram com ela e se permitem ir ao encontro dela.
(uma entrevistada tinha quarenta e oito anos vivendo no local) ou com pelo Os moradores consideram que palavras que resumem a covid nas favelas têm
menos metade da vida residindo no território de moradia (o menor tempo de a ver com medo (apesar de aparecer na entrevista que os moradores não
moradia foi quinze anos), demonstrando vínculo com a favela a partir da sentem), irresponsabilidade, abandono, dificuldades por saberem que têm
relação com vizinhos, trabalho, de ter construído uma casa e criado filhos, pessoas passando fome e problemas financeiros, tristeza por perceber o
assim como conhecimento e pertencimento ao local, alguns se afirmando agravamento das condições de vida das pessoas.
como favelados. Bailes, festas e aglomerações continuam a acontecer principalmente sendo
Sobre nossa aproximação com os atores, percebemos pela fala de um incentivados pelo comércio local que coloca tenda, música e organiza a
morador que para conhecer a realidade das favelas é preciso sair da cidade e agenda. Acreditam que isso é uma forma dos moradores lidarem com o dia
andar por elas, conversar com os moradores, se aproximar estando em dia permeado por problemas, mas também entendem e sentem medo de
campo, trazendo cada vez mais reflexões sobre o cotidiano para além do que falar que não deveriam existir nesse momento da covid. Um morador trouxe
a mídia costuma retratar, favorecendo um olhar crítico sobre a precariedade o relato do baile ser chamado de Disney e virem pessoas da Zona Sul e Barra
do modo de existir dos moradores ao mesmo tempo, a força e superação que para lá, lotando em média de duas mil pessoas nesse tempo da covid e
eles têm diante de tantas limitações. fazendo circular o vírus nas favelas.
Segundo Law (2003 apud Moraes, 2010: 32), há uma premissa baseada no Latour (1994) esclarece que existem também objetos não humanos que
“realismo euro-americano” de que há uma realidade lá fora que é anterior a formam essa grande rede de atores. Ele diz que é preciso redefinir o
nós, independente de nós e das nossas ações, que se distanciam e não se entendimento do social e da sociedade em um mundo cada vez mais
misturam pesquisador e realidades heterogêneas que se deparam. No permeado pela presença de objetos que interagem com os seres humanos.
entanto, os próprios moradores nos fazem refletir que não cabe fazer um Os bailes de favela são exemplos característicos desses objetos não humanos.
recorte dessa realidade, ou delimitá-la a nossa visão, mas é importante que

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Sempre existiram e são de grande representatividade para os favelados, seja outra rede de apoio, mas também aparece como um ponto de suporte, de
pela questão cultural, como formas de resistência à ordem dominante. doações, de orientação também para algumas que estavam matriculadas em
Na pandemia eles continuam acontecendo e são entendidos pelos moradores creches e escolas.
como forma de distração para uma realidade tão dura que vivem e também Nas conversas aparecem questões sociais importantes que geraram aumento
como forma de dizer ao Estado que existe uma lei que rege aquele território de sofrimento envolvendo violência sexual e física, aparecimento de doenças
que não passa por ele. Além disso, representam formas de sobrevivência para como surtos psicóticos e depressão (várias vezes citada), questões familiares
alguns e lucro para outros. relacionadas apropriação de renda por parte de um familiar, separação,
Sobre isso, percebemos que a questão da fonte de renda pelo trabalho foi a perdas de pessoas próximas, desemprego, incursões policiais, sobrecarga de
mais afetada. Muitas pessoas ficaram desempregadas ou tiveram algum trabalho por mulheres que têm filho.
familiar próximo desempregado, tendo como consequência a questão Todas essas questões trazidas pelos moradores foram agravadas ou
financeira. Algumas pessoas eram cuidadoras e por envolver risco foram provocadas pela pandemia por covid 19 e o que mais nos mobilizou foi
desligadas, outras tiveram sua clientela reduzida como autônomas, já que as perceber que não receberam suporte ou acompanhamento de algum serviço
clientes também foram afetadas pelo padrão da renda ou pelo medo da público, ONG ou iniciativa privada, nem mesmo o auxílio emergencial que
doença. alguns poderiam ter acessado e não conseguiram por falta de conhecimento
A falta de acesso a alimentos para realizar todas as refeições e a fome foram ou critérios de elegibilidade do mesmo.
dificuldades narradas que presenciaram com vizinhos e até uma das pessoas Segundo relato dos moradores, a covid nas favelas foi percebida no ano
que ouvimos relatou viver e se alimentar a partir do suporte e doações. Alguns passado nos primeiros dois meses praticamente com as ruas desertas, o carro
moradores relataram ter aprendido a guardar dinheiro com medo que de som que passava pedindo que as pessoas ficassem em casa, as ameaças do
vivessem essa questão em casa, apesar de relatarem viver com restrições já tráfico. Alguns nos contaram que aderiram às orientações do Ministério da
que sentiram o aumento do preço dos alimentos na pandemia. Saúde e mantiveram uma rotina de cuidados, higienização, máscaras, álcool
A falta da rede de apoio em relação às crianças também aparece como uma em gel, mas todos os moradores trouxeram que não acreditam que os
impossibilidade para mulheres trabalharem e arcarem com as contas de casa, moradores sentem medo, que não mudaram suas rotinas, que parece que o
aluguel, tendo em vista que realizam a criação sem o suporte do genitor ou

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vírus não existe dentro da favela, que acreditam que não irão adoecer com o que ela não tinha conhecimento e profundidade sobre a realidade dos
vírus apesar de saberem de perdas próximas. moradores da favela.
Somado a isso, os moradores acreditam que não há o entendimento sobre a
doença ainda que apesar de acessarem a informação pela mídia, vereadores Como fomos entrelaçados por essa rede enquanto atores
locais, associação de moradores, televisão, até algumas clínicas da família que
fizeram o trabalho no território, alguns moradores acreditam que não houve Afetação por Alessandra Miguez
mudança de rotinas nas favelas, pois muitos continuam tendo que ir trabalhar
em casas de família, pegar condução lotada e também “não querem dar o Quando a ideia do trabalho foi apresentada pelo professor, rapidamente
braço a torcer para o sistema, já que o governo nunca entrou na favela, que formamos um grupo para iniciar a pesquisa, porém, ainda sem definição de
irão sobreviver sem precisar de ajuda”. tema. Cinco pessoas no grupo e muitos debates. Acredito que produzir um
Por fim, podemos dizemos que fomos surpreendidas pelo trabalho como artigo acadêmico tenha uma função importante de reflexão para a sociedade,
prevê a TAR por percebermos que não há exatidão e previsibilidade para que e a partir deste papo, definimos nosso tema. Diante do mundo em que
o iríamos encontrar, mas nossa função foi de aceitarmos esse deslocamento vivemos, de todas as injustiças e incertezas que a pandemia está nos
que esses atores nos permitiram para o refletir sobre essas falas e narrativas mostrando e nos afetando, decidimos observar e analisar como tudo isso está
que mostraram tanto a intimidade e as particularidades da vida dessas sendo afetado pelos mais vulneráveis.
pessoas, que nos fizeram sentir conectadas ao sentimento de impotência que Assim, para entender melhor a realidade, nos aproximamos e tivemos
relatam e de tristeza também. algumas conversas com pessoas de realidades distintas, para desta forma,
A maioria das integrantes do grupo, a partir dos relatos, se emocionaram, cada uma construir suas percepções e afetações a partir da teoria ator-rede.
sentiram tristeza e angústia de terem entrado em contato com a realidade e
falas dos moradores. Algumas sentiram revolta pela condição política que Para a TAR, qualquer coisa que desempenhe um ato e modifique um status é
vivemos e a diferenciação das condições de vida das integrantes e dos considerada um ator. Os objetos não humanos fazem coisas, assim como os
moradores. Uma integrante agradeceu a possibilidade de aprender sobre algo atores humanos, e transmitem efeitos em silêncio (BUTLER, 1872),
desempenhando papéis e ajudando a rastrear conexões sociais.

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No final de 2019, e início de 2020 no Brasil, o vírus Covid-19, mesmo que um Iniciando a pesquisa do trabalho, percebi que já estava sendo afetada por
objeto não humano, passou a ser um ator importante na sociedade, essas realidades desde o ano passado. Ouvi relatos de desespero, histórias
desempenhando um papel assustador de grande impacto e de efeitos tristes de perdas e desamparo.
avassaladores em nossa rede, além de fazer também novas conexões sociais. Quando os humanos se relacionam e interagem com os não humanos,
Desde que começou a pandemia no Rio de Janeiro eu venho me questionando acabam por formar associações e é por meio dessas que produzem os
sobre o meu papel no mundo e o meu propósito de vida, parece clichê, porém fenômenos sociais. Para a TAR, a sociedade nada mais é do que o resultado
é a pura verdade. Eu, no meu papel social de privilegiada para enfrentar uma das muitas associações estabelecidas entre humanos e não humanos (Callon,
pandemia, com acesso à saúde particular, casa de praia para poder estar em 1986; Latour, 2012).
contato com a natureza, emprego e apoio emocional familiar, foram motivos
de muita gratidão, porém também de muita tristeza em ouvir e vivenciar em Desemprego, desamparo, insegurança, medo foram sentimentos que todos
alguns casos da realidade vivida pela maioria da população, que não tinham nós estamos vivendo, porém, para essas pessoas que estão em uma condição
o que comer porque perderam seus empregos ou nem mesmo como se social desfavorável, não é possível sentir. Para os que ainda não perderam
prevenir adequadamente do vírus pois não tinham produtos de higiene seus empregos, precisam sair de casa com ou sem medo, não tem escolha.
adequado. “Nunca tivemos o direito de ficar em casa” disse uma moradora da Rocinha,
A partir desta realidade, iniciei no começo de 2020 um movimento chamado cuidadora de uma senhora de 84 anos. A #FiqueEmCasa usada em muitas
Simbora, uma ação que tinha o objetivo de criar uma rede de ajuda para campanhas de prevenção ao Covid-19 é uma verdadeira utopia para quem
famílias que estavam necessitadas. O trabalho começou na cidade de São tem a necessidade de trabalhar para sobreviver.
Pedro D’Aldeia, na região dos lagos no Rio, e ao longo do ano fizemos várias “Eu confesso que fico desesperada, não sei o que eu faço. Fico com medo,
ações no Pavão Pavãozinho e Complexo do Alemão. Somos também tenho dificuldade e tenho vergonha de pedir. Todo mês é uma preocupação:
responsáveis pela realidade em que vivemos, e a ideia do movimento era Será que eu vou ter ajuda? Esse mês eu tenho, mas mês que vem eu não sei
essa, unir pessoas, formar uma rede para acolher quem estava precisando. ". – disse uma moradora, mãe de 5 filhos, morada do Complexo do Alemão.
O principal sentimento após ouvir algumas histórias é de impotência, de saber
a realidade vivida por milhares de pessoas e o que você faz, é pouco para

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conseguir mudar essa realidade. A comorbidade que mais afetou o brasileiro saúde e não ter, sempre existiu, mas a pandemia virou um medo ainda mais
na pandemia foi a vulnerabilidade social, aqueles que mais precisam de ajuda, assustador, um medo sem controle.
que vivem em situação de risco, foram os que mais sofreram e sofrem com a Além de tudo isso, existe um cuidado com a saúde mental que não é cogitado
pandemia. e é primordial para enfrentar toda essa situação. Nos relatos dessas duas
Diante dos relatos, e das ações que realizei durante o último ano, foi possível moradoras, pude perceber o quanto essa saúde é negligenciada. Uma teve o
perceber que muitas ajudas vieram de doações durante o ano de 2020, e que aparecimento, ou agravamento da doença da filha, que foi diagnosticada com
o auxílio emergencial também ajudou, isso fez com que de uma certa forma esquizofrenia e a outra, sua filha de cinco anos sofreu abuso do pai, que hoje
conseguissem sobreviver ao ano. Porém, a pandemia continuou e a situação está foragido. Ambas não tiveram apoio social, e vivem de ajuda de seus
só piorou. O auxílio emergencial acabou e as doações diminuíram. Do que patrões ou de vizinhos e amigos para enfrentarem tamanho problema em
essas pessoas vão viver? As pessoas estão se virando para ter o básico para meio a uma pandemia.
sobreviver, e por muitas vezes não conseguem. Há um sabotamento emocional, pois a luta por sobrevivência já é tão grande
A pandemia mudou a rotina de todo mundo, escancarou a desigualdade, e que não olham para suas questões emocionais. A depressão, abuso sexual e
dentro das comunidades ela virou mais um medo a ser enfrentado. Por isso, o aparecimento de doenças psiquiátricas, como esquizofrenia, foram relatos
respeitar todos os protocolos de segurança é impossível. Muitas comunidades destes moradores e eles precisam enfrentar isso como problemas normais,
não têm nem saneamento básico, como exigir uma higiene. As pessoas estão com a ajuda que conseguirem, a vida tem que seguir, muitos relataram.
tendo que escolher entre comprar um material de limpeza/higiene ou “A gente dá um jeito de sobreviver” foi a frase que mais escutei em todo este
comida. processo de pesquisa. Mas isso não é digno, é imoral, é triste e desesperador.
Sinto que vivo em uma grande bolha e que os moradores dessas comunidades
estão abandonados, que parece “normal” a dificuldade enfrentada por eles, Afetação por Fernanda Carmona
que eles estão acostumados, porém, estão assustados, desesperados, porque
não sabem até onde isso tudo vai dar e como vão conseguir enfrentar. Porque O principal ponto que pude perceber é a falta de meios mínimos para esses
o medo de morrer de fome, da insegurança, de precisar de um serviço de moradores se sentirem seguros. É lamentável de um lado observar a intenção
dos moradores na melhoria da sua comunidade, buscando com meios

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próprios, doações de vizinhos para limpeza do ambiente e demais ações. Em preocupações. Não há tempo para outros problemas quando não há certeza
contrapartida, sabe-se que é alto o índice de contaminação pelo coronavírus de que no mês seguinte, você será capaz de alimentar sua família.
nos esgotos a céu aberto da comunidade, ou seja, eles nadam contra a É como se a história não tivesse ensinado nada para a educação entre as
corrente, buscam meios para se protegerem, contudo, é em vão. pessoas de classe média, que continuam saindo, indo em bares e fazendo
Perceba que uma limpeza feita por moradores vai na contramão das festas clandestinas enquanto uma parte da população luta para sobreviver. A
responsabilidades do poder público que deveria dar qualidade de vida à estas verdade é que, o coronavírus não tem me afetado da mesma maneira, mas
pessoas, mas ocorre que estão vulneráveis num nível absurdo em seu ter empatia não é apenas se preocupar com quem convive com a gente, é
ambiente de vida. O que me deixa muito sensibilizada é a forma como tudo é reconhecer a dor do outro mesmo que distante. Por isso, a importância das
conduzido e como as responsabilidades se inverteram. doações e de um auxílio emergencial de verdade: os moradores de favelas só
A comunidade como um todo precisa sim fazer a parte dela, mas precisa haver procuram um pouco de tranquilidade em um país de caos.
uma condição mínima de saúde e isso não é oferecido a eles pelo Estado. É Como ensinar empatia e conscientização para um povo comandado por
algo que acontece em inúmeros locais, e que faz se alastrar essa situação que um presidente que, durante diversos momentos, minimizou a pandemia e a
estamos vivendo. A consequência disso, são os hospitais lotados e as mortes dor da perda de várias famílias, incentivou o uso de remédios que não foram
incontáveis. Essas pessoas precisam de mais atenção, de mais cuidado. Elas comprovados como eficazes, banalizou e não incentivou o uso da vacina e
sozinhas não conseguem, precisam do apoio de nossos governantes. ainda disse: "Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida. Não pode
parar uma fábrica de automóveis porque tem mortes no trânsito”. (Entrevista
Afetação Luísa Fróes concedida em emissora nacional em 27 de março de 2021)
Essa situação representa o conceito definido pelo filósofo camaronês Achille
Acredito que entre as pessoas que conversamos, é notório o peso da Mbembe, a necropolítica, que retrata um conjunto de políticas de controle
responsabilidade e sobrecarga de ter que ir trabalhar todos os dias, acessando social através da morte, fazer viver e deixar morrer - ou definir que vai
meios de transportes lotados e ter a maior possibilidade de contágio da sobreviver e quem vai morrer. Com isso, pessoas continuam falecendo de um
doença, sem possuir outra opção. Em uma vida onde você é mãe solteira, vírus que já possui vacina e, principalmente, aquelas vidas que não estão
desempregada e pobre, a pandemia é só mais um fator em uma lista de sendo priorizadas:

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significa “estar associado de tal modo que fazem outros atores fazerem
"Um país como o Brasil, nascido e estruturado com base no racismo e no coisas” (LATOUR, 2012, p. 158). As pessoas não são vítimas desse
patriarcalismo, tem produzido práticas e relações sociais extremamente desenvolvimento, porém também não são protagonistas autônomos em
desiguais e cujos sujeitos que sofrem a ação de precarização de suas vidas ação. Nesse contexto, sem essa rede, não sobreviveríamos, e a prova disso é
seguem os critérios de classe, raça e gênero, tornando essas vidas que, nas periferias a vida é mais precária e, muitas vezes, mais curta, ainda
descartáveis”, (TELES, 2020) mais durante essa epidemia. É uma dor imensa e uma sensação de impotência
estar aqui pesquisando sobre esse assunto e mergulhando nessa realidade
Gleicy Souza, psicóloga Junguiana e pesquisadora das relações étnico- tão discrepante, mas encontro um alívio em pensar que a transformação
raciais, questionou de que modo poderiam pedir isolamento social para essas nunca é feita por quem está confortável.
comunidades onde o poder público não chega e onde a preocupação é o
pavor das balas de operações policiais. Por mais que tentem fazer o Afetação por Yasmim Amorim
isolamento e cumprir as regras, ainda precisam ir trabalhar e pegar o
transporte lotado, sendo culpabilizados por espalhar a doença de maneira Desde a chegada do coronavírus ao Brasil, o Rio de Janeiro tem sido um dos
mais rápida. A população racializada está jogada à própria sorte neste locais onde mais se tem casos e mortes, ocupando lugar de destaque mundial.
momento. Seja porque não tem sequer acesso ao sistema de saúde, seja Parte do agravamento do problema envolve questões sociais oriundas da
porque não possui saneamento básico de higienização necessária de combate enorme quantidade de favelas onde a pobreza aparece como pano de fundo
ao coronavírus. trazendo mais probabilidades de mortes e contaminação por essa doença.
A Teoria Ator-Rede acredita que o ator se estabelece a partir da rede. Muitas dessas pessoas não têm acesso ao mínimo, o descaso do governo é
Portanto, as peças são mais do que apenas instrumentos, ou conjunto de enorme. Falta saneamento básico, educação, segurança. Como o governo as
condições e circunstâncias, onde os indivíduos são protagonistas. protegeria numa pandemia mundial se já não fazia isso antes? Sempre faltou
Latour (1994), antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês, revela tudo.
a ideia de que ambos, os atores humanos e não humanos, devem possuir o Durante a entrevista, um entrevistado explicou que soube que estava
mesmo status de atenção. Não pode haver isolacionismo, já que essa junção recebendo algum auxílio do governo pela caixa do banco, se dando conta que

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a mãe de seus filhos havia pedido para ele tirar foto segurando seus uma grande parte da pandemia fomos para o nosso sítio na região dos lagos
documentos e ele não sabia que era por esse motivo. Mas, como ele iria para ficarmos isolados juntos e em segurança.
saber? Edson não teve acesso à educação, é analfabeto funcional. Sua mãe Quando ao mesmo tempo outros brasileiros tinham que sair para trabalhar
morreu muito cedo e ele teve que se virar, sobreviver. É um dos vários outros mesmo com todo o risco, muitas pessoas estão se aglomerando, ignorando a
moradores de comunidade vítimas do descaso do governo e de suporte para proporção do problema em que estamos, nisso inclui os mais e menos
compreender seus direitos, aceitando diante da vida a condição de favorecidos. Isso me chamou bastante atenção durante o estudo, pois apenas
passividade, aceitação da sua condição. uma das pessoas que tive contato na entrevista, embora tivesse que sair para
Por conta das medidas de isolamento social, estamos vivenciando um impacto trabalhar, tinha noção e tomava os cuidados perante ao vírus.
econômico que afeta a todos, mas ainda mais a estas pessoas. Os preços A realidade das favelas é outra e isso pode ser justificado pela falta do olhar
aumentaram absurdamente, microempreendedores falindo, pessoas do governo para estas pessoas e por isso todos os problemas que eles
perdendo seus empregos. O governo ofereceu um “auxílio”. Coloco entre enfrentam no dia a dia. “Morrer de vírus ou enfarto não faz diferença”,
aspas, pois diante da atual situação mal dá para se fazer uma compra no enfatizou uma moradora na entrevista. Mas, o que me deixa mais
mercado, imagina pagar aluguel, contas de luz, água e alimentação? O auxílio impressionada, são pessoas mais privilegiadas tendo acesso à informação
serve de mera manutenção do status quo de pobreza e dependente de ajuda, aglomerando e não compreendendo seu papel enquanto coletivo.
não mudando qualquer realidade para essas pessoas. Para a Teoria Ator-Rede, um ator humano é um efeito gerado por uma rede
Por isso, muitos moradores precisam se expor ao vírus para ir trabalhar.Isso de materiais heterogêneos com os quais interage (Law, 1992). Nesta
os que ainda estão em seus empregos, pois muitas pessoas foram desligadas perspectiva se combate o “mito ideológico” da ação humana, em que a
por conta da economia devastada. E assim o vírus vai se espalhando independência humana de agir, sua liberdade, reflexividade e livre arbítrio
facilmente nas favelas, pois, ou fica em casa e morre de fome, ou vai trabalhar foram confeccionadas à noção de agência para colocá-la no centro da teoria
e morre de COVID. É essa a realidade. social humanista (Passoth et al., 2012, Sayes, 2014). Contudo, ao entender a
Neste trabalho pude acessar uma realidade na qual não vivo e reconheço o agência como múltipla, mediada e distribuída (Rammert, 2012), a ação pode
quão privilegiada sou tendo pais estáveis em seus empregos, que me ser estudada como um processo distribuído entre muitos atos e atores.
oferecem conforto e sustentam meus “luxos”. Tirando o fato de que durante

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A grande questão da covid é que dependemos um do outro para que ele não possuem uma complexidade que as integram e as fazem parte de um mesmo
se propague. Isso me remeteu ao chamado efeito de “mundo pequeno” da sistema, ou seja, quando me vi infectada pela covid 19 e também buscando
TAR que pressupõe que o mundo social (mas não apenas ele) é formado por conhecer o que essas pessoas vivenciam nesse período, entendendo que
laços com atores próximos e distantes, mas os atores “distantes”, na apesar de ser noticiada várias informações sobre esse público, ouví-los me fez
estruturação da rede, não estão na verdade tão longe assim, no fundo, eles compreender que existem ainda mais questões em jogo.
também se encontram a poucos graus de distância, mesmo que não sejam Estar com covid e sentir todo o mal estar da doença, a desordem que ela
percebidos como tal. Ou seja, cada pessoa no planeta está na média ao provoca nas rotinas por você não poder receber o suporte da limpeza da casa,
alcance de qualquer outra em apenas seis graus de separação. organizar as próprias refeições, não conseguir levantar da cama para assistir
Atualmente, estamos na média de um metro e meio de distância de outra aula e dar conta da semana de trabalhos e provas, misturada as falas dos
pessoa por conta do isolamento social. Precisamos de responsabilidade. moradores falando que os vizinhos não sentem medo da doença, que não
Nossa com o outro, como também do governo com a gente. Precisamos de receberam suporte emergencial do governo e muitos deles possuem
vacinas, distribuição de máscaras e informação acessível a população de um preocupações anteriores como a violência, a falta de acesso às políticas de
modo geral. Precisamos de um auxílio que realmente forneça suporte, para saúde, saneamento básico, me trouxeram sentimentos de revolta, irritação e
além do mínimo. Precisamos de respeito e humanidade. até de fragilidade por refletir que um morador que também foi contaminado
sequer pode contar com o que eu pude – consulta imediata e especializada
Afetação por Luciana Teixeira pelo plano de saúde, não me medicar aleatoriamente por saber que não há
eficácia em relação ao kit covid conforme é preconizado pelo Ministério da
Participar da construção desse trabalho e entrar em contato com esse Saúde, repouso sem perda da renda familiar, acesso a alimentos variados e
objeto de estudo me fizeram experimentar sentimentos difíceis e testagem em laboratório coberto pelo plano com resultado em 24 horas.
contraditórios. Isso porque contraí o vírus justamente no momento da escrita Também me senti próxima de todas as mulheres que são afetadas pela
e de ouvir os moradores. sobrecarga do cuidado dos filhos e das tarefas de casa, perderam seu
Tive a sensação do que Latour fala que “a realidade existe e existe o que emprego por falta de rede de suporte relacionada a creche ou outros
é construído”, ou seja, apesar de serem duas categorias independentes, elas familiares por ter vivido essa experiência. As falas das moradoras tiveram

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grande efeito sobre mim nesse momento, mas me fizeram também perceber indivíduos, de poder aprender sobre eles a partir desse mergulho na realidade
que as mesmas assim como eu precisaram aprender a se reinventar como que os atores estão inseridos construir uma nova prática.
forma de sobreviver a esse caos. O estudo me fez pensar no papel da psicologia na pandemia para esse
Todas essas questões aparecem quando os moradores dizem o que público. Em nenhuma das entrevistas o suporte que tentamos entender que
resumia a pandemia e a favela – descaso, irresponsabilidade, medo e receberam veio como forma de atendimento de algum plantão psicológico,
desinformação, atreladas a perdas de vidas conhecidas, a não acesso à vacina de necessidade de psicoterapia. Tive a impressão que esses atores não
e a suporte por meio do atendimento às necessidades mais básicas que acessam esse tipo de recurso e não identificam o mesmo como possibilidade
antecedem ao vírus – o existir como cidadão. de suporte para enfrentamento ao sofrimento que sentem. O suporte
Favret-Saada (2005:13) nos situa que é necessário assumir o risco de ver aparece como de cunho social e financeiro. Apesar de reconhecerem a
meu projeto de conhecimento se desfazer quando aceito ser afetada. Isso faz existência do medo, tristeza e sofrimentos, preocupações, vivência de perdas,
sentido, quando acreditei que sabia o que essas pessoas estavam vivenciando, não há registro de buscarem esse tipo de acompanhamento ou receberem
mas a mídia mostra apenas um recorte e ouvi-los me fez entender a algum suporte nesse sentido de algum serviço de saúde.
importância do nosso estudo de dar visibilidade as falas, as suas lutas, aos
aspectos que são amenizados diante de tantas outras notícias que envolvem Considerações Finais
a favela – incursões policiais, mortes de crianças em casa, criminalização da
pobreza ou seja, múltiplas faces de uma pandemia nas favelas do Rio de O novo coronavírus é um fenômeno mundial que ainda não está perto do fim.
Janeiro. Ele mostra como a realidade é dinâmica e se movimenta a cada instante por
Senti vir intensa a emoção no momento da escuta dos moradores, por novas doenças, políticas, recursos ou falta deles. Ele evidenciou e
me sentir privilegiada e estrangeira como se existisse um mundo paralelo potencializou desigualdades existentes nos países que vivem o Estado Mínimo
mesmo territorialmente tão próxima. Ouvir o morador dizer que é necessário com os investimentos voltados para o mercado, sem que isso retorne para a
que os estudantes e profissionais possam vir até a favela conhecer a realidade população com o desenvolvimento de políticas.
que eles vivem diz muito sobre a psicologia social de se aproximar dos A partir desse estudo, foi possível enxergarmos como estamos tendo formas
diferentes de enfrentamento dessa pandemia. Na favela, o vírus circula, leva

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de forma silenciosa e até oculta a vida de pessoas sem que isso se torne uma de relações e também de produção de sentimentos como a revolta, a
preocupação para os gestores. A falta de representatividade do poder público angústia, a tristeza em perceber que muitas vezes há um quantitativo invisível
nesses territórios é tão grande que normalizam serem esquecidos e se para as políticas públicas, segue sendo massacrado com muitas perdas que
assumem responsáveis pelas suas próprias trajetórias. nem sempre se tornam estatísticas oficiais, por envolverem condições de vida
Através do contato com essa temática, nos demos conta que questões antigas que se somam ao risco da pandemia.
como a própria pobreza e falta de saneamento básico ainda estão em jogo. Ao mesmo tempo, percebemos que são territórios que visivelmente possuem
Precisamos do mínimo, precisamos que em pleno século vinte e um, pessoas uma força para se organizarem, buscarem arranjos e formas de sobrevivência
não tenham fome, tenham acesso à saúde, educação. O que está que passa pelo aumento das redes de solidariedade, como intervenções
acontecendo nas favelas não é transmitido pelas redes abertas de televisão. sendo feitas pelas associações de moradores, lideranças e referências da
Em plena pandemia assistimos como espectadores pessoas morrem de favela que se mobilizaram e foram criando formas específicas de
incursões policiais por exemplo, como a chacina de vinte e oito pessoas no enfrentamento e resistência por meio de entregas de cestas básicas,
Morro do Jacarezinho - RJ em que ainda se ouve “tem que morrer”, “bandido equipamentos de proteção e higienização, ações locais para orientação e
bom é bandido morto” e não é problematizado o quanto o Estado tem falhado informação à população.
com esses moradores. Se aprofundar nesse tema nos fez olhar para as nossas próprias emoções, em
Desse modo, a cada fala e troca com esses atores o senso de indignação e um mergulho profundo sobre nossas insatisfações e crenças, nos fazendo
busca por mudanças foi nos afetando, a partir de diversos questionamentos enxergar o outro de forma humanizada e sem pré conceitos definidos, como
e reflexões como - será que a vida de algumas pessoas valem menos que a a TAR nos propõe.
vida de outras? Será que existe interesse do capital que vidas sem valor Foi importante perceber que na teoria ator-rede ao identificarmos a
econômico possam dar espaço para outras que continuam enriquecendo e existência dessa rede de relações de observar como elas foram se construindo
lucrando com a morte de outras como o aumento significativo de inauguração a partir do nosso olhar direcionado para enxergar algo que não estava pronto,
de laboratórios e farmácias? ou seja, aprendemos e nos permitimos ser afetados por elas.
Conseguimos compreender que a situação vivida em uma realidade tão A teoria nos permitiu perceber a importância das trocas entre as redes e os
múltipla e heterogênea afeta todo o coletivo, como um grande emaranhado atores, como observar e ouví-los num lugar de não interferência, não

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julgamento, mas de proximidade e prontidão possibilitando que isso nos Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cebape/v16n2/1679-3951-
afetasse e ampliasse nossa condição de humanidade, de sentir interesse em cebape-16-02-218.pdf.
buscarmos ser futuros profissionais que se implicam e engajam com questões BRASIL, Antônio; Carvalho, Lucas. A sociedade contra o acaso: teoria de redes
sociais tão complexas. e a pandemia do novo coronavírus. Disponível em
Como estudantes da psicologia, precisamos entender o papel fundamental da https://blogbvps.wordpress.com/2020/05/15/a-sociedade-contra-o-acaso-
nossa profissão, a empatia, o olhar e escuta do outro ampliando sua condição teoria-de-redes-e-a-pandemia-do-novo-coronavirus-por-antonio-brasil-jr-e-
e empoderando o outro através dos nossos diálogos. lucas-carvalho/
A luta pela vida de um modo geral e contra a necropolítica que está instaurada BRUNO, Cassio. Mesmo com a suspensão do STF, polícia do Rio faz operação
mostram-se como tendência a partir da pandemia da Covid-19 e exigirá que e deixa 25 mortos. 06/05/2021. Acesso em: 11 maio 2021. Disponível em:
possamos construir uma fala alinhada, próxima e respeitosa às múltiplas https://veja.abril.com.br/brasil/mesmo-com-suspensao-do-stf-policia-do-
realidades que envolvem existir na favela e como brasileiros. rio-faz-operacao-e-deixa-25-mortos/.
DELGADO, Anna. DE ANDRADE, Jackeline. Teoria ator-rede (TAR) como
Referências instrumento de pesquisa em turismo: Buscando aproximações e
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Disponível em :

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Além de sofrerem discriminação e preconceito durante vários momentos de
suas vidas, as pessoas transexuais frequentemente encontram dificuldades
em serem inseridos nas várias instâncias da sociedade, como por exemplo, a
CAPÍTULO 3 serem aceitos em vagas de empregos, serviços de sáude e outros direitos
QUESTÕES QUE ATRAVESSAM PESSOAS TRANS NA
essencias. Tais questões fazem com que se isolem e essa atitude de
CONTEMPORANEIDADE PERCEBIDAS ATRAVÉS DE NOSSOS
OLHARES E TENDO COMO BASE A TEORIA ATOR-REDE isolamento pode produzir quadros de depressão e outras situações de ordem
psicológica.
Desta forma, especialmente ao Sistema Único de Saúde (SUS), é primordial
ALINE TOLEDO DOS SANTOS CARVALHO
que se oferte serviços de saúde específicos a indivíduos transexuais, a fim de
ELAINE ZÓZIMO DE SOUZA
não causar mais sofrimento, já que a patologização da transexualidade e
GABRIELA DE ALMEIDA MARTINS
processos arbitrários para a seleção de serviços médicos têm reforçado a
JULIANA DE CARVALHO DUARTE SANTOS
exclusão social e provocado o adoecimento dessas pessoas.
LEILA CRISTINA VASCONCELOS DE ANDRADE
Segundo Rocon et al. (2018), em 2008 o Ministério da Saúde por meio da
portaria 1707, criou o “Processo Transexualizador do SUS” o que representou
um importante avanço na promoção da saúde da população trans, pois
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA),
reconheceu as transformações corporais como necessidade em saúde.
pessoas transexuais apresentam uma Identidade de Gênero diferente da que
Apesar da importante iniciativa do Ministério da Saúde em publicar Portarias
foi designada no nascimento. Por irem contra a norma do binarismo de
e instituir serviços de saúde específicos à essa população, ela continua sendo
gênero socialmente predominante, a população transexual é historicamente
apontada como a que mais enfrenta dificuldades para acessar os serviços de
estigmatizada, patologizada e marginalizada. A ocorrência de violência, mais
saúde, desde a atenção básica até à alta complexidade, dentre toda a
especificamente, a transfobia contra essa população se torna cada vez mais
população LGBT (Mello et al., 2011 apud Roncon et al. 2020).
crescente no Brasil, se configurando como o primeiro país em que mais mata
Vale destacar aqui, que nascemos e desenvolvemos nossa subjetividade em
transexuais no mundo (ANTRA, 2020).
uma sociedade baseada no patriarcado, com cultura sexista, transfóbica e

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patologizante das diferenças. Dessa forma, formamo-nos dentro dessa lógica, Por meio do recorte das histórias vividas e contadas por transexuais,
e por vezes, cometemos atos transfóbicos mesmo que não nos buscamos entender a longa luta e resistência dessas pessoas que tentam
identifiquemos com eles. corresponder ao seu corpo, o gênero que tem identificação.
Para alcançar esse objetivo, nos baseamos na Teoria Ator-rede (TAR). A TAR é
Questões que atravessam a transexualidade uma teoria interessante para a compreensão das redes de fenômenos sociais
É preciso que, profissionais da área da saúde, principalmente psicólogos, que nos afetam a todo o momento e também nos ajuda a perceber tudo o
sempre busquem o desenvolvimento da escuta empática e o respeito à que compõem o mundo. Por isso, é preciso ir além de uma dualidade que
subjetividade de cada pessoa, para traçar demandas específicas, sabendo que herdamos do cartesianismo e que separa o mundo, por exemplo, em
pessoas transexuais têm diariamente suas possibilidades Trans de ser e existir humanos /não humanos.
limitadas. A partir de artigos estudados e de recortes de relatos de vivências Na teoria ator-rede, todos os elementos, sejam eles humanos ou não-
de pessoas transexuais buscaremos compreender a subjetividade da humanos, são considerados atores, pois participam de forma dialógica,
identidade delas e como o social atravessa esses corpos. conectiva e pertencentes para o momento em recorte.
Escutar e acolher as vivências de pessoas trans em relação aos preconceitos, De acordo com Latour, um ator é definido pelos efeitos de suas ações, de
possíveis desafios que passam ao buscar atendimento nas redes de saúde modo que o que não deixa traço não pode ser considerado um ator. Ou seja,
pública e o que essas pessoas esperam deste serviço; Buscar a origem da somente podem ser considerados atores aqueles elementos que produzem
patologização da transexualidade a partir do modelo biomédico; efeito na rede, que a modificam e são modificados por ela e são estes
Compreender como é o tratamento psicoterapêutico para o processo elementos que devem fazer parte de sua descrição. (FREIRE, p. 10, 2006).
transexualizador dentro do SUS e como a Teoria Ator-Rede poderia ser Partindo dessa idéia particular que a teoria ator-rede nos oferece, eu, Aline,
utilizado nas práticas psicoterapêuticas produzindo acolhimento a esses percebo que de fato, a família tem um papel muito importante na vida das
corpos; Compreender como se dá a continuidade do acesso integral aos pessoas trans, já que a sociedade é muito cruel e cheia de rótulos, fazendo
serviços de saúde pública pelo SUS. com que muitas pessoas trans se sintam desconfortáveis e resumidas a algo.
Sabendo que somos múltiplos e que cada um tem a sua própria subjetividade,
resumir uma pessoa a uma única denominação é vazio demais. Tendo

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vivenciado muitas questões ao longo do meu desenvolvimento e Gostaria de citar aqui também a questão da afirmação de ser uma pessoa
categoricamente sendo vista como mulher trans, me sinto muito privilegiada trans. Ainda é uma discussão delicada, pois nem todas as pessoas estão
por ter o apoio e proteção da minha família, sabendo que vivemos num país preparadas para acolher de forma correta, exercendo a empatia. Quando se
que mais mata, fere e oprime corpos trans. De fato, a família tem uma grande fala que é trans, muitas pessoas se acham no direito, é o que parece, de fazer
importância no que se refere também ao cuidado e ao afeto. perguntas delicadas que não as cabe. Se acham capazes de entrar num espaço
Se as famílias não oferecem o suporte necessário, os afetos, o cuidado, como tão íntimo que não só constrange, mas faz com que haja um sentimento de
esperar isso de uma sociedade que tem como objetivo exterminar corpos fora não pertencimento. De que as diferenças causam medo e preconceito.
dos padrões socialmente aceitos? Precisamos falar mais sobre a identidade Quando alguém diz ser trans, na maioria das vezes, é apenas para expressar
trans em todos os lugares, para que o conhecimento sobre o tema chegue a o orgulho de ser quem é. Orgulho este, que muitas pessoas querem extinguir,
cada família, a cada pessoa. Não com o objetivo de rotular pessoas, pelo simples fato de que vivemos num binarismo de gênero, introduzido há
categorizar, mas com a finalidade de orientar as pessoas, principalmente as muitos anos pelo sistema patriarcal que impera em nossa sociedade,
famílias, a como agir, se posicionar e ajudar no desenvolvimento e nas infelizmente.
questões que possam aparecer, desde quando a pessoa ainda estiver na O binarismo de gênero é composto pela ideia de ''mulher cisgênero e homem
infância, como aconteceu comigo e tantas outras pessoas. cisgênero'', que é quando o individuo se identifica com o gênero que lhe foi
O acolhimento familiar apenas não é o bastante, sabemos que para mudar atribuido quando nasceu.
esse sistema binário de gênero imposto socialmente, precisamos levar Se a cisgeneridade predomina em nossa sociedade ditando padrões de
informações corretas a todas as pessoas. O conhecimento modifica gênero, algumas pessoas trans decidem estar dentro desses padrões
pensamentos e a forma de compreender a existência humana. Também impostos e, consequentemente, enfrentar menos preconceitos. Esse
precisamos de leis que amparem, de fato, a população trans, para que haja a comportamento de "estar dentro de um padrão de gênero considerado
devida proteção contra crimes de todos os tipos, principalmente, crimes aceitável" é chamado de ''passabilidade''.
ligados ao ódio, que é o que mais aniquila pessoas trans no Brasil. Precisamos Como mencionei antes, a passabilidade produz uma certa segurança,
dialogar e nos posicionar para que todos possam exercer a liberdade de diminuindo os incontáveis sofrimentos que perpassam as pessoas trans.
expressar suas subjetividades, sem julgamentos, categorizações ou rótulos.

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Por fim, gostaria de mencionar aqui a hipocrisia que há em nossa sociedade: o indivíduo de fato se parece com o gênero com o qual se identificam e
se por um lado, a sociedade brasileira dificulta o acesso à empregabilidade almejam.
para pessoas trans, o nosso país é o que mais consome conteúdos A segunda oportunidade foi nesse trabalho de grupo da disciplina de
pornográficos de pessoas trans, de acordo com algumas pesquisas que fiz na Psicologia Social na Santa Úrsula, com o professor Lauro Rodriguez de Pontes,
internet. em plena pandemia. Formamos um grupo para desenvolver um trabalho
Há um momento que me impactou na série lançada pela Netflix, chamada utilizando a Teoria Ator Rede. Cada um podia propor temas e surgiu o tema
''Pose'', baseada na vivência trans, aonde uma mulher trans diz: ''eles da transexualidade que foi aceito pelo grupo. Ali vivi uma recalcitrância, que
(homens cis) não nos matam porque nos odeiam. Eles nos matam porque nos dentro da Teoria Ator Rede, é o momento que o encontro se dá, mas não de
amam.'' Essa fala resume bem a sociedade machista em que vivemos, onde uma forma dicotômica. É vivenciar resistindo e de certa forma resistir. Achei
muitas pessoas, infelizmente, têm que esconder, muitas vezes, seu real um tema complexo, pois exigiria uma série de contatos e pesquisas com
sentimento com o medo do julgamento social. transexuais, já que na Teoria Ator Rede teríamos que vivenciar de alguma
Com essas questões sensibilizantes, eu encerro aqui a minha participação na forma o tema escolhido. O que eu não sabia e não havia percebido é que
escrita. uma das integrantes do grupo era uma jovem mulher transexual. Ela é um
A transexualidade é um tema complexo e não está necessariamente presente exemplo de ótima passabilidade. Oportunidade única de conhecer sua
no dia a dia da maior parte da população. Ainda é um grupo minoritário e suas realidade e seu contexto social. Tivemos vários encontros online do grupo e
questões ainda são pouco conhecidas. Eu, Leila, por exemplo, só tive contato foi possível conhecermo-nos melhor. Percebi que a passabilidade para ela era
poucas vezes com transexuais. A primeira vez foi na FioCruz, que possui vários mais importante do que ter a aparência de uma mulher, era também uma
programas de atendimento e prevenção de diversos tipos de doenças e necessidade de evitar a violência a qual transexuais estão expostos
diversos tipos de pesquisas na área de saúde e social. Os atendimentos diariamente. A transfobia ainda é uma realidade na nossa sociedade. Segundo
seguem um protocolo de cadastramento, atendimento médico e psicológico, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2020), assasinato e
onde diferentes pessoas aguardam numa fila única para se cadastrar e em a agressão às mulheres trans é uma realidade. O Brasil é o país onde mais
filas específicas para atendimentos. Lá pude ter um contato superficial com ocorre o assassinato de mulheres trans e durante a pandemia houve um
transexuais. Foi possível perceber o conceito de passibilidade, que é o quanto aumento desse índice. Uma triste realidade.

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O mais interessante dessa oportunidade de conhecer uma mulher transexual O que tem por trás de um nome? Uma pessoa com suas subjetividades e
é perceber que na verdade não existe diferença real, a não ser sua trajetória vivências. Mas por que para alguns o nome pode ser o diferencial de suas
de vida e luta para alcançar uma vida plena e cheia de significado. vidas? Quando “olhamos” para os transexuais, podemos ver como a conquista
Eu, Gabriela, ao entrar em contato com a produção do artigo, tive que lidar pelo nome social, que é o nome atribuído por elas diferente do nome de
com o desconhecido sobre a temática, apesar de já ter ouvido falar sobre registro, foi e tem sido uma afirmação por seu reconhecimento e por seus
alguns termos e sobre algumas vivências de transexuais. Confesso que meu direitos.
medo de escrever sobre o assunto foi em algum momento cometer por meio Alguns atores, assim como Alves (2017), definem nome social como o nome
da escrita algum preconceito ou discriminação, mas ao começar a escrever e pelo qual transexuais se apresentam para a sociedade e como gostariam de
ter a Aline, participante do grupo como parceira de escrita, pude desmistificar serem chamados por se identificarem com ele, pois o nome é um binômio que
esse medo. reflete a identidade de gênero que essas pessoas constroem em suas
Ao buscar entender o que dentro da temática me afetava e do que eu era trajetórias de vida.
afetada, pensei em escrever sobre o nome, mais especificamente, o nome Este binômio mostra o direito de ser reconhecido como o que se é, ou seja,
social. O nome que por sua vez já é social, sempre me chamou a atenção. O como realmente o sujeito se identifica. Ele é uma afirmação de um processo
pontapé inicial da motivação por esse recorte, foi a memória de um curso que de transformação e de sua subjetividade. A partir disso, comecei a
fiz na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em que conheci a Sara, compreender como são as vivências transexuais em postos de saúde, mais
uma mulher trans super militante na vida e nas causas sociais. Em um especificamente, em busca por atendimento médico, observei que essas
pequeno espaço de troca, pude compreender sua história de vida e a parte pessoas ao chegarem para atendimento nas unidades de saúde, têm sofrido
que mais ficou marcada para mim até hoje foi justamente sobre a questão do inúmeros discriminações e preconceitos em relação ao uso de seus nomes
nome social, a partir da fala dela: “desde os 11 anos, eu já me sentia Sara.” sociais.
Naquele momento fiquei imaginando como seria o processo da escolha do Muitos transexuais têm relatado que quando chegam aos postos de saúde,
nome social dos transexuais; como se “desvirtuar” do nome de registro; o que pedem para serem identificados por seus nomes sociais, mas quando vão ser
aquele novo nome, que na verdade, sempre pertenceu àquela pessoa poderia atendidos, alguém fala ou aparece em alguma tela o seu nome de registro.
transformar em sua vida ? Quando também não acontece de algum profissional da área de saúde, como

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enfermeiros e médicos, debochar e se recusar a usar o nome social pedido. O nome social atua dentro dessa rede de relações entre atores humanos e
Além de não atenderem essas pessoas apenas por serem trans, muitas vezes, não-humanos, e ganha para além de um título ou uma nomeação, uma forma
essas pessoas têm que lidar com a dor fisiológica e ao mesmo tempo lidar com de produzir efeitos e possibilidades de uma transformação interior dessas
o mal-estar que passam para terem seu nome social reconhecido. pessoas.
Apesar do SUS ter regulado o uso do nome social nos serviços de saúde, por Mesmo que os transexuais sofram mais com a falta de preparo dos
meio da portaria 1.820/2009, é visível o constrangimento enfrentado pelos profissionais da área de saúde e com o preconceito e discriminação pela
transexuais no atendimento em seu direito à saúde e por isso se configura na sociedade. Esses profissionais também são atores, sendo assim, também são
população que mais enfrenta dificuldades para acessar esses serviços. afetados, seja pela falta de preparo em intervir, lidar e em entender no
[..] pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento do sentido empático o que essas pessoas sentem. Portanto, toda essa rede de
usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente do vínculos afetam todos os atores.
registro civil sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo Entender toda essa dinâmica de relações entre atores e redes, foi ficando
ser identificado por número, nome ou código da doença ou outras formas com mais sentido e mais fácil de me afetar e sensibilizar por meio do contato
desrespeitosas ou preconceituosa. (BRASIL, 2009). com uma integrante desse grupo, a Aline, que é a mulher trans que passou
por diversos preconceitos, discriminações e recalcitrâncias em sua vida. Além
Como voltar em uma unidade de saúde após ser tratado dessa forma? disso, o contato com a Sara foi fundamental para que eu pudesse escolher o
Quantas mulheres trans não deixam de lado sua saúde, seus exames recorte destinado a este artigo. A todo Ser Humano é possível a
rotineiros ginecológicos necessários em segundo plano por terem suas reprodução, a geração de uma vida, com a liberdade e respeito de ser o que
subjetividades afetadas? Como não me sentir afetada também? Como eu na se é?
figura de futura psicóloga, não me sensibilizar diante da atitude de não É difícil essa coisa da verdade, existem muitas delas! E sobre a verdade: “As
acolhimento advindo dos profissionais de saúde perante essas situações e duas eram belas Mas carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho,
pessoas? Todas essas atitudes e atores envolvidos nesses recortes me sua ilusão e miopia.” Drumond.
mostram pessoas transexuais se afastando pela procura de seus direitos em
saúde, mesmo em situações de doenças mais delicadas e crônicas.

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A questão da reprodução envolveu e surgiu de muitas reflexões, Na minha adolescência conheci um amigo e ele era homoafetivo e desde
conversas e partindo das histórias que já ouvi e presenciei na minha aquele momento pude conhecer um pouco dos desafios que ele encontrava,
adolescência, sobretudo com um grande amigo homoafetivo, sobre a questão gostava de falar da suas emoções, de dançar e cantar as vezes passávamos a
da adoção ou ter filhos biológicos. E, assim, sendo amiga e mulher, pude tarde conversando, falando de muitos sonhos, e de como seria a sua vida, e
acolher as falas do meu amigo e pensava nos desafios que ele teria se quisesse lá sempre aparecia um grande sonho “ser pai”. E eu percebia nele esse desejo
realizar o sonho da paternidade. Hoje e especificamente na disciplina de desde cedo de “cuidar”, de poder exercer esse papel de ser cuidador de um
Psicologia Social ao me encontrar com esse tema das pessoas trans, fui outro ser. E de onde vinha esse desejo dele? Esperava ser de uma pessoa
envolvida por um questionamento se esse tema da reprodução é pouco muito especial de sua família: sempre gostava de conversar com a mãe dele,
tratado e me respondi com quase uma certeza que sim e como esse não dito que o chamava carinhosamente o seu nome no diminutivo percebendo muito
me sensibilizou sobre porque existiria o silenciamento dessa questão para do seu amor pelo seu filho e ele gostava muito do jeito como a sua mãe
certas pessoas e me fez querer aprofundar sobre esse tema da reprodução cuidava e aceitava ele; Mas, em relação ao seu seu pai a ausência do amor
agora com as pessoas trans. Através da internet fiz uma pesquisa no google presente nas falas era muito percebida por mim e pude refletir o quando era
scholar sobre “pessoas trans e reprodução” e encontrei poucos artigos, desafiador para o meu amigo lidar com suas questões com o seu pai e um dia
porém dois me despertaram o interesse e me permitiram a buscar uma meu amigo me disse que seria muito difícil ser pai, embora desejasse muito,
compreensão mais aprofundada sobre esse tema da reprodução nas pessoas devido as memórias ruins que tinha de seu pai, de não querer aceitá-lo como
trans, sobretudo me impactei com a questão dos homens trans. Nessa ele era e foi então que o vi crescer e silenciar esse sonho. E essa era a visão
pesquisa me deparei com o artigo Direito e Saúde reprodutiva para a inicial que tinha sobre o quanto seria difícil para alguns grupos de pessoas
população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica de realizar a paternidade/maternidade, mas ainda não tinha tido contato com a
Angonese & Lago (2017) e o outro artigo, O que esperam pessoas Trans do realidade das pessoas trans nessa questão. E a minha busca por compreensão
Sistema Único de Saúde? De Roncon et al. (2018). hoje sobre a questão da reprodução nas pessoas trans pude perceber o quão
E, então, como essa questão da reprodução me atravessava antes e após maiores são os desafios, dentre os quais posso citar: aceitação dos familiares,
conhecer a realidade desse tema para a população trans através desses aceitação da sociedade em geral, receber acolhimento nos postos de saúde,
estudos e outras vivências? sobretudo na rede pública através do SUS, receber atendimento humanizado

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e integral para tratar desde a saúde reprodutiva até a realização de desde a chegada a recepção onde as pessoas trans deveriam serem chamadas
tratamento para a transexualização e ter acesso como um todo aos serviços pelo seu nome social se sentindo bem vindas e acolhidas. Neste estudo, ler as
que são oferecidos para os demais grupos de pessoas, incluindo o falas dos homens trans me trouxe uma visão de como a saúde dessas pessoas
acompanhamento na parte de reprodução de modo respeitoso, ético e são colodas em risco devido a um modelo médico e curativista, não
humanizado. Ampliando para além da minha percepção pessoal, mostrarei as humanizado e integral que não é capaz de responder as necessidades das
percepções dos autores Angonese & Lago (2017) a partir de aspectos de seus pessoas trans e, ao contrário, está presente a discriminação, coerção e a
estudos que irei refletir juntamente com minhas experiências e outras violência impedindo o livre exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das
informações como demais atores do presente tema em questão. A partir do pessoas trans. Destacarei umas falas de umas entrevistadas. mostrando que
estudo de Angonese & Lago (2017) que me aprofundei nessa realidade da o atendimento específico em relação aos exames ginecológicos em homens
questão da reprodução das pessoas trans e gostaria de mover essa escrita trans é colocado em questão:
para nos aproximarmos reflexivamente desse lugar de não ser acolhido, de se “só que é uma problemática assim, porque já vem dos exames já,
sentir invisível e/ou muitas vezes expostos desrespeitosamente, de não ter constrangido desde o momento de fazer um Papanicolau até... então se
direito a ser reconhecido pelo seu próprio nome, de não receber atendimento chegando na área de obstetrícia que cuida dessa parte, piorou sabe, pra fazer
de saúde adequado direito esse assegurado por lei, de não ser acolhido em um pré-natal, pra fazer... e aí a gente se sente… esse constrangimento, ele vai
seus sonhos, motivos esses que, acredito, me moveram desde o início para além da vergonha né, de você tá ali, se sujeitando a um, a um tratamento que
olhar para essa questão da reprodução para as pessoas trans e por muitas não é adequado pra você.
vezes me faz recordar da história de vida do meu amigo também, embora seja
homoafetivo, pois também é de um grupo que sofre preconceitos. Em Outra fala que mostra como é difícil acessar a rede do SUS vem de outra
Angonese & Lago (2017) são trazidas as pessoas trans para serem mulher trans entrevistada, Rafa, ao ser perguntada se atualmente costuma
entrevistadas e ouvidas e é a partir de suas falas contidas nos estudo que se fazer o exame Papanicolau, e responde:
problematizam o atendimento à saúde reprodutiva destacando a importância “Eu fiz uma vez e agora semana retrasada eu fiz pela segunda vez, depois de
do papel dos profissionais de saúde amplamente, não recaindo aos médicos 20 anos. Mas isso porque no posto de saúde que eu frequento e que eu tô
somente, mas a toda a equipe multiprofissional que realizam o atendimento insistindo pra que eles se capacitem né pra tratar dos homens trans, eu tô

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fazendo este trabalho lá de formiguinha sabe, tentando capacitá-los, parece quase impossível esse sonho, pois já se inicia pela dificuldade em
tentando informar e servindo até de cobaia lá, de experiência laboratorial pra cuidar de si, em fazer exames preventivos para cuidar da saúde reprodutiva.
que eles possam, depois de mim, atender outros, mais adequadamente, As autoras trouxeram uma informação impactante apresentando no estudo
então depois disso é que eu encontrei uma enfermeira disposta, que é a que “sobre o viés do preconceito parece ser pressuposta a esterilidade dessa
enfermeira que faz o exame e ela tem a especialização em ginecologia e aí eu população tendo, assim, o direito à reprodução violada”. Fui atravessada por
tô conversando com ela e eu me senti confiante né pra poder, seguro pra muita inquietação quando soube a partir da leitura do estudo em questão que
poder passar por esse exame de novo sem constrangimento”. alguns países exigem a esterilização desta população e trouxe
Tais falas dizem por si só e, dessa forma, pode-se perceber a dura forma como questionamento de pessoas trans sobre isto:
as pessoas trans são tratadas e como é difícil para elas cuidarem de si e da sua “Somos inumanos que não tenhamos direito a reprodução? Que não
saúde sendo os desafios árduos. Dizem os autores do estudo que essas falas tenhamos direito a proteção legal alguma”
das pessoas trans reiteram que a discriminação, a dificuldade de diálogo entre “Mas, é interessante pensar nisso assim, de modo como a sociedade faz essa
os profissionias e os usuarixs trans e tais acontecimentos se tornam os castração na pessoas trans, essa esterelização, mesmo que simbólica.”
obstãculos ao acesso aos serviços de saúde, sendo elementos que atuam no
adoecimento e as privam dos cuidados e da proteção em saúde. E quanto ao É difícil e inquietante saber como esse preconceito é absorvido e
acesso aos cuidados à reprodução? Inicio esse tema com a pergunta feita no incorporado na subjetividade das pessoas trans e , principalmente, numa fala
estudo que está sendo exposto. Como podemos pensar os direitos à saúde de uma das entrevistadas isso aparece nitidamente e responde a minha
reprodutiva da população trans? Sobre isso as autoras citam Guaranha (2014) questão inicial que me levou a refletir e a querer adentrar por esse tema da
apud Angonese & Lago (2017) que dizem que o atendimento das travestis e reprodução das pessoas trans. A minha questão era sobre o silenciamento
transexuais é marcado pelo constrangimento, preconceito e discrimonação, desse desejo de reprodução nas fala de algumas pessoas trans que escutei
indicando a transfobia presente nos serviços de saúde. Percebo talvez que por meio dessas pesquisas e posteriormente, a partir de pequenas buscas em
essa seja a melhor expressão para o que acontece nos tratamentos de saúde artigos científicos percebi que esse não era um tema trazido com frequência
das pessoas trans e, portanto, com relação a minha reflexão sobre como seria para ser tema das pesquisas. então, a fala que percebi que mais se destacou
ser uma pessoas trans e sonhar em ter filhos dá para compreender o quanto

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para esse silenciamento é a que se segue e que diz assim: “Eu vou deixar de pessoas trans pelos profissionais de saúde compreende um aspecto essencial
ser trans para ter um filho”. para a mudança do preconceito e discriminação ao meu ver, pois o “cuidar”,
Para o que me interessa trazer essa fala? É porque ela mostra que a essa palavra que me tocou desde quando me deparei com o tema, no
experiência reprodutiva está desvinculada da vivência trans, ou seja, esse processo de realização desse trabalho, me inspira no sentido de pensar um
desejo é distanciado, invisibilizado nesse modo de existir; E por que é assim cuidado humanizado que se configura ao meu ver num cuidado que envolve
se direitos reprodutivos devem ser universalizados? Condordo com os autores uma ação no cotidiano, no aspecto de ser continuo e se amplamento visto em
quando afirmam que não se pode conceber o direito a reprodução subjugado todas as etapas de acolhimento de saúde nos serviços de saúde de modo
à norma hetero(cis)ssexual, que deve se olhar para a universalidade, mas ao ético, respeitoso e acolhedor, mas também amplio esse cuidado para todos
mesmo tempo atentar-se para a singularidade e especificidade da população os espaços vivenciais íntimos e não íntimos, pois enquanto humanidade
trans, mas hoje essa não é a realidade atual. Então, partindo dessas falas das devemos cuidar e promover a dignidade e a liberdade de todas as identidades,
pessoas trans do estudo abordado e tantas outras que pude ouvir ao longo de todas as existencias possiveis, a todas a verdades possiveis de existências,
deste trabalho e ainda irei ouvir, pois este trabalho encontra-se em sobretudo as que hoje sofrem severas restrições em suas escolhas como
andamento, dos autores pesquisados, percebo que as pessoas trans nas ocorre com as pessoas trans.
condições atuais tem seus direitos a saúde reprodutiva não garantidos na Conclusão
prática, no entanto, as pessoas trans tem o direito poder ser pais/mães, de Com base na teoria Ator-Rede e em nossas pesquisas, conversas e trocas,
poderem fazer suas escolhas livres em relação a esse tema e serem apoiados podemos perceber que as questões que atravessam pessoas trans na
pelos sistemas de saúde, sobretudo o público, aqui no Brasil o SUS. Quais tipos atualidade, são muitas como: a dificuldade de acesso à saúde integral no SUS
de mudanças é possível esperar para que essa situação se reverta? As com acolhimento, ausência de políticas adequadas e singulares às pessoas
questões que iniciarei essa reflexão são as que se apresentam nos estudos de trans, dificuldade de serem tratados pelo nome social e receberem o respeito
Angonese e Lago (2017) e de Roncon et al. 2018 que trazem uma exigência das famílias e da sociedade como um todo sobre a sua escolha de identidade
ética na pluralidade sexual e reprodutiva através de Direitos estabelecido por . E cabe ressaltar aqui que, ainda temos poucos artigos publicados referentes
Políticas Nacionais e Internacionais de saúde integral e a qualificação dos a esse tema no Brasil, quando procuramos no google acadêmico, sobretudo
profissionais de saúde. Com isso, me é perceptível que o acolhimento das em relação às questões da reprodução há um silenciamento e uma castração

37
simbólica das pessoas trans. Sendo os Estados Unidos, o país com mais BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009.
pesquisas e artigos publicados. Isso mostra que precisamos debater, dialogar Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Brasília, 2009.
mais sobre as questões vivenciadas pela população trans e cobrar das Freire, Letícia de Luna. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia
autoridades, leis que amparem e protejam as pessoas trans, de fato. Que não simétrica. Comum-Rio de Janeiro - v. 11-no 26-p. 1 a 220-janeiro/junho 2006.
fique apenas “escrito num papel”. Já escrevemos aqui, neste trabalho, que as Roncon, Pablo Cardoso; Sodré, Francis; Zamboni, Jésio; Rodrigues, Alexandro;
demandas requeridas pelas pessoas trans são inúmeras e acaba sendo tão Roseiro, Maria Carolina Fonseca Barbosa. O que esperam pessoas Trans do
“complexo” para sociedade, porque justamente falta esse cuidado e essa Sistema Único de Saúde? Interface Comunicação Saúde e Educação 22(64): 43
atenção mais especializada e sensível sobre o tema e uma capacitação dos e 23, 2018.
profissionais de saúde se faz urgente. Dessa forma, concluímos o nosso Roncon, Pablo Cardoso; Wandekoken, Kallen Datteman; Barros, Maria
trabalho de psicologia social a respeito desse tema sobre a identidade trans, Elisabeth de; Duarte, Maco José Oliveira; Sodré, Francis. Acesso à saude pela
escolhido por nós e exposto aqui com bastante sensibilidade. população trans no Brasil: Nas entrelinhas da revisão integrativa. Trabalho,
Referências Educação, Saúde, Rio de Janeiro 18 (1): e 0023469, 2020.
Angonese, Mônica; Lago, Mara Coelho de Souza. Direito e Saúde reprodutiva Sampaio, Liliana L. Pedral; Coelho, Maria Thereza A. D. A Transsexualidade na
para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. atualidade: Discurso Científico, Político e Histórias de Vida. In: Anais do III
Saúde Sociedade 26 (1): 256-270, 2017. Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador: UNEB, 2013.
ANTRA, Assassinatos de Pessoas Trans voltam a subir em 2020. Disponível em: Souto, J. B. ;Junior G. S.; Oliveira, P. A. B. A.; Nogueira J.A.; Gouveia, M. L. de
https://antrabrasil.org.category/violencia. Acesso em: 02 de maio de 2021. A. As vias da transexualidade sob a luz da psicanálise. In: Cadernos de
Arán, Márcia; Murta, Daniela; Lionço, Tatiana.. Transexualidade e saúde psicanálise (Rio de Janeiro) . vol.38 no.34 Rio de Janeiro jun. 2016 versão On-
pública no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva 14 (4); 1141- 1149, 2009. line ISSN 1413-6295.
ALVES, Cláudio Eduardo Resende. Nome sui generis: o nome (social) como
dispositivo de identificação de gênero. p. 1-10. Belo Horizonte: Editora PUC
Minas, 2017.

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CAPÍTULO 4 principalmente a fonte para obtenção de serviços básicos, como alimentação,
O BEM ME QUER: OS ENLAÇES DE UM GRUPO DE VOLUNTÁRIO vestuário e trabalho. Essas pessoas são denominadas de população em
NO SUPORTE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA DURANTE A
situação de rua (PSR), que consiste em um grupo populacional de grande
PANDEMIA DA COVID 19
vulnerabilidade social, heterogêneo, com características relacionadas à
pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, sem

ALICE FIGUEIREDO
moradia convencional regular, que utiliza logradouros públicos e/ou áreas
CAROLINA DE S. S BORGES degradadas, de forma temporária ou permanente (Casa Civil, DOU
DIANA VIEIRA DE AGUIAR
JANICE GORIS GARCIA
7.053,23/12/09). Esse segmento da sociedade, que habitualmente se utiliza
SANDRA SILVA FERRAZ de estratégias para obtenção de renda e alimento por meio da mendicância,
do fornecimento de alimentos pelos restaurantes, ou até mesmo da doação
Em 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde emitiu um decreto de transeuntes, bem como de trabalhos quase invisíveis e informais, como
que alçava a doença COVID-19 ao status de Pandemia. A partir de então, carregamento de carrinhos e vigilância de carros se viu, diante de um cenário
governos de todos os países iniciaram um monitoramento para avaliar a desesperador com o esvaziamento das ruas.
instauração de protocolos específicos de combate à disseminação do Dessa forma a pandemia de COVID-19 escancarou o abismo social existente
coronavírus, como uso de máscaras, higienização constante das mãos e na nossa sociedade e a desigualdade sobre a qual se estrutura o
medidas de restrição de contágio que consistiam, em sua maioria, em desenvolvimento urbano, evidenciando a gravidade da situação vivida pela
medidas de distanciamento e isolamento social. PSR e a insuficiência das políticas de atendimento para garantir direitos em
Em diversas cidades brasileiras foi possível acompanhar escolas migrando relação à vida, saúde, moradia e trabalho. Testemunhamos articulações de
para o ensino online, serviços não essenciais sendo paralisados, fechamento uma estrutura político social que perpetuam o olhar sobre a PSR como um
de comércio e restaurantes, e com isso uma redução drástica da quantidade estorvo ao ritmo ideal dos centros urbanos, negligenciando suas necessidades
e do fluxo de pessoas nas ruas. e buscando como solução sua realocação. Este cenário nos convoca a pensar
As medidas restritivas tomadas, em especial o lockdown decretado na cidade em estratégias possíveis de solidariedade da organização civil para compensar
do Rio de Janeiro em 13 de março de 2020, alteraram de forma brutal o
cotidiano de pessoas que encontram nas ruas não apenas a sua morada, mas

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a ineficiência do poder público que nega à PSR políticas que atendam aos e emocional em seus integrantes por conta do envolvimento que constroem
direitos básicos e fundamentais de todo e qualquer ser humano. com essas famílias.
Nesse sentido, novas soluções e formas criativas de enfrentamento dessa Diante do exposto e da necessidade de um maior entendimento da
pandemia têm surgido, especialmente baseadas na solidariedade de complexidade deste tipo de ação e das demandas invisíveis para que ele
organizações e movimentos sociais. (VIEIRA e KOHARA, 2020). Ao passo que continue ocorrendo e beneficiando a PSR, surgiu o questionamento norteador
algumas pessoas se trancavam em casa, outras, mesmo com risco de do presente artigo: Quais são as questões invisíveis que enfrentam os
contaminação, encaravam as ruas com grupos de voluntariado para suprir a integrantes deste grupo de voluntariado e que impactam diretamente no
necessidade de suporte da PSR, fornecendo alimentação, vestuário, suporte resultado de suas ações e na condição de vida das pessoas em situação de
emocional e outros tipos de assistências a esta população que, vítima de rua?
desigualdades sociais historicamente constituídas, é cotidianamente privada Dessa forma, o objetivo deste trabalho é entender o contexto de formação do
de seus direitos fundamentais. Projeto “O Bem me Quer” na pandemia de COVID-19, identificando suas
Um desses grupos nascidos durante a pandemia chama-se “O Bem me Quer”, histórias de sucesso bem como suas dificuldades de atuação junto a
que atua nas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro, em diversas frentes para dar população em situação de rua e em vulnerabilidade. Para tal, foram
o suporte que conseguem àqueles que são vistos como vulneráveis e realizadas rodas de conversa com fundadores do projeto “O Bem Me Quer” a
frequentemente são relegados pelo poder público. Assim, se apresenta como fim de registrar sua trajetória, a natureza de suas ações nas ruas da Zona Sul
um projeto social de apoio a PSR que acredita numa visão mais humanitária e do Rio de Janeiro, bem como as relações que estabelecem direta e
compartilhada para suportar, em alguma medida, necessidades de pessoas indiretamente com outros atores nessa rede relacional e também suas
em condições de vulnerabilidade, ajudando-as em sua realocação social. A percepções sobre as maiores dificuldades enfrentadas para realizar o trabalho
proposta do grupo “O bem me quer” é de realizar trabalho voluntário de voluntário de apoio a PSR.
doação de quentinhas, água, vestuário entre outras atividades, acompanhado Esta pesquisa teve a intenção de coordenar conceitos da Psicologia social sob
sempre da escuta ativa, olhar horizontal e criação de vínculo. Mas, se por um a perspectiva da Teoria Ator-Rede (TAR), que foi desenvolvida na década de
lado, esta ação gera benefício às PSR nos dias de ação nas ruas, ela cria outras 1980 pelos sociólogos Latour (1988), Callon (1986) e Law (1987) e surgiu com
demandas intensas e diárias, gerando entre outras questões sobrecarga física o intuito de elaborar novas visões sobre a constituição do social, descobrindo

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o que a existência coletiva, ou seja, o que chamam de sociedade, se tornou. A questões enfrentadas formam uma dinâmica capaz de impactar a PSR e
TAR surge como uma ontologia orientada ao objeto, cuja proposta é redefinir demais envolvidos direta ou indiretamente em suas ações. Para alcançar este
a sociologia a partir de uma sociologia das associações. Um dos principais objetivo, realizamos uma conversa online com a cofundadora do projeto,
objetivos da TAR é descobrir novas instituições, procedimentos e conceitos Mariana Miranda, que não apenas nos contou sobre o projeto mas também
capazes de coletar e reagrupar o social (Braga & Suarez, 2018). nos emocionou com seus relatos cheios de verdade e força.
Latour (2012) trabalha as intuições das ciências sociais não por meio de um
inventário de respostas, mas por uma lista de cinco grandes incertezas, que Trajetória do projeto
incluem questionamentos às formas de a sociologia tradicional tratar: 1. a
natureza dos grupos — tratando da forma contraditória de se atribuir Mariana Miranda, nascida em Belo Horizonte, tem 40 anos e chegou ao
identidade aos atores, em que não há grupo relevante, apenas formação de Rio de Janeiro para cursar a faculdade de Direito. Atualmente trabalha na
fronteiras dos grupos e de grupos antagônicos; 2. a natureza das ações — em Justiça do Trabalho e paralelamente realiza as ações do projeto "O bem me
cada curso de ação, toda uma variedade de agentes parece imiscuir-se e quer". Ela nos contou que sua experiência com voluntariado começou desde
deslocar os objetivos originais; 3. a natureza dos objetos — os tipos de quando ela era bem jovem, mas que somente há aproximadamente 5 anos
agências que participam das interações permanecem abertos; 4. a natureza iniciou seu trabalho com a PSR, período em que ela se tornou mãe e seus dias
dos fatos — questão de fato versus questão de interesse, o vínculo das ficaram mais ocupados, sendo assim, o tempo livre que tinha para o
ciências naturais com o restante da sociedade parece ser constantemente voluntariado eram as noites, quando suas filhas já estavam dormindo.
fonte de controvérsias; 5. relatos de risco — tipo de estudos realizados sob o Emocionada, nos confidenciou que este encontro com a PSR na realidade, fez
rótulo da ciência do social, contendo o próprio ato de escrever relatos. Como ela mesma encontrar a si própria, na imensidão do silêncio que as
o laboratório do cientista social, a tarefa exige perícia e habilidade na escrita madrugadas proporcionaram. Ela continua nos contando que o projeto surge
para descrever com objetividade as conexões presentes no fenômeno não apenas para cuidar da PSR, mas também para cuidar daquelas pessoas
investigado. em vulnerabilidade social, ou seja, aquelas que estão quase tendo as ruas
Nesse contexto, o grupo “O Bem me Quer” serviu, neste artigo, como objeto como destino final. O grupo procura, neste sentido, realizar um trabalho de
de pesquisa para que pudéssemos entender como sua proposta, atuação e reinserção social destas pessoas, tornando-as aptas a exercerem sua

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cidadania através de uma grande conexão em rede para suporte nas mais acreditam que a parceria é fundamental para que o trabalho seja realizado de
diversas necessidades. Até março de 2020, ela fazia parte de uma ONG que maneira eficiente, pois o Estado não vai dar conta sozinho, nem nenhuma
atuava nas ruas, mas que se desmobilizou com o início da pandemia, o que instituição de caridade ou beneficente vai dar conta, então o engajamento em
para ela foi uma incoerência, afinal a pandemia escancarou um abismo social rede é parte fundamental para que esse trabalho ganhe visibilidade e alcance.
gigantesco que vivemos na nossa cidade, e por isso seria um momento É incrível observar como a união de pessoas com um propósito em comum
imprescindível para que movimentos sociais estivessem presentes. pode proporcionar uma mudança significativa na vida de alguém, e
Reforçando essa ideia da necessidade de auxílio aos vulneráveis numa consequentemente esse sujeito modificado, proporcionar mudanças no meio
situação tão atípica, a Mariana teve a iniciativa altruísta de criar o seu próprio em que ele atua. Esses projetos, têm um olhar singular, acolhedor e empático
projeto com o intuito de ajudar aquelas pessoas mais desfavorecidas, pois ela sobre cada pessoa que cruza o seu caminho e busca encontrar o potencial de
sabia que a tendência era se agravar uma vez que em situação normal, PSR já modificação de cada um, interno e externo. Quantos ex-usuários de drogas
são ignoradas e marginalizadas, em uma pandemia com toda a crise que foram “salvos” dos vícios a gente não vê por aí dando depoimento,
econômica e sanitária acontecendo, eles seriam totalmente esquecidos. agradecendo a ajuda e lutando pela causa? É sobre isso, sobre dar sentido à
Então, ela nos contou que precisava fazer algo, e que não poderia imaginar vida de quem perdeu seu senso de pertencimento social. É muito mais do que
aquelas pessoas que estavam nas ruas perderem o suporte de projetos tão fornecer comida e abrigo. E nosso contato com o projeto “O Bem Me Quer”
importantes. Para Mariana, não havia vírus que a fizesse abdicar dos cuidados nos mostra que embora haja muitos desafios pela frente, há também uma
com os mais vulneráveis. Uma ação extremamente inspiradora e contagiante enorme satisfação em ser agentes de mudança.
que veio a atrair, posteriormente, muitos voluntários que também abraçaram Natureza das ações
a causa do “O Bem Me Quer” e foram às ruas atuar de forma ativa no contato O projeto "O Bem me Quer" iniciou suas atividades com a entrega de
e cuidado da PSR. quentinhas para a PSR, entretanto, como a própria Mariana nos contou, é na
O projeto conta ainda com outra fundadora, a Fernanda e atualmente com rua, e somente lá que acontece a identificação da necessidade mais premente
15 pessoas voluntárias, mais uma rede de ONGS parceiras, como a de cada uma das pessoas. O projeto toma o cuidado de não definir
Fraternidade sem Fronteiras, Resgatando Vidas, Nova Chance, entre outras, exatamente o que oferecer como ajuda. Claro que alguns itens são de
além de casas que acolhem dependentes químicos e abrigos municipais. Eles necessidade básica, como alimentação, roupas de frio e itens de higiene

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pessoal. Mas para além disso, o projeto segue um pilar muito importante, que sofriam violência doméstica, assédio moral, estupro, e outros. A Mariana nos
nas próprias palavras da Mariana foram: "Não é o projeto que determina o conta que para obter essas informações mais específicas do porquê do
que vai acontecer na rua, aliás, a rua é um universo em que a gente nunca indivíduo estar ali na rua, é necessário realizar muitas perguntas com o
sabe o que vai acontecer". Neste sentido, um outro pilar é a relação horizontal objetivo de entender o que mais importa para aquela pessoa naquele
com o objetivo de construir vínculos, pois qualquer movimento que acontece momento, se é abrigamento, vontade de voltar para casa, uso de drogas, ou
na rua só acontecerá a partir de um vínculo. E esse vínculo que nasce de uma qualquer outra demanda. Contudo, como algumas perguntas, a priori, podem
escuta ativa e de um olhar horizontal de boa conversa, faz nascer ser um pouco invasivas, é necessário a criação de um vínculo e uma relação
possibilidades. de confiança, que só é possível se o outro for visto como um igual.
O interessante do olhar de Mariana é como ela se permite ser afetada. Sanadas as necessidades básicas de comida, agasalho e honrando o pilar da
Ela tem sua ação próxima à forma que a TAR, que não predetermina, mas sim relação horizontal, inicia-se a montagem de um plano para realizar aquilo que
acredita que em seres actantes. O que pode ser um grupo como “O Bem me é importante para a pessoa. É um momento muito especial do projeto,
Quer” e a atuação de pessoas, ou mesmo instrumentos não humanos, todos quando a PSR acredita que pode voltar a ter planos, e ver numa folha de papel,
na mesma simetria, mas que sejam capazes de gerar um movimento, fazer os passos que a levarão até a realização do seu sonho. Pense no quão
uma diferença. Desse modo, todo o movimento, relação ou acontecimento, gratificante é saber que você foi responsável pela transformação na vida de
todo o encontro, é único. Ilustrando exatamente como é a relação de sujeito uma pessoa, por ela encontrar um novo propósito de vida e sair do limbo
para sujeito, sendo esses únicos e singulares. social em que, seja lá qual foi o motivo, ela foi parar. É como se essa pessoa
Durante conversas se descobre que um dos grandes determinantes para que que estava perdida tivesse uma nova chance de recomeçar. E mais ainda, ela
muitas pessoas estejam nas ruas é o rompimento de laços familiares. está disposta a recomeçar e retomar o controle da sua própria vida. De ser
Socialmente, a família é um dos pilares de maior influência para o ser humano feliz. A vida é uma só, e é tudo que nós verdadeiramente temos. Em condições
e, geralmente, é vista como apoio e segurança. É extremamente doloroso normais já é complicada e desafiadora, por que então não nos ajudarmos na
pensar que para muitos, não é assim a ponto de preferirem estarem medida do possível? Até onde vai a ação do Estado e a ação individual do ser
vulneráveis à fome, frio, violência e demais questões que se tem na rua. Não humano? Não há resposta, com os projetos sociais, especialmente com “O
se tratam de indivíduos “rebeldes” ou “desvirtuosos”, mas pessoas que

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Bem Me Quer” podemos ver que quem delimita seu poder de atuação é você de causa e efeito. E nosso motivo, deve sempre ser carregado de propósito
mesmo. Suas inconformidades, seu desejo de mudança e seu plano de ação. para ativar a nossa ação.
E é o inconformismo, a raiva e a sensação de impotência que motivam a Foi possível observar ainda que não apenas a PSR é modificada pelas ações
Mariana todos os dias a realizar estas ações nas ruas junto a PSR. Mas, ela do grupo “O Bem Me Quer”, porque uma vez que Mariana e os voluntários
consegue transformar toda essa intensidade em amor. Não há expectativa de se permitem estar lá naquele momento, junto a eles, ela se permite ser
retorno de nenhuma maneira, o projeto por si só já é um grande aprendizado. afetada e modificada por eles. Isso fica ainda mais claro quando a Mari mostra
Afinal, toda troca é. Existe todo um trabalho para movimentar aquela pessoa com orgulho suas fotos de cada um, lembra dos nomes, das datas de
a sair da rua, por mais que haja o respeito ao desejo do outro, entendemos aniversário, das preferências individuais, se preocupando, sofrendo, e
que o maior anseio é que todas as pessoas se sintam acolhidas e saiam das colocando verdadeiramente no mesmo nível. Ela não é a detentora do saber
ruas. Mas muitas vezes, as pessoas acabam voltando para as ruas ou ainda, que se impõe, e ao mesmo tempo ela tem seus momentos, sejam algumas
preferem estar ali, e Mariana nos conta que é importante entender que aquilo regras de segurança da equipe ou ainda algumas condutas que ela impõe para
não é fracasso e que sair dali também não é sucesso, é tudo movimento. Ela melhorar desempenhar o papel na rua. Ou seja, ela permite se molhar, mas
já se movimentou, então não está no mesmo lugar que antes. não afundar, até para que ela tenha condições para poder ajudá-los.
Existe uma frase que diz “É a utopia que move o ser humano”, e dando um
sentido Paulo Freireano a ela, a utopia é algo inalcançável, contudo Relações que se estabelecem com outros atores nessa rede
extremamente desejado, essa frase se traduz na fala da Mariana, pois o Latour utiliza em sua teoria o conceito de Deleuze e Guattari de Rizoma para
objetivo é a movimentação, o caminhar para frente. E o progresso é feito não entender o modo que as relações sociais se constroem. O termo, emprestado
só de sucesso, mas também dos fracassos e do que aprendemos com eles para da Botânica, refere-se a uma raiz de árvore que cresce sem direção ou forma
continuar a caminhar. A utopia, para Freire, não é apenas um sonho, mas sim definida, se espalhando. Assim, rizoma significa entrelaçamento e dizer que
um método através do qual todos os homens assumem a história da uma sociedade é rizomática é dizer que a mesma é essa rede, que foge de
humanização além da opressão (Felipe, S. 1979). Um termo bastante usado definições ou regras pré estabelecidas, pois essas não dão conta de toda a sua
na psicologia, a “motivação”, nos fala que o motivo mais a ação são os potencialidade. Apesar de vivermos em uma sociedade por vezes configurada
impulsos que não nos permitem ficar estagnados na vida, sendo uma relação de forma hierarquizada, observamos que o potencial de ação humano é uma

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estrutura em rede, onde levamos em consideração que cada um possui um e singularidades e todos os atores que atuam sobre eles dentro de uma
saber diferente e que cada saber importa e é valorizado como uma forma de estrutura social, até mesmo para ver estratégias efetivas.
contribuição válida e de potencial de modificação. Isso aproxima os agentes Nessa perspectiva, o grupo “O Bem me quer” valoriza a liberdade de escolha
de mudança uns dos outros de forma colaborativa e igualitária. desses indivíduos, partindo do pensamento de que qualquer movimento que
Essa ideia aproxima-se do trabalho realizado por Mariana e de sua relação se dê é gerado pelo vínculo. Vínculo esse “que nasce de uma escuta ativa e de
com a população de rua. O espaço de atuação de Mariana, Ipanema, ganhou um olhar horizontal”. Cada pessoa tem uma história de vida e um motivo
vários atores que se entrelaçam. Além do pessoal do próprio projeto, Mariana singular para estar nas ruas, que muitas vezes está relacionado ao
criou uma rede de assistência que envolve policiais e assistentes sociais do rompimento de laços familiares. Nem sempre as pessoas que ali se encontram
bairro. É conhecida em redes de assistência à saúde e emergência, como UPA querem sair das ruas, seja para um abrigo, seja de volta para casa. Quando
Botafogo e Copacabana, hospital Miguel Couto, locais que já possuem o querem ajuda para sair, Mariana intitula esses momentos como o dia do sim.
cadastro de Mariana, e assim vai, em suas próprias palavras, "costurando essa Então é necessário uma escuta atenta, livre de preconceitos, e de convicções
colcha de retalhos”. Atualmente, há pessoas empregadas em empresas, em de que se sabe o que é o melhor para o outro para perceber as nuances,
diferentes abrigos e há trocas com outras ONGs atuantes na Zona Sul. Ela nos necessidades e sofrimentos de cada indivíduo com o qual o grupo estiver
mostra que a atuação em conjunto nunca foi tão importante e significativa. interagindo, para assim, pensar em possibilidades de ação. É do vínculo
Então, Mariana em seu trabalho busca a interdisciplinaridade para se gerado por essa interação genuína que nasce a possibilidade de
aproximar de todos os atravessamentos que vêm em função de humanizar transformação. Assim, o grupo valoriza essa potencialidade do encontro como
aquele indivíduo. Desse modo, ela atua em conjunto com vários outros atores agente transformador.
para oferecer os recursos necessários para aquele sujeito assistido pelo PSR e a sociedade
projeto. Esse trabalho evita considerações que reduzem aquelas pessoas a
necessitadas de caridade. No sentido de que estar disponível para ajudá-las é Entender essa sociedade em rede é também perceber como ela vai sendo
muito mais do que apenas considerar válido uma esmola ou ações isoladas. É construída e operada e as várias relações que a interligam. A ideia do Rizoma
ouvir aquelas pessoas durante todo o processo, perceber suas necessidades é pensar a sociedade fora das predeterminações que na Modernidade tentam
categorizar e promover higienizações sociais na busca de um progresso da

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nação. Esses processos ainda têm reflexos no modo que a sociedade encara a vista. Dentro de uma sociedade na qual essas pessoas tem por direito poder
PSR, e é o que o grupo “O Bem me Quer” trazer, um novo olhar. fazer parte do ambiente social sem precisar estar dentro de exigências como
A PSR é compreendida muitas vezes como um grupo, sem nome, sem limpeza de seu corpo, que só é exigido a elas, seria natural elas poderem
individualidade, que atravanca o olhar capitalista e produtivo, ao que os entrar e comer em um restaurante tendo dinheiro para pagar. Esse
condena por sua própria condição. Nessa perspectiva, se tem a ideia que eles movimento gera a exposição do próprio preconceito social das pessoas que
são incapazes de produzir para a sociedade, e portanto inúteis. Se eles são se incomodam com o outro, e a conquista de uma equidade.
considerados incapazes de impactar a população, a população se vê como O que se relaciona com o conceito da Recalcitrância, que é o relacionar-
capaz de defini-los, e os atribui a um rótulo capaz de definir seu passado, se resistindo. Esta é percebida no momento do encontro, e molda o cenário,
presente e futuro. Logo, esse modo de pensar causa o silenciamento e a e se faz a partir da existência desses pontos de resistência. Assim se produz
redução das possibilidades além de estar em acordo com um pensamento novos cenários a partir das suas inserções.
causal, linear e engessado.
A ideia do Rizoma é justamente a quebra desses paradigmas e uma abertura
para um processo fluido, simétrico, sem início,meio ou fim e portanto, sem Considerações Finais
relações de causa e efeito. É a visão contemporânea de perceber nossa
existência no aqui e no agora, um fluxo contínuo baseado nas interações entre Partindo do olhar de Latour, fazer um bom relato é sair do papel apenas
actantes e não em uma perspectiva de um novo e um velho, como era do observador e se tornar atuante, entrar em cena, sentir as transformações
proposto na Modernidade. Assim as relações na sociedade contemporânea e fazer parte daquela rede que se forma na reunião de pessoas. Estar em
não poderiam se definir como algo estável e pré definido. E sim um conceito campo possibilita trazer novas traduções se comparamos a um olhar apenas
dinâmico, em constante transformação, em que as ações definem as redes. distante e teórico. Embora no contexto atual de Pandemia de COVID-19 não
Logo, perceber o trabalho de Mariana é defini-lo em suas relações e nas tenha sido possível nossa ida às ruas junto ao grupo "O Bem me quer", nossas
transformações que estas promovem. Mariana relatou na entrevista, como conversas com a Mariana e nossa visita ao contexto de algumas PSR atendida
por vezes levava pessoas em situação de rua para poder se sentar e comer em pelo grupo por meio de vídeos disponibilizado pela própria Mariana e
um restaurante. Ela responde que seu objetivo maior com isso é se fazer ser também no instagram do grupo "O Bem me Quer" nos serviu como ponte para

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aquela realidade, nos permitiu ir para além do entendimento e da obtenção quanto das demandas do próprio grupo que se vê limitado em suas ações,
de bases para construção deste artigo. Nos permitiu sentir! Sentir com toda uma vez que a demanda que chega é sempre absurdamente maior do que a
nossa alma, desde raiva, revolta até a inspiração e a esperança. capacidade de realizar uma ajuda direta ou até mesmo na promoção de um
Nesse sentido é importante identificarmos os atravessamentos que tivemos engajamento maior junto à outros elos desta grande corrente que une
a partir do contato com a Mariana, ainda mais dentro do contexto pandêmico, voluntários de diversos grupos sociais.
de crise política, sanitária e econômica que atravessa nosso país e atinge com Por outro lado, percebemos como, apesar dos desafios enfrentados, o grupo
especial magnitude as grandes capitais, como é o caso do Rio de Janeiro. Este consegue se entrelaçar bem com outros segmentos da sociedade, criando
contexto especial coloca ainda mais obstáculos não apenas para o trabalho parcerias e uma rede de assistência determinantes na criação de
de qualquer grupo de voluntários, mas principalmente a própria população possibilidades para as pessoas em situação de rua. A narrativa de Mariana nos
em situação de rua, seja pela estigmatização já vivenciada historicamente por atravessou de forma única. Nos emocionamos com as histórias e com o
este grupo, quanto em relação ao crescente número dessa população nas vínculo afetivo criado entre Mariana e algumas pessoas que hoje não mais se
ruas, o que significa diretamente um aumento de indivíduos em sofrimento, encontram nas ruas, tornaram-se amigos, com contato constante. Em onze
seja pelo motivo que tenha feito com que eles fossem parar nas ruas, num meses, pelas foram “23 vidas movimentadas para longe das ruas”. Pessoas
momento em que se preza tanto pelos cuidados com higiene e isolamento que retornaram para suas famílias em outros estados, outras que pediram
social com as palavras de ordem "Fica em casa". para serem levadas a clínicas de reabilitação e abrigos. Tudo feito de forma
O grupo “O Bem me Quer” é um grupo pequeno, que conta com absolutamente respeitosa ao tempo de cada pessoa, e principalmente
voluntárias e atua em uma pequena porção da cidade do Rio de Janeiro. atendendo a demanda da própria PSR.
Pudemos aprender, pela conversa que tivemos com a Mariana, os desafios Uma das frases que mais nos emocionou ao longo das nossas conversas com
enfrentados pelo grupo, destacando-se a dificuldade de engajamento a Mariana foi quando ela nos disse: “Nós temos uma capacidade infinita de
constante e permanente dos voluntários, muitas vezes por demandas de mudar a nossa realidade. Então é nisso que a gente acredita.”
trabalho e de vida pessoal. Isto se torna um grande desafio para a construção Muitas vezes, ignoramos uma realidade existente por não fazer parte da nossa
de uma rede estruturada, com papéis definidos e organizados que possa dinâmica de rotina. No mundo acelerado em que vivemos, sob uma ótica
atender as necessidades diversas vindas da população em situação de rua, capitalista que incita o modelo competitivo, nos esquecemos do que mais

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importa: nossa essência. A dicotomia humanística não existe. O ser humano importante para as pessoas em situação de rua, quanto para o projeto “O Bem
ruim e o ser humano bom são invenções que criamos desde a infância para Me Quer”, também deve ser para nós que estamos “de fora”. Porque se
justificar algo que nem sabemos explicar. Mas, os antigos filósofos nos pararmos para pensar, não estamos fora desse contexto social. Somos
mostraram que a essência humana é comum a todos. Ao realizarmos esse atravessados por eles a cada vez que saímos à rua e a realidade está ali, bem
trabalho com o projeto “O Bem Me Quer” fomos magicamente contagiadas diante dos nossos olhos, para nos lembrar que existem outras pessoas com
pelos relatos da Mariana. É quase impossível não se emocionar com os relatos faltas muito maiores que as nossas, que diante delas, as nossas se tornam
de sucesso, com os finais felizes e também com as perdas que ocorreram no pequenas. Muitas vezes, essas faltas nos sobram. Será que não temos uma
decorrer do processo. Não tem como não admirar a força, a determinação e palavra sobrando para dar a quem tem faltando? Um pouco de afeto? Um
a atitude. Atitude a qual pegamo-nos questionando diversas vezes do porquê olhar mais acalentador? Um alimento? Atenção? Será que necessariamente
não ter. as transformações precisam ser feitas de forma global e totalitária, ou
Somos capazes de culpar a falta de tempo, a falta de dinheiro, a falta de podemos exercer pequenas mudanças no mundo de alguém, ainda que
saberes, e diversas outras faltas que nem sempre são reais a fim de justificar pontualmente? Depois de conversar com a Mariana e ouvir os relatos de
uma falta que há dentro de nós mesmos. O olhar para o outro. Não digo que diversos casos de assistência que ela promoveu, sabemos que quando não se
as pessoas em situação de rua eram invisíveis para nós antes desse trabalho, tem nada, o pouco é muito. E o que me sobra é a exata medida da falta de
nunca foram. Nunca serão. Sempre houve um questionamento em relação a alguém.
PSR, a qual cruzava nosso olhar na rua, sobre como ela foi parar ali, quem ela E quando não sobra? Aí entra a rede de relações que vimos o quão
era, quais foram os seus sonhos e objetivos destruídos. Sempre foi inerente importantes são. Quando a Mari não é capaz de auxiliar de uma forma
o pensamento de ver através de uma pessoa. Mas, só. O pensamento seguinte específica, como por exemplo na cura de uma doença, ela vai atrás de pessoas
geralmente é “não posso fazer nada”. E será que não podemos? que possam. E novamente, vemos a importância do movimento e da rede.
A Mari nos mostrou que basta ter vontade e um plano de ação de curto prazo Quase como um trabalho de formiguinha em que cada um tem o seu papel,
para fazer acontecer. E que o saber é construído na prática, e principalmente, às vezes pequeno, mas que quando somado aos outros, forma um todo capaz
com o outro. Afinal, quando ela começou ela também não sabia e nos disse de uma grande mudança.
que na prática era diferente e singular. Uma vez que o movimento é tão

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O Bem Me Quer movimenta muitas pessoas vulneráveis e transforma cada com um pedido direto de uma das PSR. Ou seja, um momento agradável de
uma das vidas que atravessa de forma direta, com a escuta, assistência básica, comemoração junto aos amigos da rua e amigos do projeto, que gerou afetos
e tantas outras formas que sequer podemos mensurar, apenas quem vive muito positivos e preencheram a alma não só de quem recebeu a
pode sentir. Mas, ele também impacta de forma indireta e nós estamos aqui comemoração, mas também de todos os que puderam participar, ainda que
para dizer o quanto fomos impactadas e modificadas por essas experiências a distância, como foi o nosso caso.
que, mesmo não tendo vivenciado, por conta da pandemia, conseguimos A lista de aprendizados tem um sem fim de itens, entretanto, acreditamos que
absorver diversos ensinamentos e reflexões acerca do assunto. a maior transformação não fica no campo do objetivo, mas sim do que afeta
Primeiro, um olhar menos preconceituoso em relação às pessoas em situação e das consequências subjetivas que esse sentimento promove. Quando se
de rua. Deixar de vê-los como pessoas incapazes ou como a representação de tem acesso a este contexto, às experiências vivenciadas pelas próprias
um potencial perigo, ou até mesmo como um incômodo. Nem todos se pessoas que estão em situação de rua e também aos relatos da equipe de
sentem confortáveis em estar nessa situação e contar com um pouco de voluntários do projeto "O Bem me quer", percebemos que o guia que faz tudo
empatia é extremamente importante. Muitos são pedintes e o fazem por acontecer é o amor. Acompanhar a vida tão escassa e sofrida dessas pessoas
necessidade de sobrevivência, por falta de oportunidade de transformar por e ao mesmo tempo perceber a grandeza que muitas delas levam dentro do
conta própria a sua realidade. coração é ir do céu ao inferno em fração de segundos. Principalmente, porque
Segundo, entendemos que as necessidades não são aquelas identificadas por sentimos uma revolta imensa, uma vez que elas não estão ali por opção, coisa
nós mesmas. Embora saibamos que itens básicos como vestuário, que muitas pessoas acreditam, não é digno viver nas ruas e não é confortável
alimentação e água são imprescindíveis e urgentes, aquelas pessoas em saber que suas madrugadas precisam ser de alertas sob o risco de morrer. Isso
situação de rua são sujeitos que sabem identificar tantas outras necessidades não paga um prato de comida. Existem conflitos imensos dentro do coração
muito melhor do que qualquer observador, afinal de contas, trata-se de suas de cada PSR, sentimentos angustiantes que dividem espaço com tantos outros
próprias vidas. Pudemos acompanhar a distância alguns momentos muito medos. Sendo assim, é de experimentar um constante nó na garganta,
emocionantes, como as festas com direito a bolo e velas que acontecem acompanhar a rotina e entender como é a vida na rua. Por outro lado, o
sempre que uma das PSR faz aniversário. Estes momentos, por diversas vezes, serviço voluntário nos mostra que além de trazer um enorme aprendizado nos
foram descritos como "o momento mais especial que vivi na rua", e começou faz enxergar fora da bolha em que vivemos, nos permite sentir que existe uma

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felicidade menos efêmera do que aquela que obtemos com o consumo e os LATOUR, B. Mixing humans and nonhumans together: the sociology of a door-
prazeres individuais. Percebemos o que é felicidade compartilhada, que vem closer. Social Problems, v. 35, n.3, p. 298-310, 1988.
acompanhada da felicidade dos outros.
Este trabalho nos fez sentir a dura realidade da desigualdade social no LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede.
Rio de Janeiro e nos fez refletir sobre o dever cívico de pensar a sociedade de Salvador: EDUFBA, 2012. 400p.
forma mais coletiva, por amor e por dever quanto à humanidade que somos.
Gostaríamos de finalizar esse trabalho, agradecendo profundamente a LAW, J. Power, action, and belief: a new sociology of knowledge? Abingdon:
Mariana Miranda que não apenas disponibilizou horas para conversar com a Routledge Kegan & Paul, 1986.
gente, mas também por ela ter nos ensinado tanto e nos transformado com
suas palavras e seu exemplo de força, amor e fé. Fé no amor que existe dentro VIEIRA, M. A. C.; BEZERRA, E. M. R.; ROSA, C. M. M. População de Rua: quem
de cada um de nós. E por ser gigante, merece ser compartilhado. é, como vive, como é vista. São Paulo: Hucitec, 1994.

Referências FELIPE, S. T. O Conceito de Utopia na proposta Paulofreireana. Revista de


BRAGA, C.; SUAREZ, M. Teoria Ator-Rede: novas perspectivas e contribuições Ciências Humanas, v.3, n.6, 1984.
para os estudos de consumo. Cadernos EBAPE.BR, v. 16, n. 2, p. 218-231,
2018. Presidência da República (BR), Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.
Decreto no 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para
CALLON, M. The sociology of an actor-network: the case of the electric a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
vehicle. In: CALLON, M.; RIP, A.; LAW, J. (Eds.). Mapping the dynamics of Acompanhamento e Monitoramento e dá outras providências. Diário Oficial
science and technology: Sociology of Science in the Real World. Basingstoke: da União: República Federativa do Brasil; 2009. Disponível em:
Palgrave Macmillan, 1986. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/decreto/d7053.htm. Acesso em 23 de março de 2021.

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VIEIRA, M.A.C e KOHARA, L. GRANDES DESAFIOS HOJE E IMPREVISÍVEIS
AMANHÃ. Ausência de políticas públicas efetivas para população de rua. Le
Monde Diplomatique Brasil. 8 de Junho de 2020. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/ausencia-de-politicas-publicas-efetivas-para-
populacao-de-rua/. Acesso em 23 de março de 2021.

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CAPÍTULO 5 perguntadas sobre sua profissão, que também realizam trabalhos domésticos
UMA VISÃO DA TEORIA ATOR-REDE SOBRE A JORNADA DE UMA e cuidam dos filhos. Também é raro ver homens que são bem sucedidos em
MÃE DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19
seus empregos reconhecendo a importância dos serviços domésticos de seus
ELEN DA SILVA DE SOUZA
cônjuges, que muitas vezes ficam em segundo plano.
IGOR FOIS ABRAMOF
KÁSSIA CUNHA Os números indicam que a tripla jornada feminina é um problema real, mas a
abordagem da qual esse trabalho se baseará, a Teoria Ator-Rede (TAR), não
A pandemia do COVID-19 tem causado muitas mudanças na vida e no costuma usar a estatística enquanto meio para realizar ciência. É um método
comportamento da população. Uma das principais alterações está que busca “desierarquizar" a análise sobre a sociedade, buscando uma
relacionada às limitações de locomoção provocadas pelas medidas de cartografia de todos os atores envolvidos nos processos sociais. O principal é
distanciamento social. E com isso, a rotina e a dinâmica doméstica de milhões que os objetos de estudo sejam descritos, mas não interpretados, deixando
de famílias brasileiras sofreram mudanças drásticas. que eles ocupem o lugar de destaque. (FREIRE, 2006)
Uma das características mais marcantes da desigualdade de gênero no Brasil Dessa forma, o objetivo deste trabalho é explorar mais como tem sido a
está na relação com os trabalhos domésticos e essa situação tende a se experiência de vivenciar a pandemia do COVID-19 para mães de crianças que
agravar durante a pandemia do COVID-19, já que o fechamento de escolas e estão em casa estudando por EAD, em especial no que tange ao acúmulo de
a adesão em massa ao Ensino à Distância (EAD) significou que as crianças e diferentes funções em um mesmo local: o lar. Na primeira seção, será feita
adolescentes estão passando mais tempo dentro de casa e muitas faxineiras uma exploração de como a TAR pode ser aplicada na análise da tripla jornada
e empregadas domésticas acabaram sendo dispensadas como forma de evitar feminina. A segunda seção conterá reflexões que o grupo teve ao ler diversos
o contágio ou até mesmo como corte de custos. relatos de mulheres que acumulam diversas funções na pandemia. A terceira
O trabalho doméstico, que recai desproporcionalmente sobre os ombros seção será dedicada à vivência de uma mãe, Kelly, casada, mãe da Manuela
femininos, é uma das facetas do atual sistema produtivo que é menos de 5 anos e profissional de saúde exercendo seu ofício durante a pandemia
financeiramente e socialmente reconhecida. na prefeitura de Lavras/MG. Por fim, a quarta sessão será o espaço onde cada
Mais do que a invisibilidade econômica, há também o apagamento social, já integrante deste trabalho irá dar uma relato pessoal sobre como a elaboração
que dificilmente mulheres que estão empregadas fora do lar falam quando

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do mesmo nos atravessou, em como fomos impactados por ele e que pessoa limpar a casa dos outros e cuidar dos filhos dos outros; o mercado de trabalho
somos depois de ele passar pela gente. (tanto pela sua faceta institucional quanto pelas pessoas que o compõem) que
dificulta ao máximo a inserção de mães, tanto por contratar menos essas
O QUE TEM DE TAR NA TRIPLA JORNADA FEMININA? mulheres quanto pela demissão de muitas delas após o término da licença
maternidade; o Estado que não oferece políticas públicas suficientes para
A Teoria Ator-Rede (TAR) foi criada por um grupo de sociólogos, antropólogos essa população; e até a pandemia do COVID-19, que abalou as estruturas
e engenheiros franceses e ingleses, dentre eles Bruno Latour, Michel Callon e materiais, emocionais de muitos e teve um impacto grande na vida de mães
John Law. Dentro dessa teoria, os atores são todos aqueles que deixam traços trabalhadoras. A lista poderia seguir de forma quase que infindável, incluindo
no mundo, sejam eles pessoas, coisas, animais, instituições, máquinas, até mesmo os eletrodomésticos e produtos de limpeza, já que muitos utilizam
objetos, etc. Logo, não se refere apenas a humanos, contrariando a ideia de um design feito “para mulheres” (ONO & CARVALHO, 2005) e são os próprios
“ator social” mais característico da sociologia, inclusive o que faz Latour objetos de trabalho, sendo impossível dissociar a trabalhadora de seu
considerar melhor o uso da palavra “actante”. (FREIRE, 2006) instrumento.
Ao analisarmos a tripla jornada feminina, podemos traçar a existência de Como redes, Latour nega a ideia da passagem de uma informação por longas
alguns atores estando no “centro” disso tudo (se é que é possível definir um distâncias sem nenhum tipo de interferência, o que é característico da rede
centro no emaranhado de atores e redes coexistindo e se alimentando) as cibernética. Para a TAR, redes seriam os fluxos, circulações e alianças em que
próprias mulheres que realizam a tripla jornada. Entretanto, ainda há muito todos os atores envolvidos interferem e sofrem constantes interferências.
mais actantes nesse processo: os homens que não realizam nenhuma Elas funcionam mais em termos de descrição desse movimento circulatório
atividade doméstica e de cuidado, seja por comodidade característica do lugar do que a própria exposição dos elementos. Assim, a rede é um conjunto de
de privilégio ou por acreditarem em uma ideologia machista; as mulheres conexões em que um ponto pode ser ligado a qualquer outro. (FREIRE, 2006).
pobres, em geral pretas, que trabalham de empregada doméstica ou babá Então por rede, nesse contexto de tripla jornada, podem ser identificados
para que as mulheres mais ricas, e em grande maioria brancas, trabalhem fora alguns movimentos: O machismo estrutural da sociedade enquanto prática
de casa; as filhas mais velhas dessas empregadas domésticas que cuidam de constante e com implicações reais sobre as ações dos indivíduos; as
seus irmãos mais novos e limpam a própria casa para que suas mães possam campanhas de publicidade, que colocam as mulheres no centro dos anúncios

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de produtos para casa e os homens como público alvo de produtos como desse trabalho é fundamental na vida das outras pessoas da família, que
carros e cervejas, enquanto modeladora de ideais a serem alcançados; a vendem sua força de trabalho em troca de salário. (VARGAS & ROTENBERG,
memória de muitas mulheres, que enxergam em suas mães e avós exemplos 2007). Ou seja, o trabalho feminino é fundamental para a manutenção da
de enquadramento social. Em suma, toda a complexidade de circulação de sociedade capitalista, mas é muito pouco valorizado por ela.
conexões, que são muito mais do que as que foram até agora citadas, estão Logo, dar voz a mulheres que estão nessa situação é uma excelente proposta
relacionadas a esse processo. É importante ressaltar que os atores e redes que pode ser alcançada através da TAR. É possível tirar da invisibilidade alguns
mencionados até se referem a um hemisfério mais amplo, e de certa forma desses relatos, mas não de forma interpretativa, como se as figuras femininas
até abstrato e esquemático, da tripla jornada feminina como um todo. Cada fossem colocadas em uma mesa de cirurgia para serem dissecadas por
mulher nessa situação possui uma história única, com atores e redes pesquisadores supostamente neutros, tudo em prol da ciência. O objetivo é
específicas, sendo impossível usar a TAR como um conjunto de preceitos a ser o mais descritivo possível, deixando espaço para que os próprios objetos
serem aplicados para cada fenômeno social, esse incluso. de estudo dirijam a sua própria narrativa e contem a sua própria história.
Enquanto método, a TAR não possui um manual bem definido para sua Afinal de contas, são tão seres humanos quanto os cientistas.
aplicação, sendo fundamental que o pesquisador evite emitir interpretações
sobre seu objeto de estudo, buscando apenas descrevê-lo de sua melhor EXPERIÊNCIA COM O RELATO JORNALÍSTICO DE MÃE TRABALHADORAS NA
forma possível. (FREIRE, 2006) PANDEMIA
Essa abordagem é interessante em um trabalho sobre a tripla jornada A vida é feita de caminhos tortos, encruzilhadas, bifurcações, pontos
feminina, já que esse é um tema especialmente invisível. O trabalho feminino altos e pontos baixos. E para a realização deste trabalho não foi nada
no próprio lar não possui valor, já que não está vinculado diretamente a diferente. A ideia inicial para essa sessão seria a de expor e fazer uma análise
nenhuma produção de mercadoria a ser comercializada, assim, todos esses em cima de relatos de mulheres que foram atingidas pelo peso da tripla
afazeres são exemplos de atividades que não entram no mercado e, jornada e ainda estão tendo que lidar com os efeitos da pandemia do COVID-
consequentemente, não estão no circuito monetário de produção social. É um 19, que fechou as escolas e deixou muitas mães de home-office. Esses relatos
trabalho que possui produto (o bem-estar vindo de uma casa arrumada, o seriam coletados através da leitura de matérias jornalísticas. Com o nosso
cuidado dos filhos, etc), mas não possui valor. Mesmo assim, o produto fruto aprofundamento sobre a TAR, percebemos que essa não seria a melhor forma

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de abordar a questão que está sendo estudada. Ao mesmo tempo, essa nossa Nota-se que as reportagens escolhidas foram de grandes veículos de
experiência em pesquisar e ler essas matérias gerou boas reflexões e mídia, dois deles sendo estrangeiros. Será que nós, enquanto grupo,
atravessamentos que são dignos de nota. confiamos mais nos relatos vindos de grandes empresas? De forma
Nos chamou a atenção o relativo grande número de publicações que inconsciente, é bem possível que sim, já que os mesmos passam mais
abordam esse tema. Apesar de, como dito anteriormente, o trabalho credibilidade pelo seu tamanho e até mesmo são mais agradáveis de ler por
doméstico ser, em grande medida, invisível, praticamente todos os grandes conta do investimento que essas empresas possuem em design. Mas quando
portais de notícias possuem uma matéria sobre o tema, fora aqueles que tratamos desse tema de maneira consciente, nossa visão muda, já que o que
estão mais à margem do grande mercado.Se comparado à grande circulação estávamos buscando era um bom relato, o que não necessariamente significa
de informações, opiniões e matérias que circulam diariamente na internet, o que ele deveria chegar por nós através desses conglomerados famosos.
observado talvez não seja tão volumoso assim. De qualquer forma, havia bem E quanto ao teor dos relatos? Fazendo uma análise crítica do processo de
mais relatos disponíveis sobre o tema do que o espaço proposto nesse artigo escolha, podemos dizer que escolhemos aqueles que consideramos como
para tal. Então, como escolher quais entram e quais não entram? sendo os “melhores”. Mas o que significa ser o “melhor”? Certamente, para a
Essa foi a primeira reflexão que surgiu, mas apenas após percebermos TAR essa classificação não existe; mas para nós, havia. Buscamos aqueles
que não iríamos usar as reportagens da maneira que havíamos previsto. relatos que continham mais informação junta, aqueles com as realidades mais
Primeiramente nos tornamos capazes de entender que os pesquisadores não tristes, que mais cabiam no ponto que queríamos chegar: que a tripla jornada
são neutros para enfim contemplar os nossos próprios vieses e questionar feminina é um problema para essas mulheres e ele se agravou com a
aquilo que escolhemos. Foram selecionados os artigos: As mães demitidas pandemia. Então, ainda que de forma inconsciente, nós, inicialmente,
durante a pandemia: "Tentei conciliar trabalho com meu bebê, mas perdi o buscamos enquadrar os relatos no nosso texto, e não deixar que os relatos e
emprego" da BBC Brasil de outubro de 2020; Pandemia impacta saúde mental as experiências provenientes do estudo ditam o rumo do artigo, como deve
materna e dá sinais de estresse e depressão do Estadão de maio de 2021; e ser feito pela TAR.
“Não estudo nada há um ano. Fico em casa limpando e cozinhando” do El País Um outro ponto que nos levantou questionamento foi o próprio papel do
Brasil de abril de 2021. jornalismo enquanto um ator nesse processo todo. Ao ter maior contato com
a TAR, nos tornamos mais sensíveis a tentar perceber um número cada vez

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maior de participantes. Foi exatamente através desses grandes jornais que jornada não remunerada, criando diversas redes entre os leitores; também é
conseguimos ter acesso a um número grande de vivências, ainda que estejam um espaço de propaganda para as mais diversas empresas, que dificultam a
podadas por um recorte muito específico, que é o tema da matéria. Mas com vida de mulheres trabalhadoras, além dos próprios anúncios muitas vezes
qual objetivo o jornalismo age? Em uma visão mais otimista, a função social reforçarem essa divisão de gênero do trabalho.
do jornalismo, em uma sociedade democrática, é a de informar de modo Mesmo com todos os indicativos de que não seria a melhor abordagem
qualificado, sendo a qualidade da informação baseada em ela ser verificada, realizar uma simples coleta e análise dos relatos vistos em jornais, só não é
relevante, contextualizada, plural e envolvente (REGINATO, 2020). Olhando ator para a TAR aquele que não deixa rastros (FREIRE, 2006). Então, é
para um viés mais cético, o jornal nada mais é do que um negócio que impossível dizer que essas reportagens não foram atores fundamentais para
depende de dinheiro de anunciantes e que está diretamente relacionado ao nosso texto, tendo em vista de que fomos todos bastante impactados por
alcance da matéria ao público. eles.
Olhando por esse prisma, as matérias lidas ocupam esses dois espaços. De uma forma mais objetiva, foram objeto de reflexões sobre a aplicação da
De fato, elas foram informativas e, pelo nosso julgamento, continham TAR e de amadurecimento acadêmico. Contudo, eles nos atravessaram de
informações de qualidade que são condizentes com a realidade (pelo menos forma mais profunda ao entrar em contato com a realidade (ainda que sob
a realidade vista por um determinado ângulo). Por outro lado, elas possuem um ângulo específico) de algumas mulheres. Seja para reforçar a experiência
certos recortes e foram escritas de forma a gerar o maior acesso possível já existente ou para abrir a cabeça para outras vivências, esses relatos
(perceptível pelos títulos chamativos e pela própria natureza no mercado certamente fizeram conexões conosco. Chamou muita a atenção em suas
jornalístico). Isso nos levou a refletir se de fato o processo que levou a histórias, de uma maneira mais ampla, a idealização do papel de mãe, que
presença desses relatos dentro das matérias teve os mesmos vieses narrativos tem que cumprir todos os requisitos que a sociedade impõe, mesmo que isso
que nós fizemos ao selecionar as vivências para nosso artigo. A simples gere culpa e sofrimentos quando por sobrecarga não é possível realizar tudo.
impossibilidade de responder a essa pergunta já nos dá mais um indício que Também ficamos reflexivos ao entender mais como esse é um fenômeno que
usá-los da maneira como estávamos pensando não se adequava à TAR. Ainda, perpassa diversas classes sociais, ainda que sempre vá existir peculiaridades
notamos que o jornalismo enquanto ator, é extremamente multifacetado. Ao a partir do recorte feito. Dessa forma, agradecemos imensamente essas mães
mesmo tempo em que é um veículo que foi usado como denúncia para a tripla que relataram um pouco sobre suas vidas e tantas outras mulheres que lemos

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ao longo do estudo para esse artigo e que foram muito importantes para a assim, pudesse relatar sua vivência diária e como foi afetada com a pandemia
realização do mesmo. Ainda que suas palavras não tenham sido citadas, suas do covid-19.
presenças são inegáveis.
“A pandemia começou em um momento muito delicado para minha família.
UMA MÃE NA PANDEMIA: O RELATO DE KELLY Meu esposo havia acabado de perder a mãe por conta de uma doença
Ser mãe no meio da pandemia é um desafio grande e um aprendizado sem respiratória e de repente o mundo todo passou a temer uma doença
fim no meio de tantas incertezas. Sabemos que a sociedade construiu a visão semelhante. Nesse momento eu não estava trabalhando fora, eu estava em
da mãe como heroína, uma super mulher. Só esqueceram da parte que a um ‘gap’, planejado por motivos pessoais, de 5 meses do meu último
mulher também é um ser humano e com todas essas características criadas, contrato, dessa forma eu podia dar todo o suporte para o sofrimento dele e
obteve uma pressão absurda para essas mães. para minha filha de 5 anos, que logo teve que se adaptar as aulas de forma
A rotina de aulas online, trabalho de casa e mais trabalhos profissionais (como remota “online”, e a ficar “presa” em casa.
algumas mães desempenham) se tornam um verdadeiro malabarismo. Nesse Com isso, ela inicia sua narração falando sobre a morte de sua sogra e o
trabalho, o papel proposto pela TAR traz a figura da mãe em seu dia a dia no quanto isso afetou sua família. Ela se viu em uma situação de luto dando
contexto de pandemia, a pressão que isso gera na saúde mental. A princípio, suporte emocional para seu marido, ajudando sua filha com o ensino escolar
tentamos entender a situação tendo calma, reclusos dentro de casa tivemos em uma modalidade inesperada, além de ter questões pessoais e o cuidado
mais tempo para brincar com nossos filhos mas não imaginávamos que em com a casa. E no ápice de tantas preocupações e responsabilidades ela se viu
maio de 2021 ainda estaríamos vivendo em um país que está longe de ter “presa” em casa.
vacina para todos. Mas um mês depois do início da pandemia fui chamada a retornar ao
Buscamos como base desse trabalho a vivência de uma mãe que está inserida antigo emprego. A dúvida foi cruel, mas eu senti que poderia me cuidar o
nessas multitarefas, apresentamos a Kelly, nutricionista, mãe da Manuela de suficiente para não me contaminar nas condições de trabalho que foram
5 anos e irmã da aluna Kássia integrante desse trabalho. propostas. A ideia de ter rendimentos num momento em que o emprego está
Por via, entramos em contato pelo aplicativo WhatsApp, sendo enviado para difícil de se encontrar e as perspectivas não são favoráveis pontuaram para
nós um documento com seu depoimento sobre o assunto abordado para que que eu aceitasse também. E tem dado certo, graças a Deus.

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Assim como a Kelly, muitas mães ficam nesse impasse - Preciso trabalhar mas Mesmo com a ajuda dos homens na colaboração de tarefas domésticas
será que vou dar conta nesse momento desafiador? durante a pandemia, como é o caso da Kelly, percebemos como existe um
Além disso, existe o medo de contaminação, como o caso da Kelly( desequilíbrio de gênero.
profissional de saúde) ainda assim, ela considera e avalia que com cuidados E com isso, sentimos a estafa mental e sobrecarga nas mães que podem levar
ela poderia aproveitar essa oportunidade de trabalho ainda mais nesse a desdobramentos como depressão, ansiedade e todo tipo de transtorno
momento difícil onde estamos sofrendo cada vez mais com o desemprego, e mental. Convenhamos, está difícil para todos e até certo ponto é esperado
mesmo que arriscado ela optou em aceitar essa oportunidade de trabalho. que cada um de nós se sinta um pouco esgotado diante de tantas mortes
Contudo, tem sido bastante desgastante manter as coisas em ordem. A causadas por esse vírus que é assustador e novo para o mundo todo.
apreensão e insegurança ameaçam nosso equilíbrio emocional diariamente. Em um período como a pandemia é esperado que o nosso corpo reaja
O medo que a doença atinja nossa família (pais, irmãos, principalmente) que com estresse, o problema é que esse vírus está se alastrando e até sofrendo
está longe da gente, corrói por dentro. mutações em uma realidade que ainda estamos caminhando para um lugar
As demandas em casa ficaram intensificadas por conta do tempo dispensado de “vacina para todos”. Esse conjunto de problemáticas nos leva a uma
ao trabalho e as necessidades de uma criança de 5 anos sem poder sair de situação que dispara um gatilho de tensão a todo tempo.
casa. A minha filha exige atenção o tempo todo e nesse período de pandemia, Ao mesmo tempo em que lidamos com o coronavírus, vemos essas mães
ela teve contato com outras crianças apenas ocasionalmente. As mulheres convivendo com a pandemia do esgotamento, de jornada dupla e tripla com
sempre foram multitarefas, mas hoje em dia, até professora alfabetizadora cansaço físico e mental.
tenho que ser, mas meu marido, que está em trabalho remoto, tem dividido
muitas tarefas comigo, o que deixa as coisas um pouco mais leves. Mesmo OS AUTORES COMO ATORES: O QUE NÓS FIZEMOS DESTE ARTIGO
assim não tem sido fácil! Para ninguém! Este trabalho conta também uma história rica de nós autores - como atores,
Torço para que a população seja vacinada em sua maioria para que a trazendo nossa vivência de como nos sentimos atravessados por tudo que
gente consiga sentir a paz novamente. estudamos para esse trabalho, nosso contexto social, como estamos durante
a pandemia e todas as implicações que surgem disso.

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Eu Kássia, aluna e mãe do Enzo de 10 anos, me sinto muito integrada com inclui estar atenta se ele está acompanhando bem as aulas, sentar e fazer o
esse tema abordado no presente trabalho. No início de 2020 me casei, mudei dever de casa e estudar com ele para as provas, que são semanais, mais o
para o Rio de Janeiro e em meio a essas mudanças todas deixei meu filho na simulado que é mensal.
cidade de Macaé, com o pai dele. Com toda mudança que também afeta ele, percebo como meu filho é
O que me levou a deixá-lo com o pai foi a questão da escola, o pedido do meu dependente desse cuidado apesar de eu e meu marido estimulá-lo a fazer as
filho em continuar na casa que ele cresceu e toda demanda que ele teria que coisas por conta própria desde que estabelecemos uma rotina, que ele ainda
lidar com a mudança da minha vida. está aos poucos se adaptando.
Assim que me mudei iniciei também a faculdade de psicologia na IBMR e no Mesmo não trabalhando fora me sinto inserida em um turbilhão de emoções
semestre seguinte me transferi para a Santa Úrsula. Em meio essa mudança e preocupações, quero dar conta de tudo e a sensação é que não tenho tempo
toda de vida de uma hora para outra, precisei me adaptar ao ensino online, ou saúde mental suficiente para levar as coisas com mais leveza. Um fator que
meu marido com o trabalho remoto, e todo esse caos e medo de como lidar tem nos prejudicado muito nessa quarentena é o pouco espaço que temos
com esse vírus, e o mais doloroso, ficar longe do meu filho por tempo dentro de casa pois faltam momentos de silêncio para relaxar durante o dia e
indeterminado. essa questão tem sido mais difícil ainda para o meu marido, o que levou-o a
Nesse tempo de incertezas fiquei longe do meu filho por nove longos meses, considerar passar uns dias por mês na casa dos pais dele para poder cuidar da
tendo contato por ligações de vídeo todo dia. Em dezembro de 2020 com saúde mental em uma casa maior, visto que decidimos que por enquanto
todos os cuidados fui buscá-lo na casa do pai para passar uns dias comigo aqui todos aqui em casa não tomarem vacina, não vamos lidar com todo o
na minha casa. Importante dizer nesse meu relato que a guarda do meu filho transtorno e exposição de uma mudança.
sempre foi compartilhada e desde 2019 em meio a alguns descasos em Iniciei também um tratamento com um psiquiatra e estou procurando um
relação a escola ( e agora na pandemia em relação a saúde física e mental) psicólogo(a) para passar por esse período, assim como estou mantendo o
ele próprio decidiu viver comigo, o que me deu mais força para continuar cuidado com o tratamento psicológico do meu filho percebo que está na hora
lutando pela guarda unilateral. de eu procurar ajuda também.
Há uns dois meses, tenho vivido intensamente a rotina de cuidar da casa,
aulas, trabalhos e provas da faculdade mais as aulas online do meu filho. Isso

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Por fim, sinto que essas questões me colocam em uma situação angustiante pode colocar roupas desse tipo". A sociedade passa a ideia de que a criança
pois me preocupo também com minha família que a mais de um ano, e esse só tem a mãe e que o pai é só para bancar as despesas tirando o dever que
processo lento de vacina não nos dá otimismo na maior parte do tempo. ele tem de ser pai de “verdade”. Dividindo as tarefas de casa e
Ao mesmo tempo que me sinto mal com toda essa situação, me sinto Compartilhando por igual com a mãe as obrigações com o filho. É ignóbil ver
privilegiada também por manter meu filho seguro sob meus cuidados, por dar o quão abaladas e exaustas essas mulheres/mães ficam com tantos afazeres
continuidade aos meus estudos em plena pandemia e por poder contar com que são atirados diante de seu colo sem sequer terem a sensibilidade do que
o apoio de um marido paciente e cauteloso para resolver nossos problemas. se é notável defronte aos seus olhos. A sociedade se esconde dentro de uma
Mesmo que o pessimismo me pegue vendo todas essas notícias tristes que bolha da perfeição onde só querem o que é certo para eles sobre o mundo
está acontecendo não só no nosso país mas no mundo, e mesmo com essas afora, sem nem pensar no dano que é causado com suas exigências e com
questões políticas que nosso país e o nosso governo se encontram ( o que já suas incansáveis críticas de um ser, desprezando o fato de que a realidade
é uma dor de cabeça a parte) ainda me resta uma esperança que até o final dessas mães não é a mesma que a deles.
do ano de 2021, 70% ou 80% da população estará vacinada, e todos Para mim, Igor, esse trabalho foi uma oportunidade desafiadora, mas ao
estaremos mais seguros para dar continuidade em nossas vidas. mesmo tempo compensatória. Em primeiro lugar, porque nem sempre é fácil
Particularmente eu Elen, estudando mais a fundo sobre o tema deste se entender enquanto privilegiado. Estar em contato com diversos materiais
trabalho, pude parar para refletir sobre o tanto que essas figuras femininas de estudo, sejam eles artigos acadêmicos, reportagens de jornais e o relato
são vistas pela grande maioria só como mães e excluindo o fato de que da Kelly Cunha me fez entender mais a magnitude do problemas que é a tripla
também são mulheres. A sociedade prega algo que não lhe diz respeito de jornada feminina. Essa é uma questão que eu já sabia da existência, só nunca
que elas devem ficar com o filho em qualquer situação, parei para olhar um havia me debruçado sobre ela da maneira que fiz para escrever esse artigo.
pouco mais para fora da minha realidade do dia a dia tendo em vista que não Tudo isso me fez olhar para mim mesmo e sobre a realidade à qual estou
sou mãe. Mas posso tentar ao menos entender a dor e todas as preocupações confinado nesses últimos 14 meses: minha casa.
que são colocadas diante do colo delas. Sempre escutava as pessoas Moro com meus pais, ambos trabalham, e estamos todos em home-office
perguntando para as outras mães "Onde está seu filho? Deixou sozinho em desde que começou a pandemia. Logo quando começou esse período, as
casa?." "O que seu filho vai pensar se você se vestir assim? Você já é mãe, não atividades de casa recaíram principalmente para minha mãe, que já realizava

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a maioria das tarefas ela mesma e tomou para si as novas que surgiram. Eu nunca ocorre sem nenhum impacto. Mas, após esse processo de adaptação,
também sempre realizei alguns desses trabalhos, mas era sempre no tom de fico muito feliz de ter tido essa experiência. O meu estudo da TAR (que ainda
“estou ajudando minha mãe na casa”. Já antes desse trabalho havia tomado está só no começo) foi muito importante para me libertar de algumas amarras
maior consciência dessa questão e aumentei a minha carga de trabalho, bem deixadas pela economia, em especial o zelo excessivo por número e inferência
como parei de entender a minha tarefa como “estou ajudando” para “isso é estatísticas. Mesmo sabendo que existe a abordagem quantitativa também
um trabalho como qualquer outro e não estou ajudando ninguém, estou na psicologia, esse maior cuidado com o indivíduo como ser único que a TAR
fazendo por mim e pela casa, já que isso não é responsabilidade inerente da oferece certamente me fez ver o mundo e a própria psicologia de forma
minha mãe”. Passar pela experiência da escrita desse artigo me fez ter uma diferente.
sensibilidade maior à invisibilidade do trabalho feminino não remunerado e
me fez um homem mais consciente.A verdade é que o lugar de privilégio é Conclusão
muito cômodo e sair dele significa, primeiro, entender que existe um A pandemia do novo coronavírus(Sars-CoV-2), causador da síndrome
problema e admitir que eu sou parte dele. E não é um processo muito simples respiratória covid-19, está sendo desgastante para todos, mas quem está
o de admitir que está errado e tomar atitudes para buscar não repetir as lidando de forma desafiadora, sem dúvidas, são as mães.
mesmas atitudes problemáticas que eram normais até então. Certamente A necessidade de intercalar vida familiar, profissional, trabalho doméstico
esse não é o fim da minha jornada enquanto uma pessoa melhor e há ainda mais amor e cuidados com os filhos está nos levando para momentos de
muito que eu preciso aprender e fazer, mas a elaboração desse artigo não esgotamento físico e mental.
passará despercebida pela minha história. Além disso, percebemos como a mulher, que sempre lidou com
Não só o tema do trabalho foi impactante para mim, mas também a preconceitos e sendo quase sempre inferiorizada ao longo da história, nunca
metodologia utilizada. O uso da TAR como método de escrita me é muito estando ao lado ( no sentido de igualdade) com o homem, precisa do trabalho
novo, especialmente se for levado em consideração minhas experiências como forma de afirmação de quem ela é como indivíduo na nossa sociedade
prévias. Sou praticamente formado em economia e, nessa área de estudos, a o que vai além de um meio de sobrevivência.
metodologia é completamente oposta à da psicologia. Isso me fez repensar Sabemos que nossa sociedade que ao longo dos anos vai evoluindo mas que
tudo que entendia até então como ciência, em uma troca de paradigma que ainda coloca a mulher com diferença em relação a gênero, onde é julgada por

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corpos, roupas, atitudes. E sendo mãe, essa diferença é completamente https://www.bbc.com/portuguese/geral-53644826 acesso em: 8 de maio de
evidente seja no ambiente de trabalho, em casa ou até em comerciais de TV 2021.
que sempre colocam a mãe como frágil e ter que viver em prol da criança.
Nesse recorte, observamos como a vida de Kelly, como mãe e profissional de ALMEIDA, Cássia. Aumenta diferença na carga de trabalho doméstico entre
saúde atuando na prefeitura de sua cidade, forma esse exemplo de mãe com homens e mulheres O Globo, Rio de Janeiro, 4 de junho de 2020. Disponível
dupla jornada. Equilibrando o trabalho doméstico, sua vida emocional em https://oglobo.globo.com/economia/celina/aumenta-diferenca-na-
empenhando-se para manter sua vida estável tanto pessoal quanto carga-de-trabalho-domestico-entre-homens-mulheres-24461795 acesso em:
profissional em tempos de pandemia. 8 de maio de 2021.
Colocamos também nossas vivências com atores participativos dentro deste
conjunto, como uma mãe estudante, uma acadêmica que percebe a luta BETIM, Felipe. Não estudo nada há mais de um ano. Fico em casa limpando e
dessas mulheres mães e um aluno que procurou entender melhor e ter um cozinhando. El País, 13 de abril de 2021. Disponível em:
olhar empático diante de tudo que se é abordado, tendo mais consciência da https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-04-13/nao-estudo-nada-ha-um-ano-
luta dessas mulheres. fico-em-casa-limpando-e-cozinhando.html Acesso em: 8 de maio de 2021.
Com tudo, todo embasamento feito durante todo o trabalho consiste na DELBONI, Carolina. Pandemia impacta saúde mental materna e dá sinais de
teoria ator rede tem sobre a percepção de uma realidade da sociedade. estresse e depressão. Estadão, 03 de maio de 2021. Disponível
em:https://emais.estadao.com.br/blogs/kids/pandemia-impacta-saude-
mental-materna-e-da-sinais-de-estresse-e-depressao/ acesso em:
04/05/2021.
De Paula, Priscilla. Mães à beira de um ataque na quarentena. 26 de junho de
Referências 2020. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/blogs/mae-sem-
Adamo Idoeta, Paula. Mães estão no limite: famílias vivem estresse inédito receita/maes-a-beira-de-um-ataque-na-quarentena/ acesso em 08 de maio
com crise e quarentena. 5 de agosto de 2020. Disponível em: de 2021

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FACULDADE DE MEDICINA UFMG. Pandemia compromete saúde mental das mais-impactadas-social-e-psicologicamente-pela-pandemia.html acesso em:
mães. 29 de maio de 2020. Disponível em: 22 de março de 2021.
https://www.medicina.ufmg.br/pandemia-compromete-saude-mental-das- REGINATO, G. D. . Informar de modo qualificado: a finalidade central do
maes/ acesso em: 08 de maio de 2021. jornalismo nas sociedades democráticas. Estudos de Jornalismo e Mídia , v.
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FREIRE, L. L. . Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. REVISTA GLAMURAMA. No dia das Mães queremos saber como a pandemia
Comum (FACHA) , v. 11, p. 46-65, 2006 afetou a maternidade: “ A intimidade evoluiu muito!”, diz Mônica Martelli. 09
de maio de 2021.
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pela pandemia. 22 de junho de 2020. Disponível em: 175.
https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/06/maes-sao-

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CAPÍTULO 6 entanto, não pretendemos fazer uma abordagem psicológica ao trazer o
A INFLUÊNCIA DO INSTAGRAM NA SUBJETIVIDADE FEMININA: corpo gordo feminino no percurso que se segue.
UMA REFLEXÃO SOBRE O CORPO GORDO
Segundo Rolnik (1997), a subjetividade é o perfil de um modo de ser, de
pensar, de agir, de sonhar, de amar, que delimita o interior e o exterior de
cada sujeito. É o resultado da interação do indivíduo com as influências
ANDRESSA DE OLIVEIRA AMENDOLA DA SILVA
socioculturais, sendo modelada de acordo com os comportamentos, com os
CARLA TEIXEIRA MORGADO
DANIELLE SABBÁ DE OLIVEIRA valores e com os sistemas econômicos e políticos de cada sociedade. Isolado
FERNANDA RODRIGUES MARIANO
das relações, “desconectado”, o ser humano nada é, e, da mesma forma, sem
MARIO VINICIUS MARQUES DE MORAES
MONALISA FEITOSA NUNES analisar os seus atos, não é possível medi-lo. Para Simone de Beauvoir (1970),
VELUMA RABELLO SILVA
um existente não é senão o que faz; o possível não supera o real, a essência
não precede a existência: em sua pura subjetividade o ser humano não é

“Perder a confiança no corpo é perder a confiança em si mesmo”


nada. Medem-no pelos seus atos.
Simone de Beauvoir Inserido no contexto social, o corpo feminino sempre esteve atrelado a um
padrão estético, o qual determina o que é bonito. No livro Fazendo as Pazes
com o Corpo, Daiana Garbin lembra que, em todas as épocas, houve um
A subjetividade do sujeito é o material essencial para o trabalho do psicólogo. “padrão”, o qual estabelecia o que era considerado belo, destacando que, na
Todas as interações que o indivíduo vive, inevitavelmente, contribuirão para Renascença, por exemplo, ser gordo representava fartura, riqueza,
manutenção, formação ou alteração da sua individualidade. O desejo de abundância, e que, portanto, naquele contexto, ser gordo era ser belo e
fazer, ter e ser está intrinsecamente ligado aos processos de subjetivação, nobre. Como vemos em nossos dias o corpo gordo, principalmente o
muitos de ordem cultural, compreendem práticas de significação que feminino?
posicionam os sujeitos e produzem modos de existência. A cultura então, não Atualmente, o estereótipo exaltado é o do corpo magro, preferencialmente
é um termo abstrato, mas diz respeito às práticas cotidianas que se dão em com musculatura bem definida, mostrando-se esse o padrão estético
um campo de lutas, de relações de poder (GUARESCHI et al, 2005, p. 112). No reforçado não apenas pela indústria da beleza e da moda, mas pela sociedade

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como um todo. Nessa linha, o Instagram, que é a rede social que mais cresce Para Foucault, vivemos inseridos sobre diversos poderes e práticas que
atualmente e, também, a mais imagética, de certo não revelaria algo exercem forças diferenciadas. Destaca-se neste contexto quatro forças: a
diferente, de modo que, o que se vê em abundância na citada mídia, são primeira é a família; no seio familiar, o sujeito, desde o nascimento, age, reage
corpos e falas que enaltecem tal padrão estético. e troca experiências de autoridade mútua. Seguindo o percurso, temos a
Diante desse cenário, é importante refletir o quanto e de que forma essa mídia, onde as interferências são sentidas em paralelo pela criança e seus
ferramenta, o Instagram, pode impactar na subjetividade do sujeito, em familiares durante o seu desenvolvimento, por toda a vida. Considera-se,
especial de seu maior público, o feminino. Como reagem as mulheres ao olhar ainda, o emprego, ou seja, as atividades de trabalho nas quais esse núcleo
corpos que não possuem e que, talvez, nem possam ostentar? De que familiar social está mergulhado. E, regendo essa grande rede, em uma
maneira elas são atravessadas pelo padrão estético mostrado e pelas falas orquestra na maioria das vezes desafinada, temos o poder e as práticas
que o exaltam e que, por vezes, afirmam que a construção dessa imagem desiguais, a grande força do estado. Assim, fica o convite proposto por
depende unicamente de empenho? Foucault, mais que uma reflexão: como podemos agir sobre a ação dessas
Pensa-se que o modo de viver de muitas mulheres, influenciadas por essa forças a que nossos corpos estão submetidos? De que forma o Instagram
rede, pode ser afetado de forma desastrosa, gerando um vazio existencial que colabora nesse contexto?
faz com que percam o contato com a sua originalidade e passem a viver Nesse sentido, a proposta da genealogia do poder foucaultiana é de
daquilo que lhes é ofertado, talvez enveredando em uma busca perigosa por construção de uma história do presente, através do que denominou
um corpo que, para elas, biologicamente sequer é possível. microfísica do poder. Cada sujeito é imbuído de poder dentro do seu "micro
O que se vê através das lentes do Instagram é a criação de modelos e estilos espaço", desconstruindo verdades acatadas e possibilitando a produção de
de vida que padronizam o comportamento social e a identidade, expondo novas articulações na análise do que nos tornamos e de nossas práticas
quase sempre mulheres magras, brancas, jovens, com cabelos (GUARESCHI et al, 2005, p. 121).
preferivelmente lisos, ou seja, revelando uma beleza estereotipada, que, ao Assim, pretende-se aqui mostrar o poder e a força da mídia digital Instagram,
fim, busca-se seguir. Mas a pergunta que se faz é: é possível seguir esse expondo costumes, tendências de moda, entre outros padrões estéticos que,
padrão? talvez, não correspondam ao que as mulheres gordas, de fato, desejam, mas
que, diante da pressão para adequação ao “padrão”, acabam sendo por elas

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perseguidos. Observa-se aqui uma imposição de regras, a delimitação de estampada, nos afetava durante uma conversa virtual. Trazia assim suas
escolhas e, consequentemente, o impacto à subjetividade feminina à luz do crônicas de uma vida gorda.
que é exposto massivamente na citada rede social. A proposta aqui é trazer para você, leitor, uma análise da influência do
De outro lado, e sobretudo em razão da evolução dos movimentos anti Instagram na padronização dos corpos femininos brasileiros, com foco nas
gordofobia, é possível constatar atualmente que o Instagram também pode mulheres gordas e, com esse recorte, trazer à luz uma reflexão: Como o
ser fonte de inspiração para mulheres que amam e aceitam seus corpos do atravessamento dos 'likes' afeta a subjetividade e a saúde mental das
jeito que se apresentam. Consideradas fora do padrão, apoiadas em seu amor mulheres que ostentam corpos gordos? Em especial trazer à tona duas
próprio e autoestima elevada, acabam lidando melhor com suas medidas influencers digitais, contribuindo no dinamismo dos atores que a temática nos
físicas e não se curvam à pressão estética imposta pela sociedade através convida a desbravar. Sabendo, por óbvio, que o tema precisa sempre de novos
dessa plataforma digital. Valorizam, assim, a sua representatividade enquanto olhares, atribuindo o poder de fala às mulheres gordas.
sujeito de direito, bem como seu corpo gordo, expondo-o de forma política, Assim, imbuídos nas reflexões sobre a mulher gorda e suas relações com o
e de intensa luta. Instagram, fomos desafiados a mergulhar na Teoria Ator-Rede (TAR), uma
E foi dessa forma, através de duas dessas mulheres, que demonstram alegria corrente da pesquisa em teoria social que se originou na área de estudos de
ao se olhar no espelho, de militar sobre o tema, que começamos a tecer uma ciência, tecnologia e sociedade na década de 1980 a partir dos estudos de
nova rede. Novas descobertas e possibilidades de emergir histórias Michel Callon, Bruno Latour, John Law, entre outros. Para a TAR, a produção
motivadoras para que outras mulheres, em busca de auto aceitação e de redes e associações surgem da relação de mobilidade estabelecida entre
autoconfiança, mobilizadas pelo discurso firme e emocionado que afeta os os atores humanos e não humanos que se dá na convergência dos novos
que ouvem atentos sua trajetória de ter sido sempre “fora do padrão”, meios de sociabilidade que aparecem com a cultura digital, como, por
possam também construir um novo caminho. exemplo, as redes sociais e as comunidades virtuais. A noção de tradução é
Vale lembrar que afetar não significa necessariamente causar ou controlar um dos conceito-chave, pois designa a apropriação singular que cada ator faz
totalmente uma ação. Para Latour (2008), existe uma imensa brecha entre da rede e na rede (WIKIPÉDIA, 2021).
a premissa e a sua consequência. Mas aquela mulher gorda, gorda maior, Traduzir ou transladar interesses significa, ao mesmo tempo, oferecer novas
diante dos nossos olhos com seus cabelos encaracolados e sua roupa interpretações desses interesses e canalizar as pessoas para direções

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diferentes (PONTES, 2015 apud FREIRE, 2006, p. 194). O Instagram, fazendo vezes, aprendem a repudiar o próprio corpo desde a infância. É em grande
parte dessa rede, possibilita a luta por conscientização e, principalmente, por parte a angústia de ser mulher que corrói o corpo feminino. (BEAUVOIR, 1949,
direitos e lugar de fala de mulheres e seus corpos gordos, muito além do p. 70).
imenso mundo fitness de corpos “perfeitos” que a indústria da beleza Vivemos em uma sociedade cada vez mais imagética, que coloca a aparência
promove na referida rede social. no topo de sua lista de prioridades e, desse modo, vemos o crescimento
Como o corpo gordo vem sendo alvo de críticas e imposições estéticas, constante do número e variedade de procedimentos estéticos, bem como de
observa-se que muitas mulheres estão tomando posse desse corpo, se distúrbios psicológicos relacionados à imagem. Garbin (2017), citando a
empoderando, resistindo, e, nesse movimento, iniciando a transformação do psicóloga e psicanalista Gabriela Malzyner, sustenta tal entendimento,
entendimento a respeito da exigência de um padrão estético para as reforçando o quanto a sociedade valoriza a imagem, que precede, inclusive,
mulheres. Nesse sentido, pode-se entender o corpo gordo feminino como o pensamento. Nessa linha, as pessoas se mostram cada vez menos críticas e,
uma forma de ser, existir e resistir, considerando o que Foucault diz: “onde de maneira inversamente proporcional, mais influenciáveis, engendrando
há poder, há resistência” (FOUCAULT, 1998 apud PEREIRA, 2020). uma perigosa teia lastreada na ausência de questionamento a respeito do que
é visto, o que, nem sempre, é real.
O corpo feminino Na onda imagética, contudo, o padrão de beleza feminino vai sendo
Para Beauvoir (1949), o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma construído, considerando, em parte, as representações presentes nas redes
subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através sociais, que, além das edições digitais feitas em programas de computador,
dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo. podem, também, mostrar mulheres moldadas por plásticas e tratamentos
O corpo padrão feminino sofreu mudanças no decorrer das décadas, e, assim artificiais, o que movimenta a indústria milionária da beleza e estética. Com
como na moda, as tendências estéticas são moldadas de acordo com as esse segmento, inclusive, por vezes lucram as pessoas por trás das imagens
influências sociais, culturais e econômicas. Hoje, a mulher padrão é magra, expostas no Instagram; as “publis” se mostram cada dia mais intensas e,
branca, jovem e carrega no rosto a famosa harmonização facial. Nesse aparentemente, rentáveis.
contexto, o corpo gordo passa a ser excluído, visto negativamente, sendo alvo Ainda segundo Garbin (2017), trazer às mulheres o desconforto com a sua
de preconceitos, o que pode trazer intenso sofrimento às mulheres que, por aparência representa uma das estratégias manejadas pela indústria da beleza

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para majorar seus lucros; e, ao que parece, funciona. Nessa linha de mostram mulheres com corpos sem tratamentos estéticos, produtos
insatisfação, no ano de 2018 foram realizadas mais de um milhão de cirurgias milagrosos, ângulos planejados e imagens editadas, as chamadas “mulheres
plásticas e cerca de 969 mil procedimentos estéticos não cirúrgicos no Brasil, reais”, portadoras dos “corpos reais”. A busca pela aceitação do próprio corpo
segundo dados da ISAPS – Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica vai na contramão da padronização da beleza e surge como um caminho que
Estética. traz esperança para o processo de liberdade do corpo feminino. Essa trilha é
Além das cirurgias plásticas e demais procedimentos estéticos, há, ainda, uma a que nos interessa, em um trajeto junto com atores dessa infinita rede, que
longa lista de itens que estão relacionados à busca dessa imagem, como as observamos como referencial, duas influencers plus size. Assim, buscar-se-á
dietas milagrosas, os cremes, os remédios para emagrecer, entre outros compreender como essa mulher de corpo gordo é vista no meio social e
recursos que arrebatam muitas mulheres, que se sentem compelidas a deles digital, uma vez que são esferas que se complementam.
se utilizar para atingir o padrão determinado. Nesse ponto, vale refletir sobre Entende-se extremamente necessário analisar as pressões estéticas vividas
o quanto a imposição de um padrão de beleza pode ser a causa de sofrimento pelas mulheres gordas para que seja possível criar um meio social em que
psíquico nas mulheres, que, ao abrirem o Instagram, são massacradas por efetivamente exista liberdade e autonomia feminina nesse aspecto. Por isso,
imagens de corpos magros e esteticamente “perfeitos” que em nada se pensar sobre a construção da subjetividade dessas mulheres, com o objetivo
assemelham aos delas, motivando, assim, a busca incessante para nele se de entender as alternativas possíveis para que seja feita uma ressignificação
encaixar. dos afetos primários e comportamentais, será fundamental para a mulher,
Ao que parece, a questão não é efetivamente o uso de tais produtos e para a academia e para a sociedade como um todo. A construção de uma
procedimentos, mas sim a motivação para o uso. Consome-se tais itens sociedade mais inclusiva e plural, passará pela (re)significação da liberdade
porque realmente se quer ou porque se tem a ideia de que há um padrão a dessas mulheres e seus corpos.
ser seguido que precisa ser correspondido? Tais recursos são utilizados Para LATOUR (2008), ter um corpo é aprender a ser afetado, ou seja, movido,
porque de fato se deseja uma determinada aparência ou porque impôs-se a posto em movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas. O
ideia de que a aparência que se tem não é suficientemente boa ou bela? sistema de “likes” do Instagram, sendo uma entidade não-humana, gera
Paralelamente a isso, vemos o surgimento de uma onda de críticas à aprovação ou desaprovação, afetando diretamente na subjetividade desses
padronização dos corpos, com o crescimento de perfis nas redes sociais que corpos.

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Ora, se o corpo feminino é alvo de comentários e julgamentos, visto como maioria das vezes, acabamos reproduzindo, em um quase automatismo, do
objeto de desejo e limitado a um padrão estético (que recebe influências de certo-errado, bom-mau, fraco-forte, feio-bonito, gordo-magro. Foi nesse
acordo com a época e cultura), implantado desde o período patriarcal até os emaranhado de possibilidades que buscamos, através desse pequeno recorte,
dias atuais; deveríamos considerar que, apesar do avanço da luta feminista, o tratar do tema, ou, melhor dizendo, trazer algumas dessas numerosas raízes
corpo da mulher continua banalizado pela mídia, que estabelece um padrão temáticas que o corpo feminino gordo sofre e enfrenta diariamente. Guattari
físico de beleza. E como disse Simone de Beauvoir “O corpo não é uma coisa, nos clarifica com o que chama de rizoma, “uma interrelação de qualquer
é uma situação” (BEAUVOIR, Vol. I, 2016, p. 62). Logo, precisamos do poder premissa, onde o solo torna-se uma rede comparada assim com nossa
das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são sociedade, que não tem início e nem fim”.
construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em Mergulhados nessas raízes, fomos buscar, amparados em uma das primeiras
significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro (HARAWAY, aulas do professor Lauro Pontes sobre Psicologia e Realidade Brasileira, a
1995, p. 16). Todas essas influências, que moldam o corpo feminino, deveriam importância do lugar de fala que se faz necessário para as minorias,
ser investigadas e criticadas, afinal, será que esses atravessamentos são encurraladas socialmente. A voz do professor ecoava: “sim, sempre que eu
saudáveis para as mulheres ou até que ponto são nocivos? puder, vou trazer alguém conhecido que admiro para aqui na aula contar sua
A cultura, sendo um desses atravessamentos, é de grande impacto. Cada vivência, sua experiência, suas marcas, suas histórias de vida”. E não fizemos
cultura tem seu limiar particular e ele evolui com a configuração desta cultura diferente; foi rápido, quase que imediatamente após as primeiras conversas
(FOUCAULT, 1999, p. 89). Com a reorganização de valores da sociedade, a do grupo aqui representado. Um dos componentes tinha essa carta na manga,
cultura modifica-se, e, então, a partir da valorização do corpo gordo uma amiga de trabalho. Uma tranquilidade para o grupo, dar mais voz a uma
feminimo, talvez possamos promover mudanças. mulher de corpo gordo e influenciadora no Instagram.
Existir para resistir O que parecia estar fluindo como águas em um rio acabou como um balde de
Na perspectiva da Teoria Ator-Rede, diante de sua abordagem vasta e de água fria sobre nossas cabeças efervescentes em busca da construção do
infinitos atores humanos e não humanos, fomos provocados e convocados a projeto de um artigo, seus desafios e novidades, entrelaçado com uma Teoria
inúmeras indagações diante do tema aqui apresentado. Assim, transpusemos que até então estava à margem do nosso singelo conhecimento acadêmico.
o universo cartesiano que praticamente permeia a nossa existência e que, na Agora sim, compreendemos o que Latour nos apresenta com o conceito de

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recalcitrância, que poderíamos resumir em “uma espécie de trava de um fluxo Atualmente, muito se fala sobre inclusão, representatividade, mas, se
ininterrupto do cotidiano”. Não tínhamos mais a fala da mulher gorda que pensarmos bem, tais discursos não são direcionados a todos, e, à vista da fala
traria sua voz e corpo ao nosso trabalho. Podemos confessar que uma de Thalita, parece-nos que nenhum movimento inclusivo socorre o corpo
ebulição de pensamentos cartesianos retomavam nossa rede e as raízes gordo. A sensação de desconforto, de não pertencimento, acompanha a
pareciam ruir. Os desencontros foram tantos, mas as raízes não têm fim e, mulher gorda, que recebe da sociedade todas as negativas possíveis: “Você
felizmente, logo encontramos outra voz. não vai casar!”; “Você não poderá ser mãe!”; “Você não terá sucesso na
Estávamos diante de uma mulher gorda, gorda maior, durante uma conversa carreira!”; “Você não será levada a sério!”; “Você não faz parte!”. Esses são
virtual em tempos de pandemia da Covid-19. Isso fez ressoar cada palavra alguns, poucos, exemplos das negativas dirigidas à mulher gorda na
dita, reverberando perplexidade e reforçando o quanto somos privilegiados sociedade, e isso nos toca, nos fazendo imaginar como seria sentir que, para
em ter um corpo que se aproxima ao tido como “padrão”, mesmo que longe você, não há lugar em lugar nenhum.
de qualquer classificação fitness. E, assim, o lugar de fala ganhava sua Mizahi (2017), fazendo referência à Winnicott e Kohut, esclarece que a
potência nesse micro espaço de poder, para quem vive na pele, no corpo e na experiência de pertencimento do indivíduo é relevante para a construção da
subjetivação os inúmeros ataques sociais quando se tem curvas e peso além subjetividade, que ocorre com base na vivência do sujeito no ambiente capaz
do que querem ditar como “normal”. Quem sabe agora conseguiríamos abrir de atender às suas necessidades. Assim, e no caso dos corpos gordos,
um pouco essa “caixa preta”, trazendo visão para nossos próprios olhos ainda pergunta-se: se nenhum lugar está apto a satisfazer as suas exigências, como
encobertos. estabelecer tal relação? Como se constrói, então, a subjetividade se não há
Um corpo gordo existir é um ato de resistência! Com essa frase, Thalita experiência de pertencimento?
nos impacta e nos faz olhar alguns fatos sob uma nova perspectiva, a da Diante desse questionamento, a resposta de Thalita foi certeira: ou eu
exclusão. Nesse cenário, coisas tão corriqueiras como entrar em um encarava ou seria consumida! Ou serei quem eu sou ou terei que ser quem a
transporte público, realizar exames médicos de rotina ou, até mesmo, sociedade quer que eu seja! A “virada de chave” para Thalita foi essa;
estudar, se tornam um verdadeiro martírio, afinal, o seu corpo não passa na perceber que, justamente por não se sentir pertencente, teria que lutar para
catraca, o aparelho aferidor de pressão arterial não cabe em seu braço, e a conseguir ocupar os lugares que desejava ocupar, e que precisava fazer isso
cadeira da instituição de ensino não lhe acomoda confortavelmente.

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por ela mesma e por outras, que ainda estivessem por vir, como sua filha, ou Instagram remove conteúdos postados por mulheres gordas por classificá-los
que ainda não haviam reunido a coragem para fazê-lo. como pornografia, ainda que nenhuma nudez ali esteja exposta.
Não ter mais confiança no corpo é perder confiança em si próprio Essa realidade, para nós inteiramente desconhecida antes de nosso
(BEAUVOIR, 1949, p. 70), mas Thalita jamais se esqueceu, sempre teve encontro com Thalita, nos chocou. Como é possível que em pleno século XXI,
autoestima elevada e usou essa força para motivar outras. Por meio do na Era da informação e da liberdade de expressão, tamanha censura seja
Instagram, em 2012, iniciou a construção do canal por meio do qual se promovida por uma plataforma digital que, teoricamente, deveria conferir
comunica diariamente com milhares de mulheres que, assim como ela, acesso e voz a todos? Para Thalita, o objetivo é intimidá-las a encaixarem-se
ostentam corpos gordos. Na época, ainda não se falava sobre gordofobia, no padrão; ela revela que não enxerga qualquer interesse das grandes
mas, aos poucos, o caminho foi sendo construído e, hoje, embora ainda muito empresas que movimentam a indústria da beleza e da moda pelo corpo gordo.
falte caminhar, já é possível enxergar ganhos pelo simples fato do tema ser As migalhas deixadas pelo surgimento de coleções de roupas plus size de lojas
trazido à pauta. de departamento, por exemplo, não promovem inclusão, porquanto sequer
Ostentar e defender o corpo gordo, ao contrário do que muitos possam atingem a maior parte do público feminino que, de fato, ostenta corpos
pensar, não significa fazer apologia à obesidade ou romantizá-la, mas sim gordos. Corpos que representam sujeitos que são pressionados de todos os
revelar-se em um grito pelo direito de existir. A luta é para que as mulheres lados para se encaixarem no padrão instituído pela sociedade. Sob a
com biotipos gordos possam viver, e possam ocupar os lugares que desejam; perspectiva foucaultiana, a intenção é tornar esses corpos dóceis.
a luta é para que elas possam ser mães, esposas, chefes; para que elas possam Nos conceitos de Docilização do Corpo, de Foucault, “o controle da sociedade
se expressar, usar roupas de banho ou qualquer outro modelo de roupa que no indivíduo começa com o corpo, deixando-os dóceis para manipular”. E,
desejarem; a luta é para que a vida delas não seja limitada, encaixotada, pelo considerando todas as políticas de coerção citadas no “vigiar e punir” e seus
simples fato de ostentarem um corpo que não obedece ao padrão. trabalhos sobre o corpo, incluindo uma manipulação calculada de seus
A luta, contudo, é árdua e diária. A luta pelo direito de se expressar, pelo elementos, gestos e comportamentos, o Instagram se torna o cenário ideal
direito de exibir seu corpo sem sofrer com os julgamentos de uma sociedade para o aprisionamento dos indivíduos dentro da construção ideológica de um
excludente, que persegue, que censura, que critica negativamente, e sem “corpo perfeito”. A beleza torna-se, então, uma construção social de controle
enfrentar, inclusive, os boicotes da própria plataforma, já que, não raro, o

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travestida de caráter político à saúde, uma ferramenta de biopoder, onde o Repensando nossos modos de existência e construindo pontes de afetos que
corpo se torna o caminho de objetivação do sujeito. nos potencializem, nos nutram e nos reconectem com a essência da vida.
Dentro desse contexto, o corpo gordo é entendido como doente, tão Um corpo em movimento
desprezível que precisa ser invisibilizado a qualquer custo, negando-lhe o Tocados pela história de Thalita, fomos buscar outros atores para a nossa
direito à acessibilidade e à existência. Assumir um corpo gordo é uma atitude rede. Enveredamos pelo Instagram em busca de novas vozes que pudessem
de resistência; no mundo contemporâneo, onde o corpo é entendido como dar ainda mais corpo ao nosso trabalho, enriquecendo a nossa compreensão
uma expressão social do ser, é uma luta infinita entre controle e liberdade. sobre o tema. Foi então que encontramos Júlia, uma bailarina clássica - de
O corpo de Thalita, no entanto, não se dociliza. Assim como o dela, outros collant, tutu e sapatilha de ponta -, contudo, absolutamente “fora do padrão”.
corpos também não; eles resistem e lutam para terem o direito de existir. Quando pensamos em bailarinas clássicas, nos vem a imagem da mulher
Postos diante dessa luta, nos sensibilizamos, nos encorajamos, e, certos de esguia, magra, leve como uma pluma, uma visão inteiramente diferente
que nós mesmos não ostentamos exatamente o corpo padrão exigido pela daquela proporcionada por Júlia, que é uma mulher gorda - gorda maior,
sociedade, nos solidarizamos e, ao mesmo tempo, entendemos que, de certa como Thalita -, mas que, não obstante o seu porte físico, não deixa de trazer
forma, também fazemos parte desse movimento, que, ao fim, busca a aos olhos de seus espectadores toda a leveza de uma bailarina clássica.
aceitação dos corpos, de todos os corpos, em todos os formatos, como são, e Ao olhar Júlia dançar é possível sentir o toque no coração e na alma. Ela
não como se impõe. emociona quem assiste com toda a sua graça, uma bailarina que encanta o
A luta contra a busca incessante pelo padrão estético que se institui e que, a público em cada movimento. O balé é uma dança rígida em seus
cada dia, traz novos elementos, também pode, e deve ser nossa. Nós, ensinamentos, a disciplina reina nas aulas. Mesmo crianças de apenas 3 ou 4
exercendo nosso micro poder, somos capazes de impactar positivamente anos já sentem a pressão da dança que é considerada a dança mãe - por ser a
para a reorganização dos valores da sociedade, a fim de promover mudanças origem de todas as danças, mas, é preciso pontuar, é uma mãe bem severa.
que propiciem a valorização de todos os corpos, sem julgamentos, sem Com grande presença na Rússia, o balé apresenta bem as características do
críticas destrutivas. Assim, resistir à docilização é reafirmar que somos país. É comum bailarinas ouvirem que precisam emagrecer ou que, para ser
natureza. Ler, estudar, pesquisar, pensar, refletir, sentir, fazer... SER. bailarina, é preciso ter o biotipo magro e, nas seleções de grandes escolas e

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companhias de dança, o corpo é requisito essencial, um corpo que deve ser O perfil de Júlia no Instagram é composto principalmente por vídeos e fotos
magro. dela dançando, não apenas balé, mas também outros estilos, sempre
Júlia é uma bailarina com o biotipo gordo, que, contudo, dança sem pensar trazendo em suas legendas informações sobre a dança, e não sobre o corpo
no corpo. Ao apresentar “A morte do cisne” ela sobe na ponta dos pés e dançante. Assim, o mais interessante é ver que ela, ao final, não se preocupa
mostra a leveza e postura de uma bailarina nata; ao olhá-la, não temos tanto em trazer pautas sobre o corpo gordo, ela apenas se concentra em
dúvidas de que ela nasceu para dançar e para estar em cima da sapatilha de dançar e falar sobre a dança, naturalizando seu próprio corpo, e, dessa forma,
ponta. Ao assistirmos ao espetáculo de Júlia, entendemos que, para além da militando naturalmente, inspirando milhares de mulheres gordas que, como
realização pessoal dela, Júlia abre espaço para outras mulheres gordas ela, só gostariam de colocar um collant, um tutu, uma sapatilha de ponta e
ocuparem os palcos da dança, e, quem sabe, os palcos de suas próprias sair por aí fazendo um plié, um tendu ou coisa que o valha.
histórias de vida. Júlia apresenta um novo olhar sobre ela mesma, um olhar seu, próprio,
Júlia, além de bailarina, é também professora de dança e divulga o seu destacado da visão julgadora e retrógrada da sociedade, e, de uma forma
trabalho no Instagram. Com fotos e vídeos dançando, ela já conquistou aparentemente leve, consegue lidar com as críticas que recebe sobre o seu
milhares de seguidores e, em uma rápida olhada em seu perfil, fica claro como corpo. Com isso, conquistou admiradores que a seguem e interagem nos
outras mulheres se identificam. Júlia leva a muitas a sensação de comentários, sobretudo mulheres. Júlia, não importando o formato de seu
pertencimento; faz com que mulheres gordas que, talvez, há muito amassem corpo, traz ao balé e à sociedade a leveza que ambos requerem e precisam.
dançar ou se interessassem pela dança, se sintam capazes, acolhidas e
estimuladas a trilhar o seu caminho desejante. A identificação rende a Júlia Há Esperança ...
muitos compartilhamentos de seus posts, o que faz com que a sua voz seja Questionar a forma como o indivíduo se expressa no mundo e entender a
amplificada, atinja novas pessoas, e, assim, potencializa o debate sobre o construção da subjetividade do sujeito é fundamental para o profissional da
corpo gordo e desmistifica o pensamento, bastante enraizado e limitante, psicologia. A realidade trazida neste trabalho com a temática do corpo gordo
acerca da impossibilidade de tais corpos, julgados como se não pudessem feminino permeia a sociedade e poderá atravessar a vivência profissional de
fazer o que Júlia não só faz como também ensina a fazer. qualquer psicólogo e, por isso, a relevância da discussão acadêmica. O debate
sobre o tema, contudo, é ainda embrionário e, talvez, será constante, já que

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a vida é dinâmica, de modo que, a cada nova Era, a cada transformação social, antes eram manipulados por forças maiores, mas que hoje é vigiado por nós
novas problemáticas podem atingi-lo. Para isso, precisamos estar preparados mesmos, frutos desse sistema de controle, através das redes sociais que
e fomentar novas discussões, sem, contudo, perder os espaços que já foram viraram uma verdadeira coleira eletrônica, nos libertando dessa visão
conquistados. Por isso, buscou-se uma reflexão sobre a influência do patriarcal e estimulando uma nova maneira de entender nossos corpos.
Instagram no corpo gordo feminino, para, a partir disso, entender como a vida Inebriados pela potência do discurso de Thalita, encontramos a não menos
de mulheres com o biotipo gordo é afetada pelo conteúdo exposto na potente Júlia, a bailarina clássica e professora de dança, que nos mostrou
internet, que, na verdade, apenas revela, de forma ampliada e por vezes cruel, como o tipo de corpo pode ser apenas um detalhe, em nada impedindo o
o pensamento da sociedade. exercício de sua paixão, em nada atrapalhando a concretização de seus
Assim, um dos objetivos foi entender como a subjetividade e a saúde mental desejos. Com seus movimentos leves na ponta do pé, Júlia influencia outras
de mulheres gordas pode ser afetada pelo Instagram, bem como o mulheres a dançarem e a se libertarem do corpo socialmente imposto. Ela nos
empoderamento dessas mulheres impacta positivamente a forma como elas revela que, apesar da imagem historicamente construída de bailarinas
se expressam e influenciam comportamentos. O corpo da mulher sofre ostentando apenas corpos magros, a dança vai muito além de um biotipo, e
repressão por anos, a sociedade controla o corpo feminino de diversas tem relação com a confiança em seu próprio corpo, independente de
maneiras, e, mesmo com o biotipo, essa repressão também ocorre. tamanho ou forma.
A sociedade transforma a gordura em um símbolo de derrota moral, de modo Ancorados na TAR, refletimos sobre como os dispositivos disciplinares e de
que o sujeito gordo passa a ser associado a um imaginário social próprio, controle agem sobre o corpo apresentado na mídia e seus impactos sobre a
sendo taxado como negligente, preguiçoso e incapaz. Partindo deste subjetividade, tanto em sua constituição individual, considerando a
princípio, em nosso encontro com Thalita, influencer digital do movimento subjetividade determinada pelo inconsciente, quanto no plano social. Assim,
body positivy, objetivamos compreender como se dá a relação entre corpo e pode-se observar como o histórico e o político afetam as imagens que os
subjetividade no discurso de uma mulher que se revela com o biotipo gordo personagem produzem de si e do outro.
e expõe seu corpo no Instagram, atentando para o imaginário que essa Thalita, uma mulher gorda e ativista no assunto, que produz conteúdo para o
personagem tem de si e do outro. Esse movimento nos ajuda a superar a Instagram desde 2012, trouxe apontamentos fundamentais para o
concepção de corpos dóceis e fragilizados pela sociedade do controle, que desenvolvimento deste artigo. Foi importante durante o processo dar voz a

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uma mulher gorda, que, além de mudanças estruturais, deseja ser ouvida, e, influencers - que validam o padrão de beleza já vigente – representando,
mais, deseja ter o direito de viver. Thalita tem a convicção de que o biotipo portanto, a esperança para muitas mulheres que buscam aceitação e
gordo é algo que ela não pode mudar; não se trata de desleixo, não se trata liberdade para serem o que são, ou que quiserem ser.
de negligência, trata-se de natureza. Aceitando-se exatamente como é, À luz das experiências trazidas por Thalita e de Júlia, fica cada vez mais claro
Thalita grita, e dá voz a outras mulheres gordas, pelo direito de existir. Viver como o Instagram enche as nossas telas com imagens que não geram
em uma sociedade gordofóbica pode deixar marcas na subjetividade das identificação, mas, sim, distanciam. Nesse sentido, é fácil imaginar o quão
mulheres com o corpo gordo, por isso, abrir espaços de discussão do tema é nociva - ou, melhor, ainda mais nociva - seja essa mídia quando se trata da
cada vez mais importante. imagem corporal de mulheres gordas. Thalita, Júlia e outras mulheres que
Júlia, por sua vez, apresenta-se de maneira mais discreta, não traz em palavras expressam seus corpos reais nas redes sociais têm um papel relevante no
o discurso contra a gordofobia, contudo, isso sequer é necessário, pois a sua caminho para a mudança social, que, ao fim, objetiva não apenas a
presença na ponta dos pés já demonstra não apenas a sua força e capacidade, valorização do corpo feminino gordo, mas a aceitação de todos os formatos
mas também faz refletir sobre o quão limitante e descabido é o discurso de de corpos, quaisquer que sejam eles.
uma sociedade que pretende encaixotar as pessoas em padrões. Júlia Inspirados pelas descobertas e experiências que vivenciamos para a
enfrenta a pressão estética restritiva literalmente dançando, mostrando a construção deste artigo, nos despedimos em formato de poesia, trazendo
todos que movimentos leves e graciosos nada têm a ver com peso. Trazendo uma mensagem de esperança, que, ao final, é o que fica para todos nós.
arte, cultura e, por que não dizer, um grito de existência e resistência, como
Thalita.
Thalita e Júlia possuem formas diferentes de usar suas páginas no Instagram,
uma é mais crítica e incisiva, enquanto a outra traz naturalmente sua “um corpo que flutua carrega o peso da própria alma
militância, que, não se enganem, também está presente de forma latente. O é um corpo livre dos pesos das limitações que nos enterram em vida
que fica claro, contudo, é que as duas são de vital importância para a o corpo que baila propaga sua própria filosofia
construção da subjetividade feminina, que, atualmente, acontece sobretudo conversa e transita em oposição à ideologia da magreza
nas telas das mídias sociais. Ambas vão na contramão da maior parte das e mostra que dentro das cavidades de suas curvas há um poço de beleza

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cada onda sua insinua sua natureza macia BARACUHY, R.; PEREIRA, T. A. A biopolítica dos corpos na sociedade de
que desenham um belo traço sem perder o compasso da melodia da vida controle. Gragoatá, v. 18, n. 34, 6 jul. 2013.
leve é aquele que existe
que ocupa todos os espaços com exuberância BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 1. Fatos e mitos. São Paulo: Difusão
e que sua presença fica marcada na lembrança Européia do Livro, 1970.
na doce lembrança que dança
dança e nos faz voar BORIS, Georges Daniel Janja Bloc; CESIDIO, Mirella de Holanda. Mulher, corpo
mediante a grande possibilidade de acreditar e subjetividade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade. Rev.
que essa “era de limitações” vai passar Mal-Estar Subj., Fortaleza , v. 7, n. 2, p. 451-478, set. 2007 . Disponível em
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CAPÍTULO 7 do Idoso, constatamos a desvalorização e o abandono impingidos a grande
A (NÃO) PERCEPÇÃO DO QUE É A VELHICE: AS AFETAÇÕES DE parte dessa população, principalmente àquelas mais vulneráveis, como as de
CINCO SUBJETIVIDADES A PARTIR DA PANDEMIA DA COVID-19
mais baixa renda e escolaridade, portadoras de doenças crônicas, idosos
Carmem Lúcia Sá Poças
institucionalizados e a população idosa LGBTQIA+, cujo afastamento familiar
Maíra Abrahão
Rebeca Pinho do Nascimento por preconceito se une ao envelhecimento biológico e acentua os índices de
Rosália de Souza Carvalho
isolamento social e solidão (HENNING, 2017).
Rosária Vieira Lima Rangel
Quando iniciamos a construção deste texto, nosso objetivo era compreender
“O que a juventude encontrou e precisa e refletir sobre como o isolamento social imposto pela pandemia da COVID-
encontrar fora, o homem no entardecer da 19, instituída no Brasil oficialmente em 13/03/2020, acentuou esse curso de
vida tem que encontrar dentro de si.”
desvalorização das pessoas idosas no país. Ao longo de nossas leituras e
(Carl Gustav Jung)
discussões, um certo desconforto foi se tornando ator principal em nossos
encontros e houve um desvio de rota, que poderíamos chamar de translação.
No Brasil, percebemos que o envelhecimento é ladeado de preconceitos -
Percebemos então que sabíamos e sentíamos com propriedade sobre a
temos uma sociedade que enaltece a juventude e a beleza, mas desdenha do
pandemia - que nos afeta vívida e urgentemente a todas e todos nós -, mas e
conhecimento, da experiência e até mesmo das rugas que chegam com a
a velhice? Como determinamos o que é a velhice para ouvirmos as pessoas e
idade.
escrevermos nosso texto sobre sua desvalorização social acentuada a partir
Esse contexto gera uma ampla repercussão, pois engloba - ou deveria
da pandemia de COVID-19? Por idade, por sentimento, por geografia, por
englobar - fatores como programas integrais de saúde, previdência social,
condição fisiológica? Quais são, afinal, os critérios para fazermos nosso
cidades mais humanizadas e adaptadas aos idosos, cuidado continuado,
recorte? E nós, somos velhas? Nos sentimos velhas? Pensamos realmente
cultura, práticas esportivas, lazer, dentre outros.
sobre isso?
A Constituição Federal de 1988 estabelece, no art. 230, o dever que o Estado
Simone de Beauvoir (1970, p.12) diz que “antes que se abata sobre nós, a
tem de amparar, assegurar a dignidade, o bem-estar e a garantia do direito à
velhice é uma coisa que só concerne aos outros. Assim, pode-se compreender
vida da pessoa idosa. Porém, o que percebemos é que esses direitos estão
que a sociedade consiga impedir-nos de ver nos velhos nossos semelhantes”.
longe de serem postos em prática. Apesar da lei de 2003, intitulada Estatuto

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Foi também na década de 1970 que o médico gerontologista norteamericano
Robert Neil Butler, que recebeu o prêmio Pulitzer pelo livro Why Survive? COMO SE(NOS) MOVEM OS ACTANTES?
Being Old in America, cunhou o termo “ageísmo” para se referir à
discriminação contra pessoas idosas. Comportamentos que vão desde Quando tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas.
considerar o idoso “desnecessário” ou “improdutivo”, criticar pessoas que (Frase encontrada por Eduardo Galeano em um muro de Quito, Equador)
não apresentem uma atitude esperada de um estereótipo de velho (postura
encurvada, recatada, usando bengala, sem vida afetiva e sexual ativa etc.) a Como disse Marcia Moraes (2010, p. 26), citando Gilles Deleuze, “os homens
infantilizar o sujeito mais velho - tudo isso podem ser manifestações de raramente exercitam o pensamento e, quando o fazem, é mais sob um
ageísmo. Além, é claro, de condutas e políticas institucionais que excluem ou choque, um golpe, do que no elã de um gosto”.
limitam a participação de pessoas idosas. Nas idas e vindas da elaboração deste artigo, essa percepção vem se
Só aceitamos e pensamos a velhice quando somos nós as pessoas velhas? Ou mostrando mais robusta. Marcia (2010, p. 26) também afirma que “é no
nem assim? O que acontece individual e socialmente quando o mundo entra estranhamento do encontro com o outro que um pensamento pode advir.”
em um colapso de saúde cujos velhos são, de início, os mais afetados? Como Formamos um grupo de cinco mulheres de idades, origens, experiências e
olhamos para eles, como olhamos para nós? vivências diversas. Trocamos várias ideias pelo whatsapp, nos encontramos
Novamente Beauvoir (1970, p.12) nos convida e alerta: pelo Google Meet, quando tivemos prazerosas tentativas de escolher o tema
do trabalho. Surgiram inúmeras ideias, chegaram o biopoder, os corpos
“Paremos de trapacear; o sentido de nossa vida está em questão no futuro dóceis, o discurso científico que se vincula ao poder, tema tão atual nesse
que nos espera; não sabemos quem somos, se ignorarmos quem seremos: tempo de embates científicos diários gerados pelo enfrentamento da
aquele velho, aquela velha, reconheçamo-nos neles. Isso é necessário, se pandemia no Brasil, muito disso tudo envolvido pelo clima exalado por meio
quisermos assumir em sua totalidade nossa condição humana”. do contato com textos de Foucault pulsando em nosso íntimo.
Ao mesmo tempo, havíamos ouvido falar da Teoria Ator-Rede (TAR), com
Esses novos problemas, e nossas reflexões sobre eles, são os atores que muito pouca noção do que se tratava realmente, mas com a certeza de que
queremos seguir aqui. era preciso inseri-la em algum momento no que produziríamos. Era preciso

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delimitar um tema, sair do generalismo, restringir o foco e ainda ser capaz de praticando, por não seguir as normas internacionais de combate à pandemia,
convencer o leitor de que valia a pena ler este artigo. Era necessário não estabelecer um programa de contenção dos casos, não ter um comitê
estabelecer um problema e, a partir daí, ainda apresentar a resposta ao científico que orientasse as diretrizes de ataque ao problema, e por aí seguem
problema. Tarefa difícil, quase impossível, mas, como uma colcha de retalhos, incontáveis negações.
seguimos. A primeira ideia foi a pandemia, afinal ela nos afeta há mais de um Resultou dessa salada a ideia de abordarmos a questão de como o isolamento
ano. Somos um grupo que se conhece apenas do pescoço para cima, nunca acentua a desvalorização das pessoas idosas no Brasil. Nosso professor Lauro
nos encontramos, não sabemos se somos altas ou baixas, simpáticas ou Pontes ressaltou várias vezes a necessidade de ouvirmos pessoas que
antipáticas, magras ou gordas. Somos apenas uma telinha umas para as trouxessem suas histórias, então o tema está fechado, pois várias de nós
outras, mas, em comum, temos uma pandemia, apesar de, certamente, temos mães, pais, tias, avós, e não seria difícil conversar com os atores.
vivenciada de formas diversas, mas vivida por todas. Pesquisamos aqui, ali, artigos, livros, ainda sem muita clareza de qual seria o
Contudo, a pandemia é ampla (o Brasil que o diga), pois não se consegue resultado de todo esse percurso, mas foi possível rascunhar algumas ideias e
contê-la e os efeitos se multiplicam e se agravam a cada dia. Certo, a dispor no formato estabelecido para a primeira etapa, então concluímos esse
pandemia nos afeta em vários sentidos, mas nos perguntamos se haveria um desafio inicial.
grupo em que esse tema traria mais danos. Assim chegamos à velhice, afinal, Todavia, o que pareceu tão difícil costurar nesse primeiro momento apenas
durante algum tempo, segundo informações veiculadas pelos órgãos de se emaranhou ainda mais quando partimos para efetivamente desenvolver o
imprensa, foi o grupo mais vulnerável e mais afetado em termos de tema. Era indispensável conversarmos com um velho, mas quem seria esse
hospitalização e mortalidade pelo vírus. velho, como estabelecer quem é velho? Como dizer ao outro que ele é velho?
Então já conseguimos delimitar mais um pouco esse bendito problema, mas O que caracteriza isso? Nós é que devemos delimitar essa fronteira?
ainda é preciso afunilar um pouco mais, afinal, quem vai querer ler um artigo Mais uma vez Marcia Moraes (2010, p. 42) passeia por nossas ideias quando
que fala de pandemia e velhice? São assuntos sem nenhum valor! Foucault e pergunta: “Que realidades produzimos com nossas pesquisas?”
o genocida (em bom português) que nos (des)governa nos ajudaram mais um O mal-estar promissor nasceu: qual é o referencial de velho que vamos
pouco: o primeiro, nos esclarecendo sobre o biopoder e como o racismo é utilizar? Cada uma de nós tem seu referencial próprio. Uma tem a mãe de 70
colocado em prática na administração do Estado; o segundo, efetivamente anos que não se vê ou se sente ou tem os hábitos que costumamos atribuir

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aos velhos, outra tem uma amiga com 41 anos que é o estereótipo da velha. Não podemos esquecer que o envelhecimento é um processo biológico, que
E dentro de cada uma de nós esse questionamento pulsou de forma intensa. todos os que não morrerem jovens se tornarão velhos. Mas em que
Afinal, como nos conta Marcia Moraes (2010, p. 29): momentos da vida pensamos sobre esse assunto, quem é afinal o velho?
“O mal entendido é promissor justamente Mais uma vez ouvimos Simone de Beauvoir, filósofa, escritora, ativista,
porque abre outras vias de realização para professora, uma das maiores intelectuais da França do século XX, que há 51
um fenômeno, abre, enfim, uma bifurcação, anos lançou o livro A Velhice. Segundo ela, “para quebrar a conspiração do
ali onde parecia haver uma certa ordenação silêncio” e mais adiante reforça sobre a velhice que “se lhes ouvíssemos a voz,
estável de coisas. O que se abre, portanto, é seríamos obrigados a reconhecer que é uma voz humana; eu forçarei meus
uma instabilidade, a possibilidade de uma leitores a ouvir essa voz”.
deriva, de uma variação.” O que moveu Beauvoir a se debruçar sobre esse tema? Seria a sua idade, já
que no ano do lançamento do livro ela estava com 62 anos? Seriam
E foi assim que nosso artigo foi se desordenando e se desestabilizando: a inquietações que a perpassavam internamente?
partir da compreensão de que estávamos quase fazendo a distribuição Hoje pode-se decretar que o livro também está ficando velho, quase
assimétrica, nós, as estudantes de Psicologia de um lado conversando com chegando aos 60 anos, que seria aquela idade em que tudo e todos podem
aqueles que nós determinamos que são velhos do outro lado; e mais, ser denominados velhos. Mas as ideias e os questionamentos que Beauvoir
repetindo o discurso de que o velho é deficiente, desvalorizado, difícil, sem trouxe, será que também podem ser considerados velhos, na perspectiva de
nunca antes havermos refletido profunda e intimamente sobre o tema. Com que a sociedade ainda comunga do que seja velho: ultrapassado, deficiente,
as intervenções internas no grupo, as transformações foram ocorrendo improdutivo?
conosco. E não estaria presente também a recalcitrância, uma reconfiguração O que se alterou nestes 51 anos em relação ao olhar e tratamento dado pela
surgida a partir das ramificações do pensar o velho a partir de cada sociedade à velhice? Surgiram eufemismos como “terceira idade” e “melhor
subjetividade atingida em seu âmago? idade”, porque a palavra velho deprecia e já traz o peso da chatice, da doença,
da lentidão, do cansaço, da solidão. Mas, efetivamente, a enorme
probabilidade é de que seremos velhos um dia. Se aos 60, 70, ou 80 anos não

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se pode determinar, mas não se pode ser velho aos 30 ou 40 anos? Não foi aspectos da velhice: cada um deles reage sobre todos os outros e é afetado
Marcel Proust quem observou que “é com adolescentes que duram um por eles; é no movimento indefinido desta circularidade que é preciso
número bastante grande de anos que a vida faz velhos”? apreendê-la.”
Até o século XIX, a expectativa de vida do homem não ia muito longe e a
velhice, então, surgia bem mais cedo que hoje. A ciência a cada dia consegue Simone de Beauvoir se utiliza do verbo “apreender”, que pode ser definido
prolongar a vida, são novos tratamentos, técnicas, cuidados que criam como “passar a compreender (algo) melhor graças a um depuramento da
condições para que existam mais velhos, mas realmente o que é, afinal, ser capacidade de apreciação, empatia, percepção etc”, de acordo com o
velho? Beauvoir escreve que essa palavra – velhice – não representa uma dicionário Michaelis.
realidade bem definida, e principalmente, ao se tratar da espécie humana, Buscamos assim, cada uma, compreender a velhice, como esse tema nos
não é fácil circunscrevê-la. A ideia que trazemos do velho está inteiramente afeta, o que construímos com ele, como o contexto social da pandemia nos
revestida de nossas experiências familiares e culturais. Ser velho em uma tribo toca em relação à velhice. Para tecer, é preciso urdir os fios e depois
indígena é totalmente diferente de ser velho na cidade do Rio de Janeiro no entrelaçá-los, assim se gera um tecido com sua consistência própria. A velhice,
século XXI. A Organização Mundial da Saúde (OMS), no Relatório Mundial de a pandemia, Beauvoir e nós cinco estamos nesse processo, urdindo para
Envelhecimento e Saúde, publicado em 2015, esclarece que a herança constituirmos uma vigorosa tecitura.
genética tem grande influência nos efeitos do passar dos anos, mas que a
maior parte desses efeitos surge dos ambientes físicos e sociais em que se AFETAÇÕES EM CINCO AÇÕES
atua. Então o lar, a vizinhança e a comunidade afetam diretamente a saúde e
impõem barreiras ou incentivos às oportunidades, decisões e Carmem pergunta:
comportamentos dos indivíduos. Beauvoir acrescenta: SERÁ A VELHICE SINÔNIMO DE DESCARTE?
“A sociedade destina ao velho seu lugar e seu papel levando em conta sua “A tragédia da velhice consiste não no fato
de sermos velhos, mas sim no fato de ainda
idiossincrasia individual: sua impotência, sua experiência; reciprocamente, o
nos sentirmos jovens.”
indivíduo é condicionado pela atitude prática e ideológica da sociedade em
(Oscar Wilde)
relação a ele. Não basta, portanto, descrever de maneira analítica os diversos

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Para além da idade cronológica, a velhice é também uma percepção individual Vale ressaltar que todas as dificuldades do ponto de vista físico e de saúde
do ser, pois algumas pessoas que conhecemos e já passaram dos 70 (setenta) podem acometer pessoas de qualquer idade cronológica, porém, caso isso
anos cronológicos continuam em plena atividade, praticam esportes, aconteça com uma pessoa de 20 anos de idade, a reação no coletivo
namoram, fazem passeios e dizem não saber o significado da palavra velhice geralmente é dizer “que pena! Uma injustiça! Tinha uma vida inteira pela
em suas vidas. frente...”. Quando o mesmo se dá com uma pessoa de 80 anos de idade, a
Questões ligadas à aparência física afetam, em maior grau, a mulher idosa, reação geralmente é “que pena, mas já tem idade mesmo né? É assim mesmo
que geralmente é mais cobrada do que o homem idoso para que se mantenha a vida”. É natural associar idoso a doença, decrepitude, descarte ou morte.
jovial, com a pele esticada por cirurgias plásticas, cremes etc. O Estado reforça sobremaneira essa ideia do descarte do idoso. Vamos
Qualquer percepção negativa e preconceituosa da sociedade para com a imaginar que o idoso faça uma viagem de ônibus, para um litoral em qualquer
pessoa idosa ativa, atuante, irá afetá-la muito menos, principalmente se tiver lugar do território brasileiro. Dispomos de acessibilidade para a população
elevada autoestima. idosa, com problemas de mobilidade nos ônibus que circulam em nosso país?
Penso que o impacto que esses idosos tiveram com o isolamento pelo COVID- Acessibilidade nas calçadas e rodoviárias? Quantas vezes já vimos pessoas
19 foi o mesmo que qualquer um de nós teve, em maior ou menor grau, xingando os idosos na rua, dizendo que andam muito devagar e por isso não
quanto à vivência do luto e à percepção dolorosa da finitude da vida. deviam estar nas ruas, pois atrapalham o fluxo das pessoas?
Percebo que existem questões que podem impactar mais diretamente a Quando iniciada a vacinação contra o COVID 19, muitos criticaram a
pessoa idosa que, somados ao isolamento social obrigatório com a pandemia, prioridade dada ao grupo de idosos e não à população mais jovem e,
e à vivência do luto, podem gerar processos de depressão, ansiedade e outros. teoricamente, economicamente ativa. A pandemia acentuou a ideia de que o
As questões ligadas às diversas limitações físicas, às doenças crônicas, à perda idoso deve ser protegido, mas que a sua proteção é complexa e cara e, por
de visão e audição, ou seja, ao momento em que todo o aparelhamento físico conta disso, deveria ficar isolado. Novamente, o descarte aliado ao
daquele indivíduo vai, em menor ou maior grau, limitando a sua atuação na isolamento.
sociedade, vai tornando-o dependente de algo (muletas, cadeiras de rodas, Me imaginando idosa, certamente o pânico que me assalta me parece ser o
etc) ou de alguém e intensifica, assim, a percepção da sociedade e da família mesmo que o de qualquer idoso hoje e sempre: o de ser discriminada, de ser
sobre o descarte do “velho inútil e oneroso”.

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dependente de alguém, principalmente do Estado e, consequentemente, ser fisiologia sinaliza que as coisas não funcionam como antes. A psique pode
descartada pela sociedade e pela família. estar se reafirmando ou repensando sobre tudo.
Nesse sentido, acho que a pandemia acentuou no idoso a ansiedade para sair Já a sociedade diz que o velho deve aposentar-se, mas também continuar a
do isolamento, mais do que em cada um de nós, uma vez que além da movimentar a economia; diz que ele não serve mais, mas também que ele não
preocupação com a morte, existe a sensação de que o tempo passa muito pode ser inútil; diz que ele tem seu valor, mas não o valoriza; diz que precisa
mais rápido estando em isolamento, que ele pode esquecido, sendo o seu ser mais ativo, mas não confia em sua autonomia; diz que precisa de alguém
processo de descarte ainda mais rápido. cuidando, mas não tem tempo; diz que deve ser horrível, mas também chama
É necessário um olhar mais afetuoso e menos preconceituoso da sociedade de “melhor idade”.
para com o idoso, desse modo estaremos construindo um olhar para o nosso Seria a velhice a melhor idade? Seria a pior idade? Seria somente uma idade?
futuro, sobre o que queremos ser de fato: idosos ou descartáveis. Durante anos, nos conformamos em determinar que é velha a pessoa a partir
Rebeca questiona: de 60 anos. Recentemente, isso não se mostra mais satisfatório para alguns,
O QUE É SER VELHO? que afirmam que a pessoa deve ser considerada idosa a partir dos 65 anos.
“O envelhecimento é mediado pelas Nesse meio, há também os que trazem estudos apontando que se pode
histórias contadas sobre ele.” pensar em envelhecimento a partir dos 50 anos.
(James Hillman) Resume-se, então, a números? A velhice é só uma faixa etária? Mas como
poderia ser, visto que nem a ciência nem a sociedade estão em comum
A sociedade atual parece ter uma meta intrigante e contraditória: viver mais, acordo? Devemos lembrar que a ciência nos traz parâmetros e fundamentos,
porém não chegar à velhice. O objetivo é não envelhecer ou, ao menos, não mas ela não lida apenas com coisas concretas e precisas. O ser humano não é
aparentar ser velho. Por trás desse pensamento conflitante, há diversas faces uma ciência exata, e números não dão conta de definir a velhice.
do que é ser velho. Mas, então, o que é ser velho? Alguns enxergam uma pessoa como velha
O corpo mostra a pele mais seca, as rugas, as marcas de expressões, o efeito quando ela encontra-se debilitada, com sua saúde prejudicada, em uso de
da gravidade e os cabelos brancos e desgrenhados – ou a falta deles. A polifármacos, pacata, caseira e dependente de ajudas. Mas quando se
deparam com um idoso saudável, lúcido, ativo, autônomo e independente,

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vem o pensar que ele “não é tão velho assim” ou “nem parece que tem essa Continuando na tentativa de desvendar essa caixa-preta denominada velhice,
idade”. Costumamos recorrer a áreas da ciência como a Biologia e a Genética recorremos, também, à Psicologia. Em sua teoria, Jung fala sobre os estágios
para explicar o envelhecimento, porém “a biologia não é o próprio corpo, e da vida. A velhice seria a fase em que a pessoa repensa sobre toda a sua vida
sim apenas um modo de descrevê-lo” (Hillman, 2001). e suas escolhas, o que pode causar a famigerada crise de meia-idade.
Nesse contexto, a sociedade se surpreende quando o chamado velho sai de Acontece que a modernidade traz situações, pressões e arranjos que levam
uma caixa que tenta reduzi-lo a algo tão parco. Até porque, na verdade, talvez pessoas a terem esse tipo de crise antes dos 30 anos. Hoje, há crises de meia
ele não tenha nem sequer entrado nessa caixa e deseja que isso seja meia-idade.
entendido. Sendo assim, ao pensar em crise de meia-idade, essa referência também está
“Os velhos provocam escândalo quando manifestam os mesmos desejos, pautada em estatísticas e probabilidades, que nos dizem que a população está
sentimentos e reivindicações dos jovens; o amor e o ciúme, neles, parecem vivendo até uma certa média de idade. A questão é que o ser humano
ridículos ou odiosos, a sexualidade é repugnante, a violência derrisória. Pode- continua numa ilusão de que tem o controle sobre a vida, quando, na verdade,
se, portanto, sem o menor escrúpulo, negar-lhes o mínimo considerado tudo é vário e temporário. O relato é que a pessoa mais velha do mundo
necessário a uma vida de homem.” (CALADO, 2014) faleceu com 120 anos, sendo que há fetos que não chegam nem à vida extra-
uterina. Como determinar a meia-idade? Como determinar até quantos anos
Podemos pensar em algumas esferas para tentar compreender certos uma população ou um ser humano irá viver? Como determinar, então, a
acontecimentos na sociedade. Existe uma idade cronológica, que já foi aqui velhice dentro disso?
citada, mas que não traz uma unanimidade nem uma explicação satisfatória. Novamente, há um embate. Essas teorias supracitadas seguem uma lógica,
Existe, também, uma idade burocrática. Pode-se dizer que essas duas estão porém não conseguem dar conta desse fenômeno tão amplo, complexo e
relacionadas. Um exemplo é quando um sujeito chega à determinada idade e muito além da matemática. Nesse momento, precisamos aceitar que
é obrigado a se aposentar, independente de suas condições físicas e mentais conceitos pré definidos não são suficientes, e devemos encarar algo que está
e de sua vontade. Nesse caso, o passar para uma nova fase lhe é imposto e insistentemente batendo à porta: um mal-estar promissor. Enquanto
forçado, o que gera grande impacto, pois normalmente algo lhe é arrancado. estávamos tentando abrir uma caixa-preta, nos deparamos com uma caixa de
Pandora. Tudo isso nos impulsiona, então, a sair da caixa. Começaremos a

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trilhar o caminho da subjetividade. Isso, por si só, pode ser um problema ou perpassando por diversas áreas do saber e por vários aspectos socioculturais.
uma solução, dependendo de cada perspectiva. A velhice é muita coisa. A velhice é múltipla.
Comecemos a pensar em idade subjetiva. Sim, há jovens idosos e velhos com Então, afinal, o que é ser velho?
alma de jovem. Ou não. Pelo menos, não exatamente ou não totalmente. Isso
existe, porque alguém assim o definiu. Porém, o que estamos tentando dizer Rosália conecta:
é que não é só “sim” ou “não”, não é somente “isso” ou “aquilo”. Pode ser O TEMPO E O ENVELHECER
“isso” e “aquilo”, pode ser um pouco de cada, um pouco de tudo, pode ser
tudo, pode ser nada. Consegue entender? A verdade é que não conseguimos “O tempo muito me ensinou: ensinou a amar a vida, não desistir de lutar,
definir a velhice por completo, porque ela se emaranha nas subjetividades de renascer na derrota, renunciar às palavras e pensamentos negativos,
cada um. Esse é o ponto que nos leva a um início de uma intensa reflexão acreditar nos valores humanos, e a ser otimista. Aprendi que mais vale tentar
para, talvez, alcançar a resposta que estamos buscando. do que recuar… Antes acreditar do que duvidar, que o que vale na vida, não é
Em seu artigo, Márcia (2010, p. 32) diz que “pressuposições constroem “uma o ponto e partida e sim a nossa caminhada.”
certa” realidade, mas não “a” realidade”. A autora traz diversos pontos que (Cora Coralina)
nos fazem refletir que nada é único e absoluto, que existem diversas
verdades, mas que não devemos nos iludir que uma delas seja “a” verdade. O que significa tempo? Tempo pode ser sinônimo de ver a vida passar,
Dentro disso, ela afirma que a realidade é múltipla e é algo construído, ou envelhecer? O que é importante no decorrer dos milésimos de segundo que
seja, é possível fazer existir realidades que antes não existiam. passam de forma cada vez mais avassaladora em nosso relógio biológico?
Sendo assim, poderíamos lançar mão de diversos estudos, definições, Temos conhecimento, experienciar a vida, aprender a ter leveza para lidar
entrevistas e recortes do que é ser velho, mas, ainda assim, não alcançaríamos com desafios que o envelhecimento nos presenteia?
a completude da resposta. Buscando tanto um entendimento sobre isso, Podemos encontrar nos dicionários diversos significados para a palavra
estamos tomando consciência e começando a aceitar que não teremos “tempo”, mas o que me faz refletir mais é que ele pode ser relativo à ideia
conhecimento, domínio e definição de tudo. A velhice, ora tão próxima, ora dos momentos do passado, do presente e do futuro. É o período em que
tão distante, é feita de construções, sendo elas individuais e coletivas,

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vivemos, não importando quando; porque nesse exato momento você pode sente que alguma coisa muda definitivamente na percepção das coisas, tal
experienciar, em questão de segundos, todos esses momentos. como se tivesse ultrapassado um divisor de águas.”
Em contrapartida, nos mesmos dicionários, busco pela palavra “envelhecer”
e posso dizer que fico um pouco chocada com o que leio. Eis que me deparo O simples fato de envelhecer causa nas pessoas a negação do fato biológico.
com significados de envelhecer que dizem que é “ficar sem utilização por um O que eu quero dizer com isso? Muitos indivíduos, antes de atingir a meia-
longo período”, é “tomar aspecto de envelhecido, tomar aparência de idoso idade, que fica em torno mais ou menos dos trinta anos, já se depararam com
ou aparentar ou fazer aparentar mais idade”. Envelhecer é tornar-se velho ou os primeiros fios de cabelos brancos, que para muitos é símbolo de
mais velho, é ficar fora de moda, ficar sem o frescor, o viço, o brilho, mas o envelhecer. A grande maioria das pessoas passam a arrancar os fios brancos,
que mais me impactou foi a definição de que envelhecer é estar próximo do outros colorem seus cabelos, e isso tudo no intuito retardar o
fim. envelhecimento. Todos nós, em algum momento da vida, temos medo de
Em ambos os significados, podemos perceber a ação do tempo. Nós ficarmos velhos, medo de perdermos a jovialidade, a “beleza da juventude”
envelhecemos a todo o momento. Mas por que envelhecer significa somente, e, com isso, nos aproximar cada vez mais da morte. Para muitos, o fato de
de uma forma geral, estar próximo do fim e não ter utilização e valor pra envelhecermos significa chegarmos a nossa linha do tempo final. Quanta
nada? Por que desvalorizamos o envelhecer? inocência nesses pensamentos, já que a morte pode chegar para qualquer
A psicóloga Lucélia Braghini (2015) resume bem o que busco escrever das um, basta apenas estarmos vivos. Não devemos confundir a idade com a
coisas que mais me afetam sobre o tema: obsolescência.
“Seja porque o ato de envelhecer é sentido como um ataque ao narcisismo e Freud (1980) cita em seus escritos que “nosso inconsciente, portanto, não crê
à vaidade pessoal ou porque se está diante de uma cultura que desqualifica e em sua própria morte; comporta-se como se fosse imortal”. Nós somos
rejeita o velho, o fato é que este evento biológico não é tido como algo bom. bombardeados o tempo todo pela lembrança de que estamos envelhecendo.
Além da lenta, mas progressiva, transformação do corpo e da própria imagem, Ora seja pelos meios de comunicação, ora seja em busca de um emprego
o envelhecimento é um sinal inquestionável de que o tempo está passando formal, ora seja por nossas rugas e nossos fios brancos. Já quando adentramos
inexoravelmente e que a tão temida hora da morte se aproxima. Ao completar na casa dos “enta” podemos sentir mais esse impacto. Por que isso acontece?
quarenta anos e ingressar automaticamente na casa dos ‘entas’, o indivíduo A sociedade é cruel.

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A negação da velhice parece que nos faz pensar que estamos prolongando velhice produtiva e feliz. Para aqueles que não se deixaram tocar por esse
nosso tempo em sermos jovens, e com isso vêm infinitas possibilidades de argumento e ainda insistem em estereotipar as pessoas mais velhas como um
procedimentos estéticos, produtos antienvelhecimento, cosméticos com grupo homogêneo e inferior, resta um pensamento final. Todas as pessoas
promessas miraculosas da fonte da juventude e por aí afora. A sociedade julga mais velhas são sobreviventes: esse é um prêmio que nem todos os seus
e desvaloriza o ser velho e com isso as pessoas cada vez mais procuram por detratores mais jovens viverão o suficiente para receber. Esse é o único fato
algo que as façam sentir jovens, mesmo que isso seja algo só por elas visto, que descreve todas as pessoas mais velhas.” (p.194-195)
ou seja, algo que apenas ela crê que é real. Talvez tudo isso nos afete de
alguma forma inconscientemente. Envelhecer deve ser um ato de orgulho, pois não serão todos que chegarão
O reconhecimento do processo de envelhecer naturalmente parece que torna ao ápice da velhice, ainda mais de forma leve e saudável. Nem todos terão a
a vida mais leve e isso precisa ser visto, compreendido e multiplicado a todos oportunidade de envelhecer dignamente, principalmente nas condições
os seres deste planeta, para que a convivência se torne mais leve, para que sociais, políticas e econômicas que nosso país está vivendo. Não somos seres
haja mais empatia, respeito, gratidão e amor em cada estágio da nossa vida. perfeitos. Somos feitos de carne e consciência. Um dia deixaremos toda uma
Precisamos aprender a apreciar nossa jornada de forma leve e bela. vida para trás, não teremos mais o nosso corpo. Não sabemos de que forma
Stuart-Hamilton (2002) finaliza seu livro A psicologia do envelhecimento com e nem quando isso acontecerá. Não sabemos se teremos a honra de
a seguinte mensagem: envelhecer em equilíbrio, nem o tempo que isso ocorrerá, mesmo sabendo
“O fato de uma pessoa mais velha ser mentalmente capaz ou incapaz, que, a cada segundo que se passa, temos a percepção de envelhecer.
contente com a vida ou suicida, sadia ou inválida, depende principalmente ou O tempo é subjetivo. E o envelhecer é a nossa jornada.
unicamente de sua herança genética e de como ela se comportou
anteriormente em sua vida. Uma boa velhice é uma recompensa, não um
direito automático. Só chegaremos a ela encarando com a mente clara e Rosária subverte:
aberta a perspectiva de envelhecer. Algumas mudanças, como as intelectuais, SER OU SER
só podem ser parcialmente controladas, mas mesmo que haja algum declínio,
jamais, a não ser no caso da demência, será suficiente para impedir uma “O envelhecimento é uma desistência do desejo de ser um outro”

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(Mia Couto) E lembrei de que nos tempos antes do coronavírus frequentava, às 6h da
manhã, às segundas, quartas e sextas, a aula de hidroginástica em uma
Em 2003, foi promulgada no Brasil uma lei denominada Estatuto do Idoso, ela academia próxima. Era o horário em que a academia abria, a primeira aula do
estabelece que aos 60 (sessenta) anos você é velho e tem direitos assegurados dia, eu devia estar às 8h em Botafogo para minhas ocupações, era tempo
por entrar no rol da velhice. Hoje, e até o dia 19 de outubro de 2021, não sou suficiente para aula, banho, café-da-manhã e metrô.
velha, mas dia 20/10/2021 serei velha. Mas a turma apresentava uma característica peculiar, a presença de várias
E reflito sobre quais serão as mudanças que vão ocorrer comigo a partir daí: pessoas que eu percebia como velhas e, a princípio, não entendia por que elas
serão biológicas, físicas, sociais, emocionais, psíquicas? Como e por que uma estavam ali tão cedo se não tinham compromisso depois, mas, aos poucos, fui
lei estabelece que a partir de um marco de tempo sou uma velha? Não terei compreendendo. Era uma aula muito engraçada, pois a maioria ia exercitar a
mais os mesmos desejos e sentimentos? Serei a sábia aureolada, rica de fala, a troca, a convivência e não o corpo. Acordavam cedo mesmo, pelo
experiência? Ou a velha tresloucada que não tem mais censura nem máscaras costume de tantos anos, e muitas daquelas pessoas viviam sozinhas ou com
e todos têm que aturar? Existe esse limiar? Tornar-se velho não é o processo familiares que tinham suas rotinas próprias e a escassez de contato era
da continuidade da vida? Desde que nasci a cada dia não me torno velha? suprida por estes encontros molhados três vezes por semana.
Não ignoro que o declínio biológico, psicológico e social chega, de formas Sempre havia motivo para realizar um café-da-manhã, fosse aniversário,
variadas, mas esse declínio precisa ter esse significado pesado, de nascimento de neto, uma viagem, qualquer pretexto valia, importante era
dispensabilidade, decadência, desatualização e abandono que a cultura confraternizar. E essas pessoas povoaram meu pensamento: como estariam
incute naqueles que ainda não chegaram a essa fase? O que assusta e talvez suportando esse afastamento imposto pela pandemia?
faça evitar o enfrentamento dessa realidade futura seja como o exterior vai Eu que naquela época não me considerava fazendo parte do grupo de velhas,
me tratar, como ele vai me enxergar e que lugar reservará para mim. Essas e tive, repentinamente, meu mundo reduzido a um apartamento, um
outras considerações surgiram das conversas, leituras e reflexões que computador, um celular e um tablet. Não encontro pessoalmente meus
empreendi nessa jornada de delimitação e escrita deste artigo em que, a familiares, meus amigos, minhas parceiras de trabalhos de grupo, vejo as
princípio, optamos por abordar como a pandemia que todos enfrentamos carinhas na tela, mas não sinto o cheiro, não percebo as emoções, não traduzo
assolou mais diretamente a velhice. as expressões do corpo, a energia que cada um emana não me penetra, sinto

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falta dessa nutrição dos abraços, dos beijos, dos cafés rápidos em pé no Quando começou a pandemia de COVID-19, não consegui acreditar em
balcão de um bar qualquer, de um almoço ruidoso de domingo em família, de grupos de risco por idade fisiológica. Por medo, amor e aceitação do mistério
um passeio na praia, das aulas de hidroginástica e as conversas paralelas de ou tudo junto e mais um pouco, absorvi de imediato a imprevisibilidade do
minhas companheiras de turma. vírus e de seus efeitos nos corpos de quantos anos fossem - e me abriguei
Como elas estariam preenchendo suas faltas, carências, seu tempo, com dentro de casa, confesso, não apenas para não ser vetor, mas também para
quem elas trocam suas impressões, suas dúvidas, suas angústias, seus medos proteger a mim e minha família. Não sei a velhice por cronos, mas sim por
e preocupações? Como essa pandemia as está afetando, terá acentuado a sua ordens e inexorabilidades multifatoriais que, para mim, não só afetam, mas
solidão? Bastaria que eu tivesse uma conversa com elas para desvendar essa modelam as nossas fisiologias para lidar com as inúmeras faces do tempo.
realidade ainda desconhecida? A velhice já não traz uma solidão inelutável, Desde sempre, me deparo com certa concretude fragilizada do eu. Quando
com ou sem pandemia? criança, por volta dos 7 anos, testava os limites do eu à noite, quando a casa
E essas ponderações se estenderam interminavelmente, pois fica a incerteza toda dormia. Repetia em frente ao espelho do banheiro “eusoueu eusoueu
se a velhice está dentro ou fora de nós, como o peso da cultura, da família, do eusoueu”, para finalmente indagar “o que é eu?” e voltar correndo para a
ambiente físico e social em que vivemos estabelecem as barreiras, as cama. Minha infância foi marcada por um medo excessivo da morte-vida.
limitações, as deficiências que atribuímos eternamente à velhice. Excesso de zelo por insetos, peixes e tartarugas, aves, mamíferos, palavras,
Em breve terei algumas respostas. folhas de papel. Excesso de presença e ausência das mortas mais vivas da
minha adolescência – Clarice Lispector e Elis Regina.
Maíra sente: Era tanto excesso de tudo que transbordei e morri-renasci no candomblé. Me
SOU VELHA DESDE CRIANÇA. E VICE-VERSA iniciei aos 22 anos, me conectando com o medo, com a vida e a morte, com a
“O velho é um herói, pois conseguiu vencer a morte valorização da sabedoria ancestral, com o caminho desejoso e necessário de
que nos procura e ronda todos os dias.” ser-tornar-se velha. Como explicou a iyalorixá Mãe Beata de Yemanjá em sua
(Mãe Stella de Oxóssi) última entrevista, concedida à AFP onze dias antes de se encantar, em 16 de
maio de 2017, aos 86 anos:

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“Nós não morremos. (...) Nós somos como um vidro de perfume. Se uma do inconsciente e voltar-se para o que ainda lhe falta desenvolver. Assim, ao
grande essência cair, se quebrar, fica aquele aroma delicioso, de capim, de meio-dia da vida nasce a morte, no sentido de que esta passa a ocupar um
rosa, sem você saber… Nós somos espíritos, somos os eguns, porque os lugar fundamental na consciência (...).”
nossos antepassados estão ali conosco.” Me sinto criança por me saber velha, e velha por me saber criança. É como se
meu relógio solar fizesse sombra na metanoia, pendulando seus cumes entre
Cheiro e olho vivamente para a morte todos os dias, agora com a consciência 6h e 18h pontualmente, até que meus olhos anoiteçam e eu amanheça então
ainda mais concreta – e no entanto bem menos pesada – de que ela me cheira para Iku, a morte.
e olha de volta também com vivacidade, todos os dias. Hoje, na perspectiva Que esse seja um dia mais perfumado que os de COVID-19, axé.
do candomblé, sou uma egbon, uma “mais velha”, “conhecedora e
mantenedora do mistério”, “sacerdotisa do meu orixá”. E é também com E SEGUE O BAILE DOS ACTANTES:
esses olhos que vejo a pandemia e quem nos (des)governa nesse caminho. OS MOVIMENTOS SÃO MÚLTIPLOS E INFINITOS
Sou criança-velha na visão da filosofia yorubá e sou velha-criança na reflexão Não sabemos se é possível concluir algo neste (ou deste) artigo, além do
do meu espelho da infância. Carl Jung, para ilustrar os estágios da vida, faz movimento incessante da reflexão. Das reflexões. E do acompanhamento.
uma bela analogia com as fases do sol: nascente, 12h, poente. Pontuam Percebemos a velhice? Sabemos o que ela significa? Ela significa? Já sabemos
Magalhães, G.P., Gonçalves, G.R., Sawaguchi, G., Taba, S. & Faria, D.L.de. que (nos) afeta.
(2012): Seguimos e seguiremos os fios, as meadas, os incômodos, os mergulhos em
“O sol nasce, eleva-se no horizonte e encontra-se a pino no meio-dia, quantos mais mal-estares promissores nascerem em nós, de nós, para nós. E,
passando então a realizar um movimento descendente, até que se ponha, ao neste junho de 2021, torcendo pelo fim da pandemia de COVID-19 a cada
fim da tarde, percorrendo o outro lado da terra durante a noite. Lembra-nos passo de todo movimento.
Freitas (1992) que, para Jung, a vida teria o mesmo ritmo e obedeceria a essa Referências
mesma curva parabólica. O momento do meio-dia, ou metade da vida, é o que AFP. ‘Somos como perfume’, diz Mãe Beata de Iemanjá à AFP, dias antes de
Jung denomina metanoia, a ocasião em que a consciência deve abrir-se para morrer. Revista Isto É. Maio, 2017. Disponível em
o outro lado e, sentindo-se mais fortalecida, pode reconsiderar o valor criativo

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<https://istoe.com.br/somos-como-perfume-diz-mae-beata-de-iemanja-a- Magalhães, G.P., Gonçalves, G.R., Sawaguchi, G., Taba, S. & Faria, D.L.de.
afp-dias-antes-de-morrer/>. Acesso em: 30 maio, 2021. (2012, agosto). Redes da vida: uma leitura junguiana sobre o envelhecimento
APREENDER. In: Michaelis online. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. e a morte. Revista Temática Kairós Gerontologia, 15(4), “Finitude/Morte &
Editora Melhoramentos Ltda. Disponível em: Velhice”, pp.133-160. Online ISSN 2176-901X. Print ISSN 1516-2567. São
https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues- Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP. Disponível em
brasileiro/apreender/. Acesso em: 09/05/2021. <https://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/view/17045>. Acesso
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Zimerman, Guite I. (2000). Velhice: aspectos biopsicossociais. Porto Alegre:
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CAPÍTULO 8 interpretação” (Latour, 1994). “Para os autores, não há de antemão o mundo
SOLIDÃO E HIPER CONVIVÊNCIA NA PANDEMIA das coisas em si de um lado e o mundo dos homens entre si de outro, pois
natureza e sociedade são ambos efeitos de redes heterogêneas”(FREIRE,
Carla Duarte Leticia de Luna). Nossa existência no mundo afeta e é afetada por tudo e
Daniella Lopes
todos.
Julia Neubuss
Luciana Menezes Reis, O ano é 2021. Achávamos que o isolamento duraria apenas 40 dias, contudo,
Maria Christina Diniz
estamos há mais de um ano com nossas vidas suspensas. A fim de nos
Mariana Luz
protegermos e tentarmos conter o avanço da pandemia, o isolamento se fez

Este artigo busca analisar a questão da saúde mental em meio à solidão necessário. No entanto, enquanto algumas pessoas tiveram que lidar com a

absoluta e hiper convivência familiar diante de um contexto de imposição de solidão do total isolamento, outras famílias precisaram se reorganizar diante

isolamento social na pandemia de COVID-19, há mais de um ano. O objetivo de um excesso de convivência.

da pesquisa é relacionar a Teoria Ator-Rede (TAR) com as tentativas de nos Como manter a saúde mental diante de tantas incertezas em um contexto de

mantermos emocionalmente saudáveis. O texto apresenta como os seres isolamento social e hiper convivência familiar?

humanos, natureza, tecnologia e objetos, que parecem irrelevantes, podem Para as pessoas que moram sozinhas, o isolamento fez com que essas pessoas

afetar nossa maneira de existir, viver e sobreviver em um momento histórico ficassem totalmente solitárias. Numa tentativa de diminuir esse sentimento

e distópico. Afinal, tudo no mundo é relacional e está interligado como uma de solidão, muitas pessoas começaram a adotar animais de estimação, cuidar

rede. Esse trabalho está entrelaçado não sobre, mas com os outros, norteada de plantas e, também, aumentaram bastante o tempo de uso da internet,

pela Pesquisa COM. fazendo videochamadas ou interagindo nas redes sociais. Muitas vezes o

De acordo com o princípio de simetria generalizada e uma antropologia simples fato de pedir uma comida por delivery já era uma forma de ter uma

simétrica, sugeridos pelos estudiosos da Teoria-Ator-Rede, Bruno Latour e mínima interação com alguma pessoa. Às vezes, ao receber o almoço, o “bom

Michel Callon, a natureza e a sociedade são uma coisa só, pois eles interagem dia”, eram as primeiras palavras do dia ditas por mim, e após a entrega, a

entre si interferindo um no outro. Para eles “tanto a natureza quanto a comunicação se resumia a um “bom almoço" e o meu “obrigada e bom

sociedade deveriam ser explicadas a partir de um quadro comum e geral de

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trabalho”. O agradecimento era pelo almoço e pela oportunidade de ouvir e estresse, já que não temos mais nenhuma válvula de escape, como
falar algumas poucas palavras naquele dia. costumávamos ter ao colocar as crianças para brincar com os amigos, tomar
Se nos construímos a partir do encontro e com o outro, não havendo esse um vinho com uma amiga para relaxar e colocar as angústias um pouco pra
encontro, como estamos nos constituindo como pessoa nesse momento? fora, ou o homem jogar seu futebol com cerveja uma vez na semana para
Seremos cada vez mais individualistas nesse mundo capitalista? Teremos aliviar as tensões do dia a dia. Emergiu uma pandemia dentro da pandemia.
medo do outro? Seremos seres individuais, indo de encontro à nossa essência Para muitas pessoas, a casa tornou-se uma prisão domiciliar, ficando, estas,
social? reféns de seus agressores.
Já as pessoas que moram com seus familiares em casa, antes da pandemia, o A partir disso, não há como dizer que estamos compartilhando da mesma
convívio chegava a ser mínimo por conta de suas obrigações e afazeres experiência. Cada pessoa está sendo afetada de uma maneira diferente de
diários. Com a pandemia e o isolamento forçado, a dinâmica da casa mudou acordo com o meio em que vive. Uns estão confortavelmente trabalhando
totalmente, e assim, todas as regras de convivência precisaram ser revistas, dentro de casa, com seu escritório montado, uma mesa confortável, sua
no intuito de tornar a rotina da casa o mais confortável e saudável para todos. cadeira gamer e ar condicionado. Em contrapartida, outros se expõem todos
Como organizar o home office da esposa, do marido, mais as aulas online dos os dias em transportes públicos lotados nos caminhos de ida e volta do
filhos? Para muitos, não há nem espaço físico para que cada um possa realizar trabalho, ou arriscam suas vidas em troca de uma remuneração quase
suas atividades com atenção, pois enquanto um está em reunião, o outro escravista, fazendo entregas de comida usando bicicleta, alugada por
prepara o almoço, o cachorro late e não é possível ouvir a reunião, o filho aplicativo, no nosso trânsito perigoso e caótico, pois precisam garantir o
reclama que a internet está lenta, pois temos três pessoas em casa usando a sustento da família. Ainda há os que não têm casa, emprego, nem comida, é
mesma internet e ainda tem o vizinho que está fazendo obra em cima de só olhar ao redor quando saímos de casa para reparar o quanto o número de
nossa cabeça. pessoas em situação de rua e vulnerabilidade aumentou.
Um dos desdobramentos desse excesso de convivência foi o aumento dos Em um cenário de tantos lados como esse, todas as inquietações e emoções
casos de violência doméstica, que é um problema denso e muito complexo de ganham proporções maiores ainda. Um episódio de desconforto que, em
saúde pública. As restrições de deslocamentos, necessárias para conter o situações comuns, deixaríamos para lá, nesse momento, agimos de maneiras
contágio do vírus, trouxeram para dentro de casa ainda mais tensão e que nem nos reconhecemos, justamente porque tudo está muito à flor da

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pele. Não é de se surpreender, portanto, que tenhamos acompanhado um Os solteiros estão mais carentes do que nunca, como conhecer pessoas se não
aumento exponencial do adoecimento mental da população durante a podemos sair para um bar, restaurante ou boate? Decidi que iria me
pandemia - e nessa perspectiva, especialmente o aumento dos casos de matricular em todos os cursos online possíveis, e numa dessas, me inscrevi
depressão, ansiedade e suicídio são sintomáticos de tudo isso. Como lidar num curso de tamborim. É, estou focando no próximo carnaval, que talvez
com a angústia de não termos controle sobre o que acontece no mundo, mas ocorra só em 2023, vai saber. Precisava de um tamborim mudo, já que não
ao mesmo tempo sermos totalmente afetados por cada folha que nasce e quero ser expulsa do meu prédio, então encomendei com um conhecido e ele
cada ação individual do ser humano? fez entrega à domicílio. Não sei o que vai dar, mas ele tem feito entrega à
domicílio já há mais de um mês aqui em casa.
A solidão na pandemia Muitas pessoas que moravam em apartamentos super pequenos, pois não
A primeira coisa que precisamos tentar fazer, é admitir que não podemos viam necessidade de um lugar maior, já que só paravam em casa para dormir
controlar absolutamente nada, já que tentar controlar o incontrolável só irá mesmo, acabaram se mudando durante a pandemia para casas maiores ou
nos deixar mais ansiosos. Uma forma de lidarmos, mais saudavelmente, com para um apartamento com varandinha, para poderem ter a companhia de
as situações às quais somos expostos, é aceitando e nos reinventando. plantas e bichos de estimação em um lugar mais confortável e menos
Precisamos pensar no que podemos fazer frente às circunstâncias do solitário. Parece que o maior desejo das pessoas nesse momento pandêmico
momento atual. No caso de um isolamento imposto, como esse que estamos é ter um lugarzinho para colocar uma rede e relaxar. As prioridades da vida,
vivendo diante de uma pandemia, para quem mora sozinho, a solidão chegou realmente, mudaram.
sem pedir licença. Além de todas as questões relacionadas ao isolamento, ainda temos que lidar
Se a pessoa não sair de casa nem para ir ao mercado, não fizer uma ligação com a parte mais difícil e trágica: os lutos advindos de perdas inesperadas.
para alguém ou participar de uma reunião online, ela pode ficar dias sem ouvir Durante o mês de maio, perdi minha maior companheira de quarentena, ou
a própria voz, pois não tem com quem conversar, talvez apenas com as da vida, a minha gatinha Lola, para uma disfunção renal de arrasar o coração.
plantas ou com o bichinho de estimação. É, praticamente, um retiro de Parece que, até ali, o isolamento social era tolerável enquanto ela deitava no
silência forçado. Já me peguei falando sozinha em casa, às vezes acho que meu teclado durante as aulas online ou acordava pela manhã enrolada em
posso estar enlouquecendo. meus braços só para miar meu primeiro bom dia. É difícil não temer os

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próximos dias quando, a todo instante, recebemos milhares (literalmente) de visto como algo mais prejudicial do que positivo (o uso prolongado e/ou
notícias desse tipo (seja pelos jornais televisivos ou pelas redes sociais, seja exclusivo da internet como meio para a socialização), hoje tem sido a maneira
sobre o falecimento de famosos ou de conhecidos, etc.). É difícil não pensar mais saudável de manter ou criar vínculos com outras pessoas.
que a próxima notícia pode ser novamente sobre alguém muito querido, Trazendo as reflexões para um diálogo com a Teoria Ator-Rede, temos de um
quando mal tivemos tempo para nos recuperarmos da anterior. lado os atores humanos atuando de forma independente em suas vidas, que
Penso em ir em algum lugar lá fora para esvaziar a cabeça, mas, não posso ou no entanto, podem interferir na vida de outras pessoas com suas ações. É o
não devo? Porque os casos e mortes causados pelo coronavírus não param, caso, por exemplo, de quando alguém não faz uso de máscaras para se
tenho medo de arriscar minha vida e também não considero justo arriscar a proteger e acaba por expor outras pessoas. Essa é uma das várias situações
vida de alguém. Como dizem, “evite sair de casa!”. Então fico sentada no sofá que evidenciam o fato de que ainda não entendemos o que é viver em uma
encarando a cadeira na qual a Lola gostava de tirar seu cochilo durante a sociedade. A empatia está sendo negada cada vez mais. Do outro lado, temos
tarde. Fico refletindo sobre quando tudo isso vai acabar, o luto e a pandemia os atores não humanos, como plantas, animais de estimação, dispositivos de
parecem eternos. Essa perda foi uma típica piada de mau gosto que a vida informática, computadores, celulares, entre outros, podendo ser
conta, minha gatinha era um alívio para a minha solidão, ela ter ido embora manipulados de acordo com a vontade dos atores humanos, ou vontade deles
sem avisar acabou me deixando mais só do que antes mesmo dela chegar. próprios, pois, plantas podem secar, animais podem morrer, celulares e
Mas vai passar, uma hora vai. computadores podem pifar.
Na falta destas interações as pessoas podem, até mesmo, adoecer, e é o que Durante o isolamento social, esses atores não humanos têm permitido, de
tem acontecido. Estudos comprovam que o estado emocional e psicológico certa forma, uma interação. A forma de nos relacionarmos já mudou muito e
podem afetar a imunidade. Aristóteles já dizia que “o homem é um ser social acredito que, após essa pandemia, irá mudar mais ainda. Alguns anos atrás,
e necessita de interações sociais por ser carente”. Não é difícil imaginarmos o seria impossível imaginar a implementação necessária do home office,
caos que pode ser esse cenário para uma pessoa que mora sozinha e está educação de forma totalmente virtual e relacionamentos amorosos iniciados
totalmente restrita a qualquer convívio social. O jeito é encarar a situação e por aplicativos, sem a possibilidade de conhecer pessoalmente a outra
tentar amenizar a solidão através de interações virtuais. Mesmo não sendo a pessoa. No entanto, é muito interessante perceber como somos capazes de
mesma coisa, é o que tem para o jantar. Assim, o que em outros tempos era criar vínculos com pessoas que conhecemos apenas de forma virtual. A forma

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que o outro gesticula, o tom de voz, a opinião política, são detalhes que outras pessoas, tendo por consequência e finalidade a evitação de
podem gerar afinidade com outras pessoas ou repulsa. aglomerações em ambientes como os de aulas e eventos. Também existe um
Tendo em vista essas considerações, o dispositivo não humano é como um isolamento social, onde temos uma quarentena que indica a permanência das
mediador, porque ajuda na interação humana e no cotidiano com outros não pessoas em suas casas, com a proibição de atividades consideradas não
humanos. Mas como ficam as pessoas que não gostam de interações virtuais essenciais, podendo chegar à implementação de um "Lockdown", tornando
como chamadas de vídeo, lives, aplicativos? Conseguiremos nos adaptar ao assim essa permanência uma obrigação, e somente sendo permitido circular
“novo normal”? Parece que teremos que nos adaptar forçadamente, pois em espaço público com autorização ou justificativa.
muitas coisas não retornarão ao que eram antes. Correm fofocas nos grupos No Rio de Janeiro, por exemplo, essas regras de afastamento são alteradas a
de whatsapp que o teletrabalho será estabelecido ad aeternum, ou seja, todo instante. Em uma semana praias e parques estão liberados, os
nunca mais haverá a pausa do café com conversas aleatórias. Confesso que restaurantes e bares abertos, e na semana seguinte nos deparamos com outra
essas informações me geraram certa angústia, pois é uma mudança que eu realidade. Ninguém aguenta mais tanta incerteza preenchendo seus dias.
não estava esperando. Principalmente nessas circunstâncias que exigem um esforço extra e diário
Nos adaptaremos a esse “novo normal” sem presença, sem toque, sem troca? para manter uma perspectiva positiva em relação ao futuro. Não poder
Somos tocados no instante zero do nosso nascimento, ocorrendo, assim, um planejar nada, nem sequer um passeio no próprio bairro é, no mínimo, uma
processo bioquímico que nos dá uma melhor chance de sobrevivência, sendo, frustração a mais para a conta dos atravessamentos desses anos pandêmicos
também, uma das coisas que nos ajuda a desenvolver a empatia. Muito antes que temos vivenciado.
dos bebês dominarem a linguagem falada, o toque é um canal essencial de Considerando, então, que construímos nossa subjetividade através do
comunicação entre cuidadores e crianças, afirma Andrew Meltzoff, professor contato com o outro, quando de uma hora para outra, por conta de uma
de psicologia e codiretor do Instituto de Aprendizagem e Ciência do Cérebro pandemia, nos vemos totalmente privados deste contato, podemos começar
da Universidade de Washington (EUA). a desenvolver vários quadros de distúrbios mentais. E eles podem ir desde
O afastamento social pode se dar de algumas maneiras diferentes. Pode uma ansiedade mais severa até quadros de depressão e outras doenças
ser através de um distanciamento onde se deve manter uma distância de, mentais e emocionais que podem se manifestar, inclusive, conjuntamente.
aproximadamente (para ser irônica na escolha das palavras), dois metros de

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Ao ficarmos sem o contato presencial humano, lançamos mão de outros relaxada e feliz, pois vi que os meus sentimentos também eram partilhados
atores sociais não humanos, como os celulares e outros dispositivos por eles.
tecnológicos que funcionarão como uma tentativa de substituir ou, ao menos, Sendo assim, pensando o ser humano como um ser relacional, podemos
suprir este contato. Contudo, por mas que vivamos interligados em redes que lançar mão de várias técnicas para diminuir (nem que seja um pouco) todo
interagem entre si, que vão desde as mídias sociais até nossa relação com o este impacto, como os sentimentos que não tiveram como ser expressados e
espaço que nos rodeia e os objetos, quando tiramos o fio mais importante de externados na relação presencial com o outro. Quantas palavras, sentimentos
ressignificação do ser humano, que é justamente o contato presencial com o e pensamentos estamos guardando em nossos silêncios? Para onde eles estão
outro no grupo, no ambiente social, nos vemos, de repente, sujeitos sem indo? Não falar sobre nossas emoções não faz com que elas desapareçam,
significados. Nesse sentido, para dizer de forma mais clara: este significado é elas vão para algum lugar, lugares esses que, infelizmente, somatizam
dado a partir do contato com o outro, no presencial com o grupo. O elemento doenças físicas e emocionais.
afetivo, que é tão importante, se manifesta no social. A arte pode ser uma poderosa aliada para trazer benefícios necessários
Certa vez, após os primeiros quatro meses de pandemia, onde não sabíamos nesse momento, como o controle de ansiedade, estresse, depressão e,
até quando duraria o isolamento social, tive o impulso irresistível de pegar um também, ajudar com problemas que, mesmo que não possam ser resolvidos,
carro e percorrer o orla do Rio de Janeiro, até achar um quiosque aberto, pois podem ser amenizados com suas variadas propostas, através de práticas
a angústia e a tristeza de estar sem contato com ninguém se apoderaram como a dança, o canto e o teatro. "O que mais gosto é de gente, e gente é
totalmente de mim. Havia alguns quiosques que estavam abrindo na como nuvem, sempre se transforma'' (Angel Vianna, 2018, Prêmio Funarte de
modalidade de delivery ou take away, podendo apenas retirar a comida para Dança). Como vemos, a arte exerce um papel fundamental como uma
levar para casa, sem poder consumir no local. Senti uma profunda alegria por alternativa terapêutica para essa ressignificação do ser humano durante a
poder então conversar um pouco com o dono do quiosque e aqueles pandemia.
funcionários, trocar informações, saber o que eles estavam pensando sobre o Apenas para ilustrar brevemente os efeitos positivos da arte, destacamos as
que ia acontecer no futuro, e também sobre suas angústias, tão similares às experiências que surgiram a partir de um grupo de pesquisa da Escola de
minhas. Ao chegar em casa percebi o quanto estava me sentindo mais Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Trata-
se do projeto “Correspondentes Quarentenades”, que em sua origem teve

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como procedimento a troca de cartas/correspondências eletrônicas entre os Restaria então a necessidade de adaptar este sujeito ao espaço privado que
participantes, que se despiram em palavras, relatando na escrita uns para os se produz desde um núcleo familiar ou não fechado em sua residência, com
outros suas rotinas, subjetividades e fragilidades no enfrentamento do “novo um psíquico previamente sendo criado apenas no âmbito destas relações,
normal”. Esse projeto veio a se desdobrar posteriormente em uma instalação estabelecendo-se assim uma primazia do indivíduo sobre o social.
cênica virtual, onde 12 cartas foram selecionadas para serem transformadas Sendo assim, se faz necessário um novo olhar, um olhar mais cuidadoso
em dramatização. para com as pessoas, que, diante desta pandemia, ficaram ainda mais
Assim, pode-se dizer que o elemento mais forte presente nessas práticas foi despotencializadas e, consequentemente, adoecidas. Posto isto, podemos
o da identificação, tanto durante a leitura entre os participantes quanto para observar a importância de novas terapêuticas, como a arteterapia, a
nós, público, assistindo as cenas, que ficaram disponíveis no site. Isso porque dançaterapia, o canto, o teatro e outras. A arte vai permitir novas formas de
entramos em contato com diversas realidades, vivências e personas que, de vivências e de elaboração das emoções, angústias e dores para a criação de
certa forma, nos confortam por trazer de volta a noção de que não estamos um quadro de saúde física e mental.
totalmente sozinhos, e também a noção de que, apesar de todas as dores,
ainda é possível encontrar espaço para criar, para afetar e para ser afetado, O impacto da pandemia e suas repercussões na organização familiar
para resgatar a nossa humanidade. Desde a gripe espanhola, que causou a morte de aproximadamente 35 mil
Deve-se ter em mente que, mesmo antes da pandemia, já passávamos por um brasileiros e outras 50 milhões em todo mundo no fim da década de 1910, os
quadro de globalização no mundo contemporâneo, que se traduz não só na povos não enfrentavam uma pandemia. Para a sociedade atual, a crise do
parte econômica mas também influi diretamente nas diversidades culturais e novo coronavírus é inédita e histórica, mudando radicalmente o cotidiano de
regionais no Brasil, interferindo diretamente na potencialidade destes lugares todos. Do dia para a noite, as pessoas se viram confinadas dentro de suas
e, consequentemente, na saúde de seus habitantes, que não são vistos em casas, em razão do vírus se espalhar facilmente pelo ar, não restando outra
suas subjetividades, mas sim, como ”mais um consumidor potencial de bens alternativa como medida essencial contra a proliferação da doença, senão o
médicos” (LUZ, Madel T. 2003). isolamento e distanciamento social.
Neste momento de pandemia, temos cada vez mais o lado social sendo Os conflitos intrafamiliares, mesmo antes da pandemia, sempre foram
colocado como uma instância secundária de influência sobre o sujeito. concebidos como um fenômeno social, complexo e multifatorial, e podem ser

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conceituados como um acontecimento amplo que ocorre em um ambiente rompimentos conjugais, a presença de álcool e drogas nos ambientes
privado, sendo, portanto, de difícil detecção. É impossível sabermos o que familiares ou mesmo perfis patológicos, fatores estes que contribuem para o
acontece na intimidade de uma casa. Por conta desse aumento de casos de evento violento. Houve um aumento grande nas consultas a psiquiatras,
violência doméstica durante a pandemia, em julho de 2020, foi aprovada uma muitas pessoas voltaram a ter crises de pânico e ansiedade por conta dessa
lei que considera o serviço de atendimento às vítimas de violência como hiper convivência e isolamento forçado. O uso de drogas ilícitas e lícitas, como
serviço essencial, garantindo o pleno funcionamento dos órgãos de o álcool, aumentou absurdamente. Vários amigos me confidenciaram que
atendimento a crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas e cidadãos estavam fumando maconha todos os dias e que chegavam a beber duas
com deficiência, vítimas de violência doméstica ou familiar. garrafas de vinho por dia.
O confinamento compulsório colocou a família em um reaprendizado de suas Os impactos da pandemia no convívio diário pode ser avaliado por diversos
próprias relações, empreendendo verdadeira auto análise de seus papéis e fenômenos em suas repercussões internalizadas ou perante à sociedade. O
funções. As repercussões da proliferação da Covid-19 na realidade das confinamento compulsório colocou a família em um reaprendizado de suas
famílias promoveram verdadeiras desestruturações da vida cotidiana, próprias relações, com os protagonistas redescobrindo a si mesmos, em
proporcionando, muitas vezes, falência desses núcleos, atualmente em situações que potencializam as interações afetivas. Costumo dizer que tive
clausura forçada e conjunta, sem o respeito aos momentos de oportunidade de mergulhar em mim nesse momento, fiz um profundo estudo
individualização e autonomia. de autoconhecimento, e me ver nua e por inteiro não foi tão fácil assim.
No processo onde se vislumbra conflitos familiares, em especial em um local No enfrentamento dos efeitos da situação de isolamento social tão
onde facilmente podem coexistir relações de poder, dominação e prolongado, é importante uma advertência em relação ao fato de existir uma
subordinação, sendo ambiente propício ao desenvolvimento de atos como irritação geral no núcleo familiar, incluindo a perda da capacidade de
abusos sexuais, negligência, temores psicológicos e abandono, a concentração e produtividade. Surgiram demandas e conflitos novos, ou que
administração destes conflitos serviriam exatamente para se evitar eclosões eram minimamente colocados fora de cena, mas que eclodiram neste
das fraquezas e fragilidades.(IBRAHIN, 2021). momento e tiveram que ser encarados de frente. Dessa forma, pautas que
O confinamento traz em si consequências importantes para os eventos eram adiadas por conta da correria do dia a dia tiveram que ser enfrentadas,
próprios da dinâmica familiar, sejam eles dificuldades cotidianas pelos

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e muitos casais se separaram logo no início da pandemia em decorrência curso de música, terapia e cuidar da casa. Agora me sinto exausta, pois estou
desse fato. sempre correndo para dar conta de tudo.
No entanto, não houve apenas separações nesse período, famílias foram Usando a TAR, optamos por trazer para o presente artigo um recorte de
formadas. Assim que o isolamento foi estabelecido, o namorado de minha dois relatos de hiper convivência no início da pandemia, exatamente sob a
irmã foi morar na casa dela, eles que vinham adiando essa união “formal”, perspectiva de duas famílias que solicitaram a preservação do anonimato com
aconteceu naturalmente, pois, já que estavam em quarentena, optaram por seus relatos relacionados aos atravessamentos pelo “novo normal”,
passar esse período juntos. Em três meses, recebi a feliz notícia de que seria evidenciando o dia a dia de convivência no mesmo espaço. Tentamos explorar
tia novamente, pois a minha irmã estava grávida. Compraram apartamento, um pouco dos prós e contras relatados pelas famílias.
se mudaram, juntaram suas plantas e construíram uma nova família com uma A primeira experiência foi relatada por um dos membros da família. A
linda bebê. família era composta por quatro pessoas: dois adultos e duas crianças que
Porém, surgiram situações de conflitos em várias áreas da sociedade, mesmo passaram a dividir a sua rotina num espaço de 75 metros quadrados de um
em não se tratando de núcleos familiares desordenados, não há que se olvidar apartamento. De forma semelhante, a segunda família, de três pessoas,
que depressão, ansiedade e estresse, tanto em relações familiares como no também estava vivenciando um estado de hiper convivência, com
trato profissional, passaram a ser fatores experimentados por grande parte questionamentos e angústias parecidas. Entre elas, os dois relatos traziam a
da sociedade, causando uma “crise de saúde mental” sem precedentes. mesma sobrecarga de serviços diários e de como a rotina dentro do mesmo
A fim de se manter a saúde mental, é preciso reconhecer que ela não é um espaço estava se adaptando em meio ao medo de sair de casa, de ser
conceito homogêneo. É justamente nos momentos de crise que se descobre contaminado pela Covid-19 ou ficar em casa numa convivência exacerbada.
qual a verdadeira potência para se enfrentar a indeterminação, e tornar o A internet, elemento de importância democrática já abordada
sofrimento uma experiência produtiva, apesar de essa palavra anteriormente no contexto de solidão, reaparece aqui, no contexto
(produtividade) estar gerando mais ansiedade nas pessoas, por não haver totalmente oposto, novamente como algo de grande impacto: em ambos os
espaço para pausa. Se estamos em casa, temos a ilusão de estarmos com mais casos ela exercia um papel decisivo de como aquele dia seria produtivo ou
tempo livre e por isso precisamos ser produtivos. Eu mesma preenchi todos não para as pessoas da casa. Quando o serviço de internet falhava, gerava
os meus horários: é aula de ioga, pilates, nova graduação, trabalho online, frustração em todos da casa, já que todos os compromissos como as aulas

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online, home office, etc. aconteciam através dela. “E muitas foram as vezes escolha de não saber das notícias e do que se passa no mundo, ou mantermo-
que a internet resolveu parar de funcionar no meio do dia.” (entrevista nos informados do caos mundial, ainda que isso seja prejudicial para a
anônima concedida). manutenção da nossa saúde mental, uma vez que as notícias, especialmente
Ainda sobre a importância da internet, tem-se a busca de exercícios para as do Brasil, têm sido sempre desanimadoras. Esse misto de política
os filhos, já que todos os livros haviam ficado na escola desde o decreto de desordenada na pandemia não tem sido nada fácil.
fechamento. A procura de alguma tarefa escolar na internet passou a ser As angústias e dificuldades apontadas pelo segundo recorte de relato de
necessária para ocupar o tempo ocioso de alguma forma. “Não tínhamos mais hiper convivência resultaram na necessidade de reformular as regras da casa:
compromissos, o dia estava complementamente sem rotina e, na busca de “Meu marido pegou a mesa da sala de jantar para trabalhar em home office
um horário de estudo que pudesse separar a manhã da tarde, passei a usar as com dois computadores e realizava telefonemas o dia inteiro.” Não há mais
folhinhas de exercícios disponibilizadas na internet. Foi em um desses separação do trabalho e da casa, e todos são forçados a compartilhar de todas
momentos que percebi que minha filha começou, subitamente, a ler tudo as tarefas, mesmo que não queiram, portanto o aspecto da privacidade
que via pela frente. Na hora fiquei tão feliz, porque ela já estava tendo crise acabou se perdendo em grande parte. Ouve-se a reunião do marido, a aula da
de choros no colégio, pois todos os colegas já estavam lendo e ela ainda não criança, a televisão ligada do outro. Difícil não se ver irritado numa situação
lia. Que emoção!”. Assim, mais uma vez fica claro que mesmo com toda dessa, onde o lar, que muitas vezes era um refúgio tranquilo e confortável,
correria e tentativas de organização familiar, procuramos nos agarrar a novas desejado nos fins de dias cheios, parece ter se transformado em outro lugar,
perspectivas e encontramos felicidade nas pequenas coisas do dia a dia, como ou, ainda, parece ter encolhido.
minha filha aprender a ler. Agora, é ela quem conta histórias para mim. Estas frases foram relatadas carregadas de angústias e críticas que nos
A primeira família também destacou a televisão como recurso para fizeram pensar como usar a criatividade para achar soluções de problemas e
contato com o meio externo. Mas com o aumento das notícias negativas este manter o diálogo com os membros da família. Redirecionamentos de espaços
recurso passou a trazer angústias.“Resolvemos desligar a televisão para nos e funções dentro de casa para minimizar a sobrecarga de alguma das partes é
isolarmos das más notícias”. Essa é, inclusive, uma dúvida constante de uma opção. Por exemplo: um ajuda o filho nas atividades escolares, enquanto
diversas pessoas: o que é o melhor a se fazer nesse momento? Diariamente, o outro adianta o almoço entre uma reunião e outra do trabalho. A refeição
precisamos lidar com a difícil decisão entre ficarmos alienados, no caso da

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juntos, que era algo praticamente impossível antes, é um momento de união Ao invés da pandemia nos desacelerar, ela nos acelerou mais ainda. Não há
da família que deve ser olhado com grande valor. corte de uma atividade para outra, fazemos tudo ao mesmo tempo e também
Ao conversar com duas amigas que são mães de crianças em idades distintas, não há um final bem definido. Haverá alguma transformação do modo de
cada uma relatou suas dificuldades e facilidades de criar uma criança em meio existir após esse caos? Algumas pessoas conseguiram diminuir suas
a uma pandemia. A mãe da criança de menos de um ano sente-se totalmente demandas e passaram a ter uma vida mais calma, já outras, numa tentativa
sobrecarregada, pois apesar dela estar trabalhando de casa como o pai, as de preencher os vazios existenciais e a solidão, preencheram seus tempo com
demandas recaem todas apenas sobre ela, que precisa ficar atrás da criança mais atividades ainda. Tirar proveito do ócio é artigo de luxo para nossas
e atenta o dia inteiro, pois está na fase de aprender a andar. Num momento mentes tão agitadas. Outro dia minha terapeuta falou que eu estava com
de desabafo, me confidenciou que chegou a se arrepender de ter tido um filho muitas oscilações de humor, então perguntei se existia alguém na face da
com esse companheiro, pois sente-se muito irritada por conta da exaustão, e Terra que não estivesse com oscilações de humor nesse momento, e ela caiu
o isolamento só intensificou as dificuldades da convivência. Alguns dias, ela na gargalhada, pois era fato a minha observação de que é natural a existência
trabalha de madrugada para poder dar conta do que não conseguiu realizar de oscilações diante de todas essas circunstâncias que são, por si só,
no decorrer do dia. oscilantes.
Já a mãe da criança de dois anos acabou de retornar para o Brasil, estava A pandemia que nós estamos atravessando e todos os fatores decorrentes
morando fora, mas com a pandemia, sentiu-se muito sozinha, visto que dela são um trágico (porém brilhante) exemplo para escancarar o quanto
moravam só ela, marido e filha. Começou a pensar sobre a vontade de estar estamos todos, de fato, conectados – na contramão de um ideal capitalista
próxima de sua mãe, amigos e família, pois o medo de que algo ruim que organiza a nossa sociedade tornando-a cada vez mais individualista,
acontecesse, enquanto ela estava longe, a dominou. Em relação à criança, ela pautada na ideia de “cada um por si”. Não há como pensarmos de forma
sente que, por mais que esteja 24 horas de seu dia em sua companhia, é como individualizada em uma pandemia mundial. O mundo inteiro está trabalhando
se não estivesse, pois tem que dar conta de tantas coisas ao mesmo tempo na pesquisa de uma vacina que controle da melhor forma possível o vírus e
em casa, que não consegue estar totalmente presente em nenhum momento. pare de matar a população. Ao invés de todos estarem com o mesmo objetivo
Esse contexto a fez refletir o que era realmente importante para ela. Percebeu e juntos, o mundo capitalista faz com que estejamos disputando preço de
que eram os vínculos anteriormente criados que davam sentido à vida. vacina, quando deveríamos estar unidos na pesquisa de uma única vacina com

105
a maior eficácia possível. Essa pandemia veio mostrar que o capitalismo, de controle do vírus (principalmente no Brasil), mesmo com as vacinas que foram
fato, não funciona. O abismo entre os ricos e mais vulneráveis apenas se desenvolvidas em tempo recorde. E, por isso, a solução perfeita para os
expandiu. problemas apresentados, evidentemente, nós não temos ainda –
Temos visto diariamente o caos provocado pelas tentativas frustradas (ou conseguimos, por outro lado, propor algumas medidas que ao menos
seriam elas bem sucedidas?) de perpetuar esse ideal em um momento tão reduzam os danos (que são inevitáveis, novamente, a todos nós, em maior ou
delicado, que exige mais união e empatia. Os vínculos afetivos são, mais do menor grau).
que nunca, fundamentais para que em meio a esse cenário assustador seja As indicações terapêuticas que têm dado algum resultado, pelo que temos
possível manter-se saudável física e mentalmente. Entretanto, é justamente observado, são: diminuir o consumo de informações, limitar tempo na
nos vínculos que os problemas apresentados nesse artigo se inserem, de internet, fazer atividade física para liberar endorfina, fazer coisas que deem
acordo com as especificidades das situações contrastantes de solidão e hiper prazer, como assistir a um pôr do sol, fazer passeios ao ar livre com as
convivência familiar aqui abordados. crianças, aproveitar o maior tempo de convívio com a família para criar
Nesse sentido, pudemos perceber durante a pesquisa que em ambas as intimidade e reforçar os laços, ler livros, ouvir música, assistir filmes e peças
circunstâncias os dispositivos tecnológicos e a internet demonstraram-se de teatro disponíveis de forma online, aprender algo novo. São muitas
como uma alternativa para a melhora (ainda que pequena) da qualidade de possibilidades, mas é preciso não entrar na neurose da produtividade
vida – atuando, primeiramente, como mediadores na interação humana, que também. Meu lema tem sido, “respira e não pira”.
está momentaneamente suspensa de maneira presencial devido ao alto risco Conclui-se, portanto, que apesar da pandemia ser um momento atípico na
de contaminação do vírus que circula no mundo. Além disso, constituem humanidade da forma como conhecemos, o fator da capacidade de
também uma possibilidade de acesso às atividades artísticas, que são adaptação permanece como o mais importante para assimilar e administrar
importantes e eficientes para efeitos de amenização das angústias internamente as mudanças repentinas. Mudam os cenários, as proporções,
psicológicas bastante recorrentes nesse período. os atores em foco, mas permanecem os caminhos possíveis para a
Mesmo que prevaleça a sensação de que já estamos perdendo muito tempo manutenção do equilíbrio e da sobrevivência. Essa pandemia poderá ter
de nossas vidas, é preciso considerar uma perspectiva de tempo histórico várias narrativas diferentes, não que alguém esteja mentindo, mas porque em
sobre um momento histórico. Pouco se sabe ainda sobre as possibilidades de cada olhar, em cada existência, há possibilidades diferentes. Há muitas

106
verdades possíveis, mas, ao mesmo tempo, não há dicotomias, estamos todos LUZ, Madel T. Novos saberes e práticas em saúde coletiva. São Paulo: Hucitec,
entrelaçados na mesma rede, os humanos e não humanos interligados em 2003.
suas trajetórias inusitadas. NAHAS, L. F.; FONTANELLA, P. A realização de casamentos no período de
pandemia. In: NEVARES, A. L. M.; XAVIER, M. P.; MARZAGÃO, S. F.
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LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia
simétrica.Tradução de Carlos Irineu da Costa. 1°ed. Rio de janeiro: Ed. 34,
1994.

107
era a segregação dos desviantes da sociedade considerada cartesianamente
“normal”.
A Institucionalização da Psicologia Brasileira se deu enquanto seus atores
CAPÍTULO 9 exerciam uma postura questionadora frente aos papéis hegemônicos
PSICOLOGIA CLÍNICA BRASILEIRA E OS ATRAVESSAMENTOS DA
predominantes nos anos 60, do mesmo modo em que postulava sobre sua
PANDEMIA DO COVID-19: REFLEXÕES ENTRE O PERÍODO DE
MARÇO DE 2020 ATÉ MARÇO DE 2021 própria instrumentalização, uma vez que a Psicologia era restrita às práticas
cerceadoras e de vestes elitistas. Com o tempo, foi possível observar o habitar

ALEXANDRE FIGUEIREDO DE OLIVEIRA


da Psicologia para direcionamentos mais diversos, porém, essas atualizações
MARCELO DE OLIVEIRA MENEZES de penetração lenta, ainda hoje padecem de seu perfilamento baseado no
MAXIMILIANO MONTEVERDE
THAÍS M. LOURENÇO
poder de investimento em saúde mental.
O ano de 2020 trouxe a instauração da pandemia do COVID-19 em território
A psicologia no Brasil foi influenciada por europeus e norte-americanos. brasileiro, quando apresentou-se a necessidade de remanejamento de
Podemos considerar que foi a família real a responsável por introduzi-la no práticas e fluxos corriqueiros, não somente relativos à atuação do
país no início de 1800, ainda que naquela altura ela não fosse nomeada dessa Psicólogo(a), mas também acerca de outras esferas da existência humana.
forma. Era, na verdade, um conjunto de conhecimentos que se desenvolveu Coleciona-se e enfrenta-se não só números assustadores e perdas
mais tarde nas bases do que veio a ser a psicologia enquanto ciência. De todo irreparáveis, mas também novos modelos de relações e modos de existência.
modo, a influência e o conhecimento que se plasmaram na psicologia A problemática da desigualdade e o evidente alargamento dos abismos
brasileira se perpetuaram com as bibliotecas, a cultura e a filosofia da realeza, causados pela pandemia seguem explanados na seguinte constatação de
sendo assim compartilhadas com a parte rica da população - no caso, os Elaine Brum, em sua coluna no El País:
próprios colonizadores e seus descendentes. Na pandemia de coronavírus há o mesmo apartheid. É bem explícito qual é a
Mais tarde, os fazeres da psicologia foram conferidos à psiquiatria. Os filhos população que tem o direito a não ser contaminada e qual é a população que
de famílias abastadas viajavam à Europa para estudar e desenvolver seus aparentemente pode ser contaminada. Não é coincidência que a primeira
trabalhos, primeiramente, nos hospícios e com a psicometria, onde a intenção morte por coronavírus no Rio de Janeiro foi uma mulher, empregada

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doméstica, a quem a “patroa” nem reconheceu o direito à dispensa sobre os Retrocessos no Cuidado à População de Rua e sobre A Extinção da
remunerada do trabalho, para fazer o necessário isolamento, nem achou Psicologia e outras Áreas de Saúde Mental na PNAISP, respectivamente.
necessário contar que poderia estar contaminada por coronavírus, cujos Ao passo que os Conselho Federais e Regionais se ocupavam da resistência às
sintomas já sentia depois de voltar de um Carnaval na Itália. Essa primeira tentativas de redução da presença profissional, também discutiam
morte no Rio é o retrato do Brasil e das relações entre raça e classe no país, internamente a regulação da atuação remota dos Psicólogos e junto à ABEP,
expostas em toda a sua brutalidade criminosa pela radicalidade de uma das definições das diretrizes temporárias do ensino remoto em Psicologia.
pandemia. (BRUM, 2020) Outrossim, percebeu-se os inúmeros desafios enfrentados pelos atores da
Psicologia, não somente sob a ótica regulatória da profissão, mas também
Concomitantemente com o aumento exponencial dos números de acerca de sua práxis, coletividades e singularidades dos profissionais,
mortalidade, desemprego e temores, a pandemia do COVID-19 também pacientes e demais instituições.
escancarou as distâncias entre os abismos que já assolavam há tempos a A Deselitização da psicologia é dada a partir de um processamento de
população brasileira. O número de mortes no ano de 2020 acompanhou informações, principalmente abordando-a em um período pandêmico, onde
proporcionalmente não só o sofrimento decorrente das pessoas próximas e todo um contexto social-econômico é colocado em pauta; encontramos a
alheias às vidas perdidas, mas também o aumento das manifestações de mesma como um dos principais desafios no trabalho do psicólogo de forma
angústia e produções psicopatológicas decorrentes do isolamento. remota. Dito isso, vamos ao encontro da necessidade de entender a mesma
Enquanto era sabido que a população demandava cada vez mais de como uma ciência que começou a ser utilizada como profissão há poucas
assistência psicológica e psicoterapêutica e a facilitação do acesso remoto décadas, e que já em seu início se viu a serviço da elite.
promovia o encurtamento das distâncias e alguma segurança aos envolvidos,
grande parte da população padecia ainda mais danosamente das Impactos da pandemia do covid-19 - o acesso à psicologia clínica ainda mais
consequências do desmonte do SUS e das políticas de Saúde Mental. No distante
decorrer do referido ano, o Conselho Federal de Psicologia publicou algumas No início de 2020 o mundo seguia sua marcha cada vez mais frenética
notas técnicas afirmando seu posicionamento contra este movimento, como desenhando o futuro. Do ponto de vista econômico, o Capital, enquanto
exemplo as Notas Públicas divulgadas em 22 de outubro e 20 de novembro, modelo praticamente unânime, ditava e ainda dita o passo da marcha.

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Avançava de modo brutal em praticamente todas as áreas humanas criando parte da mesma equação, deixando de lado a sombra que esses conceitos
e destruindo necessidades. A vida até então tinha como característica a subjetivos projetavam em nossas vidas provocando toda a sorte de doenças
rapidez, conforme previra Ítalo Calvino em seu livro póstumo, Seis Propostas físicas e psíquicas.
Para o Próximo Milênio. Nessa obra, reunião de cinco conferências dadas por A marcha do início de 2020 foi brutalmente interrompida a partir de março; a
Calvino, no período de 1985 a 1986, na universidade de Harvard, nos EUA, o vida de alguns milhões de pessoas também. Uma personagem que na verdade
autor discute algumas características que considerava serem a base para a esteve e está sempre presente, porém quase nunca desejada, passou a
avaliação do valor literário em relação aos novos tempos que se participar explicitamente da rotina do país e do mundo, obrigando-nos a
aproximavam. Ele propõe que há uma relação entre a velocidade de contar todos os dias um número enorme de pessoas que se transformaram
transmissão quase instantânea dos bits nas redes de computadores, advento em lembrança. A morte se impôs como realidade incontornável nos
do final do século XX, e o impacto que esse deslocamento da informação tem apontando o dedo reafirmando sua presença, como se de fato isso fosse
na subjetividade humana (Calvino, 1990). necessário.
Confesso que a imagem proposta por Calvino, que nos estimula a imaginar Pessoalmente, a sensação que se impunha era a de que a morte também me
fragmentos de dados fluindo em cabos, como o sangue de nossas artérias, observava e ainda me observa. Conforme a quantidade de mortos é
interconectando máquinas a uma velocidade inimaginável, nunca mais me anunciada é como se um círculo, que antes parecia distante, passasse a se
largou. Desde então, fico estarrecido em ver como tudo se movimenta com estreitar. Vejo com angústia aqueles mortos que cada vez mais têm rostos
cada vez mais rapidez. Sinto que, querendo ou não, estou inserido nesse conhecidos. É muito difícil conviver com a impotência da espera de que tudo
processo, meu corpo e minha mente já embarcaram nesse fluxo que acaba passe e eu permaneça.
nublando minha capacidade de discernir entre o necessário e o supérfluo. O fato é que a pandemia do Coronavírus, ainda que houvesse rumores de que
Essa furiosa e inebriante rapidez da marcha global seguia seu ritmo nos era inevitável já no fim de 2019, deu início à alteração de muitas noções
arrastando atrás de si, pessoas que sem muito espaço e tempo para cristalizadas na marcha do ano de 2020. Dentre muitos efeitos que
desconfiar e, portanto, para refletir sobre o que é vontade legítima ou uma poderíamos listar, quase todos danosos, seja do ponto de vista social ou
introjeção invasiva do coletivo, iam atrás da promessa de que produção, econômico, destacamos o impacto sobre a subjetividade. A partir da
velocidade, felicidade, prestígio, metas “desafiadoras” e bem estar faziam pandemia nossas noções sobre tempo, produção e bem-estar precisaram ser

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ressignificadas. Impuseram-se novos conceitos convertidos em formas de tratamento psicológico, dado que este é em grande medida restrito a um
viver como quarentena e distanciamento social. Em consequência disso, a certo patamar de renda e nível social, agora, além disso, temos a dificuldade
sobrevivência de muitos foi simplesmente inviabilizada, pessoas que não imposta pela necessidade de acesso à tecnologia, onde sem um serviço de
foram diretamente eliminadas pelo vírus, mas abatidas pela insegurança internet e equipamentos minimamente satisfatórios não há condição de ser
econômica e a total falta de meios para manter a vida com o mínimo de ouvido.
dignidade, agora estão totalmente sem perspectivas, são os mortos-vivos da A pandemia é um daqueles eventos que atravessam a história e a vida de cada
pandemia. um. Nesse sentido, a ansiedade e a depressão atravessaram grande parte das
Esse é o cenário com seu rastro de destruição causado pelo impacto da pessoas. Esses males, que já eram grandes, converteram-se num sofrimento
pandemia do coronavírus. O efeito foi ainda pior em países como o Brasil, ainda mais profundo. O afastamento do convívio pessoal, o isolamento em
onde a desigualdade social é enorme e a administração do problema, conjunto com uma nova forma de convivência, as incertezas quanto ao
sobretudo na esfera federal de poder, colabora para o aprofundamento da próprio sustento, aliado ao medo da morte transformaram-se em feridas
crise sanitária ao invés de mitigá-la. abertas.
As incertezas diante da vida, a percepção da proximidade da morte, o Apesar de todo esse sofrimento imposto pelas circunstâncias, existem
confinamento a que eu e muitos tiveram, e ainda têm, de se submeter como aqueles, os que puderam, que apesar da dor procuraram ajuda para enfrentar
única medida de proteção e o distanciamento social potencializaram a busca suas questões. Mas também há aqueles que dão as costas à realidade e
por tratamento psicológico. As angústias trazidas por uma nova fórmula de passam a negá-la. A negação e suas consequências potencializam o desastre,
viver marcada pela imposição e a necessidade da tecnologia e pelo convívio pois jogam as pessoas, desprotegidas, como gado numa arena para lutar
forçado em lares que já não eram marcados pela harmonia, e mesmo contra um inimigo invisível. Nesse processo, morre o gado e quem não faz
naqueles antes harmoniosos, fizeram explodir a necessidade de atendimento parte dele.
terapêutico. Chegamos assim aos que mais sofrem com a pandemia. Justamente aqueles
Nesse ponto, coloca-se uma importante questão: como dar conta do que antes já não tinham acesso ao processo terapêutico por motivos
atendimento dessas necessidades num país com tantas diferenças sociais? Se estruturais, mas que agora encontram-se desempregados, com as condições
antes havia uma barreira econômica evidente a ser vencida para o acesso ao materiais ainda mais depreciadas. Há famílias que sem dinheiro para comprar

111
gás catam madeira, lenha para cozinhar o pouco que têm. Vi essa cena na TV com a atitude de nossa classe média que chegou ao ponto de escravizar
e custei a acreditar que tão perto de mim pessoas cozinhavam com lenha, não aqueles que lhes servem em troca de um salário para manter o menos
como uma opção, mas porque não havia outra alternativa. A pandemia tem alterado possível o seu próprio modo de viver. Tanto quanto negar a realidade
escancarado de modo cruel as nossas desigualdades nos colocado frente a de morte trazida pelo vírus, fechar os olhos a essa escravidão moderna é fazer
frente com essas pessoas que antes nos recusávamos a ver. parte dessa tragédia.
Como se não bastasse, nesse momento as barreiras tecnológicas elevam-se
como um muro impossível de ser ultrapassado. Nesse contexto, a desejável Principais demandas, funcionalidades e desafios do atendimento remoto
deselitização do serviço psicológico fica muito mais distante. Por conseguinte, Com a pandemia do Covid 19 e seu agravamento ao longo do ano de 2020,
permanecem na sombra um número enorme de pessoas cujo sofrimento é diversas iniciativas digitais têm sido disponibilizadas como estratégias para o
silencioso para o restante da sociedade. Suas agonias, traumas, tristezas e enfrentamento do Covid-19. Tanto o Ministério da Saúde como outras
dores estão sufocadas atrás de um muro muito alto, o suficiente para que a operadoras de seguro passaram a disponibilizar e investir em ferramentas
sociedade que está do outro lado finja não ouvir seus lamentos. como a telemedicina e o telessaúde, como o TeleSus, disponibilizando assim
E aqui cabe um exemplo bastante eloquente sobre o tamanho do muro que o atendimento pré-clínico por telefone, chat on-line e whatsapp, além de
separa nossa sociedade. Os jornais, que todos os dias contam infectados e serviços de acompanhamento e monitoramento remoto dos casos suspeitos
cadáveres, também contam histórias dando rosto aos números. Desde o início de Covid-19, além de darem suporte para os profissionais de saúde tirarem
da pandemia não foram poucas as mulheres, em sua maioria negras, dúvidas.
empregadas domésticas, que foram aprisionadas nas casas de seus patrões. Além dos serviços disponibilizados pelo Ministério da Saúde para a população
Impedidas de voltarem a suas casas para preservar a saúde e a longevidade em geral e os profissionais da saúde, diversas operadoras de saúde passaram
daqueles a quem serviam, passaram a ser escravas modernas, proibidas de a disponibilizar o serviço de telemedicina com o intuito de não expor seus
ver a própria família a fim de prover os serviços que seus patrões sequer segurados ao vírus do Coronavírus possibilitando o atendimento de algumas
podiam cogitar realizar. especialidades médicas através do atendimento virtual. Tendo em vista que
É evidente que o fosso que separa nossa sociedade se ampliou e as condições esses serviços, passaram a ser ferramentas importantes para enfrentar os
econômicas pioraram, mas o que mais me saltou aos olhos foi me deparar desafios dos sistemas de saúde universais, constituindo como uma área

112
estratégica por seu potencial intrínseco de ser fonte geradora de inovações como é o caso do envelhecimento populacional nos países europeus
demandando avanços tecnológicos oriundos de outras área, e em função da proporcionado assim uma ampliação da demanda dos serviços de saúde.
sua natureza interdisciplinar e de suas inter-relações dinâmicas , pela O Brasil tem oferecido oportunidades para o desenvolvimento e as aplicações
possibilidade de impulsionar diferentes indústrias . Do ponto de vista social da telemedicina e outros serviços para o atendimento remoto. Com sua
tem o potencial de democratizar o acesso aos serviços de saúde, integrando grande extensão territorial, milhares de locais isolados e de difícil acesso,
regiões remotas com serviços de saúde localizados em hospitais e centros de distribuição desigual de recursos médicos de boa qualidade, entre outros
referência, no caso das operadoras de saúde, no que se refere à prevenção, aspectos que vem desafiando a efetivação do direito à saúde – universal,
diagnóstico e tratamento. O atendimento remoto , em seu sentido mais integral e equânime – permite prever a existência de um grande potencial de
amplo, pode ser definido como o uso das tecnologias de informação e expansão da telemedicina no país. Nesse sentido diversas iniciativas vêm
comunicação na saúde viabilizando a oferta de serviços ligados aos cuidados ocorrendo no processo de desenvolvimento do atendimento remoto em
com a saúde, ampliação da atenção e da cobertura, especialmente nos casos diversas áreas . Do ponto de vista da iniciativa privada, perspectivas de
em que a distância é um fator crítico no Brasil. Acesso, equidade e custo são crescimento do mercado, oportunidades de negócios, ampliação dos serviços
os principais problemas enfrentados pelos sistemas universais de saúde em prestados, potencial redução do número de atendimentos e de internações,
todo o mundo, em um país no qual a população se apresenta crescentemente aumento da prevalência de doenças crônicas, controle de custos, entre outros
longeva e de mudanças nas características de saúde e doença, com particular fatores, explicam o crescente interesse nessa indústria emergente.
prevalência de doenças crônicas. Situando o final do século XX como o ponto Igualmente inclui fornecedores de serviços, sobretudo empresas de
de surgimento da moderna telemedicina no esteio do grande tecnologia da informação (TI) e de equipamentos, tais como aparelhos de
desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, ela ainda é comunicação, computadores (hardware), equipamentos de transmissão e
uma atividade relativamente emergente, pelo fato de enfrentar desafios de recepção (modems, roteadores etc.), cujos produtos e serviços são adquiridos
ordem técnica, legal, ética, regulatória, cultural , entre outros, o que tem quer pelas empresas de equipamentos médicos, quer pelas empresas de
restringido o seu processo de difusão, sendo que nos últimos anos, foram telemedicina. Destaca-se também a indústria de software, com o
criadas condições extremamente favoráveis ao seu pleno desenvolvimento desenvolvimento de sistemas de informações customizados para atender a

113
uma demanda cada vez maior de novas e diversificadas aplicações a respeito computador. Também tive que prestar atenção para as questões pessoais
do atendimento remoto na área da saúde . com a pandemia não se atravessassem nos atendimentos. Tirei uma semana
Com esse cenário, a Psicologia precisou se reinventar , tendo que adaptar o de folga para me restabelecer como pessoa que também está vivendo uma
seu fazer e o atendimento on-line, apresentando com isso uma nova realidade pandemia e não somente aquela profissional que está ouvindo as
a maioria dos psicólogos. Nesse contexto, a Comissão de Ética do CRPS se experiências dos outros”. Marina também conta que com relação ao
deparou com diversas situações e dilemas éticos acerca de que posições e atendimento das crianças, conta que começaram a andar pelas casas com o
práticas deveriam ser tomadas diante do isolamento social no período da celular em videochamada para mostrar objetos, decoração ou animais de
pandemia, uma vez que o mesmo está atrelado, muitas vezes a práticas de estimação, sobre os quais falavam durante o atendimento presencial.
segmentação e segregação, como aquelas historicamente produzidas no “Percebi que passamos a transitar por uma vida concreta e isso não acontecia
modelo manicomial. Cabe destacar alguns depoimentos de profissionais que antes. Combinei com os pais de deixar o ambiente seguro, com brinquedos,
ja utilizavam o atendimento remoto antes da pandemia , como a psicóloga assim eles podiam, ir me mostrando e a gente brincando , via camera”. Já com
clínica e psicanalista Marina Pombo (CRP 07/20844) atendia de forma remota adolescentes essa adaptação não foi tão facil. “ A adolescência é um momento
, antes da pandemia, apenas um paciente e com a necessidade de ampliar que necessita de muita privacidade e estar on-line quebra essa barreira, há
esses atendimentos, foi preciso transformar parte de sua casa em um sempre essa preocupação de estar sendo vigiado ou observado”. A psicóloga
consultório. “ Sempre tive cuidado de informar as/os pacientes sobre coisas clínica Thais Vieira (CRP 07/24608) acabou optando somente por atender de
que poderiam acontecer que não tinham a ver com o atendimento, mas que forma remota, mesmo tendo uma redução do número de pacientes. "Não
fazem parte de uma vida real. Por exemplo: tenho dois gatos que miam muito tinha como garantir os cuidados sanitários necessários em uma sala com
se eu fecho a porta , então eles passaram a fazer parte das sessões”, revela. pouca ventilação. “Nos psicologia, enquanto profissionais e agentes políticos,
Para ela, com a nova realidade, vida privada, social e profissional acabaram se devemos garantir esse olhar para o social, para o coletivo, que é o que a
misturando. “ percebo que perdemos o limite do que é o momento do pandemia chama”. A partir dessa decisão, o principal desafio foi organizar um
descanso e o que é o momento do trabalho. Estamos o tempo inteiro no consultório clínico dentro de casa. “ Eu sou mãe de uma criança pequena,
whatsapp, conectados na internet, e isso, nos atendimentos, pesa bastante, passo o dia com minha filha e, quando meu marido chega de noite, vou
porque saímos de uma sessão on-line para entrar em outra, tudo na frente do trabalhar. Os pacientes começaram a ficar sabendo mais sobre minha vida

114
pessoal, ouviam minha filha batendo na porta ou meus gatos, por exemplo”. orientações psicológicas complementares ao tratamento presencial, e outros
A psicóloga Thais relatou consequências físicas nesse sentido. “Ficar com o serviços específicos autorizados pelas resoluções. Para o CFP o tratamento
corpo parado, sentado, diante de uma tela, com fones de ouvido, durante psicoterapêutico completo continua sem alterações na forma da lei, ou seja,
muitas horas me deixa muito cansada no final dos atendimentos. Comecei é permitido exclusivamente na forma presencial, e a psicoterapia por
com zumbido nos ouvidos, dor nos olhos e dor nas costas”. Apesar da comunicação virtual continua uma prática profissional proibida no país, sendo
sobrecarga,ela ressalta um lado positivo disso tudo. “Antes da Covid-19, permitido apenas em casos de pesquisa experimental, e em hipótese alguma
minha vida era uma correria e bem desgastante, lembro de me sentir ansiosa, pode ser remunerada. Longe de ser uma ameaça aos serviços de orientação
correndo contra o tempo para poder dar conta de tudo. Agora, tenho outros psicológica presenciais, a normatização destes serviços mediados pela
cansaços, mas essa ansiedade para enfrentar o trânsito, por exemplo, eu não Internet possibilita a ampliação de alguns serviços prestados por estes
tenho mais. De certa forma, meu tempo está mais organizado e eu fico mais profissionais, sem prejuízo dos atendimentos presenciais. Os atendimentos
com a minha filha”, analisa. em saúde mental, que antes eram limitados a alguns grupos, hoje são
Partindo desses depoimentos , verificou-se que o órgão abraçou esta luta e acessíveis a um número bem maior de pessoas graças à ajuda dos recursos da
com os primeiros debates e inovou conseguindo a aprovação de importantes tecnologia.
resoluções que normatizam as ações e a conduta profissional para este tipo Os debates realizados a partir do contexto da pandemia resultaram na
de orientação psicológica com o uso de ferramentas da internet. emissão de três resoluções do CFP que, juntas, regulamentaram e
Primeiramente não há como negar que um serviço de orientação psicológica estabeleceram normas referentes aos tipos de serviços de orientação
através da internet é vantajoso por facilitar o acesso a um tipo de psicológica que poderiam ser realizados por comunicação à distância com o
atendimento que ainda é pouco acessível para muitos. Em segunda lugar, uso de recursos tecnológicos. O Conselho Federal de Psicologia (CFP), emitiu
representa um avanço dos órgãos reguladores ao permitir que os psicólogos as seguintes resoluções: CFP N° 003/2000, CFP N° 012/2005 e CFP N° 011/
se utilizem de uma tecnologia atualmente em expansão e explorada com 2012; disponíveis no site oficial do CFP. E atualmente, o CFP autoriza os
qualidade de atendimento em outras áreas de saúde, a exemplo dos diversos profissionais de Psicologia a realizarem de forma virtual os seguintes serviços:
serviços de saúde oferecidos pela telemedicina. É importante chamar atenção os atendimentos de orientação psicológica virtual estão limitados a 20
para que o tipo de serviço a distância autorizado pelo CFP refere-se a sessões virtuais; devem acontecer de forma eventual e complementar as

115
sessões presenciais estão incluídas orientações de diversos tipos, como as A resolução nº 11 de maio de 2018 trouxe a regulamentação do exercício da
profissionais, de aprendizagem escolar e às afetivo-sexuais; são permitidos a Psicologia mediado pela tecnologia, ampliando as possibilidades de atuação
utilização de e-mails e demais recursos tecnológicos como ferramentas dos profissionais, bem como atrelava a prática às determinações como a
complementares ao tratamento. Também permite que essas sessões virtuais necessidade de cadastro e proibições quanto ao atendimento à vítimas de
podem ainda ser de maneira síncrona ou assíncrona, ou seja, a comunicação emergências e desastres. O curso da pandemia exigiu nova regulamentação e
entre o profissional e seu cliente durante as sessões pode ou não acontecer foi publicada a Resolução nº 4 de março de 2020, que revogara a primeira e
em tempo real, sendo a orientação psicológica virtual síncrona refere-se ao orientava os profissionais para o exercício em caráter excepcional e ainda, em
atendimento realizado pelo Psicólogo e o paciente interagindo em tempo atendimento às demandas prioritárias do grupo conhecidos como Essenciais.
real, permitindo a comunicação direta entre ambos, que podem ser A caracterização pautada pela essencialidade localiza a psicologia enquanto
viabilizadas através de mensagens de vídeos em tempo real. Já o aspecto da matéria de saúde e sua atuação em linha de frente transborda além
orientação virtual assíncrona possibilita o atendimento de pacientes que não instituições, quando administra as demandas dos pacientes e clientes em
estão disponíveis no momento da sessão, ou seja, não há uma interação em isolamento e, naturalmente, suas demandas particulares enquanto
tempo real do Psicólogo e seu paciente. Neste tipo podem ser utilizados profissionais, por muitas vezes, autônomos.
vídeos, porém estas mensagens são gravadas previamente. A reflexão sobre a realidade e contemporaneidade do atendimento remoto
O Brasil é um país que oferece oportunidades significativas para o versa sobre a ambivalência da atualização e modernização da prática, bem
desenvolvimento, e as aplicações da telemedicina e o crescente interesse como desvela a raiz elitista da restrição a duas camadas sociais relevantes, a
empresarial nacional e internacional nesta indústria emergente sinalizam esta que pode pagar por saúde e, que também, teve acesso ao conhecimento
perspectiva, abrindo-se francas oportunidades para a construção de sobre quanto ela vale. Afinal, não seria impensável exigir reconhecimento da
vantagens competitivas em determinados nichos de mercado para esse psicoterapia enquanto serviço essencial à uma população que, juntamente
núcleo original de empresas nacionais. com elaboração, recurso simbólico e acolhimento, carecia também de
oxigênio, comida e sedativos para intubação?
Considerações Finais Frente ao colapso do sistema de saúde em algumas localidades Brasileiras,
escancarou-se o temor de não ser escolhido. Quem pode ser salvo? Quem

116
ainda tem tempo de vida suficiente para merecer cuidado? Quem fará jus ao uma cartilha. Estudos de Psicologia (Campinas), 37, e200065.
respirador? http://dx.doi.org/10.1590/1982-0275202037e200065 [ Links ]
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117
Conselho Federal de Psicologia (2020a). Nota De Posicionamento do Conselho surgiram alguns impasses iniciais quanto ao recorte do tema. Exatamente
Federal de Psicologia sobre Extinção da Psicologia e outras Áreas da Saúde que aspecto do luto abordar no âmbito desta pandemia?
Mental Previstas na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde Das Pessoas Inicialmente pensamos no drama daqueles que viveram a perda de seus
Privadas de Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP., de 20 de Novembro de entes queridos por covid-19 e que são impedidos de viver o rito. Depois, à
2020. Recuperado em março 24, 2020, de https://site.cfp.org.br/wp- medida que fomos problematizando e ampliando o debate entre nós,
content/uploads/2020/11/NOTA-DE-POSICIONAMENTO.pdf percebemos que havia diferentes camadas de sentido e possíveis análises
Conselho Federal de Psicologia (2020a). Portaria Conjunta n 4º/2020. sociais sobre esse tema. Foi então que surgiram algumas reflexões que
Recuperado em março 24, 2020, de https://site.cfp.org.br/wp- foram alimentando a nossa discussão inicial: como se dá o impacto do luto
content/uploads/2020/12/Nota-P%C3%BAblica_23_12_20.pdf em ambientes onde a morte sempre foi rotina, como em comunidades e
periferias, por exemplo? Existe uma política que alimenta o ciclo de
CAPÍTULO 10 extermínio? Seria a pandemia oportunamente utilizada para fortalecer um
A MORTE COMO ROTINA: POLÍTICA DA MORTE E O LUTO NA
projeto de necropolítica já existente? E se sim, como abordar esse tema?
PANDEMIA COVID-19
A partir dessas perguntas iniciais, nos demos conta de que a palavra
rotina havia se tornado um sinônimo para a própria banalização da vida, em
BERNARDO ARRAES GONZALEZ CRUZ
DANIELA VIEIRA
parte como recurso de defesa psíquica, a qual todos lançamos mão, contudo
MARCELA APARECIDA MARQUES FERREIRA seria ingênuo de nossa parte não ir para além dessa questão. Com os
MARIANA DE CASTRO OLIVEIRA
RENAN DE ARAUJO TELLES
debates vistos em sala de aula acerca da teoria de Foucault, percebemos
uma pista para um caminho de possíveis reflexões acerca da psicologia

O tema da morte tornou-se um imperativo presente em nossa sociedade social, unindo o tema do luto ao tema da biopolítica e da necropolítica.

desde o início da pandemia em março de 2020. Quando nos foi proposta a Seguindo essa linha de raciocínio começamos a ampliar nosso olhar,

tarefa de realização deste artigo, logo nos ocorreu o tema do luto, e de modo retomando a ideia da banalização da morte, e agora percebendo-a também

unânime não conseguimos pensar em outra possibilidade. Contudo, como um fator sócio-cultural e comunitário, não mais apenas na esfera
individual. Por fim, o tema da biopolítica aliado a discussão sobre a

118
necropolítica nos deu a tônica necessária para estruturar a primeira etapa estabelecido por Foucault. Sabemos que as populações vulneráveis sempre
deste trabalho. fizeram parte de uma política nefasta de Estado. Não obstante, esses
Pensando no luto em ambientes onde a morte sempre foi rotina, como mesmos indivíduos são afetados diariamente por uma política de “deixar
em comunidades e periferias, por exemplo, seria a pandemia morrer”, onde se determina formas de eliminação dos descartáveis,
oportunamente utilizada para fortalecer um projeto de necropolítica já invisíveis e miseráveis.
existente? No contexto da pandemia, destaca-se a exclusão social e carência
A partir da noção de "Biopolítica", trabalhada por Michel Foucault, e das populações vulneráveis, que vivem em condições precárias, sem
“Necropolítica”, postulada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, o oportunidade de terem um acompanhamento psicossocial, programas
artigo tem como objetivo fomentar reflexões críticas sobre a morte e o luto, específicos de saúde e assistência social. Nesse aspecto, destacamos a
tomando por contexto de análise a pandemia do covid-19 no Brasil. política e mundos de morte, onde Mbembe trata a questão da “seletividade
Além da reflexão acima, pretendemos através desse artigo : discutir os e descartabilidade das vidas” .
conceitos de "Biopolítica" e “Necropolítica”, utilizando-os como chave de Sendo assim, nosso artigo tem o propósito de discutir e refletir sobre os
leitura para interpretar a letalidade dos efeitos sociais da pandemia do impactos sociais e psicológicos em que essas populações vulneráveis são
covid-19; verificar em que medida as ações e/ou omissões do Estado fazem marcadas no enlutamento e perda de seus familiares no contexto da
parte de uma “política de morte” de grupos historicamente “deixados para pandemia da Covid-19, além de atravessamentos e apontamentos que
morrer” e não passíveis de comoção e luto social e por último, analisar de iremos elaborar a partir dos conceitos de necropolítica e biopolítica.
que modo a pandemia do covid-19 contribuiu para o aprofundamento das Para cumprirmos esse propósito nos baseamos na Teoria Ator–Rede
desigualdades e das mazelas estruturais do Brasil. (TAR) como método para a construção do trabalho, visto que o olhar deste
O momento atual da pandemia da Covid-19, a gravidade do tema, dentre está voltado para os sujeitos. Para explicar a TAR, utilizaremos como base o
outras questões nos levaram a refletir sobre a relevância e a urgência na artigo “Diálogos, marcas e conexões: o método em Teoria Ator-Rede”, de
discussão e reflexão de como a pandemia tem afetado a população de Gustavo Borges de Oliveira, pois vislumbramos neste artigo um retrato
maneiras distintas. Nesse sentido, passamos a apontar os conceitos de descomplicado da teoria.
necropolítica e necropoder, elaborados por Mbembe e biopolítica,

119
O artigo referenciado encara a TAR como contraponto do pensamento dinâmica das coisas, nas transformações, na performance e não no que é
moderno ocidental, advindo do realismo euro-americano, que se baseia em regular, no que está estabilizado. (apud OLIVEIRA, 2016, p.193)
uma realidade determinada, que não se afeta. Enquanto a TAR seria a A escolha da TAR se deu por ser aderente à motivação do grupo em
possibilidade de conexão entres os diversos atores envolvidos em quaisquer relação à escolha do tema. Nos sensibilizamos por essa temática e
circunstâncias. gostaríamos de através deste trabalho convidar o leitor para as reflexões
Para a TAR tudo é formado como uma rede costurada por atores trazidas e a sua gravidade do ponto de vista social. Assim, entendemos que
humanos e não humanos que encontram-se em movimento, e a TAR cumpre esse objetivo de aproximação, nos dá a possibilidade de trazer
principalmente, onde as partes envolvidas se cruzam. Está relacionada à um relato, nos permite sentir afetados e afetar e não apenas produzir.
prática, ao movimento, à flexibilidade. Na construção deste relato nos deparamos com o conceito de biopolítica
Para Mol(2010) a TAR pode ser chamada de teoria se um trabalho dela para Foucault. Primeiro pareceu importante compreender a ideia de poder
alterar radicalmente o termo teoria. Para ela ser uma teoria, é preciso que para Foucault. Para ele o poder se articula de modo irregular, capilar,
os estudiosos ajudem a sintonizar o mundo para se ver e ouvir, sentir e difundindo-se através de uma rede social que transita por diferentes
saborear, para de fato apreciá-lo. A TAR é um modo de se envolver com o instituições como hospitais, igrejas, associações, família, escola, etc. Sendo
mundo, que ajuda na obtenção de sentido do que está acontecendo, no que assim o poder se expressa num agrupamento multilateral de forças, de
merece preocupação ou cuidado, raiva ou amor ou simplesmente atenção. modo que podemos compreender que ele está para além de uma visão
A força da TAR está em sua adaptabilidade ou sensibilidade. Ela ajuda a clássica pautada na lógica de dominantes e dominados. Segundo Foucault
contar casos, desenhar contrastes, transformar perguntas e colocá-las de (apud FURTADO & CAMILO, 2016),
cabeça para baixo, focar no inesperado, adicionar sensibilidade, propor “(...) Não é da onisciência de um soberano-que-tudo-sabe que o poder
novos termos, mudar a história de um contexto para o outro; além de tudo emana ou conserva-se. Ele irradia-se de modo microfísico, sem possuir um
isso, ser um amante da realidade. Com a TAR, lidamos de forma diferente centro permanente. As relações de força são móveis e suscetíveis de se
com o mundo, criamos o hábito de observar como diversas realidades são modificarem, compõem arranjos transitórios dados a uma constante
performadas por diferentes redes. Nela, vamos sendo afetados por coisas transfiguração.” (p.35)
diversas. Assim, as nossas percepções e sensibilidades se focam mais na

120
Ao observar as mudanças da relação de poder ao final do século XVIII, onde milhares de pessoas estão morrendo no Brasil diariamente. Os efeitos
Foucault desenvolve o conceito de biopolítica, pretendendo alcançar a da Covid-19 no Brasil, bem como os impactos causados pela pandemia
questão de como a vida biológica se converte em objeto político a partir da atinge às populações de formas distintas. Neste sentido, ressaltamos os
sua normalização humana, passível de ser administrada. Segundo Wermuth impactos sociais e psicológicos causados à população vulnerável brasileira,
(2017), a exceção sobre esse controle para Foucault, seria a morte, por sobretudo os negros e moradores de comunidades.
considerar que esta se encontra na esfera privada de cada indivíduo. Especificamente neste artigo, ao tratar do luto na pandemia, refletimos
Além do conceito de Biopolítica de Foucault, refletimos também sobre a sobre o cenário avassalador das perdas dos entes queridos, da ausência do
Necropolítica, termo elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. ritual de despedida, e da invisibilidade social da população mais vulnerável.
Nesse sentido, acreditamos que os dois conceitos estão interligados, e a Nesta perspectiva, surgiram questionamentos e reflexões sobre qual seria o
Necropolítica, principalmente quando se trata de pessoas pobres e negras impacto do luto em ambientes onde a morte sempre foi rotina, como em
no Brasil, em sua grande maioria moradoras de favelas e comunidades. A comunidades e periferias? Ainda, existe uma política que promova o ciclo de
proposta de Mbembe ao tratar o termo necropolítica é demonstrar as morte? Percebemos nas discussões , leituras e encontros do grupo que a
diversas formas, pelos quais no mundo contemporâneo, existem estruturas morte e o luto em espaços das comunidades e periferias podem ter traços
com o intuito de provocar a destruição de determinados grupos. peculiares no que diz respeito à falta de comoção social e da própria
A problemática que surge a partir do conceito formulado por Mbembe, sociedade em "descartar vidas" que são selecionadas dentro de uma política
nos leva à reflexão de diversos questionamentos. A morte massificada das de morte, de acordo com Mbembe. Acrescentando, essa população
vidas consideradas "descartáveis" traz no contexto histórico desde o Brasil vulnerável tem, ainda, o peso de ter que trabalhar em plena pandemia, para
Colônia, onde a população pobre e negra é alvo do Estado desde a época da não morrer de fome, pois segundo nosso governo negacionista, "a economia
escravidão. Essa política de morte, como elucida Mbembe, persiste até hoje não pode parar".
no Brasil, na seletividade de quem deve morrer e quem pode viver. Desse modo, a professora associada da USP e coordenadora do grupo de
Pensando nessa "política de morte" e na violência persistente de grupos estudos Periferias USP, Gislene Aparecida dos Santos, traz uma boa reflexão:
historicamente "deixados para morrer", consideramos necessária a reflexão
e discussão a partir do momento de pandemia em que estamos vivendo,

121
"Necropolítica é o modo como o Estado, por meio de suas políticas, Outro ponto que queremos destacar nesta discussão, é o caráter
decide, a cada minuto, quem vive e quem morre. Penso que, agora, isso negacionista que desconsidera o ponto de vista científico, a ausência de
possa estar ocorrendo em hospitais de todo o mundo. Não faltam dados políticas de promoção à saúde efetivas para a contenção da doença, e a
para indicar que o tratamento das pessoas pobres e pretas, nos serviços de desconsideração em relação às medidas de proteção, isolamento e
saúde, também é desigual. Chama a atenção o fato de a morte dessas distanciamento social, claramente enunciadas pelo governo federal. Temos
pessoas pretas, pardas e das favelas nunca ter sido enxergada como parte ainda observado a profusão do discurso de que a vida de trabalho e
de um flagelo social ou de uma hecatombe." consumo precisa seguir normalmente, sem considerar os riscos impostos à
Em consonância com o que foi apontado acima, diversos estudos dão população, para que o país e a economia continue a “plenos pulmões”,
conta de demonstrar que há uma nítida diferença de mortalidade por classe mesmo que isso implique em colocar a população numa exposição
social e raça, sendo as pessoas pobres, em sua maior parte negras, as que sistemática de contágio e morte.
são mais vulneráveis e expostas a morte, em relação às brancas, portanto, O uso dos conceitos de biopolítica e necropolítica, enquanto lentes de
são as que mais morrem em decorrência da doença. análise para o contexto da pandemia, tem nos permitido enxergar
Neste sentido, o desigual comportamento da doença entre as populações claramente a face mais cruel, genocida e racista da gestão da pandemia.
brancas e negras confirma o que já sabemos: a desigualdade social e o Neste sentido, a pandêmica tem escancarado e evidenciado a gestão
racismo têm impacto direto nas mortes por coronavírus. Sabemos o quanto necropolítica presente – historicamente - em nosso território, sobretudo no
o racismo estrutural e estruturante contribuiu historicamente para que as que tange às ações e omissões do governo brasileiro, orientadas pelo lema
populações pretas apresentassem os piores indicadores sociais e de saúde, do fazer morrer e deixar morrer.
estando em clara desvantagem em relação às pessoas brancas. Ademais, Desta maneira, se faz morrer todas as vezes que o governo expõe a classe
para as parcelas populacionais situadas nos territórios periféricos, onde trabalhadora as aglomerações cotidianas nos transportes públicos, quando
vivem majoritariamente a população negra e pobre, nem sempre dispõem não há determinação para que haja isolamento social, e se desconsidera o
do privilégio de cumprirem as medidas de isolamento e distanciamento uso de máscara. E assim, se deixa morrer quando não há políticas públicas
social, em virtude do adensamento domiciliar excessivo, estando em de saúde adequadas, quando há ausência de investimentos e sucateamento
condições de maior vulnerabilidade aos riscos de contaminação e morte.

122
do sistema de saúde, quando há estímulo uso preventivo do uso inesperadas são mais frequentes do que em “tempos normais”, isso por si
indiscriminado de medicamentos sem eficácia comprovada cientificamente. só já traz consigo uma série de complicadores, ainda não é possível
Se por um lado é verdadeiro afirmar que as vidas das populações mais acompanhar o ente querido hospitalizado dependendo o quadro de saúde,
precarizadas e historicamente sujeitas aos inúmeros processos de violência os rituais de despedidas não podem ser realizados dentro dos parâmetros
e vulnerabilidade estão mais expostas ao risco de morte, não podemos socialmente realizados visando atender as exigências sanitárias, dentre
deixar de observar que, essa possibilidade, no contexto pandêmico, se outras questões que poderiam ser enumeradas.
estendeu potencialmente a toda população brasileira. Portanto, a sociedade Nesse contexto, considerando os elementos citados acima, há uma
como um todo se vê receosa e amedrontada frente à avalanche de mortes propensão exponencial para elaboração de um luto complicado, ou seja:
causadas pelo coronavírus e ainda pelas drásticas consequências e quando há a intensificação do luto até o ponto em que a pessoa se sente
incertezas decorrentes do cenário pandêmico. sobrecarregada, recorre a um comportamento mal adaptado ou permanece
Por estas razões queremos nos debruçar sobre o cenário que surge interminavelmente num estado de luto, sem progressão do processo em
perante a pandêmia: o luto. Segundo a cartilha de Saúde Mental e Atenção direção a seu término (WORDEN, 2018).
Psicossocial na Pandemia COVID-19, o luto é um processo natural de Infelizmente não é possível criar mecanismos preventivos para luto
resposta a um rompimento de vínculo, ou seja, quando perdemos alguém complicado, mas, ao ser identificado é preciso que se recorra à ajuda
ou algo significativo na nossa vida. O significado, as explicações, os rituais de profissional. Neste sentido, torna-se imperativo que haja fortalecimento e
passagem entre a vida e a morte e o processo de enlutamento variam ampliação dos centros de atenção psicossocial com vista a prestar suporte
conforme cada sociedade e suas diferenças culturais, cosmológicas e e apoio emocional no processo de enlutamento da população brasileira.
religiosas, bem como as circunstâncias em que ocorre a morte (FIOCRUZ, Diante de milhares de pessoas que perderam suas vidas pela Covid 19 e
2020). familiares enlutados, o relato vivencial abaixo da colega que generosamente
O cenário pandêmico tem acarretado diversos desafios e contribuiu para esse artigo revelando sua experiência com a perda de dois
atravessamentos ao processo de luto, com implicações diretas nas familiares, nos levou a refletir sobre o luto na pandemia:
dinâmicas dos rituais de despedida, sendo um vetor potencializador de "Eu, Mariana Oliveira, venho relatar as perdas que vivenciei e estou
sofrimentos psíquicos. Como temos visto, as mortes repentinas e vivenciando desde quando iniciou a pandemia. Desde já, tudo que será dito

123
foram fatos reais de quem sentiu na pele o que é perder familiares para o anos e continuar fazendo o que eu faço há tantos anos, que é zelar pela
Covid 19. nossa Mãe. Maria Santíssima ” Ele chegou aos 96 .
Brasil, abril de 2020, na cidade de Belém do Pará, região Norte, Raimundo Raimundo Nonato de Castro
Nonato de Castro, (meu avô), 96 anos, Homem, negro, ex-combatente na 1923 – 2020
Segunda Guerra Mundial, advogado, co fundador da guarda de nossa Essa triste luta contra o covid 19 continua. Diante de muita dor e
senhora de Nazaré. Seu grito de guerra era Ave Maria, vítima do Covid 19. devastação emocional, recebo a notícia de que minha mãe também estava
Deixou ensinamentos para os familiares e um legado de liderança e apresentando todos os sintomas do vírus 48h depois do falecimento do meu
humildade em toda região de Belém, no Pará. Homem de fé, carinhoso e avô.
exemplo de honestidade, perpetuou ensinamentos por onde passava. O avô Maria das Graças Vale de Castro, mulher, branca, 70 anos, aposentada ,
Nonato também foi um integrante especial para a família. Exemplo de força mãe de duas mulheres, Mariana e Juliana ( minha irmã) foi atingida pelo
e determinação, começou a trabalhar aos 16 anos. O mundo foi pequeno Covid 19.
para sua garra e força de vontade: atuou como office boy, se formou como Para mim foram dias muito difíceis, que não tem como colocar tudo em
advogado , entre outras tantas ocupações. palavras essa dor que permanece, depois de um ano de seus falecimentos e
Ele teve apenas 72h de vida depois que o primeiro sintoma do vírus do luto que estou ainda vivenciando. As lembranças de toda essa tragédia
começou a se manifestar através de uma tosse e assim o vírus progrediu e são muitas.
tomou conta dos saudáveis pulmões do meu avô. Apesar de toda a Minha mãe após apresentar os sintomas, ela foi hospitalizada, hospital
assistência médica que ele teve, por um hospital adventista, particular, não particular, adventista ,onde ela recebeu a primeira dose do medicamento
teve como vencer o vírus. Foi um momento catastrófico em Belém, os 24h depois de ter dado entrada. Belém estava no pico da primeira onda do
hospitais tanto públicos como particulares não estavam conseguindo Covid 19. Os hospitais todos com as portas fechadas porque não tinham mais
suportar a demanda dessa triste e grande pandemia. capacidade de receber ninguém, já estava faltando medicamentos e
Seu Nonato, conhecido também como senhor da guerra, um respiradores , minha mãe, só conseguiu uma internação depois de 48h , em
sobrevivente e filho de fé morreu dizendo “A minha idade é a minha um quarto com mais quatro pessoas vítimas do vírus. O quadro dela foi se
capacidade de fazer as coisas. Se Deus me permitir, eu quero chegar aos 90 agravando, muita falta de ar, diarreia sem parar, noites de agonia por não

124
ter respirador, até que ela pediu para ir para o CTI por não conseguir respirar o momento do falecimento. Conforme essa etapa do artigo foi sendo
absolutamente nada. Graça, como era chamada, foi entubada,juntamente desenvolvido, em um determinado momento me dei conta que estava
com tantas pessoas que estavam ali lutando para vencer o vírus. tomada por todas as minhas lágrimas e emoções. Foi tudo muito forte e
A Luta dessa mulher de fé durou 18 dias, durante todos esses dias de intenso.
aflição e desespero, em que eu não sabia o que ia acontecer com ela eu só Participar deste trabalho, relatando a minha experiência por ainda estar
pedia para Deus ter misericórdia da minha mãe e me ajudar, me dando força vivendo o luto nesta pandemia não foi fácil, foi bem difícil. Precisei trabalhar
para que eu conseguisse atravessar esse momento tão lastimoso. bastante o meu mental, o meu emocional, parando e respirando para poder
Dia 09 de maio de 2020, às 15h em uma tarde de sábado, véspera do dia seguir com o artigo. Porém, foi bastante gratificante. Pude conhecer a
das mães, o telefone tocou do hospital dizendo que a minha mãe havia necropolítica, a biopolítica e a TAR. Fazendo uma grande imersão no mundo
falecido. Nesse momento, meu chão se abriu e eu vi que eu tinha perdido as da psicologia social.”
duas pessoas mais importantes da minha vida, vítimas do Covid 19. Ambas No contexto da pandemia do Covid-19 refletimos sobre os
não tiveram o ritual do luto, tampouco o reconhecimento do corpo. Perante conceitos de necropolítica e biopolítica e discutimos o enlutamento e
tanta calamidade que esse vírus trouxe o luto, que é um grande ritual não impactos sociais vividos no Brasil desde março de 2020.
está podendo ser vivenciado pelas famílias que perderam e permanecem Notamos que a população vulnerável social e economicamente acaba por
perdendo seus familiares para esse ser invisível que se espalhou pelo mundo se mostrar mais exposta aos impactos sociais causados pela doença e
inteiro, atingindo todas as classes sociais, sem distinção de raça e cor." diretamente ao luto marginalizado. Sendo assim, trouxemos algumas
Através deste relato todos os sentimentos mais desconfortáveis reflexões acerca dessa temática. Seria a pandemia oportunamente utilizada
possíveis vieram à tona. Muita dor, tristeza, saudade e muitas perguntas para fortalecer um projeto de necropolítica já existente?
internas como : Como o Brasil pôde ter chegado a esse momento atual que Entendemos que essa população vulnerável, sobretudo negros e
estamos vivendo ? Quantas vidas mais serão perdidas para o COVID - 19 , moradores de comunidades, vítimas de desigualdades, estão diretamente
Quando isso vai passar ? expostos ao que podemos considerar como esquecimento do Estado. Nesse
Foi necessário vivenciar cada etapa de todo processo, desde quando o sentido, Rogério Luis da Rocha Seixas, pesquisador do Grupo Afrosin/UFRRJ,
vírus se fez presente na vida dessas pessoas que eram o alicerce familiar até traz uma definição essencial sobre esse conceito:

125
“A necropolítica define estratégias que resultam na morte de corpos pela omissão do Estado, evidencia a estrutura racista e excludente que tem
considerados inúteis ou inadaptáveis aos padrões da gestão neoliberal, que exercido a política de enfrentamento da pandemia da Covid-19.
se estrutura num sistema baseado na distribuição desigual da oportunidade Um relato de uma líder comunitária da favela da Rocinha nos impactou
de viver e de morrer. Tudo aquilo que representar algum obstáculo à acerca disso tudo que estamos vivendo. Em suas palavras, a mesma alertou
mercantilização plena da vida e sua administração deverá ser eliminado. para a quantidade enorme de pessoas negras e moradoras da comunidade
Observe-se que com a mercantilização da vida, paradoxalmente, esta deve que estão morrendo e que não há assistência alguma do Estado para os
ser eliminada. Principalmente a vida daquela cuja condição existencial enlutados dos entes e familiares. Segundo a líder comunitária, essas mortes
encontra-se precarizada ao ponto de serem descartáveis. ”(2020, p.84) têm sido silenciadas , banalizadas e naturalizadas.
Já a lógica do biopoder de Foucault está expressa para Seixas da seguinte Fica claro que a pandemia e sua letalidade em massa evidencia, além do
forma: “No aparato biopolítico, o biopoder exerce o direito de morte e o drama da perda de entes queridos, a marginalidade desta população
abandono da vida. Em tal circunstância, pode-se descrever a função de um brasileira vulnerável tida como “deixada para morrer” onde determinados
racismo de Estado soberano: justificar o exercício de matar em nome da grupos têm suas vulnerabilidades marcadas em momentos de crise.
vida, segundo a morte do inferior, do anormal, beneficiando a vida da raça, REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
a tornando mais sadia, pura. ” (2020, p. 78)
Durante a escrita deste artigo, vários atravessamentos nos fizeram
refletir sobre como a pandemia da covid-19 tem sido massacrante, ESPÒSITO, Yuri Bataglia. Subjetivação necropolítica e a materialidade do
principalmente com as pessoas negras e pobres. Aquelas que na maioria das pós-estruturalismo. Agenda Política. Revista de Discentes de Ciência Política
vezes são invisíveis aos olhos do Estado e da sociedade. Obviamente essa da Universidade Federal de São Carlos. Volume 8, Número 1, São Carlos,
pandemia atinge a todos(as), no entanto, percebemos que algumas 2020, 313-336
camadas sociais, pelo nosso contexto-histórico e por outras questões que
tratamos ao longo deste artigo são profundamente marcadas pela falta. A FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins
ausência de políticas públicas, a negação de direitos básicos e fundamentais Fontes, 2008.

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WORDEN, J. W. (2018). Grief counseling and grief therapy: a handbook
for the mental health practitioner. New York: Springer. 2018

128
CAPÍTULO 11 de Bentham: os longos corredores, com portas fechadas e pequenas janelas
A CLÍNICA DO AUTISMO E A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL permitem a qualquer momento o olhar indiscreto do controle. Sem saber
INFANTOJUVENIL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: UMA
quando será observado, o interno se vê coagido a se comportar, como bem
EXPERIÊNCIA EM QUESTÃO/EM DEBATE.
apontou Michel Foucault.
Não é um exagero a comparação da instituição total a uma prisão. Nem
ANDERSON CORRÊA
ANDRÉ THEMISTOCLES
é por acaso que o sociólogo Alessandro Baratta pôde estabelecer um nexo
CLÁUDIA DOS SANTOS MORGADO funcional entre o sistema discriminatório escolar e o penal. No âmbito da
DANIELLE MELLO
DIOGO SIMONACI
reprodução das relações sociais e de marginalização, os mecanismos
PEDRO LEBORATO institucionais de distribuição sanções e recompensas garantiriam a
continuidade entre os sistemas escolar e prisional.
As ações dirigidas a crianças e adolescentes no Brasil atravessaram um
Mas o objetivo do trabalho é debater acerca da atenção promovida à
século de história, circunscritas a um ideário de proteção que,
clientela autista pelos dispositivos infantojuvenis do campo da Saúde Mental
paradoxalmente, redundou na construção de um modelo de assistência com
carioca. Interessa observar a atenção psicossocial que é desenvolvida
forte tendência à institucionalização e em uma concepção segmentada, não
enquanto prática dentro dos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil
integradora, da população infantojuvenil.
(CAPSi) no município do Rio de Janeiro, bem como as noções de rede e
Com efeito, as instituições calcadas em perspectivas tradicionais a
território que fundamentam teoricamente a abordagem, além das
respeito da infância e da juventude se inscreveram como instituições totais,
interlocuções que ocorrem no campo das práticas interdisciplinares.
no sentido descrito por Erwin Goffman . O antropólogo e sociólogo
É precisamente a práxis multiprofissional do CAPSi que vai promover os
canadense estudou os estabelecimentos fechados para compreender as
encontros e desencontros entre os diferentes saberes e ações das categorias
instituições como agência de produção de subjetividade, sendo as
e disciplinas que compõem os cuidados dentro destes serviços. Para isso,
instituições totais aquelas que absorvem quase todo tempo e interesse do
como veremos, será necessário uma revisão desses conceitos, de tal forma
interno.
a considerar cada um de seus elementos buscando avançar o olhar para
Essa era concepção tradicional a respeito da saúde e da educação, razão
pela qual a arquitetura dos hospitais e escolas seguem o modelo panóptico

129
compreender o que eles são de fato. A pretensão é de que a perspectiva se um conjunto de medidas, calcadas na lógica higienista e de inspiração
fenomenológica da Teoria Ator-Rede possa aprofundar esse olhar. normativo-jurídica, que expandiu sobremaneira a oferta de instituições
Evidentemente, as instituições forjadas à guisa benthamiana não fechadas para o cuidado de crianças e adolescentes, em sua maioria sob a
estariam dispostas a um mergulho como esse. Como pensar um tutela do campo filantrópico. (BRASIL, 2005)
atendimento capaz de dar conta da saúde mental de crianças com autismo O autismo é um assunto que vem sendo discutido e abordado na
a partir daquela perspectiva total e vertical da tradição escolar, prisional e contemporaneidade de forma significativa. Diversas são as abordagens que
hospitalar? tentam aplacar a angústia do não saber, exatamente, a gênese do problema.
É preciso considerar aqui o quanto saúde e ensino operam como agentes Como descreve Temple Gradin, o diagnótico do autismo tem se alterado a
na teia de relações que envolve o cuidado com a criança neurotípica. cada mudança no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Quando falamos de crianças neurodiversas estamos falando de um Mentais).
cruzamento de perspectivas entre saúde e educação, uma vez que o A princípio o autismo era considerado um sintoma da esquizofrenia.
aprendizado é uma dimensão irrevogável do desenvolvimento, típico ou Chegou a ser considerado uma forma de psicose infantil. Hoje se discute que
atípico. na verdade não haveria uma forma de autismo, trata-se na verdade de um
O cuidado diante desse cruzamento de dimensões exige um olhar espectro, que não permite tratar os portadores do transtorno de forma
duplamente referenciado: é importante viabilizar o desenvolvimento a homogênea. Apesar do interesse de muitos autores e pesquisadores a
partir da aprendizagem e é igualmente importante considerar a criança respeito do tema, até hoje não há uma convergência de ideias a respeito da
segundo o que ela é. A perspectiva de desenvolvimento que encare a causa do autismo.
educação como um ajuste a determinado padrão está fadada a empreender A princípio, a etilogia do transtorno estava na suposta indiferença da
boa medida de violência, o mesmo vale para uma perspectiva de saúde “mãe geladeira”. Hoje se compreende que o que se entende como frieza da
mental. mãe é na verdade uma reação à dificuldade de estabelecer laços da criança
Ao mesmo tempo em que o início do século XX propagou a importância com o autismo. As causas apontadas para o TEA são várias, cada qual em
da assistência a crianças e adolescentes, principalmente porque eles busca de uma etiologia exclusiva que o explique segundo bases científicas
representavam um futuro diferenciado para a nação brasileira, engendrou- que a sustentem. Predominam, assim, explicações de ordens genética,

130
epigenética, ambientais, relacionais etc. Mas quando falamos de “bases rigorosa em linguagem matemática ou elaborar um conhecimento individual
científicas” de que estatuto estamos falando? com uma cientificidade ainda por ser definida. Carlo Ginzburg sugere então
O paradigma epistemológico das humanidades tem uma peculiaridade. um rigor flexível, que não abra mão daquilo que as ciências humanas têm de
Ele operou de fato muito antes de ser expressamente teorizado, como mais essencial, a qualidade.
relata o historiador Carlo Ginzburg ao pesquisar a história dos saberes Dessa maneira, precisamos abordar o trabalho do Capsi com crianças
indiciários. Os saberes do caçador, da adivinhação, o saber que era próprio autistas segundo suas multiplicidades, para além de dados e pesquisas
das mulheres; todos permaneceram implícitos e sufocados pelo modelo de quantitativos, considerando a experiência de quem atuou dentro dessa rede
Platão, “socialmente mais elevado”. e território. Embora o diagnóstico definitivo do autismo só possa ser firmado
Entre o século XVI e XVII, o paradigma científico da física galileana após os três anos de idade, a identificação de risco pode e deve ser feita
estabeleceu critérios de maneira a excluir as disciplinas indiciárias da precocemente. Os sinais precoces são muito sensíveis para perturbações da
categoria da “ciência”, inclusive a medicina. É que os saberes indiciários são comunicação e interação social (BRASIL,2013).
eminentemente qualitativos: tomam os casos individuais, enquanto Partimos da premissa de que o cuidado aos usuários situados dentro do
individuais, e precisamente por isso encontram resultados, que chamado espectro autista abre, na atualidade, um intenso debate que expõe
inevitavelmente podem variar a cada caso. divergências entre linhas teóricas, com propostas muito distintas de modelo
A ciência no sentido galileano tem uma proposta absolutamente diversa, de tratamento e de instituição. Considerando a arena política e
a física, a matemática e o método experimental se baseiam na repetibilidade mercadológica em que tais embates se desenrolam, faz-se necessário
e na quantificação dos fenômenos, a deixar o que é individual de lado. Não pensar na complexidade e na relevância de se estudar o tema.
é à toa que a maioria das disciplinas humanas ainda se inscrevem em dilema. Cabe considerar a atuação de cada um desses atores, sejam eles
Talvez a medicina tenha alcançado reconhecimento social suficiente para profissionais, dispositivos teóricos, espaços e recursos tecnológicos. O relato
mesmo diante da sofisticação tecnológica dos exames pregar: “a clínica é do terapeuta ocupacional sobre o manuseio de recursos de comunicação
soberana”. aumentativa para o psicanalista ou suas devolutivas para a família ou escola
Mas de regra a disciplina indiciária se inscreve diante de dois caminhos: da criança, envolve uma série de actantes que precisa ser considerados
ou sacrificar o individual em nome de uma generalização mais ou menos enquanto suas essências.

131
A fonte que informa o debate aqui travado é a escrita narrativa e a revisão puderam compor os processos de subjetivação diante dessa rede. Para
bibliográfica elaborada por Diogo Simonaci, um dos membros do grupo. É Rodrigues a psicologia social estuda o que acontece com o indivíduo quando
uma discussão parte do seu relato enquanto enfermeiro residente de Saúde ele está interagindo com outras pessoas ou na expectativa desta interação.
Mental no Capsi Maria Clara Machado, durante o período de dois semestres Ainda segundo o autor psicologia social também pode ser definida como
do ano de dois mil e dezoito. Através dele, buscamos ampliar observações o estudo científico da psicologia dos seres humanos nas suas relações com
de dentro da rede em foco e que, portanto, estão atravessadas por aspectos outros indivíduos, quer sejam influenciados, quer ajam sobre eles;
subjetivos. pensamos e sentimos de determinada maneira porque somos seres sociais;
A pesquisa narrativa que estrutura o relato da práxis em rede do CAPSi o mundo em que vivemos é, em parte, produto da maneira como pensamos;
no território, foi tomada, antes de tudo, como um esforço em compreender Similarmente, Lane diz que a Psicologia Social é um campo da Psicologia
a experiência humana. Até por que, já de partida, a pesquisa narrativa que estuda o comportamento de indivíduos enquanto seres sociais, reflete
consiste em um estudo de histórias vividas e contadas, pois “uma verdadeira sobre o modo como se forma nossa concepção de mundo, nossa relação
pesquisa narrativa é um processo dinâmico de viver e contar histórias, e com a linguagem e com a aprendizagem por meio das relações sociais:
reviver e recontar histórias, não somente aquelas que os participantes família, escola e trabalho. Segundo Pariguin (1972), a psicologia social vai
contam, mas aquelas também dos pesquisadores” (CLANDININ e CONNELLY, muito além desse caráter ideológico que alguns estudiosos tentam impor a
2011, p.18). ela. Seria medíocre acreditar numa Psicologia Social servindo apenas aos
As pesquisas de revisão bibliográfica têm como objetivo reunir através de interesses de uma minoria.
bancos de dados as publicações com o intuito de embasar determinado O levantamento de publicações sobre a clínica do autismo e a rede de
assunto. Este tipo de pesquisa permite aprofundar o conhecimento sobre a atenção psicossocial infantojuvenil carioca foi realizado através de
temática estudada, além de promover mudanças e contribuições plataformas disponibilizadas na internet, uma vez que são bases de acesso
conceituais sobre o parâmetro do conhecimento já existente (CALONETTI, gratuito e, portanto, facilmente acessíveis a outros profissionais de saúde e
2008). para a população. A pesquisa foi feita nas bases de dados CAPES, Scielo,
É importante marcar o quadro teórico-metodológico que Simonaci toma Lilacs e IndexPsi.
como referência para compreender de que maneiras os diversos atores

132
O trabalho dos CAPS em todas as suas modalidades previstas é realizado O território é tecido pelos fios que são as instâncias pessoais e
de forma interdisciplinar por equipes multiprofissionais e, portanto, com institucionais que atravessam a experiência do sujeito, incluindo: sua casa,
referenciais teóricos e práticos diversificados, que permeiam e atravessam a escola, a igreja, o clube, a lanchonete, o cinema, a praça, a casa dos
as crianças/adolescentes e suas famílias lá vinculadas (RIBEIRO, 2015). colegas, o posto de saúde e todas as outras, incluindo-se centralmente o
O CAPS muda o objeto de intervenção, não sendo mais o da doença próprio sujeito na construção do território. O território é o lugar psicossocial
mental. Desloca-o para o sofrimento psíquico intenso dos sujeitos a serem do sujeito. (BRASIL, 2005)
acompanhados, olhando de forma muito mais ampla, não apenas para um Tal abordagem é inviável partindo do paradigma positivista, não só do
CID ou um conjunto de sinais e sintomas, mas para a complexidade ponto de vista da saúde mas também da infância. O própria maneira de
envolvida nas condições de sofrimento mental e levando em consideração designar a criança denota a dificuldade considerar os indivíduos enquanto
os aspectos subjetivos nelas presentes. sujeitos. “In-fante” é o ser desprovido de linguagem, cuja essência é
Isso faz com que o cuidado se amplie e possa se contar com a pluralidade incapacidade de falar (fari ou fan). Embora seja a realidade nos primeiros
de atores (não sendo só médico, não sendo só enfermeiro, só psicólogo, não anos de vida, a linguagem é o campo de desenvolvimento de toda criança.
sendo só, inclusive, o CAPSi). Dentro do CAPSi, tal pluralidade representa Se a perspectiva tradicional da criança falhava em reconhecer a presença
uma riqueza de perspectivas, bem como a constituição de uma rede da linguagem na criança, como poderia considerá-las como sujeitos, que dirá
complexa de ações. Em um plano mais amplo, essa rede se articula com atores!, em uma rede de relações e interações? Embora o termo infância
outros espaços-atores, tecendo ainda mais relações a formar um território- permaneça, os saberes em torno da criança já reconhecem e respeitam a
rede. criança enquanto sujeito. Da pedagogia e fonoaudiologia à pediatria e à
Há dois conceitos fundamentais na proposta de trabalho do CAPSi, psicologia infantil; o saber do desenvolvimento se articula pelo seu objeto.
essenciais na estratégia de atenção aos sujeitos em seus territórios É preciso que todos os profissionais e disciplinas saiba superar as
subjetivos. São justamente os conceitos de território e rede. Entende-se barreiras classificatórias e divisivas do paradigma epistemológico positivista.
território como uma das categorias nocionais mais importantes com o que O modelo da Encicopledie não dá conta da tarefa sensível e crucial que
se trabalha na Saúde Mental. demanda a infância, muito menos do transtorno do espectro autista.

133
Portanto, a clínica de atenção psicossocial é pensada considerando os Sua abordagem considera alimentação sem perder de vista todo o conteúdo
vários atores da trama subjetiva que é estar em sociedade, construindo simbólico da alimentação.
parcerias e diálogos possíveis para atender os sujeitos em sofrimento. Essa A criança autista experimentou de maneira muito significativa uam
construção só é possível e eficaz quando o conceito de rede estiver continuidade entre seu tubo digestivo e seio da mãe. A relação de
intrinsecamente ligado à prática. dependência absoluta nos primeiros meses de vida é relevante para
Do ponto de vista prático, o trabalho no CAPSi revela um deslocamento considerar as relações da ingestão do leite com a fala, a linguagem, a
da noção de rede de uma acepção positivista (que a percebe enquanto um necessidade de continuidade, bem como a fase oral no desenvolvimento.
conjunto concreto de serviços interligados), para situar-se no plano de uma Em perspectiva positivista ou galileanamente rigorosa, esse esforço estaria
forma de conceber e agir o cuidado. Mas a experiência de atuar nessa rede além do papel do nutricionista.
revela alguns desafios: esse novo dispositivo traz novas responsabilizações Por isso é preciso considerar cada um desses profissionais, saberes e
ao profissional de saúde mental, que precisa reinventar sua atuação e dar crianças pela maneira em que eles agem nessa articulação em rede. Na
conta de diferentes demandas do serviço. (SILVA & COSTA, 2010). experiência profissional que nutre essa discussão, assim como o
Diante desse panorama, interessa discutir o profissional a partir de sua nutricionista, o enfermeiro e todos profissionais envolvidos terão que agir
facticidade, bem como os demais atores dessa rede. Quer dizer, terapeuta por uma demanda que é indiferente às classificações positivistas, a das
ocupacional, médico, psicólogo, assistente social, enfermeiro; cada dos crianças no espectro. Portanto, como nos convoca Husserl: “às próprias
atores existem na rede a despeito de qualquer definição. O nutricionista coisas”.
precisa considerar uma criança dentro espectro segundo a singularidade Considerando o modo de ser desses actantes poderemos ter dimensão
dela. das articulações nas redes e territórios, encarando os fenômenos como eles
Para pensar o repertório de alimentos de uma criança com se manifestam. Interessa interrogar o que possibilita a postura desses atores
hipersensibilidade, é preciso levar em considerações todo o processo da nessa rede-território.
alimentação. Desde a rotina dos momentos de refeição até a textura dos Se o serviço não limita suas ações e intervenções ao plano meramente
alimentos. Ele precisa estar muito a par das peculiaridades daquela criança. técnico (ações terapêuticas, medicação, atividades diversas), mas inclui no
escopo de suas competências e obrigações o trabalho com os demais

134
serviços e equipamentos do território, então ele está permanentemente darem sentido às suas abordagens e segundo a necessidade das crianças no
construindo a rede, mesmo na ausência concreta de serviços teoricamente espectro.
“adequados” ao caso. A peculiaridade de muitas crianças com TEA exige um aprendizado
Em uma radicalização da visão tecnicista fica evidente que cada um dos prático, baseado em muitas trocas, mas que considere a importância de
profissionais que atuam nessa rede teriam seu processo de aprendizado dispositivos teóricos que também agem na rede. As angústias impensáveis
obstruído. Se cada ator assume o papel estabelecido pela divisão positivista, de muitos autistas são inacessíveis a qualquer um que não tenha acesso ao
o conhecimento de um profissional permaneceria inacessível aos demais. acúmulo teórico e empírico, como já sugere o nome da aflição.
Embora o saber sempre indiciário das humanidades seja sempre Ninguém pode conceber o medo de liquefação, de explosão, de queda
inacessível ao Outro, a possibilidade de trabalhar em comunhão e diálogo sem fim que a angústia do autista diante da ideia de deixar de existir.. É
permite a difusão dos conceitos e referências de cada saber, a constituir eles preciso deixar que esse conhecimento se inscreva como actante para que
próprios como atores, capazes de produzir afetações e repercussões em um trabalho multiprofissional não limite a reproduzir o modelo cartesiano.
todos profissionais actantes na rede. Este trabalho não deixa de refletir o manejo da clínica do autismo nos
Se a prática é o critério da verdade, devemos reconhecer o ator como Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil na cidade do Rio de Janeiro -
subjetividades em transição. A rede de atendimento é assim um verbo os CAPSi -, mas procura de maneira incisiva problematizar a transmissão de
presente, um associar que nunca finda. No entanto, a experiência fonte suas práticas para os profissionais que atuam nestes serviços.
dessa colocação foi justamente a percepção da inacessibilidade dos A concepção de rede que procuramos estabelecer articula a ação do
profissionais (nesse caso dos enfermeiros) ao saber psicanalítico que cuidado para com o que se situa para fora e para além dos limites da
orientava todo o trabalho do CAPSi. instituição, e implica a noção de território. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005).
A dificuldade de se reformular na abordagem à criança com necessidades No que se refere a tudo que atua na rede, não precisamos encarar esses
especiais se revelava na necessidade de troca, orientação e aprendizado. A atores com papéis definidos que esperam para entrar em cena segundo um
consideração da rede considerando seus atores para além de uma divisão roteiro.
do trabalho social durkheimiana poderia ajudar os profissionais do CAPSi a Não é à toa que a Teoria Ator-Rede, que norteia essa discussão, sugere o
termo actante, ou até atuante. Dentro desse paradigma o ator se constitui

135
apenas a partir da ação, que é pensada como evento e não como ato. É essa É assim que suas formações se constituem como eventos de limitação.
concepção de ação que permitiu a Bruno Latour o desdobramento crucial: Geram repercussões na rede de maneira correspondente à falta de acesso
também os objetos agem, já que a rede é uma série de eventos e faz ao saber do psicanalista. Saber que produz efeitos pela privação, negando
necessário aprofundar a descrição desses fenômenos. seu acesso aos enfermeiros, que empreendem na escuta, observação e
Entende-se, portanto, que essa rede está vinculada à ideia de uma intervenção articulada tanto na rede quanto no território-rede que lhe
atenção complexa, um olhar complexificado sobre a experiência de abriga.
sofrimento que leva em consideração uma multiplicidade de questões É que o trabalho é entendido tanto dentro quanto fora do dispositivo
envolvidas que ajudarão a pensar o cuidado e os parceiros deste caminho CAPSi, incluindo os atores inseridos na família, vizinhança, nas escolas, no
na clínica e no território. O suporte teórico ator-rede servirá então para laço social dos sujeitos. Há um entendimento por parte do coletivo da
pensar a articulação dos atores e compreender como eles se constituem equipe de profissionais de que o trabalho fora é tão importante quanto
como fato, deixando de lado cada cargo ou currículo de formação como atender individualmente ou nos espaços grupais internos do serviço.
roteiros prévios para sua atuação. Os CAPSis, tal como as demais modalidades de CAPS em geral, montam
Na verdade, se essas formações e pré-colocações vão poder ser suas grades de atividades oferecendo espaços de cuidado diversificados aos
considerados apenas como atores nessa rede, que cumprirão não apenas o seus usuários e familiares e são organizados em faixas de horário. Dentre
papel de conferir autoridade para cada atuante e algum grau de segurança, eles, predomina a oferta de atividades que propõem o atendimento da
mas principalmente limitar que esse conforto ao atuar se limite à função clientela em dispositivos grupais de vários tipos, tais como grupos
pré-estabelecida, exigindo cautela no avanço desses limites. terapêuticos, oficinas, ateliers, projetos de esporte e lazer, entre outros.
Concretamente, isso significa um enfermeiro se sentir bem a vontade Entre as atividades que grupalizam seus participantes, pode-se perceber
para fazer observação e dar escuta de uma maneira geral. Mas como funcionamento estruturante do trabalho nos CAPSis desta cidade, as
especialmente na atuação psicossocial esses atores são limitados pelas suas atividades organizadas em coletivos clínicos que acontecem em diferentes
formações e funções institucionais para agir segundo fundamentos teóricos horários com propostas de trabalho que variam de um coletivo a outro.
que orientem a prática. Eles aprendem na ação e sem supervisão. As variações dependem, por exemplo, da faixa etária das
crianças/adolescentes, do tipo de clientela, características individuais e,

136
consequentemente, do trabalho clínico que deverá ser colocado em curso. o jeito de estar no mundo dessas crianças/adolescentes, acolhendo-as em
Tais atividades são batizadas com diferentes nomes a depender do serviço suas singularidades e recolhendo-se a todo momento os efeitos que as
em que é desenvolvida, sendo os mais comuns “permanência”, intervenções clínicas lhes produzem.
“convivência” e “coletivo clínico”. Dessa forma, a Teoria Ator-Rede reavalia toda a circunstância
Contextualizando-o no campo da Saúde Pública, segundo Nunes (2017), epistemológica não apenas a partir do sujeito que quer conhecer, mas
o primeiro dispositivo no Brasil destinado a atender crianças e adolescentes também a partir de tudo aquilo que o rodeia e o perpassa, integrando o seu
psicóticos e autistas, dentro da lógica psicossocial e inspirado pela Prática ato de conhecer com a sua circunstância mais eminente. A Teoria Ator-Rede
entre vários, foi inaugurado em 1998 no Rio de Janeiro: O CAPSi Pequeno irá ampliar o protagonismo epistemológico de tudo aquilo não tiver
Hans. substância própria dotada de racionalidade. Isso quer dizer que qualquer
Apesar de outras iniciativas anteriores já existirem, como o NAICAP, coisa poderá ser analisada de um ponto de vista central como se fosse a
situado no Instituto Philippe Pinel e que funcionou nos anos 1990 como própria essência daquele fato ou sujeito cognoscente.
importante referência para a cidade no tratamento desta clientela, o Ao tirar o protagonismo epistemológico do sujeito cognoscente, a TAR
Pequeno Hans foi o primeiro CAPSi inaugurado na cidade a promover desvencilha-se da fenomenologia de Heidegger, que considera as relações
cuidado territorial à sua população. entre o sujeito e a realidade como sendo protagonizadas pelo próprio
Ainda de acordo com Nunes (2017), o trabalho por estes dispositivos visa indivíduo. Além disso, a TAR contempla o sujeito como um fenômeno e não
atender as demandas reais dos usuários, incluindo o trabalho clínico e a como uma substância que sustenta os acidentes.
inserção social dessas crianças e adolescentes em diferentes espaços na Assim, a TAR é contrária às categorias aristotélicas, pois um fenômeno já
comunidade. Sendo assim, toda perspectiva de atendimento visa à inserção é um aspecto acidental dos entes - correspondente às categorias da ação e
dos usuários em espaços coletivos onde, a partir das suas percepções e da paixão - e, portanto, não possui essência. E é justamente isso que a TAR
reações frente ao outro, deslocamentos e apostas clínicas podem ser proclama: que o indivíduo possui uma relação de total equivalência com as
efetivadas. suas manifestações e relações fenomenológicas e que ele pode ser analisado
A partir da perspectiva do trabalho no laço social, a dimensão relacional a partir desses dois últimos aspectos.
é matéria fundamental do manejo terapêutico que necessita compreender

137
Em suma, ao avaliar as relações que o indivíduo estabelece com a 5. BRASIL, MS. Linha de cuidado para atenção às pessoas com transtorno
materialidade que o cerca, a TAR tende a conseguir rastrear os conjuntos de do espectro do autismo e suas famílias na rede de atenção psicossocial do
influências que operam sobre a pessoa. Assim, o progresso no sistema único de saúde. Brasília, DF, 2013.
conhecimento do meio e as relações que este estabelece com os atores 6. FONTES, I. A descoberta de si mesmo na visão da psicanálise do
tornam-se ferramentas para uma melhor compreensão de como agir sobre sensível. Ideais Letras. São Paulo, 2017.
os fatores externos a fim de obter a melhora do estado psicológico 7. FONTES, I. Memória corporal e transferência: fundamentos para uma
individual. psicanálise do sensível. Via Lettera. São Paulo, 2002.
8. DOLTO, F. Tudo é linguagem. Trad. Luciano Machado. Martins Fontes.
São Paulo, 1999.
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1. CLANDININ, D. Jean. CONELLY, F. Michael. Pesquisa narrativa: na festa comemoração 10 anos do CAPSi Pequeno Hans; 2008 set, Rio de
experiências e história na pesquisa qualitativa. Tradução: Grupo de Pesquisa Janeiro, Brasil), p.60-64
Narrativa e Educação de Professores ILEEL/UFU. Uberlândia: EDUFU, 2011. 10. FIGUEIREDO, A.C. O trabalho em equipe na atenção psicossocial: a
2. CECCIM, R. B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e prática entre vários. Cadernos do IPUB, UFRJ. Rio de Janeiro, 2002.
necessário. Interface- comunicação, saúde, educação, 9(16): 161-178, set. 11. VALENTE, Vanessa. Da invisibilidade ao cuidado: a construção do
2004-fev, 2005. campo de saúde mental para a infância e adolescência. Rio de Janeiro. 2004.
3. WINNICOTT, D. W. (1971/1975). O brincar e a realidade. Trad. Jaime 12. JOSEPH, Ir. Miriam. O Trivium: as Artes Liberais da Lógica, Gramática
Salomão. Rio de Janeiro: Imago. e Retórica. 2ª Edição. É Realizações: São Paulo, 05/2015
3. JAQUES, L. O seminário, Livro 1, Os Escritos Técnicos de Freud (1953- 13. ARISTÓTELES. Metafísica. Trad: BINI, Edson. 2ª Edição.SP: São Paulo,
54), Zahar Ed. 2009, p.149-152. 02/2012. Edipro.
4. BRASIL, MS. Caminhos para uma política de saúde mental infanto 14. Ensaios sobre fenomenologia[livro eletrônico]: Husserl, Heidegger e
juvenil. 2ª edição. Brasília, 2005. Merleau-Ponty. Ilhéus, Ba: eDITUS. 2014.

138
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https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/psi
cologia-social-conceitos-e-historico/32192, acesso 20/03/2021
O que é Psicologia Social - Silvia Lane, Disponível em : https://www.ex-
isto.com/2018/12/psicologia-social-silvia-lane.html, acesso 20/03/2021
16. Teoria Ator-Rede: novas perspectivas e contribuições para os estudos
de consumo. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/cebape/v16n2/1679-3951-cebape-16-02-
218.pdf, acessado em 22/03/2021
17. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais:morfologia e história. São
Paulo, 1990: Companhia das Letras.
18. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia
moderna. Rio de Janeiro: Ed. 3, 1994. Editora Nova Fronteira.

139
políticas públicas específicas para contratação de portadores desta
deficiência, em nosso país.
Os portadores da Síndrome de Down encontram quais desafios na inserção
CAPÍTULO 12 do mercado de trabalho?
A INSERÇÃO DAS PESSOAS COM SÍNDROME DE DOWN NO
O desenvolvimento da pesquisa apontará de que forma ocorre a inclusão
MERCADO DE TRABALHO ATRAVÉS DA LENTE DA TEORIA ATOR-
REDE social dos portadores de Síndrome de Down, bem como a importância de
oportunidade de inserção destas pessoas nas atividades laborais, a fim de

CAIO SOUZA DOS SANTOS


promover chance de crescimento e desenvolvimento pessoal do portador
CHAYENNE FERREIRA FLIESS DE CASTRO desta deficiência.
FERNANDA DE AMORIM VERONEZE
JOÃO PEDRO CAMPOS NOGUEIRA
A pesquisa do tema certamente promoverá impressões pessoais e subjetivas
PATRICIA DE BARROS DANIELS BRITTO no tocante ao desejo de fomentar a inserção dos portadores desta Síndrome
no ramo profissional, e ainda olhar a possibilidade de ampliar a inserção social
dos portadores da Síndrome, promovendo-lhes condições de produzir uma
“Passarinho de toda cor, gente de toda cor
Amarelo, rosa e azul identidade social, aumentando a possibilidade de criar maior autonomia na
Me aceita como eu sou.”
Renato Luciano vida pessoal, no meio social, e no desenvolvimento da sua capacidade
INTRODUÇÃO
produtiva.
O presente artigo pretende desenvolver pesquisa sobre o tema da Síndrome
As pessoas com Síndrome de Down comprovadamente têm demonstrado
de Down e os desafios da inserção dos portadores desta Síndrome no serem capazes de desempenhar diversas tarefas técnicas e artísticas em
mercado de trabalho.
diferenciados setores da sociedade com competência, seriedade e talento.
Neste sentido, pretende-se pesquisar o processo de inclusão dos portadores
Muitas empresas atentas a este fator vêm empregando cada vez mais pessoas
desta Síndrome no mercado trabalhista, abordando os procedimentos
com estas características com sucesso em seu ambiente corporativo, dando-
adotados pelas empresas na contratação de profissionais com a Síndrome de
lhes possibilidades de crescimento profissional e desenvolvimento da auto-
Down, e também os efeitos psicológicos nas pessoas com a Síndrome, que
passam a exercer atividade laboral. Por fim, será investigada a adoção de

140
estima e a construção de laços sociais e afetivos cada vez mais sólidos e Portanto, empregar pessoas com Síndrome de Down e outras deficiências
amplos. intelectuais traz benefícios não apenas para os indivíduos, mas para as
Empregar um ser humano com Síndrome de Down deixou de ser um ”ato de organizações. Para que a experiência seja positiva para todos, é fundamental
caridade” e passou a ser a inclusão de pessoas, outrora discriminadas e enxergar as oportunidades de acordo com as potencialidades de cada um e o
excluídas, dando a elas a oportunidade de contribuir diretamente com a processo para incluir com sucesso uma pessoa com Síndrome de Down, é
sociedade e com o desenvolvimento do conhecimento humano. descobrir antes do que gosta e quais habilidades possui. Saber e respeitar suas
Considerando a necessidade de unir tantos elos, é importante identificar as dificuldades e limitações e, a partir daí, orientá-lo por etapas curtas até que
dificuldades encontradas pelos portadores da Síndrome de Down no faça por si só.
cotidiano, entendendo suas comorbidades, refletindo sobre a expectativa de A comunicação deve ser o menos complexa possível: o que é sim é sim, e o
vida e identificando os aspectos da inserção no mercado de trabalho. que é não é não. É importante que se expliquem as regras e o porquê, fazendo
A inclusão de pessoas com deficiência ainda precisa de avanços aqui no Brasil, uso da sinceridade e das regras a que todos na empresa estão sujeitos. O
mesmo com a Lei de Cotas, pois ainda há a falta de expectativas em relação empregador precisa estar disponível para desenvolver programas que
ao futuro profissional no ambiente familiar e escolar, porque muitos jovens e orientem seus colaboradores nas ações de contratação de pessoas com
adultos com Síndrome de Down não foram apresentados ao mundo do deficiência intelectual. É preciso “exigir” do colaborador com Down o mesmo
trabalho. Assim, questões como o comportamento adequado e que se exige dos demais para estimulá-los e desafiá-los a darem o seu
responsabilidade podem ser novidades para o empregado que acaba de máximo. É fundamental estimulá-los e parabenizá-los pelos êxitos
chegar. Porém, isso não significa que essas pessoas não sejam capazes de se alcançados, por menores que sejam. É de extrema importância conhecer a
adaptar à rotina da empresa, muito pelo contrário. Trata-se apenas de ter família do colaborador e, na interação, saber como lidam com o membro
disposição para facilitar sua entrada neste novo universo e explicar, sempre familiar, quais habilidades e dificuldades que ele possui, que cuidados devem
que necessário, quais são os direitos e os deveres relacionados com a ter se tratando da saúde. Com essa abordagem estarão conquistando a
organização, mas ainda assim, há muito o que melhorar, pois faltam estudos, família, que tem seus problemas e medos, e nela terão uma aliada, uma vez
dados e incentivos sociais, sem contar os preconceitos e uma série de mitos que a família sente o quanto ganha com a cooperação coletiva de todos.
que envolve esses profissionais.

141
A Teoria Ator-Rede (TAR) propõe que objetos e fatos são efeitos (e não Outro aspecto importante desta abordagem está na verificação de que a
causas) de relações mais ou menos duradouras e mais ou menos resistentes utilização das técnicas e estratégias de costura de elos e busca por aliados
entre elementos relacionais heterogêneos, humanos e não humanos. acaba por fazer com que os atores e redes se moldem e se influenciem
Consideramos que todas as entidades, sejam instituições, leis, fatos, ou mutuamente ao longo do tempo, reforçando as características de entidades
mesmo ideias como efeitos de redes que estão constantemente num dinâmicas e fortemente entrelaçadas. Isto contribui para tornar ainda mais
processo de mudanças. imprecisas as fronteiras entre as pessoas e as coisas, o social e o técnico.
Como a TAR se caracteriza, entre outras coisas, pela observação de atores e Na observação da participação das pessoas com Síndrome de Down no
redes enquanto existentes, priorizaremos o estudo de como tantos elos se mercado de trabalho sob as lentes da Teoria Ator Rede proposta neste texto,
mantêm estáveis apesar de certa tendência a se romperem. podemos observar que os laços necessários à estabilização dessas redes, bem
Nesse sentido também, não é escopo deste trabalho apresentar juízo de valor como as resistências a tal estabilização são heterogêneos e ligam humanos e
sobre as questões envolvendo a situação dos portadores de Síndrome de não humanos de forma idiossincrática.
Down no mercado de trabalho, bem como sobre a legislação e incentivos a Consideramos aqui “ator” como a presença de pessoas com Síndrome de
esse respeito. Down alocadas ou em busca de uma vaga no mercado de trabalho e
Ainda na linha da Teoria Ator Rede, consideramos que, para entender melhor abordaremos os aspectos que sustentam esse ator como as redes, tais como:
as redes e atores que observaremos, é importante estudar de forma o impacto na visão de gestores e colaboradores ao perceberem o
minuciosa e paciente sua própria constituição (quem/o que age – sempre a desenvolvimento de virtudes como paciência e tolerância, fazendo com que
partir de elementos híbridos de pessoas e coisas, humanos e não humanos). lidem melhor com diversidades e diferentes demandas de clientes e membros
Essa ideia de rede é uma ferramenta muito útil, pois nos ajuda a entender da equipe; as alterações positivas na forma de liderar; o fato dos líderes se
aquilo que constitui tudo o que vemos. Uma rede é um movimento, um fluxo, tornaram mais aptos a administrar e resolver conflitos, contribuindo de forma
o resultado da composição de alianças e amarrações entre elementos positiva no desenvolvimento das pessoas e a presença de pessoas com
heterogêneos através de estratégias de ordenamento que, quando bem limitações, superando dificuldades e desafios, causando grande impacto no
sucedidas, a tornam invisível a um observador menos atento. restante das equipes, sendo um fator de motivação para todos superarem
seus próprios limites.

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O ator que vemos na forma de pessoas com Síndrome de Down realizando Além disso, o despreparo da maioria das pessoas e empresas para receber
tarefas, assumindo responsabilidades e tomando decisões é, então, o funcionários com Síndrome de Down, barreiras arquitetônicas, urbanísticas e
resultado da formação de uma rede cujos elos podem ser tão heterogêneos de acessibilidade, aliados à baixa escolaridade desses funcionários, tornam
quanto leis protetoras e incentivos fiscais para empresas e relações de afeto, ainda mais difícil a estabilização da rede em razão de conflitos que fragilizam
família e tolerância às diferenças. a possibilidade de empregar essas pessoas.
Porém, como a Teoria Ator Rede nos ensina, os elementos têm “vontade Não se trata simplesmente de “acolher” como um ato de caridade, mas de
própria” e tendem a se dispersar, caso os elos não sejam suficientemente estar preparado adequadamente para dar oportunidades para que essas
fortes para mantê-los unidos. Assim, a existência e estabilidade dos atores é pessoas cumpram tarefas, sejam cobradas e tenham a chance de desenvolver
tão forte quanto o elo mais fraco das redes que o compõem. seus potenciais, o que permitiria seu crescimento, amadurecimento e
Quando imersos e atravessados por um universo heterogêneo e etéreo mas, contribuição efetiva para a sociedade.
ainda assim, real, não percebemos “a olho nu” a rede da qual somos partes e, Por esses e outros fatores, a criação, reformulação, consolidação e ampliação
ao mesmo tempo, efeitos. Essa percepção só é possível se nos permitirmos de leis e incentivos, bem como a conscientização da sociedade quanto ao
um distanciamento virtual que potencialize nosso olhar e nos facilite observar potencial profissional e agregador dessas pessoas são fundamentais para a
os componentes e suas relações, identificando, desta forma, a rede, seus estabilização e durabilidade da rede de que estamos tratando.
afetos e sensações.
Segundo Vicente Assis, em seu trabalho “O Valor que os Colaboradores com PROFISSIONALIZAÇÃO DOS INDIVÍDUOS COM SÍNDROME DE DOWN
Síndrome de Down podem agregar às Organizações” (ASSIS, 2014), empresas Um dos pontos relevantes da vida de uma pessoa com Síndrome de Down é
que contratam funcionários com Síndrome de Down, observam que fatores o seu processo de formação profissional, porque a mesma também é
como o preconceito, a ignorância e a falta de empatia de alguns por pessoas responsável por proporcionar o desenvolvimento e capacidade intelectual e,
com Síndrome de Down, funcionam como elementos que dificultam a não apenas em benefício próprio, mas também em benefício da produção
manutenção da rede, tornando necessária uma série de providências por econômica da sociedade, pois há pesquisas que mostram que da população
parte daqueles que querem sua permanência. com a Síndrome, muitos estão em empregos com baixa remuneração e que
exigem pouca qualificação. A inclusão profissional da pessoa com deficiência

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é um direito constitucional que determina que deve ser garantido o acesso profissionalizantes, centros de atendimento, voluntariado e estrutura
em curso de formação e capacitação para este grupo de trabalhadores, e esse completa. A instituição também garante atendimento, acompanhamento e
tipo de inclusão também promove resultados positivos na pessoa com a amparo com apoio de médicos, terapeutas e educadores, fornecendo
referida Síndrome, evitando assim que ela tenha seu desenvolvimento orientação adequada para todas as etapas que envolvem o crescimento e o
paralisado. desenvolvimento da criança e do adolescente.
Por mais que existam Leis como a Lei da Cota, que foi fundamental e que Essas instituições possibilitam o desenvolvimento trabalhista das pessoas com
avançou bastante socialmente e historicamente para os indivíduos com a deficiência intelectual, neste caso específico, das pessoas com Síndrome de
Síndrome de Down, essa Lei só dispõe sobre porcentagens e quantitativos, Down, visando promover o ingresso dessas no mercado de trabalho, bem
mas não fala sobre o grau de qualificação profissional dessas pessoas, e isso como também possibilitam que as empresas possam contratar mão de obra
acaba deixando as empresas contratantes num grande dilema de como capacitada e, ao mesmo tempo, cumprir a exigência da Lei de Cotas, ou seja,
contratar pessoas sem formação profissional para exercer as atividades da podemos verificar que há sim possibilidade de capacitar a pessoa com
empresa. E pensando nesses casos, existem no Brasil diversas instituições Síndrome de Down para realizar atividades laborais. É preciso que a sociedade
voltadas à formação profissional das pessoas com deficiência, só em Salvador e o Estado invistam em mais instituições profissionalizantes para esta
temos o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), que oferece categoria de deficiência e acreditem que as pessoas com Síndrome de Down
cursos profissionalizantes para pessoas com deficiência, e em relação às tendem a ser produtivas e, assim, favorecer a inserção destas no mundo do
pessoas com deficiência intelectual a instituição tem o Programa Educação trabalho. Muitas empresas atualmente no Brasil, estão levantando bandeira
para o Trabalho, que oferece uma formação básica profissional a jovens e em favor da contratação das pessoas com Síndrome de Down através do
adultos com este tipo de deficiência. Há também o CEEBA (Centro de contrato de aprendizagem. Esse fato é de suma importância na luta pela
Educação Especial da Bahia), que é um projeto do Governo Estadual, que inclusão e empregabilidade dessas pessoas, pois é uma eficaz ferramenta que
oferta cursos para alunos com deficiência intelectual, com faixa etária a partir proporciona educação profissionalizante às pessoas com Síndrome de Down.
dos 18 anos. E por último a APAE (Associação de Pais e Amigos dos Porém, é importante também discutir e entender sobre os aspectos
Excepcionais), que é um importante pilar para familiares e portadores da psicológicos consequentes dos portadores dessa síndrome, como por
Síndrome de Down, pois conta com diversos projetos, cursos exemplo ter noções sobre o atraso mental, os défices na comunicação, as

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dificuldades cognitivas, que naturalmente interferem na capacidade de como em grande maioria dos casos, problemas neuropsicológicos
compreensão e na forma de se relacionar com o mundo. caracterizados pela perda progressiva de habilidades cognitivas, depressão,
O processo de desenvolvimento cognitivo é variável pois cada indivíduo traz retraimento social, reduzidas habilidades de enfrentamento, cognitivas e
um perfil singular de construção e adaptação, além do que, tudo vai depender sociais.
da abordagem de intervenção, estímulo e integração daquele indivíduo a Inspirados em textos de Foucault, Marcia Moraes e na Teoria Ator Rede, será
condições multidisciplinares favorecedoras de desenvolvimento. abordada a problematização dos discursos sociais que corporificam e marcam
O papel da Psicologia pode contribuir desde a comunicação do diagnóstico os indivíduos portadores da Síndrome de Down, bem como as consequências
aos pais, até o acompanhamento psicológico desta pessoa portadora da da exclusão destas pessoas do mercado de trabalho, e de outras áreas
Síndrome de Down, numa perspectiva de auxílio de gestão e tratamento com produtivas, bem como os impactos psicológicos por ele atravessados,
diversas abordagens terapêuticas, objetivando o processo de mediantes a punição da exclusão social.
desenvolvimento, adaptação, e reconhecimento das potencialidades e As lesões patológicas ocasionam no Sujeito desvantagens sociais.
necessidades singulares do portador. Anormalidades corporais, deficiências mentais, doenças que restringem as
É importante salientar que não há um padrão estereotipado em todos os mobilidades sociais, produzem a cruel realidade da segregação dessas
portadores afetados pela Síndrome. O desenvolvimento intelectual e o pessoas do meio social, tornando-as corpos inúteis, principalmente no ramo
comportamento sócio afetivo não dependem somente da alteração laboral.
cromossômica. Todo o restante do potencial genético, aliado às As pessoas portadoras de deficiência serão, perante a maioria da sociedade,
circunstâncias derivadas do meio a que esta pessoa é inserida, serão sempre constituídas como deficientes-dependentes; dificilmente sendo vistas
condições importantíssimas para o desenvolvimento humano. como eficientes e independentes. Isso porque já está enraizado no seio social,
Os transtornos mais comuns que impactam a saúde mental dos portadores da o discurso dos atores envolvidos com o trabalhador deficiente, de que as
Síndrome de Down são: ansiedade, comportamentos repetitivos e obsessivos, práticas destas pessoas com deficiência são na maioria das vezes norteadas
comportamentos compulsivos, impulsivos, desatentos, apresentando por um princípio de normalização, onde a ideia central é a de que pessoas
hiperatividade, ou ainda fadiga e sonolência diurnas, podendo apresentar com deficiência são condenadas à uma normalidade perdida.
concomitantemente condições compatíveis ao espectro do autismo, bem

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A consequência deste discurso que padroniza a “normalidade” para os Há uma concepção comum de que os portadores da Síndrome de Down
indivíduos é nefasta para os portadores da Síndrome de Down. São pessoas necessitam do auxílio para tomada de decisões, realizações práticas e até
patologizadas por portarem a condição da Síndrome, consequentemente mesmo, administração de suas finanças. As discursividades que recaem sobre
sendo tolhidos, impedidos de se movimentarem socialmente. Além da os portadores da Síndrome de Down problematizam a interação destas
imobilidade social, são submetidos a processos de subalternização a pessoas com o mundo. Toda a rede de atores ao redor do Sujeito com Down
mediadores/controladores de suas tarefas, ou sofrem exclusões de naturaliza estes discursos de exclusão. As forças chanceladoras da exclusão
atividades diversas no meio social, principalmente as que requeiram permeiam o âmbito familiar e institucional.
produtividade. Deficiência caracteriza ineficiência e improdutividade? Que conceitos
Os traços que tanto marginalizam os portadores da Síndrome de Down vêm incapacitam o portador da Síndrome para atividades produtivas? Fato é, que
sendo impressos desde muito cedo na vida destas pessoas. Instituições de o olhar da estigmatização restringe as possibilidades existenciais das pessoas
ensino, religiosa, de lazer, produzem os primeiros efeitos de exclusão para o nesta condição. Como um portador desta condição vive, tentando se
portador de Down. Muitas Escolas não aceitam matricular alunos “especiais” construir como sujeito individual e coletivo?
– termo corriqueiro que marca o corpo contrário ao padrão de normalização. A construção de um Sujeito é um processo individual , mas também coletivo,
Muitas empresas não contratam portadores da condição. Nesta rede de pois uma pessoa sozinha torna-se imóvel dentro de um contexto social de
atores em torno da Síndrome, muitas vezes temos os próprios familiares uma rede. Eu existo, a medida em que me percebo no outro. É no meu
exercendo a conduta segregadora, limitando a participação e o processo de contato social, na minha interação com o outro, que os afetos e reatividade
inclusão deste indivíduo no mercado de trabalho, e subjugando-os ao convívio são produzidos em mim, permitindo-me a percepção de quem sou. O olhar
apenas doméstico. Não pensam neste ser humano enquanto sujeito em do portador da condição do Down sobre si mesmo é um olhar sindrômico?
construção social. Rotulam a estas pessoas discursos taxativos de sujeitos Será sindrômico a partir do reconhecimento desta deficiência, que o Outro
improdutivos, inabilidosos e incapazes. sobre ele impõe. É o discurso do Outro que corporifica o sujeito patológico,
Seguindo o entendimento de que o normal não tem um determinante para portador do Down.
todos os indivíduos da mesma espécie, a Síndrome de Down não pode ser A mobilidade social do portador desta condição fica muito cerceada pelas
estabelecida como um rótulo. discursividades autoritárias do biopoder. Encontra frequentemente

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preconceito e crenças pré-estabelecidas precocemente quanto a sua todo esse contexto ajuda o indivíduo a minimizar a força da tutela familiar, e
incapacidade de ajustes ao modelo comportamental desejado. propicia lançar novos olhares, ressignificando os trabalhadores com a
O Sujeito com Síndrome de Down dificilmente é aceito a incorporar no Síndrome de Down.
coletivo seus argumentos e transmitir seus conteúdos, livres do julgo do A FAMÍLIA E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO
preconceito. Como citado anteriormente, pessoas com Síndrome de Down podem
Deslocar seus objetivos, interesses e necessidades é desafiador na vida da agregar diversos valores no âmbito empresarial, porém esse processo tem
pessoa com Down. início no convívio familiar e se em suas casas não conseguirem se relacionar
Por outro prisma, a percepção do portador sobre os efeitos das conexões e bem, será muito difícil que o façam em seus empregos.
inter-relações estabelecidas é poder reconhecer suas próprias expressões de Durante a gestação, a notícia que o filho possui a trissomia do cromossomo
existência enquanto Sujeito individual e coletivo, tentando compreender a 21 chegará aos pais. Nesse importante momento, decisões devem ser
forma diferenciada com que lhes são imputadas barreiras e pressões de tomadas, levando em conta toda a diferença de ter um filho com tal
produtividade nos moldes do que mais se pareça com a normalidade Síndrome. Compreender a necessidade de diversos investimentos é
padronizada; principalmente no ambiente laboral. necessário, como tempo, estudos, paciência, e muitas vezes dinheiro.
Para o portador da Síndrome é extremamente importante a construção de Primeiramente, aceitar que hoje em dia no Brasil, a maioria das pessoas vai
vínculos nas relações de trabalho, para que afetos positivos abarquem desde encarar com maus olhares, como uma aberração ou com pena, assim todos
o ambiente laboral, até a relação com os colegas de trabalho, e execução do na família terão suas vidas afetadas, uma vez que esses preconceitos também
tipo de tarefa e a velocidade exigida na produtividade, contribuindo para que os machucarão. Porém, por mais que em todos os casos exista uma falta de
estes fatores sejam favoráveis ao fortalecimento psicológico dos sentimentos informação, a maldade no julgamento passa a ser facilmente visualizada pelo
de segurança e pertencimento àquele meio laboral. portador da Síndrome e por seus familiares
O sentimento de competência profissional, o prazer das conversas com os Nesses casos, uma atenção grande deve ser voltada para os chefes das
colegas, a sociabilidade nas pausas para as refeições no trabalho, a autonomia instituições das quais a criança irá frequentar. Isso porque, o "exemplo a ser
de locomoção para o local de emprego, a disciplina com os horários e prazos, seguido" na nossa sociedade vem dos cargos de maior referência; então se
a liberdade de usufruir da remuneração para comprar objetos desejados; for entendido, por exemplo, que falta respeito por parte do diretor da escola,

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também faltará respeito dos professores e em seguida dos colegas de classe. global de como determinado problema relacionado com a Síndrome de Down
Atualmente, existem leis que auxiliam na educação dessas crianças, como está sendo tratada.
uma bem recente que obriga um acompanhamento individualizado nas Dessa forma, a partir de cuidados redobrados, as pessoas com Síndrome de
escolas. Down podem chegar ao desenvolvimento físico desejado e a partir daí
Entretanto, os problemas podem vir de todos os lados, até mesmo de dentro desenvolver-se bem psicologicamente. Auxiliado pela família, e quando
da família. No início, esse processo ocorre mesmo que inconscientemente em necessário, por um pedagogo, uma pessoa com Down pode absorver
um ou outro membro, por isso há a necessidade do núcleo mais próximo à qualquer conteúdo, desde que ela deseje isso. Como no caso de Laura Simões,
criança se fechar em torno dela, protegendo-a, dando o máximo de amor e portadora da síndrome de Down, youtuber e recepcionista, que recebeu sua
suprindo suas necessidades. Dessa forma, um amadurecimento ocorrerá com CNH no dia 19 de abril de 2021, se tornando a primeira brasileira com Down
esse núcleo familiar, que, junto da criança um pouco mais desenvolvida, a conseguir tal feito, ou Breno Viola, faixa preta de judô e ativista das causas
passará a exigir cada vez mais respeito. Down.
Portanto, as barreiras sociais se mostram duras, e paralelamente ao Dessa forma, a meu ver, essas pessoas, quando bem cuidadas, irradiam um
enfrentamento delas é recomendado todo um trabalho médico especializado. amor puro por onde passam, espalhando ensinamentos grandiosíssimos a
Já na gestação é redobrada a importância da alimentação da mãe, a fim de quem se conectar a elas. Isso ocorre, pelo fato delas enxergarem o mundo
suavizar ao máximo o grau de hipotonia. Depois do nascimento, a fisioterapia com mais ingenuidade, diferente das pessoas comuns que instalam diversas
e a fonoaudiologia serão essenciais durante a infância, para que as barreiras por temerem as respostas negativas do meio. Portanto, uma família
dificuldades hipotônicas sejam delimitadas e assim superadas. que respeita o próximo crescerá exponencialmente junto dessa pessoa com
Felizmente, hoje em dia a maioria dos pediatras sabem dos cuidados Down, que agregará de diversas maneiras, como com feedbacks foras do
necessários, mesmo que superficialmente, recomendando vitaminas padrão, demonstrando constantemente amor ao próximo, tendo momentos
específicas e modos de vida compatíveis. Entretanto, os poucos especialistas filosóficos e artísticos que expressem amores incondicionais aos familiares e
presentes no Brasil, são sempre bem-vindos, pelo fato de conseguirem será autossuficiente a ponto de ajudar ao próximo da maneira que ela quiser.
mergulhar mais a fundo nos casos e conhecerem todo um cenário nacional e Assim, torna-se inevitável a presença de um sentimento de orgulho na família,
pelos cansaços não poupados, a fim de fazer o filho feliz. E ainda mais por

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saber que, mesmo com toda ajuda, ela se desenvolveu por si só e assim terapias que ajudaram na melhora da qualidade de vida de muitas pessoas
tornou-se uma pessoa maravilhosa, da qual somente a sorte pode explicar a com Down.
gratidão pela ligação que se estabelece no convívio. O principal resultado é o aumento da expectativa de vida dessa população.
A fim de prosperar essa relação, para aproveitar o máximo de tempo possível Hoje, cada vez mais as pessoas com a Síndrome estão chegando na terceira
convivendo com essas pessoas, foram desenvolvidos diversos conhecimentos idade. Alguns estudos afirmam que a expectativa de vida cresceu no mínimo
a fim de prolongar suas vidas. Por isso, a expectativa de vida das pessoas com 3,75 vezes nos últimos 40 anos. Hoje, ela gira em torno dos 65 anos. Contudo,
síndrome de down vem aumentando ano após ano, e os motivos históricos muitos desses idosos acabam por desenvolver doenças que afetam a
dessa crescente formam uma parte da nossa pesquisa. memória e os músculos. Uma das que mais acometem indivíduos com a
Segundo a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, entre Síndrome é o Alzheimer.
350 mil a 400 mil brasileiros possuem a trissomia do cromossomo 21, "A pessoa com Síndrome de Down deveria ser considerada idosa a partir dos
responsável pela Síndrome de Down. 20 ou 30 anos", afirma o geriatra Marcelo Altona, do Hospital Israelita Albert
Na atualidade, a pessoa com deficiência mental, como o resto da população, Einstein. Depois dessa idade, indivíduos com a SD começam a apresentar
tem aumentado a sua expectativa de vida graças à prevenção, cuidados de sinais de envelhecimento como a perda gradual da força, enfraquecimento da
saúde e avanços da ciência e da biologia. A expectativa média de vida das imunidade e da capacidade funcional. Além disso, há o embranquecimento
pessoas com síndrome de Down, que era de apenas 9 anos em 1920, chega, ou perda de cabelos, dificuldade para escutar, visão prejudicada e catarata,
hoje, a 56 anos em países desenvolvidos. No Brasil uma pesquisa realizada condições que, na população sem Down, costumam surgir bem mais tarde.
pela Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Paulo Esses sinais de envelhecimento, especialmente a demência e a doença de
evidenciou que houve, na última década, um aumento de 20 anos na Alzheimer, passam despercebidos pelas famílias, já que podem ser encarados
expectativa de vida das pessoas com deficiência mental, que passou de 35 como resultado da deficiência cognitiva que também faz parte das
anos, em 1991, para 55 anos, em 2000. O que antes era uma sentença de vida características da Síndrome.
curta mudou graças aos avanços no conhecimento da condição genética Ações como não se limpar, esquecer de trocar de roupa, por exemplo, podem
angariada nos últimos 30 anos. Eles permitiram a criação de recursos e ser indicativos da instalação da doença neurodegenerativa. "Cada paciente

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manifesta alterações variadas. Por isso, é necessário serem melhor A necessidade da formação de novos e, muitas vezes, inesperados elos e a
observadas", ressalta o geriatra. importância de torná-los consistentes nos abre um universo de possibilidades,
As diferenças também atrapalham alguns médicos na hora de realizar um de olhares e caminhos que sequer imaginávamos. Como consequência,
diagnóstico, principalmente porque muitos pacientes não conseguem falar percebemos o surgimento de profissionais mais aptos a lidar com situações
quais sintomas estão sentindo. outrora consideradas complexas mas que revelam uma face natural na
Uma das consequências de as pessoas com Down estarem vivendo mais é que medida em que nossas experiências têm nos dado recursos e ferramentas que
antes apenas pediatras cuidavam desses pacientes, o que resultava em ampliam nossos olhares e percepções.
poucas conversas sobre longevidade. Hoje, todos os médicos assistem os Trabalhar é uma importante ferramenta de inserção social. O indivíduo
portadores de SD, clínico geral e também geriatras. portador da Síndrome de Down que obtém a oportunidade de vivenciar
O acesso às técnicas e tecnologias compatíveis com o estágio de atividade laboral, tem maiores chances de aprofundar inter relações,
conhecimento que a humanidade já alcançou, é perceptível o grande avanço conquistar autoconfiança, aprender a gerir conflitos, desenvolver a
para uma boa sobrevida e qualidade de vida deste público, mas, por outro capacidade cognitiva, e principalmente acreditar na possibilidade de
lado ainda é possível evidenciar o descompasso da sociedade nos quesitos estruturar a vida adulta.
inclusão, respeito e amor ao próximo. Pensar na diversidade requer o olhar atravessado pela empatia. Construir
CONCLUSÃO pensamentos sobre as dificuldades imputadas ao portador desta síndrome,
A elaboração deste trabalho nos trouxe algumas reflexões quanto à inclusão exigiu reflexões em múltiplos sentidos acerca dos embaraços diversos, no
das pessoas com Síndrome de Down no mercado de trabalho. Uma delas é a fluxo de vida destas pessoas. Quais territórios, buscando aqui, o conceito
de que essas pessoas agregam uma potência de conhecimentos e simbólico de lugares de subjetividade, o Sujeito com Down, conquista?
competências a partir da perspectiva de novas experiências que nos lançam Frente à tanta adversidade, os sentimentos reconhecidos continuamente são
ao desafio de buscar e criar alternativas e formas de adaptação mútuas que de rejeição social e resistência individual, caminhando ambivalentes. Muitas
permitam a agregação de valores, tornando o ambiente de trabalho mais vezes, o indivíduo com a Síndrome de Down tenta percorrer um fluxo
profícuo, flexível e expansível. funcional que a sociedade corta. É necessária e árdua, a constante busca por

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territorialização e construção identitárias destas pessoas, produzindo suas
colocações e assujeitamentos no coletivo.
A sociedade percebe o humano como objeto de produção. O indivíduo com a REFERÊNCIAS
Síndrome de Down quer existir, quer produzir, quer pertencer, e luta MASSON, Stela. Desafios e ganhos com a empregabilidade de pessoas com
processos de aceitações, conectando contínuas superfícies de reafirmações síndrome de Down, camarainclusao, 30/06/2017. Disponível em:Desafios e
de potência em oposição ao que lhe quer repudiar, fazendo-se renascer, ganhos com a empregabilidade de pessoas com síndrome de Down | Câmara
ocupar e manter espaços, onde o poder de exclusão autoritarista tenta Paulista para Inclusão da Pessoa com Deficiência (camarainclusao.com.br).
tangencia-lo às bordas da exclusão. Acessado em Março de 2021
Portanto, é importante destacar que inclusão é algo extremamente Inclusão no mercado de trabalho.movimentodown. Disponível em:Inclusão
necessário no mercado de trabalho, pois de certa forma pode se dizer que é no mercado de trabalho - Movimento Down. Acessado em Março de 2021
um sinônimo de troca, pois desde o ínicio, não só o portador da Síndrome ASSIS, Vicente. Frank, Marcus. Bcheche, Guilherme. Kuboiama, Bruno “O
deve se adaptar, como também todos os funcionários devem estar dispostos valor que os colaboradores com Síndrome de Down podem agregar às
a se adaptar à nova realidade, propagando um melhor ambiente de trabalho. organizações, 2014. https://alana.org.br/wp-
Enfim, são diversas etapas construídas, outras desconstruídas e muitas a content/uploads/2017/04/Paper_Sindrome_Down.pdf, acessado em abril de
serem vencidas pelo portador da Síndrome de Down para conseguir ser 2021
inserido numa sociedade que exige igualdade e é excludente aos diferentes. MORAES, Marcia. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In:
Porém, nosso papel enquanto sujeitos ativos, fazendo parte desta sociedade, Moraes, M e Kastrup, V. Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com
é ser consciente e tornar possível a integração, agregação e inclusão de todo pessoas com deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010
e qualquer ser humano com dignidade, amor e empatia, respeitando os COELHO, Charlotte. “A Síndrome de Down”, 2016. https://www.psicologia.pt,
limites de cada um. acesso em 26 de abril de 2021
Pletsch, Márcia Denise; O envelhecimento das pessoas com deficiência
mental: um novo desafio. Anais do 10º Congresso Estadual das APAES de
Minas Gerais e 3º 2006.

151
Envelhecimento precoce em pessoas com síndrome de down, UOL, 2020.
Disponível em:
<https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/03/21/.htm?next
=0001H812U66N>
Borges, Elines. EMPREGABILIDADE DE PESSOAS COM SÍNDROME DE DOWN:
A inclusão a partir de uma reflexão sobre a função social da empresa
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/26472/1/ELIN%C3%8AS%20BORG
ES%20DE%20SOUZAL%20_Empregabilidade%20de%20Pessoas%20com%20S
%C3%ADndrome%20de%20Down_vFinalNUMAC%20v00.pdf
Doutor Zan Mustacchi, Contextualização e aprofundamento de temas
variados sobre a síndrome de down, através de perguntas enviadas por
internautas, YouTube, 2018: - Síndrome de Down parte 1 - Dr. Zan
Mustacchi - YouTube - Síndrome de Down parte 2 - Dr. Zan Mustacchi -
YouTube, acessado em Abril de 2021
Filme dirigido por Tyler Nilson e Michael Schwartz, The Peanut Butter Falcon,
2019, com o ator e personagem principal com síndrome de down:
contextualização de forma artística do tema, visto em Março de 2021

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CAPÍTULO 13 COVID-19: IMPACTOS NA SAÚDE INFANTIL
O RETORNO DA EDUCAÇÃO INFANTIL ÀS AULAS PRESENCIAIS
Estamos vivendo uma pandemia que não só afeta a economia, mas
HANNA VERONICA DOS SANTOS JURGENS também a saúde mental de adultos e crianças.Onde o efeito do
CINTIA PONTES CORENZA
confinamento nas crianças vai desde o atraso em seu desenvolvimento
NELIO GIMENES GOMES JUNIOR
LUIZ CARLOS SANTA ROSA DA ROCHA cognitivo até aos danos psicológicos gerados pela mudança de rotina, a falta
de troca com outras pessoas e a redução no seu gasto de energia diário
Vivenciamos um período que irá entrar para a história da humanidade, a As crianças quando infectadas pelo COVID-19 apresentam sintomas
pandemia. E este projeto tem por objetivo apresentar os desafios da leves, porém o isolamento social as afetam de outra maneira muito
retomada escolar infantil às aulas presenciais na pandemia e analisar o prejudicial a saúde mental dos pequenos, já que para o desenvolvimento
comportamento das crianças nesse retorno após estarem um ano em saudável das crianças é necessário o relacionamento interpessoal.
confinamento sob a ótica da TAR.. E também com o fechamento de escolas, a suspensão das refeições
A TAR é uma nova forma de enxergar a realidade e nesse período escolares na rede pública, afeta a nutrição das crianças das camadas mais
precisaremos ver essas outras formas para nos adaptarmos ao “novo pobres e aumenta os gastos das famílias com alimentação.
normal”. Sabe-se que a qualidade do cuidado familiar, fator essencial para o
Para Latour a teoria ator-rede são os vínculos criados, sendo bons ou crescimento e desenvolvimento das crianças, depende de boas condições
maus e de que forma eles nos afetam, qual é a importância das conexões, psicossociais, sanitárias e econômicas. A precariedade do contexto familiar
como as relações vão sendo construídas, levando em consideração atores pode promover riscos ao desenvolvimento infantil, com a fragilidade nos
humanos e não-humanos, sendo marcada pela transformação. vínculos afetivos. A convivência de vários familiares sob estresse psicológico
Nesse contexto pandêmico, podemos observar como as relações foram em um mesmo domicílio, muitas vezes com densidade habitacional alta,
afetadas e pensarmos de que maneira nossas redes podem transformar e pode aumentar a tensão no ambiente, os casos de violência doméstica e a
criar novos paradigmas, sendo esse um momento de mudanças não só no experiência de estresse tóxico nas crianças, com consequências
âmbito escolar como na sociedade em geral. potencialmente de longo prazo.

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Além dos impactos imediatos pela covid-19, teremos os impactos a longo Em outros países as escolas foram as últimas a fecharem e as primeiras a
prazo. Estudos apontam que crianças que foram sobreviventes de uma reabrirem, pois estudos indicavam que o índice de transmissão nos colégios
catástrofe tiveram dificuldades nos testes de alfabetização durante anos era baixo e a taxa de gravidade em crianças contaminadas também era
após o evento. E muitas crianças perderam parentes e tiveram uma pequena.
interrupção abrupta do convívio social, o que pode afetar o aprendizado por Mesmo com receio de enviar ou não as crianças para a escola, tanto pais
um tempo maior. quanto crianças estavam ansiosos por esse retorno, o convívio social é
Em outra pesquisa realizada pela Unicef, famílias com crianças relataram importante para o desenvolvimento delas. E como mãe de uma criança de 6
a mudança na alimentação, passando a consumir mais alimentos anos, posso relatar sobre uma vez em que disse para minha filha que não a
industrializados e outras não tinham nem dinheiro para comprar comida. levaria ao colégio, ela chorou e implorou para ser levada e disse: “Mãe, já
A VOLTA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO INFANTIL fiquei um ano sem ir à escola, não aguento mais ficar em casa.” Apesar da
A pandemia atingiu ao Brasil e como não se tinha muito estudo sobre o preocupação, com o risco da contaminação no ambiente escolar, ao olhar
vírus foi decidido fechar comércios e escolas por um período, porém aquela criança aos prantos para ir á escola, entendi a importância da
conforme a pandemia ia avançado esse isolamento ia se prolongando, aos convivência social para seu desenvolvimento, que não bastava apenas ter
poucos os comércios voltaram a reabrir, mas a justiça manteve a decisão de aulas online, ela precisava ver ao vivo os amiguinhos e decidi arriscar e levá-
continuar com as escolas fechadas. Algumas escolas particulares la, pois talvez ela não desenvolvesse nenhum sintomas pelo covid e sim pelo
mantiveram aulas onlines, porém a grande maioria das públicas não. isolamento social afetando sua saúde mental.
Após um ano de fechamento dos colégios, a justiça liberou para o retorno A discussão sobre a retomada das aulas presenciais vem mobilizando a
das aulas presenciais , desde que seguissem todos os protocolos de todos sobre o impacto que esta decisão causou positivamente e
segurança. Apesar de não se saber ao certo, como seria esse retorno, se os negativamente. Além das questões relativas aos protocolos de higienização
protocolos seriam o suficiente para evitar a transmissão do vírus, a e distanciamento social que vieram de brinde, tem sido um grande desafio
reabertura era necessária devido ao impacto que o isolamento social estava para todos na escola e pra mim, não posso deixar de mencionar os inúmeros
tendo na saúde mental nas crianças. desafios enfrentados, uma experiência de medo e vulnerabilidade, mas
seguindo o cotidiano na esperança de dias melhores, afinal de contas as

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aulas presenciais são essenciais para os pequenos, no que se refere ao seu longos, hoje as crianças têm medo de chegar perto, o vírus nos roubou essa
processo de desenvolvimento como um todo. parte, antes tão natural e carregado de significados.
São muitos os desafios da rotina diária. E vão dos aspectos estruturais e Discutir, ponderar, acalmar as angústias, alinhar as expectativas e
organizacionais da escola, que deverá atender aos protocolos todos, aos planejar soluções possíveis, faz-se muito necessário. Mais do que nunca,
aspectos emocionais das famílias, crianças e professores, que envolvem não num contexto como a de uma pandemia, precisamos pensar coletivamente,
só o acolhimento dos alunos como também o das famílias, muitos em sua compartilhando a responsabilidade entre todos os envolvidos.
maioria desolados pelo medo e insegurança dessa nova realidade atual, Nesse tempo, foi necessário ressignificar sentimentos e pensamentos.
realidade essa em que estamos nos adaptando, aprendendo a andar. Todos Resgatando os aprendizados vividos pelo isolamento físico e priorizar o
estão, em alguma medida, sensíveis a tudo que vem acontecendo e, de certa material humano.
forma, inseguros, ansiosos e um tanto esperançosos com o que está por vir Como José Pacheco, grande educador Português, lembra sempre: “Escola
e o que virá? Tem sido uma experiência dolorosa, embora o professor seja não é edifício, escola são pessoas”. Sendo assim, para além de todos os
parte desse processo direto e indiretamente. cuidados de higienização, que são importantíssimos, temos que focar na
O retorno exigiu prontidão para o novo normal, causando estranheza e saúde emocional dos professores, crianças e adultos. A situação vivida ainda
me obrigando a repensar sobre o meu papel enquanto agente é delicada sob muitos aspectos e, sobretudo, o aspecto emocional. Muitas e
transformador e em constante aprendizado. Foi necessário rever minha diversas foram as perdas, não podemos fechar os olhos para isso, não será
prática métodos, novas estratégias para a reinvenção, tanto das relações possível continuar de onde havíamos parado, como se tudo tivesse sido um
afetivas quanto do trabalho pedagógico em si, repensando os projetos, de feriado prolongado. É preciso reconhecer a nossa vulnerabilidade para
acordo com a avaliação diagnóstica dos alunos, além de outros combinados podermos entendê-la como potência, no sentido de que esse exercício de
para a rotina, pois inevitavelmente tudo mudou. Essa nova realidade tem autoconhecimento pode nos direcionar para a busca de estratégias mais
sido um grande desafio para todos na escola, sobretudo para as crianças que efetivas para lidar com as questões que forem se apresentando.
perderam e pularam fases importantes do seu desenvolvimento motor, fino, Por sua vez, percebi e entendi que preciso estar ainda mais conectado
social e emocional. Muitas crianças se encontram prejudicadas com os meus alunos, com suas demonstrações de afeto e mudanças de
emocionalmente, nas entradas pela manhã cheias de afeto e abraços comportamento. As crianças sentem-se inseguras, precisamos lembrar a

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toda hora, que elas não podem ficar tão perto, uma sala de aula muito doença. Temos agora um desafio que se apresenta diante do elevado grau
silenciosa revela insegurança, medos e angústias. Há uma infinidade de de contaminação e das novas variantes que estão aparecendo. Diante da
possibilidades de demonstrações de afeto; não há receitas para lidar com atual conjuntura que está se apresentando, temos um grande desafio diante
elas. Para cada uma, terá que se pensar uma forma de abordagem, como de nós, pois é sabido que uma grande maioria das escolas principalmente
fazer e o que fazer, para tentar salvar, resgatar o que perdemos, nesse longo públicas, não apresentam espaços apropriados; uma grande parte das salas
intervalo das aulas presenciais. Ouvir e acolher a criança é sempre o primeiro de aula possuem mais alunos do que deveria, fazendo assim com que a
e mais precioso passo, para depois seguir com as práticas pedagógicas logística da volta às aulas seja bastante complexa.
seguindo o novo normal. Além do olhar atento e da escuta, criar rodas de Seria possível uma adaptação adequada se as escolas tivessem já um
conversa e outras dinâmicas que possam favorecer o diálogo e a elaboração ambiente que favorecesse a convivência sem que isso significasse um risco
desses conteúdos afetivos é fundamental. para todos. Muitas crianças ainda estão vivendo a experiência de
Escola e creche é o lugar do encontro, das descobertas. É lá que as acompanhar as aulas à distância. Em muitos relatos as mães afirmam que
crianças convivem, socializam e aprendem umas com as outras. Portanto, não conseguem dar suporte para seus filhos, pois as aulas que são
pensar um cenário de aprendizagem onde parte da turma esteja em sala e ministradas à distância exigem uma estrutura mínima que parece simples,
outra parte online é pensar numa quebra, onde haverá perdas de diferentes mas requer disciplina e adaptação.
formas para todos e houveram muitas perdas. Caberá, porém, a cada escola Dessa forma, temos um grande desafio, pois um ambiente de insegurança
e creche decidir como proceder de acordo com o que estiver determinado real está presente dentro dos muros da escola. Na verdade, não há como
por lei, que defende o direito à educação plena da criança e do adolescente. garantir que o aprendizado aconteça de forma satisfatória, pois de uma
Sendo assim, o mais interessante e produtivo seria investir em soluções que maneira geral, as crianças brasileiras não são criadas em um ambiente de
possam atender ao coletivo, o retorno às escolas a seu tempo, devagar, muita disciplina. O que temos visto como solução apresentada pelas
respeitando as normas de segurança, de forma saudável, segura e cheia de prefeituras é o ensino híbrido que seria a combinação das aulas presenciais
afeto, tem sido um desafio o recomeço. e aulas à distância conforme escolha do aluno que pode ser feita de forma
O Brasil se tornou um dos países com a maior quantidade de infectados intermitente pelos mesmos. Este modelo pode proporcionar dificuldades na
pela covid. O isolamento se tornou mandatório para conter o avanço da rotina da criança, visto que certos dias ela aprenderá só de forma remota e

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em outros presencial, sem que haja uma linearidade que é importante para instantâneo, ele necessita de outros fatores que somados possibilitam um
o desenvolvimento biopsicossocial das crianças. ambiente propício para a construção de conhecimento.
Temos visto que alguns países apresentaram soluções para que as Podemos perceber que embora haja um esforço para que os
crianças possam voltar ao ambiente escolar sem que isso represente um abismos sociais sejam minimizados, não há como resolver questões que
risco para o corpo docente, discente e familiares, porém muitas dessas estão configuradas de forma desorganizada há décadas. A escola também é
escolas que aparecem como exemplo praticam todos os protocolos de um lugar onde as grandes questões sociais convergem, portanto a escola é
forma que as possibilidades de infecção sejam reduzidas; seja pelo um reflexo direto da sociedade em que está inserida e faz reflexo direto de
distanciamento possibilitado pelo uso de equipamentos adaptados ou pelo todos os problemas e mazelas sociais dentro dela.
número reduzido de alunos em sala de aula. Muitas crianças não possuem em casa um ambiente de tranquilidade e
Podemos dizer que essa adaptação trouxe um grande desafio e mostrou adequados para que possam realizar suas atividades com o mínimo
a importância que devemos dar ao papel que a escola tem na formação da necessário para que ela se concentre e crie a disciplina de exercitar em casa
criança como um todo, pois muitos deles só possuem momentos de aquilo que aprende no ambiente escolar. A pandemia descortinou desafios
socialização dentro dos muros da escola. Acreditamos que um ambiente que talvez já estivessem presentes, mas que se agravaram grandemente. A
seguro e adaptado, é muito importante para que o desenvolvimento educação atravessa vários aspectos do ser humano que precisam ser
cognitivo da criança aconteça sem que haja prejuízos que sejam difíceis de atendidos para que as transformações típicas da idade aconteçam de forma
solucionar posteriormente. saudável .
Somado a isso tudo temos as grandes questões que perpassam pelo Uma das possibilidades para que os problemas de adaptação sejam
grande abismo social que separa muitas famílias nesse momento de reduzidos é a implantação de um programa governamental de investimento
pandemia. As diferenças entre as classes sociais no Brasil é imensa, direto em educação, pois todos os grandes desafios que temos agora não
revelando uma ausência daquilo que é muito importante para que uma surgiram por conta de pandemia, eles sempre estiveram presentes, mas
criança desenvolva suas habilidades dentro de um ambiente de segurança talvez não percebidos, pois a participação do governo e sociedade é de suma
física, emocional e cognitiva. O aprendizado não é um fenômeno importância para que a escola não apenas sobreviva diante dos grandes
desafios que agora vemos.

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Percebe-se também que embora foi disponibilizada a possibilidade de As estratégias de ensino remoto são meios de contenção dos efeitos que
termos aulas online, muitos não possuíam o mínimo para que isso fosse estamos observando nos estudantes, pois inúmeras lacunas estão sendo
possível. Muitas das nossas fragilidades foram apresentadas de maneira criadas sem a convivência e a educação infantil de forma remota acaba
mais nítida neste período de adaptação, pois adaptar um sistema exigindo que as famílias possuam equipamentos apropriados para o
educacional só é possível quando ele já tem uma estrutura que funcione acompanhamento das atividades virtuais propostas pela escola, além de
corretamente e de forma eficaz, fazendo com que um novo sistema seja conhecimentos pedagógicos para o ensino à distância.
implementado de forma mais precisa. Através das interações e brincadeiras, as instituições de Educação Infantil
Dentro dessa perspectiva percebemos que o ensino remoto oferecem a criança a oportunidade do convívio dentro de um ambiente de
infantil ou até mesmo presencial com o uso de protocolos apresenta um socialização, aprendendo assim aspectos que vão muito além das atividades
desafio muito maior, pois o aluno mais novo nem sempre entende o que mais formais. Essa convivência faz parte do processo de construção do
está acontecendo, criando assim uma certa ausência de autonomia e conhecimento que devem acontecer dentro de um lugar onde as crianças
disciplina. É necessário um monitoramento para que as crianças não retirem possam vivenciar interações que são fundamentais para o processo de
as máscaras, não interajam com o colega diretamente e isso é sempre mais interação social.
complexo quando se trata do ensino infantil. Dentro deste contexto atual, as escolas públicas e privadas de nosso país
As aulas no modo remoto é algo que nunca tivemos antes, dessa forma buscam alternativas e estratégias para que os alunos se mantenham
uma das características que começamos a perceber é que o distanciamento engajados com as aulas e as atividades remotas, garantindo a aprendizagem
traz consequências que provavelmente só veremos nos próximos anos. e o desenvolvimento desses alunos.
Somos seres sociais e precisamos desse contato presencial. As instituições estão tentando se adaptar a uma realidade imposta para
O distanciamento social, foi a medida mais efetiva diante da necessidade evitar o descontrole no que tange a transmissão do vírus. Esse desafio
de reavaliação do processo de ensino-aprendizagem, pois esse cenário atravessa a educação de uma forma singular, pois percebemos que a
obrigou as instituições de ensino a adotar a tecnologia para continuar com educação nunca mais será a mesma após esse momento em nossa história.
a rotina de estudos. Esse método de estudos é desafiador, já que o Nesse contexto, os estados e os municípios, através dos seus Conselhos
estudante precisa ter muita disciplina e organização. de Educação, orientam com pareceres e até mesmo resoluções que as

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instituições de ensino tentem se reorganizar, modificando o calendário ambiente escolar é de suma importância para que se desenvolva na criança
escolar e reinventando de forma virtual tudo aquilo que acontecia de forma essa habilidade social.
presencial. É muito relevante pensar que não é fácil controlar o que uma criança faz
Esse contexto nos mostrou que muitos alunos não têm acesso à internet o tempo todo, pois a curiosidade e a impulsividade são muito naturais para
ou uma estrutura familiar capaz de fazer um acompanhamento educacional as crianças mais novas. Controlar um intervalo dentro de uma ambiente
de forma adequada, surgindo assim uma necessidade de repensar a escolar é muito complexo e dentro desse novo desafio é algo que exige
educação e o papel que a escola tem na vida dos estudantes, grande organização nesse contexto excepcional.
principalmente, quando falamos de ensino infantil. Não podemos nos esquecer que geralmente dentro do intervalo existe o
Quando nos referimos ao ensino infantil em instituições formais, momento da famosa merenda, que é o instante em que o aluno vai comer
sabemos que ele assegura que a criança aprenda em situações diversas, alguma coisa que trouxe de casa ou que a escola irá oferecer. Não tem como
possibilitando à criança o desempenho de papel ativo dentro da construção se alimentar utilizando máscaras e não se poderia criar filas para o
de significados e da imagem que ela tem sobre si, os outros e o mundo em recebimento da mesma, criando assim um ambiente de grande desafio.
que vive. Mas podemos observar que por outro lado o retorno às aulas presenciais
Sendo assim, podemos dizer que a vivência escolar é indispensável para neste período de pandemia trouxe novos modos de interagir e de realizar
o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças, pois a escola é uma algumas das rotinas do dia a dia, talvez tenham sido o que mais impactou na
instituição muito importante para que garanta o pleno desenvolvimento rotina escolar. Ainda assim, percebi que as crianças lidaram bem com esse
intelectual e social. chamado "novo normal". Já chegaram à escola com as regras de uso da
Quando pensamos no ambiente escolar nos esquecemos às vezes de que máscara, álcool em gel, lavagem das mãos, bem assimiladas.
existe uma logística dentro dela. Não é possível que um aluno fique sentado Percebi também uma alegria muito grande em estar retornando ao
por horas sem que haja um intervalo entre as aulas, até porque a interação espaço escolar e ao convívio com seus pares. Neste sentido, temos
social nessa fase é de suma importância, já que elas estão em formação da trabalhado para que interajam de forma segura. A maioria relatou que
personalidade e precisam interagir com os pares, pois essa integração ao estava muito cansada das aulas remotas.

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Esperamos que esse desafio, que é a adaptação escolar seja no ambiente das medidas que promovam isolamento social entre elas para que se evite
virtual ou presencial, possa gerar melhorias em todos os aspectos da o contágio. Entretanto, isso acaba diminuindo interações socioespaciais que
educação em nosso país, possibilitando que todas essas questões sejam até hoje foram fundamentais para a educação infantil. Vejamos:
pensadas e analisadas para que a escola esteja preparada para um ensino Com essa pesquisa, podemos notar as dificuldades para o
que prepara para a vida e não somente um ensino de reprodução de desenvolvimento infantil, não somente no âmbito escolar, mas familiar
conteúdos de forma sequencial, sem sentido e significado ao que tange às também e como isso irá impactar no futuro. Como as crianças de hoje serão
grandes transformações que a sociedade alcançou e que precisam ser vistas enquanto adultos amanhã? Nós como futuros psicólogos precisamos nos
dentro da escola. debruçar sobre o assunto e estarmos preparados para lidar com essa nova
O contexto pandêmico alterou a dinâmica da sociedade brasileira. demanda.
Estamos passando por impactos socioeconômicos que influenciam “A criança é um ser que filtra as informações de seu
diretamente no nosso desenvolvimento biopsicossocial. Devido a vacinação contexto, construindo sua trajetória psicológica na
da população ainda ocorrer de forma lenta as principais medidas ao interação com ambientes físicos e sociais. Assim, em um
combate do covid-19 ainda se centralizam no isolamento social. meio de tensão, é esperado que a criança esteja sensível,
Frente a este cenário as escolas e os familiares tiveram que se adaptar com comportamentos diferentes dos habituais e faça muitas
para que haja continuidade da educação infantil. Se por um lado há famílias perguntas, pois sua tranquilidade para pensar, realizar
com dificuldades em diferentes níveis de auxiliar o ensino remoto das tarefas e lidar com sentimentos está modificada”.
crianças, por outro lado há o desafio do retorno presencial ser algo NCPI - núcleo ciência pela infância
realmente seguro e eficaz. Visto que, a adequação das escolas aos
protocolos da covid-19 também alterou toda rotina escolar antes existente. Por isso a importância, que a volta às aulas presenciais da Educação
Embora as crianças não sejam identificadas como um grupo de risco do Infantil com todos os benefícios e desafios haja colaboração, paciência e
covid-19 ainda são agentes transmissores do vírus. A volta às aulas empatia de todos envolvidos neste paradigma.
presenciais também depende de outras classes como professores, Nesse incipiente e ilimitado cenário de pesquisa proporcionado pela TAR
educadores, auxiliares e técnicos, sendo, portanto necessário a manutenção - sobretudo para nós - acadêmicos ainda na fase inicial do curso de

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psicologia, convém seja digo que, embora cientes das riqueza, versatilidade Insta mencionarmos, a título de informação, que Teoria Ator-Rede (TAR)
e rara fluidez impressas no "DNA" dessa teoria, há forçosamente de trata-se de uma corrente da pesquisa em teoria social alicerçada na década
reconhecermos, por outro lado, o quão sofrível foi superarmos as de 1980, com preponderância nos campos dos saberes da ciência, tecnologia
adversidades impostas, tanto pela atipicidade do período pandêmico - e sociedade, tendo como base de sustentação teórica os estudos de Michel
inviabilizando encontros presenciais e coleta de informações no campo - Callon, Bruno Latour, Madeleine Akrich, entre outros. Para esses renomados
quanto pelo próprio desconhecimento do método de escrita que lhe é pesquisadores deveria prevalecer a premissa segundo a qual o
peculiar. conhecimento seria um produto social, e jamais algo criado a partir de
Todavia, transpostos tais obstáculos, foi-nos possível identificar na Teoria determinado método científico cartesiano, consistente no Ceticismo
Ator-Rede autêntica estrutura de escritos, abrangendo grande manancial Metodológico.
teórico- empírico e cuja destinação principal encontra-se pautada Não nos deixemos enganar pela ciência, pois ela é maravilhosa e ao
essencialmente nas relações sociais, bem como nos efeitos que delas são mesmo tempo nem tão especial assim. Esse paradoxo pode ser facilmente
produzidos, quais sejam: poder e organização. De acordo com os preceitos justificável pelo fato de que o genuíno para a ciência também pode sê-lo
da teoria sob comento, as redes são materialmente heterogêneas, para outras instituições. A Igreja, a família, as organizações, os sistemas de
depreendendo-se, por conseguinte, que não haveria sociedade e muito informática, economia, tecnologias, a vida social – podem ser similarmente
menos "organização" se tivessem unicamente caráter social. descritas. Todos eles são redes ordenadas de materiais heterogêneos cujas
Assim, atores (agentes), escritos, dispositivos e objetos - de uma forma resistências foram superadas. Eis, em síntese, o movimento analítico crucial
geral - são todos originados nas redes do denominado "social". Ou seja: são feito pelos autores da teoria ator-rede: "a sugestão que o social não é nada
componentes das redes e ao mesmo tempo mostram-se essenciais a elas. mais do que redes de certos padrões de materiais heterogêneos".
Aliás, vale realçar aqui o entrelaçamento dos principais focos da sociologia Na teoria ator-rede, ele (ator) é definido conforme o papel que
e da psicologia social, caracterizado pelas formas como os materiais se desempenha, do quão ativo, repercussivo é, e quanto (qual) efeito produz
agrupam para se constituírem e reproduzirem - do ponto de vista social - os na sua rede. Daí podermos afirmar seguramente que objetos, Instituições,
modelos institucionais e organizacionais nas redes. animais e pessoas podem figurar no cenário da rede como um ator. Em
contrapartida, "a rede representa interligações de conexões – nós – onde os

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atores estão envolvidos." A rede pode enveredar para qualquer rumo, todos foram afetados de alguma forma, sem exceção. Seja por ter ficado em
entrelaçando atores que apresentem certa relação ou que guardem período de isolamento, contraído o vírus, perdido algum parente, perdido o
similaridade. emprego, divórcio, todos fomos afetados.
Com supedâneo nas asserções retro esposadas, podemos inferir, em Nesse texto, trouxemos a afetação nas relações entre pais, crianças,
síntese, que na TAR a elaboração de redes e associações nasce do vínculo de professores e escolas um pouco mais aprofundado.E podemos ver a
mobilidade entre nós - atores humanos, e os não humanos, sendo importância do ambiente escolar para o desenvolvimento saudável da
potencializada pelo atravessamento de novos meios de sociabilidade, criança, a questão do fechamento de escolas e a reabertura impactou não
sobretudo com o advento da cultura digital via internet - como as redes só no psicológico dos atores, como também fisicamente, pois muitas escolas
virtuais (sociais) e suas múltiplas comunidades. "A noção de tradução é o eram o meio de alimentação e bons tratos de muitas crianças.
conceito-chave para este método, pois designa a apropriação singular que Logo essa teoria explica bem o momento em que estamos vivendo, todos
cada ator faz da rede e na rede." estão sendo atravessados de alguma forma por essa pandemia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Referências


Ao fazermos esse trabalho, podemos perceber, seguindo a lógica da TAR, Canal de Videos Oga Mitá. (Roda de Conversa) Infância em qualquer
que os atores são as crianças, os pais, os professores, fazendo parte de uma tempo. Disponível em
rede estando todos conectados. Não há de antemão o mundo das coisas em <.https://www.youtube.com/watch?v=iL3v2OFp9G4&feature=youtu.be.>.
si de um lado e o mundo dos homens entre si de outro, pois natureza e Acesso em 24/03/2021.
sociedade são ambos efeitos de redes heterogêneas(Latour, 1994). Disponível em <. https://ncpi.org.br/publicacoes/wp-pandemia/
Com isso podemos perceber que tanto os atores humanos e não- .>Acesso em 12/05/2021.
humanos, fazem parte das situações que nos atravessam, da construção da
nossa experiência, como somos afetados pelas nossas relações. FAMÍLIAS com crianças e adolescentes são as vítimas ocultas da
Esse tema escolhido para o trabalho, mostra uma parte da afetação pandemia, Unicef, 2020. Disponível em:
causada pela pandemia, um evento externo que impactou o mundo inteiro, <https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/familias-com-

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criancas-e-adolescentes-sao-vitimas-ocultas-da-pandemia-revela-pesquisa- FOCHI, P. Como zelar pela educação infantil em tempos de isolamento
do-unicef > social? Disponível em <. https://lunetas.com.br/como-zelar-pela-educacao-
Acesso em 28/04/2021 infantil-em-tempos-de-isolamento-social/.> Acesso em 12/02/2021.
.
FUNDAÇÃO FHC. Os desafios do ensino infantil durante e depois da
pandemia. Disponível em: <.https://gife.org.br/os-desafios-do-ensino-
infantil-durante-e-depois-da-pandemia/.> Acesso
em 24/03/2021.

GRINBERGAS, G. Pequenos confinados: como o isolamento impacta a


saúde das crianças. Disponível em:
https://saude.abril.com.br/familia/pequenos-confinados-como-o-
isolamento-impacta-a-saude-das-
criancas/#:~:text=Um%20levantamento%20realizado%20na%20prov%C3%
ADncia,14%25)%20e%20desconforto%20e. Acesso em : 22/03/2021

NCPI - Núcleo Ciência pela Infância. Repercussões da Pandemia de COVID-


19 no Desenvolvimento Infantil OBECI. Disponível em
<.https://www.obeci.org/o-obeci.> Acesso em 24/03/2021.

REIS, G. et al. Narrativas na/da pandemia.1.ed. Ayvu editora, 2021.

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CAPÍTULO 14 Para algumas pessoas, principalmente as introvertidas, existe uma zona de
REDES SOCIAIS, O FIO QUE TECE A MALHA DE RELAÇÕES EM TEMPOS DE
conforto sendo criada. Ela pode ser bem confortável e propícia para criação
PANDEMIA
de relacionamentos de forma quase mascarada. E porque mascarada? Nela
conseguimos esconder nossos reais estados de espírito. Dentro desse cenário,

ANA CAROLINA GUERREIRO GONÇALVES DIAS MACIEL é possível dizer que está tudo bem, mesmo a realidade sendo outra (e vice-
DANIELA MORAES MENDES
versa). A troca através das redes já em seu início, onde a maioria das
EDUARDA MEDRADO COSTA
LUISA JUSSARA DAVID interações eram realizadas através de grupos de bate papo, as pessoas se
MARIANA KURY DE MELO BARBOZA
comunicavam, mas não se viam. Isso facilitava a criação de uma realidade
bastante conveniente para ambos os lados.
A internet nos proporciona muitas coisas boas, sendo capaz de aproximar
Toda essa dinâmica começa a mudar um pouco, pois o formato de interação
mais as pessoas, viabilizando a troca de ideias de uma maneira mais fácil e,
na Internet passa a adquirir novos moldes. Redes sociais que incluem
com isso, tornando possível a descentralização do conhecimento. Apesar de
postagem de fotos, participações em comunidades específicas de acordo com
oferecer muitos benefícios, a internet também tem o poder de interferir no
a personalidade de cada um e muito mais. Amplia-se a exposição do ser
nosso comportamento negativamente. Entretanto, não há como culpá-la,
humano. O bate papo é incrementado com imagens e vídeos. Se quisermos,
porque o uso e a frequência dela não são impostos às pessoas, muito pelo
podemos expor nossas vidas o tempo todo (a cada minuto, inclusive). Não
contrário, são escolhidos conscientemente. Mas será que de fato podemos
existe limite para tal no mundo das redes. Cria-se um movimento de muita
afirmar isso? Constantemente somos bombardeados com informações,
intensidade de informação sobre as pessoas, suas rotinas, desejos,
sendo cada vez mais expostos a elas e, ao mesmo tempo em que a maioria
descontentamentos e protestos. Observa-se que os impactos de tal
delas é boa, nesse tempo de pandemia, as mais recorrentes são trágicas.
velocidade de acontecimentos (externos) refletem no comportamento
Podemos observar em conversas paralelas em grupos no WhatsApp, por
(interno) dos que utilizam as redes o que, por sua vez, reforçam ainda mais a
exemplo, que sempre surgem notícias ou falas sobre alguma tragédia vivida
mudança de tudo que nos rodeia (externo novamente) e pode ser impactado
atualmente, assim como notícias publicadas no Instagram e Facebook, em sua
pela própria mudança. Praticamente um movimento em cadeia.
maioria com o mesmo padrão informacional, o trágico.

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Segundo Bonhôte (2016), nas redes sociais há um fluxo de informação em Nesse artigo falaremos de algumas psicopatologias, focando no FoMO (Fear
relação a escolhas, comportamentos e decisões dos indivíduos. Com tantas of missing out), que é uma forma de fobia social caracterizada pelo medo de
demandas rotineiras, as redes geram ferramentas para otimizar o uso delas, estar ficando para trás e quando se está off-line. A necessidade de ficar
levando em consideração os padrões comportamentais e o contexto social. A permanentemente conectado, o querer estar on-line para não perder algo
aceleração da vida em si é algo vivido na modernidade onde, às vezes, se torna importante, transforma o que antes entendíamos por presença, amizade e
difícil acompanhar, dar conta de tudo e a sensação é de que falta tempo vínculo – ou seja, as práticas de comunicação em sociedade e política. Em
diante de tanta aceleração (MAIA, 2017). A mais recente atualização no certo ponto chega a paralisar, pois somos humanamente incapazes de
WhatsApp, por exemplo, em que se faz possível ouvir áudios até pela metade acompanhar tudo. Encontramo-nos inertes e a cada informação
do tempo que se ouviria há um tempo, acompanha o fluxo corrido da vida no desesperançosa a tendência é que acabemos entrando em um estado de
cotidiano e contribui para que as pessoas percam cada vez menos o que apatia social. O incômodo de ir a um evento, mesmo não estando disposto, só
acontece nas redes sociais. Dessa forma é possível gastar muito menos do para não ficar de fora, são fenômenos que acontecem desde sempre na
tempo ouvindo um áudio inteiro e conseguir acompanhar com mais rapidez sociedade. Na compra de uma roupa da moda, nos excessos de
os outros acontecimentos dessas redes. procedimentos estéticos, acompanhando sempre o que está em ascensão,
É interessante refletir sobre essa aceleração em rede, o querer estar sempre são menções que se cruzam com o FoMO. A tecnologia é muito bem-vinda
conectado para nada perder e o impacto de toda essa vivência on-line na vida quando sabiamente utilizada.
off-line. Será que as relações sociais mudam a partir das experiências O termo foi citado pela primeira vez em 2000, por Dan Herman, e anos depois
rotineiras nas redes sociais virtuais? Greenfield (2011, p. 182) afirma que foi definido por Andrew Przybylski e Patrick McGinnis, traduzido literalmente
“jamais existiu antes uma tecnologia que nos conecta socialmente e, ao como o medo gerado pelas boas experiências que os outros possam ter e você
mesmo tempo, nos desconecta”. As redes são capazes de desconectar o não (HERMAN et al., 2018). Esses comportamentos, entretanto, não estariam
indivíduo do momento presente, pois elas fazem com que, a partir das relacionados com as nossas interações sociais, mas sim com o uso de redes
notificações, se faça uma conferência constante dos acontecimentos em seus sociais virtuais.
perfis virtuais (PICON, et al., 2015). Contrário a esses fenômenos, surge fortemente o movimento JoMO: “joy of
missing out”. Traduzindo literalmente e livremente como, prazer em ficar de

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fora. Existe alegria em desconectar, desacelerar, silenciar a comunicação on- tempos de pandemia. O presente artigo tem por objetivo usar a Teoria Ator-
line com muitas pessoas, vivenciar algo palpável, novo, em seu próprio ritmo, Rede para analisar as bases das relações sociais, através das redes virtuais em
se presentificar, focar no momento, desligar-se dessa hiperconexão e tempos de pandemia. Iremos categorizar os comportamentos e distúrbios
experienciar a presença do outro. As pessoas mais velhas, em sua maioria, sociais causados pela utilização de redes virtuais, segundo Patrick, focando na
nascidas na época em que a sociedade vivia e funcionava sem a internet, são FoMO. E até que ponto fazer uso das redes pode ser bom ou ruim para um
mais facilmente inseridas no JoMO, pois não são acostumadas com o uso que indivíduo, de acordo com a vivência adquirida.
a rede tem na atualidade, não fazem questão de se manterem conectadas o A intenção deste artigo não é atacar a tecnologia, as mídias sociais ou seus
tempo todo. Em contrapartida, também existem aqueles que lidam com o usuários, mas sim, promover um espaço de questionamento e informações
JoMO de forma reativa, ou seja, pessoas que possuem acesso às redes, mas sobre como usamos de forma indiscriminada essa tecnologia e os impactos
optam por não utilizá-las. Saber dosar em ambas as situações é imprescindível gerados na psique por esses excessos, mais especificamente na
para uma mente saudável. psicopatologia conhecida por FoMO. Esse fenômeno patológico é
As contribuições da Teoria Ator-Rede (TAR) esmiúçam como esses três considerado novo e apesar de ser estudado há pouco tempo e contar com
distúrbios citados acima influenciam e marcam comportamentos e interações pouca literatura a respeito, segundo estudo da JWT Intelligence (2012), aflige,
humanas em qualquer contexto histórico e situações. em algum grau, aproximadamente 70% dos jovens adultos usuários das redes
Ao estudar a fundamentação de Patrick (HERMAN et al., 2018), logo sociais. Podemos definir o medo de ficar de fora como “uma preocupação ou
percebemos a possível presença da TAR, porém ao ser feito o levantamento apreensão intensa de que outros possam ter experiências gratificantes sem o
de estudos bibliográficos quase não achamos pesquisas relacionando essas indivíduo estar presente” (PRZYBYLSJI et al., 2013, p.1841).
teorias. Algumas perguntas nos parecem merecedoras de respostas e nos Em tempos de isolamento social, devido à Covid-19, a forma mais segura de
questionamos o motivo pelo qual elas ainda não foram feitas. Chegamos à contato com o mundo externo e as pessoas que fazem parte do nosso ciclo de
conclusão de que talvez seja porque o conhecimento sobre esse assunto seja convivência passou a ser basicamente à distância. Conforme aponta Law
pouco abordado, não gerando perguntas, muito menos respostas. (1992), podemos notar que quase todas as interações com outras pessoas são
O número de usuários nas redes cresce a cada dia e pretendemos abordar os mediadas através de objetos, como telefone e internet. Com as conexões
efeitos da propagação dessa “teia”, diante dessas relações sócio virtuais, em acontecendo predominantemente através das mídias sociais, até nós que

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fazemos parte da geração millenium (nascidos entre 1981 e 1996), e que medicalizado para se encaixar em um nicho social. Em segundo lugar, é uma
estamos habituados a nos relacionarmos através dessas mídias, afinal, projeção de si mesmo em relação a outras pessoas de cultura semelhante ou
nascemos e crescemos junto com o desenvolvimento da internet, nos vemos da mesma cultura. Indivíduos temem o desvio da normalidade cultural das
em uma nova realidade que se apresentou forçosamente para toda a emoções e se constroem para retratar o "eu ideal". Um desejo de se encaixar
humanidade e temos dificuldades em lidar com esse contexto. O na cultura que é impulsionado pela afetividade (WOLNIEWICZ et al., 2018).
distanciamento, a falta do contato físico, a falta que a presença dos familiares O que atrai o indivíduo é o que parece estar em acordo com o pensamento
e amigos nos fazem são tão marcantes quanto para qualquer outra geração. social. O self é monitorado de acordo com a cultura de modo a evitar o castigo
Apesar do costume que nos acompanha por toda a vida, esse modelo de da alma e das emoções. Portanto, nós nos importamos em nos tornarmos a
interação social quase que exclusivamente on-line, nos deixa carentes de persona ideal e mostrar que nossas vidas estão de acordo com os valores
presença humana. culturais (McDermott, 2017). Anúncios que comercializam valores culturais
Entender os comportamentos causados pela interação social através das em seus produtos ou negócios apelam ao desejo do indivíduo de ser o “eu
redes e se esses comportamentos mudaram a partir da pandemia é algo ideal” e seguir as regras da comunidade. A mídia social serve como um meio
importante de ser debatido. Traremos os tipos de comportamentos, por meio para este tipo de consumismo (WHEATLEY, 1971). Serve como um espaço
de levantamento bibliográfico dos principais distúrbios sociais citados por para encontrar as últimas tendências que permitem ao consumidor imaginar
Patrick. Após isso, através do olhar da TAR, vamos identificar quais foram os versões melhores de si mesmo e se sentir engajado. Mas também se torna um
fatores atuantes para a mudança ou não do comportamento em relação às espaço onde os indivíduos podem retratar uma versão modificada de si
redes sociais. mesmos, isso é, o que ele imagine que seja o que a sociedade deseja
(FAUCHER, 2018). FoMO é construído socialmente, mas não necessariamente
• Discussão monitorado individualmente. A mídia social cria uma necessidade constante
As culturas ditam as maneiras pelas quais as emoções são discutidas e de consumir e compartilhar aspectos dos usuários. Nós consumimos anúncios
colocadas em ação. Existem dois aspectos do FoMO como um produto da de marketing porque aspiramos que os espectadores comprem o que somos
sociedade que devem ser estudados a fim de compreender este fenômeno “nos vendendo” para ser.
moderno. Primeiro, FoMO é um estado emocional que se tornou

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A TAR se comunica muito bem com o FoMO no sentido de que todos os atores rede não é fechada ou limitada sobre ela mesma, sendo sempre possível a
mencionados são criadores desse cenário de sensação de falta. A tecnologia criação de novos sentidos, conexões, diluições e disseminações.
e os objetos que dela se utilizam facilitam a chegada das informações aos Em concordância com a rede enquanto rizoma, Latour (2012) diz que a noção
olhos e ouvidos de quem está manipulando um aparelho telefônico. Ela de rede não se resume aos vínculos, pois está para além deles. Primeiramente
interage informado o quanto algumas pessoas estão fazendo coisas melhores se faz necessário pensar na fabricação da ação, depois no que os vínculos
que outras. Em diversas ocasiões, o lugar em que estamos passa a ser produzem e, principalmente, os efeitos gerados por esses vínculos e
insuficiente e inferior, pois em geral nos comparamos com outro que atravessamentos. As relações imersas nessas redes são tecidas através dos
consideramos mais atrativo. Os eventos representados por fotos ou vídeos atores, criando um amplo emaranhado de conteúdos diferentes. Importante
mais elaborados são os mais atraentes e isso não leva em consideração o frisar que o ator não deve ser confundido com um indivíduo, pois ele é
quanto você possa estar em um ambiente extremamente melhor, mais heterogêneo, díspar e híbrido. Ele é definido pelos efeitos gerados a partir de
acolhedor e potencialmente mais feliz. suas ações, ou seja, não se define pelo que faz de fato, e sim pelos efeitos do
Nesse ambiente de comparação gerado pelas redes, existe uma necessidade que se faz. Dessa forma se torna interessante não apenas identificar os atores
de passar a imagem de viver bem e intensamente. O ser humano passa a dessa rede, mas, principalmente, seus efeitos.
fabricar ocasiões não com o foco de aproveitá-las exatamente e sim de Como diz Castro (2007), não é suficiente somente identificar uma rede e seus
mostrá-las. Aproveitar pode se reduzir a uma mera consequência. atores, mas também olhá-los, compreendê-los e descrevê-los à luz da TAR.
Com a inserção da internet na sociedade, foi instituída uma noção do Torna-se assim, interessante trilhar o caminho da reflexão sobre essa ampla
significado de rede, essa noção traz consigo apenas uma ideia de circulação rede, seus atores e como tudo isso se dá no contexto das redes sociais. É
das informações. Deleuze e Guattari (1995) desenvolveram o conceito de inegável o fato de que elas fazem parte do dia a dia de muitas pessoas e que,
rizoma e é possível pensar em uma rede rizomática, onde ela é atravessada através delas, são realizadas interações constantes. Segundo o filósofo
pela transformação, se fazendo imersa em uma constante conexão. A partir Leandro Karnal (2018), em uma entrevista no Youtube, que tem por tema
disso, a rede não se faz resumida em uma unidade, mas sim feita e constituída “Você não é a rede social”, “todas as redes sociais são ferramentas e
dela mesma, de tudo que a compõe, não havendo meio ou fim, pois tudo se ferramentas são neutras, você que dá sentido à rede social”. Construindo um
dá de maneira conectada e vinculada dentro dela. Assim como um rizoma, a caminho com base nessa fala, um alto nível de consumo das redes sociais não

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é necessariamente ruim ou bom, mas, a partir dessa utilização, efeitos são criam, influenciam e transformam através das redes, assim como, por outro
produzidos. lado, também são atravessados pelos efeitos gerados por elas.
As redes sociais demandam ações por parte dos usuários ao longo de seus De acordo com Guedes (2013) às redes sociais digitais passam a ter cada vez
dias e cabe a estes utilizarem elas a cada nova notificação ou não, acessarem mais importância na atualidade e com o surgimento da pandemia elas se
quando querem ou não. Mas essa situação em que parece ser de total escolha tornaram o local mais seguro para se manter as interações sociais,
do usuário, sem qualquer influência, pode não ser tão simples assim. O consequentemente, aumentando o nível de consumo desses meios por parte
documentário “Dilema das redes”, lançado em 2020, revela que muitos de muitas pessoas. Toda essa inteligência artificial embutida nas redes age
comportamentos que aparentam ser genuinamente autônomos e podando a forma como essas relações se dão dentro delas, pois novas coisas
conscientes em relação às escolhas dos usuários nas redes sociais, na verdade, são feitas, gerando efeitos novos e com isso, as relações são feitas e refeitas
nem sempre são. “A ação não é transparente, nada se faz sob o pleno controle de maneiras diferentes a cada novo acesso (LAW; MOL, 2009). Como exemplo
da consciência [...] ela (a ação) é sempre contraída, distribuída, influenciada, disso existem as atualizações constantes realizadas e as novas ferramentas
dominada [...]” (LATOUR, 2008 p.70). E há algo nas redes sociais que têm a disponibilizadas ao uso, que são feitas a partir dos dados comportamentais
capacidade de capturar por mais tempo a atenção de um usuário e estender coletados enquanto se "navega" nas redes. A partir disso, estratégias de
sua permanência ali, de acordo com padrões. marketing são criadas para que haja um consumo mais atrativo e facilitado
O algoritmo é algo que funciona em prol desses padrões e ele pode ser para os usuários.
definido amplamente como “(...) estruturas codificadas para a transformação Os humanos têm uma necessidade intrínseca de pertencer a outros grupos
de input de dados num desejável output, baseadas em cálculos específicos” sociais (BAUMEISTER & LEARY, 1995). Isso sugere que nós queremos fazer
(GILLISPIE, 2013, p.1). As redes sociais, através dos algoritmos, se moldam parte de outras construções sociais. Essa pode ser, por exemplo, família ou
com os conteúdos mais adequados, de acordo com os interesses individuais um grupo de amigos. O isolamento social é o contrário, as pessoas tentam
de cada um. Torna-se possível identificar um grau de afetação onde as redes evitar esta conexão. Isso simplifica as possibilidades de satisfazer o pessoal
sociais são afetadas pelos padrões comportamentais dos usuários e os afetam sem precisar pertencer. Além disso, as mídias sociais em geral fornecem
na mesma intensidade. Dessa forma, eles se encontram imersos nessas redes, acesso fácil a recompensas (PRZYBYLSKI, MURAYAMA, DE HAAN &
mas não inertes, pois, de acordo com Latour (2008), eles fazem, produzem, GLADWELL, 2013), quando os contatos dão likes e fazem comentários ou

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compartilham o conteúdo uns dos outros. Já uma simples reação à entrada perigo de acharmos que as pessoas que acompanhamos virtualmente são
do usuário pode desencadear a sensação de estar envolvido em uma rede felizes o tempo todo é concluir que nós, do outro lado da tela, não somos, ou
social. pior, que estamos perdendo as experiências da vida que poderiam nos fazer
Quando o parceiro de comunicação não responde imediatamente, o fluxo de de fato felizes.
informações é interrompido. O usuário não tem a “possibilidade de uma O primeiro artigo que discutiu o fenômeno de FoMO data de 2000 e foi escrito
conexão social” (GROHOL, 2011) e, portanto, não consegue satisfazer sua por Dan Herman. Ele afirmou que os usuários não são mais liderados apenas
necessidade de pertencer. Isso resulta em uma alta suscetibilidade para o por suas motivações intrínsecas como eram conhecidas até aquele momento,
medo de perder (ALT, 2015). Quanto mais uma pessoa usa os serviços de mas também por "uma nova motivação básica: ambição de esgotar todas as
mensagens instantânea, mais suscetível ela se torna a esse fenômeno possibilidades e o medo de perder ” (HERMAN, 2000). No entanto, ele não
tecnológico. Os usuários se dedicam demais em satisfazer suas necessidades avaliou mais sobre seu conceito de FoMO.
de pertencer por meio de tecnologia da comunicação instantânea (CORREA, Grohol (2011) define o medo de perder como a ansiedade que ocorre “porque
HINSLEY & DE ZUNIGA, 2010) e acabam deixando de lado as relações “off-line” a possibilidade de uma conexão social é mais importante” do que qualquer
(por exemplo, encontrar família ou amigos). A combinação da tecnologia outra coisa. Ele afirma que FoMO “É um sentimento muito real que permeia
como um apelo externo e necessidade de pertencer como um recurso interno através de nossas relações sociais” (GROHOL, 2011). Quando a conexão com
pode, eventualmente, desencadear o chamado medo de perder o meio social é interrompida, os usuários experimentam o sentimento de
(HODKINSON, 2016). ansiedade, porque não sabem o motivo da interrupção. Isso resulta no medo
O padrão instituído e aceitável no mundo virtual é aquele que representa uma de perder algo. Por outro lado, a necessidade de pertencer também afeta o
constante felicidade. Podemos ver pessoas sendo felizes o tempo todo com usuário quando ele recebe uma notificação sobre uma mensagem recebida.
base em vídeos e fotos que podem condizer ou não com a realidade e isso O usuário então tem o desejo de participar (PRZYBYLSKI, MURAYAMA,
mexe com a psique do ser humano que somente observa do outro lado da DEHAAN E GLADWELL, 2013). De acordo com isso, o FoMO pode ser chamado
tela, pois, para alguns, gera a necessidade de também ser feliz o tempo todo. de dependência ao processo que resulta em doenças geradas pelo abuso de
Aliás, porque alguém não escolheria isso? Parece injusto, mas é preciso tecnología (SHAFFER, 1996; MICHAELS, 1988; RENAU, GIL, OBERST &
entender que essa frequência de felicidade parece estar sendo inventada. O CARBONELL, 2015).

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Abusar da tecnologia de comunicação para suprir a necessidade de pertencer de trabalho, na faculdade e outras atividades que, às vezes, não são
pode resultar em consequências psicológicas e físicas: isolamento, ansiedade, concluídas e acabam sendo prejudicadas pelas interferências causadas pelo
desconforto físico (TUREL, SERENKO & BONTIS, 2011). Ellis (2003) diz que mau uso das redes.
quando as pessoas entram em situações que contradizem suas expectativas, Embora o medo de perder não seja novidade, o termo “FoMO” só se tornou
elas se sentem ansiosas. De acordo com Cohen e Williamson (1979), isso popular com o surgimento e crescimento do uso das mídias sociais e passou
resulta no que é conhecido como 'estresse'. O medo da exclusão social e um a ser estudado a pouco tempo. Pessoas que vivenciam esse fenômeno
certo estado de frustração em relação ao parceiro de “bate-papo” tendem a ser ativas nas redes virtuais, onde estão constantemente expostas
representam as emoções de FoMO (PRZYBYLSKI, MURAYAMA, DE HAANE a fotos e status de conhecidos que estão fazendo algo ativamente e tendo
GLADWELL, 2013). Herman (2000) adiciona exaustão mental a isso. Esses três algum tipo de experiência.
componentes podem aparecer separados um do outro (em uma forma leve O FoMO foi identificado pela primeira vez pelo Dr. Dan Herman em 1996, que
de FoMO) ou aparecer juntos, quando o vício se tornou distinto. publicou o primeiro artigo acadêmico sobre o tema em 2000 no The Journal
Além disso, parece que a quantidade de tempo que um usuário passa nas of Brand Management. Herman observou esse fenômeno enquanto ouvia os
plataformas de redes sociais influencia negativamente sua motivação. Isso consumidores falarem sobre produtos em grupos de pesquisa e durante
implica um relacionamento entre disposição para mudança de entrevistas individuais aprofundadas (HERMAN, 2000).
comportamento e o padrão de comportamento real de alguém. Isso confirma Herman descobriu que este é um novo comportamento na psicologia do
descobertas de Renau, Gil, Oberst e Carbonell (2015), que examinaram o consumidor e continuou a pesquisar o FoMO como um fenômeno
caráter viciante de tecnologia de comunicação. sociocultural (HERMAN, 2000). Curiosamente, no entanto, o FoMO atua como
Com essa imersão nas redes, existe a possibilidade dessas pessoas um mecanismo que desencadeia um maior uso da rede social. Mulheres com
vivenciarem seu dia a dia de maneira distraída e menos focada, prejudicando- depressão tendem a usar sites de redes sociais com maior frequência,
as em seus afazeres rotineiros, no foco e atenção. Segundo Pena (2015) ao se enquanto, para os homens, a ansiedade foi um gatilho para um maior uso das
tentar fazer mais de uma tarefa ao mesmo tempo, há uma falta de atenção redes sociais (PRZYBYLSKI et al., 2013). Isso mostra que o aumento do uso das
generalizada, uma dificuldade em reconhecer outras coisas. Dessa forma, o mídias sociais pode levar a taxas mais altas de estresse causado pelo FoMO
indivíduo pode até mesmo ter dificuldades em executar tarefas no ambiente (OBERST U, WEGMANN E, STODT B, BRAND M, CHAMARRO A). Estudos

171
apontam que apesar de o FoMO ser experienciado em sua larga maioria por Embora o FoMO esteja fortemente relacionado ao uso de mídia social, é
jovens, ele pode ser experimentado por pessoas de todas as idades. Um importante lembrar que é um sentimento muito real e comum entre pessoas
estudo publicado na revista Psychiatry Research descobriu que o medo de de todas as idades. Todos sentem um certo nível de FoMO em diferentes
perder estava ligado a um maior uso de smartphones e mídias sociais e que momentos de suas vidas, principalmente no contexto pandêmico atual em
esse link não estava associado à idade ou sexo (WOLNIEWICZ ET AL., 2018). que as redes sociais são utilizadas como instrumento de comunicação de
Outro artigo publicado na Computers and Human Behavior (PRZYBYLSK, maneira intensificada. Isso reorganizou a vida e a maneira de se comunicar de
ANDREW K., MURAYAMA, KOU, DEHAAN, CODY RGLADWELL, VALERIE) muitas pessoas, trazendo uma mudança geométrica de toda uma estrutura
encontrou várias tendências associadas ao FoMO. O medo de perder foi social. As relações através das redes sociais tornaram-se parte integral da vida
associado a uma menor sensação de ter suas necessidades atendidas, bem de muitas pessoas. Suas relações ficaram presas nessa malha que tece a
como a uma menor sensação de satisfação com a vida em geral. interação entre pessoas, seja conectando-as com amigos, familiares, para
O FoMO foi fortemente vinculado a um maior engajamento na mídia social, consumo, trabalho ou até desenvolvimento pessoal.
alguns estudos sugeriram que ela está vinculada tanto para sentir a Usamos como base a Teoria Ator-Rede para a abordagem social da questão
necessidade de se engajar nas mídias quanto para aumentar esse levantada e desenvolvimento do presente artigo. A heterogeneidade da TAR
engajamento. Isso significa que os hábitos de FoMO e de mídia social podem faz com ela seja uma base rica de possibilidades para discutirmos nossas
contribuir para um ciclo negativo e auto-depreciativo. A constante verificação relações interpessoais que ficaram limitadas ao on-line, durante a Pandemia.
on-line pode não ocorrer somente quando a pessoa separa um tempo do seu Analisando a TAR e observando, percebemos a possibilidade de enxergá-la
dia para navegar ativamente em seus dispositivos. Também pode acontecer junto aos comportamentos do FoMO.
de forma reativa, ou seja, ao longo do dia, com o recebimento de muitas Os três princípios que baseiam a TAR são o agnosticismo, simetria
notificações sociais, com o mundo acontecendo dentro desses meios, as generalizada e a associação livre. Quando o ser humano mantém uma relação
pessoas atendem essa demanda assim que ela surge. Essas notificações são com os não humanos, eles naturalmente fazem a associação e, assim,
classificadas como favoráveis, porque satisfazem e aliviam o FoMO quando, produzem esse vínculo social. Dessa forma, a Teoria Ator-Rede considera
através delas, os usuários acessam suas redes sociais. tanto o lado social como o lado tecnológico. Conectar o FoMO com um dos
princípios da TAR (associação livre) solicita um olhar macro e talvez anterior

172
ao surgimento de tal psicopatologia. A internet, por si só, foi criada para trazer relacionado ao que seus pares estão fazendo, conhecendo, possuindo e
facilidade na vida das pessoas e é considerada um grande avanço em muitos vivendo e que o coloca em posição inferior (ABEL; BUFF; BURR, 2016).
níveis. Em seu artigo sobre TAR, (GAITÁN et al., 2020) traz o exemplo de um Diante desses fatos, torna-se necessário, que o usuário entenda que não é
computador que ao deixar de funcionar é reparado pelo engenheiro. No caso preciso dar conta de tudo e que na tentativa de se manter on-line e atento às
de FoMO, a utilização descontrolada das redes sociais tem como vilão não constantes atualizações, pode adquirir patologias que podem contribuir para
somente a própria rede, mas o indivíduo que abriu sua conta em algum uma má qualidade de vida. De acordo com Beyens (2016), em niveis elevados
aplicativo de rede social e pagou pelo aparelho e internet necessária. O uso de FoMO, disturbios de sono são comuns, o usuário não consegue se
de SNS - Social Networking Sites (sites de rede social) causa impactos distanciar de seus dispositivos eletrônicos "Existe, assim, evidência de que
potencialmente negativos na psique de quem possui como característica adolescentes e jovens adultos podem dormir menos devido à presença de
principal o medo do ostracismo social. Tais sujeitos aparentam ser mais níveis elevados de FoMO, sendo que o próprio uso noturno de dispositivos
vulneráveis ao estado psicológico de ansiedade que é o FoMO. eletrónicos e redes sociais poderá dever-se, em parte, devido a este medo”
(BEYENS et al., 2016). São indivíduos que possuem necessidade de se
Conclusão: manterem constantemente atualizados para que possam se sentir
Os prejuízos causados pelo FoMO que atingem diretamente a psique do pertencentes a seus grupos sociais. É tal monitoramento excessivo que
usuário são muitos. Sendo detentora de quantidades incontáveis de adoece a psique de usuários que, de alguma forma, possuem déficits
possibilidades de conectividade, a internet leva ao usuário informações que emocionais ligados à conectividade social. Receosos de passarem por uma
podem ser acessadas o tempo todo. São inúmeras janelas que podem ser possível exclusão social, tais indivíduos passam a usar mais os SNS (Social
abertas de forma simples e prática formando uma rede de conexões que é Networking Sites) e são mais propensos a autopromoção e atualizações
atualizada a todo o tempo ganhando contornos diferentes a cada momento, constantes de status, objetivando a manutenção do controle de suas vidas
características que contribuem para a sobrecarga emocional do indivíduo, sociais (DACHARY et al., 2020). As atualizações abrangem desde o
contribuindo para o sentimento ou sensação de difícil associação e, por vezes, acompanhamento constante das mídias sociais de seus amigos, até seu status
avassaladora, de um indivíduo que percebe que está perdendo algo pessoal, que precisa estar sempre com algo novo e engajador.

173
Caso você ache que está sentindo falta de algo, pode ser útil estender a mão realidade a qual nossa sociedade está inserida, tornou-se necessário
para um amigo ou passar algum tempo refletindo sobre as coisas pelas quais abordarmos no texto e reconhecermos que as redes sociais nos ajudam a dar
você é grato em sua vida. Atividades como essas podem nos ajudar a colocar vazão às necessidades do convívio social, não de forma permanente e nem
as coisas em perspectiva, à medida que adquirimos um maior senso de plena, mas de forma a suprir minimamente os anseios gerados pela falta da
pertencimento e liberamos a ansiedade de "perder alguma coisa". Vivemos presença do outro, de não haver a possibilidade de lançar mão da distância e
em tempos extremos, carregados de um temor excessivo em ficar de fora, ocupar espaços com nossa presença física. O ser humano é um ser social que
esse constante temor da alienação social, permeia e gera uma insaciedade necessita se integrar com o outro, a criação de redes de afeto virtuais são
digital que pode se tornar adoecedora. Aparentemente, em algumas ocasiões, necessárias para aplacar a saudade e possíveis sentimentos de solidão. É
o sujeito acometido pelo FoMO, foca em conquistas digitais para compensar possível utilizar de forma saudável as plataformas digitais, elas podem ser
o vazio muitas vezes de proporções abissais que possui e em outras ferramentas para driblar a distância imposta pela pandemia e a necessidade
circunstâncias, ele é simplesmente levado a uma espiral de demandas e de isolamento social.
cobranças que possuem um peso negativo para a saúde mental. Como Referências:
exemplo, trazemos os estudantes que tiveram suas vidas amplamente ABEL, Jessica P.; BUFF, Cheryl L.; BURR, Sarah A. Social Media and the Fear of
modificadas e "digitalizadas". As aulas passaram para o modo on-line, e a sala Missing Out: Scale Development and Assessment. Journal of Business &
de aula, que antes era um ambiente propício para construção de novos laços Economics Research (JBER), [S. l.], v. 14, n. 1, p. 33–44, 2016. DOI:
afetivos, tornou-se uma tela permeada de interações limitadas. As relações 10.19030/jber.v14i1.9554.
sociais estão se formando on-line e a distância, baseadas em uma interação BEYENS, Ine; FRISON, Eline; EGGERMONT, Steven. “I don’t want to miss a
ainda mais virtual do que o modelo anterior a pandemia, por isso, torna-se thing”: Adolescents’ fear of missing out and its relationship to adolescents’
importante ter um olhar sensível sobre as psicopatologias que surgem no social needs, Facebook use, and Facebook related stress. Computers in
processo de vida através da tela. Human Behavior, [S. l.], v. 64, p. 1–8, 2016. DOI: 10.1016/j.chb.2016.05.083.
O momento que a humanidade está passando suspendeu a "vida normal”, Disponível em: http://dx.doi.org/10.1016/j.chb.2016.05.083.
furtando abruptamente a possibilidade de convívio físico entre as pessoas, BUGLASS, Sarah L.; BINDER, Jens F.; BETTS, Lucy R.; UNDERWOOD, Jean D. M.
momento que tornou distância e proteção, sinônimos. Diante dos fatos da Motivators of online vulnerability: The impact of social network site use and

174
FOMO. Computers in Human Behavior, [S. l.], v. 66, p. 248–255, 2017. DOI: estar digital no cotidiano universitário. Revista Eletrônica de Comunicação,
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177
CAPÍTULO 15 cultura do cancelamento começou como uma forma de chamar a atenção
A CULTURA DO CANCELAMENTO para as injustiças, porém se tornou um fenômeno cometido por uma
multidão com o objetivo de punir um suposto transgressor. Sejam elas reais,

BARBARA FERRANTE ou não.


ISABELLA COSTA
JOANA D’AGUIAR Ao aprofundarmos o olhar sobre a cultura do cancelamento, veremos que
LIZA FEINGOLD
LUCIANA NABUCO
diferente do bullying, o cancelamento sempre traz como justificativa um
julgamento ético e/ou moral.
“Cultura do cancelamento devia ser cancelada”
Evellin Vasconcelos “Frequentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do
senso moral e da consciência moral, porque somos educados (cultivados)
Cancelar ou não cancelar, eis a questão
para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por
si mesmos. Para garantir a manutenção dos padrões morais, através do
Cancelamento foi o tema de maior pesquisa na plataforma Google, no
tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a
ano de 2019. Aparentemente, cancelamento está diretamente ligado à
naturalizá-los. A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais
cultura das redes sociais, e, acredita-se, que tenha surgido a partir do
importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.” (Marilena
movimento #MeToo. Um movimento, feito por possíveis vítimas de assédio
Chauí)
que baniu jornalistas, celebridades, anônimos e famosos da mídia e redes
Nos questionamos até que ponto a cultura do cancelamento é fiel ao seu
sociais. No entanto, ao olharmos para o passado vemos que o cancelamento
propósito, quem são os juízes, quem os colocou na posição de julgar, quais
é na verdade uma prática muito antiga que durante o tempo vem mudando
são as provas? O cancelamento é uma das manifestações culturais e sociais
apenas de nome e na forma como vem sendo realizado de acordo com a
mais controversas da atualidade que se manifesta através de um grupo de
cultura, tecnologia e valores vigentes pela sociedade. Exemplos clássicos de
pessoas, que se julga acima do bem e do mal e que se acredita possuidor de
cancelamento na história são os linchamentos, apedrejamentos e
uma verdade absoluta. O que nos leva a outra pergunta fundamental, “e o
banimentos da sociedade. O linchamento, que antes realizado com violência
direito à liberdade de expressão?”. Ao invés de agregar, a cultura do
física, na atualidade passou a usar a violência virtual causando danos
cancelamento empobrece os debates na sociedade.
emocionais, materiais e psicológicos. Segundo o advogado Nelson Wilians, a

178
“... uma leitura insólita dos fenômenos que, na empatia, mas antes passa por uma crise da escuta onde cada dia parece ser
pretensão de esgotar a intolerância, podem ser mais difícil aceitar pensamentos divergentes. O que pode levar a um
igualmente coniventes para com ela. O movimento extremismo tão poderoso que é capaz de destruir a vida de uma pessoa,
que nasceu da necessidade de tolerância a todas uma empresa ou mesmo todo o contexto social a que se refere. Ainda mais
as diferenças, o politicamente correto, contrário grave, muitas vezes essas campanhas de cancelamento, sequer consideram
ao racismo e ao fascismo, está a ponto de se o contexto se atendo apenas aos recortes e atacando violentamente
tornar uma nova modalidade de pessoas, grupos, empresas e entidades baseados em mentiras, situações
fundamentalismo”. (Eco, 2000). descontextualizadas, enganos e equívocos.
No momento em que essas generalizações são absorvidas pela ditadura
A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa analisa esse comportamento como do “politicamente correto”, onde o direito de se expressar passa a ser
consequência de um momento mundial onde as pessoas estão polarizadas. controlado pela sociedade sob pena da pessoa ser excluída desta mesma
Pensamento este, compartilhado pelo professor Arthur Dapieve ao explicar sociedade, a cultura do cancelamento pode ser extremamente danosa e até
que “As redes sociais são binárias. Os próprios símbolos dados para curtir, mesmo irreparável, tanto no âmbito individual quanto no coletivo. Um punir
descurtir tendem a ser binários, ou isto ou aquilo. E a vida, às vezes, é isto e que continua separando, alinhando e vigiando, mas agora sem lei e
aquilo ao mesmo tempo. Então fica mais um espírito de manada ‘vamos instituição. Um poder narcisista, onde é feio o que não é espelho.
cancelar essa pessoa porque ela falou algo que eu não gostei’. A gente tende Foucault, aborda o poder disciplinar substituindo o poder soberano com
a confirmar aquilo que a gente já acha, existe essa carência nas redes o surgimento do capitalismo e das instituições. Diluindo assim, o poder do
sociais”. Já o professor de filosofia Filipe Campello, um dos maiores monarca para vários outros poderes.
estudiosos do assunto no Brasil, complementa que as razões desse tipo de O que pensar sobre o poder do cancelamento? Pensar na subjetividade
manifestação nas redes sociais cresceram, pois dão voz àqueles que nunca desse outro que cancela alguém e ainda convida outros “seguidores” para
puderam se expressar. fazerem o mesmo? O cancelamento, poderia provocar um olhar sobre uma
A cultura do cancelamento, ganhou um caráter de tribunal autoritário e possível mudança de uma sociedade neurótica, com seus poderes
nocivo ao debate público. O grande perigo é que o cancelamento passa pela institucionais, que cria corpos dóceis, sobre a subjetividade do outro, para

179
uma sociedade perversa, onde o poder individual com todas suas considerada apenas entre sujeitos, porém no mundo de hoje passou a ser
subjetividades, atravessa e cancela a subjetividade do outro. inegável a participação dos não humanos como forma de influenciar nossas
Para finalizar, o olhar da teoria ator-rede, que aborda os atores não ações, seja como um aviso da previsão do tempo que nos faz levar um
humanos presentes nas sociedades contemporâneas. Esses atores, que, guarda-chuva até mesmo como arma de cancelamento.
entre muitos, são computadores e dispositivos e podem ser modificados por A teoria ator rede, desenvolvida em 1980 por Bruno Latour, John Law,
humanos conforme suas necessidades. Modificando modos de pensar e agir. Michel Clallon, Elisabeth Stangers, AnneMarie Mol, Viciane Despret, entre
A cultura do cancelamento, seria uma das várias que surgirão onde a outros, foi inicialmente, associada a sociologia da translação. Latour, através
inteligência artificial ganha, cada vez mais, poder como mediador na rede de uma investigação multifacetada e interdisciplinar, defende que os fatos
proposta pela teoria ator-rede. são fabricados. O fato, nesse contexto, tem história específica de produção
Por ser uma nova cultura, e por estarmos experimentando, ainda, seus que deve ser analisada por estudos históricos e empíricos. Um olhar
efeitos e possíveis desdobramentos, achamos interessante traçar uma linha metafísico experimental, que desconstrói o mundo moderno e seu saber
do tempo através de dois personagens, menos “modernos” para provocar científico epistemológico. Rompendo com dicotomias, como sujeito/objeto,
alguns questionamentos sobre sua possível existência como sociedade/natureza, espírito/matéria e muitas outras dualidades que
comportamento. E por último alguns casos mais atuais que sugerem o sustentam o mundo dual proposto por Descartes e capturado pela visão
aparecimento do movimento do cancelar como algo novo e atual. A neoliberal do estado capitalista.
proposta é ampliar para quem sabe, melhor cartografar esse movimento. Selecionamos algumas das noções da teoria ator-rede que se relacionam
Traçando linhas em comum, linhas de fuga e linhas rígidas dessa rede diretamente com o recorte sobre cancelamento, desenvolvidas para esse
(rizoma), mapeando seus fluxos, tendências comportamentais, permitindo artigo.
assim a transformação e informação do olhar e atuação da psicologia social. Entender o cancelamento sobre a noção de vínculo (attachement) da
Para embasar o tema escolhido, cancelamento com a psicologia social, teoria ator-rede, onde ninguém domina e ninguém age, apenas se
optamos pela Teoria Ator- Rede como forma de repensar o que seria o social relacionam. Gerando o sistema de relação do importante no TAR. A ideia de
a partir da relação entre humanos e não humanos (objetos técnicos, uma realidade processual e relacional (experiências). Tanto o ator como a
projetos de ciência, inovação tecnológica). Antes a comunicação era rede fazem parte do mesmo fenômeno. Faz sentido essa noção, quando

180
pensamos na ação de cancelar como um fenômeno onde não se sabe quem Outra noção do TAR, que vinculamos com o cancelamento, foi a ideia de
a produziu. Ou melhor, não interessa saber quem está agindo e dominando redes científicas e modernidade, onde Latour defende que não somos
o fenômeno em si. modernos, assumimos a dicotomia como uma verdade. A visão da matéria
Sobre a noção da TAR, de rede como rizoma, que implica transformação sobre o ser. O TAR faz um convite para juntar o que a modernidade separou.
e ação, e não a ideia de rede de internet que promove circulação de Sobre esse prisma, o cancelamento poderia ser visto, ainda, como uma ação
informação sem transformação. Por isso, a visão proposta, por esse artigo, de resistência ao conhecimento circular por outras vias além da ciência.
que o cancelamento mesmo utilizando, praticamente, da ferramenta digital Garantindo um saber onde as verdades são únicas e dicotômicas. A moral se
(internet), mas não somente ela, é um fenômeno rizomático. Pois ele mostra através do “curtir” ou não uma ação. O cancelamento como uma
promove a transformação e ação nas redes. A rede da teoria ator-rede, forma de garantir o controle da rede e dos corpos, como uma clivagem
assim como o movimento do cancelamento, gerando vínculos que é possível moderna, que define o que está dentro e o que está fora. Um movimento
observar o que é produzido desse vínculo. Podemos analisar, se foram bons cultural, que pode ser visto como uma produção não natural do ser. O medo,
vínculos, que produzem mais aliados e se tornam mais estáveis. Pensar nos produzido pelo cancelamento, de ser castigado, penalizado, pode produzir
grandes movimentos sociais que usam a cultura do cancelamento para subjetividades artificiais que buscam a perfeição do ser, o purismo, o
combater relações opressoras, como o machismo, o racismo e outras. politicamente correto ao extremo. Uma cultura que vigia e pune, pela ação
Ou analisar os maus vínculos, que não mobilizam outros aliados. Nesse do vigiar, a falsa sensação de poder que gera perversidade. Estaríamos
caso, o efeito devastador que um cancelamento pode gerar na vida de uma caminhando para uma sociedade menos neurótica e mais perversa? A
pessoa (ator). Conforme a teoria ator -rede, o ator não só são os sujeitos da questão maior é quem irá decidir o grau desse purismo. Que poder decidirá
ação, mas tudo que tem agência, ou seja, que se define pelos efeitos de suas as regras do cancelar?
ações. Dessa forma, o ator do cancelamento não é somente quem cancela, Para finalizar, essa teoria ator-rede nos permite repensar o movimento
mas toda a rede de interação dessa ação. do cancelamento, sob a ideia de termos outros atores não humanos, como
Não existe fato sem interação, se não tiver uma rede não é um fato participantes da vida em sociedade. As redes sociais, por exemplo, é um
(situação) é apenas uma ideia. exemplo da ação não humana sobre os comportamentos humanos.

181
Repensando o social clássico, que estuda como o macro atravessa o social. Afetando outros territórios e garantindo de alguma forma a
indivíduo, incluindo o pensar sobre os não humanos. manutenção do estado de vigilância sobre os corpos dóceis.
Para melhor direcionar a força política, social e econômica que sugerimos “O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade
existir nessa nova cultura do cancelamento, abordaremos a biopolítica e que está sempre a nascer diante dos seus olhos.”
biopoder de Foucault. (Michel Foucault)
Será que a cultura do cancelamento, pode ser vista, estudada e vivida
Não é recente a necessidade da sociedade em expurgar quem age ou
como a volta de um poder soberano contemporâneo? Será que o suplício
pensa de forma divergente de um grupo o qual faz parte, que ameaça uma
em praça pública comandado por um rei em épocas feudais retorna com sua
estrutura e valores construídos.
política de medo, só que agora em redes sociais com uma fantasiosa
Há registros de linchamento em diversos momentos da história. Judas
sensação de que é uma ação coletiva?
Iscariotes é um grande exemplo dos que foram atacados por uma sociedade.
Para responder essas perguntas, é importante lembrar que o poder
Poucos nomes na história são tão identificados com o mal como ele. O
disciplinar proposto por Foucault, e suas redes de alcance, permitem o
discípulo que traiu Jesus com um beijo. Essa cena é contada como fato por
estado de vigilância constante. Estamos sempre nos controlando uns aos
gerações e gerações. No entanto, estudos arqueológicos e escritos achados
outros. Esse seria o grande trunfo de resistência do capitalismo, exercitamos
recentemente fazem com que a imagem de Judas tenha mudado
a disciplina em nossas vidas com muito afinco. Nos fazem acreditar que
profundamente no Novo Testamento, sendo tratado de forma mais ambígua
somos indivíduos únicos, a confiar em instituições privadas que zelam pela
e com menos certezas. Como explica a professora de História Antiga na
nossa vida. Somos obedientes ao estado que nos faz viver e não nos deixa
Universidade da Cantábria (Espanha), Mar Marcos, “as diferentes tradições
morrer. No caso do Brasil, que nos faz morrer também (necropolítica). O
sobre Judas ilustram uma variedade de cristianismos na Antiguidade que foi
mais assustador do poder disciplinar é não saber sua origem e seu nome.
desaparecendo por causa da censura da Grande Igreja. Com isso, perdeu-se
Essa invisibilidade está cada vez mais presente e líquida nos tempos atuais
uma tradição textual rica e variada, classificada como apócrifa e herética”,
(neoliberalismo). Partindo da lógica capilar do poder disciplinar,
em matéria do El Pais.
reconhecemos a cultura do cancelamento como algo que atravessa a rede
Talvez Judas tenha sido o primeiro cancelado da história, ao menos o mais
antigo que temos notícia. Independente das diversas versões divergentes

182
sobre Judas ter traído ou não Jesus, o que pretendemos mostrar com isso é “As estruturas sociais profundas são as estruturas fundamentais remotas
que até hoje ele carrega o estigma de traidor devido a uma “verdade” que o que, aparentemente vencidas pelo tempo histórico, permanecem como
condenou por acreditar que a traição é algo imperdoável. referência oculta de nossas ações e de nossas relações sociais. São
Segundo o escritor Amos Oz, em seu livro Judas, “neste imenso terreno estruturas supletivas de regeneração social, que se tornam visivelmente
que se abre entre a fé e o mito, Judas surge como uma figura que despertou ativas quando a sociedade é ameaçada ou entra em crise e não dispõe de
um misto de fascínio e repulsa”. O escritor, por exemplo, sustenta que Judas outra referência, acessível, para se reconstruir, fenômeno que se expressa
foi o maior defensor e devoto de Jesus e acreditava que seu ato faria com nos linchamentos” (MARTINS, 2015)
que Jesus se revelasse para maior número de pessoas como o grande
salvador. Judas acreditava que Jesus faria um grande milagre e assim, todos Existem muitas interpretações sobre o ocorrido. Seja qual for a versão, o
o reconheceriam como Messias. fato é que Judas tendo ou não traído Jesus, é considerado pelos cristãos um
Na época que Jesus foi crucificado, Pôncio Pilatos, que o condenou, traidor há gerações e teria passado por um linchamento histórico pelos
possuía o chamado ius gladii, isso é, o poder da vida e da morte. católicos e religiões derivadas do catolicismo que inclusive incluíram em suas
Esse poder foi analisado em “Vigiar e Punir”, uma de suas obras mais tradições o hábito de “malhar de Judas”, no sábado anterior à Páscoa. Neste
proeminentes, o filósofo francês Michel Foucault introduz um novo tipo de dia, existe uma tradição que simboliza a morte de Judas Iscariotes, o
poder: o disciplinar. Ao contrário da soberania, que simplesmente aniquila apóstolo que entregou a localização de Jesus aos romanos por dinheiro.
quem não a obedece, a disciplina atua de forma mais sutil e requintada, A malhação de Judas, consiste em construir um boneco do tamanho de
produzindo pessoas alienadas e obedientes – chamadas por Foucault de um homem, forrado de serragem, trapos ou jornal, e surrá-lo pelas ruas de
“sujeitos dóceis” (Foucault, 2014). um bairro e atear fogo a ele ou enforcá-lo. “No Brasil, era comum enfeitar o
O sociólogo José de Souza Martins, aborda a questão na sua relação com boneco com máscaras ou placas com o nome de políticos, técnicos de
a conservação e a manutenção da ordem social: “a função do justiçamento futebol ou personalidades que seriam “canceladas” pelo povo”. (Bem
popular” que, para Martins, provém da força do inconsciente coletivo e das Paraná, 2021)
estruturas sociais profundas Desta necessidade, aparecem manifestações que vemos com o
linchamento, ou o nome que for dado, dependendo de sua época, o desejo

183
da população em ser parte atuante, do fazer justiça como forma de a empresa fechou seu primeiro ano no vermelho. Desconfiado do contador
manutenção dos valores, moral e identidade de um grupo. A sociedade, recém-contratado, Simonal pediu ajuda de amigos do DOPS para “dar uma
busca formas de manifestar repúdio e isolar/anular o que rompe com dura” e tirar do contador uma confissão do desvio de verba. Levado pelos
valores, ameaça ou incomoda desde que o mundo é mundo. agentes que alegaram estar a serviço de Simonal, Raphael Viviani passou por
Seguindo um exemplo do Brasil na década de 70, temos um personagem mais de 20 horas de tortura até assinar uma falsa confissão e ser devolvido
que alguns veículos classificam como o primeiro cancelado do país, Wilson para casa. O que Simonal e os agentes do DOPS, não esperavam era que a
Simonal. Nascido no final da década de 30, no Rio de Janeiro, filho de esposa Viviani, desse queixa na polícia pelo desaparecimento do marido e
empregada e rádio técnico, Simonal alcançou o sucesso na música no início que o caso chegasse na imprensa. Simonal não apenas foi processado e
da década de 60. Com uma presença de palco que não se tinha igual, Simonal condenado pelo crime de extorsão, como viu sua carreira ser exterminada a
se tornou um dos cantores brasileiros de maior projeção nacional. Seu partir desse episódio, aliado ao apelo da imprensa que, por sua ligação ao
timbre, sua capacidade de envolver plateias e seu carisma o tornaram um DOPS, ele seria também delator de amigos artistas.
dos artistas mais concorridos da época. “Rivalizava com Roberto Carlos em Simonal, foi vítima do efeito manada gerado pelo cancelamento. Em uma
número de discos vendidos e de fãs, mas o deixava no chinelo num aspecto: sociedade, que naquela época era extremamente polarizada, o cantor foi
a voz. Simonal tinha o timbre mais surpreendente do Brasil e animava a condenado pela opinião pública por uma quebra de expectativa do que se
plateia como nenhum outro, pelo menos entre meados dos anos 1960 e esperava da postura de uma figura pública e foi excluído da sociedade de
meados da década de 1970. Um gigante, como foi Elis Regina entre as maneira irreparável. Mesmo tendo cumprido pena legal, Simonal foi
mulheres. Ao longo de sua carreira, ganhou grana, ostentou riqueza e se cancelado e punido por um poder que não vinha de nenhuma instituição ou
divertiu como poucos.” lei. Por não seguir a regra, ele foi banido.
Dono de si e de um sucesso que poucos artistas conseguiram atingir, o Com tantas acusações, afundado em dívidas e na bebida, Simonal foi
início do enredo que leva ao cancelamento do artista começa em 1969 jogado ao ostracismo e nunca mais conseguiu se recuperar até morrer de
quando ele abre a própria produtora para administrar a carreira. Um ano cirrose hepática no ano 2000, aos 62 anos. Desde que perdeu todos os seus
após a criação da Simonal Produções, em 1970, e com o fechamento do seu contratos e não fechou mais nenhum show, dedicou sua vida a tentar provar
primeiro balanço anual, com a ostentação e os gastos pessoais desregrados, que não era dedo duro, mas nunca foi ouvido pela imprensa, pela classe e

184
pelo público. Em reportagem de 2019 sobre a divulgação do filme “Simonal” mudaram e não era mais aceito aqueles que de alguma maneira, direta ou
que conta a biografia do cantor, o repórter Luís Antônio Giron, da revista indiretamente, fossem considerados cúmplices da ditadura.
Istoé, afirma que o cantor nunca foi santo, mas que “foi, sim, uma espécie Como apresentado, apesar de ser o nome da moda, o cancelamento faz
de mártir – o mártir de uma falha ética da qual nunca se livrou”. parte do ser humano que, por valores morais, acaba se sentindo acima do
Em uma breve busca no Google inserindo apenas o nome do cantor, é Bem e do Mal com direito de julgar e condenar o outro.
possível encontrar diversos resultados em que trazem o termo Na Alemanha, quando pensaram em destruir os campos de concentração
cancelamento para definir o que aconteceu com Simonal. Boicotado por pelo horror que eles simbolizavam, o pensamento foi rechaçado e os
todos os lados e solenemente ignorado por onde passava, Simonal campos foram não apenas mantidos, mas utilizados como forma de
encontrou na bebida uma válvula de escape para o pesadelo que vivia. Hoje, lembrança e educação para que a barbárie não ocorresse mais. A memória
21 anos após a sua morte, alguns artistas reconhecem o boicote sofrido por de uma sociedade está diretamente atrelada a sua história. Monteiro
Simonal, o governo fez uma tentativa de retratação afirmando que ele nunca Lobato, Simonal e Machado de Assis, que além de gênios, foram cancelados
foi informante do DOPS, os filhos lançaram filmes, livros e até espetáculo cada um à sua maneira. Mas e a obra? É correto essa obra ser condenada
teatral para refazer a imagem do pai, mas nada foi o suficiente para reparar ao ostracismo ou esquecimento? Ser banida? Não há uma resposta pronta.
o dano do cancelamento sofrido por Simonal. As consequências que esse Mas é necessário a reflexão do assunto. São perguntas de extrema
cancelamento trouxe não só levou Simonal à morte, como afetou toda a sua relevância principalmente num país que tem uma tendência natural ao
família. esquecimento.
Os defensores da cultura do cancelamento, justificam que esta é a única O termo cancelamento, tem caído no uso popular e cada vez mais perde
maneira para comunidades minorizadas terem suas vozes ouvidas. Sendo o sua força ao se tornar uma expressão generalista. O limiar do que separa
ódio e a indignação, os combustíveis mais eficientes para a viralização. Mas um cancelamento de um repúdio da sociedade, por exemplo, é
na prática vemos que não. Simonal, por exemplo, não foi cancelado por extremamente complexo, uma linha muito tênue que muitas vezes não
comunidades minorizadas. Assim como Judas, Simonal foi banido por ser conseguimos reconhecer. Ao examinarmos casos de criminosos como o
considerado traidor. Foi condenado, porque os valores morais da sociedade deputado Jairinho, suspeito de torturar e matar o enteado de 4 anos, há uma
revolta generalizada. Mas é isso que é ser cancelado? Sem dúvida ele vai

185
estar marcado para sempre, ainda assim, ao menos por enquanto, é um caso Estes atores estão cada dia mais presentes nas nossas vidas. Sendo
pontual. Não há por trás, uma minoria que busca, neste caso muitas vezes utilizados por grupos políticos para ajudarem a influenciar a
especificamente, uma busca maior por um ideal. Seja a luta contra os maus cabeça dos usuários instigando movimentos, ataques, violências, calúnia e
tratos animais, os direitos de negros, direito das mulheres, contrários a difamação com o intuito de manipulação focada em um propósito. Nossa
homofobia, cultura do assédio, etc. O mesmo ocorre com a confusão que a sociedade, se sente protegida escondida através do anonimato das redes,
maioria das pessoas fazem entre cancelamento e bullying. Apesar de muitas sentindo-se com poder e cada vez mais polarizado e destruindo a
vezes o bullying ser visto como uma “oitava abaixo” do cancelamento, ao possibilidade do diálogo, da comunicação e da diversidade de pensamento.
aprofundar sobre esta temática, há uma compreensão de que o bullying está Para o doutor em filosofia pela UFRJ, Renato Nogueira, a questão passa pela
mais para um primo próximo ao passar diretamente pela perversão pessoal dificuldade em compreender que todo encontro e relacionamento traz um
do autor do ato. Muitas vezes por frustração, traumas, etc, tem como conflito ou embate. Citando o filósofo Baruch Espinoza, Renato reforça que
objetivo ser agressivo como o outro sem julgamento de valores. Da mesma a vida é feita de bons e maus encontros, de elementos alegres e tristes, e faz
forma que é possível “bullyingar” uma pessoa por ser muito gorda ou por parte dela aprendermos tanto a sorrir, como a chorar. É possível gostar de
ser muito magra. Já o cancelamento não. Ele tem o intuito de "educar" e/ou alguma coisa que não seja nosso espelho. E que o prazer não é a única saída.
punir, de servir de exemplo, de acarretar uma mudança. Dificilmente haverá Afinal, como já dizia Sócrates, a melhor forma de desenvolver um
um único indivíduo que possa ser responsabilizado pelo ato. Não é um pensamento crítico é a partir de um diálogo respeitoso.
descarrego de algo pessoal, mesmo sendo perverso, não passa pela É possível observar, que em determinados casos, como a gigante Nike,
perversidade como motivador. que foi cancelada por usar mão de obra escrava infantil, e a partir daí mudou
Conclusão: a política da empresa, o cancelamento obteve um resultado que
Na atualidade o Cancelamento se configura com o uso das redes sociais, acreditamos ser positivo. Tem-se questionado muito o cancelamento de
como atores não humanos, utilizados como forma de atuação e divulgação pessoas mesmo estas tendo cometido atos dos quais muitos discordam e
para campanhas de cancelamento como #metoo, #vidasnegrasimportam, e sentem-se incomodados. A liberdade de expressão, é um direito assim como
até mesmo a campanha feita contra Carol Konká. também é um direito poder repudiar e não querer compactuar com
determinado ato ou pensamento. No entanto, é preciso estar atento ao

186
limite onde a liberdade pessoal do outro é invadida. Muitas vezes, isso é palavra, expressão, ao invés de fazer campanhas maciças para destruir, ser
realizado sem que sequer haja o conhecimento de causa, apenas baseado possível fazer campanhas de esclarecimento, educação ou simplesmente se
em pré julgamentos e pela crença em verdades únicas. afastar. Dessa forma, não consumindo aquilo que a pessoa oferece, por uma
Há uma percepção que, casos como J.K Rowling, autora, entre outros, das questão de escolha e não de violência, deixando de imputar ao outro um
obras literárias de sucesso Harry Potter, que está cancelada e acusada de modo de ser e de pensar. Com isso, exercitando a empatia.
transfobia após sair em defesa de Maya Forstater. No caso, a pesquisadora
Maya Forstater, foi demitida após postar em suas redes sociais que Referências:
mulheres trans não deveriam “mudar de sexo”. Algo extremamente ALTARES, G. Judas, muito mais que um traidor. El Pais. Madrid:
limitador, que em busca de um politicamente correto, ao invés de abrir 26/03/2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-03-
debates e educar a população, aumenta ainda mais as polaridades. Mesmo 27/judas-muito-mais-que-um-traidor.html. Acesso em: 7 maio. 2021
que se acredite errada a colocação de Maya Forstater, J.K Rowling ou Kevin ARIAS, J. E se Judas não traiu Jesus? El Pais. Madrid: 14/01/2015.
Spacey, por ter assediado um menino de 14 anos, é preciso provocar um Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/
debate mais amplo sobre até onde vai o direito da sociedade de condená- reportagem/o-cancelamento-de-wilson-simonal-acusado-de-ser-dedo-
los, destruindo suas vidas e muitas vezes as vidas de seus familiares. duro-da-ditadura- de-1964.phtml. Acesso em: 1 maio. 2021.
Será correto o ser humano ser definido por um erro? Claro, que há casos
que entram numa esfera criminal e que deveriam ser tratados pela polícia. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Editora Zahar, 2001
Não cabendo a sociedade sair perseguindo como se estivesse acima do bem
e do mal. Exercitando o olhar ao outro, pois muitas em muitos casos, a CENTAMORI, V. Primeiro Cancelamento do Brasil: A Saga de Wilson
pessoa pode vir a se arrepender e mudar de ideia, uma vez que faz parte do Simonal Durante a Ditadura. Aventuras na História. Brasil: 31/12/2020.
ser humano o processo de transformação. Porém, há casos em que a pessoa Disponível em:
realmente possui internalizado certos valores e não pretende mudar, ainda https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/o-
assim, possuem o direito de ter seus próprios pensamentos. Talvez seja o cancelamento-de-wilson-simonal-acusado-de-ser-dedo-duro-da-ditadura-
momento da sociedade, ao se sentir incomodada com determinado ato, de-1964.phtml. Acesso em 29 abril. 2021.

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190
CAPÍTULO 16 mostram como é atual o debate. Surpreendentemente, Michelle não se
A SÍNDROME DO IMPOSTOR ENTRE MULHERES EM TEMPOS DE intimidou ao declarar-se insegura, e ainda revelou:
EMPODERAMENTO FEMININO
Entrar em uma faculdade de elite, quando o seu orientador vocacional no
ANA PAULA DE MACEDO NUNES PFAENDER DE LIMA
colégio disse que você não era boa o suficiente, quando a sociedade vê
CAMILA DANTAS BARROSO DOS SANTOS
REGELINE DOS SANTOS LACERDA DA CONCEIÇÃO crianças negras ou de comunidades pobres e rurais como 'não pertencentes'...
SIMONE MIRANDA NUNES
Eu, e muitas outras crianças como eu, entramos ali carregando um estigma.
TÂNIA MARIA LAZZOLI LINS
Hoje em dia, crianças mais jovens chamam isso de síndrome de impostor.
Sentem que não cabem ali, não pertencem. Eu tive de trabalhar duro para
Começamos nossa narrativa com uma pergunta especialmente dirigida às
superar aquela pergunta que (ainda) faço a mim mesma. Eu acho que muitas
mulheres: por que muitas se sentem uma fraude? É notório que muitas
mulheres e muitas meninas de todas as classes sociais andam por aí
mulheres desacreditam de suas capacidades, não reconhecem ser
carregando esse tipo de pergunta. Como eu superei isso é como eu superei
merecedoras de suas conquistas, atribuindo-as à sorte ou oportunidade, e,
qualquer coisa. Trabalho duro. Toda vez que duvidava de mim mesma, dizia
ainda, temem ser desmascaradas a qualquer momento, podendo ter a
para mim, vou trabalhar ainda mais, vou deixar meu trabalho falar por si. Eu
chamada "síndrome da impostora", uma patologia psicológica que, apesar de
ainda faço isso. Sinto que, de alguma forma, ainda tenho algo a provar. Por
não ser classificada como tal pelo Código Internacional de Doenças (CID), vem
causa da cor da minha pele, a forma do meu corpo, pela forma como as
sendo estudada há pelo menos 40 anos, devido aos impactos físicos e
pessoas estão me julgando (OBAMA, 2018).
emocionais que causam na vida do impostor. Dito isso, os primeiros dados
Em seu livro “Síndrome da impostora - Por que nunca nos achamos boas o
deste nosso artigo consistem na reprodução das declarações da ex-primeira-
suficiente?”, lançado no ano passado, a apresentadora Rafa Brites também
dama dos Estados Unidos Michelle Obama, dadas em entrevista, no Reino
conta seu sofrimento psíquico ao se auto julgar como uma fraude. Assim
Unido, em 2018: "Estou à altura de ser a primeira-dama dos Estados Unidos?
como a autora, o livro também alcançou bastante sucesso, chegando a ocupar
Eu sou boa o suficiente? É uma pergunta que me persegue por grande parte
o ranking dos mais vendidos no país. Em entrevista ao jornal O Globo, em 26
da minha vida. Estou à altura disso tudo?" Os questionamentos públicos de
de outubro de 2020, ela relatou:
uma das mulheres mais poderosas do mundo jogaram luz no tema e nos

191
Percebi que, ao longo da vida, sempre estava me fazendo as perguntas ‘o que impostoras e temiam ter sua incapacidade intelectual desmascarada. Antes
estou fazendo aqui?’, ‘será que sou boa o suficiente’ e ‘vão descobrir que sou de seguirmos adiante, sugerimos: atire a primeira pedra quem nunca duvidou
uma farsa’? Eu vou numa divisão entre combater a síndrome e acolher a ser merecedora de suas conquistas, de como alcançou o sucesso, se deveria
síndrome de acordo como ela vem, porque, muitas vezes a síndrome da mesmo estar naquela posição.
impostora vem com gatilhos lá da infância. (BRITES, 2020, s/p.) Diante do exposto, o presente artigo tem como objetivo verificar como a
Em outro trecho da entrevista, ela contou quando o sentimento lhe tomou síndrome da impostora afeta mulheres, até mesmo aquelas públicas de
pela primeira vez: destaque. Para tal investigação, analisamos relatos e depoimentos de
Logo quando estava saindo da faculdade de Administração, fiz um concurso mulheres registrados em entrevistas e livros, à luz da Teoria Ator-Rede (TAR),
para trainee de uma empresa multinacional. Foram vários estágios do tendo como intercessores as discussões sobre feminismo, gênero e
processo, tiveram provas de conhecimentos gerais, inglês, lógica, dinâmica de identidade. A conceituação é transportada, principalmente, das teorias
grupo. Era bem concorrido. Fui fazendo e acabei em primeiro lugar, seria expostas por Bruno Latour em sua obra, em que defende a ideia de que a
trainee do CEO. Entrei em desespero, tendo certeza de que não tinha sociedade contemporânea está inserida em uma realidade fluida, onde tudo
capacidade de ocupar aquela vaga. A qualquer momento, iam descobrir que é mutável e multifacetário. A TAR (ou ANR, em inglês) busca descrever
tinha passado por sorte, que eu não era a melhor. Isso junto com os processos de transformação e de construção de fatos, sujeitos, objetos e
comentários machistas, de que eu tinha passado porque iria acompanhá-lo crenças. (LATOUR, 2008).
em viagens. Acabei desistindo da vaga. (Ibidem) Nesse sentido, é necessário pensar os atores sociais sempre em um
Qualquer pessoa pode desenvolver a síndrome do impostor. No entanto, contexto de rede no qual tecem seus processos de subjetivação e no qual
acredita-se que a síndrome seja desenvolvida predominantemente por estruturam suas posições enquanto sujeitos. Percebemos aqui que, para
mulheres. O primeiro estudo a citar a expressão “síndrome da impostora” foi entender melhor sobre como as mulheres tendem a ser as mais afetadas pela
feito por Pauline Clance e Suzanne Ines, em 1978. As pesquisadoras síndrome do impostor, é necessário questionar toda a estrutura e rede na
estudaram 100 mulheres, muitas ocupavam funções de alto desempenho, qual estão posicionadas historicamente. Sabemos que, quando fazemos um
que, apesar de terem obtido destaque profissional e acadêmico, negavam seu estudo social da confirmação da ideia e dos estereótipos da feminilidade na
sucesso, o atribuíam a oportunidades ocasionais ou sorte, se julgavam cultura ocidental, nos deparamos com uma constante demarcação de

192
mecanismos de apassivamento e inferiorização das mulheres, o que contribui as implicações singulares e micro até suas relações com o contexto
para uma formação subjetiva do feminino atrelada a uma naturalização de macrossocial, e a Teoria Ator-Rede se mostra uma ferramenta interessante
características como a doçura, o amadorismo, a domesticidade e a para isso, como afirmam Cavalcante, Esteves, et. al: “A ANT preconiza uma
inferioridade, estereótipos estipulados por uma sociedade patriarcal e aproximação do campo radicalmente empírica, desenvolvendo pesquisas em
machista. Evidencia-se assim um estudo que possa também tomar em diferentes contextos, simples ou complexos, e transita entre níveis de análise
consideração as relações entre os sujeitos e as interações que fazem efeito na macro e micro.” (CAVALCANTE; ESTEVES; et. al, 2017, p. 2).
rede na qual estão posicionados, como afirmam Cavalcante, Esteves, et. al: “a No presente estudo, vamos tentar compreender por que as mulheres têm
ANR também se define como um método para acompanhar e descrever o esse sentimento e as suas consequências, especialmente em um cenário de
movimento dos actantes e os efeitos que decorrem dos vínculos entre eles” valorização do empoderamento feminino. Pretendeu-se, assim, traçar um
(CAVALCANTE; ESTEVES; et. al, 2017, p. 4). Além disso, acrescenta Marcia paralelo entre os discursos e mecanismos de poder que incentivam mulheres
Moraes: a empoderar-se e, também, as levam a sentir-se uma fraude.
Na teoria ator–rede, a noção de rede refere-se a fluxos, circulações, alianças, Neste trabalho, apresentamos os conceitos acerca da síndrome da
movimentos, em vez de remeter a uma entidade fixa. Uma rede de atores não impostora, evidenciando os mecanismos que envolvem o distúrbio, a forma e
é redutível a um único ator nem a uma rede; ela é composta de séries a maneira como os outros veem a pessoa afetada no que tange as suas
heterogêneas de elementos animados e inanimados, conectados e conquistas profissionais e sociais. Antes de apresentarmos a conclusão,
agenciados. (MORAES, 2004, p. 322) refletimos, a partir das críticas providas pelas teorias feministas, sobre as
condições emocionais e psicológicas que afetam as mulheres dentro de um
Assim, o estudo desse tema, que tende a pensar a importância de explorar as contexto de gênero machista e patriarcal.
relações entre o sujeito e o campo social para podermos compreender os O tema tem múltiplos aspectos. Daí a necessidade de delimitá-lo por
contextos que os envolve, necessita se amparar em uma análise mais meio de abordagem de mulheres públicas de destaque. O ponto de partida da
profunda que tome como referências toda uma história da conformação de análise foram relatos e depoimentos de mulheres registrados em entrevistas
um espaço cultural de manejo da ideia de feminilidade atrelada a uma e livros.
“inferiorização”. Necessitamos de um caminho de pesquisa que possa abarcar

193
DESENVOLVIMENTO nossa própria capacidade. Como não nos sentirmos menores ou menos
preparadas que os homens? Em resumo, o “eu sou boa o suficiente?" nos leva
Estereótipos de gênero a um lugar patologizado física (sudorese, taquicardia, cefaleia, hipertensão,
O interesse pelo tema Síndrome do Impostor nasceu da necessidade de entre outras) e psiquicamente (depressão, ansiedade, etc.).
compreender de onde surge a falta de segurança, especialmente das Nesse contexto, a forma como as relações de gênero foram impostas em
mulheres, e como lidamos com isso. Nossa hipótese é a de que a cultura nossa sociedade pode e deve ser repensada e modificada, transgredindo os
patriarcal e machista, que propaga a suposta superioridade física e intelectual estereótipos enraizados em nossa cultura, rompendo com as teias que os
masculina, pode ter colaborado na construção de uma crença interior de que perpassam por gerações e contribuindo para o desenrolar de uma nova
as mulheres pertencem a um grupo inferior. Estudos realizados sobre a cultura em que não haja a naturalização da diferença hierárquica e a
síndrome do impostor sugerem que sua origem se dá no seio familiar, local conseqüente discriminação de gênero. Segundo Foucault (1990), os discursos
comumente permeado por estereótipos de gênero que definem e sobre o corpo e a sexualidade e a divisão hierarquizada dos seres humanos
padronizam o que é ser mulher e ser homem. em mulheres e homens são, de fato, efeito e instrumento de poder instituinte.
Essa padronização existente em nossa sociedade define que antes mesmo de Em Vigiar e Punir (1977), Foucault revela como os sujeitos são constituídos a
nascerem, os indivíduos já têm definidos os moldes que guiarão seus partir da “descoberta do corpo como objeto e alvo de poder [...] corpo que se
comportamentos e suas subjetividades de acordo com o sexo biológico que manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou
eles carreguem. É comum percebermos a reprodução da ideologia de gênero cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 1977, p. 125). Eis então que ele
que define as meninas como frágeis, delicadas e emotivas enquanto que os introduz o conceito de corpo dócil, que é passível de ser adestrado. “É dócil
meninos são fortes, agressivos e racionais. um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
Desde crianças, nós, mulheres - o presente artigo é escrito por cinco mulheres transformado e aperfeiçoado” (Ibidem, p. 126). Foucault também define o
-, escutamos sentenças como “os homens fazem melhor”, “os homens são conceito de biopoder. Este teve seu início no final do século XVIII e
mais fortes”, “os homens são mais capazes”, “as mulheres são mais frágeis”, caracterizou-se pela coletivização do corpo, nomeando-o população. Os
“as mulheres são temperamentais”, entre tantas outras. Crescemos com a indivíduos passaram a ser agrupados com referência naquilo que possuem em
crença interior de que pertencemos a um grupo inferior, desacreditando da comum – a vida e o pertencimento a uma espécie. Assim teve início a

194
produção de saberes que descrevem, quantificam, comparam e preveem os A síndrome do impostor é constituída por uma ocasião onde uma pessoa não
corpos, como a Estatística, a Demografia e a Medicina Sanitária. acredita na sua capacidade de estar em um nível mais elevado na vida, onde
Diante desses conceitos, fica claro supor qual lugar foi destinado a mulher em se sente não merecedor de seu sucesso. Quando estão vivendo algo
uma sociedade machista e patriarcal. Sendo a moral fundada a partir de extraordinário ou uma conquista importante essas pessoas acreditam que
códigos e prescrições comportamentais, Foucault nos leva a refletir que é não possuem competência para tal ou capacidade de continuar seu sucesso.
preciso resistir a se deixar levar ingenuamente pelos jogos de verdade A síndrome trata-se de uma ilusão de inferioridade, onde essas pessoas
impostos na sociedade através das diversas formações discursivas nos estão constantemente se sentindo uma fraude e não valorizam o seu próprio
diferentes períodos, conforme explica Neto (2005): desempenho e avanço. Está relacionada a alguns transtornos como ansiedade
e depressão por exemplo.
Ao falar em jogos de verdade, Foucault nos remete – agora no plano ético – Seus sintomas consistem em diversos sentimentos como complexo de
às relações entre o falso e o verdadeiro, relações essas que são construídas e inferioridade, baixa autoestima, medo de se expor, entre outros. Podemos
que balizam o entendimento que cada um tem do mundo e de si mesmo. As identificar principalmente em nosso meio de trabalho alguns desses
balizas indicam aquilo que pode e que deve ser pensado, ou seja, um regime comportamentos auxiliando a pessoa a procurar uma ajuda profissional. Mas
de verdade em que se dão esses jogos (NETO, 2005, p. 98). por que a síndrome atinge mais as mulheres?
Tais regimes de verdade encontram-se em consonância com a formação dos Hoje sabemos que a síndrome do impostor afeta de sete a cada dez
estereótipos, que são perpassados por gerações de forma naturalizada, pessoas, tudo porque vivemos numa sociedade pautada na obtenção do
levando os indivíduos a aceitarem e seguirem tais preceitos, acreditando que sucesso a qualquer preço, trazendo uma pressão e uma cobrança cada vez
estes são naturais e não constituídos socialmente. Assim, gerações de maior no nosso dia a dia. Mas o que acontece quando conseguimos aquilo
meninas crescem se percebendo inferiores e inseguras e, ainda que tenham que tanto queríamos? Acabamos numa auto sabotagem e não acreditamos
acesso a oportunidades e destaque, receiam fracassar e reforçar sua que éramos realmente capazes de conseguir.
inferioridade. É isso o que vamos aprofundar a seguir. O problema é ainda mais frequente em nós mulheres do que em homens,
porque desde sempre existe a cobrança excessiva provocada pelo machismo
Ilusão de inferioridade e a velha crença de que os bons cargos e as situações de poder são para

195
homens. É evidente que tal crença é um enorme equívoco, mas que, Vivemos em ambientes discriminatórios, cheios de estereótipos de gênero
infelizmente, ainda faz parte de nossa história e cotidiano. Fica muito difícil que é muito forte em nossa sociedade, sendo mais um fator para o
para nós combatermos isso, e, quando assim o fazemos, o resultado pode nos desenvolvimento da síndrome entre as mulheres. Um outro fator é de que
levar a pensar que somos impostoras ou até mesmo uma fraude. muitos homens também têm a síndrome, mas aparecem menos do que o
Desde que nascemos precisamos sempre provar o nosso valor, em meio percentual real, fator gerado mais uma vez pelo atravessamento da cultura
à sociedade machista em que ainda estamos inseridos, não somos valorizadas social. É esperado do homem, que ele não demonstre fraqueza ou
academicamente, profissionalmente e socialmente como os homens. A insegurança, fazendo com que eles se esforcem muito mais a disfarçar os
sensação de inferioridade e baixa autoestima cresce junto conosco e é preciso aspectos da síndrome do impostor. Nossa cultura os obriga a mostrarem que
uma boa transformação interna para que estes sentimentos nos abandonem. são autoconfiantes, que não têm fraqueza nenhuma, não podem chorar,
Quando conseguimos realizar os nossos objetivos, as frases machistas que devendo ser o provedor, forte e “macho alfa”, sendo representado por um
ouvimos ao longo da vida inteira, de que não somos capazes ou de que o papel social.
homem faria o trabalho melhor do que uma de nós, voltando à tona, de que Normalmente a síndrome se manifesta em ambos os aspectos da vida, tanto
sendo assim seria melhor ficarmos com os filhos em casa. no pessoal quanto no profissional, sendo que com maior destaque na vida
Passamos por diversos problemas de autoestima, desamparo afetivo e profissional e até mesmo acadêmica, por serem ambientes de maior
social e autocobrança em excesso, caracterizando o desenvolvimento da competitividade, é onde estamos falando em lidar com os nossos limites.
síndrome em nossas vidas. Como podemos entender que mulheres com perfil
superior acreditam que não são brilhantes o suficiente ou estão enganando a O ambiente de trabalho pode contribuir para o desenvolvimento da síndrome
todos apesar de suas conquistas? Isso está relacionado a cultura de viver em se transformando em um dentre vários outros possíveis gatilhos, sabendo-se
um ambiente cheio de barreiras, estereótipos e vieses de gênero e da que se trata de um contexto e não é somente porque chegou ao trabalho que
dinâmica familiar desde a infância, onde a sociedade pré-determinou como isso ocorre. São diversos fatores, como a dinâmica familiar, da cultura e da
corretos alguns conceitos como meninos gostam de carrinho e meninas sociedade, são várias vivências, sendo o ambiente de trabalho o de maior
precisam gostar de arte, culinária e música, mas, dessa maneira, as asas são pressão, onde se vivencia as características da síndrome.
cortadas, de quem nasceu para voar.

196
“Não sei quantas madrugadas passei respondendo a e-mails que achava Ao mesmo tempo que a síndrome acomete mais as mulheres, o
urgentíssimos, deixando de tomar o café da manhã ou almoçar porque NÃO empoderamento feminino tem ganhado cada vez mais destaque na sociedade
PODIA parar, porque o que tinha em mãos era importantíssimo... As vezes que contemporânea e o papel da mulher vem mudando em diversos espaços. No
ainda me sinto como uma impostora e deixo que outros falem por mim, deixo mercado de trabalho, embora ainda tenhamos menores salários e menos
de dizer o que penso para não incomodar, para não entrar em conflito. Com cargos de liderança, há expectativas de melhora para as próximas décadas,
quantos manplanner me encontro diariamente, QUANTOS homens me dizem uma vez que já somos maioria nas universidades. Ao mesmo tempo que
que tipo de feminista deveria ser”- Carmen G. de la Cueva, em sua conta no buscamos mais qualificações, grandes empresas investem em incentivos à
Facebook liderança feminina, por compreenderem que a equidade de gênero, assim
Essa percepção que temos de sermos menos qualificadas, traz como como a valorização da diversidade, contribuem para negócios mais rentáveis.
consequência a tentativa de tentarmos compensar aquilo que entendemos Segundo Azevedo e Sousa (2019), o termo empoderamento feminino
que falta, como baixa capacidade ou não preparação, com um maior esforço representa a consciência coletiva expressada por ações para fortalecer as
e mais horas de trabalho. E mesmo assim, quando finalmente fica pronto o mulheres e desenvolver a equidade de gênero. Trata-se de uma consequência
trabalho tendemos a explicar o resultado positivo graças a um esforço extra e do movimento feminista, embora sejam diferentes. Empoderar-se é o ato de
não a nossa real capacidade, o que só faz com que a síndrome se reforce. tomar poder sobre si. Assim, embora a discriminação e a violência contra a
A síndrome da impostora não é algo que aparece do dia para a noite, na mulher ainda sejam realidades em uma sociedade estruturada em bases
verdade é uma série de condições que vão interiorizando ao longo de nossas patriarcais, a valorização do empoderamento feminino e suas ações são
vidas, nossa cultura patriarcal nos ensina que, as nossas habilidades medidas necessárias para reverter a exploração histórica marcada pelo
femininas, não tem tanta importância como as masculinas, levando a machismo.
acreditar na ideia de que os homens fazem tudo melhor. Não se trata de um Sob outra análise, o empoderamento feminino chega a ser um termo
problema de cada mulher, mas sim de estereótipos de gênero, sendo as suas redundante diante da quantidade de famílias chefiadas por mulheres que não
consequências a nível individual. encontraram outra saída para suas histórias, de abandono e/ou violência dos
pais dos seus filhos, além de serem fortes e lutarem por dignidade e melhores
Empoderamento e o Feminismo condições de vida. A sociedade valoriza as super mulheres que conciliam

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jornadas excessivas de uma carreira profissional e trabalho doméstico, e pensam a dominação da mulher a partir de um pensamento racializado, e uma
intitula-as guerreiras, sem reconhecer a exaustão física, emocional e quarta onda insurgente na contemporaneidade.
psicológica a que somos submetidas. Sendo assim, não é esse Sabemos, porém, que, para a implementação desses discursos, algumas
empoderamento exploratório e às custas de nossa carga mental que produções precursoras foram importantes e incidiram sobre as rígidas
queremos. Queremos equidade e respeito. Queremos ser fortes e restrições feitas à vida social feminina. Anteriormente a Gouges,
empoderar-nos não por falta de opção, mas por acreditar no nosso potencial Wollstonecraft e Condorcet, já existiam alguns escritos na França onde
de sucesso. autores como François Peoullain de La Barre e Marie de Gounay, filósofa que
Também queremos a valorização e o reconhecimento do nosso em Igualdade entre Homens e Mulheres, de 1622, ressalta que nem a lei
empoderamento não apenas nas campanhas publicitárias do 8 de março, dia natural, civil ou religiosa justificavam a manutenção das mulheres em posição
internacional da mulher, mas através de políticas públicas e incentivos que de inferioridade. Tais autores e autoras defendiam a legitimidade da
nos afastem da discriminação, da violência e dos estereótipos de gênero participação das mulheres na vida pública, na política e no meio intelectual,
limitadores, para que as próximas gerações de meninas e mulheres possam voltando-se contra a limitação de um estilo de vida feminino contornado
ser cada vez mais confiantes de si, da sua liberdade e de suas escolhas. pelos ideais da maternidade. Esse grupo de escritos predecessores que
O conceito de empoderamento feminino se move a partir da remontam ao século XVII tem sido chamado por alguns de “protofeministas”
disseminação das teses feministas, que buscam, em alguma medida, ou “arqueofeminismo”.
questionar a estrutura social que tende a desvalorizar a produção das A construção do gênero feminino é estruturada na ideia de passividade e
mulheres e suas posições enquanto sujeitos. Associa-se o nascimento do impotência e compromete as formas de existência da mulher no mundo.
feminismo à sociedade burguesa industrial, sendo o termo proveniente do fim Enquanto figura passiva, deve cuidar e dedicar todos os seus esforços para a
do século XIX, momento de insurgência da chamada primeira “onda”, entre manutenção da procriação, em contraponto, ergue-se uma figura contrária, o
1880 e 1960, ligada à reivindicação dos direitos de voto, educação e trabalho. não-mulher, marcada historicamente em diferentes culturas pela posição de
Já a segunda onda, entre 1960 e 1980, questiona privilegiadamente no plano atividade, dominação e exploração. Sobre essas dificuldades relacionadas ao
social o papel e o lugar da mulher no casamento e na sociedade. Em seguida, gênero e a implicação da maternidade nessa problemática, o sociólogo Pierre
a terceira, entre 1980 e 2010, imbricando-se em questões políticas que Bordieu comenta:

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sobre corpos sem utilizar de coações diretas, tendo efeitos e ações mais
A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a psicológicos e morais. A violência simbólica se dá através de poderes que
ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do dissimulam as relações de força.
trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos A cultura como sistema simbólico, é arbitrário, justamente por não se
dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do basear em uma realidade universal e sim constituída através das visões e
espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservado aos homens, concepções de certos sujeitos históricos. O habitus, tendência pela qual o
e a casa, reservada às mulheres; ou no interior desta, entre a parte masculina, indivíduo percebe e reage ao mundo, está demarcado por uma estrutura
com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a prévia arraigada na cultura através de processos de violência simbólica que
estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com perpetuam a dominação masculina. A dominação masculina atua alicerçada
momentos de ruptura masculinos, e longos períodos de gestação, femininos por pré-disposições construídas no amago dos corpos. Nesse caso o homem
(BOURDIEU, 2012, p.18). como sujeito histórico estruturou processos simbólicos de ação no mundo
envolvidos em vetores de dominação. Esses processos em que através de
forças dissimuladas o homem se atualiza como a figura dominante nas
Pierre Bourdieu refletirá justamente sobre como a serão produzidas a relações sociais é mantido e reproduzido através de diferentes instituições,
partir das relações de gênero violências simbólicas, formas moleculares de como a igreja, a escola, o Estado. Nessas perpetuações, o habitus se atualiza
estruturação dos processos subjetivos nas mulheres que tendem a para personificar o homem como sujeito dominador. Essa dominação impõe
determiná-las enquanto inferiores e impotentes. Vemos como, mesmo a aos “não-homens”, limitações em suas possibilidades de agir no mundo,
partir de um momento atual em que as formas mais disseminadas de violência perpetuando relações duais de diferenciação e economia de poder entre
contra a mulher são combatidas, ainda assim há uma tendência ao homens e mulheres.
sentimento de inferioridade em algumas mulheres, determinado por uma Percebemos que a luta feminista se centra justamente em uma tentativa
estruturação histórica de relações de gênero que situam o feminino em um de rever as amarras às quais os processos de subjetivação das mulheres foram
lugar de menor agência do campo social. A violência simbólica é diferente da atrelados ao campo do apassivamento e da inferiorização, e, nesse sentido, o
violência física, se estabelece na cultura em formas de execução de violência termo empoderamento vem justamente dar lugar a uma forma de reivindicar

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uma posição ativa das mulheres enquanto sujeitos de seus destinos em uma também entrever os processos de subjugação feminina que permanecem
sociedade que as vê ainda como objetos. Como afirma a feminista Joyce colonizando nossas práticas coletivas. Destarte, parece de suma importância
Berth: refletir hoje sobre a síndrome da impostora, a partir de um marcador de
Empoderar, dentro das premissas sugeridas, é, antes de tudo, pensar em gênero que pense as persistentes estruturações microssociais que ainda se
caminhos de reconstrução das bases sociopolíticas, rompendo amparam em uma visão machista e patriarcal no pensamento sobre as
concomitantemente com o que está posto, entendendo ser esta a formação mulheres.
de todas as vertentes opressoras que temos visto ao longo da História (BERTH, É esse trabalho mais pormenorizado que algumas autoras feministas vêm
2019, p. 19) realizando, tentando pensar a partir da interseccionalidade, por exemplo, as
Sabemos que as lutas feministas vêm tentando empreender uma formas de entender a singularidade dos sujeitos sociais e as formas de
operação de revalorização da ideia de feminino na sociedade e questionar os opressão nas quais estão engendrados. Além disso, mostra-se a importância
valores androcêntricos que tendem a fazer das mulheres meros objetos de pensar a psicologia a partir dos recortes de gênero, classe e raça para
apassivados. Todavia, mesmo que hoje possamos perceber uma melhora em podermos realmente dar lugar a uma reflexão abrangente a realidade social
relação a própria posição social ocupada pelas mulheres, além do amparo de de múltiplos sujeitos, e para que possamos frente a essas sintomatologias que
um conjunto de leis que tentam oficializar uma mentalidade que equipare os nos mostram os resquícios de uma estrutura patriarcal e machista, em vista
sujeitos tanto homens quanto mulheres a um mesmo nível social no que de podermos combater e tomar posição nessas realidades.
tange a possibilidades de ação e remuneração, temos uma estrutura muito
fina e forte que condiciona os processos de estruturação social a um lugar de Considerações Finais
ainda menoridade para a mulher. A forma como nos comportamos, os modos de pensar, falar, sentir e viver
A síndrome da impostora surge como um sintoma que nos mostra como sofrem influências das imagens que temos de nós mesmos e do mundo. E tais
ainda é muito desafiador para mulheres se sentir realmente legítimas imagens não são geradas por si só, mas construídas a partir dos modelos que
construtoras de seus próprios destinos. Nesse sentido, evidencia-se a a sociedade oferece. Assim, os sentidos e as simbolizações externas
necessidade de um trabalho molecular, que possa realmente trabalhar a nível influenciam na construção dos sujeitos de forma a compreendê-los como
micropolítico as formas de relação entre os sujeitos sociais, de modo de nelas modelos únicos de ser, como condições inquestionáveis.

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Vimos que o conceito de gênero faz parte de uma construção social, histórica lugares de poder, ainda manifestam inseguranças que são advindas de uma
e cultural e está inserido no cerne da formação das subjetividades. Desta estrutura arcaica, patriarcal e machista, mas que não deixa de fazer efeito em
forma, os discursos que são desde cedo inculcados nos indivíduos sobre o “ser seus processos atuais de subjetivação. Os relatos tanto de Michelle Obama
mulher” e o “ser homem”, acabam por moldar sujeitos de forma quanto de Rafa Brites dão sinal de uma formação subjetiva que ainda está
estereotipada e limitada, além de remeterem a naturalização da diferença condicionada por operadores sociais que tendem a contornar um imaginário
sexual e consequente justificação para a distinção hierárquica, determinando sobre o feminino de forma a inferiorizá-lo, questionando sempre a
uma condição imutável e diferença binária essencial. autenticidade e legitimidade de suas conquistas.
Neste século XXI pode-se constatar que a emancipação das mulheres é algo Podemos também compreender um pouco mais sobre a síndrome do
indiscutível. Conquistamos o mercado de trabalho, os cargos de chefia, o impostor, sua sintomatologia, suas características psicodiagnósticas e
direito à liberdade de viver nossa sexualidade – principalmente com o também seu processo de formação social. Nesse sentido, podemos visualizar
advento dos métodos anticoncepcionais – mas, mais do que isso, adquirimos como há uma importante reflexão biopsicossocial no que tange a pensarmos
acesso à cidadania. Assim, considerando a origem de nossa sociedade síndromes e outras patologias do contemporâneo, e, nesse sentido, é
baseada em uma supremacia essencialmente masculina, as conquistas importante circunscrevermos as lutas sociais enquanto espaços produtores
femininas podem por um breve momento remeter a ilusão de um alcance da de subjetividade e legitimação para os sujeitos. Por isso, foi importante
“igualdade” entre os sexos. No entanto, Foucault nos dá subsídios para olharmos para a teoria feminista como uma formação que tende a fazer efeito
questionarmos a formação dos regimes de verdade. Ele nos revela caminhos nas formas de socialização da mulher e questionamento das estruturas
para subvertermos o pensamento que naturaliza as formas de poder, como opressivas estereotipadas nas quais elas foram engendradas durante a
os estereótipos de gênero, pois ainda que tenham sido inculcados história.
inconscientemente na formação dos indivíduos, reconhecê-los como Por fim, perceber como a luta feminista é algo em andamento e como é
mecanismos de dominação e não como verdades, já é o primeiro passo para necessário dispositivos menores como os trazidos pelos conceitos de
revertê-los. empoderamento e intersecconalidade, e também uma lente que dê lugar a
Nosso trabalho pode apresentar, desde sua introdução, um pouco sobre a reflexões moleculares sobre o ser mulher da singularidade de cada sujeito,
forma como as mulheres, principalmente aquelas que ocupam prestigiosos para que possamos olhar para a síndrome do impostor e reconhecer, por meio

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