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Adorno e a

Dialética Negativa
Leituras contemporâneas
Comitê Científico da Série Filosofia e Interdisciplinaridade:
 Agnaldo Cuoco Portugal, UNB, Brasil
 Alexandre Franco Sá, Universidade de Coimbra, Portugal
 Christian Iber, Alemanha
 Claudio Goncalves de Almeida, PUCRS, Brasil
 Cleide Calgaro, UCS, Brasil
 Danilo Marcondes Souza Filho, PUCRJ, Brasil
 Danilo Vaz C. R. M. Costa, UNICAP/PE, Brasil
 Delamar José Volpato Dutra, UFSC, Brasil
 Draiton Gonzaga de Souza, PUCRS, Brasil
 Eduardo Luft, PUCRS, Brasil
 Ernildo Jacob Stein, PUCRS, Brasil
 Felipe de Matos Muller, PUCRS, Brasil
 Jean-Fraçois Kervégan, Université Paris I, França
 João F. Hobuss, UFPEL, Brasil
 José Pinheiro Pertille, UFRGS, Brasil
 Karl Heinz Efken, UNICAP/PE, Brasil
 Konrad Utz, UFC, Brasil
 Lauro Valentim Stoll Nardi, UFRGS, Brasil
 Marcia Andrea Bühring, PUCRS, Brasil
 Michael Quante, Westfälische Wilhelms-Universität, Alemanha
 Migule Giusti, PUC Lima, Peru
 Norman Roland Madarasz, PUCRS, Brasil
 Nythamar H. F. de Oliveira Jr., PUCRS, Brasil
 Reynner Franco, Universidade de Salamanca, Espanha
 Ricardo Timm De Souza, PUCRS, Brasil
 Robert Brandom, University of Pittsburgh, EUA
 Roberto Hofmeister Pich, PUCRS, Brasil
 Tarcílio Ciotta, UNIOESTE, Brasil
 Thadeu Weber, PUCRS, Brasil
29

Ricardo Timm de Souza


Jair Tauchen
(Orgs.)

Adorno e a
Dialética Negativa
Leituras contemporâneas

Porto Alegre
2015
Direção editorial: Agemir Bavaresco
Diagramação: Lucas Fontella Margoni
Capa: Talins Pires de Souza

Todos os livros publicados pela


Editora Fi estão sob os direitos da
Creative Commons 3.0
http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/

Série Filosofia e Interdisciplinaridade - 29

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


SOUZA, Ricardo Timm de; TAUCHEN, Jair (Orgs.).

Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas [recurso


eletrônico] / Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) --
Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2015.
260 p.

ISBN - 978-85-66923-67-4

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Dialética negativa 2. Estética 3. Filosofia política. 4. Ética.


5. Moral. 6. Frankfurt. I. Título. II. Série.

CDD-172

Índices para catálogo sistemático:


1. Ética política 172
Prefácio
A presente obra compõe-se de um conjunto de
contribuições textuais dos participantes do Seminário de
Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS – 2015/I, Ética e
Contemporaneidade: críticas filosóficas da violência – A
ATUALIDADE DA DIALÉTICA NEGATIVA DE
ADORNO, por mim conduzido. As leituras e discussões
conjuntas da obra, tanto no original quanto em suas
traduções inglesa, espanhola e brasileira, além de ampla
literatura de apoio, levaram, ao final do Seminário, à escrita
de textos que, combinando rigor interpretativo e abordagem
extremamente contemporânea das temáticas abordadas em
sua especificidade, fizeram por bem merecer sua divulgação
a um público externo mais amplo. A confecção da obra
esteve em boa parte sob a condução do doutorando em
Filosofia/PUCRS Jair Tauchen, a quem agradeço pela
iniciativa, constante boa vontade e espírito de diálogo.
Todos os textos aqui constantes foram revistos por outros
participantes do Seminário, em um processo coletivo de
construção que, consideramos, deveria ser crescentemente
encorajado na Academia; naturalmente, assumo a
responsabilidade por quaisquer falhas estruturais da obra.
Adorno continua vivo como nunca – essa é, entre as
muitas conclusões do Seminário, uma das mais percutantes.
Estudar, reler, rever, ressignificar sua complexa obra é tarefa
inadiável à Filosofia. A coletânea que aqui temos, na sua
variedade de abordagem, de especializada a interdisciplinar,
é uma prova viva da urgência desta tarefa. Pois, ao final do
árduo caminho que significa penetrar em uma de suas
produções maiores, resta como iniludível aquele dito tão
famoso do pensador de Frankfurt: “A inteligência é uma
categoria moral”. Que os leitores encontrem na obra tanta
satisfação como os autores ao escrevê-la e os organizadores
ao realiza-la é o desejo sincero de todos envolvidos nesse
projeto.

Ricardo Timm de Souza


Porto Alegre, julho de 2015.
Sumário

Breve apontamento estético-negativo sobre As


Cabeças Trocadas, de Thomas Mann
Alexandre Pandolfo . 9

O pensar constelacional de Walter Benjamin e


Theodor W. Adorno
Bruna de Oliveira Bortolini . 16

O trabalho do negativo em Adorno:


do Processo Sublimatório ao Real
Bruna Nery Pormann . 32

Nietzsche e Adorno:
considerações críticas sobre a metafísica
Elton Corrêa de Borba . 41

Adorno e a psicanálise:
Uma lição de Arnold Schoenberg
Estevan de Negreiros Ketzer . 57

Hegel e Adorno: potencialidade crítica do pensamento


Evandro Pontel . Olmaro Paulo Mass . Isis Hochmann de Freitas . 91

A concepção de liberdade na filosofia de Theodor Adorno


Hellen Maria de Oliveira Lopes . 109
O programa e a mistificação das massas no
pensamento de Vilém Flusser e Theodor Adorno
Jair Inácio Tauchen . 122

Filosofia e Concretude: a dialética negativa de Adorno


como antídoto dos formalismos ideológicos
Jardel de Carvalho Costa . 138

Expressão e constelação em Theodor Adorno e Walter


Benjamin
Manuela Sampaio de Mattos . 153

Herdeiros de Theodor W. Adorno


Marco Antonio de Abreu Scapini . 175

Del mito de Sísifo.


Trascendentalidad y necesidad del sujeto en la
Dialéctica Negativa de Adorno
Oscar Pérez Portales. . 193

Pensar la resistencia.
Vigencia del pensamiento de Adorno, y algunos
elementos de la realidad social contemporánea
Sebastián M. Ferreira Peñaflor . 223

Brevíssima reflexão para pensar a partir da Vida


Danificada
Tiago dos Santos Rodrigues . 246
Breve apontamento estético-
negativo sobre As Cabeças
Trocadas, de Thomas Mann
Alexandre Pandolfo*
O corte pontual acerca do qual as palavras e as linhas
que seguem brevemente pretendem abordar atinge as veias
da cultura ocidental e a evidência do que deixou de ser
evidente, expressamente no que tange à sua retro-
organização anônima não meramente representada na obra
literária As cabeças trocadas (Die vertauschten Köpfe) de Thomas
Mann, mas de certa forma expressada pelas relações que
nessa novela íntima e publicamente se apresentam as
fantasias onipotentes da subjetividade em sua operação
lógica e mítica e encantadora. Seu tipo de incisão pretende
ser apenas rápido, mas não cirúrgico. Então, esses
apontamentos apenas podem fundir e difundir; numa
espécie de átimo ou de sopro a cicatriz do corte sobre o qual
se debruçam. E nesse sentido, eventualmente eles podem,
enquanto tais, pesar sobre a sociedade contemporânea. As
cisões entre teoria e prática ou entre sujeito e objeto, por
exemplo, ligam essa narrativa fantástica ao ímpeto
subjetivista do pensamento hegemônico, na única imagem
aqui trazida à tona – e por meio dela, um amálgama, ela pode
ver o que segue, ver a si mesma espelhada na representação
de outrem. Ela vê o impossível. O logro mimético, porém,
narrado num átimo, não é exatamente de um êxito próprio,
mas sim geral, universal, cuja contradição cabal e culminante,
peculiar à nossa civilização ocidental é o mítico converter-se
do sujeito a si mesmo em coisa, objetificado num

* Mestre em Criminologia e Controle Social (PUCRS). Doutorando em


Teorias Críticas da Literatura (PUCRS), bolsista CNPq.
alexandrecostipandolfo@gmail.com
10 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

movimento segundo o qual é também a própria sociedade


que se dilacera, fundamentalmente através da lei geral da
troca. – O narrador da novela As cabeças trocadas, para narrar,
rompeu com a pretensão de bastar-se a si. Onisciente
somente até os limites da sua própria consciência individual,
e diante da desintegração da identidade da experiência
encontra-se constrangido de antemão à ficção do relato,
entrelaçado, tal como seus personagens, num labirinto junto
à composição profunda do problema do ser humano, com
as arcaicas confusões acerca do interior e do exterior, com a
confusa racionalização objetivamente ludibriadora do ter e
do ser – ele narra uma história que “exige muito da força
espiritual do auditório”1, como diz; diante dos destroços do
ente, pelo curso inquieto e pelos meandros ilimitados da sua
linguagem, o narrador não garante desde cedo as suas
palavras num encadeamento lógico, en-cadeamento segundo
o qual elas só serão audíveis em compasso com a disposição
daqueles a quem foi dado escutá-las, ou lê-las, mas
certamente aquém da resolução dos antagonismos acerca
dos quais, entretanto, elas já não podem escapar. E é através
dessa afirmação do narrador, que ele “destrói no leitor a
tranquilidade contemplativa diante da coisa lida”2. Thomas
Mann parodia com a troca das cabeças não apenas o
positivismo lógico, o encadeamento causal dos adventos
como se fossem ocorrências neutras e conectadas sem
assombro, mas o próprio princípio geral da dominação, “o
encanto da natureza dominada”,3 sob o qual se prolonga
historicamente a opressão contra o não-idêntico. O esquema
sob o qual as personagens Shridaman e Nanda se instituem

1MANN, Thomas. As cabeças trocadas. Uma lenda indiana. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 2000, p. 07.
2ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In
Notas de literatura I. São Paulo: Duas cidades/Ed. 34, 2003, p. 61.
3ADORNO, Theodor. Dialética Negativa, p. 225. [“Das Bewusstsein der
Kausalität ist (...) objektiv und subjektiv, der Bann der beherrschten Natur“.]
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 11

de certa forma desde o nascimento, que os abriga e que os


difere, e que não estanca com a morte, respeita em seus
interstícios narrativos a compreensão e a pressuposição de
que a força compulsiva da identidade se apresenta por meio
da abstrata comensurabilidade e apropriação do não-
idêntico. Ali a lei geral da troca é modus. Assim se apresentam
na obra as consequências históricas do mito do
esclarecimento. O movimento processual que culmina
tragicamente no rearranjo e na reunião das cabeças com os
troncos, precedido pelos cortes, guarda um momento
suspenso. Uma passagem pelo silêncio. Uma ausência
presente na novela. Nesse ínterim, logo opera uma dialética.
Ela deixa antever algo que inevitavelmente se perde quando
o narrador não obstante continua a narrar. Mas antes ele
conta que: “Após Schridaman ter proferido essas palavras
obscuras, ergueu a espada do chão e decepou a própria
cabeça do tronco./ Isso foi dito rapidamente, e não menos
rapidamente foi feito”.4 E só por um instante; ainda não
estava convencido pela palavra acolhida e fatidicamente
transformada em uma só coisa com o que enuncia. O
narrador, ali, cala. Foi algo assombroso. Um ato quase
irrealizável. Incomum. “Num abrir e fechar de olhos ele
efetuou a cruel imolação”. Abandonado à Deusa por um
instante ficou Schridaman, deixado pelo narrador. –
Recapitulado, o binarismo da oposição ocidental entre
mente e corpo, por exemplo, ao mesmo tempo em que serve
de pretexto para o vínculo espiritual entre o ocidente e o
outro, (já que trata essa novela de “uma lenda indiana”) se vê
“representado” com a “representação” do outro e, mesmo
fantasticamente, em trajes e com sotaque diferente, o
narrador estende-se sobre os corpos das personagens e
guarda-os. E o curso das aventuras que correm até a
desventura que constrange o narrador, pode ser percebido
através da disposição dos corpos sobre a ambiguidade, sob

4 MANN, Th. As cabeças trocadas, p. 45.


12 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

as ilusões da existência. Mas, entre o desprendimento de si,


que é a consequência fatídica dos desejos de troca cultivados
pelos amigos, e a reunião heterofágica segundo a qual a
individuação reforma um todo, “sob gemidos e suspiros e à
custa de inomináveis sacrifícios”5 – em decorrência não de
uma solidariedade, mas de interesses antagônicos que
aspiram realizar o absoluto na identidade, tal como se
configura progressivamente, graças à alienação e sob
camadas profundas, a integração da sociedade ocidental e as
evidências da sua desintegração – oculta-se a obsessão lógica
que norteia o pensamento ocidental ainda imensamente
impressionado com as possibilidades de triunfo. “A história
de Sita”6, que em verdade é a história de Shridaman e Nanda,
principalmente, da sua cumplicidade e da sua irmandade até
os limites em que os seus corpos podem aceitar, traz à tona
o ponto cristal da sua articulação, uma camada sutil através
da qual a anêmica boa consciência encontra-se presa, atada
com ambas as mãos na engrenagem da coisificação social à
qual a novela se refere também parodicamente. O
deslumbramento com os poderes do logos até o momento em
que “isto é aquilo”7 carrega o peso oco que resta da
decomposição fática do sujeito, depois que o instante da
morte passou. É o cisco no olho que incomoda sempre a
filosofia que nega estar imiscuída internamente à vida
danificada, assombrada pela onipotência do pensamento,
esse momento em que o outro é já o mesmo – logicamente
deduzido, torna idêntica a forma à sentença para vivê-lo
realmente, para correspondê-lo, “cortando a priori a
possibilidade da diferença, que se degrada em mera nuance

5ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo: Editora UNESP,


2008, p. 128.
6 MANN, Th. As cabeças trocadas, p. 07.
7 Idem, ibidem, p. 08
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 13

no interior da homogeneidade”8 – num movimento de mera


repetição, tal como aquele em que estavam apresados os
amigos inseparáveis. Devido a sua transformação em
membro inominado de uma sociedade num todo atada
conforme o modelo do ato de troca, o ocaso do indivíduo
apresenta-se sob o primado da identidade e sob o projeto
hegemonicamente endossado de aniquilação da alteridade. O
mito se reconhece frente ao escândalo do indiferenciado.
Seria pertinente nesse momento parafrasear, caso a
predominância da angústia frente a situação anímica que se
escancara não tivesse jurado fidelidade ao esquema que
mantém apaziguada e quieta a sociedade atual, se diante de
um acontecimento infinitamente maior do que a capacidade
de um homem representá-lo e mesmo de suportá-lo, em toda
sua abstração, como no caso do encontro com o terrível, por
exemplo – se conviria a esse respeito falar de “quietude
acolhedora”9. Essa é uma pergunta com a qual teve que se
deparar o narrador. Assim vislumbrar-se-ia a ironia em
Thomas Mann. No caso dos fluxos sanguíneos que
transcorreram entre as veias dos amigos Shridaman e Nanda
após o corajoso instante de silêncio do narrador, o estreito
limite entre padecer à desarticulação e o trabalho para
restituir-se, rearticular-se, respeita o vínculo com a situação
estética na qual está construída a narrativa. Os esforços para
prender, para recolher, no berço aconchegante e
neutralizador da diferença – berço neutralizador do
escândalo ao qual se submetem um diante do outro, e por
isso cooptando o outro injustificadamente por meio desse
movimento, os esforços apaziguadores que culminaram
historicamente na perda da aura que imantava a obra de arte
antes da era da sua reprodutibilidade técnica, nos termos em
que fala Walter Benjamin – expõem na novela sobre a

8 ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas: crítica


cultural e sociedade. São Paulo: Ed. Ática, 1998, p. 09.
9 MANN, op. cit. p. 15.
14 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

fungibilidade das cabeças as suas consciências históricas,


segundo o tom fantástico e um silêncio, a cuja tensão a
narrativa é elevada. Mas os esforços para aconchegar os
fluxos que transcorrem entre os diferentes, permeados e
contaminados, um com o sangue do outro, lograram digeri-
los – apesar da diferença e das forças que restavam em
oposição a tal identificação subsidiada pela compreensão
conciliadora da realidade. A vitalidade moribunda da cultura
ocidental e o caráter mortal do pensamento que ecoa na
novela Cabeças trocadas estendem-se até a teoria do
conhecimento regida pela separação entre sujeito e objeto. E
o homem, enclausurado como uma pedra à fungibilidade
universal, só abstratamente, em seus espaços de manobra,
pode esquivar-se, preservando-se, do escândalo em que
participa como personagem principal, oferecido em
espetáculo para si mesmo. Inapreensível à teorização,
contudo, o próprio do escândalo é não deixar incólume, não
poder preservar a si perante ele; e, pois, não obstante as
defesas e os mecanismos que venham a ser erigidos para
renovar a ferida, ainda que estes corpos sejam restaurados,
rearticulados, algo permanece: a experiência do sofrimento
permanece. A débil consciência de si no limiar do corpo que
se restabelece não forma unidade com o refluxo de sangue
ao longo das veias. Recoberto de cinzas, o narrador assim
não deu por encerrada a sua tarefa de narrar. Aqui, isso
provoca exceções ao estado de exceção. O mundo em que
vivemos, mundo que é como é. Resignado. Administrado.
Encantado. A paródia da troca, que antecede e sucede o
corte, o abismo narrativo, intervala a abstração de si e a
suspensão da vida a que estamos submetidos no seio da
cultura ocidental.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 15

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas:


crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e
Jorge Almeida. São Paulo: Ed. Ática, 1998.
________. Dialética Negativa. Trad. Marco Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
________. Introdução à sociologia. Trad. Wolfgang Leo Maar.
São Paulo: Editora UNESP, 2008.
________. Posição do narrador no romance contemporâneo. In
Notas de literatura I. Trad. Jorge Ameida. São Paulo:
Duas cidades/Ed. 34, 2003.
MANN, Thomas. As cabeças trocadas. Uma lenda indiana. Trad.
Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
O pensar constelacional de
Walter Benjamin e Theodor W.
Adorno
Bruna de Oliveira Bortolini1
Dedicar-se à investigação do termo constelação
(Sternbild) presente na filosofia de Theodor W. Adorno, em
específico na Dialética Negativa2, é, antes de qualquer
definição, compreender o sentido que este termo assume na
filosofia de Walter Benjamin. Pois é a partir de Benjamin e
da abordagem que ele atribui ao termo que Adorno irá
desenvolver sua própria concepção a respeito do tema. Para
isso é importante observar que antes do termo constelação
constituir-se como elemento teórico, segundo Kothe3, ele é
princípio básico da construção do pensamento destes
autores.
Neste sentido, o interesse em estudar a constelação
pelo viés da Dialética Negativa de Adorno, é que este termo,
empregado em sua teoria sob a clara influência de Benjamin,
provoca uma mudança estrutural na concepção tradicional
de filosofia. Inclusive causando uma ruptura radical na forma
em que os conceitos são convencionalmente concebidos
pela tradição. Isso porque o pensamento formulado com
base na ideia de constelação não segue um caminho seguro
de acesso aos objetos de seu conhecimento, mas opera por
desvios. Ou seja, constitui-se a partir de uma dinâmica inter-
relacional ao invés de seguir princípios causais. Razão pela

1Mestranda do programa de pós-graduação em Filosofia da Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
2ADORNO, W. T. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009.
3KOTHE, F.R. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1976, p. 27.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 17

qual as questões que norteiam este estudo se dão da seguinte


forma: qual o uso filosófico que Benjamin dá ao termo
constelação? De que forma Adorno integra esse termo em
sua filosofia? E quais os motivos que o levam a isso?
Para responder tais questões deve-se ter em mente o
desconforto de ambos os autores com a ideia de filosofia
enquanto sistema fechado baseada na pretensão de explicar
a verdade como totalidade, conforme o princípio de
identidade. Pois, tanto para Benjamin como para Adorno, o
pensamento em seu exercício tem de lidar com o movimento
e isto pressupõe muitas vezes não seguir a lógica intencional
com que o sujeito gostaria de construir seu argumento.
Evitando, desse modo, conceber a verdade como algo
pronto e acabado.
Portanto, coloca-se como objetivo principal desse
estudo investigar o modo como ambos os autores
desenvolvem suas críticas em torno da ideia de filosofia
enquanto sistema fechado e como, para isso, articulam a
ideia de constelação. Para esclarecer essas perspectivas,
propõe-se retomar o pensamento de Benjamin, a respeito de
sua teoria do conhecimento em conjunto com a crítica
empreendida por Adorno na Dialética Negativa ao sistema
idealista clássico.

***
O termo constelação surge, em Walter Benjamin,
pela primeira vez no Prefácio4 de sua tese de livre docência
sobre o drama barroco alemão, de 1924. Neste trabalho,
Benjamin integra, de forma remodelada, elementos da
filosofia de Kant e Platão com os quais irá formar a ideia de
constelação. Ele inicia sua abordagem realizando uma crítica

4 BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico. In: _____. Origem do


drama trágico alemão. Trad. de João Barrento. – 2 ed. – Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013, p. 15 – 47.
18 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

esboçada anos antes em sua obra O programa de uma filosofia


vindoura5, de 1918, ao conceito kantiano de experiência. Para
Benjamin, segundo Buck-Morss6, Kant, depois de Platão, foi
o único filósofo dedicado à justificação do conhecimento.
Porém, mesmo que se reconheça este esforço a Kant, o uso
limitado do conceito de experiência em sua teoria, a partir de
uma visão científica de mundo, clamava por uma forma
ampliada de compreensão. Em vista disso, Benjamin, na
tentativa de salvar tal conceito de usos instrumentais,
contrapõe em sua tese, à concepção kantiana de experiência,
uma experiência filosófica dedicada à apresentação da
verdade. Pois, para ele, é “próprio da literatura filosófica o
ter de confrontar-se a cada passo com a questão da
apresentação”7. Assim, a ideia de uma experiência filosófica
legítima só seria possível por meio do exercício filosófico da
apresentação de ideias e não como experimento científico.
Porém, é fundamental reconhecer que a grande diferença
entre estas duas concepções, de Kant e Benjamin, se dá na
medida em que: a primeira ocupa-se de apreender o mundo
a partir de estruturas conceituais próprias, e a segunda
dedica-se a construção de ideias, a partir de uma estrutura
determinada pelos próprios fenômenos, segundo sua “lógica
interna”. Desse modo, Benjamin faz uma inversão da teoria
Platônica das ideias, ao afirmar que elementos mais
particulares e mutáveis constituem-se como a essência das
ideias, ou seja, determinam a estrutura do discurso.
Esta critica benjaminiana à categoria da experiência
é, portanto, o primeiro passo para se compreender a ideia de
constelação. Ao posicionar a experiência filosófica como
exposição da verdade, e não mais como experimento

5 Idem, 1970.
6BUCK-MORSS, Susan: Origen de la dialéctica negativa. Theodor W.
Adorno, Walter Benjamin y el Instituto de Frankfurt. Trad. Nora
Rabotnikov Maskivker. Buenos Aires: Eterna Cadencia 2011, p. 194.
7 BENJAMIN, 2013, p. 15.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 19

científico, Benjamin conserva aos fenômenos sua liberdade.


Segundo o autor, no processo do conhecimento, os
fenômenos não seriam mais submetidos às regras do
conceito. Os conceitos não teriam mais o caráter de verdade
abarcadora, pois seriam mediadores entre fenômenos
empíricos e ideias. Sua tarefa estaria na “salvação dos
fenômenos e a apresentação das ideias”8. Quer dizer, o
conceito não se apropriaria mais dos fenômenos eliminando
sua particularidade em prol de um universal. Ao conceito,
caberia apenas, por meio da exposição filosófica, extrair os
elementos extremos que compõe os fenômenos em suas
mais ínfimas relações. Tornando possível sua redenção ou
participação no âmbito das ideias. As ideias, neste ponto, se
assemelhariam a constelações eternas. Pois, assim como na
constelação, os elementos extremos, chamados estrelas,
postos em relação, determinam a sua aparição. Como afirma
o autor:
Os fenômenos, porém, não são assimilados pelo
reino das ideias de forma integral, na sua mais rude
configuração empírica, misturada com a aparência,
mas apenas salvos, nos seus elementos básicos. Eles
desfazem-se de sua falsa unidade para, assim
divididos, poderem participar da unidade autêntica
da verdade. Nesta sua divisão, os fenômenos
subordinam-se aos conceitos. E são estes que
dissolvem as coisas nos seus elementos
constitutivos. As distinções conceituais só estão
acima de qualquer suspeita de sofismas destrutivos
se o seu fito for o de salvar os fenômenos nas ideias.
[...] O papel mediador dos conceitos permite que os
fenômenos participem do ser das ideias9.
Neste processo, ao sujeito fica a tarefa de expor a
relação entre os fenômenos de modo que configure uma

8 BENJAMIN, 2013, p. 23.


9 Ibidem, p. 21-22.
20 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

ideia. Semelhante à tarefa do astrólogo que, ao perceber a


relação entre as estrelas, nos dá a imagem de uma
constelação. Conforme as palavras de Benjamin, “as ideias
relacionam-se com as coisas como as constelações com as
estrelas”10. Assim, o autor empreende sua crítica ao sistema
idealista que considera a verdade e o ser como algo único,
absoluto e não empírico.
O pensar por constelação é, então, um pensar que
nasce da quebra. Ou seja, um pensamento que germina da
ruptura entre a correspondência imediata do conceito com o
objeto. E só pode ser compreendido a partir das relações que
estabelece com o que está em seu entorno – assim como na
ideia de um mosaico ou de um quebra-cabeça, onde para
revelar sua condição é preciso encaixar suas peças, seus
particulares. E para formar sua imagem, esses particulares
somente serão possíveis de se unir se obedecerem a uma
estrutura lógica das peças e não apenas a vontade do sujeito.
Ou conforme Adorno, só serão compreendidos se
percebidos como “momento particular em sua conexão
imanente com outros momentos”11.
Adorno, por sua vez, irá traduzir o termo
constelação no conhecimento do processo que o objeto ou
fenômeno, em sua constituição, acumula em si. Pensar por
constelação, para ele, “significa decifrar aquilo que ele
[objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”12, ou seja,
está intimamente vinculado a uma noção de historicidade.
Assim, o pensamento teórico, enquanto constelação,
“circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando
que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-
fortes bem guardados: não apenas por meio de uma única
chave ou de um único número, mas uma combinação

10 loc. cit.
11 ADORNO, 2009, p. 30.
12 Ibidem, p. 141.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 21

numérica”13. Isto é, os elementos que compõe o objeto


investigado devem dialogar na intenção de revelar seu
conteúdo profundo, impossível de ser percebido a partir de
uma observação superficial. No método constelar, as
contradições do objeto, portanto, não necessariamente
precisam ser resolvidas. Visto que, ao estarem em constante
tensão com suas múltiplas determinações, seguem seu
próprio mecanismo interno e não necessitam de um
ordenamento intencional dado pelo sujeito. Ao sujeito cabe
apenas narrar e interpretar o que foi exposto a partir de suas
variáveis através de uma “contemplação sem violência”14,
pela razão de não haver assimilação total do objeto e por
onde emana o gozo da verdade.
Desta forma, o termo constelação, de acordo com
Buck-Morss15, torna-se, na filosofia de Benjamin e
principalmente na de Adorno, uma ferramenta para o saber
materialista e para a verdadeira dialética. No processo de
construção das ideias, “o pensamento volta continuamente
ao princípio, regressa com minúcia à própria coisa”16, ou seja,
retorna ao fenômeno sem fechar a continuidade do
pensamento desenvolvido. Isto quer dizer que: a filosofia só
pode se dar enquanto exercício de interpretação dos
fenômenos e não como coleta e classificação de dados num
conceito superior definitivo. Pois a definição total é, para ela,
autodestruição.

***
Adorno influenciado por Benjamin ao afirmar em
seu texto A Atualidade da Filosofia que “quem hoje em dia

13 loc. cit.
14 Idem, 2001, fragmento 54, p. 78.
15 BUCK-MORSS, 2011, p. 194.
16 BENJAMIN, 2013, p.
22 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

escolhe o trabalho filosófico como profissão, deve, de início,


abandonar a ilusão de que partiam antigamente os projetos
filosóficos: que é possível, pela capacidade do pensamento,
se apoderar da totalidade do real”17, confronta a filosofia
tradicional fundamentada na ideia de uma razão soberana.
Na percepção de Adorno, ao apresentar-se como força
determinante de toda a realidade, tal razão subordina os
objetos concretos a conceitos gerais, eliminando com isso a
contingência que os envolve e ignorando o caráter temporal
que lhes é intrínseco. Isso é para ele um problema. Pois se a
realidade com seus fenômenos e objetos é temporal, ou seja,
sujeita a mutações e imprevistos, como poderá ser abarcada
em um conceito superior e determinante? No mínimo, o
conceito deveria também passar por mutações. Nunca
fechar-se em si mesmo. E assim, o que se tornaria “urgente
para o conceito é o que ele não alcança”18.
Concepção que vai de encontro a toda filosofia dos
gregos até o idealismo alemão, em especifico Hegel. Em
Hegel, a ideia de uma razão soberana, se dá segundo
Ferreira19, pelo terceiro termo. Ou seja, pela síntese do
processo dialético, que não surge como correção do teor dos
argumentos utilizados, mas como a negação da negação da
tese, onde os momentos anteriores aparecem superados e
guardados. Diferentemente de pensadores como Platão,
Aristóteles e os estoicos, que pensavam a dialética como
sendo a arte do diálogo, onde por meio da exposição de
oposições, fosse possível construir ou defender uma tese,
oferecendo ao mesmo tempo a distinção dos conceitos
envolvidos. Pois, conforme afirma Hegel: “o método da
verdade, que concebe o objeto, é sem dúvida, como já foi

17ADORNO, T. W. Actualidad de la filosofia. Barcelona: Paidós, 1991, p.


73.
18 Idem, 2009, p. 15.
19FERREIRA, F.G. A dialética hegeliana: uma tentativa de compreensão.
Porto Alegre: Revista Estudos Legislativos, 2013, p. 167-184.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 23

demonstrado, analítico ele mesmo, pois permanece


absolutamente no conceito; porém é ao mesmo tempo
sintético, pois por meio do conceito, o objeto está
determinado dialeticamente e como outro”20.
No pensamento hegeliano, portanto, a realidade é
exposta como uma totalidade da qual os conceitos
constituem-se em traduções efetivas construídas a partir do
movimento mediador que o pensamento realiza
dialeticamente. Ou seja, o sujeito ao deparar-se com o objeto
em sua pluralidade de sentidos, no conjunto de todas as suas
possibilidades, faz o exercício intencional do pensamento
com a pretensão de conhecê-lo ou determiná-lo. Neste
exercício, o sujeito transforma a pluralidade do objeto em
identidade. Esta identidade refere-se a tudo aquilo que ele é
capaz de imprimir ao objeto, conforme suas categorias
subjetivas e de modo determinante, remontando o conceito
do primado do sujeito, que remete a uma consciência
subjetiva e doadora de sentido. Para Adorno, a dialética em
sua forma idealista é “articulada com a predominância do
sujeito absoluto como a força que produz negativamente
todo o movimento do conceito e o seu caminho no
conjunto”21. Tal sujeito é aquele que através de seu
pensamento irá transformar as características não idênticas
do objeto em algo identificável.
Seguindo a lógica deste sistema, então, tudo aquilo
que não é possível de identificar, aqueles elementos que
escapam à malha conceitual do pensamento, apresentam-se
como contradição. “Tudo o que é diferenciado aparece
como divergente, dissonante, negativo, até o momento em
que a consciência, segundo a sua própria formação, se vê
impelida a impor unidade”22.

20HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Lógica. Tomo II. Ed. Hachette: Buenos


Aires, 1974, p. 576.
21 ADORNO, 2009, p. 14.
22 Ibidem, p. 13.
24 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Desta forma, contrapondo o pensamento hegeliano,


Adorno irá concluir que a resposta para a questão de como
abarcar a temporalidade do real, num conceito superior e
determinante, é impossível. Pois o conceito sempre será
insuficiente para dizer a essência, a concretude do real. Ao
integrar os objetos num conceito superior, Hegel apenas
ocupa-se daquilo que eles possuem em comum uns com os
outros. Esquecendo-se, com isso, de tratar as singularidades
do objeto, suas diferenças e possibilidades de transformação,
as quais são tão importantes quanto aquilo que lhes é comum
para poder conhecê-los verdadeiramente.
Para Adorno, um pensamento que pretenda
conhecer a essência dos objetos que investiga deve ir além
da integração da experiência do real num princípio
unificador. Deve ultrapassar a esfera dos conceitos,
reconhecer suas carências e perceber que ele não é capaz, em
sua forma fechada, de abarcar a totalidade das coisas, pois
deixa de fora aquilo que não consegue identificar. Para ser
total, ele tem que admitir o “não identificável”. A pretensão
de totalidade da verdade que se limita ao conceito, “apesar
de sua abrangência abstrata, não pode ter nenhum outro
cenário se não aquilo que o conceito reprime, despreza e
rejeita”23. Desta forma, questiona-se, será que uma totalidade
realmente verdadeira não deveria incluir até mesmo aquilo
que escapa ao conceito? Como é possível uma totalidade
parcial? Uma totalidade excludente? Perante esses
questionamentos, é possível encontrar em Adorno, através
da sua dialética negativa, empreendida de modo
constelacional, um pensamento indispensável ao exercício
vivo e contínuo da filosofia. Um pensamento capaz de
preservar a sua razão de existir, por não se deixar seduzir pela
ideia de totalidade como identidade.
Contudo, é indispensável frisar que Adorno ao
voltar-se criticamente à tradição filosófica, revelando alguns

23 ADORNO, 2009, p. 17.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 25

de seus pontos frágeis, não está com isso desmerecendo a


filosofia empreendida até então. Menos ainda empregando
juízo de valor. Pois reconhece a importância da tradição
filosófica para o pensamento ocidental, inclusive para a sua
própria Teoria Crítica, a qual não seria possível da maneira
como é realizada sem antes ter passado por aquilo que lhe é
anterior.

***
Frente ao desafio deixado pelo idealismo clássico,
depois deste “quebrar a promessa de coincidir com a
realidade ou ao menos de permanecer diante de sua
produção”24, resta agora à filosofia “criticar a si mesma sem
piedade”25. E por essa razão, “a filosofia que um dia pareceu
ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de
sua realização”26.
Conforme Tiburi, Adorno “mergulha na escuridão
da própria filosofia”27, justamente por não tratar de um
“ponto de vista”, mas por realizar a “crítica imanente a uma
filosofia que lhe é anterior, sendo assim, dela dependente”28.
Após assinalar os equívocos de Hegel, que afirma realidade
e razão como correspondentes, Adorno, sem colocar-se em
uma posição superior, irá lutar por uma filosofia capaz de se
auto criticar. Questionando seus princípios mais básicos,
com a intenção de que algo digno possa surgir dessa
interrogação.

24 Ibidem, p. 11.
25 loc. cit.
26 loc. cit.
27TIBURI, M. Uma outra história da razão. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2003, p. 24.
28 TIBURI, 2003, p. 28.
26 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Então, a Dialética Negativa de Adorno, nasce como


resposta à Dialética Positiva de Hegel. A razão não aparece
mais como a detentora da verdade do objeto, pois será
exatamente o objeto quem irá dar motivo à dialética, ou seja,
provocar o seu movimento. Nesse sentido, o processo de
mediação sugere “algo que pode remeter para além da
identificação, como um modo de o pensamento
experimentar as contradições na própria coisa”29. Isso
corresponde ao ato de pensar a realidade a partir do ponto
de vista da coisa em que o pensamento se assume como
contradição. Conforme Adorno,
A imediatidade não é nenhuma modalidade,
nenhuma mera determinação do como para uma
consciência. Ao contrário, o conceito de
imediatidade designa objetivamente aquilo que não
pode ser alijado pelo conceito hegeliano. A mediação
não significa de maneira nenhuma que tudo é
absorvido nela, mas postula que aquilo por meio do
que ela é mediada é algo que não se deixa absorver;
a própria imediatidade, porém, representa um
momento que não carece do conhecimento, da
mediação, como essa mediação carece do imediato30.
Com isso, Adorno, intimamente ligado à teoria
Benjaminiana da exposição da verdade, desmonta a ideia de
uma subjetividade constitutiva, ou seja, com uma
consciência doadora de sentido, que reduz o conteúdo do
objeto ao âmbito de suas determinações. Ao mesmo tempo,
denuncia a filosofia de Hegel de se apoiar num “jargão” de
concretude, pois a realidade é independente e jamais pode
coincidir em plenitude com a razão. Para Adorno, o real não
é racional porque escapa ao conceito que, apesar de
necessário, carrega em si sua própria contradição. Com isso,
o autor atenta para o primado do objeto, o qual não irá anular

29 Ibidem, p. 29.
30 ADORNO, 2009, p. 149.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 27

a razão ou servir de substituto para uma filosofia antes


sustentada no primado do sujeito. Ao invés de o sujeito
projetar no objeto seu pensamento, ele dedica-se ao
exercício de tentar realmente compreender o significado do
objeto e deixa de voltar-se ao mesmo, para encarar o
diferente. “[Tornando-se] verdadeiro pela marcha de seu
pensamento, que o leva para além de si mesmo e não pela
obsessão em buscar seus fundamentos como se fossem
tesouros enterrados”31. O sujeito, no encontro com o objeto,
ao perceber que não pode captar toda sua verdade, coloca-
se em processo contínuo de reflexão, movimento
fundamental para a construção de conhecimentos. A
dialética negativa constitui-se, portanto, “no esforço para
dizer alguma coisa, de que não conseguimos falar; ajudar o
não-idêntico a encontrar sua expressão”32.
Nesse sentido, para Adorno, diferentemente de
Hegel, “pensar é, já em si, antes de todo e qualquer conteúdo
particular, negar, é resistir ao que lhe é imposto”33. Na
tradição filosófica se tem a ideia de pensar para afirmar e,
com esta crença, “naturalizar” o pensamento positivo para
construir a cultura. Entretanto, para que isso se torne
possível, é preciso tirar a liberdade do objeto de maneira que
ele possa ser incorporado no sentido de utilidade. Mas, como
se pode empreender uma dialética em seu sentido negativo?
Como devolver ao objeto a sua liberdade? A resposta dessa
questão formula-se, como enunciado anteriormente, pela
crítica do conceito. A dialética negativa irá desdobrar-se de
tal forma que o conceito passa a deparar-se com o não-
idêntico, sem ser capaz de reduzi-lo à sua identidade. Para
Adorno, a filosofia tem de realizar o “esforço de ir além do

31ADORNO, T. W. O ensaio como forma. In: _____. Notas de literatura.


Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: editora 34, 2003, p. 30.
32 Idem, 2009.
33 Ibidem, p. 25.
28 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

conceito por meio do conceito”34. Isso porque na tradição


do pensamento, o conceito, para constituir-se enquanto
total, tem que extirpar de si aquilo que não é causal. No
entanto, essas coisas excluídas, do âmbito do conhecimento,
voltam para atormentar o pensamento. Nesse ponto, ou a
razão torna-se irracional ou volta-se para si mesma
reformulando-se.
A dialética negativa ao falar do não-idêntico, de
acordo com Souza, constitui-se, portanto, “na negação da
mera linearidade discursiva; [pois é] antes constelações de
categorias e articulações de sentido extremante sutis que
espelham também por sua estrutura [...] aquilo que fazem
referência”35. Assim, a constelação se dá, no pensamento de
Adorno, quando este se propõe a pensar o heterogêneo.
Com essa ideia, todo conceito novo, ao ser construído, deve
ser marcado pela tensão de sua transitoriedade e não pela sua
forma fechada. Pois, conforme Selligman, “o conceito existe
de modo dinâmico e na sua relação múltipla com os
contextos"36 não pode, ao tentar se aproximar da verdade,
desvincular-se disso.

***
As reflexões de Adorno na Dialética Negativa realizam
uma crítica imanente ao sistema atemporal e fechado, do
pensamento idealista, que se revela incapaz de explicar o real.
O filósofo expõe a necessidade de uma reformulação do
pensamento, capaz de renovar a si mesmo, colocando-se sob
o viés da crítica. Frente a este desafio, o ato de pensar, para

34 Ibidem, p. 22.
35 SOUZA, R. T. Razões Plurais: itinerários da racionalidade ética no
século XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rozensweig. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 95.
36SELIGMANN, S. M. A atualidade de Walter Benjamin e Theodor Adorno.
– 2ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 35.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 29

Adorno, deve-se formular por constelações, entendendo os


conceitos como fragmentos da verdade e não como
totalidade abarcadora.
A relação entre o pensamento de Benjamin e Adorno
surge desse contexto, no qual a constelação constitui-se
como forma de pensar os fenômenos do mundo e que, ao se
deparar com as contradições desses fenômenos, não se vê
impelida a pôr uma ordem. Ao invés disso, conserva a
contradição, pois sabe que ela é fonte de um pensar lúcido e
ciente de suas carências. O pensar por constelação reconhece
que o objeto em si já possui um sentido que se revela, de
forma plural e irredutível, apenas por meio da contemplação
sem violência. Tanto para Adorno quanto para Benjamin, ao
sujeito cabe apenas narrar a história de suas relações, sem
impor uma definição de sentido. Sendo assim, a
interpretação dos fenômenos, pelo sujeito, assume um papel
fundamental na teoria dos autores de forma a “ligar as frases,
ligar as questões e as palavras para compor uma imagem que
aparecerá num instante de fulguração da verdade contida em
suas relações”37. Neste processo, a ideia de causalidade não
comanda o desenvolvimento da investigação. Antes que se
estabeleça uma relação lógica e ordenada de sentido, é
preciso que o sujeito se envolva com o contexto daquilo que
investiga, percebendo os vários extratos de sua significação,
sem sobreposições.
Ao saírem em defesa de um pensamento
constelacional, Benjamin e Adorno ressaltam a importância
de um distanciamento da filosofia como sistema. Pois, para
ambos, é de grande relevância, num mundo tão plural e
dinâmico, uma racionalidade capaz de acolher a diferença e
de reconhecer-se insuficiente; tornando-se crítica de si
mesma e, finalmente, podendo oferecer visões mais
esclarecidas de mundo a partir de contextos diversos.

37 TIBURI, 2003, p. 59.


30 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Referências

ADORNO, W. T. Actualidad de la filosofia. Barcelona: Paidós,


1991.
_____.Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009.
_____. Mínima Moralia. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições
70, 2001.
_____. O ensaio como forma. In: _____. Notas de literatura.
Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: editora 34, 2003.
BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico. In: _____.
Origem do drama trágico alemão. Trad. de João Barrento.
– 2 ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p.
15 – 47.
_____. Sobre el Programa de la Filosofia Futura. In: Sobre el
Programa de la Filosofia Futura y otros ensayos. Trad.
Roberto J. Vernengo. Caracas: Monte Avila Editores,
1970.
BUCK-MORSS, Susan: Origen de la dialéctica negativa. Theodor
W. Adorno, Walter Benjamin y el Instituto de
Frankfurt. Trad. Nora Rabotnikov Maskivker. Buenos
Aires: Eterna Cadencia 2011.
FERREIRA, F.G. A dialética hegeliana: uma tentativa de
compreensão. Porto Alegre: Revista Estudos
Legislativos, n.7, 2013, p. 167-184.
HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Lógica. Tomo II. Ed.
Hachette: Buenos Aires, 1974.
KOTHE, F.R. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro: Editora
Francisco Alves, 1976.
SELIGMANN, S. M. A atualidade de Walter Benjamin e Theodor
Adorno. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 31

SOUZA, R. T. Razões Plurais: itinerários da racionalidade


ética no século XX: Adorno, Bergson, Derrida,
Levinas, Rozensweig. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004.
TIBURI, M. Uma outra história da razão. São Leopoldo:
Editora Unisinos, 2003.
O trabalho do negativo em
Adorno: do Processo
Sublimatório ao Real.
Bruna Nery Pormann1

A influência de Freud em Adorno

A psicanálise tem papel de fundamental importância


na formação do pensamento de Adorno. A relação entre
sujeito e sociedade e formação da personalidade foi
amplamente trabalhada por Freud e vem a ter bastante
influência na obra “Dialética Negativa”. Uma vez que
Adorno traz a cultura como fator massificante dos sujeitos,
os levando a uma espécie de alienação.
Para Freud, a civilização consiste em uma constante
repressão aos instintos. O que pode ser visto entre a
oposição dos princípios do prazer e da realidade. Quando o
sujeito se insere na cultura, ele tem como condição imposta
a repressão do princípio do prazer, bem como a libido e a
total satisfação de seus desejos. A repressão toma lugar de
alicerce na formação cultural. Freud explicita isso no
seguinte trecho do texto “O Mal-Estar na Civilização” 2:
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não
apenas à sexualidade do homem, mas também à sua
agressividade, podemos compreender melhor
porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na
realidade, o homem primitivo se achava em situação
melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em

1Mestranda do Curso de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica


do Rio Grande do Sul, PUCRS.
2FREUD, S. (1930). O Mal-Estar na Civilização. Sigmund Freud Obras
Completas. Vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 33
contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa
felicidade, por qualquer período de tempo, eram
muito tênues. O homem civilizado trocou uma
parcela de suas possibilidades de felicidade por uma
parcela de segurança.
Desta forma, ficam postos a interação e o confronto
existente entre indivíduo e cultura, o que vem a ter grande
ressonância na obra de Adorno. Assim, quando o sujeito está
inscrito numa civilização já tem como ponto de partida o
sacrifício, uma vez que seria psicótico negar-lhe a existência.
Porém, quando a cultura toma caráter repressor, tanto no
âmbito dos instintos pessoais como repressão social e
histórica, temos que poder ativar o modo crítico de entendê-
la.
Assim, a repressão é entendida e aceita como fator
permanentemente existente quando se trata do conflito entre
princípio do prazer e princípio da realidade. Com isso,
resulta um conceito chave, tanto para a obra de Adorno,
quanto para a psicanálise de maneira geral: o inconsciente e
o retorno do reprimido. Assim, o inconsciente é formado
pelas experiências de satisfação vivenciadas na infância e
pelo princípio do prazer que não pode ser realizado e, que
dessa forma, pode retornar. Dessa maneira, o retorno do
conteúdo reprimido pode, então, representar uma ameaça a
sociedade. No entanto, para Freud, o sujeito assume essa
posição de renúncia para poder levar uma vida em sociedade,
para fazer parte da cultura e de seus benefícios. A felicidade
que seria a realização total dos desejos, é substituída pela
necessidade de se manter em segurança e vivendo de acordo
com as “regras” impostas pela civilização.

A importância da sublimação na constiuição da


civilização

Uma das formas que os sujeitos encontraram para


poderem se adaptar a ideia de civilização, e portar-se de
34 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

maneira a não se tornar uma ameaça, foi através da


sublimação. Esse é um mecanismo de defesa presente em
todos os indivíduos, mas que, no entanto, é mais utilizado
pelos sujeitos que são dotados de uma estrutura de
personalidade mais neurótica, a qual Bergeret 3descreve
como
O essencial pode resumir-se à expressão simbólica
dos sintomas, bem como à realização de um
compromisso entre pulsões e defesas, ao estatuto
intrapsíquico do conflito entre o ego e o id, ao
aspecto parcial das regressões e fixações, ao caráter
objetal da libido, que nunca é muito desinvestido, às
funções do fantasma que deforma a realidade sem
jamais nega-la.
Com isso, o autor nos mostra que, a possibilidade de
fazer uso da sublimação encontra-se em pessoas cuja
estrutura de personalidade é mais organizada e onde a libido
não está fixada em uma fase tão primitiva. Uma vez que, se
falássemos em sujeitos psicóticos, na maioria das vezes, o ato
sublimatório daria espaço para o ato propriamente dito.
Assim, pode-se dizer, segundo as ideias de Freud,
que a civilização não comportaria os sujeitos, caso estes
fossem regidos apenas pelo princípio do prazer, onde os
desfrutes de todos os desejos seriam permitidos. Assim, o
ato de sublimar tem relevância para esta ideia. Uma vez que,
ao sublimar os desejos primitivos, os atos de maior
agressividade, por vezes são trazidos à tona de maneira mais
amena, ou seja, sublimada, não colocando, dessa forma, em
risco maior a civilização.
No entanto, é de necessidade aqui, podermos deixar
de maneira clarificada que para Freud a sublimação se
encontra de maneira distinta a ideia de Hegel. Para este
último, sublimação vem ao encontro de Aufhebung

3BERGERET, JEAN. A personalidade normal e patológica. Porto


Alegre: Artes Médicas, 1988. p. 52.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 35

(revezamento, substituição), o qual vem a indicar o


movimento inato da dialética: converter o negativo em ser.
Freud toma um caminho mais próximo ao conceito de
sublimação para Nietzsche, o qual parte do romantismo
alemão, onde define por sublimação um princípio de
elevação estética que é um denominador comum para todos
os homens, mas do qual, ao seu ver, somente os criadores e
artistas eram detentores4.
É no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905)5, que Freud faz referência pela primeira vez a
sublimação, onde o conceito em questão é usado,
basicamente, para descrever atividades intelectuais. Com a
introdução do narcisismo em sua obra, e a construção da
segunda tópica é que Freud deixa mais complexa a ideia de
sublimação. Onde o autor diz que a sublimação é a atividade
de deslocar a energia do eu, como libido, para atividades não
sexuais. Ou seja, para Freud sublimação, entende-se por “a
capacidade de trocar a meta sexual originária por outra meta,
que já não é sexual mas que psiquicamente se aparenta com
ela”6. No cenário atual, muito ainda se fala da sublimação
relacionada a produção intelectual, bem como artística. No
entanto, não é somente nesses meios em que ela acontece.
Birman7, discorre acerca da ideia freudiana sobre o
conceito sublimatório:
De maneira pontual, ele afirma que o abjeto e o
sublime teriam a mesma origem psíquica, ainda que
a representação então presente nos discursos

4 ROUDISNECO, ELISABETH; PLON, MICHEL. Dicionário de


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
5FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a sexualidade infantil. Sigmund
Freud Obras Completas. Vol. 07. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
6LAPLANCHE, JEAN. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
7BIRMAN, Joel. Criatividade e sublimação em psicanálise. Psicologia
Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n.1, P 11-26, 2008. p. 18.
36 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
filosófico e do senso comum os considerassem
opostos e em campos diversos. Nesse momento,
portanto, o abjeto se refere ao que, posteriormente,
o discurso freudiano inscreve nos registros do
pulsional e do sexual.
O conceito de sublimação, tendo o discurso
filosófico como plano de fundo, tomou forma no século
XVIII, onde teve como referencial teórico a estética e a
teoria da literatura. Edmund Burke, opôs a ideia de sublime
às experiências do belo. Seguido disso, Immanuel Kant, em
referência ao valor estético e ao gosto em Crítica à faculdade
de julgar, retoma essa disposição, a qual também foi utilizada
pelo Romantismo alemão para idealizar a obra de arte e, com
isso, demarcar o campo da estética na modernidade. Assim,
é nesse cenário, que Freud retoma a posição entre o belo e o
sublime na psicanálise. Dessa forma, o sublime é o processo
do psiquismo que faz com o que sexual rejeitado possa se
transformar no sublime, o belo corresponde a sua
contraposição, assim, fica em evidência o erotismo,
anunciado pela figura da sedução8.
Com a escrita do texto “A moral sexual ‘civilizada’ e
a doença nervosa dos tempos modernos”9, Freud abarca
com bastante ênfase o doloroso processo civilizatório
imposto aos indivíduos, o que resultaria em um recalque
excessivo da pulsão sexual e dos obstáculos à realização do
prazer. Com a complexização do conceito de sublimação, o
autor em questão, diz que esta é o resultado do trabalho da
pulsão de vida, contra a pulsão de morte, ou seja, o erotizar
e o sublimar deixam de ser opostos, como na ideia inicial de

8BIRMAN, Joel. Criatividade e sublimação em psicanálise. Psicologia


Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n.1, P 11-26, 2008
9 FREUD, S. (1908). Moral sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa
Moderna. Sigmund Freud Obras Completas. Vol. 09. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 37

sublimação, onde esteva posto nas entre linhas a


dessexualização da pulsão sexual.
Birman10, diz:
Em resumo, enquanto na versão inicial a sublimação
possuía uma caracterização ostensivamente negativa,
pelas crescentes e disseminadas perturbações
psíquicas que promovia nas individualidades em
decorrência dos obstáculos impostos pelas
exigências de civilidade à livre expansão da
sexualidade, na versão final ela assume uma marca
ostensivamente positiva, pois passa a promover a
vida/civilidade em conjunto com o erotismo e em
oposição ao movimento rumo à morte.
Assim, o processo sublimatório, passa a ser
constituído não apenas pela dessexualização, mas sim, onde
por intermédio dela surge um novo objeto para abarcar com
a força pulsional. Com isso, ao criar novos objetos
pulsionais, a sublimação se inscreve de forma efetiva na
cultura. Onde, por intermédio da repetição, a pulsão tem por
objetivo ligar a pulsão de morte ao registro dos objetos, com
o objetivo de impedir que esta mantenha seu potencial de
desligamento. Assim, é através da sublimação que a ligação
psíquica é promovida.
Desta maneira, fica evidente a importância que este
conceito psicanalítico tem no pensamento e na construção
da obra de Adorno. Este, faz uma proposta para que
possamos voltar nosso olhar não somente para aquilo que é
expresso, para o ato concreto, mas sim para o processo
inconsciente que pode ter sido a força motor do ato, o qual,
por vezes, aparece de forma disfarçada e, assim, é suportado
pela sociedade. O autor quer trazer à tona o que foi
reprimido, e que por vezes, é o causador da melancolia
alienante, do sofrimento que inunda o sujeito e a

10BIRMAN, Joel. Criatividade e sublimação em psicanálise. Psicologia


Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n.1, P 11-26, 2008. p. 20.
38 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

representação desse deixa de ser o subjetivo e passa a


compor o total de maneira não mais singular, mas sim de
acordo com o que esta posto na cultura.
Adorno11, faz referência ao ato sublimatório no
seguinte trecho:
Em suma, uma ontologia da cultura teria de assumir
aquilo em que a cultura efetivamente fracassou. O
lugar de uma ontologia filosoficamente legítima seria
mais a construção da indústria cultural do que a
construção do ser; o bom seria somente aquilo que
escapa a ontologia.
Com isso, o autor faz referência aos acontecimentos
que foram fracassados pela impossibilidade da cultura em
poder suporta-los. Onde o negativo não pode ser digerido
pelos demais. Assim, ocorre, com mais força, a
desconstrução da subjetividade, o espaço se torna pequeno,
insuportável para a demonstração daquilo que não pode ser
visto, mas que está aí. Ainda, os instintos inatos, os desejos
em sua forma pura, não tem espaço para acontecer, dessa
forma, precisam aparecer de forma disfarçada e a percepção
não vai além do que aparece. O negativo fica esquecido,
somente o concreto pode ser pensado.

Conclusão

Dessa maneira, pode-se observar uma interessante


conversa entre a filosofia adorniana e as ideias psicanalíticas
sobre cultura e sublimação. Percebe-se que as ideias
propostas por Adorno no decorrer de sua teoria são, em
alguns pontos, bastante entrelaçadas com as ideias propostas
por Freud, sobretudo quando se fala no trabalho negativo
referente ao processo de inserção do sujeito na
cultura/civilização.

11ADORNO, Theodor. A dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar,


2009. p . 110.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 39

O filósofo mostra o principal papel da filosofia,


como sendo uma ciência que precisa olhar aquilo que não se
pode enxergar. Onde é preciso ir além do fato mostrado de
forma concreta, ou seja, aquilo que foi a força motriz
utilizada para dar finalidade a pulsões que precisaram ser
reprimidas quando o indivíduo precisou se sujeitar a inserção
na sociedade.
É nisso que entra a linguagem psicanalítica como
grande contribuinte a teoria de Adorno: a repressão dos
impulsos sexuais e a volta do conteúdo recalcado. Freud
afirmou em sua teoria que as pessoas reprimem os seus
instintos sexuais e o gozo do prazer completo, pela
segurança de se viver em sociedade. No entanto, os impulsos
sexuais, podem, por vezes, retornem de forma diferente a
original. Assim se dá o processo de sublimação, onde a
pulsão sexual se liga a outro objeto com o objetivo de
satisfazê-la de forma a não “colocar em risco” a civilidade.
Entretanto, Adorno nos chama a atenção, para que
possamos nos ocupar daquilo que está por trás dos atos
concretos.
Por vezes, a filosofia passa a ocupar um lugar de
condensação dos sintomas, onde é preciso interpreta-los.
Por vezes, corre-se o risco de ficar preso apenas no
pensamento simples: um pensamento pré-critico, de
racionalidade comum, onde o sintoma passa a ocupar um
lugar egossintônico. E sua crítica vem nesse sentindo, de
podermos nos utilizar da filosofia como algo que mostra a
estranheza frente os fatos que podem parecer inerentes da
cultura, da sociedade. A totalidade precisa ser vista a partir
do singular. A ideia de totalidade pode ser, por vezes, uma
ideia ilusória, onde passa a ter o papel principal de
sobreposição ao individual, e assim o singular fica sem
espação para ser visto e entendido.
40 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Referências

ADORNO, Theodor. A dialética Negativa. Rio de Janeiro:


Zahar, 2009.

BERGERET, JEAN. A personalidade normal e


patológica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

ROUDISNECO, ELISABETH; PLON, MICHEL.


Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998. 874 p.

LAPLANCHE, JEAN. Vocabulário de psicanálise. São


Paulo: Martins Fontes, 2001. 552 p.

BIRMAN, Joel. Criatividade e sublimação em psicanálise.


Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n.1, P 11-
26, 2008. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/01.pdf.
Acessado 06/2015

FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a sexualidade infantil.


Sigmund Freud Obras Completas. Vol. 07. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. (1908). Moral sexual ‘Civilizada’ e Doença


Nervosa Moderna. Sigmund Freud Obras Completas.
Vol. 09. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. (1930). O Mal-Estar na Civilização. Sigmund


Freud Obras Completas. Vol. 21. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
Nietzsche e Adorno:
considerações críticas sobre a
metafísica1
Elton Corrêa de Borba2

Este trabalho deseja traçar brevemente pontos de


aproximações entre a crítica nietzschiana à metafísica e o
pensamento de Theodor Adorno. Estas aproximações não
visam provocar uma violência conceitual, mas, tal como um
ensaio, pretende-se uma fluidez da escrita na interpretação
destes pensamentos críticos. Deste modo, pretendo trazer
este registro enquanto possibilidade, valendo dizer que as
influências de Nietzsche em Adorno demonstram muito da
proposta deste ensaio, já que não objetiva traçar um estudo
conceitual nietzschiano em Adorno. Deste ponto de partida,
pretendo abordar as aproximações de Nietzsche e Adorno
como filósofos críticos, salientando algumas marcas destas
filosofias na crítica à metafísica e à ideologia. Para isso, parto
do estudo da obra Dialética Negativa de Theodor Adorno e
também do texto Adorno's nietzschean narratives da professora
norte-americana Karin Bauer para estabelecer estas
proximidades. Contudo, neste movimento de escrita, como
qualquer movimento de dúvida, o encontro acontece sempre
um pouco atrasado em relação ao presente, já que a própria
palavra apreendida compõe aquilo que até certo ponto já
deixou de ser.

1 Artigo apresentado à disciplina Ética e Contemporaneidade: Críticas


filosóficas à violência IV do PPG em Filosofia da PUCRS, ministrada
pelo Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza.
2 Psicólogo, mestrando em Filosofia na PUCRS.
42 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

A crítica, como aqui será abordada, expressa um


movimento de construção de pensamento a partir do
desmembramento do instituído e da desacomodação em
relação ao presente. Em Nietzsche, esta qualidade do
filosofar a martelo é dura e busca um embate direto com o
platonismo e sua presença na teologia cristã. Já em Adorno,
esta qualidade apresenta-se de maneira meticulosa e
arriscaria em dizer que é uma filosofia a bisturi que, com
precisão cirúrgica, decompõe conceitos até os últimos
sentidos. Por isso, é sempre delicada a comparação entre
pensadores e obras, de modo que, este ensaio visa salientar
este desmembramento como que constituindo um
específico modo de enxergar a filosofia e a história, um
modo que se relaciona diretamente com o contemporâneo e
a crítica da luminosidade que este emana.

Contextualizando

Uma das leituras responsáveis por despertar o


movimento deste trabalho foi a do texto de Karin Bauer, que
aborda Adorno como um leitor da obra de Nietzsche, das
influências e críticas que este fez da obra nietzschiana. Karin
ressalta a admiração de Adorno pela pessoa de Nietzsche;
como Adorno via a vida em isolamento e os recursos
escassos que influenciaram a sua filosofia. Salienta a
importância que tiveram os pensadores da Escola de
Frankfurt na correção de interpretações equivocadas da
filosofia nietzschiana pelos ideólogos nazistas. E também,
como as influências nietzschianas podem ser notadas nos
estilos argumentativos das estruturas do pensamento crítico.
Contudo, é o destaque de Nietzsche como um crítico da
ideologia, o principal argumento que a autora vai concentrar
a interpretação adorniana deste. Karin defende que tanto o
perspectivismo de Nietzsche, quanto a dialética negativa de
Adorno, “visam expor estruturas de dominação e hierarquias
através da realização de suas doutrinas antisistemáticas e
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 43

antitotalitárias”3. E não se pode deixar de concordar com o


argumento da pensadora, já que, embora diferentes, existe
uma relação importante entre estes pensamentos.
Como um crítico da filosofia sistemática, a
propriedade da crítica nietzschiana reside na desconstrução
da verdade, considerada imutável e separada de seu senso
histórico. Esta característica será compartilhada também em
Adorno, como nos mostra Bauer:
Com Nietzsche, Adorno argumenta contra a
atribuição ideológica da verdade à substância e da
ilusão à aparência, um movimento que divorcia a
verdade dos processos de tornar-se; quando o
permanente é posto como verdadeiro, o princípio de
verdade torna-se o início do engano. O fundamento
metafísico sobre princípios primeiros e a insistência
em privilegiar a permanência são constituintes de sua
ideologia.4
A instituição da imutabilidade da verdade para
Nietzsche reside num valor histórico, reside num movimento
de delegar à permanência a sua edificação dentro da
estrutura metafísica. Neste critério, o movimento
genealógico exporia o fluxo de uma construção da verdade,
onde a sua instauração não existe separada dos elementos
externos a ela, senão que submetem-se como base de
fundamentação dos valores. É a estrutura de valores que
denotará o lugar da verdade neste refluxo cultural. A
ideologia, neste caso, necessita da verdade cimentada como
sua segurança ontológica. Neste aspecto, a crítica
nietzschiana à ideologia influencia Adorno na crítica que este
faz na Dialética Negativa de um distanciar a filosofia da
realidade histórica. Não é mais possível afirmar, diz Adorno,

3BAUER, Karin. Adorno's Nietzschean narratives: critiques of ideology,


readings of Wagner. Albany: State University of New York Press, 1999,
p. 12. (Salvo indicação em contrário, as traduções são de minha autoria).
4BAUER, Ibidem, p. 80.
44 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

“que o imutável é a verdade e que aquilo que é movido,


perecível, é a aparência, ou seja, não é mais possível afirmar
a indiferença recíproca entre o temporal e as ideias eternas”5.
Seja num lance perspectivista nietzschiano, seja num tipo de
contextualização crítica da história filosófica da verdade, o
divórcio com o tornar-se impõe um clivo entre a verdade e a
temporalidade imanente dos conceitos, e ideias absolutas,
deixando a porta aberta ao equívoco ideológico. Esta
distinção entre a ideia, o absoluto e a mudança, a
contingência, postulou durante muito tempo na história da
filosofia, sendo possível traçar sinais do seu enrijecimento.
Por isso, pensadores como Adorno e Nietzsche são
importantes para ressaltar nesta dinâmica, características de
um pensar sobre o negativo, sobre o que se estranha do
aparentemente natural.
Diz Adorno que “a ideologia deve sua força de
resistência contra o esclarecimento à sua cumplicidade com
o pensar identificador: com o pensar em geral”6. Desta
maneira, a tradição filosófica que se rendeu à identidade é
responsável pela dinâmica ideológica. E segue; “por isso, a
crítica à ideologia não é nada periférico e intracientífico, algo
limitado ao espírito objetivo e aos produtos do espírito
subjetivo; ela é, sim, filosoficamente central: a crítica da
própria consciência constitutiva”. Isto evidencia como o
movimento crítico não é nada periférico, mas central ao
próprio fazer filosófico, entendendo que esta centralidade da
crítica à ideologia é o movimento de não-captura do
pensamento na imutabilidade, o que aciona o pensar. Na
obra Dialética Negativa, o movimento de Adorno é de expor
o negativo também como qualidade afirmativa do
pensamento, de modo que se efetua um pensamento sobre
o negativo que subverte a tradição. Na própria subversão do

5ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2009, p. 299.
6 ADORNO, op. cit, p. 129.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 45

pensamento existe uma potência.

Nietzsche, corpo e imanência

Toda a história da filosofia é, até certo ponto, uma


crítica à razão e uma tentativa de salvá-la dela mesma, de
salvar o pensar. Em Nietzsche, esta salvação tem uma
característica própria, que aparece de modo bem particular
na crítica às filosofias metafísicas que delegaram ao corpo
um segundo plano, que estabeleceram uma distinção entre a
razão (ou uma consciência desta) e o corpo, conferindo a
este a qualidade do erro. Esta distinção, Nietzsche aborda em
Assim falou Zaratustra na passagem Dos desprezadores do corpo,
onde diz: “instrumento do teu corpo é também tua pequena
razão que chamas de ‘espírito’, meu irmão, um pequeno
instrumento e brinquedo de tua grande razão”7. Nesta
passagem, Nietzsche nos mostra que o espírito não é cindido
do corpo, mas é como um brinquedo deste, um brinquedo
de uma grande razão enquanto multiplicidade com um só sentido
destas instâncias que foram arbitrariamente separadas. A
crítica nietzschiana é dirigida à tradição filosófica que
afirmara uma racionalidade conscienciosa, onde o espírito e
a razão têm lugar predominante nos sistemas do
pensamento, e o corpo ocupa a periferia enganadora de uma
faculdade dos sentidos. A grande razão terá para Nietzsche
um papel de destaque para reabilitar o corpo também como
afirmação de conhecimento, considerando um saber que
fora ignorado dentro de um determinado regime de
verdades. E segue: “Há mais razão em teu corpo do que em
tua melhor sabedoria”8. A grande razão poder ser vista como
a filosofia que toma corpo, como o pensamento é todo
corpo e espírito, unidade da vontade de poder. Esta imagem

7 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos


e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 35.
8 NIETZSCHE, 2011, p. 35.
46 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

da corporificação determinará um projeto imanente de


transvaloração dos valores, porque o corpo já não pode mais
ser considerado um receptáculo do espírito, mas criador de
valores que os atravessam mutuamente. De modo que a
crítica nietzschiana à clivagem entre razão e corpo qualifica
a vontade de poder enquanto uma grande sabedoria nesta
unidade do pensar. A proposta nietzschiana passa sem
dúvida pela quebra de uma tradição, por uma mudança de
fundamentos da racionalidade, de forma que a criação
filosófica devesse marcar a valoração do que está para além
de uma razão metafísica, uma razão do corpo. Sendo de
modo que “a qualidade imanente de um pensamento, o que
se manifesta nele como força, resistência e fantasia, como
unidade do elemento crítico com o seu contrário, é, se não
um index veri, ao menos uma indicação”9. Pelo mesmo por
essa indicação de verdade é que nos valemos da relação com
Adorno, ressaltando a qualidade imanente de um
pensamento como força resistente da crítica ao
estabelecimento do dogmatismo da razão, sendo que este
pensamento que se produz enquanto corpo, subverte a
realidade histórica naquilo que nela é mais distante e mais
originário. Desta maneira, o pensamento passa pelo traçar os
rastros da razão não como ponto de chegada último,
terminantemente conceitual, mas como deslocação e
atribuição de movimento do traçar caminhos da verdade.
O modo de trabalho filosófico de Nietzsche é
expressão da sua qualidade crítica. O incorporar da poesia
no fazer filosófico, será salientada por Adorno como
influência nietzschiana; por exemplo em Assim falou
Zaratustra, o caráter literário e poético é indistinto do
filosófico, mas irá se diferir taxativamente da crítica de
Nietzsche aos poetas do pensamento, que turvam as águas
para confundir a pouca profundidade. Os poetas a que
Zaratustra volta-se contra nesta passagem são os que

9 ADORNO, 2009, p. 319.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 47

sonharam com tantas coisas acima do céu e da terra que se


perderam olhando para si mesmos. A crítica de Nietzsche
aos poetas em Zaratustra não escapa aos poetas da metafísica
onde o saber absoluto da verdade desvendar-se-ia na ação do
próprio pensamento de uma ciência universalizante. De
modo que,
a consciência que se recusa a negar a queda histórico-
filosófica das ideias metafísicas e, no entanto, não
consegue suportá-la sem se dispor ao mesmo tempo
a negar-se enquanto consciência, tende a alçar, em
uma confusão mais do que meramente semântica, o
destino das ideias metafísicas diretamente ao nível de
algo metafísico.10
Tal como uma negação da vida que abandona
este mundo em detrimento do que virá, um tipo de ideal
ascético recrudesce diante de uma emaranhada rede de
valores que postulavam a verdade metafísica acima das
relações imanentes. Um arvorar da contradição de uma
consciência metafísica que se negaria enquanto consciência,
na indeterminação do destino metafísico das ideias. Esta
inversão da racionalidade filosófica em sua contraposição
dogmática transparece no jogo de significações da ciência
moderna que se instituem como crenças nos mais variados
símbolos em nossa atualidade.
É ainda uma fé metafísica, aquela sobre a qual
repousa a nossa fé na ciência – e nós, homens do
conhecimento de hoje, nós, ateus e antimetafísicos,
também nós tiramos ainda nossa flama daquele fogo
que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã,
que era também de Platão, de que Deus é a verdade,
de que a verdade é divina. (...). Considere-se, quanto
a isso, os mais antigos e os mais novos filósofos: em
todos eles falta a consciência do quanto a vontade de
verdade mesma requer uma justificação, nisto há

10 ADORNO, 2009, p. 308.


48 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
uma lacuna em cada filosofia – por que isso? Porque
o ideal ascético foi até agora senhor de toda a filosofia,
porque a verdade foi entronizada como Ser, como
Deus, como instância suprema, porque a verdade
não podia ser em absoluto ser um problema.11
Todavia, este intento não busca confundir
demasiadamente metafísica e ideologia, se não apenas
mostrar como a fé na metafísica atribuiu valor ideológico à
verdade. Esta atribuição encontra-se na busca pela verdade
desempenhada pelos homens do conhecimento, qual
Nietzsche salienta. Este entronar a verdade como divina,
sacralizando-a, a distanciou de sua efetiva problematização.
Na atualidade, a valoração da verdade também passou a
residir na capacidade de fundamentação científica desta, e o
regime de valores impostos pelas “descobertas” da ciência
tornam-se cada vez mais uma adesão, tornam-se uma
questão de fé. A conversão da metafísica cristã como
discurso preponderante, para a instituição da ciência já dava
mostras na análise de Nietzsche. Para ele, falta ainda uma
justificação da verdade, falta problematizar o valor da
verdade situada como divina, falta uma crítica:
Em termos acadêmicos, as pessoas se habituaram
hoje com a diferença entre uma filosofia regular,
conveniente, que teria a ver com os conceitos
supremos, por mais que eles possam mesmo negar
sua conceptualidade, e uma relação meramente
genética, extrafilosófica, com a sociedade, cujos
protótipos suspeitos são a sociologia do saber e a
crítica à ideologia. (...). Não é apenas uma filosofia
atrasada que teme por sua pureza e que se afasta de
tudo em que um dia teve sua substância. Ao
contrário, a análise filosófica toca de maneira
imanente no interior dos conceitos supostamente
puros e de seu teor de verdade, esse ôntico ante o

11NIETSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica. São


Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 130-131.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 49
qual estremece a exigência de pureza e que,
tremendo em sua soberba, essa exigência abandona
às ciências particulares.12
Esta crítica encontra-se como condição
extremamente importante em Adorno, condição esta que a
filosofia regular deseja distância. Como tradição acadêmica,
esta filosofia regular delega uma exterioridade à crítica
imanente da própria filosofia, receando, talvez, a posição de
pureza da sua conceptualidade. Porque antes mesmo de
chegar numa questão epistêmica, esta passa por processos
valorativos que a situam, até mesmo, numa posição política
dentro do escopo cultural. Mas, de modo completamente
avesso a uma relação crítica, acostumaram-se a uma relação
de pureza com as ciências particulares. Tremendo em sua
soberba, a filosofia regular permanece no particular, e retirar
ainda que seja uma ínfima fagulha do fogo das verdades
metafísicas parece ser seu fim em si mesmo. Por isso que a
análise filosófica deve ir de encontro a isso, podendo
desacomodar a permanência do seu lugar receoso, expondo
os traços ideológicos que se produzem nesta pretensão de
saber absoluto. É o que Adorno dá mostras do papel que
uma filosofia regular passa a delegar, subtraindo-se de sua
responsabilidade crítica.

Adorno, Auschwitz e a crítica da cultura.

A sombra de intensa luminosidade que abateu a


Europa representa um ponto culminante da extrapolação de
um pensamento ideológico, não sendo possível ficar
alienado das consequências que estes tipos de
acontecimentos provocam ao pensamento. Não é possível
ficar indiferente ao que nos cerca, e Adorno soube precisar
o pensamento sobre as expressões desta facticidade, de
modo a deslocar de uma naturalização do curso da história.

12 ADORNO, 2009, p. 121.


50 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Estes acontecimentos que marcam a história de maneira tão


intensa e avassaladora dão mostras de como o pensamento e
a cultura se conjugam de maneira indistinta, mas mesmo
assim mantem-se distantes. A propriedade de produzir
pensamento se deve necessidade de este ainda poder
desmembrar dos fatos aquilo que é menos aparente, aquilo
que exige uma posição central no jogo da história. A posição
crítica assumida por Adorno e Nietzsche coloca a história
não como coisa dada, mas como um processo, como “modo
autorreflexivo do pensamento evidente nas contradições,
paradoxos, repetições, variações infinitas de temas e
questões, o questionamento de normas e percepções”13. Ao
modo como a história acontece e constrói seus pressupostos
lógicos numa relação pouco evidente para quem está
capturado por sua subjetivação periclitante. De modo que
passamos a ver como um acontecimento – tal como a
possibilidade de Auschwitz e o desembocar da Segunda
Grande Guerra de suas consequências posteriores –
expressam um mundo ainda sem sentido.
A sensação de que, depois de Auschwitz, comete-se
uma injustiça contra as vítimas com toda afirmação
de positividade da existência, uma afirmação que não
passa de um falatório, com toda tentativa de arrancar
de seu destino um sentido qualquer por mais exíguo
que seja, possui o seu momento objetivo depois dos
acontecimentos que condenam ao escárnio a
construção de um sentido de imanência que emane
de uma transcendência positivamente posicionada.
Uma tal construção afirmaria a negatividade absoluta
e contribuiria ideologicamente para a sobrevivência
que reside sem mais realmente no princípio da
sociedade existente até a sua autodestruição.14
Parece claro que a crença na positividade alcançou tal

13 BAUER, 1999, p. 217.


14 ADORNO, 2009, p. 299.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 51

ponto de realização, que as estruturas que se esperavam


firmes e seguras, sofreram um abalo desrealizador. A
sensação de Adorno de que se comete uma injustiça é a
expressão daqueles que estiveram no centro do furacão e
deste estiveram distantes, de modo a lançar um olhar crítico
sobre todo falatório posterior. A posição de Adorno é de
quem viu de perto as consequências de uma iluminação da
cultura demasiadamente ofuscante. Aqui, a questão não é de
uma crítica ao esclarecimento, mas de uma patologização da
razão iluminadora, onde a luminosidade da ideologia se fez
passar por uma agudização da razão, cheia de promessas e
certezas.
O fato de isso ter podido acontecer no cerne de toda
tradição da cultura, da arte e das ciências esclarecidas
não quer dizer apenas que a tradição, o espírito, não
conseguiu tocar os homens e transformá-los. (...).
Toda cultura depois de Auschwitz, inclusive a sua
crítica urgente, é lixo. Na medida em que ela
restaurou depois do que aconteceu em sua paisagem
sem qualquer resistência, ela se transformou
completamente na ideologia que potencialmente era,
desde o momento em que, em oposição à existência
material, ela se permitiu conferir-lhe a luz da qual a
separação do espírito ante o trabalho corporal a
priva.15
Toda cultura posterior a Auschwitz é lixo porque não
pode reparar tamanha desrealização provocada e ao mesmo
tempo retomar os projetos que foram arrasados. Não quer
dizer que os homens não foram tocados pelo espírito, mas que
um tipo de subjetivação tão intensa e ao mesmo tempo tão
mascarada dentro de sentidos superiores demonstraram o
quão frágil é a instituição da verdade absoluta dentro da
possibilidade de transformações avassaladoras de mundos.
Percebe-se que, vender um mesmo tipo de relação com a

15 ADORNO, op. cit., p. 304.


52 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

cultura e o pensamento já não era mais possível, porque os


abalos foram na sua fundamentação.
Em seu Estado de não liberdade, Hiter impôs aos
homens um novo imperativo categórico: instaurai o
vosso pensamento e a vossa ação de tal modo que
Auschwitz não se repita, de tal modo que nada desse
gênero aconteça. Esse imperativo é tão refratário à
sua fundamentação quanto outrora o dado do
imperativo kantiano. Tratá-lo discursivamente seria
um sacrilégio: é possível sentir nele corporalmente o
momento de seu surgimento junto à moralidade.
Corporalmente porque ele é o horror que surgiu
praticamente ante a dor física insuportável à qual os
indivíduos são expostos mesmo depois que a
individualidade, enquanto forma de reflexão
espiritual, se prepara para desaparecer. (...). No
vivente, a camada somática e distante do sentido é
palco do sofrimento que queimou sem qualquer
consolo nos campos de concentração tudo o que o
espírito possui de tranqüilo, e, com ele, a sua
objetivação, a cultura.16
A instauração de um imperativo categórico no qual a
história não deve se repetir é tal como um alerta para um
retorno do mesmo, ou uma compulsão à repetição em que
voltamos sempre ao mesmo lugar na impossibilidade de
fazer diferente. Um fluxo constante que gira em torno de si
mesmo. Parece ser o que Adorno nos remete. Das marcas da
história provocadas pela psicopatia iluminada, à inscrição de
uma moralidade perversa carregada no corpo, produziu-se
uma massa homogênea de desesperados. A cultura, ou a ideia
que se fazia desta e que até então se preservava estabelecida,
queimou nas valas comuns da hipocrisia racionalista. Mas,
apesar do fracasso da cultura em dar o alívio que a
modernidade vinha alimentando, parece que ainda se
retroalimenta com as poucas sobras que restaram. Não é
16 ADORNO, 2009, p. 303.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 53

difícil encontrar ainda sobras espalhadas pelos porões de


nossa realidade, principalmente de nossa realidade brasileira.
Mas, das sobras, é preciso ter coragem para encará-las, expor
os seus mecanismos e artimanhas, coragem diante do
imperativo do eterno retorno do mesmo, onde a única saída
é a diferença. Fazer a crítica dos fenômenos
contemporâneos, expondo seus valores é enxergar de outro
modo, necessidade de uma qualidade diferente do enxergar.

Nietzsche e Adorno, contemporâneos: considerações


conclusivas

Mas o que significa dentro da tradição filosófica ser


um filósofo crítico? Para responder esta questão, associo ser
crítico a ser contemporâneo nas palavras de Agamben. No
ensaio O que é o contemporâneo? o filósofo italiano discorre
sobre a quem e ao o que somos contemporâneos, sobre a
capacidade de enxergar o escuro do tempo, sobre aquele que
indissociado deste lhe toma distância. Agamben estabelece
com o tempo e o contemporâneo uma relação com a
capacidade de enxergar o escuro devido às células chamadas
off-cells, o que vemos (ou o que achamos que não vemos) não
é a ausência de luz, mas sim a atividade destas células que
produzem aquilo que percebemos como escuro. Perceba-se
o quanto isso é interessante; ver o escuro não é uma
inabilidade do enxergar, porém uma produção ativa deste,
diria até uma intencionalidade para este fim. Deste modo, ser
contemporâneo é enxergar o escuro muito além do enxergar
no escuro, já que enxergar no escuro pressupõe aproveitar a
luz rarefeita do ambiente, tal como os animais o fazem com
o mínimo de luminosidade. Para Agamben, este olhar ativo
o escuro do tempo é a capacidade “de escrever mergulhando
a pena nas trevas do presente”17. Assim percebo o trabalho

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios.


17

Chapecó: Argos, 2009, p. 63.


54 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

filosófico de Nietzsche e Adorno e a relação destes com o


que lhe era contemporâneo, sendo a crítica a capacidade de
enxergar o escuro, de enxergar não a pouca luminosidade,
mas enxergar os pontos escuros que ainda não eram
cobertos pela incandescência da modernidade. Tal como
para Nietzsche onde reabilitar a figura de Dionísio, o deus
das sombras, se contrapõe à demasiada luminosidade
apolínea, Adorno também soube enxergar o escuro do que
lhe era contemporâneo, um tempo onde as escuridões eram
densas de luminosidade. O choque provocado pela guerra, a
desrealização causada por Auschwitz afeta seus
espectadores, não sendo “raro acontecer de homens
reflexivos e artistas registrarem uma sensação de não estarem
completamente presentes, de não tomarem parte no jogo”18.
Tomar parte do jogo da filosofia, estabelecer com ela
uma relação de distância e aproximação, mergulhar ainda
novamente a pena nas trevas. Deverá esta capacidade crítica
do filósofo contemporâneo partir do chão duro e
massacrado da cultura? Certamente sim, é o que resta, mas
deverá partir de uma vontade de verdade desencantada com
o prodigioso sucesso que carregam as ciências e as ideologias
contemporâneas, certamente de um desengano com as
promessas da prática sem teoria. Adorno, que viu de perto os
efeitos nefastos provocados pela ideologia e pela técnica no
curso da história humana e, sobretudo das ideias,
testemunhou os acontecimentos que culminaram em
Auschwitz e o estilhaçamento da cultura; mas nada mais será
possível depois de Auschwitz?
O século das luzes trouxe uma ampla luminosidade,
cada canto iluminado estende-se pelos séculos seguintes.
Talvez esta luminosidade tão incandescente e tão
avassaladora tenha cegado alguns contemporâneos.
Auschwitz é a prova disto. Mas talvez os verdadeiros
contemporâneos tivessem tomado conta que a capacidade de

18 ADORNO, 2009, p. 300.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 55

enxergar o escuro é também capacidade de enxergar na


intensa luminosidade ofuscante dos ideais da modernidade.
Contudo, parece que o desencanto deve ser apenas força da
crítica, precaução duvidosa acima de tudo. Dos filósofos do
futuro a que Nietzsche anunciava, até a premissa adorniana
que não fora pensado o suficiente, encontramo-nos diante
da exigência do pensar crítico.
Para Agamben, ser contemporâneo é ter a
capacidade de ver na escuridão de seu tempo, esta capacidade
de tomar distância e de aproximar-se, numa posição ativa e
de mesmo modo crítica em relação aos acontecimentos e
valores que vivenciamos. É a emergência do pensador
contemporâneo, a aproximação e o distanciamento, e
mesmo que afetados por uma constante profusão de
acontecimentos que nos interferem diretamente, nos
sentimos ainda atraídos à análise e ao pensar. Ou seja, o
filósofo é convocado, tal como um leitor de seu tempo, a
problematizar o que lhe afeta. Por isso Nietzsche e Adorno
podem ser considerados contemporâneos um do outro, em
uma mútua relação com outros tantos pensamentos
implicados. Enquanto alguns, atiram-se na loucura do
indeterminado, dispostos a sofrer as responsabilidades que
este intento impõe, outros, temerosos, aferram-se firme na
segurança ontológica. Assim, este movimento de escrita
esperou dar uma prova da inquietação crítica destes dois
pensadores, de modo a também movimentar o pensamento.

Referências

ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2009.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E


outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BAUER, Karin. Adorno's Nietzschean narratives:


56 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

critiques of ideology, readings of Wagner. Albany:


State University of New York Press, 1999.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma


polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.

__________________. Assim Falou Zaratustra: Um livro


para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Adorno e a psicanálise: Uma
lição de Arnold Schoenberg
Estevan de Negreiros Ketzer1
Para Omero Pereira da Costa

Introdução: regras para o psiquismo

Se a música de Schoenberg não é intelectual ela requer para isso


inteligência musical.

T. W. Adorno

O desenvolvimento da música é, mais do que qualquer outra arte,


dependente do desenvolvimento de sua técnica.

Arnold Schoenberg

Percebemos esse movimento primitivo da voz,


encontros em que muitas falas são intermitentes e podem
por vezes causar confusão. A mente percebe mais
lentamente o peso do que lhe acomete como as vozes de
comando dos outros. Talvez devêssemos olhar para a
criança, acima de tudo, a criança que tem sua
espontaneidade, mas acaba por reclinar-se ao mal de uma
ordem, de uma ordem que coloca sua criação sob o crivo da
moral. Eis aqui o prolegômeno para discutirmos um certo
adiantamento das primeiras fixações erógenas, não restritas
ao critério da boca, do ânus ou do falo, mas a uma outra
interdição da ordem da escuta: o que o ouvido retém como
imagem, o que a onda cerebral expressa como voz. Tão
interna, sutil e perpétua sobre um écran inconsciente.

1Psicólogo clínico. Doutorando em Teoria da Literatura pela PUCRS.


Email: estevanketzer@ibest.com.br.
58 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Inconsciente é a ordem das pulsões, não sendo jamais a


mesma nesse direcionamento do corpo e da cultura para
formarem um sujeito que acredita estar certo da verdade
sobre como governar a si a se relacionar com os outros.
Sobre uma certa música, difícil de escutar, exigindo sair da
generalidade dos sons emaranhados da natureza, agora nasce
a preparação para uma composição desses mesmos sons
com uma incrível independência dos meios da qual foi
gerada quase por espontaneidade.
Não parece obra do acaso o interesse que a
psicanálise tem sobre a organização mental e suas
disposições nas fontes corpóreas. O corpo não é um mero
apêndice. Nietzsche, Freud, Schoenberg e Adorno o sabiam
bem. Com a mudança no plano dos estudos psicológicos
fundados por Wilhem Wundt, a partir de seu laboratório
localizado em Leipzig, notamos o envolvimento da psico-
fisiologia com caráter fortemente empírico, caracterizando a
atividade científica2.
Em parte, a pesquisa em desenvolvimento da
atividade psicológica teve grande impulso com os
posicionamentos de Hegel. Fortemente influenciado pelo
idealismo alemão, uma vez que ele também está disposto a
fazer uma crítica ao romantismo de sua época, o pensador
de Iena, descortina um pensar crítico sobre os dados
positivos encontrados na natureza:
Experiência é justamente o nome desse movimento
em que o imediato, o não-experimentado, ou seja, o

2 Uma forte referência crítica à postura dos primeiros psico-fisiologistas


alemães está contida no trabalho de Friedrich Nietzsche. Para Nietzsche,
a filosofia deveria afastar-se da metafísica e combater a moral protestante
que impediam a potência humana de se realizar. O filósofo desenvolveu
a metáfora da ponte entre o homem e o animal, cunhando o conceito de
Super Homem (übermensh). Cf.: NIETZSCHE, Friedrich. (1883) Assim
Falou Zaratustra. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2008. Veremos
também alguns problemas dessas considerações com as interpretações
posteriores de Martin Heidegger.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 59
abstrato – quer do ser sensível, quer do Simples
apenas pensado – se aliena e depois retorna a si dessa
alienação; e por isso – como é também propriedade
da consciência – somente então é exposto em sua
efetividade e verdade3.
Logo, para Hegel, um fenômeno que apareça à
percepção está em sua forma dado no positivo e, nesta
composição, afasta o negativo de seu processo de captação
com a exposição do positivo na forma da apresentação
(Darstellung). Há um contraponto fenomenológico em Hegel
estabelecido com muita antecedência: a consciência prega
uma peça e tende a estabilizar mais facilmente o campo da
faticidade do mundo, precisando por isso mesmo, ser
interrogada onde acredita que já chegou na verdade das
coisas, portanto vemos o termo alienação (Entfremdung) aqui
utilizado. Para tanto o negativo é emergente no processo de
delimitação do conhecimento científico e a provocação do
negativo é geração de um novo conteúdo que serve para o
estabelecimento da interioridade do ser pensante4. Hegel
encontra uma forte crítica ao positivo pelo anteparo do
negativo. “A diferença é a lei da força.”5 Aqui, é preciso deixar
claro que essa diferença irá interferir em muitos resultados

3HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. (1807) Fenomenologia do espírito.


Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2008, p. 46.
4 O problema de Hegel parece por vezes resumido na relação triádica
entre o ser-em-si (Ansichsein) que precisa se exteriorizar (Äussern) para
poder encontrar a nova medida de sua afirmação, sua supressão
(Aufhebung), isto é, a entrega de um resto em relação a tudo o que foi
pensado anteriormente, negatividade radical. Para cada tentativa de
supressão encontramos o nascimento de um novo problema na relação
dos termos hegelianos e isto a Fenomenologia do Espírito se esforça por
mostrar em seus pormenores, problema de um resto da conflitiva
cultural a ser resolvido no futuro, problema de toda a apresentação
(Darstelung) que se torna representação (Forstelung).
5HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. (1807) Fenomenologia do espírito.
Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2008, p. 119.
60 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

encontrados nos experimentos científicos da ciência


moderna. Instalada a diferença no experimento científico, a
compreensão é abalada devido aos resultados discrepantes
plenos de empiricidade, tal como vemos no artigo “Crítica
cultural e sociedade”, de 1951, em que Adorno adverte:
Quanto menos o método dialético pode hoje
pressupor a identidade hegeliana de sujeito e objeto,
tanto mais ele está obrigado a levar em conta a
dualidade dos momentos, a relacionar o
conhecimento da imbricação do espírito nela, com a
pretensão do objeto a ser reconhecido enquanto tal,
segundo o seu conteúdo específico. Por isso a
dialética não permite que nenhuma exigência de
pureza lógica a impeça de passar de um gênero a
outro, de fazer com que a coisa fechada sobre si
própria se ilumine através do olhar voltado para a
sociedade, de apresentar à sociedade a conta que a
coisa não é capaz de pagar.6
Significa também que ao tratar de questões humanas,
tal como fazem as ciências do comportamento, há um
excesso incontornável de sensibilidade e de histórias
constitutivas dos sujeitos envolvidos. A responsabilidade ali
envolvida é muito anterior à solução objetiva dos problemas
hoje caracterizados como transtornos (disorders) mentais.
Este fato leva impreterivelmente a um posicionamento ético
iminente por parte do entrevistador: como lidar de forma
ética com as informações obtidas em uma entrevista; como
respeitar a pessoa humana em sua integralidade; como
respeitar a vida dos animais utilizados para uma pesquisa;
como devem ser encaminhadas as entrevistas de avaliação
(rapports) priorizadas pelos psicólogos clínicos, para citar
alguns exemplos. Afinal, o como diz respeito a uma indagação

6ADORNO, Theodor. W. (1955) Prismas: crítica cultural e sociedade. São


Paulo: Editora Ática, 1998.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 61

atrelada à objetividade advinda dos resultados e sua boa


execução, examinados nos pormenores da ciência moderna.
O fato de que aplicam aos homens as mesmas
fórmulas e resultados que eles, desencadeados,
arrancam a animais indefesos em seus atrozes
laboratórios de fisiologia confirma essa diferença de
maneira particularmente refinada. A conclusão que
tiram dos corpos mutilados dos animais não se ajusta
ao animal em liberdade, mas ao homem atual.7
Deste modo, falar de qualquer suposta neutralidade
científica é no mínimo ser leviano com as próprias
conseqüências da ciência quando esta quer encontrar um ser
humano que exige demandas e respostas na mesma
velocidade com que se levantam moradias urbanas ou a cura
para a AIDS. Quando há uma insistente tentativa de acoplar
o humano a um determinado processo que o separe de uma
indagação mais primordial estamos diante de uma
mecanização e utilização desmedida de emoções superficiais,
característica típica da sociedade de bem estar social (welfare
state), idealizando uma felicidade total que é retroalimentada
pela utilização de bons estímulos sociais.
Adorno não só conhecia esse caminho perseguido
pela ciência como tinha em mente que a crítica a esse
processo mecânico exigia uma drástica mudança no
direcionamento da arte e da filosofia do seu tempo para
assim alcançarem um estágio radical de reflexão sobre as
finalidades e conseqüências sobre o domínio do
comportamento humano. O homem atual vive como um
rato em uma Caixa de Skinner, uma vez que está acuado e
dependente da boa avaliação que repercute em seu meio
externo. Sua maior expectativa é que o meio o recompense.
Homem ícone, perseguindo a generalidade, o que faz ser viril

7ADORNO, Theodor. W. & HORKHEIMER, Max. (1944) Dialética do


Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.
201.
62 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

ou soltando uma piada de bom tom, mas impreterivelmente


conduzindo-o à felicidade, não a sua própria, mas uma
felicidade que os outros assim a considerem como ideal. A
suspeita da realização desses comportamentos, a própria
palavra comportamento afeita à demonstração pública e a
descaracterização de um ser humano em conflito e possuidor
de iniciativas inconscientes, é próprio do hiper positivismo
estadunidense das primeira metade do século XX. Nesse
momento as definições que tinham por fim a pureza de uma
racionalidade uniforme começam a mostrar outro desgaste,
mais tenebroso do que aquele advindo das descobertas do
século XIX: a ciência, a partir de agora, dita a ordem para
manter o controle social das massas. Estamos diante do
biopoder, tão examinado por Foucault8, mas que Adorno é
um de seus críticos precursores. Esse movimento foi
chamado de behaviorismo social, para mostrar justamente
este método empregado pela psicologia positivista para
significar e acoplar o que se considera como o melhor
caminho para a tomada de decisão, tanto do Estado sobre as
pessoas, como do aperfeiçoamento moderno dos
mecanismos de auto correção (feedback) entre os indivíduos,
mecanismos esses tidos como naturais e necessários à boa
manutenção da vida.
Assim, encontramos na crítica à teoria social de
Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno, a identificação dos
códigos culturais que registram a estática na representação
de uma ideologia sobre o procedimento do comportamento
humano no ocidente. Esse comportamento está entranhado
em nossas relações com os objetos culturais e é sempre uma
forma de interpretar mais facilmente com vistas a uma dada
objetividade imanente às coisas. Desde já o procedimento
dialético de Adorno é uma operação de desmantelamento da

8 FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: RABINOW, Paul e


DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 63

ordem vigente, tanto de fenômenos culturais como sociais,


onde também a psicanálise tem algo a manifestar
contrariamente à posição advinda do behaviorismo. Adorno
faz uma forte acusação aos meios de comunicação de massas
em sua interpretação facilitada da realidade em face do
poderio econômico imposta por uma determinada classe9,
uma vez que entram nesta seara as formas de sentir e
interpretar as expressões artísticas: leia-se a partir de agora a
palavra gozo como o flagelo de um prazer desintegrado e
retido às formas de sensibilidade mais superficiais.
Adorno, ao conhecer o dodecafonismo durante seus
estudar com Alban Berg, eminente aluno de Arnold
Schoenberg, amplia a crítica à música de seu tempo, mas o
faz com uma finalidade da qual a própria psicanálise teria se
afastado para adaptar-se melhor às demandas e exigências
médicas. A música de Schoenberg se propõe a pensar a
responsabilidade que a educação dos sentidos possui no
repertório criativo humano. Esse embate e contribuição
serão aqui explorados.

A psicanálise e o reducionismo psicológico

A medida que o homem impõe para impedir que


certos fatos cheguem à consciência gera uma angústia
incalculável. Ao mesmo tempo que essa angústia gerada por
uma forte repressão advém de um interior, ela também
possui sua origem mais remota nos estágios primitivos do
aprimoramento das leis: a lei do ghenos, conforme Sigmund
Freud assinala e, mais ulteriormente, Claude Lévi-Strauss
complexificará junto ao estruturalismo. Nesse embaraço
criado pela perspectiva de que um certo modo de operação
9 “A falsa clareza é apenas uma outra expressão do mito”, tal como
afirmam no “Prefácio” e com maior grau de exposição no artigo “A
indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”, em
ADORNO, Theodor. W. & HORKHEIMER, Max. (1944) Dialética do
Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 14.
64 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

deve ser realizado, uma disciplina e uma consequente


obediência entram em jogo para manter uma certa operação
de como a cultura deve ser organizada, o que se deve falar,
pensar e, de modo mais determinante, sentir.
A derivação das necessidades religiosas, a partir do
desamparo do bebê e do anseio pelo pai que aquela
necessidade desperta, parece-me incontrovertível,
desde que, em particular, o sentimento não seja
simplesmente prolongado a partir dos dias da
infância, mas permanentemente sustentado pelo
medo do poder superior do Destino.10
Da horda primitiva, ao aparecimento de Roma,
como Fustel de Coulanges também encontrara em sua
pesquisa histórica sobre as origens do patriarcado, há uma
insistente manutenção da figura paterna por Freud e com
isso também o aparecimento da religião e do Estado. O que
Freud identifica como um sentimento de pertencimento ao
abrigo paterno, denominando de sentimento oceânico é o
resultado de um desamparo da criança em busca do
acolhimento do adulto. Este anteparo referencial utilizado
por Freud nos remete diretamente ao mito fundador de
Édipo, uma figura da cultura grega, encarada pelo
psicanalista vienense como a figura resultante do conflito
entre forças fundamentais do desenvolvimento psíquico, as
pulsões11. A organização dos desejos inconscientes, lutando
entre a vida (copular com a mãe) e a morte (matar o pai).
Essa constituição é paralela a uma forte obediência às

10Cf. FREUD, Sigmund. (1930[1929]) O Mal-Estar na Civilização. In:


STRACHEY, J. (Ed. e Trad.). Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 80.
11Não é objetivo deste trabalho explicar os pormenores da teoria
pulsional, mas é importante deixar claro que as pulsões são descargas de
energia que partem do psíquico para se realizarem no corpo. Cf.
LAPLANCHE, Jean. & PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise.
Santos: Martins Fontes, 1970.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 65

instituições sociais, pois ele busca uma realização também


para o que está fora de si mesmo.
Não admira que, sob a pressão de todas essas
possibilidades de sofrimento, os homens se tenham
acostumado a moderar suas reivindicações de
felicidade - tal como, na verdade, o próprio princípio
do prazer, sob a influência do mundo externo, se
transformou no mais modesto princípio da realidade
-, que um homem pense ser ele próprio feliz,
simplesmente porque escapou à infelicidade ou
sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa
de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em
segundo plano12.
Aqui está um ponto importante da pesquisa
psicanalítica ao se inclinar para pensar as relações entre as
descobertas clínicas e as referências culturais. Freud entende
com facilidade as coerções que a humanidade vem se
colocando já à beira da catástrofe de que se aproximava o
mundo ocidental, entre 1929 e 1939. Ele conecta-se com o
enorme desconforto das pessoas em seu tempo, pois em
Viena há a divisão entre os fracos e os fortes, pesando sobre
a população de origem judaica a identificação com as
mazelas ocasionadas no pós-Primeira Guerra Mundial. Este
ideal foi posto em prática pelos ufanistas do chanceler
alemão Adolf Hitler que toma o poder da Alemanha a partir
de 1933. Parece muito claro que há um discurso que se utiliza
do ódio contra uma minoria étnica financeiramente bem
sucedida para expiar os próprios problemas dessa
população13.

12Cf. FREUD, Sigmund. (1930[1929]) O Mal-Estar na Civilização. In:


STRACHEY, J. (Ed. e Trad.). Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 141.
13GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
66 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

O que Freud aponta é algo na emulsão dos instintos


de destruição mais primevos no ser humano: “Os homens
adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que,
com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem
uns aos outros, até o último homem”14. Há uma dificuldade
de relacionar a vontade com o objeto reprimido. O
pensamento passa a ser auto-imune, racionalizando todos os
objetos para que não chegue até a dimensão de impotência
que o acomete. O pensamento, no caso particular de uma
guerra, se utiliza de uma racionalidade utilitarista, em termos
benthaminianos, sendo mais importante a noção econômica
do que o respeito à integridade da vida. Essa massificação
panfletária, despertada pelo discurso de ódio ao diferente15,
torna difícil realizar uma auto-crítica, uma vez que os objetos
internalizados pelas pessoas são agressivos ao externo, o que
leva a elas encararem como potencialmente perigoso
qualquer interrupção diferencial da ordem estabelecida. É
um pensamento sem flexibilidade, atrelado a uma dimensão
rasa da racionalidade binária, não colocando em contato
afetos e sensações que não sejam narcísicos, isto é, com
reflexo em si mesmo. A razão binária, simplificadora, prefere
o inteligível ao sensível, instalando-se em cada um para que
não hajam aprofundamentos de questões, dilemas e
conflitos, terminando por projetarmos em outrem o ódio de
uma vida insatisfeita, anestesiando nossa responsabilidade
sobre um mal estar de um desejo frustrado.

14 FREUD, Sigmund. (1930[1929]) O Mal-Estar na Civilização. In:


STRACHEY, J. (Ed. e Trad.). Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 170.
15 “As fantasias racistas sobre os crimes dos judeus, sobre os infanticídios
e excessos sádicos, sobre o envenenamento do povo e a conspiração
internacional, definem exatamente o desejo onírico do antissemita e
ficam aquém de sua realização”, Cf. ADORNO, Theodor. W. &
HORKHEIMER, Max. (1944) Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 153.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 67

Em sua obra póstuma, Teoria Estética, T. W. Adorno


estabelece de início um debate entre a psicanálise e a
interpretação das obras de arte. “A arte possui
determinações essenciais que contradizem o caráter
definitivo do seu conceito estabelecido pela filosofia da
arte”16, ficando aqui nítido que há um trabalho para além dos
reconhecimentos formais de conteúdo e estilística
delimitados por uma visão muito rasa da crítica literária
estabelecida. Como exemplo, podemos apreciar a forma
ensaística a qual Adorno faz alusão, como uma tentativa de
criticar uma concepção de racionalidade totalitária, tão
apreciada na Alemanha de seu tempo, provocando forças
contrárias a sua emancipação, pois atrai para si a liberdade
da escrita, ponto entre a ciência e a literatura ficcional,
aceitando o erro como sua condição prévia de fazer uma
linguagem17. Essa forma é incentivada por Adorno, por
trazer a interpretação de volta, acaba por desorientar, e tira
de uma maneira radical a clareza de seu ponto convergente
galgado na compreensão de um conteúdo. “Compreender,
então, passa a ser apenas o processo de destrinchar a obra
em busca daquilo que o autor teria desejado dizer em dado
momento, ou pelo menos reconhecer os impulsos
psicológicos individuais que estão indicados no
fenômeno”18.
É claro que nesta celeuma existe algo mais
contundente: habita nela justamente a maneira de olhar para
um acontecimento do passado que possa ser narrado de
alguma forma e interpretado, no sentido psicanalítico, como
o trazer para a consciência os conteúdos recalcados pelo

16ADORNO, T. W. (1970) Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p.


20.
17ADORNO, T. W. (1958) Notas sobre literatura 1. São Paulo: Editora 34,
2003, p. 16.
18ADORNO, T. W. (1958) Notas sobre literatura 1. São Paulo: Editora 34,
2003, p. 17.
68 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

inconsciente. Nesse sentido, a explicação na qual a arte


termina com a elucidação de uma pulsão sexual deslocada é
altamente prejudicial para a arte.
As obras de arte são, para a psicanálise, sonhos
diurnos; ela confunde-os com documentos,
transfere-os para os que sonham enquanto que, por
outro lado, os reduz, em compensação da esfera
extramental salvaguardada, a elementos materiais
brutos, de um lado aliás curiosamente regressivos em
relação à teoria freudiana “do trabalho do sonho”.19
Deixar-se levar pelo devaneio é um foco sem
sentido. O princípio de analogia da obra com o autor deve
ser seguido, uma vez que é no devaneio que a expressão do
inconsciente se manifesta de forma mais livre. Isso segue de
acordo com a própria escuta clínica que o psicanalista faz e
sua função ali no setting, ao montar as configurações
necessárias para traduzir o sentido perdido pelo paciente.
Esse espaço de tornar um determinado conteúdo consciente
não vem apenas por uma solicitação do paciente, mas
também pela geração da demanda de trabalho que o analista
precisa encontrar para configurar e, assim, apontar o
universo que surge na fala do analisando: como ele fala e
aonde ele quer chegar com essa fala? “O elemento projetivo
no processo de produção dos artistas é, na relação com a
obra, apenas um momento e dificilmente o decisivo; o
idioma, o material e sobretudo o próprio produto têm um
peso específico, que surpreende sempre os analistas.”20 Essa
frase é com efeito um ponto que não pode passar em branco,
tendo em vista o caráter de espontaneidade a que uma obra
leva seus espectadores.

19ADORNO, T. W. (1970) Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p.


22.
20ADORNO, T. W. (1970) Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p.
22.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 69

Ao libertar a arte para diferentes correntes


interpretativas sem fechá-la em uma sintomatologia
específica, o intérprete também terá de encarar uma
determinada ausência e incompreensão dos processos
internos que a constituem. Para Adorno a obra de arte não é
uma propriedade exclusiva do artista e ele não é o detentor
da verdade sobre sua criação. Tão pouco o reflexo de suas
paixões poderia ser forte o suficiente para que a obra fosse
colocada sobre um divã. “No processo de produção
artístico, as monções inconscientes são impulso e material
entre muitos outros.”21 Dessa forma, uma interpretação
psicanalítica não poderia ser crassa ou diametral sobre um
conteúdo esboçado na obra, mas antes ela visa menos ao
complexo do artista e mais ao processo de composição.
Neste ponto, a obra de Arnold Schoenberg está para
além da manifestação de uma vontade cega de fazer arte, mas
torna-se o encontro verdadeiro, tal como escreveu Adorno
em sua homenagem intitulada, “Arnold Schoenberg (1874-
1951)”, de 1953: “uma constante insatisfação com tudo o
que não criasse como algo inteiramente original”22. Veremos
que mais do que uma linguagem original, em termos de
música, Schoenberg tem em mente outros elementos de
difícil tradução e concomitantes a uma nova possibilidade de
experimentação sensível trazida pela aprendizagem da
música.

Música e filosofia

21ADORNO, T. W. (1970) Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p.


23.
22ADORNO, Theodor. W. (1955) Prismas: crítica cultural e sociedade. São
Paulo: Editora Ática, 1998, p. 148.
70 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Fig. 1 – Cinco peças para piano Op. 23, detalhe do movimento 5, de


Arnold Schoenberg

Esta peça musical, acima transcrita para pauta, de


autoria de Arnold Franz Walter Schoenberg, – Schönberg,
tal como era grafado originalmente – é considerada como a
primeira exposição da técnica dodecafônica. O
dodecafonismo é uma reação a todo o sistema tonal levado
a cabo pelo Ocidente até sua apresentação formal no ano de
1923, com estas Cinco peças para piano Op. 23. Não era apenas
o sistema musical e artístico de um modo geral que foram
solapados, mas havia também a crise decorrente do final da
Primeira Guerra com a derrota da Alemanha e o crescente
empobrecimento da experiência.23 A sociedade européia
encontra-se numa forte depressão, tal como indicam seus
movimentos artísticos: o aparecimento das vanguardas
literárias com Marcel Proust, James Joyce e Franz Kafka; o
surrealismo de André Breton, Paul Elouard e Salvador Dali;
a arte cubista de Pablo Picasso; os famosos ready-made de
Marcel Duchamp; as inovações de Vassily Kandinsky na
pintura e na arquitetura da Bauhaus alemã; as intensificações
no uso da atonalidade com Claude Debussy e Gustav
Mahler; são alguns exemplos de inovações e percepções que

23 Sobre esse período o ensaio de: BENJAMIN, Walter. (1933a)


Experiência e Pobreza. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre
literatura e história da cultura: obras escolhidas vol. 1. São Paulo: Brasiliense,
1994; para detalhes mais claros e uma análise macro do período, cf:
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 71

sinalizam o final de uma era e o começo de transformações


contundentes na sensibilidade humana.
Schoenberg, após a má recepção de sua obra Pierrot
lunaire, em 1912 – obra esta que trava um rompimento com
o canto propriamente dito, sendo melhor interpretada como
“contínua transição harmônico-intervalar”24 –, não vem à luz
como simples sintomatologia da crise alemã. As pequenas
transformações da música abrem portas completamente
inovadoras. Schoenberg tem essa clareza, uma vez que a
primeira edição de seu livro Harmonia é de 1911, ou seja,
podemos considerar como um questionamento teórico com
a música vocal até então escrita. Eis que encontraremos um
silêncio de dez anos na produção de obras artísticas. É como
se Schoenberg não estivesse satisfeito com todas as grandes
pretensões da música vigente, incluindo aí o próprio
expressionismo no qual esteve filiado. Até então o sistema
tonal era galgado por aquilo que o musicólogo belga
Françoise-Joseph Fetis reconhecia como “a sucessão de
fatos melódicos e harmônicos que advêm da disposição das
distâncias dos sons em nossas escalas maior e menor”25. O
que fica claro nesta pequena afirmação é que o respeito a
essas regras leva impreterivelmente a uma entrada na forma
consagrada da harmonização pela sequência tonal que tece a
harmonia envolvendo tônica, terça e quinta da escala
diatônica26; da estipulação de um ritmo, intervalo entre os
sons musicais, da obra; e da geração de melodias para criarem

24 Nesta peça há uma entrada mais contundente na união entre canto e


fala, algo como uma intromissão da música de oratório em um cabaré.
Cf. MENEZES, Flo. Apresentação: as coisas, seus nomes e seus lugares.
In: SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora
UNESP, 2001, p. 13.
25Fetis é citado por MENEZES, Flo. Apresentação: as coisas, seus
nomes e seus lugares. In: SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia.
São Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 15.
O famoso dó-ré-mi-fá-sol-lá-si formam aqui a escala diatônica do tom Dó
26

maior, por exemplo.


72 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

determinadas imagens musicais. A arte da música deveria


registrar sensações de sentimentos humanos, soando de
maneira integrada à sua respectiva tonalidade, isto é, uma vez
encadeada ao domínio de uma nota tônica que comandará as
outras notações no conjunto da composição. Cada som da
escala possui uma função determinada que deve
impreterivelmente soar bem ao ouvido, mesmo que utilize
para isso acordes dissonantes, geralmente diminutos como
vemos no período barroco, ou mesmo de notas que
encadeiam acordes que não lhe são comuns. Essas pequenas
dissonâncias também eram interessantes para gerarem
tensões.
O sistema dodecafônico se propõe a desenvolver os
doze sons da escala musical, conhecido como cromatismo,
sem repetição das notas ou partindo da escolha livre das
durações prolongadas ou encurtadas das notas. Os doze sons
são organizados em uma série original para depois: 1) serem
tocados da direita para a esquerda (retrógrado original); 2)
invertendo-se a direção dos intervalos (inversão original); 3) e,
por fim, a forma invertida é lida da direita para a esquerda
(retrógrado da inversão). Os doze tons se tornam possíveis em
48 variações27. O sistema de Schoenberg dá igualdade às
notas, imprimindo uma profunda espacialidade na
composição, proporcionando ao som musical o contato com
a sua lei interna de composição e com algo que
inevitavelmente foge a uma estética do belo28.

27BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1986.
28Aqui parece clara a intenção de Adorno quando pensa que a “arte só
é interpretável pela lei de seu movimento, não por invariantes.
Determina-se na relação com o que ela não é (...) a sua lei do movimento
constitui a sua própria lei formal.” Cf. ADORNO, T. W. (1970) Teoria
Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 14. Veremos a seguir algumas
conseqüências que podem ser interpretadas dessa frase e alguns
problemas com a postulação cromática como lei do movimento sonoro
em Schoenberg.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 73
Assim, foram aceitos no sistema somente aqueles
complexos sonoros aos quais se podia atribuir esse
modelo, pois é óbvio que o acorde de sétima é uma
sonoridade mais complexa do que, por exemplo, um
acorde dó-mi-sol-ré, conforme vou expor mais à
frente. Mesmo assim, o acorde de sétima é um
acorde, e esse complexo sonoro não é!29
Esse fato característico de uma ruptura ocasionada
pela pesquisa sonora que empreendeu foi suficiente para ser
acusado de ter racionalizado desmesuradamente a música de
seu tempo, retirando todo o afeto, a sensibilidade e a
liberdade da composição que o sistema tonal propunha.
Contudo, qualquer compositor seria livre ao definir a série,
uma vez que a liberdade sonora é extrapolada, retirando da
altura a exclusividade sonora que imperava na composição
tonal30.
Adorno, precocemente, percebe a genialidade do
sistema de Schoenberg, e além de aprender a técnica
dodecafônica, tal como percebemos em suas “Duas peças
para piano” (Zwei Klavierstücke), de 1934, o filósofo de
Frankfurt também desempenhou atividade de crítico
musical, enxergando no dodecafonismo mais do que uma

29 SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora


UNESP, 2001, p. 446. Essa consideração é substancial para ser pensada
como exemplo da amplitude de possibilidades da harmonia em direção
à razão complexa de constituição dos acordes.
30 Deve-se estar consciente de que na primeira fase do dodecafonismo
há uma forte iconoclastia característica de seu movimento de ruptura
com a tonalidade. Posteriormente, quando Schoenberg parte aos
Estados Unidos, e com o desenvolvimento do serialismo, ele próprio irá
apresentar em seus concertos algo de uma sensibilidade surpreendente:
“As melhores peças, contudo, não confiavam nem nas séries
dodecafônicas, nem nos trios tradicionais. São aquelas nas quais ele opera
desembaraçadamente com meios composicionais próprios; dispondo em
camadas, por exemplo, campos temáticos ordenados ao redor de
diferentes modelos centrais.” Cf: ADORNO, Theodor. W. (1955)
Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 167.
74 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

mera matematização musical, mas sim vendo os elementos


substanciais para uma contundente crítica da Alemanha
nazificada.
Com isto não afirmo que uma composição seja
compreensível espontaneamente apenas em sua
própria época e que está destinada à degradação ou
ao historicismo. Mas a tendência social geral, que
eliminou da consciência e do inconsciente do
homem essa humanidade que outrora constituía o
fundamento do patrimônio musical hoje corrente,
faz com que a ideia da humanidade se repita ainda
sem caráter de necessidade e somente no cerimonial
vazio do concerto, enquanto a herança filosófica da
grande música somente por acaso atinge quem
desdenha esta herança.31
Os fatos concretos da história foram esquecidos para
dar luz a uma mitologizaçao do homem moderno galgada em
um passado ancestral digno de ser cantado em canções e,
assim, transmitido pela memória da nação alemã (Heimat).
Uma sociedade imaculada e purificada se apresenta aqui.
Surge a ideia de um Ser, entidade ordenadora e constitutiva
das coisas, vulgarmente abstrata para uma classe de filósofos
que tentam responder à morte da metafísica promulgada por
Nietzsche. O líder dessa classe parece ser, sem sombras de
dúvida, Martin Heidegger, colocando em litígio o significado
ambíguo desta palavra possuidora de uma natureza própria
e exclusiva de ser o ente (to on) e, portanto, a não assumir-se
em uma referencialidade com a questão do Ser (o Seyn, como
Heidegger buscou trazer do alemão antigo). “Procura-se um
fundamento, que deve fundar o império do ente, como
superação do Nada”32. Este ente que não nega o Ser, pois

31 ADORNO, T. W. (1948) Filosofia da nova música. São Paulo:


Perspectiva, 2004, p. 19.
32HEIDEGGER, Martin. (1935) Introdução à metafísica. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1969, p. 57.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 75

vive como um ser, mas não é Nada, algo tão envolvido na


aporia de Parmênides quanto qualquer outro objeto em que
o pensar se equivale a um ideal de pensar e, por sua vez,
torna-se pura abstração.
A revigoração da ontologia a partir de uma intenção
objetivista seria suportada por aquilo que certamente
menos se adéqua à sua concepção: pelo fato de o
sujeito ter se tornado em grande medida ideologia,
dissimulando o contexto funcional objetivo da
sociedade e tranquilizando o sofrimento dos sujeitos
no interior dela. É nessa medida que o não-eu recebe
uma preponderância drástica em relação ao eu, e não
apenas hoje. Isso é deixado de lado pela filosofia de
Heidegger, mas ela o registra: em suas mãos, esse
primado histórico transforma-se pura e
simplesmente em primado ontológico do ser ante
todo o elemento ontológico, ante tudo aquilo que é
real.33
A acusação formal é de que a ontologia fundamental
de Heidegger é uma reação conservadora que está próxima
da ideologia política do nazismo alemão34, uma vez que sua
situação binária ao determinar o ser e o não-ser coloca em
perspectiva toda uma situação classificatória, como a
aclamação à pureza étnica e perseguição ao fruto do acaso
ou da mestiçagem, típicas do povo judeu, cuja verdade
universal pudesse estar submetida sob a égide de um mesmo
pensamento. A busca dessa clareira, como o próprio
Heidegger chama o ser-aí (Dasein) como a atividade de um
ente preferencial – a linguagem humana – que melhor capta
o Ser, escapando a uma conceitualidade que leva a
divergências mentais na sua pretensão de ser real. A opção
33ADORNO, T. W. (1966) Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006, p. 64.
Para maiores detalhes, cf. SOUZA, Ricardo Timm de. O Tempo e a
34

Máquina do Tempo: estudos de Filosofia e Pós-modernidade. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 1998.
76 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

pelo ser não seria uma mera atribuição de sentido, mas, ao


menos para a totalidade da filosofia ocidental, seria a última
opção para escapar ao desamparo ocasionado pela
artificialidade da vida moderna, pois “o ser enfático de
Heidegger seria o ideal daquilo que se entrega à ideação”35.
A música deste tempo se volta ao passado para
consagrar o encontro da raça ariana perdida. A
complexidade musical de Schoenberg não tem espaço, sendo
considerado arte degenerada (Entartete Kunst), em 1937, pelo
Terceiro Reich. Richard Wagner possui mais melodia e conta
a história da formação ariana com sua peça “O Anel dos
Nibelungos” (Der Ring des Nibelungen), a partir do resgate da
cultura medieval. “Não somente o ouvido do povo está tão
inundado com a música ligeira que a outra música lhe chega
apenas como considerada ‘clássica’, oposta àquela; (...) a
concentração de uma audição responsável é impossível.”36 É
problemático todo o conceito imanente sem finalidade
transcendente, uma vez que a busca está fora. Há uma
renovação do interno para o externo que não pode ser
entregue cegamente sem começar a tomar contato com as
diferenças que ali emergem, causando trânsito e conflito.

Por um ensino da música, um ensino do humano

Música advinda de um instante entre um som sem


sentido e sua organização em um universo materializado em
obra. Uma música partilha, assim como a palavra, de um som
e um sentido, remetendo a um novo patamar de restrições e
aproximações que levam a um precedente sem tamanho na
história ocidental. “Em outras palavras, gravitamos, segundo
Carpeaux, em torno da evolução tonal européia, e nisso

35ADORNO, T. W. (1966) Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2006, p. 66.
36 ADORNO, T. W. (1948) Filosofia da nova música. São Paulo:
Perspectiva, 2004, p. 19.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 77

consistiria necessariamente para nós a (história da)


música.”37 Wisnik mostra com isso um espaço de
particularidade na forma de captar os sons e transformá-los
em música, uma vez que criamos também as pessoas que se
tornam seus grandes ícones. A linguagem do Ocidente é
cheia desse desenvolvimento do eu e da matéria que torna o
som musical um sentido. Já há um som dentro de nós,
vibrando de modo irregular e desconhecido, como mostra
John Cage com sua experiência do silêncio. “O som é
presença e ausência, e está, por menos que isso apareça,
permeado de silêncio.”38
Como é isso de acessar o silêncio? A música não deve
preencher espaços onde justamente o silêncio não tem
sentido? De onde vem essa necessidade de expressão
sonora? Schoenberg no seu leito de morte recita sua última
palavra: Harmonia. Palavra que diz nela mesmo a base de seu
estudo mais importante: uma lição (Lehre) sobre como os
sons se organizam na forma de música. A harmonia, diz ele,
não necessita de ornamentos, mas justamente de um encaixe,
um espaço adequado para que a música possa ser
desenvolvida. Ele desafia as leis do entendimento musical
por serem regras que tentam dar conta inclusive de
movimentos sonoros futuros. É nesta matéria primitiva,
ainda distante do estatuto pomposo que receberá o nome de
música, que o compositor austríaco desafia a tradição para
renová-la de uma maneira surpreendente. Segundo a
tradição, os teóricos musicais “querem que suas teorias
sirvam como estética prática; ambicionam influir no sentido
da beleza de tal modo que, mediante progressões
harmônicas, por exemplo, se produzam efeitos que possam
ser considerados belos; querem ter o direito de proibir os

37WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história da música. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 10.
38WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história da música. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 10.
78 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

sons e encadeamentos que consideram feios”39. Uma música


feia, fora das regras, não tem o direito de ser apresentada,
como fizeram com sua obra expressionista “Noite
Transfigurada” (Verklärte Nacht), de 1899.
Os dez anos de silêncio do compositor mostram algo
muito significativo sobre uma prática que diz respeito ao
trabalho na matéria sonora, evitando métodos de encaixe
fácil, uma voz do lugar comum e mais atormentadora para
qualquer tipo de transmissão: não permitir que o som caia
em um sistema simplificado. Permitir a exceção, ainda que
essa não tenha lugar no mundo do esperado, da
programação que sempre nos passa a ideia de que não se
deve perder tempo com o passado, nem tentar mudar o que
sempre foi dado como natural e verdadeiro na história,
garantindo assim que o tempo do Ser, como sempre criticou
Adorno, mostre a máquina de destruição em massa da
experiência humana. Como aparece na mesma máquina de
A Colônia Penal, de Franz Kafka40, cuja sentença proferida só
pode ser conhecida com a impressão torturante no corpo do
acusado. Máquina da morte, excluindo e determinando
quem deve viver e morrer, tal como vemos nos mecanismos
jurídicos da Alemanha nazificada.
O patológico no antissemitismo não é o
comportamento projetivo enquanto tal, mas a
ausência da reflexão que o caracteriza. Não
conseguindo mais devolver ao objeto o que dele
recebeu, o sujeito não se torna mais rico, porém,
porém mais pobre. Ele perde a reflexão nas duas
direções: como não reflete mais o objeto, ele não
reflete mais sobre si e perde assim a capacidade de
diferenciar. Ao invés de ouvir a voz da consciência

39SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora


UNESP, 2001, p. 45.
40KAFKA, Franz. O veredicto e Na Colônia Penal. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 79
moral, ele ouve vozes; ao invés de entrar em si
mesmo, para fazer o exame de sua própria cobiça de
poder, ele atribui a outros os “Protocolos dos Sábios
de Sião”. Ele incha e se atrofia ao mesmo tempo.41
Os efeitos nefastos de sua patologia imunizam o
adepto de forma a se ver como imagem e semelhança de
Deus, podendo ser o demiurgo que restabelece a ordem do
mundo. Ao estudar a teoria psicanalítica, Adorno
compreende que a psicanálise não deve ser sustentada por
fórmulas mágicas, advindas de interpretações mirabolantes e
restritas aos pensamentos desconectados do paciente que
possam advir do psicanalista, porém, a psicanálise deveria se
posicionar frente a uma práxis, conceito advindo da teoria
marxista, entendida como o encontro da teoria e da prática
numa relação com o pensamento propriamente dito, ação do
pensamento no mundo. Internamente, uma pessoa precisa
mobilizar forças para olhar dentro de si de forma crítica,
olhar para seus atos egoístas, fracos e que a levam a odiar o
outro porque também odeia a si mesmo. A sociedade
funcionaria da mesma forma, cristalizando em puro gozo e
ostentação mundana superficial aquilo que mais agrada aos
ouvidos ou admoestando e proibindo o contato com um
sentimento desconhecido. Pesos diferentes para as mesmas
ações psíquicas que decidem o que deve viver ou não.
A projeção patológica é um recurso desesperado do
ego que, segundo Freud, proporciona uma proteção
infinitamente mais fraca contra os estímulos internos
do que contra os estímulos externos. Sob a pressão
da agressão homossexual represada, o mecanismo
psíquico esquece sua mais recente conquista
filogenética, a percepção de si, e enxerga essa

41ADORNO, Theodor. W. & HORKHEIMER, Max. (1944) Dialética do


Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.
156.
80 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
agressão como um inimigo no mundo ara melhor
enfrentá-lo.42
Em ambos os casos parece que o silêncio sofre da
perda de seu tempo interno. Como ouvir o que está dentro
de nós? Sobre esse gesto social de imitação, gesto arcaico e
repetitivo, em certo ponto necessário para a vida, mas que
diante de nossas idiossincrasias leva impreterivelmente à
alienação, Schoenberg escuta com clareza o que vale tanto
para o desenvolvimento da música, quanto para aquilo que
um ser humano possui de mais importante: “O que importa
é a capacidade de escutar a si próprio, de contemplar a si
mesmo profundamente, algo que dificilmente pode ser
obtido e que, seja como for, não pode ser ensinado”43. Sendo
imposta ao homem uma certa dose de mediocridade, ele
rejeita suas inclinações e passa a nadar no mesmo fluxo bem
adaptativo do mundo contemporâneo, fixando-se mais no
que interessa aos outros, ouvindo desmedidamente o canto
das sereias de Ulisses. Para além do mero ouvir, há um
escutar. Escutar passa a ser uma postura diante do ouvir,
uma entrega ao que não pode ser encarado como um ruído
qualquer perceptível. Escutar, nessa composição, é permitir
que aquele que ensina também escute o movimento que
produz seu ensinar. Uma escuta ativa que surpreende, tira do
centro e leva às bordas das descobertas mais preciosas.
Schoenberg dirige seus estudos para um aluno de
música, aspirante a artista, algo que a psicanálise prioriza em
todos os seus participantes: que cada um possa ser um bom
artista de si mesmo, não superestimando os pontos fortes,
mas priorizando um genuíno encontro com os pontos
fracos, uma vez que eles se esforçam por continuar

42ADORNO, Theodor. W. & HORKHEIMER, Max. (1944) Dialética do


Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.
159.
43SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora
UNESP, 2001, p. 567.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 81

adormecidos e prejudicando o sujeito. Eis que surgem as


resistências e aí se tem a noção de que se está tocando em
pontos decisivos para a melhora do paciente44. Freud,
demonstrou o quanto uma situação transferencial leva,
impreterivelmente, a um maior conhecimento do paciente
sobre si mesmo, uma vez que o número de sessões durante
a semana e o estreitamento da relação transferencial com o
analista levam ao aparecimento das resistências, ou seja, das
situações em que os pacientes apresentam dificuldades de
enfrentar. O psicanalista de Viena demonstrou isso com o
célebre caso Dora, de 190545 e posteriormente com seu
estudo intitulado A dinâmica da transferência46.
Se por um lado a Alemanha de Adorno não está
preparada para enfrentar as situações difíceis que levam ao
esbatimento de suas diferenças sociais, por outro, Freud e
Schoenberg apontam que a única forma de trazer
autenticidade à vida das pessoas é uma nova configuração da
escuta, mais livre e autoral. “O artista há de aprender
somente para cometer erros dos quais depois tenha que
libertar-se. (...) Suas experiências e observações depositam-
se, em parte, na ciência; mas uma outra parte – que não sei

44 Em muitas sessões com pacientes é necessário demonstrar a eles o


quanto podem se aproximar aos poucos das sensações difíceis, tais como
o medo do que pode acontecer caso uma parte secreta se mostre
revelada. Entretanto, isso se faz a partir de uma intimidade que
constituímos com o paciente para que ele possa estabelecer uma relação
transferencial com o terapeuta, projetando, assim, as angústias de seus
inconscientes. Ao ser colocado nesse lugar de objeto transferencial, o
terapeuta abre espaço para que o paciente se expresse de seu próprio
jeito.
45FREUD, Sigmund. (1905 [1901]) Fragmento de análise de um caso de
histeria. In: STRACHEY, J. (Ed. e Trad.). Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 7. Rio de Janeiro: Imago,
1974.
46 FREUD, Sigmund. (1912) A dinâmica da transferência. In:
STRACHEY, J. (Ed. e Trad.). Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
82 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

se é a mais segura – repousa no inconsciente, no instinto”47.


A exposição livre do artista é uma expressão de sua
subjetividade sem, porém, ser nela um reducionismo. O
artista após muitas tentativas, e estudos de técnicas, precisa
relaxar seus conhecimentos aprendidos para permitir a
expressão daquilo que lhe habita. Esta tarefa maiêutica
precisa ser a tarefa do professor: “Quando fala ao aluno, o
professor fala consigo próprio. ‘Conversando contigo, tão
somente me aconselho.’ Ele leciona a si próprio, é o seu
próprio professor e o seu próprio aluno”48. O apontamento
do músico de Viena mostra que o bom professor também
precisa acionar os mecanismos internos que estão dentro
dele para estar com seu aluno. Somente dessa forma ele pode
começar a ensinar, não mais a regra ou a lei, não mais com a
palavra fatigante do signo lingüístico, mas com sua
sensibilidade. “Cada acorde que estabeleço corresponde a
uma obrigação, a uma opção de minha necessidade
expressiva; mas também à constrição de uma lógica
inexorável, ainda que inconsciente, da construção
harmônica”49. O que são os acordes senão acordos entre os
sons? Um contrato que por vezes se torna dissonante para
atender a uma outra demanda mais complexa entre os sons.
É na sequência dos sons, entre o grave o agudo, entre um
semi tom acima ou abaixo, que habita o problema do que
virá em seguida em uma composição: “altura (Höhe), timbre
(Farbe) e intensidade (Stärke). Até agora, o som tem sido

47SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora


UNESP, 2001, p. 571.
48 SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora
UNESP, 2001, p. 573. Sabemos aqui o quanto é importante que o
analista possa ser abstêmio de suas questões pessoais, recusando incluir
um conteúdo seu e com isso evitar a atrapalhação que essa confluência
gera no paciente e da perda de objetividade que um analista precisa
também estar atento.
49SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora
UNESP, 2001, p. 573-574.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 83

medido somente em uma das três dimensões nas quais se


expande: naquela que denominamos altura”50. Por que
timbre e intensidade parecem estar afastados do sistema
sonoro musical? Essa exclusão do Ocidente em estudá-los é
o próximo paradigma de Schoenberg, incluindo-os na
tradição da música, dando especial e particular atenção à
dissonância, ao que está obstruído de uma relação por ser
considerado sem sentido, feio, hediondo. O crime do ghenos
mais uma vez soa como a parte que a cultura não sabe lidar,
o crime que o inconsciente de cada pessoa realiza em sonhos
todas as noites, tão apontado por Freud como parte da
constituição psíquica. “Acho que o som se faz perceptível
através do timbre, do qual a altura é uma dimensão. (...) A
altura não é senão o timbre medido em uma direção”51. Há
um efeito parecido com o pensamento que passa a ser uma
dimensão do ser humano, intervalado por pausas que
concatenam ações diferentes. Se o timbre é uma dimensão
da música e é intercalado por alturas, ele passa a ser mais
complexo do que a altura, passando a ser mais interessante
de realizar a sonoridade escondido, ou seja, uma composição
feita de timbres leva a um outro encontro com a matéria
trabalhada. Pensamentos reunidos passam a formar uma
associação livre de cenas mais abstratas e tênues, resultando
em um acontecimento que é ele mesmo fruto de uma
elucubração concreta sobre a matéria que formava imagens
cristalinas, “dando vida com nossa vida ao que de momento
é morto para nós tão somente em razão de um insignificante
vínculo que mantém conosco”52.

50SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora


UNESP, 2001, p. 578.
51SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora
UNESP, 2001, p. 578.
52SCHOENBERG, Arnold. (1921) Harmonia. São Paulo: Editora
UNESP, 2001, p. 579.
84 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

O problema levantado por Schoenberg é um desafio


à linguagem musical, por rebelar-se aos signos habitantes de
uma pretensa pureza alinhada ao sentimento do belo e com
isso tornando a música mágica como se mostra o processo
de esclarecimento na modernidade. Uma palavra que não
significa e só designa, petrificando-se em uma fórmula,
torna-se qualquer coisa, perde o sentido, como bem
disseram Adorno e Horkheimer, em “A indústria cultural: o
esclarecimento como mistificação das massas”:
Isso afeta tanto a linguagem quanto ao objeto. Ao
invés de trazer o objeto à experiência, a palavra
purificada serve para exibi-lo como instância de um
aspecto abstrato, e tudo o mais, desligado da
expressão (que não existe mais) pela busca
compulsiva de uma impiedosa clareza, se atrofia
também na realidade53.
A perda do sentido é o mais forte de todos os
problemas enfrentados pelo homem no século XX. Sua
justificativa leva à guerra, ao ódio e à alienação que anula um
real contato entre as pessoas. Não é só a música que perde,
mas é todo o manancial de experiências humanas que foi
profundamente atingido e empobrecido. Nesse ponto
Adorno lê Benjamin, integrando-o à escuta do sofrimento
que a psicanálise também tenta de algum modo abrir
caminho dentro do ser humano.

Ao fim, a lição

Como foi simples esta lição de Schoenberg! Ele


próprio utilizando-se do ponto de exclamação para dar lugar
a uma marca exclusiva da oralidade. Esse ponto que precisa
ser apontado com certo ímpeto na fala, para jogar uma

53ADORNO, Theodor. W. & HORKHEIMER, Max. (1944) Dialética do


Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.
136.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 85

intensidade sonora determinada, surpreendendo o


interlocutor no ruído algo que ele não imaginava possuir.
Podemos cessar a música de fora, mas não fechamos
o som que sai dentro de nós. Isso parece muito familiar na
prática psicanalítica, uma vez que a música que compomos
no consultório é uma levada de diferentes intensidades e
dependente do reconhecimento desses sons, dissonantes,
soando mal aos ouvidos por serem absurdas revelações
internas, contundentes demais para serem escutadas como
importantes em nossas vidas. “A experiência artística só é
autônoma quando se desembaraça do gosto da fruição”54. O
prazer da obra de arte é maior do que o gozo estético
provoca na sua imediatez, envolvendo uma certa angústia
que parte do espectador ao observar uma verdadeira obra de
arte.
A psicanálise para Adorno pode proporcionar uma
reflexão mais íntegra acerca do humano congestionado, não
podendo dar-se por vencida nem mesmo em sua
compreensão e interpretação consagradas. Usar a conflitiva
edípica como um cartão final sobre o que ocorre com a obra
estética, indicando os complexos perturbadores do artista
leva a uma estereotipização desmesurada. Este fato é
justamente o inverso do fazer psicanalítico, perdendo de
vista a iconoclastia que acontece na transferência. Na Teoria
Estética, Adorno indaga seriamente sua aplicação irrestrita: “a
imaginação também é fuga, mas não completamente: o que
o princípio da realidade transcende para algo de superior
encontra-se também sempre em baixo”55. Uma neurose não
é suficiente para o emaranhado de emoções que percorrem
uma obra, uma obra não é uma mera e simplificada redução
biográfica, apesar de guardar em seu silêncio toda uma vida

54ADORNO, T. W. (1970) Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p.


28.
55ADORNO, T. W. (1970) Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p.
23.
86 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

de trabalho e esmero que quer ser compartilhada com os


outros.
Nos artistas de altíssima classe, como Beethoven ou
Rembrandt, alivia-se a mais aguda consciência da
realidade à alienação da realidade; só por si isto já
constituiria um objeto digno da psicologia da arte,
que não teria de decifrar a obra de arte apenas como
algo de semelhante ao artista, mas como alguma
coisa de diferente, como trabalho em algo que
resiste. Se a arte tem raízes psicanalíticas, são as da
fantasia da onipotência. Na arte, porém, atua
também o desejo de construir um mundo melhor,
libertando assim a dialética total, ao passo que a
concepção da obra de arte como linguagem
puramente subjetiva do inconsciente não consegue
apreendê-la56.
Uma obra de arte possui uma matéria inerente ao
desejo da interpretação mais imanentista que a lógica do
inconsciente possa dar conta. Essa necessária crítica ao se
dirigir até a propriedade transcendental das obras não fixa-
se somente ao outro que a vislumbra, mas também vai ao
meio que a obra coloca-se à disposição. Os complexos
inconscientes são só uma dimensão nesse caso. A
transformação do objeto de desejo em atividade sublimatória
transforma o meio da veiculação pulsional, atribuindo outro
sentido à obra. A arte de forma alguma é o real, mas por
vezes sua demonstração atinge tão profundamente a
realidade circundante que desperta em nós a ira por sua
visceralidade, tal como Schoenberg foi testemunha. Ao
psicanalista escutar ainda deve ser um processo de
descentralidade de julgamento sobre o sujeito, lugar sem
memória, sem desejo e sem compreensão57. Esse seria um

56ADORNO, T. W. (1970) Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p.


24.
57Máxima do psicanalista inglês Wilfred Bion que visa olhar novamente
sobre o que parte do analista em direção à uma escuta que dê lugar de
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 87

desafio a todo o psicanalista diante da necessidade em lidar


com algo tão forte e indagador de fórmulas como o que
advém escuta clínica; paradigma para o devir das
transformações correntes no setting e ao mesmo tempo o
instrumento que sustenta a possibilidade de compartilhar
com o outro um momento na história do tempo. A relação
com a saúde nem sempre está implicada tão diretamente,
uma vez que há uma relação humana que está em primeiro
plano. Sobre esse breve instante, tanto a sensibilidade
estética, como a crítica cultural e a psicanálise partilham de
pontos irredutíveis: a busca por uma experiência humana
genuína que não se deixe subsumir por um gozo total e
irrestrito, levando à ignorância de si; nem a um ideal
restabelecimento da ordem por um governo totalitário.
Adorno pensa na crítica de seu tempo, na usurpação da
prática perniciosa do capitalismo na evolução dos meios
culturais. Ele assim o faz para desmistificar os produtos que
a própria racionalidade moderna engendrou como meta
purificadora do mundo desconhecido. Há um excesso de
racionalidade que solidifica a realidade em uma dimensão de
miséria cultural, cuja narrativa histórica é desnecessária para
a boa obediência do sistema. Contra uma vida irrelevante
para ser vivida, expurgada do acesso à sensibilidade que cada
um é portador, Adorno nos convida a participar ativamente
da sociedade.

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Hegel e Adorno: potencialidade
crítica do pensamento
Evandro Pontel1
Olmaro Paulo Mass2
Isis Hochmann de Freitas3
Georg W. F. Hegel ultrapassa o idealismo subjetivo
de Immanuel Kant para a esfera do real. Conforme o
primeiro, o conceito não mais permanece reprimido à
subjetividade do entendimento exterior à coisa, nem pela
mera abstração. Dessa forma, uma parte constitutiva e
central da dialética hegeliana consiste em que a razão
encontre sua plenitude num conceito que vai se
reconhecendo numa realidade objetiva e estrutural, em uma
espécie de fluxo espiral que visa abarcar a totalidade do real.
Nesse âmbito, em Fenomenologia do espírito, o pensador de Jena
destaca:
Com a consciência-de-si entramos, pois, na terra
pátria da verdade. Vejamos como surge inicialmente
a figura da consciência-de-si. Se consideramos essa
nova figura do saber - o saber de si mesmo - em
relação com a precedente - o saber de um Outro -
sem dúvida, que este último desvaneceu; mas seus
momentos foram ao mesmo tempo conservados; a
perda consiste em que estes momentos aqui estão
presentes como são em si. O ser ‘visado’ [da certeza
sensível], a singularidade e a universalidade - a ela
oposta - da percepção, assim como o interior vazio

1 Doutorando em Filosofia – PUCRS, Bolsista CNPq.


2Doutorando em Filosofia – UNISINOS, Professor no IFIBE – Passo
Fundo RS.
3 Doutoranda em Ciências Sociais – PUCRS, Bolsista CAPES.
92 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
do entendimento, já não estão como essências, mas
como momentos da consciência-de-si; quer dizer,
como abstrações ou diferenças que ao mesmo
tempo para a consciência são nulas ou não são
diferenças nenhumas, mas essências puramente
evanescentes. Assim, o que parece perdido é apenas
o momento-principal, isto é, o subsistir simples e
independente para a consciência. De fato, porém, a
consciência-de-si é a reflexão, a partir do ser do
mundo sensível e percebido; é essencialmente o
retorno a partir do ser-Outro. Como consciência-de-
si é movimento; mas quando diferencia de si apenas
a si mesma enquanto si mesma, então para ela a
diferença é imediatamente suprassumida, como um
ser-outro. A diferença não é; e a consciência-de-si é
apenas a tautologia sem movimento do “Eu sou
Eu”. Enquanto para ela a diferença não tem também
a figura do ser, não é consciência-de-si.4
Nesse sentido, o conteúdo da experiência é elevado
ao nível do pensamento conceitual de tal forma que o
conceito é a atividade do sujeito e, desse modo, a forma
própria da realidade posta à razão. Dito de outro modo: é
um percurso de si a si que encontra a consciência de si como
seu elemento central, constituindo-se em um vir a se saber,
a se conhecer, no qual este se constitui como motor de seu
próprio processo. Nessa acepção, esclarece Denis L.
Rosenfield:
Apenas o espírito existe no percurso de suas
identificações de si, em que cada momento é posto
pelo movimento que o engendra. Permanecer no
nível de uma identificação que meramente se
justapõe a outra equivaleria a perder mediante o qual
o espírito se põe e, desta maneira, se dá existência. O
pensar ao conceber aquilo que existe, aquilo que lhe
é dado, necessita tomar este dado em suas sucessivas

4 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito, 2001, IV, 167, p. 120.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 93
posições, o que configura o movimento próprio do
espírito. Dizer o que é o espírito implica a superação
das determinações fixas do entendimento que,
enquanto tal, em seu isolamento, recorre a
identificações carentes de movimento. O pensar, por
sua vez, faz parte do próprio processo de vir a ser do
espírito em si mesmo, graças ao qual ele se dá
existência.5
Diante disso, os elementos que compõem o exercício
e a exposição à luz do sistema e da concepção hegeliana de
dialética devem reconhecer uma força constitutiva de
instância prévia, que não é meramente uma relação subjetiva,
do sujeito que determina em si mesmo uma verdade
mediatizada, simplesmente de um espírito que abstrai do
mundo seu conteúdo, mas em direção ao idealismo objetivo.
Poder-se-ia dizer, então, que a dialética hegeliana permite
pensar a realidade a partir da consciência do em-si e torna-se
em-si e para-si, em que a razão constrói o caminho por meio
da Aufhebung como momento da efetivação e da participação
da dinâmica histórica hipostasiada ao espírito. Trata-se de
um momento de passagem, do elevar-se à realização do
Espírito pela síntese em direção à efetivação da liberdade por
meio de uma racionalidade que se autocompreende.
Para Hegel, a história está ligada intrinsecamente às
transições históricas, nas quais se mostra o
autodesenvolvimento da razão, que neste exercício
complexo de prospecção é no fundo um processo lógico em
que os pensamentos por meio de conexões estão ligados uns
aos outros. Na dialética, enquanto método em movimento,
inexiste separação dualista entre pensamento e realidade. O
próprio movimento dialético possui uma finalidade
específica, ou seja, a reconciliação das oposições, das
contradições e a síntese dos opostos, na medida em que a
história vai sendo desvelada na trajetória de todas as etapas,

5 ROSENFIELD, Denis L. A metafísica e o absoluto, 2002, p.170.


94 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

por seus diversos estágios em sua natureza e do vir-a-ser.


Conforme Hegel:
O reino do Espírito consiste naquilo que é apresentado pelo
homem. Pode-se ter todo tipo de ideias a respeito do Reino de
Deus, mas sempre haverá um reino do Espírito para ser
claramente compreendido e realizado no homem. O reino do
Espírito abrange tudo, inclui tudo aquilo que alguma vez
interessou ou interessará ao homem. O homem é ativo nele –
seja o que for que faça, o homem é a criatura na qual o
Espírito obra. Ao contemplar a história do mundo, devemos
considerar seu objetivo final. Este objetivo final é aquilo que é
determinado no mundo em si.6
Assim, na esfera do intelecto dá-se a realização da
efetivação do espírito. Nesse processo de efetivação, de
autorreconhecimento e autoafirmação de si, desdobramento
da identidade ou da subjetividade, Hegel resolve o problema
da inteligibilidade da realidade empírica no decorrer desse
percurso intelectivo. A dialética, por um lado, pode justificar
uma noção de história como progresso, embora muitas vezes
a história seja destituída de sentido a qualquer pretensão da
razão. Nessa acepção, na perspectiva da exposição de uma
racionalidade que se autocompreende em nível mais elevado,
destaca Oneide Perius:
Hegel é o que leva o processo de auto-afirmação da
razão ao seu nível mais elevado, ao ponto onde a
própria razão se descobre como a essência e
produtora da realidade. A autoconsciência desse
processo, ou seja, quando a razão deixa de ser, na
terminologia hegeliana, somente em-si e torna-se
em-si e para-si, isto é, quando se enxerga na realidade
e toma consciência de que o sentido dessa realidade
é por ela (razão) estabelecido, neste momento
estamos na pátria do saber absoluto. Hegel leva a

6 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na história, 1992, p. 61-62,


[grifo do autor].
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 95
razão a reconstruir o caminho através do qual se
efetivou na realidade até o ponto em que se
confunde com a própria realidade. Isto
inevitavelmente o leva a refletir sobre a história e
implica numa filosofia da história.7
Desse modo, a compreensão de uma filosofia da
história em Hegel caracteriza-se pelo viés da dialética como
movimento do subterfúgio do não-idêntico em contraposição
ao do Aufhebung [tais como o devir, a efetividade ou a ideia -
determinação fundamental que caracteriza todo o movimento racional e
lógico em direção ao real], que se efetiva como conhecimento
interiorizado da realidade, o movimento histórico enquanto
evolução de um pensamento em direção ao Absoluto.
A racionalidade em sua constitutividade compreende
o sentido da história, e a realidade é o seu próprio
instrumento de desenvolvimento em que o que é racional é
efetivo e o processo se torna sistemático. Cabe destacar no que
se refere à concepção de história, as esclarecedoras palavras
de Robert S. Hartman:
Por isso, quanto mais acontece na História, mais o
Espírito pode se desenvolver, mais ele pode saber e
pensar. Somente a estagnação seria hostil à História.
Mas o acontecimento não deve ser cego, caótico,
sem direção. O Espírito não é enriquecido apenas
apreendendo o concreto em sua passagem, alguns
acontecimentos estão antes mais, e outros menos,
em acordo com ele. O Espírito não é apenas
dinâmico, não tem apenas um índice de progresso,
não é, como se poderia dizer, quantitativo; ele
também tem uma qualidade, um objetivo, uma
direção – aquela realidade que irá durar mais e que
prevalecerá no caos de acontecimentos cuja
qualidade se parece mais com aquela do próprio

7PERIUS, Oneide. Walter Benjamin: a filosofia com exercício, 2013, p.


117.
96 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
Espírito. Esta qualidade, como já foi mencionado
anteriormente, é a Liberdade.8
No sistema filosófico hegeliano é como vontade que
o espírito entra na efetividade do mundo9. Neste sentido, é a
ideia enquanto figura lógica que permite à vontade
entranhar-se e exteriorizar-se no mundo, produzindo-se,
mediatizando-se. Na Enciclopédia da lógica, Hegel afirma “tudo
o que é efetivo, enquanto é algo de verdadeiro, é a ideia e
tem sua verdade só mediante e em virtude da ideia”10. No
prefácio da Filosofia do direito, o pensador de Jena afirma que
“[...] lo único efectivamente real es la idea”.11
Nessa acepção, a categoria central para entrar na
exterioridade do mundo decorre de uma racionalidade que
se expressa efetivamente como ideia. Assim, Hegel pensa em
um momento absolutamente exemplar e eminente de
autocompreensão da subjetividade idêntica a si mesma.
Nesse sentido, “Lo racional es real y lo que es real es
racional”12. Ou seja, a ideia adquire um estatuto lógico-
ontológico entendido como um produto, um artefato da
racionalidade, como expressão desta. No momento em que
a ideia se torna conteúdo da vontade, o espírito se efetiva no
mundo em uma processualidade em que se dá a passagem
do espírito subjetivo para o espírito objetivo, alcançando por
fim o espírito absoluto. O espírito objetivo se configura
como ação no momento em que se dá a exteriorização como

8 HARTMAN, S. Robert. O significado de Hegel para a história. In:


HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na história: uma introdução
geral a filosofia da história. Trad. Beatriz Sidou. 2. ed. São Paulo:
Centauro, 2001, p. 25.
9 HEGEL, G. W. F., Enciclopédia das ciências filosóficas, 1995. (III, § 469).
10 HEGEL, G. W. F., Enciclopédia das ciências filosóficas, 1995. (I, § 213).
11 HEGEL, G. W. F., Princípios de la filosofia del derecho o derecho natural y
ciencia política, 1975, p. 23.
12 HEGEL, G. W. F., Princípios de la filosofía del derecho o derecho natural y
ciencia política, 1975, p. 23.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 97

produto da vontade. Esse objetivar-se do espírito objetivo,


com efeito, somente pode se dar na sociedade, nas
instituições sociais, pois apenas nessa esfera a vontade é
capaz de se determinar na medida em que se realiza a ideia
de liberdade.
Theodor Adorno, ao iniciar o prólogo da Dialética
negativa13 como antissistema, explicita que tal concepção de
dialética precisa ser compreendida como detentora em sua
natureza e constitutividade, uma repulsa e indignação ao
princípio de identidade e onipotência da racionalidade
instrumental. Vejamos: “Com meios logicamente
consistentes, ela se esforça por colocar no lugar do princípio
de unidade e do domínio totalitário do conceito
supraordenado a ideia daquilo que estaria fora do encanto de
tal unidade”.14
Assim, o exercício filosófico não pode prescindir
da realização de uma crítica a partir de si mesma, de tal forma
que o seu futuro próprio depende disso. Na crítica às
filosofias sistemáticas, trata-se de apreender ao contrário,
não a partir de uma negação, mas de um novo elemento
teórico-metodológico que faz parte intrinsecamente de sua
elaboração filosófica.
Destarte, esse diagnóstico filosófico referido por
Adorno na Dialética negativa se dá a partir da relação e da
reciprocidade dos conceitos, isto é, os conceitos não
entendidos como meras unidades que demarcam posições
subjetivas, mas possuem vida própria, já que vivem na
história que neles se sedimentaram. Nesse âmbito as palavras
de Hans-Georg Flickinger são esclarecedoras: “não é apenas
o pensamento intuído que está à procura dos conceitos
adequados, identificadores do conteúdo pretendido, senão,

13ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio


Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
14 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa, 2009, p. 8
98 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

completamente, são os conceitos que procuram, também, o


pensamento adequado”.15
O método filosófico exposto na compreensão de
dialética negativa, por seu turno, enquanto ao revelar-se no
movimento da insuficiência do conceito, torna possível a
liberdade do pensamento como resistência na sua
constituição e, precisamente, no desenvolvimento do seu
desdobramento reflexivo. Assim, nesse sentido, a dialética
negativa, de acordo com Bruno Pucci, proporciona uma
estrutura dinâmica, mediatizada por uma potencialidade
interna, presente no conceito que pode ser somente dito na
relação da admiração e da estranheza, na busca da tentativa
imanente ao querer se revelar seus momentos em
determinada ocasião e contexto:
Hegel via na negatividade o movimento do conceito
para o outro como um momento imprescindível
dentro do processo maior da dialética, em direção à
síntese, à consumação sistemática. Adorno via
extrema dificuldade de a argumentação caminhar
irreversivelmente em direção a uma síntese
inequívoca. Fez da negatividade o sinal distintivo de
seu pensamento precisamente porque acreditava que
Hegel havia se equivocado ao fazer coincidir razão e
realidade.16
A partir disso, como se percebe no acima exposto,
a dialética hegeliana permite pensar da realidade a partir da
consciência do em-si e torna-se em-si e para-si, que leva a
razão e a realidade coincidirem ao longo do processo no qual
o Espírito se realiza na história. Ou seja, compreende-se aqui
um momento de passagem com o intuito de elevar-se à
realização pela síntese e chegar à efetivação da liberdade por

15 FLICKINGER, Hans-Georg. A lógica clandestina do compreender, do pensar


e do escrever, 1995, p. 213.
16 PUCCI, Bruno. Filosofia da educação: para quê? 1998, p. 32.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 99

meio da astúcia da razão. Acerca desse processo acima


exposto, Adorno é enfático em sua crítica:

Portanto, Hegel sempre interpreta o movimento que


deve ser a verdade como um “automovimento”,
motivado tanto pelo objeto referente ao juízo
quanto pela síntese realizada pelo pensamento. Que
o sujeito não deva se contentar com a mera
adequação de seus juízos aos objetos decorre de o
juízo não ser uma simples atividade subjetiva, de a
própria verdade não ser uma simples qualidade do
juízo. Pelo contrário, a verdade sempre se impõe
algo que, sem poder ser isolado, não se deixa reduzir
ao sujeito, algo que as teorias do conhecimento
idealistas tradicionais acreditam autorizadas a
negligenciar com um mero “X”.17
Isso posto, pretende-se compreender a crítica à tese
da identidade, na qual a razão se reconhece na realidade e, ao
reger a história, como algo externo ao pensamento, não
permanece nada além dele. O pensamento que participa da
dinâmica da história, momento essencial do
desenvolvimento do Espírito, que compreende a proposta
da dialética hegeliana, acaba, finalmente por permanecer
presa e refém da tese da identidade18. Essa postura adorniana
indica a importância de identificar-se o potencial crítico da
dialética, mesmo que em sua determinação a categoria da
totalidade, em que tal proposta, ao estilo hegeliano, acabe
por tornar-se serva da positividade, aspecto constantemente
remarcado na posição adorniana, na qual se destaca a
primazia das partes que compõem a dinamicidade da relação.
Nestes termos:
Dialética não significa nem um mero procedimento
do espírito, por meio do qual ele se furta da

17 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 117-118.


18 Ver: ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 118.
100 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
obrigatoriedade do seu objeto – em Hegel ela produz
literalmente o contrário, o confronto permanente do
objeto com seu próprio conceito – nem uma visão
de mundo [Weltanschauung] em cujo esquema se
pudesse colocar à força a realidade. Do mesmo
modo que a dialética não se presta a uma definição
isolada, ela também não fornece nenhuma. Ela é o
esforço imperturbável para conjugar a consciência
crítica que a razão tem de si mesma com a
experiência crítica dos objetos.19
O pensador frankfurtiano, ao aludir à dialética
enquanto método que possibilita pôr em movimento o
pensamento em direção à realidade, renuncia à pretensão de
explicar a dinamicidade da totalidade do real que persiste
sempre como negatividade. A efetivação da identidade
imediata que conduz o processo de realização da ideia, que
numa perspectiva e leitura hegeliana, tem o seu momento de
interrelação e reconciliação da realidade, é colocada sob
suspeita por Adorno. Nesse sentido, a totalidade
[...] é o preço que Hegel tem de pagar pela coerência
absoluta, que se choca com os limites do
pensamento coerente, mas sem poder tirá-los de seu
caminho. A dialética hegeliana encontra sua verdade
última, aquela de sua impossibilidade, no que ela
deixa sem solução e naquilo que ela tem de
vulnerável, mesmo se a dialética, a teodiceia da
consciência-de-si, não veio a ter consciência disso.20
Frente ao acima explicitado, Adorno pretende
pensar a partir da potência dialética de Hegel, mas ao criticá-
lo, em seu sistema, através da positivação do negativo, aborda a
potência crítica e reflexiva que permite pensar as
contradições da realidade, não reconciliadas. No que tange à
tese que afirma que o efetivo é o racional, o elemento hegeliano

19 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 80-81.


20 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 85.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 101

tem suporte na elevação do pensamento positivo, da


positividade que fortalece a ideia de que a autodeterminação
do real tem seu ponto de referência necessariamente no
espírito absoluto, e seu desejo na realização da liberdade nos
indivíduos.
Nesse sentido, a realidade não é outra coisa senão
a própria ideia, que por seu próprio movimento, encontra-se
consigo mesma na razão. Mas essa relação da vida ao
pensamento se constrói na sua realidade da insuficiência da
ideia, ao voltar-se como necessidade em uma nova e ampla
realidade. Nas palavras de Adorno, a vida do espírito
hegeliano ressoa da seguinte forma: “O pensamento abstrato
é transformado novamente em algo vivo por meio daquilo
que é experimentado, assim como a simples matéria é
transformada pelo ímpeto do pensamento”21. Na visão
hegeliana, a insuficiência do conceito deve ser superada,
posto que a pluralidade e a multiplicidade da realidade
empírica são suprimidas no movimento do pensamento em
direção à manifestação do espirito.
Destarte, o pensamento crítico no âmbito do
método da negação determinada da dialética hegeliana leva a
incluir necessariamente uma posição afirmativa, como
expressão que direciona ao espírito absoluto. Nas palavras
do autor frankfurtiano: “[...] A totalidade encontra-se
consigo mesma reconciliando-se, portanto suprimindo sua
própria natureza contraditória ao levar suas contradições até
o fim e deixando de ser totalidade, ou o que é antigo e
falso”22. Este processo se reproduz continuamente por força
de suas mediações, momentos incorporados como
intrínsecos na razão autoconservadora.
Nesse sentido, de acordo com Adorno, na
perspectiva hegeliana, o sujeito é assimilado e se incorpora
dentro do próprio pensamento, na própria abstração. Isto é,

21 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 130.


22 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 164.
102 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

perfaz o caminho abstrato, sedimentado segundo a vida do


espírito. Inerente à história e o progresso do esclarecimento,
os indivíduos ao serem incorporados, por força (espírito) do
movimento e da imediatez das relações é condicionado e
segue o resultado natural do processo racional. Nesse
movimento, entretanto, o particular é salvaguardado na
identidade do universal e perde sua característica de
temporalidade e de alteridade. Tal caracterização, no que se
refere à relação [sujeito com o real], do elemento da realidade
compõe-se em uma identidade sem diferença e nada fica de
fora em suas determinações. Assim, a verdade é constituída
pelos conjuntos dos elementos compostos e apreendidos
pela mediação necessária em que o particular vai perdendo
suas características próprias e sua vitalidade e sua
potencialidade.
Desse modo, a identidade enquanto possibilidade
de expressar o real na relação do universal e do particular,
em seus desdobramentos da potencialidade dialética, tem seu
desenvolvimento frente às condições da sociedade e sua
história. Portanto, a partir de uma perspectiva adorniana, não
se trata de afirmar que tudo é relativo, pois, no que concerne
à afirmação de que o todo é o não verdadeiro - na crítica à
totalidade do negativo da dialética –esta se constitui como
uma chave de leitura a fim de perceber os limites da
concepção hegeliana.
A ideia de uma positividade que acredita dar conta
de tudo aquilo que lhe é oposto por meio da coerção
poderosa do espírito conceitual é a imagem
especular da experiência da coerção poderosa, que é
inerente a tudo o que existe por meio de sua união
sob a dominação. Isso é o verdadeiro na não verdade
de Hegel. A força do todo, que a mobiliza, não é
mera imaginação do Espírito, mas aquela força real
da teia de ilusão em que todo particular permanece
aprisionado. Na medida em que a filosofia determina
contra Hegel a negatividade do todo, ela satisfaz pela
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 103
última vez // o postulado da negação determinada,
que seria a posição.23
Em face ao exposto, percebe-se que a doutrina
hegeliana sobre o conceito de verdade tem sua expressão na
positividade limitada e realiza-se no limiar do procedimento
do caminho para o espírito absoluto. Por isso, os momentos
singulares possuem vida em si, no seu interior, somente
como manifestação e resultado do método dialético, que se
compreenderá numa linguagem articulada e absorvida pelo
espírito ordenador, considerando o momento da
objetivação. Entretanto, para Adorno, a experiência
filosófica não pode partir de ideias homogêneas e de
evidências hipostasiadas, em que tudo se resolve por meio de
uma exposição – que no interior de sua configuração acentue
a própria forma linguística – sem abrir espaço para a
constelação: “A filosofia, que considera o conceito como
algo mais elevado do que um mero instrumento do
entendimento, deve, segundo sua própria lei, abandonar
definições”.24
A partir dessa constatação, evidencia-se a crítica à
dialética que pretende abarcar a realidade em si nos seguintes
termos: “[...] a dialética se origina da experiência da
sociedade antagônica, não do mero esquema conceitual. A
história de uma época não conciliada não pode ser um
desenvolvimento harmônico”25. Nesse sentido, destacamos
uma passagem lapidar que inúmeras vezes é frisada na
Minima moralia:
A filosofia negativa, que tudo dissolve, sempre
dissolve o próprio solvente. Mas, a nova
configuração na qual ela propõe suspender ambos, o
solvido e o solvente, nunca logra vir plenamente a

23 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 174.


24 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 154.
25 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p. 167.
104 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
lume na sociedade antagônica. [...] Para proteger-se
de tais tentações, o dialético advertido terá
implacável desconfiança daquele elemento
apologético e restaurador que na realidade já faz
parte da posição não ingênua. A ameaçadora recaída
da reflexão do irrefletido se trai na superioridade que
se agrega ao procedimento dialético e fala como se
fosse ela própria aquele conhecimento imediato do
todo que justamente é excluído pela dialética.26
Tal determinação é averiguada na tematização dos
conteúdos que dão sustentação a qualquer tipo de
fundamentação que prioriza argumentos de interesses
determinados por um conjunto de fenômenos homogêneos.
A filosofia, porém, que tem seu exercício em elementos
expositivos deve, sobretudo, em sua tarefa, expor-se a partir
de uma dinamicidade, tendo um papel de mediadora e
heterogênea. Poder-se-ia dizer que tal dimensão que
configura o processo da dialética, enquanto possibilidade
crítica, constitui-se como um grande desafio para a
linguagem filosófica, pois sem uma aceitação passiva deve se
deixar conduzir para um pensamento que se autocria e
(re)cria na própria expressão e na relação com o seu contexto
social.
Na concepção adorniana, o pensamento, enquanto
negação determinada, afirma-se como um processo
permanente em elaboração que faz vivificar a existência da
realidade em novos elementos em automovimento, que pode
resignificar a procedência do não conceitual. Certamente, a
concepção da expressão filosófica como pensamento que
busca resistir e ir ao encontro do que está fixado e
mediatizado por meio da instrumentalização da linguagem e,
por conseguinte, assegura a negatividade da dialética que
preserva a heterogeneidade como possibilidade do lugar do
outro:

26 ADORNO, Minima moralia, 2008, p. 243-245.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 105
Seu nome não diz inicialmente senão que os objetos
não se dissolvem em seus conceitos, que esses
conceitos entram por fim em contradição com a
norma tradicional da adaequatio. A contradição [...] é
o indício da não-verdade da identidade, da
dissolução sem resíduos daquilo que é concebido no
conceito. Todavia, a aparência de identidade é
intrínseca ao próprio pensamento em sua forma
pura. Pensar significa identificar [...] À consciência
do caráter de aparência inerente à totalidade
conceitual não resta outra coisa senão romper de
maneira imanente, isto é, segundo o seu próprio
critério, a ilusão de uma identidade total. [...] A
dialética é a consciência consequente da não-
identidade.27
Nessa acepção, a dialética caracteriza-se como um
esforço contínuo que reconhece a insuficiência do conceito,
o não-idêntico presente no exercício de formulação
conceitual. No que concerne à indiferença e à complexidade
do conceito como expressão, caminho referencial como
processo a ser edificado, não se opõe de modo algum ao
rigor filosófico, aspecto fulcral para o exercício da filosofia
enquanto resistência ao pensamento objetivado e
tecnificado. Este é o movente espaço a ser percorrido – no
processo metodológico – em vista de possibilitar a potência
crítica expressa em forma de constelação e enigma de
imagens e fragmentos históricos que, no exercício e na
relação entre exposição e conceito, torna-se possível pelo
viés da dialética negativa.
Desse modo, a própria negatividade, momento
ímpar na filosofia, é o motor propulsor em direção à
potencialidade do pensamento. Sendo assim, a autocrítica
não abandona a razão, e todo o pensamento impulsiona-se
em direção a um momento negativo. Assim, “a única
“dialética” que se poderia considerar como propriamente tal

27ADORNO, Theodor. Dialética negativa, 2009, p. 12-13.


106 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

seria aquela aberta, irredutível a uma “resolução” superior,


negativa em relação à positividade da totalidade”28. Nessa
perspectiva, o exercício filosófico constitui-se em um
movimento que visa contrapor formas de pensamentos que
têm características totalizantes29, capaz de perceber seus
próprios limites que, ao permanecer como tensão constante,
abre-se e renova-se de modo contínuo. Nessa acepção,
observa Ricardo Timm de Souza: “É sua negatividade
intrínseca, seu particular poder crítico, que rompe com
hábitos mentais e conjuntos de certezas filosóficas
petrificadas, mergulhando em seus elementos constitutivos
mais profundos”.30
Em suma, Adorno nos instiga a compreender a
filosofia, o filosofar, o exercício próprio do pensamento
enquanto possibilidade de se estabelecer a experiência
filosófica como exercício permanente, em direção ao real,
que sempre escapa a qualquer pretensão de conceptualização
última. Esse exercício caracteriza-se como potência de
pensamento, em uma postura de abertura, dinâmica, capaz
de colocar em questão o que foi positivado, posto como
resultado final de um processo de apreensão e composição
do real por meio de uma lógica intelectiva. Em decorrência
disso, pensar a partir da dialética negativa implica e consiste
em estabelecer o exercício filosófico na relação com a
experiência histórica, em tematizar os restos da história, as
ruínas, os espectros, enquanto possibilidade de romper com
posições totalizantes e ardilosas que enquadram o humano
no interior de lógicas de poder. Enfim, “Se a filosofia
pudesse ser de algum modo definida, ela seria o esforço para

28 SOUZA, Ricardo Timm de. Adorno & Kafka, 2010, p. 63.


29 SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade & desagregação: sobre as
fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto Alegre: EDIPUCRS,
1996.
30 SOUZA, Ricardo Timm de. Adorno e a razão do não-idêntico, 2004,
p. 96.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 107

dizer aquilo sobre o que não se pode falar; expressar o não


idêntico, apesar da expressão sempre identifica-lo”.31

Referências

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janeiro: Beco do Azougue, 2008.

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Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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31 ADORNO W. Theodor. Três estudos sobre Hegel, 2003, p.190.


108 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

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Petrópolis: Vozes, 1992.

______. Enciclopédia das ciências filosóficas. Trad. Paulo Meneses.


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______. Razões plurais: itinerários da racionalidade ética no


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______. Totalidade & desagregação: sobre as fronteiras do


pensamento e suas alternativas, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996.
A concepção de liberdade na
filosofia de Theodor Adorno
Hellen Maria de Oliveira Lopes1

1.0. Introdução

Um dos expoentes da Escola de Frankfurt, Adorno


foi um contundente pensador que vivenciou no século XX
o horror do nazismo na Alemanha e o individualismo
crescente nos Estados Unidos. A visão adorniana de seu
entorno é fundamental para o seu pensamento filosófico,
pois traz para o filósofo um posicionamento crítico da
história. A experiência do nazismo traz a certeza da não–
liberdade por meio da existência de Auschwitz e o
individualismo norte-americano traz no consumo e na
massificação a falsa ideia de se ter liberdade. Sua crítica é
direcionada à história da filosofia que, atrelada a conceitos,
vive um universo de contradições. Para que possamos
compreender um pouco o pensamento de Adorno e sua
visão a respeito do que vive o século XX, buscaremos na
concepção de Liberdade para o indivíduo seus fundamentos
à crítica filosófica e social vivenciadas pela modernidade.
A experiência do nazismo de quase todo
cerceamento de liberdade humana, nos leva a perceber a
importância de tal ausência, não apenas teoricamente, mas
saber as condições concretas que a possibilitaram. Adorno
nos mostra em sua “Dialética Negativa” que,
Saber se a vontade é livre é tão relevante quanto os
termos são avessos ao desejo de indicar de que
maneira totalmente clara e direta aquilo a que visam.

1Doutoranda do Curso de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica


do Rio Grande do Sul, PUCRS.
110 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
Na medida em que justiça e punição, assim como,
por fim, a possibilidade daquilo que toda a tradição
filosófica denominou moral ou ética, dependem da
resposta a essa questão, a necessidade intelectual não
renuncia à questão ingênua como se fosse um falso
problema.2.
Mais do que teorizar sobre a liberdade, é inegável a
importância de se pensa-la concretamente. Aqui podemos
verificar uma das críticas de Adorno ao pensamento
filosófico que pensa a liberdade de maneira idealista e não
em sua concretude empírica. Nesse sentido, o indivíduo
comum não consegue abarcar a noção de liberdade e isso
gera, em situações extremas, a dominação. Especialmente
porque estes se percebem em situação de adversidade e
termina optando pelo isolamento e, para Adorno, só faz
sentido pensar em liberdade se se consegue pensar o
indivíduo vivenciando o espaço público e não em
isolamento.
Nessa condição de isolamento é gerado o que o
próprio filósofo presenciou nos Estados Unidos, o
individualismo crescente, a noção de auto determinação –
esta em seu sentido negativo de renegação da
intersubjetividade – o sofrimento e com ele todas as dores
que advém do isolamento. Adorno nos afirma que,
No momento em que a pergunta sobre a liberdade
da vontade se reduz à pergunta sobre a decisão de
cada particular, em que esses particulares são
destacados de seus contextos, e o indivíduo separado
da sociedade, a sociedade cede à ilusão de um puro
ser-em-si absoluto: uma experiência subjetiva restrita
usurpa a dignidade do que é maximamente certo. (...)
o subjetivo que é pretensamente em si mediado nele
mesmo por aquilo do que ele se separa: a conexão de
todos os sujeitos. Por meio da mediação, ele mesmo

2ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Trad. Marcos Antônio


Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pág. 181.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 111
se torna aquilo que, segundo a sua consciência da
liberdade, ele não quer ser: heterônomo.3
O sujeito que se volta exclusivamente para si
desvincula-se completamente dos outros que estão ao seu
redor. Isso possui, ainda, implicações morais se levarmos em
consideração que o sujeito que não se relaciona com o outro
no ambiente social é capaz de deturpar as próprias regras que
estabelecem limites entre os partícipes sociais. Porque a
deturpação ou transgressão não implica o desconhecimento
das regras por parte dos indivíduos, mas sim que o mesmo
reconhece tais regras, porém tem a intenção de, por algum
motivo, transgredi-la. A relação que o filósofo faz com a
noção de heteronomia nos mostra que o sujeito age, não de
maneira imediata, mas numa relação com o outro, numa
intersubjetividade, como dito antes. Da mesma maneira
ocorre com o processo de socialização; é necessário, para
que eu reconheça o outro, um afastar-se de mim. Porém, o
afastar-se necessário não implica em completo isolamento.
Pensar o indivíduo isolado é pensar um sujeito
propenso a neuroses4, pois sua liberdade se constitui, como
vimos, no ambiente social. Para que haja um
reconhecimento das regras e a formação de pessoas
saudáveis em suas liberdades, é necessário reconhecer a
importância da relação com o social, mesmo que este
também possa ser o causador da doença do isolamento, da
dor por motivos que veremos adiante.
Adorno nos mostra que uma sociedade que não
preza pela liberdade de seus indivíduos acaba desvelando a
maldade, “para que não haja o horror, a liberdade precisa
existir”.5 A própria história está repleta de exemplos. Não se
vivenciou ainda nenhuma sociedade em que o homem livre
3 ADORNO, T. W. Op. Cit. Pág. 181.
4 Buscando aqui referências na psicanálise freudiana que tanto
influenciou o pensamento de Adorno.
5 ADORNO, T. W. Op. Cit. Pág. 184.
112 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

não tivesse propensão para a maldade, mas a história já


vivenciou homens, independentemente do caráter, que
vivenciaram a não-liberdade. A revolta pela ausência de
liberdade, em determinados aspectos, leva os homens à
maldade. Especialmente porque, em Adorno, a
compreensão da liberdade e da moralidade também se dá no
social. A sociedade tem papel preponderante na constituição
dos sentimentos morais. Se retirarmos o indivíduo do meio
social também retiraremos dele as possibilidades de
moralidade. Para o filósofo,
O mal não está no fato de homens livres poderem
agir de maneira radicalmente má, mas no fato de
ainda não haver nenhum mundo no qual os homens
livres não precisarem mais ser maus. Por
conseguinte, o mal seria a própria não-liberdade dos
homens, é dela que provém tudo aquilo que
acontece de mal. A sociedade determina os
indivíduos, mesmo segundo a sua gênese imanente,
para aquilo que eles são; sua liberdade ou não-
liberdade não é o dado primário com o qual, sob o
véu do principium individuationis, ela aparece.6
Adorno nos remete a um determinismo
característico da sociedade, pois, segundo ele, a sociedade
determina aquilo que os indivíduos são. Essa é, entre outros
aspectos, aquilo que faz com que os indivíduos tendam à dor
do isolamento e às neuroses. Esses aspectos podem aparecer
independentemente se foi renegado ao indivíduo a liberdade.
Existe ainda a contradição sobre o que se diz ser a
liberdade, ou seja, como ela é conceitualmente e como ela é
de fato. Esse espaço existente entre o conceito e o fato deve
ser alvo de reflexão, pois pode levar a liberdade a uma
categoria inacessível aos indivíduos. A falta de acesso ao que
seja fato e conceito pode refletir no que venha a ser as regras
morais, tendo em vista que as regras são constituídas com

6 ADORNO, T. W. Op. Cit. Pág. 185.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 113

base na liberdade de ação dos indivíduos em sociedade. E,


não havendo tal compreensão, há uma chance latente de
inversão e deturpação. O caráter moral dos indivíduos se dá
no trato com a realidade social e não de maneira solipsista.
“Separada dela (sociedade), a liberdade é fictícia, pois o
sujeito está mediado em si por aquilo que se separa: a
conexão de todos os sujeitos.”7
Adorno nos mostra que no final da Idade Média, a
burguesia se aliava à ciência e sua noção de progresso e, em
direção oposta, tratava a liberdade. O filósofo afirma que o
“o que é procurado é uma fórmula comum para a liberdade
e a repressão: a liberdade é concedida à racionalidade que a
restringe e afasta da empiria na qual as pessoas não a querem
ver de maneira alguma realizada”.8 A preocupação da
burguesia está no fato da ciência progredir a ponto de negar
a liberdade “quase” consolidada da burguesia.
O filósofo nos mostra que tanto mais a ciência vai se
expandindo e tomando espaço no ambiente filosófico, mais
a filosofia vai se tornando vazia de conteúdo no que diz
respeito à própria conceituação de liberdade. A ciência
alcança os lugares e a credibilidade que deveriam ser lugar da
filosofia. A ciência e sua instrumentalidade progressivamente
amplia seus espaços de atuação. O que se torna alvo de
críticas do autor. “Adorno critica a razão moderna baseada
na validade das formas lógicas que obedece à consciência
coisificada e à aceitação social”.9 A razão moderna que
termina por submeter a liberdade é a razão instrumental.

7 CHAVES, J. C. O conceito de liberdade na Dialética Negativa de


Theodor Adorno. In: Revista Psicologia e Sociedade, 22(3), 2010,
pág. 440.
8 ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Trad. Marcos Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pág. 181.
9 CHAVES, J. C. O conceito de liberdade na Dialética Negativa de
Theodor Adorno. In: Revista Psicologia e Sociedade, 22(3), 2010,
pág. 440.
114 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Podemos afirmar que a racionalidade instrumental –


oriunda do projeto iluminista de emancipação da razão
humana, da liberdade do indivíduo para pensar o progresso
– no lugar de promover a liberdade para se pensar a ciência,
a indústria e seus avanços, tornou o homem submisso a tudo
isso. Criou-se indivíduos isolados e alienados. Em vez de
humanizar, desumanizou. Na Dialética do Esclarecimento
Adorno e Horkheimer afirmam que,
O que nos propusermos era, de fato, nada menos do
que descobrir porque a humanidade, em vez de
entrar em um estado verdadeiramente humano, está
se afundando em uma nova espécie de barbárie.10
A preocupação dos autores sobre esse caminho da
humanidade de volta à barbárie se dá pelo momento
histórico vivenciado por ambos. Eram sobreviventes do
nazismo e vivenciaram todo o horror da guerra e da
capacidade humana para o perverso. Pensamentos atuais se
levarmos em consideração que a humanidade ainda tem que
conviver com o horror, não comparado ao nazismo, mas tão
desumano quanto.
Essa inquietação, relacionada a porque a
humanidade “regrediu” em vez de avançar, dá-se pela falsa
promessa do iluminismo ou esclarecimento, ou pelo fracasso
em tornar real as promessas que fizeram. Em suas propostas
havia a intenção de liberar os indivíduos da escuridão
medieval, afugentar o medo por meio do conhecimento. O
progresso da ciência ou esclarecimento mostra, segundo os
autores, que houve uma inversão na proposta dada pelos
iluministas para a modernidade, ou seja, o que era pra libertar
acabou aprisionando.

10 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do


Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1991. Pág. 2.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 115
(...) a ideia do homem, sua realização nos homens
mediante a emancipação do indivíduo, sua liberdade,
sua realização social, potencialidades cuja atualização
o progresso permite vislumbrar e, ao mesmo tempo,
paradoxalmente, impede de realizar. 11
A emancipação do homem por meio do
conhecimento acaba por fracassar porque a proposta inicial
é invertida e, em lugar de promover a liberdade, dociliza12. O
que antes era pensado para retirar do indivíduo o medo e a
insegurança, causados especialmente pelo mito, transforma-
se no próprio mito moderno e, assim como os antigos, em
lugar de libertar os homens da ignorância termina por aliená-
los cada vez mais. “(...) mas os mitos que caem vítimas do
esclarecimento já eram o produto do próprio
esclarecimento”.13
Adorno e Horkheimer afirmam que “o preço que os
homens pagam pelo aumento do seu poder é a alienação
daquilo sobre o que exercem o poder”.14 E nessa direção o

11EVANGELISTA, E. G. S. Razão instrumental e indústria cultural. In:


Inter - Ação. Revista da Faculdade de Educação, UFG, 28 (1): jan/jun.
2003. Página 85.
12 A expressão docilizado aparece na filosofia de Foucault (corpo
docilizado) para expressar a submissão dos indivíduos ao poder, aos
vários tipos de poder. O corpo submisso é facilmente modelado,
reorganizado para que se tornasse útil. Um corpo que não fala por si, que
é dominado não tem liberdade. Essa expressão também foi utilizada para
reafirmar o pensamento de Adorno e Horkheimer na Dialética do
Esclarecimento, quando afirmam que, “quanto mais complicada e
refinada a aparelhagem social, econômica e científica para cujo manejo o
corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais
empobrecidas as vivências de que ele é capaz”. (ADORNO, T. W.;
HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.pág. 23.)
13 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do
Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1991. Página 6.
14 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit. Pág. 7.
116 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

homem aliena o próprio homem. Assim, nos parece


transparecer que o advento do esclarecimento não era, desde
o início, para todos. Uns subjugam para outros serem
subjugados. Essa parece ser a lógica da ciência, ou do
indivíduo da ciência que detém o conhecimento, logo, detém
o poder15. Se o esclarecimento não é para todos, a liberdade
parece também não o ser. Se levarmos em consideração que
o esclarecimento teve como fundamento a libertação do
homem da escuridão medieval, como dito antes. Adorno
afirma que “(...) mas é muito mais o horror que existe,
porque ainda não há nenhuma liberdade.”16
O panorama mostrado tanto por Adorno quanto por
Horkheimer na Dialética do Esclarecimento é de que o poder das
ciências e seus desdobramentos na indústria tem servido
como instrumento de alienação. Nesse sentido, o que teria
sido criado para proporcionar a liberdade, acaba por
aprisionar e criar horrores. É o que acontece, por exemplo,
na Indústria cultural.

2.0. Indústria cultural e ausência de liberdade

No tópico da Dialética do Esclarecimento: “A


indústria cultural: esclarecimento como mistificação das
massas”, os autores nos apresentam como a indústria
cultural, por meio da técnica, da razão instrumental, tem, ao
longo do tempo, sido aperfeiçoada e criado grandes
disparidades na realidade social, assim como criado nos
produtos uma importância e utilidade efêmeras.
A cultura passa a ser vista por meio de cifras e, sob
essa perspectiva, a cultura mais rentável será produzida em

15Adorno e Horkheimer fazem, aqui, uma referência à afirmação de


Bacon que diz que “o saber é poder”. ADORNO, T. W.;
HORKHEIMER, M. Op. Cit. Pág. 5.
16ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Trad. Marcos Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pág. 184.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 117

larga escala com a desculpa de que é para satisfazer o


consumidor, as massas. Como tudo que satisfaz as massas
deverá ser produzido, os filósofos nos mostram a
padronização que se instalará na sociedade,
Os interessados inclinam-se a dar uma explicação
tecnológica da indústria cultural. O fato de que
milhões de pessoas participam dessa indústria
imporá métodos de reprodução que, por sua vez,
tornam inevitável a disseminação de bem
padronizado para a satisfação de necessidades
iguais.17
A padronização existente é a marca maior da
racionalidade da técnica e da dominação pelo poder
econômico. Com uma lógica bem simples, a indústria cria as
necessidades nos indivíduos, produzem tal necessidade em
larga escala e, para satisfação dos grandes industriais, nasce
aí o poder econômico. Nesse caso, somente uma ínfima
parcela da população, que soube utilizar a técnica, a
racionalidade científica, consegue o poder econômico.
A técnica bem utilizada para fins econômicos, tem o
poder de dominar, de alienar. Pois tudo o que se produz hoje
se torna obsoleto amanhã. E, a indústria cultural que já
conseguiu alienar as massas consegue fazer sempre girar a
roda da necessidade nos indivíduos. Quanto mais a
necessidade é gestada em cada indivíduo, mais alienado ele
se torna e menos livre ele será. Por isso, a indústria cultural
não cria só produtos, ela cria pessoas, cria comportamentos.
(...) o terreno no qual a técnica conquista seu poder
sobre a sociedade é o poder que os economicamente
mais fortes exercem sobre a sociedade. A realidade
técnica hoje é a racionalidade da própria dominação.

17 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do


Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1991. Pág. 57.
118 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de
si mesma.18
Mesmo sem às vezes se dar conta, o indivíduo
permite que a indústria cultural mostre que tipo de lazer ele
deverá se “submeter”. O lazer que seria o momento do
descanso, torna-se mais um produto lucrativo da indústria
cultural, “a diversão é o prolongamento do trabalho no
capitalismo tardio”19, pois assim como há uma alienação
referente ao trabalho, também há em relação ao lazer. O
indivíduo é reificado20 tanto no trabalho como no lazer. Em
ambos o papel que é assumido é apenas o de gerar lucro para
os grandes industriais. O indivíduo, como espectador, “não
deve ter necessidade nenhuma de pensamento próprio, o
produto prescreve toda reação”.21 Tudo é completamente
arquitetado de modo que as reações são previsíveis e assim,
a liberdade do indivíduo se desfaz completamente.
Os filósofos nos mostram ainda que a indústria
cultural cria no indivíduo a falsa ilusão da liberdade, a falsa
ilusão de que é ele que controla, quando na verdade, está
sendo controlado. O indivíduo que a indústria cultural cria é

18 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit. pág. 57.


19 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit. pág. 64.
20 O conceito de reificação aqui utilizado é o utilizado por Karl Marx
para designar o processo de alienação do sujeito no sistema capitalista.
As relações existentes são relações de troca e, assim, o indivíduo se torna
mais uma “coisa” a ser trocada no mercado. Sua força de trabalho é o
que vale para dizer se o indivíduo serve ou não. Do mesmo modo que
fazemos com as mercadorias que compramos. Como afirma Marx, "O
trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais
mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt)
aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens
(Menschenwelt)." MARX, Karl. Manuscritos econômicos-
filosóficos. Tradução de Jesus Raniere. São Paulo: Boitempo, 2004. Pág.
80.
21 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit. pág. 64.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 119

aquele que pensa que pode pensar, que sabe pensar por si e
por isso mesmo, acredita que suas escolhas são realmente
suas. Como quem cria tudo e molda tudo – mercadorias e
indivíduos – é a indústria, ela cria o que os autores chamam
de “homem como ser genérico”22. Ou seja, não há
especificidades, cada um é tão igual ao outro que pode ser
facilmente substituído, “ele é fungível, um mero exemplar”23.
Sua identidade particular não interessa, o que interessa é sua
capacidade de consumo.
A liberdade como autonomia não é mais questão de
debate, pois o que transparece é que cada sujeito é um, único,
e possui a total liberdade de fazer suas escolhas. “O processo
de autonomização do indivíduo, função da sociedade de
troca, culmina com a sua supressão por meio da integração.
Aquilo que é produzido pela liberdade converte-se em não-
liberdade”24. Mas os autores nos mostram que quando o
indivíduo pensa que está fazendo as escolhas, na verdade, as
escolhas já foram feitas e ele só está se submetendo a elas.
Essas escolhas estão em todos os campos, especialmente no
que diz respeito à indústria do lazer. O que se procura são
sempre os lugares da moda, aqueles, de ontem, já não
satisfazem mais, já se tornaram obsoletos como qualquer
outro produto.
A liberação prometida pela diversão é a liberação do
pensamento como negação. O descaramento da
pergunta retórica: “Mas o que é que as pessoas
querem?” consiste em dirigir-se às pessoas como
sujeitos pensantes, quando sua missão específica é
desacostumá-las da subjetividade.25

22 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit. pág. 69.


23 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit. pág. 69.
24ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Trad. Marcos Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pág. 219.
25 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit. pág. 68.
120 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Assim, a indústria cultural vai se adaptando a ponto


de a modernidade já não ser imaginada sem o poder dessa
técnica que foi criada para divertir e informar mas, que
acabou por se tornar um instrumento de alienação dos
sujeitos.

3.0. Considerações finais

O tema da liberdade no pensamento de Adorno não


aparece como um conceito simples e de fácil acesso. Várias
interpretações surgem a partir dai, dentre elas a que se
relaciona com os aspectos psicológicos, especialmente
porque Freud foi um influenciador do pensamento
adorniano. Dessa leitura percebemos o caráter constitutivo
do sujeito voltado para si, constituindo sua liberdade e
autonomia para voltar-se para os outros no processo de
intersubjetividade.
Ao lermos a relação entre sujeito e sociedade com
intermédio da racionalidade técnica provedora da Indústria
Cultural, percebemos como a nossa liberdade propagada, é
falsa. Pois o indivíduo, aparentemente livre para fazer
escolhas, entra na engrenagem industrial e se torna mais uma
peça, não se dando conta disso, aliena-se.
Adorno juntamente com Horkheimer conseguiram
analisar a sociedade massificada e percebeu o abismo que é
reforçado – que deve existir entre uma racionalidade crítico
– reflexiva e a racionalidade instrumental. A modernidade
submergiu com a técnica e sobrou pouco espaço para a
crítica. A técnica que é criticada pelos filósofos é essa que
elimina a autonomia do indivíduo, não devemos generalizar
afirmando que toda técnica é ruim em seus fins. Assim, o
que se propôs nesse trabalho foi abordar de um modo geral
os aspectos característicos da liberdade no pensamento de
Adorno, principalmente, e a importância de pensarmos
sobre ela não como algo já dado, a história pode nos trazer
acontecimentos que ponha em cheque a liberdade
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 121

conquistada, mas como algo fundamental que deve ser vista


com um olhar crítico.

Referência bibliográfica

ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Trad. Marcos


Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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ZUIN, A. A. S; PUCCI, B.; RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.
Ensaios Frankfurtianos. São Paulo: Cortez, 2004.
O programa e a mistificação das
massas no pensamento de
Vilém Flusser e Theodor Adorno
Jair Inácio Tauchen1

A função de apertar botão, tanto no sentido físico


como virtual de algum equipamento eletrônico, faz parte do
nosso cotidiano. Ao acionar o botão do aparelho é possível
identificar imagem e som de acontecimentos próximos, ou
do outro lado do mundo. Ir ao cinema, assistir TV e vídeo,
tornou-se atividade comum, produto de um mundo novo
com enorme possibilidade de comunicação e divertimento
entre os indivíduos. Impressiona o “realismo” 2 das imagens
e sons produzidos pelos aparelhos que já sofreram inúmeras
alterações no decorrer do tempo, como por exemplo, o
cinema que inicialmente era preto-e-branco, mudo, sonoro e
agora colorido. O mesmo pode ser dito da TV. O
importante, no sentido filosófico, é que toda imediatez
característica desse universo de som e imagem, é aparente.
Pois para cada fenômeno audiovisual percebido, existe uma
complexa rede de relações sociais, econômicas e políticas
que se desenvolve, quase nunca em favor do espectador
desinformado, permanecendo à margem do seu
funcionamento, motivação e objetivos3. O surgimento dos
media, atraiu a partir da metade do século XIX, uma série de
reflexões críticas ao se constatar promessas de
enriquecimento das experiências culturais humanas e sobre

1 Doutorando em Filosofia na PUCRS, bolsista CAPES.


2 DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural e meios de comunicação, p. 10.
3 Ibid., p. 11.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 123

os interesses que estão por trás do desenvolvimento dessas


atividades.
A intenção do estudo é fazer uma abordagem
sobre os aparelhos, os programas, os programadores e como
se relacionam com o cinema e o cotidiano através da filosofia
de Vilém Flusser e uma análise crítica da relação da indústria
com o consumidor aos olhos da indústria cultural de
Horkheimer e Adorno. A abordagem filosófica do tema
“indústria cultural”, presente no livro Dialética do
esclarecimento, leva em consideração os negócios das grandes
corporações capitalistas que desenvolveram a estratégia de
abolir toda concorrência nos processos econômicos e que se
apropriaram dos meios tecnológicos da época, com a clara
intenção de lucrar com a produção e comércio das
mercadorias culturais. Outro objetivo era controlar o
comportamento das massas, em função da desigualdade da
minoria detentora dos meios de produção e a maioria de
assalariados e subdesempregados.
O desenvolvimento tecnológico, especialmente o
da internet que começou a se desenvolver na década de 1970,
e para uso comercial e civil por volta da década de 1990, foi
importante para a ampliação em escala mundial da
propaganda ideológica capitalista que antes era exercida em
âmbito local. É importante observar que a grande parte dos
servidores da internet encontram-se nos EUA, o que
deflagrou, inclusive, o recente escândalo de espionagem por
parte do serviço de inteligência norte-americano de cidadãos
e autoridades do mundo todo. Um dos aspectos desse
desenvolvimento tecnológico é a simulação de realismo que
os meios de comunicação técnica fornecem, criando uma
espécie de mundo paralelo cunhado pelas imagens e sons,
que retiram elementos que poderiam estimular uma
consciência crítica, não só dos media, mas do sistema político
e econômico que os produziram.
124 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

1. Entretenimento e o metaprograma.

No livro Pós-história: vinte instantâneos e um modo


de usar, Flusser, apresenta uma questão de que a história do
Ocidente está intimamente ligada ao aspecto social e
econômico do ser, que orienta o pensamento dos indivíduos.
Por exemplo, na Antiguidade, segundo ele, destacava-se a
noção de “destino”; na Idade Moderna, a ideia de
“causalidade” assume posição importante e, atualmente, a
concepção de “programa” adquire destaque4.
Ainda de acordo com Flusser, a concepção de
programa requer a existência de aparelhos, que são
equipamentos que fazem os programas funcionarem,
desenvolvidos pela ação dos funcionários, pessoas
responsáveis em operar os aparelhos. Se existe programas,
consequentemente deve haver programadores, pessoas que
desenvolvem um conjunto de códigos inseridos nos
programas, que fazem funcionar os aparelhos e que são
operados por funcionários. No entanto, mesmo que os
programadores tenham maior poder que os funcionários,
apenas escrevem os programas que fazem os aparelhos
funcionarem e, por isso, não são todo-poderosos, porque
eles também são funcionários de um meta-aparelho,
programado por um metaprograma e assim sucessivamente.
Para Flusser, no entanto, essa situação de jugo
humano sob os programas e aparelhos só poderá ser
revertida se, a partir de uma compreensão suficiente
de jogos propostos pelos programas, a humanidade
aprender a lidar com o absurdo neles inscrito5.
Atualmente é possível identificar uma
sincronização pelos aparelhos que nos programam e que

4FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar,


p. 37.
5 DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural e meios de comunicação, p. 43.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 125

determinam o ritmo de nossa vida, como por exemplo, o


aparelho do transporte está intimamente ligado ao aparelho
industrial, ou ainda, massas “programadas” pelos aparelhos
para consumir em modernos shopping centers, modelos de
instituições tradicionais da história.
Na antiguidade clássica, a basílica, espaço vazio
coberto por uma abóbada, ocupava posição decisiva e agora,
modificada, continua a funcionar, no entanto, de forma
muito diferente da proposta original. O Pantheon pode ser
usado para elucidar o seu caso. No princípio servia como
mercado, espaço público destinado para compra, venda,
troca de produtos e ideias, espaço dialógico. Posteriormente
transformado em templo, espaço destinado à oração e
contemplação, ambiente teórico. Na sequência,
transformado em igreja, lugar proposto à contemplação no
sentido cristão. A basílica tinha função política e teórica e
hoje, as funções foram alteradas, embora tenha conservado
sua estrutura de espaço e cobertura. “Trata-se do
supermercado, o qual simula espaço político, e o cinema, que
simula o espaço teórico, e ambos são sincronizados”6.
O supermercado é um ambiente constituído de
labirinto com mensagens codificadas em imagens,
identificadas através das embalagens coloridas, cartazes e
sons produzido pelo anunciante, através do microfone. A
entrada é ampla, com largas portas, com a intenção de criar
um espaço público, como se fosse um ambiente de troca e
de diálogo. No entanto, o receptor das mensagens é
devorado pelo labirinto e toda troca de diálogo é
impossibilitada pelo contínuo ataque das mensagens
coloridas e de sons que tomam o ambiente. Em virtude
disso, Flusser denomina o supermercado de “república
fraudulenta”7.

6FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar,


p. 82.
7 Ibid., p. 82
126 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

A fraude é identificada, sobretudo como uma


cilada, em virtude do local dispor apenas de saída controlada.
Quem quiser sair precisa, primeiro, fazer fila em saídas
estreitas e pagar “resgate”. O supermercado priva o
indivíduo de todos os espaços e não é ambiente favorável à
troca; impõe um comportamento de consumo através de
suas mensagens sedutoras, desenvolvidas pelos aparelhos.
“O supermercado é aparelho que simula a república para
poder seduzir os seus receptores para serem manipulados
como objetos consumidores”8.
O cinema assume condição oposta do
supermercado. A entrada é estreita e leva seus participantes
a formar fila e o pagamento para a recepção da mensagem,
ocorre na entrada. Ao término do programa os portões são
amplamente abertos, permitindo a saída dos expectadores
programados. Além das filas dos supermercados e cinema
que formam e informam as pessoas, existem muitas outras,
por exemplo, as do metrô e os ônibus.
O cinema, no sentido arquitetônico, é uma basílica
sem janela, uma caverna em que aparecem sombras. “O mito
platônico da caverna o descreve, e Platão pode ter tido por
primeiro crítico de cinema. Antes das sombras aparecerem
na tela, e os sons começarem a falar alto, reina a escuridão e
o silêncio no cinema” 9. Cria uma falsa ilusão de ser um
espaço contemplativo, de ser um teatro. Na verdade, o
cinema é um transmissor de mensagens que utiliza um
aparelho produtor de imagens da indústria cinematográfica.
A ilusão de se tratar de teatro está vinculada com a entrada,
onde são disparadas mensagens luminosas e sonoras com a
intenção de seduzir o indivíduo a contemplar o programa.
Ao entrar na caverna encontra poltronas enfileiradas
geometricamente e numeradas aritmeticamente. O

8FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar,


p. 82.
9 Ibid., p. 83.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 127

espectador instalado permite que as sombras e sons que


preenchem o espaço, o manipulem.
O projetor de filme localiza-se a cima da cabeça de
seus fiéis (sentido de Igreja) e a trás das suas costas. Segundo
Flusser, “é aparelho programado para projetar imagens
ordenadas em fita sobre a tela, de forma a criar a ilusão de
movimento”10. O receptor, por conhecer a função do
aparelho, está consciente da fraude ótica que está sendo
vítima, pois possui algo semelhante em casa, a televisão. Ao
se virar em direção ao projetor, não é para libertar-se da
ilusão, mas para reclamar do mau funcionamento do
aparelho que, em vez de deslizar suavemente a imagem, a faz
de salto. Fica enfurecido se a ilusão for desmascarada.
Flusser questiona-se no sentido de como pode
ocorrer uma manipulação em grau tão elevado do indivíduo
pelo aparelho que o transforma em objeto e de como é
possível o indivíduo colaborar com seu próprio
aniquilamento. A mesma pergunta estende ao fenômeno
Auschwitz11. A resposta ao problema é que o espectador
sabe que o projetor, por si só, não emite mensagem
fraudulenta, mas é apenas o último elo da cadeia que o une
e, portanto, não seria plausível querer destruí-lo, além do
mais, são cópias de um protótipo inacessível. Mesmo que o
cinema fosse destruído, a mensagem continuaria a ser
reproduzida em outros cinemas e o espectador entende que
o cinema exclui toda ação revolucionária e, comporta-se de
acordo.
Por que o espectador não se rebela? Não se rebela
porque não quer, porque quer continuar a ser enganado.
Esse desejo está em conformidade com a sociedade de massa
ao se observar o totalitarismo aparelhístico produzido. Todo
esforço do indivíduo, no sentido de libertar a sociedade da

10Ibid., p. 84.
11FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar,
p. 85.
128 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

fraude exercida pelos aparelhos que a programam e, da


desmistificação do “mundo codificado” pelos aparelhos,
esbarra em tal consenso; é praticamente impossível ir contra
a vontade da maioria. Por outro lado, esse desejo de ser
enganado, é contrário a fé religiosa. O fato de saber que as
sombras projetadas são ilusórias, e as aceitar, é acreditar de
“má fé”, é entender o cinema como magia, magia artificial,
deliberadamente programada. Por isso, o cinema não pode
ser entendido como um instrumento alienante. Mitificam
graças a uma conspiração consciente entre os emissores e
receptores de mensagens.
O supermercado e o cinema são, na concepção de
Flusser, responsáveis por produzir na massa, a circulação do
progresso. No cinema a massa é programada a consumir no
supermercado e no supermercado, a reprogramar-se no
cinema. Essa cultura de massa é explicada através do input e
output. “Pelos programas que nela são alimentados, e pelo
comportamento que disto resulta”12. Os filmes são
resultados de um processo histórico, realizado no interior
das caixas pretas da indústria cinematográfica, que tem a
função de programar a massa. Os supermercados são, para
Flusser, os lugares nos quais os programas transformam-se
em comportamento13. Os programadores desses programas
são jogadores que transcendem a história e que funcionam
em função dos programas que programam, “são
programados para programar”. O supermercado e o cinema
são apenas dois exemplos em que se percebe que o sistema,
cada vez mais autônomo de interferência humana, vai se
esfacelando. Toda tentativa de rebelar-se, ir contra, é inútil.
A esperança é a conscientização da rotação automática que
nos envolve e compõem a realidade do mundo dos
aparelhos.

12 Ibid., p. 87.
13 Ibid., p. 87.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 129

2. Indústria cultural e a mistificação das massas.

Para Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do


esclarecimento, a cultura atual desenvolve em todos os setores
uma ideia de semelhança, ao transformar o cinema, revistas,
em um conjunto de sistemas no qual “cada setor é coerente
em si mesmo e todos são em conjunto”14. O monopólio
estabelece que toda cultura de massa se torne igual, fazendo
do cinema e rádio um negócio, uma indústria que não precisa
mais se apresentar como arte. A indústria, na tentativa de
atender um número cada vez maior de pessoas, utiliza um
método de produção a fim de disseminar uma padronização
de bens e atender as necessidades dos consumidores. O
padrão de igualdade é resultado da necessidade desenvolvida
nos consumidores que não apresentam resistência ao
processo de manipulação.
O poder da técnica sobre a sociedade pode ser
considerado o mesmo poder que os grupos economicamente
mais fortes exercem sobre a sociedade. A técnica
desenvolvida na indústria cultural atende ao processo
econômico e inclinou-se à padronização e produção em
série. “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da
própria dominação”15. A compulsividade da sociedade aliena
a si própria.
A produção em massa não apresenta critério
transparente que contemple o seu conteúdo. Ao contrário, a
indústria cultural está mais preocupada em classificar e
agrupar estatisticamente os consumidores, na intenção de
atingi-los com seus produtos. Nesse processo, os
consumidores, identificados pelos institutos de pesquisa, são
reduzidos a simples materiais estatístico com possibilidade
de retorno financeiro. O valor está vinculado à produção e

14 ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do


esclarecimento: fragmentos filosóficos, p. 99.
15 Ibid., p. 100.
130 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

investimento ostensivo e não leva em consideração os


valores objetivos do produto e, os meios técnicos
empregados, tendem a uma padronização, como por
exemplo a televisão, que visa um arranjo entre o rádio e o
cinema. A cultura de massas do modelo norte-americano, no
sentido de atender a demanda dos trabalhadores por
diversão e lazer, era instrumentalizada nos moldes das
grandes indústrias. A intenção era lucrar com a atividade e
manter o controle social e comportamental dos indivíduos.
O sucesso dessa atividade sempre esteve ligado à
manipulação das massas que não percebiam o processo
como tal, mas como fornecimento de entretenimento
consumido no tempo livre.
Os consumidores estão forçosamente obrigados a
percorrer o caminho traçado pela indústria cultural, tal como
um adestramento do espectador no sentido de identificar no
filme, sua própria realidade. Até mesmo o desavisado será
atingido pelos produtos da indústria cultural, tornando-o
consumidor sem resistência ao que é ofertado. O espectador
de cinema compreende que, quanto maior for a aplicação
técnica empregada, mais facilmente percebe a ilusão de que
o mundo exterior é um prolongamento do mundo que se
desvenda no filme.
A indústria cultural está intimamente ligada à
indústria da diversão no sentido de manter o controle sobre
os seus consumidores. O divertimento é a busca por
sensações e, no anseio de vivenciá-las ao máximo, acaba por
priorizar a quantidade em vez da qualidade. Desenvolver
sensações sucessivas, na concepção de divertir a consciência,
leva a uma alienação do consumidor ao mundo. Essa busca
pela quantidade dá a impressão de que o indivíduo
desenvolve a intenção de acumular, armazenar sensações na
sua memória. “Tal interpretação do divertimento levou ao
conceito da ‘sociedade de consumo’, sociedade que consome
as sensações materiais e outras fornecidas pelos aparelhos
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 131

produtores”16. A alienação desse consumidor que se diverte,


dá-se principalmente, pela falta de memória, pela
incapacidade de absorver o que foi consumido. A prioridade
imanente do sistema é de não largar o consumidor, não
permitir em momento algum, a possibilidade de resistência.
O princípio é dar a sensação de que todas as necessidades
surgidas podem ser satisfeitas pela indústria cultural, de tal
sorte, que se veja nelas como um eterno consumidor, um
objeto. O prazer prometido continuamente ao consumidor
através do enredo ou encenação é constantemente e
maldosamente prorrogado.
Nesse sentido, Flusser17 entende que antes da
reprogramação cultural, o indivíduo era consciente de si e do
mundo e, isso foi possível, porque os aparelhos não
conseguiram divertir completamente a consciência. No
entanto, o que se vê atualmente, são aparelhos empregando
métodos com a intenção de atingir a consciência infeliz
através de disparos de sensações a todo o momento. E isso
é possível, porque é permitido ao aparelho; porque o
indivíduo quer se divertir, exige divertimento em quantidade
cada vez maior, por não suportar o confronto com a
consciência infeliz. As sensações são refeitas ao acaso e a
indústria do divertimento tem a função de programá-las, por
isso, tudo é diversão, sensacionalismo. “Os aparelhos
codificaram o mundo de maneira a divertir-nos. Tornaram
‘espetacular’ o mundo. Estão procurando atualmente
sensacionalizar nossa própria morte. Já sensacionalizaram a
dos outros. Superaram o luto”18.
Na indústria cultural a ideologia é o próprio
negócio, porque se identifica com a necessidade produzida,

16FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar,


p. 131.
17FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar,
p. 134.
18 Ibid., p. 136.
132 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

fazendo com que a diversão se torne o prolongamento da


vida concreta nas relações, como o trabalho, por exemplo:
Ela é procurada por quem quer escapar ao processo
de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em
condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a
mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa
em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina
tão profundamente a fabricação das mercadorias
destinas à diversão, que esta pessoa não pode mais
perceber outra coisa senão as cópias que
reproduzem o próprio processo de trabalho. O
pretenso conteúdo não passa de uma fachada
desbotada; o que fica gravado é a sequência
automatizada de operações padronizadas. Ao
processo de trabalho na fábrica e no escritório só se
pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis
aí a doença incurável de toda diversão19.
Ainda nessa linha de consideração, verifica-se que
o espectador não manifesta e, não necessita de pensamento
próprio, o produto indica o resultado da reação, não apenas
pelo tema desenvolvido, mas pelos sinais20. Também deve-
se considerar que a divisão do tempo em trabalho e lazer
mudou muito no decorrer da história. Até a Idade Média, na
qual a atividade era praticamente agrária, não existia essa
relação; apareceu no modo de produção capitalista, depois
da Revolução Industrial, que limitou o trabalho produtivo
em ambientes industriais. Embora o desenvolvimento
capitalista carregue a marca da exploração da força de
trabalho, na qual mantinha o trabalhador sob severa
atividade produtiva e dedicado exclusivamente à

19 ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do


esclarecimento: fragmentos filosóficos, p.113.
20 O termo usado por Flusser para indicar o resultado da diversão em
sinais, é a imagem. “As sensações individuais que devoramos vão
formando mosaicos que vagamente se estruturam em imagens”.
(FLUSSER, 2011, p. 135).
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 133

sobrevivência, foi nessas condições que foram lançados a


concepção de tempo entre trabalho e lazer. Países mais
industrializados, como Inglaterra, França e Alemanha,
introduziram gradativamente leis que limitavam a jornada de
trabalho, especialmente dos trabalhadores mais
especializados que conseguiam negociar salários e tempo
laboral, diferente da grande maioria dos operários que não
possuíam nenhum conhecimento técnico.
Essa conquista da classe trabalhadora dos países
mais desenvolvidos ocasionou a necessidade da criação dos
meios de entretenimento. Inicialmente, nos moldes das
quermesses, nas quais os participantes deslocavam-se através
de transporte público para instalações adaptadas, marcadas
por uma vigilância constante das autoridades, a fim de
doutrinar os trabalhadores e mantê-los ordeiros, livres do
álcool e de arruaças. Os ambientes começaram a receber um
número cada vez maior de pessoas, o que forçou a
modernização, a profissionalização do entretenimento e
consequentemente o surgimento de um promissor ramo de
negócio que se encarregava da edição e venda dos folhetins,
geralmente com conteúdo adocicado. Esse lazer tipicamente
proletário levou a burguesia a desenvolver um estilo próprio,
mantendo as devidas diferenças, em primeiro momento,
exteriores. O entretenimento proletário localizava-se nos
subúrbios, em galpões e, os burgueses, em regiões mais
nobres, em ambientes que imitavam teatros e casas de ópera
destinados preponderantemente ao predomínio da
aristocracia.
Comportamentos típicos do final do século XIX e
início do XX como, leitura de jornais, de romances,
introdução de pianos nas residências da burguesia, indicava
que o mercado estava pronto para o aparecimento da cultura
de massas, faltando o suporte dos meios tecnológicos que
começaram a aparecer no final da década de 1880, com o
advento do cinema e do rádio. O uso do rádio permaneceu
restrito às forças armadas durante a Primeira Guerra
134 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Mundial e, somente na década de 1930 constituiu-se um


meio típico de cultura de massas, ao transmitir música
popular produzida pela recente indústria fonográfica. No
princípio, o processo era muito caro e excluía a maior parte
da população, mas com o passar do tempo, a produção em
escala barateou os custos de produção, permitiu o consumo
de discos e aparelhos e, por consequência, o entretenimento
moderno.
A proliferação das casas de diversão e das salas de
cinema nas grandes cidades da Europa e EUA, permitiu
identificar a transição de uma cultura de entretenimento
tradicional para uma “cultura de massas”, ancorada nos
“meios tecnológicos de reprodução e de difusão de sons e
imagens”21. Essa explosão da quantidade das salas de cinema
pode ser entendida como resultado de uma demanda
reprimida, agora, acessível às pessoas. No entanto, o
movimento gerou uma concentração de capital no ramo do
entretenimento. Anteriormente, o investimento para a
produção de espetáculos populares era pequeno e, com o
surgimento do cinema, os custos tornaram-se elevados,
principalmente com a manutenção das salas de exibição e a
produção dos filmes, devido à concentração da indústria
cinematográfica em países como, França, Inglaterra e
Alemanha. Os EUA, na primeira década do século XX, não
tinham uma produção que suprisse a demanda, tornando-se
grande importador da produção europeia. Somente mais
tarde tornaram-se grandes produtores e o marco inicial dessa
moderna cultura foi a ascensão de Hollywood como
produtora de filmes em escala industrial. Inicialmente, filmes
dirigidos à classe trabalhadora urbana de cunho moralista e
disciplinador. As maiores empresas de entretenimento foram
fundadas por judeus que concentraram os estúdios
cinematográficos na Califórnia nos anos de 1920, dando

21 DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural e meios de comunicação, p. 20.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 135

origem a famosa indústria cinematográfica mundial:


Hollywood.
Na indústria cultural o indivíduo assume posição
ilusória, não apenas em função da padronização dos meios
de produção, mas principalmente quando se leva em
consideração as particularidades do eu como mercadoria
monopolizada e condicionada a passar por algo natural. O
indivíduo não é mais indivíduo, é encruzilhada das
tendências do universal, revela um caráter fictício. “É só por
isso que a indústria cultural pode maltratar com tanto
sucesso a individualidade, porque nela sempre se reproduziu
a fragilidade da sociedade”22.

Considerações finais.

A ideia de programa é relativamente nova na


existência humana e muitos aspectos ainda não foram
conscientizados. Agora, é incontestável que atualmente o
comportamento da sociedade vem sendo programado por
programas que afetam diretamente a liberdade humana.
Programas projetados por programadores que se
autonomizam. “Os aparelhos funcionam sempre mais
independentemente dos motivos dos seus
23
programadores” . Constata-se o surgimento de um número
cada vez maior de aparelhos programados por outros
aparelhos; a própria condição humana programada por
aparelhos de tal modo a provocar dúvida sobre continuar a
ser homem ou passar a ser robô.
Muitos entendem que essa “consciência crítica”
defendida não seria necessária porque, no primeiro
momento, há os que rejeitam a ideia de que a indústria

22 ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do


esclarecimento: fragmentos filosóficos, p.129.
23FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um modo de usar,
p. 44.
136 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

cultural permaneceu refém da manipulação das grandes


companhias capitalistas e, na atualidade, os que entendem
que a internet e os meios tecnológicos digitais provocaram
uma revolução na cultura de massas através da interatividade
que democratizou e eliminou os processos de manipulação
denunciados por Horkheimer e Adorno24. Entretanto, na
concepção de Duarte, é necessário um cuidado em aceitar
essa “democratização digital”, pois “há indícios de que o
perigo de aprofundamento dos aspectos perversos da
indústria cultural ‘clássica’ é real, apesar de possibilidades
interessantes oferecidas pelos recursos tecnológicos
atuais”25.
Considerando que a situação política e tecnológica
são diferentes quando foi emitida a crítica de Horkheimer e
Adorno na década de 1940; que a discussão política da época
girava em torno da Guerra Fria, disputa ideológica entre os
capitalistas e socialistas e que deu lugar ao processo político
denominado “globalização” com a liderança dos EUA diante
do mundo e a queda do socialismo liderado pela extinta
União Soviética; que a base tecnológica criticada da época
ancorava-se no cinema e rádio e que deu lugar a uma base
mais complexa com o advento da televisão preto-e-branco,
depois colorida, os vídeos, o televisor digital e os
computadores que permitem conectividade em tempo real.
É possível concluir que as características da indústria cultural
criticadas por Horkheimer e Adorno na essência,
permanecem as mesmas, ainda que a política e a tecnologia
tenham mudado. Na política percebe-se que os EUA
consolidaram a hegemonia em termos globais e na base
tecnológica acompanha-se o surgimento constante de novos
produtos que inundam o cotidiano gerando uma espécie de
dependência nos indivíduos.

24 DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural e meios de comunicação, p. 40.


25 Ibid., p. 40 – 41.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 137

Bibliografia

ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética


do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1985.
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro:
Zahar, 2009.
ADORNO, Theodor W. Minima moralia. São Paulo: Editora
Ática S.A.: 1993.
ADORNO, Theodor W. Palavras e sinais: modelos críticos 2.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural e meios de comunicação.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
FLUSSER, Vilém. Pós-História: vinte instantâneos e um
modo de usar. São Paulo: Annablume. 2011.
FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as
conferências de Bochum. São Paulo: Martins Fontes,
2014.
Filosofia e Concretude: a
dialética negativa de Adorno
como antídoto dos formalismos
ideológicos
Jardel de Carvalho Costa1
Desde seus primórdios, vários problemas têm
acompanhado a filosofia, a saber: O que é o real? Podemos
conhecer a realidade? A filosofia possui algum poder de
transformar a realidade? Aqueles que estão na caverna, estão
vendo apenas simulacros do real? É preciso sair da caverna?
Tais questões permearam e ainda permeiam o pensamento
filosófico, assumindo inúmeras formas. É justamente
partindo de tais pressupostos que Adorno inicia sua célebre
obra intitulada: “Dialética Negativa” (1966), com algumas
perguntas fundamentais implícitas: a razão fracassou em
transformar o mundo? A filosofia resignou-se em apenas
interpretar o mundo? Teriam os filósofos refugiado-se em
meros castelos conceituais distantes do mundo real? Quais
os perigos da falsa consciência da identidade entre
pensamento e objeto?
De acordo com Adorno, uma das hipóteses, é a de
que, talvez, as interpretações do mundo não tenham sido
suficientes para proporcionar uma mudança prática, ou que
a filosofia ainda não tenha refletido o bastante sobre si
mesma para diagnosticar o que nela mesma encontra-se de
discrepante em relação à realidade. Em outras palavras: para
Adorno, a filosofia monopolizou o seu objeto no sentido de
impregnar-se ingenuamente da crença de que pode conhecê-

1Professor Assistente – I da Universidade Estadual do Piauí.


Doutorando em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul – PUCRS. E-mail: jardelrpc@superig.com.br
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 139

lo e explicitá-lo racionalmente em todos os seus aspectos, ou


melhor, a filosofia passou a crer em uma possibilidade de
explicação totalizante do real.
Essa autoexaltação do conceito levou a filosofia a
praticar uma repressão na medida em que os objetos da
filosofia não se deixam apreender totalmente em seus
conceitos. Neste sentido, Adorno observa que um dos
grandes erros da filosofia foi ter acreditado em uma suposta
identidade entre o conceito e o objeto. “Todavia, a aparência
de identidade é intrínseca ao próprio pensamento em sua
forma pura. Pensar significa identificar. Satisfeita, a ordem
conceitual coloca-se à frente daquilo que o pensamento quer
conceber2”. Assim, estando à frente do que deveria ser
compreendido, tal vontade de compreender revela uma
contradição, a saber: a ilusão de unidade e identidade total.
Neste sentido, a dialética negativa emerge com a
consciência da não-identidade. Esta apresenta à consciência
o que é contraditório, desvelando o que não lhe é idêntico
no interior mesmo de sua pretensão de totalidade. Diante
desse quadro, torna-se relevante observar que tal
“contradição é não-identidade sob o encanto da lei que
também afeta o não-idêntico. No entanto, essa lei não é uma
lei do pensamento. Ao contrário, ela é uma lei real3”, ou seja,
é inerente à dialética, à multiplicidade da experiência, em vez
da abstração unificadora do nominalismo conceitual.
O que há de doloroso na dialética é a dor em relação
a esse mundo, elevada ao âmbito do conceito. O
conhecimento precisa se juntar a ele, se não quiser
degradar uma vez mais a concretude ao nível da

2ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:


Zahar, 2009, p.12-13.
3 ADORNO, op. cit, p.13.
140 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
ideologia; o que realmente está começando a
acontecer4.
Na concepção de Adorno, existe uma espécie de
ditadura do universal sob o particular, de modo que a
diferença fica escondida, mascarada pela suposta unidade
entre conceito e objeto. Nesse contexto, pode-se dizer que a
dialética negativa tem seu interesse voltado para o “âmbito
do não-conceitual, do individual e particular; aquilo que
desde Platão foi alijado como perecível e insignificante e
sobre o que Hegel colou a etiqueta de existência pueril5”.
Partindo desse pressuposto, o tema da filosofia deveria ser o
contingente, aquilo que fica fora do que a abstração
conceitual geralmente demarca como objeto.
De acordo com o filósofo alemão, a filosofia desde
seu início, estabeleceu uma confiança inigualável no poder
do conceito, ou melhor, uma crença mitológica na
capacidade de racionalizar tudo, de objetivar o mundo tal
como ele é, em todas as suas facetas. O problema é que essa
confiança na suposta universalidade do conceito, acaba
mascarando o fato dela (universalidade) ser oriunda de um
interesse particular. Neste contexto, Adorno argumenta que,
nenhuma filosofia está em condições de colar as
coisas particulares nos textos, como algumas
pinturas poderiam fazê-la pensar. Em sua
universalidade formal, porém, o argumento toma o
conceito de modo tão fetichista quanto esse conceito
se expõe ingenuamente no interior de seu domínio,
como uma totalidade autossuficiente em relação à
qual o pensamento filosófico não pode nada6.
Portanto, uma das tarefas da dialética negativa é
alterar a direção da conceitualidade da filosofia. Esta tem de

4 ADORNO, op. cit, p.14


5 ADORNO, op. cit, p.15.
6 ADORNO, op. cit, p.18
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 141

redescobrir que a constituição impositiva da realidade é


antagônica em si mesma, e que mesmo que o conceitual
possa alcançar em alguma parte uma verdade, este acaba, de
outro lado, reprimindo, desprezando aquilo que ela própria
não abrange. E é justamente neste sentido que Adorno
argumenta que “a utopia do conhecimento seria abrir o não-
conceitual com conceitos, sem equipará-los a esses
conceitos7”. A filosofia precisa aprender que não é dado a
ela, o poder de a partir de suas determinações apreender a
essência das coisas.
Neste sentido, é urgente fazer o desencantamento do
conceito no interior da filosofia. É preciso que a filosofia,
voltando-se sobre si mesma a partir de uma intensa dialética
negativa, abandone a ideia de que ela teria o infinito à sua
disposição. Portanto, no momento em que a filosofia passar
a compreender a impossibilidade de possuir completamente
os objetos que pretende conhecer, ela abandonaria a ficção
do todo, e emergiria da multiplicidade, seria experiência
pulsante, e não uma abstração conceitual. A filosofia estaria,
neste sentido, emancipada, consciente de quão pouco
alcança quando racionaliza, e de que o objeto é sempre maior
do que o conceito.
Assim, uma consciência filosófica livre, é aquela que
não se deixa amarrar a um todo que se diz supostamente
unificado e coerente8, pois é justamente “lá onde o
pensamento se projeta para além daquilo que, resistindo, ele
está ligado, acha-se a sua liberdade9”. Partindo desse

7 ADORNO, op. cit, p.17.


8 De acordo com Adorno, “o pensamento não-regulamentado possui
uma afinidade eletiva com a dialética que, enquanto crítica ao sistema,
lembra aquilo que estaria fora do sistema; e a força que libera o
movimento dialético no conhecimento é aquela que se erige contra o
sistema. Essas duas posições da consciência ligam-se por meio da crítica
recíproca, não por meio de um compromisso”. (ADORNO, op. cit,
p.35).
9 ADORNO, op. cit, p.24.
142 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

pressuposto, pode-se afirmar que negatividade é a chave para


a emancipação do pensamento. Sem a negatividade tende-se
a cair no formalismo conceitual unificador e ficcional da
identidade entre o conceito e o objeto. Aqui encontra-se a
relevância de uma dialética negativa forte.
Tal dialética tem entre seus objetivos, refrear um
modelo de pensar dominante e repressivo que partindo da
unidade e concordância, forma uma projeção deformada do
estado das coisas, pois é característica dos sistemas
filosóficos representar uma totalidade à qual nada permanece
exterior, o que recai, enfim, nos mais diversos idealismos que
por suas unidades lógicas internas, eliminam o contingente e
o heterogêneo. Portanto, não resta outro fim ao pensamento
idealista fundado na pretensão totalizante do conceito, a não
ser transformar-se em ideologia.
Neste contexto, é justamente no intuito de evitar a
petrificação do conceito em face aos objetos e sua
consequente transformação em ideologia, que a dialética
negativa enfatiza o particular e o contingente. Assim, é
necessário uma reflexão centrada na negatividade, pois aí
encontra-se o locus da liberdade. A negatividade torna-se,
então, a força motriz da filosofia, aquilo que a habilita a
denunciar os males do mundo, os sofrimentos dos entes.
Sob esta perspectiva, o mundo não tem que balizar-se pela
idéia. Antes, é o conceito que tem que balizar-se pelo
mundo.
De acordo com Adorno, o totalitarismo do conceito
diante do objeto adquiriu ao longo da História da filosofia
uma série de fetiches, como é o caso do conceito
amplamente difundido de espírito do mundo. Inúmeras
foram as filosofias desde a antiguidade, passando pela
escolástica medieval, até chegar em Hegel, que elevaram o
conceito de espírito do mundo a um idealismo onipotente e
até mesmo divino. Tal conceito, em sua natureza essencial,
divina e superpotente, acabou por adquirir traços
mitológicos. Através do universalismo, o conceito de
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 143

espírito do mundo acabou por silenciar os particulares,


diluídos em um todo supostamente coerente e natural.
Tal postura, na perspectiva de Adorno, acaba por
mascarar o fato de que são os homens reais que lutam e
sofrem, ou melhor, por mais que a História humana seja
ampla e complexa, “não é de modo algum a “história” que
necessita do homem como meio de alcançar seus fins –
como se ela fosse uma pessoa à parte. Ao contrário, ela não
é outra coisa senão a atividade do homem que persegue seus
fins10”. Contudo, tal noção de espírito do mundo ganhou
diferentes roupagens ideológicas, principalmente em suas
versões secularizadas e teleologicamente direcionadas a um
destino último, como é o caso do marxismo, em que a
humanidade move-se em direção à um todo coerente final.
I – Marxismo, Ideologia e Dialética Negativa

Na concepção de Adorno, a autoilusão da identidade


entre conceito e objeto também adoeceu o marxismo. Este,
por acreditar na unidade e coerência totalizante do conceito,
acabou por deformar o que seria a emancipação, em prol de
uma ordem vinculante maior, que, iluminada pelo conceito,
teria como função guiar os homens à libertação final. Neste
sentido, ao absorver a multiplicidade na unidade, o
marxismo acabou por esquecer que “a identidade é a forma
originária da ideologia11”.
Preso à autoilusão da consciência da identidade, o
marxismo estancou a negatividade, tornando-se meramente
ideologia. Assim, a própria práxis transformadora que
deveria ser entendida por meio de uma dialética negativa, foi
adiada em prol de uma prática superficial retórica que
estrangulou o pensamento crítico e a multiplicidade em prol

10 ADORNO, op. cit, p.253-254.


11 ADORNO, op. cit, p.129.
144 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

da unidade do partido ou do conceito, conforme Adorno


assevera:
No Leste, o curto-circuito teórico na concepção do
indivíduo serviu de pretexto para a opressão coletiva.
Em razão do número de seus membros, o Partido
deveria ser a priori superior a todo indivíduo em
poder de conhecimento; e isso mesmo o Partido
sendo cego ou estando aterrorizado. No entanto, o
indivíduo isolado que não é levado em conta pela
ordem pode perceber de tempos em tempos a
objetividade de maneira menos turva do que um
coletivo que não é, de mais a mais, senão a ideologia
de seus comitês. A frase de Brecht de que o Partido
possui mil olhos, enquanto o indivíduo só possui
dois, é falsa como toda sabedoria de botequim. A
imaginação exata de um dissidente pode ver mais do
que mil olhos nos quais se colocaram os óculos da
unidade, de modo que aquilo que eles olham é
confundido com a universalidade do verdadeiro
regredido12.
A falsa consciência do marxismo levou seus
integrantes a dogmatizarem o que eles acreditavam ser
universal, e com isso reprimirem e suprimirem a
singularidade e a liberdade subjetiva que acompanha a
multiplicidade. Tal supressão tem sua máxima no
entendimento de que “o espírito objetivo da classe estende-
se nos participantes muito além de sua inteligência
individual13”. Sob esta perspectiva, a totalidade adquire, por
ser o microcosmo do grupo, uma suposta legitimidade que
com isso, configura previamente as decisões.
Tranformado em ideologia, o marxismo acabou por
não levar em conta que “pensar é, já em si, antes de todo e
qualquer conteúdo particular, negar, é resistir ao que lhe é

12 ADORNO, op. cit, p.47.


13 ADORNO, op. cit, p.256.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 145

imposto14”. Assim, testemunhou-se o engessamento das


estruturas de poder do marxismo, imunes a qualquer forma
de negatividade, o que levou necessariamente à
irracionalidades. Isto porque no interior dessa estrutura, só é
aceito aquilo que não entra em contradição com sua forma
lógica, aquilo que é diferente, o que acaba contrariando a
proposta da dialética negativa. Sob esta ótica totalizante,
qualquer crítica passa a ser vista como um desvio de algo que
ameaça a universalidade do aparato conceitual e político da
ordem vinculante.
Para Adorno, faltou ao marxismo a consciência de
que o pensamento deve pensar a si próprio, ou melhor, deve
experienciar a contraditoriedade das coisas, na medida em
que esta “é uma categoria da reflexão, a confrontação
pensante entre o conceito e a coisa15. A dialética enquanto
procedimento significa pensar em contradição em virtude e
contra a contradição uma vez experimentada na coisa16”.
Neste sentido, a ausência de uma dialética negativa no
interior do marxismo levou-o a transformar-se em um
materialismo ideológico personificado na figura de um
partido burocrático iludido na crença de que o homogêneo
totalizante, é sinônimo de coerência racional, conforme
assevera Adorno:
O materialismo que alcançou o poder político não
prescreveu menos uma tal prática para si do que um
mundo que ele quis um dia transformar; ele continua
a subjugar a consciência, ao invés de concebê-la e,
por sua vez transformá-la. Sob o pretexto gasto de

14 ADORNO, op. cit, p.25.


15Neste contexto, Adorno chama atenção que “toda determinação que
se apresenta como desprovida de contradição se revela tão contraditória
quanto os modelos ontológicos ser e existência. Não se consegue obter
nada positivo da filosofia que seja idêntico à sua determinação”
(ADORNO, op. cit, p.127).
16 ADORNO, op. cit, p.127.
146 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
uma ditadura do proletariado há muito administrado
que dura há quase cinquenta anos, o funcionamento
maquinal terrorista do Estado se entrincheira em
instituições estáveis, insulto à teoria que essas
instituições têm na boca. Elas acorrentam seus
súditos a seus interesses mais imediatos e os obrigam
a se manterem limitados. A depravação da teoria,
contudo, não teria sido possível sem uma base
apócrifa nela17.
Ao apontar que o próprio materialismo marxista já
teria nascido com uma base apócrifa inscrita nela mesma18,
Adorno lança as pistas para a compreensão do próprio
fracasso do marxismo, a saber: a falta de uma dialética
negativa. Tal falta levou o marxismo à autoglorificação do
conceito e a sua autoalienação em relação a própria
contraditoriedade inerente às coisas mesmas. E a questão é
que tal ilusão da identidade entre o conceito e o objeto,
sustentada na crença da universalidade totalizante do
conceito, não levou o fracasso apenas do marxismo. Ela é a
base do próprio direito contemporâneo.

II – Direito, Ideologia e Dialética Negativa

17 ADORNO, op. cit, p.174.


18 O filósofo escocês Alasdair MacIntyre, ao refletir sobre os motivos
pelos quais abandonou o marxismo, foi enfático: “é importante para cada
teoria, ser formulada do modo mais aberto possível a toda refutação.
Mais tarde compreendi que essa mesma lição eu poderia ter aprendido
com alguns críticos do marxismo como Karl Popper ou com um mestre
do pragmatismo como Charles Peirce. Se um ponto de vista não fornece
ele próprio os instrumentos que demonstram que está em desacordo
com a realidade das coisas, não se pode nem sequer demonstrar que ele
esteja de acordo. E se não for assim, trata-se de um esquema de
pensamento dentro do qual aqueles que nele crêem permanecem
prisioneiros da própria realidade sobre a qual suas convicções tinham
sido originalmente formuladas” (BORRADORI, Giovana. Filosofia
Americana – Conversações, São Paulo: Uneso, 2003, p.197).
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 147

Na perspectiva de Adorno, a ilusão de que o conceito


representa de fato o objeto ganha diversas formas e
simulacros. Uma delas pode ser observada no interior do
Direito contemporâneo. Este, tem como uma de suas
características, operar com conceitos formais abrangentes, e
justamente por isso, são chamados de universais. Operando
quase sempre a partir da noção de dever, o direito e seus
princípios pretendem sob uma ótica totalizante, resolver os
conflitos e problemas, partindo de suas categorias abstratas
e “objetivas”.
No interior deste campo, observa-se o mesmo
problema que Adorno vem denunciando, a saber: a anulação
da multiplicidade, singularidade, particularidade e
contraditoriedade em prol da unidade, totalidade e
“segurança lógica” do conceito. E mais: no interior das
relações jurídicas, a formalização ganha inúmeras máscaras,
ou melhor, “se reproduz por meio da abstração, hierarquia
lógica dos níveis de universalidade, e, em verdade, mesmo
onde as relações de dominação são levadas a se camuflar por
detrás dos procedimentos democráticos19”. Novamente
entra em cena a negação da contraditoriedade e
multiplicidade da concretude.
Assim, internamente ao sistema jurídico, o indivíduo
particular é absorvido pelo universal que estaria
supostamente acima dos conflitos e antagonismos. Neste
contexto, a objetividade preordenada do direito ganha força
numa espécie de irracionalidade com aparência de
racionalidade na medida em que não tolera nada de
particular. Tal intolerância converte-se em dominação e
coerção pois, afastando-se dos interesses particulares, o
sistema não consegue enxergar as dores e sofrimentos da
concretude. Portanto,
o direito é o fenômeno primordial de uma
racionalidade irracional. Nele, o princípio formal da

19 ADORNO, op. cit, p.257.


148 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
equivalência transforma-se em norma e insere todos
os homens sob o mesmo molde. Uma tal igualdade,
na qual parecem as diferenças, favorece sub-
repticiamente a desigualdade; um mito que sobrevive
em meio a uma humanidade que só aparentemente é
desmitologizada. As normas jurídicas excluem o que
não é coberto por elas, toda experiência não pré-
formada do específico em virtude da sistemática sem
quebras, e elevam então a racionalidade instrumental
a uma segunda realidade sui generis20.
A abstração totalizante inerente à universalidade21 do
direito, garante inúmeras formas de dominação. O próprio
conceito de igualdade no interior do sistema jurídico acaba
por escamotear as particularidades e diferenças inerentes à
concretude que atinge seu clímax no mundo administrado.
Dentro deste, os sujeitos reais de carne e osso transformam-
se em estatísticas, números em processos; os juízes não
julgam pessoas, mas papéis, etc… Cria-se assim, uma
suposta realidade fictícia administrada e pensada pelo
universal, que por tal estatuto não precisa ser questionado,
pois “o conjunto do campo jurídico é um campo de
definições. Sua sistemática ordena que não se insira nesse
campo nada que se subtraia à sua esfera fechada22”.

20 ADORNO, op. cit, p.257.


21Acerca dos problemas inerentes à aspiração à universalidade do direito
contemporâneo, diversos são os teóricos que têm desferido fortes
críticas à tal postura. Dentre eles, pode-se citar, o filósofo escocês
Alasdair MacIntyre, que tem deixado claro sua postura negativa diante
dos “Direitos Humanos Universais”. De acordo com MacIntyre, “a
verdade é simples: tais direitos não existem e acreditar neles é o mesmo
que acreditar em bruxas e unicórnios” (MACINTYRE, Alasdair. Depois
da Virtude. Bauru: Edusc, 2001, p.127).
22No tocante ao fechamento da ordem jurídica em si mesma, autores
como Hans Kelsen, proporam que tal sistemática é necessária à pureza
do próprio direito, como ele próprio assevera: “Quando a si mesma se
designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela propõe
garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 149

Neste contexto, a ciência jurídica, que, por seu status


de ciência e estando ela mesma administrada pelos
operadores do direito, arroga-se ao direito de a tudo
controlar, de estabelecer parâmetros para o real. Surge assim,
a ilusão do controle. Suas prescrições, deveres e direitos,
objetivam apreender a concretude por meio do conceito, ou
melhor, dar a seus objetos uma forma, um modelo. Assim,
por crer na segurança universal de seus princípios, o direito
se autoilude com o poder de controlar, de punir, de libertar.
Dessa forma, em meio a tal ideologia, a modernidade
ancorou-se no direito como um meio de obter de maneira
formal, a cidadania democrática, e para isto, acabou por
confiar na suposta identidade entre conceito e objeto que
levou o marxismo e tantas outras propostas filosóficas e
políticas a fracassarem. Desde então, o direito tem tentado
recobrir o real, dar forma, controlar por meio de
mecanismos formais artificiais distantes da concretude.
Neste contexto, não é de admirar a ênfase dos aparatos
intitucionais modernos em tentar resolver conflitos apenas
criando leis e mais leis.
Dessa forma, a ordem jurídica torna-se estranha e
extrínseca ao sujeito que, já sendo vítima de uma violência,
torna-se impotente diante da ordem universal totalizante.
Assim, fundamentado no universalismo, o legalismo do
direito abarca e absorve a todos, mesmo contra o interesse
de alguns (particulares), o que apenas reforça a ideologia da
unidade, coerência e segurança que o sistema “propicia”.
Contudo, tal ideologia mascara o fato de que, “o meio no
qual o mal, em virtude de sua objetividade, alcança um ganho
de causa e conquista para si a aparência do bem, é em grande
medida o meio da legalidade23”.

conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não
se possa, rigorosamente, determinar como Direito” (KELSEN, Hans.
Teoria Pura do Direito. 6ªed, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.01).
23 ADORNO, op. cit, p.257.
150 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Portanto, legalidade e mundo administrado formam


as duas faces da mesma moeda na medida em que
absorvendo todos os indivíduos às categorias abstratas,
rebaixam a equidade que seria um corretivo do sistema a um
segundo plano, pois uma justiça que possui vendas não pode
ver a concretude, a diferença, os antagonismos, e por isso,
não pode ser equânime. Assim, fechado em si mesmo, o
legalismo do sistema jurídico impõe-se como aquilo já
pensado, já estatuído, universalmente justificado e portanto,
implementado sob diversas formas por meio de instituições
que reivindicam para si, o reconhecimento de seu poder
público em face de suas justificações universais, como é o
caso da ONU. Entretanto, o problema de tal poder do
universal personificado em diversas instituições é que, como
argumenta Adorno, “quanto mais desmedido é o poder das
formas institucionais, tanto mais caótica é a vida que elas
impõem e deformam segundo sua imagem24”.

Conclusão

Partindo do que foi exposto acima, pode-se concluir


que a filosofia é eminentemente contradição, ou melhor,
cada esfera da realidade tem suas próprias contradições.
Neste sentido, não se pode entender a realidade como um
caos que precisa ser transformado em cosmos. Assim, as
teorias que entendem que há uma identidade entre conceito
e objeto só podem ter um destino, a saber: transformar-se
em ideologias. É necessário que o pensamento, ao pensar
sobre si mesmo, compreenda que a dialética não abarca tudo.
É preciso vacinar-se em relação à tentação de abarcar o real
num todo coerente, sob o risco do próprio pensamento
tornar-se extremado.
Portanto, é tarefa da dialética negativa como crítica
da teoria, ou melhor, dos teóricos que acreditavam já ter

24 ADORNO, op. cit, p.82.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 151

teorizado sobre tudo, torná-los conscientes das contradições


inerentes à própria concretude, pois é um erro da filosofia
acreditar que os conceitos valem mais que as coisas. Neste
sentido, os sistemas filosóficos são exemplos característicos
de uma forma de retirar a filosofia do problema que
realmente deve ser enfrentado. Assim, a filosofia tem sido
retirada do real e criado uma alienação que tem adoecido as
mais diversas esferas sociais, como é o caso do marxismo e
do direito contemporâneno.
No caso do marxismo, ao se fecharem em um campo
teórico que acreditavam ter uma identidade exata com o real,
acabaram dogmatizando o que acreditaram ser a receita para
o real, ou seja, o pensamento que deveria proporcionar a
práxis para emancipar os homens, foi transformado em
ideologia. Faltou aos revolucionários a compreensão de que
pensar não é afirmar. Pensar é negar, destituir o que foi
estatuído e naturalizado, ou melhor, significa negar os
processos pelos quais o estatuído se estrutura. Portanto, a
filosofia não pode encontrar a verdade, pois se ela a
encontra, petrifica-se em ideologia.
Da mesma forma que o marxismo, o direito
contemporâneo também foi transformado em ideologia. Em
sua crença cega na universalidade que a tudo absorve, os
sistemas jurídicos através dos conceitos abstratos pelos quais
se estrutura tem negado veementemente a concretude e seus
antagônismos e contradições. Ao operar na abstração
conceitual do universalismo, o direito tem sido indiferente
ao sofrimento real dos homens, algo que é reforçado pelo
legalismo abrangente que a todos homogeneiza acoplado ao
mundo administrado que a tudo transforma em estatística.
Fundado sob as abstrações conceituais, como por exemplo
os direitos e deveres fundamentais em que “todos são iguais
perante a lei”, o direito tem servido apenas como ideologia
que no fundo, mascara a dor e a aflição da concretude.
Portanto, torna-se urgente a potencialização da
dialética negativa, pois a filosofia precisa retomar
152 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

urgentemente seu lado crítico. É preciso habilitar o


pensamento a negar a si mesmo, a trabalhar seu lado
subversivo, deslegitimando as coisas, desnaturalizando o que
se petrificou como natural. Neste sentido, pode-se dizer que
a filosofia é uma hermenêutica de deslegitimação dos
discursos, aquilo que volta-se para a concretude e seus
antagonismos, ou melhor, o que denuncia o sofrimento
humano em suas mais variadas facetas, evitando assim, a
totalidade, a universalidade, a concordância, a
homogeneidade. A filosofia torna-se assim, negação,
inquietude.

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. Trad. Marcos


Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BORRADORI, Giovanna. A Filosofia Americana –
Conversações. São Paulo: Uneso, 2003.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru:
Edusc, 2001.
Expressão e constelação em
Theodor Adorno e Walter
Benjamin
Manuela Sampaio de Mattos*
Dos tantos pontos onde o pensamento filosófico de
Walter Benjamin e Theodor Adorno convergem muito já foi
dito. Transitaremos aqui por um desses cruzamentos, de
modo a adentrar e explorar o campo da visada da coisa, de
sua expressão e apresentação – lá onde o pensamento se
projeta para além de si e onde acha-se a sua liberdade que,
ao mesmo tempo, é a liberdade que a filosofia detém de “não
ser outra coisa senão a capacidade de dar voz à sua não
liberdade1”.

***

Expressão e mímesis – expressão negativa

O conceito de expressão ganha especial espessura na


obra Dialética Negativa, momento em que Adorno situa a
liberdade do pensamento onde “essa segue o ímpeto
expressivo do sujeito2”, sendo o sofrimento a objetividade
que pesa sobre o sujeito e sua expressão aquilo que o sujeito
experimenta como elemento mais subjetivo e objetivamente
mediado. Assim, “dar voz ao sofrimento é a condição de
toda verdade3”, o que poderá ocorrer pelo meio da rigorosa
apresentação linguística; para a filosofia, a apresentação é

* Psicanalista e doutoranda em Filosofia PUCRS, bolsista CAPES.


1 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 24.
2 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 24.
3 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 24.
154 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

algo intrínseco e imanente ao seu movimento, na medida em


que “seu momento expressivo integral, mimético-
aconceitual, só é objetivado pelo meio da apresentação – da
linguagem4”. Uma das grandes influências nesta posição de
Adorno é a teoria da linguagem de Benjamin, “segundo a
qual a primeira tarefa da linguagem não é a comunicação de
conteúdos, mas a sua própria expressão como uma ‘essência
espiritual’ em que o homem também participa5”. Nas
palavras de Benjamin: “cabe ao filósofo restituir pela
representação o primado do caráter simbólico da palavra, na
qual a ideia chega ao seu autoconhecimento, que é oposto de
toda a comunicação voltada para o exterior6”.
Adorno trabalha a expressão não apenas como
conceito estético, mas como atitude filosófica7 e, opondo-se
a Wittgenstein, afirma ser próprio da filosofia dizer aquilo
que não se deixa dizer. Tal afirmação, segundo Rodrigo
Duarte, é passível de ser entendida como o lema principal da
filosofia de Adorno. Colocar a filosofia nessas trilhas implica
considerar que o pensamento filosófico deve estar disposto
a “experimentar em si a contradição como forma de evitar a
ilusão ideológica de um mundo sem contradições8”. E “a
maneira de fazê-lo é precisamente o que Habermas
considera o pecado capital de Adorno: incorporar a mímesis
dentro do discurso conceitual9”, ou seja, tomando a mímesis
não apenas como seu objeto mas também como parte do

4 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 24.


5 DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 31.
6 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. p. 25.
7 DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 34.
8 DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 34.
9 DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 34.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 155

discurso. Resta ao trabalho do conceito, portanto, apropriar-


se de algo da mímesis – isso que ele mesmo recalca em seu
comportamento – de modo a lograr expressar essa dimensão
que, ainda que inexprimível inteiramente, não se deixa calar.
Embora integrante do rigoroso movimento
conceitual, o momento integral de expressão (mimético-
aconceitual), somente será objetivado através da
apresentação, da mediação linguística, pois, nas palavras de
Adorno, a “filosofia não é nem ciência, nem poesia pensante
[...], mas uma forma tanto mediatizada quanto destacada
daquilo de que é diversa10”, sendo que, ao mesmo tempo,
“seu elemento provisório, porém, não é outra coisa senão a
expressão do inexprimível que ela comporta nela mesma11”.
Reconhecendo este importante impulso filosófico e
opondo-se a Heidegger – com quem o inexprimível se torna
expresso e compacto na palavra “ser” – Adorno defende que
a “expressão imediata do inexprimível é nula12”, pois, “o
elemento provisório do pensamento é elevado ao próprio
inexprimível que o pensamento quer expressar; o não-
objetivo, ao objeto esboçado pela própria essência, e,
justamente com isso, mutilado13”. Dessa forma, “o
pensamento que quer pensar o inexprimível por meio do
abandono do pensamento falsifica-o e transforma-o naquilo
que ele menos gostaria de ser, no absurdo de um objeto
absolutamente abstrato14”.
Importa aqui insistir, então, na expressão como
momento provisório do pensamento. Trata-se de um
momento bastante delicado, pois transita pela linha tênue
entre mera visão de mundo e pura ciência: sendo a liberdade

10 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 99.


11 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 99.
12 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 100.
13 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 100.
14 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 100.
156 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

da filosofia a capacidade de dar voz à sua não-liberdade, o


momento expressivo não poderá se arvorar a ser mais do que
isso sob pena de se degenerar em mera visão de mundo e, ao
mesmo tempo, a filosofia não poderá se abster do momento
expressivo e de sua apresentação para que não reste
assimilada pela ciência. Para a filosofia, “expressão e acuro
lógico não são possibilidades dicotômicas. Eles necessitam
um do outro, nenhum dos dois é sem o outro15”. Assim, “a
expressão é liberada de sua contingência por meio do
pensamento, pelo qual a expressão se empenha exatamente
como o pensamento se empenha por ela16”. Nesse sentido,
de acordo com Marcia Tiburi, a dimensão da expressão e sua
própria possibilidade aponta para a “tentativa da filosofia de
falar sobre o que não se pode falar, o que é proibido à
filosofia que se quer ciência, que se compreende como
método. A expressão parece ser o elemento que, elaborado
na linguagem, remete para o que está fora dela17”, isto é, para
a não-identidade entre coisa e representação.
Isso também nos impele tanto para os limites da
linguagem quanto para a imanência do que não se deixa
expressar. Jeanne-Marie Gagnebin explica que a exposição,
tanto em Benjamin na forma do tratado quanto em Adorno
na forma do ensaio, se trata de uma dupla renúncia: “ao ideal
do caminho reto e direto em proveito dos desvios, da
errância; e renúncia também ao ‘curso ininterrupto da
intenção’, isto é, renúncia à obediência aos mandamentos da
vontade subjetiva do autor18”; tudo isso em proveito “de um
recomeçar e de um retomar fôlego incessantes em redor da
Sache selbst, da coisa mesma (to on ontôs), centro ordenador e

15 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 24.


16 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 24.
17TIBURI, Márcia. Metamorfose do conceito: Ética e Dialética Negativa em
Theodor Adorno. p. 74.
18GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung em Walter
Benjamin ou verdade e beleza. p. 188.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 157

simultaneamente inacessível do pensar e do dizer19”,


concepção que nos leva assumir que “a enunciação filosófica
ordena-se em redor desse centro, presença indizível que
provoca e impulsiona a linguagem, justamente porque
sempre lhe escapa20” – interpretada de maneira profana, essa
figura teológica negativa de uma ausência atuante pode ser
entendida como o “centro indizível de fundamentação da
própria linguagem, uma espécie de imanência radical que se
furta à expressão21”.
Nesse sentido, a linguagem da expressão filosófica
no pensamento de Adorno não é nem intenção subjetiva,
nem um objeto a ser manipulado – trata-se de uma terceira
coisa que, conforme sustenta Susan Buck-Morss, é capaz de
expressar a verdade através de configurações linguísticas
onde, nas trilhas de Benjamin, a linguagem não
simplesmente transporta, mas transforma os objetos em
palavras porque, em si, os objetos são mudos e precisam ser
trazidos ao discurso. Segundo a autora, é em conexão com
esse pensamento benjaminiano que a mímesis aparece nos
escritos de Adorno, de forma a configurar um sujeito do
conhecimento que se deixa ser guiado pelo objeto e, neste
movimento, o objeto é formado para ser transformado em
nova modalidade. Assim é que “truth as mimetic, linguistic
representation meant calling things by their right names22”.
A mímesis ganhou robustez no pensamento de
Adorno como conceito crucial. Mímesis e dialética negativa
se aproximam no ponto em que a noção de mímesis revela-
se como “o retorno ao estágio anterior ao sofrimento através

19GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung em Walter


Benjamin ou verdade e beleza. p. 188.
20GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung em Walter
Benjamin ou verdade e beleza. p. 188.
21GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung em Walter
Benjamin ou verdade e beleza. p. 188.
22 BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. p. 87.
158 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

da reminiscência (Erinnerung)23”, isto é, quando “o


sofrimento pode ser pensado enquanto proveniente da
experiência da impossível identidade com o conteúdo da
memória24”. Neste exato ponto, mímesis e dialética negativa
“existem pelo sofrimento: a tarefa da dialética negativa,
enquanto pensar que se nega à violência da identificação,
seria recuperar a mímesis perdida25”. Atingir este estágio se
torna viável na medida em que “a dialética negativa é um
pensar não violento em relação à natureza, ela se sustenta
pela necessidade de reaproximação daquele outro, que é a
mímesis como natureza, sem subjugá-lo à sua identidade,
movimento este que eliminaria a mímesis26”. Importante
compreender, aqui, que a Teoria estética (escrita por Adorno
ao final de sua vida e publicada após a sua morte mesmo não
tendo sido finalizada pelo autor) é o momento em que a
dialética negativa chega mais próximo ao estágio de
pensamento estamos trabalhando. Nesse cenário, “a arte é o
próprio não-idêntico sobre o qual a teoria – que a Dialética
negativa sem duvida é – não tem acesso. A Teoria estética é o
passo seguinte que apenas aquela [Dialética negativa] não
poderia ter dado, ela é a cristalização da aporia entre a teoria
e a arte27”. No que diz respeito à Teoria estética, Marcia Tiburi

TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W.


23

Adorno. p. 88.
TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W.
24

Adorno. p. 89.
TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W.
25

Adorno. p. 89.
TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W.
26

Adorno. p. 89.
TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W.
27

Adorno. p. 89.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 159

nota que “não se pode decidir qual das duas experiências ela
é mais28”, teoria ou arte.
Decorrente disso é a noção de obra de arte como
detentora do privilégio “de manifestar, de dar a ver numa
configuração sensível e histórica29” do movimento da
verdade, que não repousa em si mesma e na falsa
possibilidade da totalidade: “a arte é o refúgio do
comportamento mimético30”. Trata-se, no entanto, de uma
mímesis redimida porque capaz de fugir da magia e da
regressão, pois “o comportamento estético não é nem
mimese imediata, nem mimese recalcada mas o processo que
ela desencadeia e no qual se mantém modificada31”. Assim,
conforme refere Ricardo Timm de Souza sobre a relação de
Adorno com a estética, “a obra de arte, repositório de
verdade em meio ao turbilhão ideológico que banaliza esta
categoria, contradiz verdadeiramente a lógica da totalização,
porque é expressão da verdade do diferente que não se reduz
ao ‘mesmo’32”. Expressão negativa.

Constelações – espaço do suspenso, da imagem que expõe

Na Dialética Negativa Adorno não tem a intenção,


como já apontamos brevemente acima, de desdobrar a
expressão como conceito estético. Embora pressuposta como
categoria chave da estética, o alvo naquele momento era o
de “incorporá-la [a expressão] ao discurso filosófico tout

TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W.


28

Adorno, 1995. p. 89.


29 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história.
p. 101.
30 ADORNO, Theodor apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre
linguagem, memória e história. p. 101.
31 ADORNO, Theodor apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre
linguagem, memória e história. p. 101.
32SOUZA, Ricardo Timm de. Adorno & Kafka: paradoxos do singular. p. 69.
160 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

court, valendo-se dela para implodir o procedimento


parasitário da filosofia com relação à ciência33”. O que é
capaz deflagrar tal implosão é o “reconhecimento, por parte
da filosofia, da necessidade de que o sofrimento radical e
absurdo, experimentado pelo homem contemporâneo
enquanto vítima de opressão e massacres, se manifeste a
partir do núcleo mesmo do discurso filosófico34”. Assim é
que a assertiva: “a necessidade de dar voz ao sofrimento é a
condição de toda verdade35” supera o acento subjetivista
comum “na medida que impõe como condição para a
expressão sua mediação objetiva, i.e., uma referência, ainda
que essencialmente não literal, ao precário estado de coisas
do mundo presente36”. Aqui tocamos um ponto muito
característico pela sua particularidade, enquanto novidade e
ousadia intelectiva: a consolidação do objeto com
repercussões estéticas pode ser pensado a partir dessa
mediação objetiva, e tal consolidação deve ser captada como
uma forma de rigorosa construção, polo dialético da
expressão. A construção aparece, portanto, como contraparte
da expressão – ela “não é o corretivo ou confirmação
objetivante da expressão, mas deve se erguer, de certo modo,
a partir do impulso mimético sem qualquer planejamento37”.
Desse modo, a teoria da expressão em Adorno – que é
desdobrada de modo mais completo e aprofundado na Teoria
estética – somente pode ser pensada levando em conta “o
equívoco de querer conceber a expressão estética como

33DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 98.
34DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão, p. 98.
35 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 24.
36DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 98.
37 ADORNO, Theodor W. apud DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se
deixa dizer: para uma filosofia da expressão. p. 101.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 161

‘autônoma’ com relação ao momento construtivo38”, já que,


nas palavras do autor, “a expressão absoluta seria coisal, a
coisa mesma39”, e acreditar em tal possibilidade nos
impulsionaria à ilusão de que o mundo poderia ser
representado integralmente, à imagem especular da
totalidade. Isso nos leva à ideia de construção de
constelações como síntese não totalizante, em sentido muito
semelhante ao benjaminiano.
Segundo Vladimir Safatle, o sentido maior da
dialética negativa adorniana “consiste exatamente no
advento de uma síntese não totalizante, síntese formada com
base na idéia de ‘constelação’ (Konstellation), na qual a negação
dos procedimentos de universalização totalizante é
conservada40”. Por meio da apresentação linguística ( a
retórica aqui aparece como forma concreta da expressão41) a
constelação não define os conceitos que agrupa, mas ao
mesmo tempo lhes confere a objetividade que lhes concerne
através do modo como lhes arranja centrados na coisa: “essa
constelação ilumina o que há de específico no objeto e que é
indiferente ou um peso para o procedimento classificatório.
O modelo para isso é o comportamento da linguagem42”.

38DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 101.
39 ADORNO, Theodor W. apud DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se
deixa dizer: para uma filosofia da expressão. p. 101.
40 SAFATLE, Vladimir. A paixão do negativo: Lacan e a dialética. p. 34.
41“A forma concreta da expressão no discurso filosófico encontra-se,
segundo Adorno, na retórica, que – ao contrario do que vimos em Croce
– é entendida não como manifestação de culta frivolidade, mas como
âmbito em que essa se reconhece tributária de uma dimensão estética. O
preconceito contra a retórica poderia, nesse sentido, ser visto como mais
um indício da instrumentalização da linguagem e não como manifestação
de escrúpulos contra abusos que se possa cometer contra ela”. In
DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da
expressão. p. 99.
42 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 141.
162 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Nesse sentido, “na medida em que os conceitos se reúnem


em torno da coisa a ser conhecida, eles determinam
potencialmente seu interior, alcançam por meio do
pensamento aquilo que o pensamento extirpa de si43”.
Com isso “o objeto abre-se para uma insistência
monadológica que é consciência da constelação na qual ele
se encontra: a possibilidade de uma imersão no interior
necessita desse exterior44”, ao passo que a imanência do
singular é história sedimentada, o que engendra a
necessidade de um saber capaz de liberar a história no objeto
– “atualização e concentração de algo já sabido que
transforma o saber. O conhecimento do objeto em sua
constelação é o conhecimento do processo que ele acumula
em si45”. Um pensamento tal que tenha a habilidade de
circunscrever o conceito que ele gostaria de abrir, na
esperança de que ele salte. Sobre a insistência monadológica,
cumpre lembrar o que Benjamin refere na introdução do
Origem do drama trágico alemão no sentido de que: “a ideia é
uma mônada – isso significa, em suma, que cada ideia
contém a imagem do mundo. A tarefa imposta à sua
representação é nada mais nada menos que a do esboço
dessa imagem abreviada do mundo46”, imagem de mundo
que expõe uma imagem da verdade, “assim como num
mosaico em que é preciso prestar atenção a cada peça e a
cada lacuna entre elas para compreender suas ligações47”.
De acordo com Buck-Morss, foi Benjamin quem
introduziu o uso filosófico do termo constelação: “he claimed
it was a nodal point in the development of the human mimetic ability,

43 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 141.


44 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 141.
45 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. p. 142.
46 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. p. 37.
47 TIBURI, Márcia. Uma outra história da razão e outros ensaios. p. 59.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 163

for like language, its principle was ‘non-representational similarity48”.


Adorno, no seu discurso de 1931, também adotou o termo,
referindo que a filosofia tem como tarefa a construção de de
constelações, mas preocupou-se em desembaraçar o termo
de suas conotações astrológicas49. Para Benjamin, que o
objeto histórico seja arrancado do continuum da história é
justamente uma exigência de sua própria estrutura
monadológica – e, ainda, que o objeto perscrutado com o
intuito de exceder o domínio do pensamento, lá onde ele se
imobiliza, em uma constelação saturada de tensões, significa
que este objeto é, ele mesmo, uma imagem dialética passível
de ser decifrada no nível da linguagem, com o içar das
palavras – as quais são as velas do pensamento dialético –,
pois a imagem dialética é justamente a cesura no processo de
movimento e de imobilização do pensamento. No trabalho
das Passagens fica evidente que, para Benjamin, apresentar ou
escrever a história significa citar a história e dar às datas a sua
fisionomia, considerando sobretudo estar implícito no
conceito de citação que o objeto histórico seja arrancado de
seu contexto, de seu texto escrito em tinta invisível; e tais
citações, somente elas, se apresentam de uma maneira legível
para todos [N 3, 1]50.
Em uma carta a Adorno, Benjamin afirma que a
imagem dialética, em seu pensamento, não copia o sonho.
No entanto, ressalva: “[...] mas me parece claro que ela
contém as instâncias, as irrupções da vigília, e que é a partir
desses loci que é criada a sua figura, como a de uma

48 BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. p. 90.


49 BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. p. 90. Importante
ressaltar que Benjamin não compartilhava da mesma repulsa de Adorno
às conotações astrológicas da palavra constelação: Benjamin had originated
the philosophical use of the term, even arguing that astrology itself had been progress
over primitive magic.
50 BENJAMIN, Walter. Passagens. p. 504-505.
164 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

constelação a partir dos pontos luminosos51”; eis o local


desde onde “[...] um arco precisa ser retesado, e uma dialética
forjada: aquela entre imagem e vigília [...]52”. A imagem
dialética como conceito é desenvolvida, portanto, no
desdobramento dessa dialética entre imagem e despertar53.
Ela é, na concepção de Benjamin, aquilo que mostra que a
relação do ocorrido com o agora é dialética e de natureza
imagética:
Não é que o passado lança sua luz sobre o presente
ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas
a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o
agora num lampejo, formando uma constelação. Em
outras palavras: a imagem é a dialética na
imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente
com o passado é puramente temporal, a do ocorrido
com o agora é dialética – não de natureza temporal,
mas imagética. Somente as imagens dialéticas são
autenticamente históricas, isto é, imagens não-
arcaicas. A imagem lida, quer dizer, a imagem no
agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau
a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a
toda leitura [N 3, 1]54”.
O projeto das Passagens, para Buck-Morss, se trata de
uma dialética do olhar, pois, para a construção do trabalho,
Benjamin estava convencido da necessidade de uma lógica
visual e de que, para tanto, os conceitos deveriam ser
construídos em imagens, seguindo os princípios da
montagem. Sua intenção era de que os objetos do século

51ADORNO, T. W. Correspondência, 1928-1940. Theodor Adorno Walter


Benjamin. p. 195.
52ADORNO, T. W. Correspondência, 1928-1940. Theodor Adorno Walter
Benjamin. p. 195.
53SELIGMANN-SILVA, M. A atualidade de Walter Benjamin e Theodor
Adorno. p. 69.
54 BENJAMIN, W. Passagens. p. 505.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 165

XIX fossem visíveis enquanto origem do presente, o que


certamente alcança os nossos dias. O passado é para ser
“segurado com firmeza” na dinâmica da atualização, e não
na culminância histórica do progresso, pois “é o potente
confronto da pré e da pós-história do objeto aquilo que o
torna ‘atual’ no sentido político como ‘presença de espírito’
(Geistesgegenwart), e assim a ur-história não culmina no
progresso, mas na ‘atualização’55”. A imagem dialética é,
portanto, “a apresentação do objeto histórico dentro de um
campo de forças carregado de passado e presente que
produz eletricidade política em um ‘flash luminoso’ de
verdade56”. De acordo com a autora, “a ‘imagem dialética’
tem tantos níveis lógicos como o conceito hegeliano. É uma
maneira de olhar que cristaliza elementos antitéticos através
de um eixo de alienação. A concepção de Benjamin é
essencialmente estática57”. Benjamin situa “visualmente
ideias filosóficas dentro de um campo transitório e
irreconciliado de oposições58”, espaço “que pode ser

55BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das


Passagens. p. 264.
56BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das
Passagens. p. 265.
57BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das
Passagens. p. 254.
58 BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das
Passagens. p. 254. Na sequencia desta citação, Buck-Morss desenvolve a
noção que Benjamin esboçou nas notas mais antigas do Passagen-Werk,
no sentido de que os termos continuidade e descontinuidade constituem
“[...] eixos cruzados, em conexão com a ‘ótica’ dialética da modernidade
simultaneamente velha e nova: devem ser entendidas como as
‘coordenadas fundamentais’ do mundo moderno”. Ela refere ser possível
afirmar que há um padrão de coordenadas no pensamento no trabalho
das Passagens, uma estrutura invisível de pesquisa histórica, capaz de
tornar coerente certos elementos conceituais aparentemente
desconectados. A autora sustenta que o eixo das coordenadas pode ser
designado pelos polos hegelianos “consciência” e “realidade”, de modo
a construir um diagrama que também serviu de mote para a estruturação
166 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

representado como coordenadas de termos contraditórios,


cuja ‘síntese’ não é um movimento em direção à resolução,
mas o ponto em que seus eixos se intersectam59”.
Seligmann-Silva afirma que a dialética em Benjamin
“não possui nada em comum com a dialética hegeliana; ela
não tem o todo como ponto de partida, e ela recusa-se a dar
o passo na direção da positividade de uma ‘superação’,
‘Aufhebung’, permanecendo no espaço do suspenso, da
imagem que expõe60”. Nesse sentido, com a sua postura
perante a historiografia, Benjamin “vai contra e visa
desmontar o que ele denominou, entre outras fórmulas,
como sendo ‘a falsa aparência da totalidade’. Ao invés do
princípio totalitário hegeliano ‘o todo é o real’, Benjamin
tenta salvar o particular da ‘onipotência’ do Todo61”. O
particular é justamente aquilo que não aparece nos “grandes
feitos” do período especificamente focado por Benjamin,
mas sim aquilo que restou como “trapos e lixos” dessa
época. Para ele, estes dejetos, que aparecem nas listas dos
temas que o trabalho das Passagens elenca – como é o caso
das próprias passagens parisienses, da moda, do reclame, do
intérieur, da construção em ferro, das ruas de Paris, da
prostituta, do jogo etc. – constituem fenômenos que
deveriam ser organizados e utilizados em um quadro vivo,
em uma montagem, pois expressam a história de forma mais
intensa e complexa do que a historiografia, que tem o hábito
de dominar e organizar harmoniosamente tudo aquilo que
toca. “Ao invés da narração dos ‘grandes fatos e feitos
históricos/heróicos’, Benjamin elege a exposição dos

da escrita de seu livro.


59BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das
Passagens. p. 254.
60 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. p. 149.
61 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. p. 227.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 167

fenômenos extremos62 da época visada. Num gesto


semelhante ele elege uma estética do choque e não uma
estética do belo63”. A imagem dialética como formulação
conceitual nasce em íntima relação com a valorização da
visualidade, do imagético, na exposição da história. A partir
da teoria das imagens dialéticas Benjamin “não apenas
fundou uma concepção forte de exposição (Darstellung)
histórica – em oposição ao registro da re-presentação – na qual
interagem palavras e imagens64”, mas “também apagou outra
fronteira que tradicionalmente conduzia a escrita discursiva
do historiador: a fronteira entre o agente da história e o
responsável pelo seu relato. Ou seja, agora já não há mais
espaço para a figura [...] do historiador como um narrador
onisciente e imparcial65”.
Como bem coloca Adorno, é o fragmentário que se
converte em princípio no pensamento de Benjamin, e não o
êxito de uma coerência sem falhas. A sua postura perante as
suas intenções filosóficas foi de se manter em um local de
“extraterritorialidade” em relação à filosofia tradicional, o
que quer dizer que os elementos herdados da sua formação
filosófica entraram em sua filosofia labiríntica apenas de
modo indireto. “O incomensurável se baseia em uma
desmedida entrega ao objeto. À medida que o pensamento
se aproxima demais do objeto, este se torna estranho, como
qualquer elemento do cotidiano posto sob um
microscópio66”. É possível dizer que Adorno também
partilhou desta desmedida entrega ao objeto, haja vista que a

62 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. p. 227. Sobre este


aspecto, Seligmann-Silva destaca que Benjamin, já na introdução de seu
livro sobre a origem do drama barroco alemão, havia estabelecido uma
teoria da exposição filosófica a partir dos “extremos”.
63 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. p. 227.
64 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. p. 227.
65 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. p. 228.
66 ADORNO, T. W. Caracterização de Walter Benjamin. p. 235.
168 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

noção de primazia do objeto é por ele defendida como


primordial para o conhecimento dialético e para a crítica da
totalidade, com a ressalva de que o sujeito não se reduz ao
objeto neste processo. Embora o conceito mesmo de
imagem dialética tenha sido tema de muita discussão entre
Adorno e Benjamin nas cartas por eles trocadas (sobretudo
por Adorno ter problematizado bastante este conceito), de
acordo com Buck-Morss a noção de imagem passou a ser
central no processo de construção das constelações
conceituais de Adorno67. Os fenômenos passaram a ser

67 É possível afirmarmos aqui que o cineasta e pensador Alexander


Kluge, amigo e interlocutor de Adorno, foi um grande herdeiro deste
modo performático de construir constelações e de levar o caráter visual
deste empreendimento à última potência. Exemplo cabal dessa herança
é sua obra monumental Notícias da Antiguidade Ideológica (2008), que realiza
de forma constelacional aquilo que poderia ter sido a filmagem do
Capital, almejada por Sergei Eisenstein. A partir das notas de Eisenstein
a respeito de como seria esse filme, Kluge faz um filme de 492 minutos,
dividido em três etapas. A obra, dentre as muitas reflexões que cumpre
brilhantemente fazer, problematiza o que significa pensar sobre o Capital
concebido por Marx em seus escritos. No presente, ele atualiza através
dos artifícios da montagem os fragmentos dos absolutamente arcaicos
elementos que constituem o conceito contemporâneo do capital. Kluge
nos apresenta a expressão do Capital e de sua consolidação através de
uma linguagem extremamente intrigante, curiosamente descontínua,
anacrônica, e aberta a interpretações. É interessante conferir as próprias
notas de Eisenstein em
http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/notas_para_um_filme
_de_o_capital.pdf, e a entrevista de Kluge sobre seu filme em
http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/kluge_encarte.pdf.
Além disso, alguns estudos já elaborados a respeito deste filme também
merecem atenção: LINCK, Gabriela Wondracek. Adorno, Eisenstein e
tradução em Notícias da Antiguidade Ideológica (2008). 2014. Dissertação
(Mestrado em Meios e Processos Audiovisuais) - Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-30012015-
101157/>. Acesso em 22 jul. 2015; e LOUREIRO, Robson. Considerações
sobre o Cinema na Teoria Crítica. Adorno e Kluge:
um diálogo possível, disponível em
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 169

interpretados como representações visuais e concretas das


categorias – enquanto o conceito “desbloqueava o enigma”,
o objeto providenciava uma imagem do conceito68.
Distendendo tal dimensão, Buck-Morss explica que
as constelações em Adorno obedeciam alguns princípios.
Primeiramente, a própria estrutura de seus ensaios
edificaram-se como antíteses da estrutura da mercadoria.
Sabemos que a forma das mercadorias, em Marx, era
governada pelos princípios da abstração, da identidade e da
reificação. Em contraste, a forma das constelações em
Adorno eram construídas em consonância com os princípios
da diferenciação, da não-identidade, e da transformação
ativa. Rapidamente, podemos mencionar que a diferenciação
diz respeito ao procedimento composicional que articula
nuances, as quais localizam com precisão as diferenças
concretas e qualitativas entre fenômenos aparentemente
similares; a não-identidade é o reverso do princípio da
diferenciação, e diz respeito à justaposição de elementos
aparentemente não relacionados e não-idênticos, de modo a
revelar a configuração onde tais elementos congelam ou
convergem (a noção de justaposição de extremos já havia
sido mencionada por Benjamin na introdução do Origem do
drama trágico alemão). Justaposição de elementos significa
poder descobrir não somente a semelhança entre os opostos,
mas também os conectores – a lógica interna – de elementos
aparentemente não relacionáveis concernentes ao
fenômeno; por último, o princípio da transformação que,
assim como o anterior, ilumina a verdade como
contraditória: transformar as declarações ideológicas em
declarações críticas, transpondo a sequência de seus
elementos-palavras, o que remete ao princípio clássico da

<http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp39art09.pdf>.
Acesso em 20 jul. 2015.
68 BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. p. 98.
170 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

lógica dialética hegeliana no sentido de que o que parece ser


uma coisa é essencialmente o seu oposto69.
Além dos princípios que orientam a construção das
constelações em Adorno, há dois momentos deste processo
dialético. Um deles é o conceitual-analítico – quando ocorre
o desmonte do fenômeno e o isolamento de seus elementos
de modo a media-los por conceitos críticos – e o outro
momento é o representacional, quando os elementos são
reunidos de tal modo que a realidade social se torna visível
dentro deles70. No estágio analítico, os elementos são vistos
como cifras da verdade sócio-histórica, códigos de
linguagem, e assim são dados à interpretação, como texto
legível – neste ponto elementos visíveis da realidade são
traduzidos em termos de um processo social não visível. Em
contraste, no pólo representacional, ocorre o reverso: os
elementos configuram uma imagem – eles congelam uma
imagem visível dos termos conceituais, trazem o movimento
dialético a um momento de imobilidade onde tal imagem
mostra, ilumina, as contradições ao invés de subsumi-las.
Adorno quis, através desta sofisticada articulação, que o
mundo visível fosse interpretado analiticamente através de
conceitos de Marx e Freud, dentre outros, e que tais
conceitos se tornassem visíveis no mundo. “In this sense,
constellations were not unlike hieroglyphs, uniting the perceptual and
conceptual; the phenomena became rebuses, riddles whose qualitative
elements, juxtaposed, were the concepts translated into picture form71”.
Assim como Adorno referiu que o filosofar não
tradicional de Benjamin compreendia a sua vontade de
“compreender o essencial ali onde ele não se deixa destilar
numa operação automática, nem se deixa vislumbrar de um
modo dúbio: adivinhá-lo metodicamente a partir da
configuração de elementos alheios à significação”, e que, ali,

69 BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. p. 98-101.


70 BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. p. 102.
71 BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. p. 102.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 171

“o rebus [a visada da coisa] torna-se o modelo de sua


filosofia72”, do mesmo modo pode ser compreendida a sua
filosofia.

Referências

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Benjamin. In: ____ Prismas. Crítica cultural e
sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos
Brito de Almeida. São Paulo: Editora Ática, 1998. p.
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Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
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João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2011.

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UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2007.

BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e


o projeto das Passagens. Trad. Ana Luiza de Andrade.
Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapecó/SC:
Editora Universitária Argos, 2002.

72 ADORNO, T. W. Caracterização de Walter Benjamin. p. 224.


172 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics. Theodor


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New York: The Free Press, 1979.

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filosofia da expressão. Chapecó: Argos, 2008.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung


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Kriterion, Belo Horizonte , v. 46, n. 112, p. 183-
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<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
&pid=S0100-
512X2005000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória


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Dissertação (Mestrado em Meios e Processos
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Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
Disponível em:
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TIBURI, Márcia. Uma outra história da razão e outros ensaios. São


Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

Fílmica

NOTÍCIAS da antiguidade ideológica. Direção: Alexander


Kluge. Elenco: Hans Magnus Enzensberger, Tom
Tykwer, Joseph Vogl, Werner Schroeter, Galina
Antoschewskaja, Claudia Buckler, Oskana Bulgakowa,
Jan Czajkowski, Dietmar Dath, Boris Groys, Durs
Grünbein, Ute Hannig, Johannes Harneit, Oskar
Negt, Lucy Redler, Sophie Rois, Helge Schneider,
174 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Peter Sloterdijk, Rainer Stollmann. Alemanha: Versatil


Home Video, 2008. (492 min).
Herdeiros de Theodor W.
Adorno
Marco Antonio de Abreu Scapini1
“A morte nos campos de concentração
tem um novo horror: desde Auschwitz,
temer a morte significa temer algo pior
que a morte”.2
Theodor W. Adorno

O presente texto pretende apresentar um breve


ensaio, em que se aproximam alguns elementos dos
pensamentos de Theodor W. Adorno e Jacques Derrida,
tendo como referência central a Dialética Negativa do filósofo
alemão.
A potência e a complexidade do pensamento de
Adorno o fizeram o maior pensador no panorama filosófico
do séc. XX3. Além de ter sido um crítico radical dos sistemas
de pensamento hegemônicos, foi também um crítico radical
da cultura. Para Marcia Tiburi, “a filosofia de Adorno põe na
crítica a tarefa da filosofia”4. Com seu estilo próprio,
interdisciplinar no melhor sentido deste termo, rompeu
obstáculos epistemológicos, sendo importante não apenas

1 Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio


Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS).
Especialista em Ciências Penais (PUCRS). Graduado em Ciências
Jurídicas e Sociais (PUCRS). Bolsista CNPQ.
2ADORNO, THEODOR W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 24.
3ALMEIDA, Jorge et. al. Introdução à Coleção. In: ADORNO, Theodor
W. Correspondência, 1928-1940 – Adorno/Benjamin. Trad. . José
Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Unesp. 2012.
4TIBURI, Márcia. Metamorfoses do conceito: Ética e Dialética Negativa em
Theodor Adorno. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005, p. 47.
176 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

na área da filosofia, mas também em áreas como a sociologia,


a psicologia e a psicanálise, a comunicação, o direito, a arte e
a estética, etc.
Desde uma perspectiva crítica, podemos dizer que
Adorno é um ícone inquestionável, mesmo com a aporia de
ter sido ele mesmo um forte crítico dos ícones da indústria
cultural. Todavia, não se trata de banalizar a sua obra e o seu
legado. Ao contrário, pretendemos tão somente ressaltar a
importância, a riqueza e a atualidade de sua obra. Segundo
Ricardo Timm de Souza “Adorno é um autor fundamental
de nossa época e para nossa época. Não se entende o mundo
em que vivemos sem passar por ele, como igualmente, pouco
se entende a filosofia contemporânea sem sua decisiva
contribuição”5. Assim, é importante observar que, embora
sejamos, em diversos sentidos herdeiros de Adorno,
vivemos ainda a sua época, sobretudo, na esteira de Walter
Benjamin6, no que diz respeito aos assombros de que os
episódios vividos no séc. XX ainda sejam possíveis.
A tensão, portanto, vivida por Adorno, também está
presente na atualidade. Aliás, o próprio conceito de atualidade
foi levado muito a sério por Adorno, assim como por
Benjamin, como ressalta Seligmann-Silva: “para eles, a
atualidade tinha a ver com a capacidade de uma ideia ir ao
encontro de seu presente de modo a possibilitar uma
mudança”7. Percebe-se, desde já, a presença de um
deslocamento, ou, de uma disjunção temporal tanto no
pensamento como na escrita de Adorno, o que implica na
impossibilidade de qualquer clausura ou fechamento. Desta

5SOUZA, Ricardo Timm. Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc.


XX.. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 94.
6BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. Brasiliense: 1994, p. 226.
7SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de
Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasilsiera, 2009, p. 11.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 177

maneira, Diz Ricardo Timm de Souza “na escrita de Adorno,


como aliás em todo grande autor, a linguagem que usa para
se expressar faz parte de sua própria expressão”8. Trata-se de
um estilo de linguagem em que os conceitos estão sempre em
disjunção com o real, o que impede qualquer possibilidade
de totalização. Assim, atualidade só pode significar interesse
pelo novo.
Nesse sentido, também Derrida compartilha um
certo mal-estar com a questão da atualidade, se assim
podemos dizer. Segundo Derrida :
A ideia de contemporaneidade, de uma relação
reconciliada com o si próprio na actualidade de um
presente, seria uma ideia clássica: pertence a tudo
que não é contemporâneo, de Platão a Hegel, e é
justamente o que é posto em causa pelos
contemporâneos9.
Atualidade, portanto, terá sentido desde essa
disjunção entre si próprio e um presente. Não se trata apenas
de refutar uma ideia clássica ou à possibilidade de
reconciliação de si mesmo, mas de ir mais além do atual, ou
seja, trata-se de uma abertura a possibilidade da mudança.
Assim, citando Hamlet (Time is out of joint), Derrida afirma,
“o tempo out of joint está fora de si, fora de seus gonzos; deixa
de se recolher no seu lugar, no seu presente”10. O tempo,
portanto, fora de si, implica no próprio descompasso do seu
presente, ou seja, como se algo no tempo estivesse
desagregado. Isto porque, out of joint, também possui um
sentido moral desde uma outra tradução, o que significa
ainda um tempo pervertido e injusto. Nesse sentido, nesta

8SOUZA, Ricardo Timm. Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc.


XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenszweig. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004, p. 94.
9DERRIDA, Jacques. Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo.
Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006, p. 20.
10 Idem. op, cit. pp. 20-21.
178 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

desagregação há uma aporia do que devia ser, mas ainda não


é e assim não vai. Para Derrida, “é a partir deste ‘assim não
vai’ que surge, não o desejo de acoplamento, mas também
de justiça”11. Há uma espécie de fantasmagoria, pois a justiça
é sempre fantasmal. E, portanto, não se presentifica,
resistindo à atualidade e ao próprio conceito. Segundo
Derrida “há um ‘agora’ do inactual, que é uma singularidade,
a desta disjunção do presente”12 . Nesse sentido, esta
disjunção do presente é marcada justamente pela
singularidade do tempo. Está em questão aqui a
possibilidade de uma pertença a um tempo. Não por outra
razão, Derrida afirma que “o ‘nosso’ tempo talvez seja o
tempo em que deixou de ser possível dizer com tanta
facilidade ‘o nosso tempo’”13. Em termos adornianos,
poderíamos sugerir a singularidade do tempo, que significa
uma certa disjunção abissal do presente, como uma
expressão da negatividade. O que em termos derridianos pode
ser lido com expressão da différance.
Assim, embora não apareça explicitamente como
categoria fundamental na obra de Adorno, desde esta
disjunção é possível perceber como a diferença ocupa este
lugar fundamental em Adorno. Talvez seja a força motriz de
seu pensamento. O que significa nas palavras de Ricardo
Timm de Souza “a consciência da diferença como constituinte
mais real da realidade”14. Desde esta consciência, da diferença
como radicalmente outro e núcleo fundamental da realidade,
opera-se uma espécie de implosão de qualquer sistema
metafísico que pretende se representar pela possibilidade da
identidade plena. Nesse sentido, o próprio Adorno afirma

11 Idem.Op. cit. p. 21.


12 Idem. Op. cit. p. 28.
13 Idem. Op. cit. p.22.
SOUZA, Ricardo Timm. Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc.
14

XX.: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenszweig. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 2004, p. 96.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 179

que “a expressão ‘dialética negativa’ subverte a tradição”15. E


subverte de modo a não submeter a diferença a qualquer
operação lógica ou mantê-la sob um princípio de identidade,
em que já se predetermina a aparência e sua verdade. O não-
idêntico com seu elemento diferidor impõe uma resistência
e uma limitação à filosofia, o que impossibilita qualquer
síntese ou adequatio. Para Adorno “apenas uma filosofia que
se liberta de tal ingenuidade merece continuar sendo
pensada”16. Do contrário, pensar significaria estar sempre no
domínio de um sistema previamente estabelecido, ou seja,
significaria reforçar a tautologia da totalidade. Nesse sentido,
afirma Ricardo Timm de Souza “para Adorno, a única
‘dialética’ que se poderia considerar como propriamente tal
seria aquela aberta, irredutível a uma ‘resolução’ superior,
negativa em relação a positividade da totalidade”17. E
justamente, o que mantém esta abertura é a irredutibilidade
da diferença em relação a imposição de um processo sob a
jurisdição da identidade.
Nesse sentido, Marcio Seligmann-Silva afirma que
“só existe o local da diferença – que sempre difere e afasta a
possibilidade de se captar a identidade ‘primeira’”18. Desde
esta perspectiva, talvez possamos entender como Adorno
constrói a sua crítica tanto ao conceito de fundamento como
ao primado do pensamento sobre do conteúdo, anunciado
já no prefácio da Dialética Negativa. Assim, Adorno justifica
o procedimento, mas não o fundamenta. Trata-se, pela
diferença, deste local diferidor que configura a diferença, da
possibilidade de libertar de uma tal natureza afirmativa

15ADORNO, THEODOR W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio


Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 07.
16 Idem. Op. cit. p. 12.
SOUZA Ricardo Timm de. Adorno & Kafka: paradoxos do singular. Passo
17

Fundo: Ifibe, 2010, p. 65.


18SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória,
arte, literatura e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005, pp. 13-14.
180 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

anunciada já em Platão. Do contrário, Adorno estaria


opondo à dialética uma outra totalidade. Para Ricardo Timm
de Souza:
A obra de Adorno é uma tentativa de caracterizar à
totalidade seus próprios limites, não ao lhe
contrapor uma outra totalidade, mas ao corroer
filosoficamente suas raízes, sua crença e seu poder
imanente, que são igualmente as raízes das
convicções intelectuais herdeiras de uma
modernidade que costumou ignorar seus próprios
limites19.
O trabalho crítico de Adorno, portanto, atravessa os
próprios limites da totalidade, expondo suas raízes, sua
crença e seu poder imanente. Sutilmente, faz aparecer desde
dentro do sistema as suas falsas verdades. Na jurisdição da
identidade, para Adorno:
O que é diferenciado aparece como divergente,
dissonante, negativo, até o momento em que a
consciência, segundo a sua própria formação, se vê
impelida a impor unidade: até o momento em que
ela passa a avaliar o que não lhe é idêntico a partir de
sua pretensão de totalidade. Em função da essência
imanente da consciência, a própria contraditoriedade
tem o caráter de lei inevitável e fatal. A identidade e
a contradição do pensamento são fundidas uma à
outra. A totalidade da contradição não é outra coisa
senão a não-verdade da identificação total, tal como
ela se manifesta nessa identificação. Contradição é
não-identidade sob o encanto da lei que também
afeta o não-idêntico20.

SOUZA, Ricardo Timm. Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc.


19

XX.: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenszweig. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 2004, p. 97.
20ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 13 .
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 181

O diferenciado, portanto, está desde o início


(se assim podemos dizer) em processo de síntese desde a
perspectiva da totalidade. A sua divergência e a sua
dissonância, que são expressões da negatividade, são
abruptamente apreendidas no instante em que a consciência
se vê impelida a domesticar a diferença, ou seja, quando
impõe a unidade. É importante ressaltar para o detalhe
apontado por Adorno, quando faz referência ao momento
em que a consciência, segundo a sua própria formação, se vê
impelida à imposição da identidade. Nesse sentido, Adorno
faz um alerta sobre o funcionamento da própria consciência.
Isto porque, para Adorno “a aparência de identidade é
intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura.
Pensar, nesse sentido, significa identificar”21. A questão que
se coloca como problema dialético para Adorno é a
transfiguração da contradição dos conceitos com a norma
tradicional da adequatio que o idealismo absoluto de Hegel
precisou necessariamente impor. Assim sendo, não há que
se satisfazer com a aparência como se não fosse apenas o
que é: meramente aparência.
A possibilidade aparente da fusão entre a identidade
e a contradição somente poderá acontecer por uma
imposição da consciência à unificação, que por sua essência
imanente faz a própria contraditoriedade assumir o caráter
de lei inevitável e fatal. A contrariedade aqui, diz respeito ao
que não se encaixa no princípio do terceiro excluído, ou seja,
de acordo com a lógica da totalidade e, portanto, é o
qualitativamente diverso. Para Adorno, está presente sempre
uma relação com o não-conceitual pela via do conceito.
Assim, Adorno afirma o seguinte:
Em verdade, todos os conceitos, mesmo os
filosóficos, apontam para um elemento não-
conceitual porque são, por sua parte, momentos da
realidade que impele à sua formação –

21 Idem. Op. cit., pp. 12-13.


182 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
primariamente com o propósito de dominação da
natureza. A aparência que a mediação conceitual
assume para si mesma, desde o interior, o primado
de sua esfera, da esfera sem a qual nada seria
concebido, não pode ser confundida com o que essa
mediação é em si. Uma tal aparência do que é em si
lhe é conferida pelo movimento que a exime da
realidade à qual por sua vez está atrelada22.
A formulação conceitual, portanto, aponta para um
elemento não-conceitual, justamente porque são momentos
da realidade que impele à sua formação. Nota-se o cuidado
em não avançar para além dos limites da própria formulação
conceitual, uma espécie de condição do conceito, em que
Adorno deixa explícita a necessidade de não se confundir o
que significa a mediação conceitual, ou o que essa mediação
assume para si mesma desde o primado da sua esfera sem a
qual nada poderia ser concebido. Esta aparência do em si,
apenas é conferida pelo movimento que a exime da
realidade. Todavia, a realidade está atrelada a tal aparência,
uma espécie de contaminação em sentido positivo. Assim, se
para o conhecimento tradicional a definição conceitual
carece de momentos não-conceituais, para Adorno,
justamente, “alterar essa direção da conceptualidade , voltá-
la para o não-idêntico, é a charneira da dialética negativa”23.
Alterar a direção da conceptualdiade é o grande desafio da
dialética negativa. Trata-se não apenas de inverter o caminho
imposto pela tradição, mas de estabelecer uma outra relação
com esta via voltada para o não-idêntico. Ao invés de se
direcionar à identidade, abre-se a via para o que ainda resta
deste processo de identificação. Segundo Marcia Tiburi:
Pensar o perdido para a dialética implica pensar seu
estatuto lógico com relação à hegeliana; pensá-la,
portanto, como uma dialética invertida, nascida na

22 Idem. Op. cit. p. 18.


23 Idem. Op. cit. p. 19.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 183
contracorrente da hegeliana, da sua leitura avessa,
das marcas por ela deixadas. Ela é também a forma
de expressão da filosofia instaurada a partir da
memória do sofrimento do que foi perdido e não
pode ser reintegrado. Se ela não pode recuperar o
que se perdeu, pois é impossível, deve, ao menos
tentar trazer para si a memória do sofrimento. Tal
perda dirá respeito ao esquecimento instaurado
dentro da história da filosofia, possibilitado pela
própria instrumentalização da razão filosófica, que
estaria voltada para o progresso cego de si mesma, a
autoconservação.24
Significa, portanto, pensar o perdido, mas também,
em certo sentido, pensar o que resiste à significação e à
identidade, justamente para não se deixar instrumentalizar.
O que significa dizer que o conteúdo da dialética negativa é
também o sofrimento do que foi perdido e que não poderá
ser reintegrado. Nas palavras de Adorno, “a necessidade de
dar voz ao sofrimento é condição de toda a verdade”25.
Trata-se, pois, da tarefa impossível da filosofia, da qual não
pode sequer esquecer.
Para Adorno, uma tal impossibilidade não é uma
limitação para a filosofia, mas justamente, por ser o que
impossibilita a sua clausura como sistema, possibilita à
filosofia manter-se viva. Além disso, é preciso perceber nesta
impossibilidade a dimensão utópica do trabalho crítico de
Adorno, que não dispensa o conceito nesta tarefa. Para
Adorno,

24TIBURI, Márcia. Metamorfoses do conceito: Ética e Dialética Negativa em


Theodor Adorno. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005, pp. 27-28.
25ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p . 24.
184 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
a utopia do conhecimento seria abrir o não-
conceitual com conceitos, sem equipará-los a esses
conceitos26.
Assim, o vital para a filosofia de Adorno se dá pelo
trabalho do conceito, mais precisamente no limite do
conceito, na tentativa de abrir o não-conceitual pelo
conceito, sem deixar que estes se equiparem aqueles.
Desde as dimensões articuladas até o momento,
sobretudo o gesto crítico de Adorno de expor à totalidade
seus próprios limites, percebemos uma aproximação
marcante com a desconstrução derridiana. Assim como
Adorno, Derrida também não se deixar seduzir pelo que
falávamos sobre a aparência conceitual, embora o trabalho
da desconstrução se dê, justamente, no texto. Para Derrida
“não há desconstrução que não parta da tentativa de
respeitar o texto ou o discurso, e portanto não se
trata em absoluto de destruir o texto, as crenças ou
o pensamento do outro, nem de o diminuir, bem
pelo contrário”27.
Nesse sentido, a desconstrução, o trabalho da
desconstrução, ao levar ao limite a rede textual ou discursiva,
o faz num gesto permanente de respeito pelo pensamento
do outro. Em nenhuma hipótese poderá significar algum
desejo de destruição do texto.
Trata-se de, no limite, impedir uma espécie de síntese
do texto. Em certo sentido, de permitir possibilidade do que
advém por uma certa economia dos conceitos. Desta
maneira, segundo Derrida:
A desconstrução passa por ser hiperconceitual, e de
certo o é, fazendo um grande consumo dos
conceitos que produz à medida que os herda – mas

26 Idem. Op. cit. 17


27DERRIDA, Jacques. Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo.
Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006, p. 84.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 185
apenas até o ponto em que uma certa escritura
pensante excede a apreensão ou o domínio
conceitual. Ela tenta pensar o limite do conceito,
chega à resistir à experiência desse excesso, deixa-se
amorosamente exceder. É como um êxtase do
conceito: goza-se dele transbordantemente28.
A desconstrução, portanto, por ser hiperconceitual
leva ao limite os conceitos que herda, bem como os que
produz. É, justamente, a tentativa de se manter no limite, o
que significa também o desejo de exceder este limite, que faz
da filosofia algo ainda possível. A experiência de um excesso
é o que faz do texto algo por vir, o que possibilitará um
amanhã. Além disso, o fato de a desconstrução deixar-se
amorosamente exceder implica já uma passividade na
experiência deste excesso. Significa uma certa fraqueza em
relação ao que vem como excesso, ou, deste excesso. A
fraqueza, aqui, tem o sentido de uma hospitalidade
incondicional pelo que vem. Está, portanto, para além de
qualquer possibilidade de previsão deste acontecimento29, de

28 DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que amanhã:


diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2004, p 14.
29 Para Derrida, “Um acontecimento é o que vem; a vinda do outro como
acontecimento só é um acontecimento digno desse nome, isto é, um
acontecimento diruptivo, inaugural, singular, na medida em que não o
vemos vir. Um acontecimento que antecipamos, que vemos vir, que pré-
vemos, não é um acontecimento: em todo caso é um acontecimento cuja
acontecimentalidade é neutralizada, precisamente, amortecida, detida
pela antecipação. (...) A experiência do acontecimento é uma experiência
passiva, rumo a qual, e eu diria contra a qual, acontece o que não se vê
vir, e que é de saída totalmente imprevisível, não pode ser predito; é
próprio do conceito de acontecimento que ele venha sobre nós de
maneira absolutamente surpreendente, inesperadamente. Se os olhos
são o que são para nós, tal como se dispõem em nossos rostos, digo nossos
rostos, os rostos humanos (pois nem todos os olhos estão e veem à frente,
há animais cujos olhos lhe permitem ver de lado e atrás, mas nossos
olhos veem à frente e têm o que chamamos de horizonte), o
acontecimento sempre corre o risco de ser em certa medida neutralizado:
vemos vir as coisas desde o fundo do horizonte. Assim que há ou na
186 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

modo que, para ser digno deste nome, o acontecimento


deverá ser sempre absolutamente surpreendente. O
acontecimento, portanto, está para além de qualquer
regulação ou horizonte, excedendo-se a qualquer
calculabilidade. Trata-se, nesse sentido, da experiência
passiva para o que vem, ou seja, o outro. O incalculável é a
expressão deste excesso que se dá pelo acontecimento. Aqui,
estamos às voltas com o imperativo categórico de Derrida,
quando afirma o seguinte: “se há um imperativo categórico,
é fazermos todo o possível para que o porvir continue
aberto”30. Assim, tendo este imperativo em vista,
desconstrução deixa-se amorosamente transbordar, o que
possibilita a operação de seus deslocamentos e, portanto, a
sua abertura. A experiência deste excesso, então, impede que

medida em que há um horizonte sobre cujo fundo vemos vir alguma


coisa, nada vem, nada vem que mereça o nome de acontecimento; o que
vem na horizontal, isto é, o que nos faz face e vem em nossa direção
avançando ali onde o vemos vir, isso não acontece. Isso não acontece no
sentido forte e estrito do advento do que vem, seja alguma coisa ou
alguém, o que ou quem, o que ou quem em ‘isto vem’. Não devemos vê-
lo vir, e, portanto, o acontecimento não tem horizontes; só há
acontecimento ali onde não há horizonte. O acontecimento, se houver
um e for puro e digno desse nome, não vem diante de nós, ele vem
verticalmente: pode vir de cima, do lado, por trás, por baixo, ali onde os
olhos não têm alcance, justamente, onde eles não têm alcance
antecipatório ou preensivo ou apreensivo. O fato de um acontecimento
digno desse nome venha do outro, de trás ou de cima, pode abrir os
espaços da teologia (o Altíssimo, a Revelação que nos vem do alto), mas
também do inconsciente (isto vem de trás, de baixo, ou simplesmente do
outro). O Outro é alguém que me surpreende por trás, por baixo ou pelo
lado, mas assim que o vejo vir, a surpresa é amortecida. A menos que,
no que vem à minha frente, olhando-me, haja todos os recursos do muito
alto, do muito baixo, do debaixo etc”.Cf. DERRIDA, Jacques. Pensar em
não ver: escritos sobre as artes do visível (1974-2004). Trad. Marcelo Jacques de
Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012, pp.. 70-71.
30DERRIDA, Jacques. Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo.
Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006, p. 138.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 187

a desconstrução se instrumentalize em algum tipo de método


ou sistema. Para Derrida:
A desconstrução não é um método para se encontrar
o que resiste ao sistema, mas consiste em tomar nota
– na leitura e na interpretação dos textos – do facto
de que aquilo que tornou possível o sistema em
certos filósofos é uma certa disfunção ou
desajustamento, uma certa incapacidade de fechar o
sistema31.
Assim, embora a desconstrução não seja
propriamente antissistêmica, ela consiste, desde a
interpretação dos textos, em se fazer notar a impossibilidade
do sistema. Isto porque, aquilo que permite a formalização
do sistema não é, por assim dizer, sistematizável. A
disfunção, ou, o desajustamento apontado por Derrida,
ocorre no exato instante em que a consciência, conforme a
sua própria formação, segundo referimos acima com
Adorno, se vê impelida a impor unidade. Esta imposição de
unidade da consciência se dá violentamente, reduzindo à
diferença para a jurisdição da identidade. Nesse sentido,
aquilo que excede no e ao texto é, também, o que resiste e
impossibilita o sistema e, portanto, a identidade plena. Desta
maneira, se num primeiro momento para Adorno, pensar é
identificar, após este instante, “pensar é, já, em si, antes de
todo e qualquer conteúdo particular, negar, é resistir ao que
lhe é imposto”32. Negar, portanto, significa resistir a qualquer
imposição de síntese, o que significa também resistir à
incorporação do elemento não-dialetizável, ou seja, o não-
idêntico, que aqui também assume o nome da diferença, à
dialética.
A dialética, portanto, expressa a sua própria aporia,
na medida em que aquilo que a torna possível é, justamente,

31 Idem. Op. cit. p. 18.


32ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 25.
188 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

o que impede a sua realização. Este, talvez, seja o elemento


chave da negatividade em Adorno que, assim como Derrida,
faz todo o possível que para que o porvir continue aberto.
Este, talvez, seja o ponto central de um possível encontro
entre os autores. Nesse sentido, o próprio Derrida aponta
para elemento não-dialético que não é mera oposição ao
dialético, quando afirma o seguinte:
O não-dialético não se opõe ao dialético, e é uma
figura que se reproduz continuamente. Sempre
tentei mostrar o elemento que, numa série ou num
grupo, não se deixava integrar no conjunto,
evidenciando que há uma diferença não-oposicional
que transcende a dialéctica; há um suplemento ou
um pharmakon que não se deixa dialectizar; poderia
dar a este respeito muitos exemplos. Aquilo que, não
sendo dialéctico, torna impossível a dialéctica, é
justamente o que resulta necessariamente retomado
pela dialéctica que acaba por relançar. Devemos
então aceitar o facto de que a dialéctica consiste
exactamente em dialectizar o não-dialectizável.
Temos então um conceito de dialéctica que já não é
convencional – em cujos termos a dialéctica é
síntese, conciliação, reconciliação, totalização,
identificação consigo –, mas é uma dialéctica
negativa, ou infinita, que define o movimento de
sintetização sem síntese33.
Poderíamos dizer, portanto, que assim como
Adorno, Derrida também tem uma repugnância pelo total,
conforme a expressão de Ricardo Timm de Souza34. O
elemento que não se opõe à dialética corresponde a uma
diferença não-oposicional e que, portanto, não faz o jogo da

DERRIDA, Jacques. o gosto do segredo. In: O gosto do segredo. Trad.


33

Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século, 2006 , p. 49 50.


SOUZA, Ricardo Timm. Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc.
34

XX.: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenszweig. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 2004, p. 97.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 189

dialética tradicional. Trata-se de um suplemento que, ao não


se dialetizar, torna impossível a dialética. Todavia, é
justamente este elemento que é permanentemente relançado
pela dialética, fazendo com que esta seja uma dialética
negativa ou infinita, cujo movimento é sempre aberto e,
portanto, sem síntese. É a ambivalência deste suplemento
que permite o movimento. Nesse sentido, diz Derrida:
Se o phármakon é “ambivalente”, é, pois, por
constituir o meio no qual se opõem os opostos, o
movimento e o jogo que os relaciona mutuamente,
os reverte e os faz passar um no outro (alma/corpo,
bem/mal, dentro/fora, memória/esquecimento,
fala/escritura, etc.). É a partir desse jogo ou desse
movimento que os opostos ou os diferentes são
detidos por Platão. O phármakon é o movimento, o
lugar e o jogo (a produção de) a diferença. Ele é a
diferência (Différance. MAAS) da diferença. Ele
mantém em reserva, na sua sombra e vigília
indecisas, os diferentes e os diferindos que a
discriminação virá aí recortar. As contradições e os
pares de opostos levantam-se sobre o fundo dessa
reserva diacrítica e diferante. Já diferante, essa
reserva, por “preceder” a oposição dos efeitos
diferentes , por preceder as diferenças como efeitos,
não tem pois a simplicidade pontual de uma
coincidentia oppositorum. Desse fundo, a dialética extrai
seus filosofemas. O phármakon, sem nada ser por si
mesmo, os excede sempre como seu fundo sem
fundo. Ele se mantém sempre em reserva, ainda que
não tenha profundidade fundamental nem última
localidade35.
Assim, o phármakon é, justamente, o elemento não-
dialetizável que possibilita o movimento e o jogo dialético.
É o lugar, por assim dizer, do movimento dialético. É a

35DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São


Paulo: Iluminuras, 2005, pp. 90-91.
190 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

différance irredutível que possibilita o jogo oposicional da


dialética, mantendo-se permanentemente em reserva. O
impulso dialético se dá desde este lugar que, sem nada ser
por si mesmo, excede sempre os filosofemas da dialética, não
tendo uma última localidade. O que significa que tal local é
inapreensível e, portanto, não-identificável. Não há, pois, um
fundamento. Do contrário, teríamos tão somente a repetição
e o jogo dialético da totalidade.
A possibilidade do porvir passa, portanto, pela
necessidade de se manter a abertura, cujo trabalho crítico,
desde o limite conceitual é sem fim. Nesse sentido, segundo
Derrida “ainda há uma tarefa de desconstrução sem fim: é
preciso haurir na memória da herança os utensílios
conceituais que permitem contestar os limites impostos até
aqui por essa herança36”. Em termos adornianos,
poderíamos dizer que, este trabalho sem fim, que também se
expressa pela negatividade, é o que mantém viva a filosofia,
impedindo a sua instrumentalização, na medida em que
torna impossível o instante da sua realização, conforme a
frase inaugural da Dialética Negativa.
Em 22 de setembro de 2001, quando recebeu o
prêmio Theodor W. Adorno na cidade de Frankfurt, Jacques
Derrida confessa a sua herança e uma certa dívida com a
Escola de Frankfurt e com Adorno37. Além disso, referiu o
impacto de Adorno no seu próprio trabalho, quando
afirmou o seguinte: “Adorno que me afecta tanto más
porque, como yo mismo hago cada vez mas a menudo,
demasiado a menudo quizá, Adorno habla literalemente de
la posibilidad de lo imposible, de la paradoxa de posibilidad
de lo imposible”38. Nesse sentido, é importante ressaltar que

36 DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que amanhã:


diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2004, p. 31.
37Cf. DERRIDA, Jacques. Acabados:Discurso de Fráncfort. In: Acabados
seguido de Kant, el judío, el alemán. Trad. Patricio Peñalver. 2004.
38 Idem. Op, cit. p. 16.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 191

para Derrida, a própria desconstrução é marcada por esta


possibilidade do impossível, implicando numa interrupção
no regime do possível39. Deste modo, ambos os autores –
Adorno e Derrida – compartilham um certo desejo de ir mais
além do possível, escapando da jurisdição da identidade, ou
mesmo, da calculabilidade.
Pelos rastros que se traçaram e se seguiram até aqui
nos espectros de Adorno, e por tantas vias abertas que o
filósofo alemão nos deixou, podemos dizer, assim como
Derrida o fez, somos herdeiros de Theodor W. Adorno.

Referências bibliográficas

ADORNO, THEODOR W. Dialética negativa. Trad. Marco


Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009;
ALMEIDA, Jorge et. al. Introdução à Coleção. In: ADORNO,
Theodor W. Correspondência, 1928-1940 –
Adorno/Benjamin. Trad. . José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Unesp. 2012.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In:
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Brasiliense:
1994
DERRIDA, Jacques. Acabados:Discurso de Fráncfort. In:
Acabados seguido de Kant, el judío, el alemán. Trad.
Patricio Peñalver. 2004;
_______; A farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São
Paulo: Iluminuras, 2005;

39Cf.
DERRIDA, Jacques. Salvo o nome. Trad. Nícia Adan Bonatti.
Campinas: Papirus, 1995, pp. 19-20.
192 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

_______; Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1974-


2004). Trad. Marcelo Jacques de Moraes.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012;
_______; Salvo o nome. Trad. Nícia Adan Bonatti. Campinas:
Papirus, 1995;
_______; Tenho o gosto do segredo. In: O gosto do segredo.
Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de século,
2006;
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que
amanhã: diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. 2004;
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter
Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro:
Civilização Brasilsiera, 2009;
_______; O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura
e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005;
SOUZA, Ricardo Timm. Adorno & Kafka: paradoxos do
singular. Passo Fundo: Ifibe, 2010;
_______; Razões plurais: itinerários da racionalidade no séc. XX..
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004;
TIBURI, Márcia. Metamorfoses do conceito: Ética e Dialética
Negativa em Theodor Adorno. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2005.
Del mito de Sísifo.
Trascendentalidad y necesidad
del sujeto en la Dialéctica
Negativa de Adorno.
Oscar Pérez Portales.1

Introducción

La filosofía tiene ya varios siglos con el sujeto como


centro de su reflexión. Este ha sido fuente inagotable de
desespero, angustia por alcanzar una comprensión de ese
“objeto”. Como Sísifo condenado a volver sobre sus huellas,
en el esfuerzo remonta cada vez la tradición. La imagen más
exacta de este trayecto sería quizás, la de Alicia, minúscula,
en: Del otro lado del espejo2, saltando sobre cabezas sin cuerpos
al fondo de un Castillo.
Este re andar por un campo espinado ha sido el de
una contradicción: pensar al sujeto lo ha ocultado bajo
refinados sistemas de ideas. Si estas no fueran parte de un
conflicto real de ese sujeto con la existencia que enfrenta,
como Sísifo, nada podrían valer todas las palabras de la
filosofía. Pero es ahí la paradoja, Sísifo no baja de la
montaña, resiste a la imposibilidad. La imposibilidad del
ascenso es el reconocimiento de su desaparición, no física,
pero si como algo que tiene intención, como Sujeto.
Podrían ser muchas las objeciones a estas ideas sobre
la reflexión filosófica del sujeto. Ante las dudas podrían
mostrarse siglos de pensar, en cómo expresar de forma pura

1 Mestrando bolsista CNPq.


2CARROL, Lewis: A través del espejo y lo que Alicia encontró al otro lado.
Cordoba: Ediciones del Sur, 2004.
194 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

al sujeto sin ismos que lo nieguen. Los intentos de liberar su


capacidad racional y luego de emanciparlo de su propia razón
omnipotente; de liberar su práctica, luego liberarlo de las
reificaciones de estas; de satisfacer sus necesidades y
voluntad, ora dar cuenta del retorno de la realidad de
esclavitud necesitada. En fin, la filosofía del sujeto es la de
una paradoja infinita, que ha llegado a deslegitimar su propia
existencia.
Mientras esa entelequia infinita se desenvuelve en
nubes filosóficas hay conflictos que parecen no dar cuenta
de aquella zozobra. Estos son los de sujetos reales que
luchan en la posibilidad de existir en términos de vida con
cuerpo. De experiencia finita que tiene que afirmarse. Una
afirmación negada, recortada, parametrizada cada vez más.
Ese es el origen de un grito, de una lucha. La lucha por
satisfacer un resquemor continuo. Las alternativas han sido
varias. En la actualidad estas pretendieron dar cuenta de ese
sujeto real que necesita. Satisfacer su necesidad. Salvarlo de
la noche neoliberal que negó toda posibilidad. La
incertidumbre es el resultado, la de no ver que las alternativas
hayan sido eso: alternativas. Satisfechas las necesidades, de
un sujeto en el centro de un proceso redistributivo y
afirmativo, vuelve la incertidumbre de Sísifo del regresar
sobre la cuesta.
Mas la filosofía si niega la posibilidad del conocer y
queda solo en la incertidumbre, no es. Deberíamos quizás
negar algunos supuestos para rearmar el trayecto. ¿Cuál ha
sido el sujeto que han asumido estas alternativas? Su esfuerzo
humanista de sanar heridas, satisfacer demandas: ¿ha sido el
de una necesidad real satisfecha? Se observa entonces que
estas asumieron un sujeto político múltiple, con marcada
pretensión política. Pero más allá de los discursos electorales,
sus acciones no han ido a los espacios donde los sujetos que
aglutinó reproducen su vida. Redistribuyeron la riqueza,
satisficieron necesidades específicas. Sin embargo, no
cambiaron las prácticas desde las que estos sujetos
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 195

necesitados las producen. Entonces: ¿no habremos asistido


a la atención de sombras, el empoderamiento de un sujeto
particular desde su universalización ideológica? La
satisfacción de una particularidad que esconde las
necesidades reales en una vida virtualizada, lo que genera es
un mundo de sombras.
Nos salta entonces la duda si esta tensión no será
también la que genera las angustias de la filosofía. Que el
hablar del sujeto como centro termina más fácil en su olvido.
Que centrada en sus necesidades llega más pronto a su
fetichización. Si su discurso del sujeto no está tensionado de
esa furia de siglos por ser una particularidad que resiente de
una universalidad que la niega, si la necesidad no es una
universalidad que cierra la negatividad creadora de la
singularidad. En esa inquietud somos acompañados por una
tradición negativamente positiva. Varios pensadores han
dado cuenta de esa relación. Significativo es en ello el
pensamiento de W Adorno en torno a la ideología del sujeto,
del Humanismo en términos mayúsculo. En este decurso
negativo parte de una crítica a las reificaciones del sujeto
concreto, particular, invisibilizado bajo una Universalidad
trascendente abstracta. Teniendo sostén práctico en la
falseada vida de necesidades que otro sujeto impone. Por ello
desde las motivaciones prácticas aducidas, intentaremos
realizar una valoración de los elementos de este pensamiento
en la conformación de una crítica al humanismo
trascedental. Así como hacer un análisis de la importancia de
estos, en la argumentación de un humanismo desde la
particularidad concreta. Aportando a lo que quizá podría la
filosofía, solucionando su propia vida entre sombras,
alumbrar la contradicción de la realidad, donde las
alternativas parecen haber quedado atrapadas en las de
sujetos específicos.
196 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

De la ideología del sujeto: la crítica de las ontologías


dominantes.

En términos de filosofía cualquier cítrica es siempre


un dialogo tenso con ídolos. Adorno en Dialéctica Negativa3
asume la cítrica a toda una tradición de siglos desde la
contradicción que enuncia su realidad. Identifica que la
ontología como construcción de una teoría del sujeto no
expresa la complejidad de las contradicciones de una
sociedad zozobrante por su escisión. Angustia de la vida
como posibilidad corporizada en sujetos concretos, que
tienen que asumir el riesgo de ser en una sociedad orientada
a la frustración.
La crítica a la reificación general de la sociedad tiene
un reflejo ideológico en la teoría del sujeto. En esta ve como
la sociedad desde el inicio de la modernidad precisa de un
pensamiento que genere una estructura de armonización
abstracta y universal. Construcción que de sentido a las
particularidades concretas múltiples4. La ontología contiene
una paradoja. Es el buscar siempre de la filosofía que asume
al sujeto como su centro. Mas es desde este situar central del
sujeto de la modernidad acá, constatación de un universal
vacío que niega la posibilidad real concreta de lo que relata.
La agudeza del pensamiento de Adorno da cuenta de que la
pretensión filosófica de una ontología que no sea mediada
por sentidos ideológicos o epistémicos, ha contenido el

3ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


Madrid: Editorial Taurus, 1984.
4 “la ratio burguesa como principio de convertibilidad que es
homogeniza con los sistemas todo aquello que quería hacer
conmesurable idéntico consigo misma y su éxito en esta tarea fue cada
vez mayor aunque potencialmente devastador fuera quedo cada vez
menos. Lo que la teoría se probó como huero quedo confirmado
irónicamente por la práctica”. ADORNO, Theodor W. Dialéctica
Negativa. Trad. José Maria Ripalda Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 31.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 197

refinado conservadurismo de reificar universal y


abstractamente al sujeto.
Citando a Heidegger, en un dialogo descarnado con
un ídolo de parte de la contemporaneidad plantea: “...la
ontología parece tanto más luminosa cuanto menos se deja vincular a
contenidos concretos que permitan su intervención a la impertinente
razón discursiva”.5 Es esto el inicio de una crítica radical a un
modelo ontológico que deriva una universalidad abstracta de
la particularidad. La filosofía pretende lo absoluto. La verdad
está en la construcción de un modelo ontológico teológico.
La trascendentalidad elevada a justificación eterna de todo lo
que ocurre. Mas esa trascendentalidad que parece separarse
de toda mediación esta mediada por la pretensión de
establecerse desde la finitud en algo infinito.
La razón omnipesante que puede establecer todo el
curso del sujeto. Mas termina prescindiendo de aquel. Es
solo ente determinado por la trascendentalidad. La armonía
del ser es suficiente explicación de las mediaciones que
constituyen al ente. Es más, las sustituye. Las derivaciones,
acciones concretas e históricas aparecen solo como molestas,
recalcitrantes, intenciones de caotizar una armonía por
superior, inobjetable.
Lo absoluto desde lo ontico rechaza cualquier
pregunta problematizadora. Su dinámica reflexiva es
andamiaje claro y nítido a cualquier estructura interpretativa
del ente. Donde el pensamiento es siempre principio de
justificación, causalidad e identidad. El objeto es subsidiario
del razonar. Incluso ese objeto particular, también pensante:
el sujeto. Lo que no responde a la lógica del discurso dictado
de la filosofía no es verdad. No existe como objetividad. La
logicidad de la pregunta, la subordinación al método, es el
único resquicio de verdad, por ende del derecho de existir.
Si la objetividad y la verdad se encuentran en esta relación

5ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


Madrid: Editorial Taurus, 1984,p. 65.
198 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

abstracta absoluta, todos los sentidos dimanan de ella. La


elevación de lo ontico, lejos de liberar al ente de las
mediaciones que lo negaron al demostrar su carácter
trascendente, lo ha vaciado de sentido. Solo ese particular
absoluto y trascendente tiene sentido, lo concreto particular
no existe más que como efectivación de esa universalidad
armónica.
Adorno plantea como este modelo ontológico
subordina los argumentos a la demostración de un
pensamiento ya dado. El recorrido de un curso ya dictado.
Desde la lógica reflexiva de Hegel contesta la lógica formal
en la que el pensar se constata a si mismo eternamente, se
valida a si mismo sin referir nunca ningún elemento exterior
de sentido6. De ahí plantea que la ontología trascendental
sitúa en el propio ser, la condición de su evaluación. No
puede ser evaluado desde otra instancia. Es en sí mismo
lógico, puro. Es el intento de desde la universalidad de un
sujeto abstracto ideologizado solo reconocer el pensamiento
formal, normalmente establecido. La negación de lo
concreto es la negación de la negatividad en su trascendencia
positiva, en su trascendencia superadora y edificante
alternativa, contingente. En la ontología de Heidegger se
vislumbrar la misma predicación universalízante de los
modelos formales anti subjetivos. Este niega la compleja
relación contradictoria entre particular y universal que
antepone Adorno.
“La teoría del ser oculta y explota la dialéctica que hace que
se confunda pura particularización y pura universalidad ambas
igualmente indeterminadas…”7 Si la pretensión de formalizar la

6No sería arbitrario plantear la presencia como herencia, en esa crítica


de Adorno, de la crítica a la lógica formal y la complejización de las
determinaciones entre particulares y universales al interior del juicio.
HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Lógica. Trad. Augusta y Rodolfo
Mondolfo. Pr: Rodolfo Mondolfo. Madrid: Ediciones Solar, 1982.
7ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.
Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 80.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 199

ontología es probar la objetividad absoluta, más allá de las


mediaciones de los resultados de esta, es este pretender estar
más allá de su realidad. La demostración misma de que no
puede alcanzar lo absoluto8. Si solo es re andar un cause ya
dado no puede ser base de lo nuevo. “Un agradable horror ante
el próximo fin del mundo se une en ello con el sentimiento tranquilizador
de operar sobre suelo firme e incluso si cabe garantizado
filológicamente”9. Si esa formalización fuera solamente una
intención académica de veracidad, de beneplácito científico,
no tendría mayor trascendencia. Mas este sistema
epistemicocéntrico guarda la imposibilidad de afirmación de
la concretud particular. El sujeto esta preso en una estructura
de evolución de su esencia. El sujeto que vuelve sobre sí
mismo. Dentro de los patrones formalizantes que pretenden
la totalidad como cascaron vacío que termina siendo forma
de los totalitarismos. Aspirar a esta es un elemento esencial
de todo esfuerzo filosófico.
Demostrar la totalidad es un camino indispensable a
la construcción de una particularidad liberada de una
universalidad abstracta. Sin embargo el sistema
Heideggeriano erige una totalidad que termina encerrando la
particualiridad. Esa totalidad existencial es base de una
comprensión social que genera por si sola su propio
desarrollo. Totalidad donde las partes se suponen e inieren,
por ende donde cada uno existe en virtud del otro.
Armonizado por esa pertenencia totalizadora. Todo existe
en virtud de esta relación que supera la particularidad.
Particularidad sin sentido por si sola. Cierto que el sistema
de Heidegger sitúa la visión de una trascendentalidad que

8 “Al renunciar al andamiaje tradicional de la demostración, al constatar


el saber ya sabido, algo se abre paso en la filosofía: que ella no .es ningún
modo el Absoluto”. ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad.
José María Ripalda. Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 69.
9ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.
Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 67.
200 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

libera al sujeto de la materialidad social, en el sentido de


entender la diferencia entre los resultados sociales de su
acción y la existencia del sujeto, idea valiosa para decir ante
las ideologías, que allí donde fracasan sigue habiendo sujeto.
Empero, separa a este de la causalidad en nombre de un ser
trascendental que está a pesar de su materialización
ontológica. Si bien es una idea importante ante las tesis de la
historia cerrada por la desaparición de un sujeto ideológico;
para plantear a aquellas la especificidad limitada de las
construcciones de sujetos de ideologías específicas ante su
olvidadiza generalización, en busca de negar al propio sujeto.
Ha de verse el carácter reaccionario de su tesis al infligir a
este siempre la marca de la imposibilidad en tanto su
negatividad está reducida a ser imagen de un ser más allá de
su propia acción. Crítica formidable contra las concretudes
alienantes funcionales, mas ella misma alienante pues:
“Prepara a escuchar la aseveración de que a pesar de todo el ser
equiparado tacitamente con aquella sustancialidad es indestructible por
el sistema funcional”10. Si es positivo como alteridad ante la
desaparición ideológica de los sujetos históricos es macabro
cuando termina sentenciando: la realidad puede existir
aunque los sistemas acaben con el sujeto.
Todo conocimiento ontológico intenta responder a
la necesidad de una causalidad que va más allá del
metodológico presentar de la realidad que podría llamarse
conocimiento científico. La ontología indica siempre una
tensión que va más allá del conocimiento en cuanto método,
en cuanto a la pregunta del saber frente a la realidad. Remite
a la negatividad de una objetividad que es construida por el
sujeto. Si bien la filosofía tiene en ella una tarea también tiene
una alteridad fundante que siempre la empele a ir hacia
adelante, a negarse. La racionalidad científica ha conllevado
a la pérdida de esta como negatividad. Adorno plantea como

ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


10

Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 69.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 201

esta termina siendo presa de la repuesta científica en tanto


comprensión de una realidad dada verdadera desde la ciencia
como epifenómenos que puede deducirse la capacidad
negativa del sujeto.
En ello la filosofía de Heidegger ha contribuido con
la construcción de un sistema categorial que deja la filosofía
y su reflexión el espacio inmaculado del ser. Esta filosofía
contiene una preservación de la intención de entender la
concreción en una distinción positiva del ente y el ser. Mas
esta intención es solo como vía para la demostración y
explicación del ser. La teoría de Heidegger perpetra un
sistema en el que parece se libera la particularidad de la
determinación predicativa, mas solo para decir que ante el
caos de aquel a la filosofía solo le resta la universalidad
armónica del ser.
Adorno recuerda la aserción de Heidegger: “La
tiniebla del mundo no alcanza jamás la luz del Ser”11. Afirma como
esta desmaterialización universalizante es resultado de que
en la racionalidad, los conceptos se han desubstancializado.
Los conceptos refieren cada vez más a relaciones universales
derivadas de particularidades específicas elevadas a tal. Si la
particularidad de una relación específica: la de los
concurrentes igualitarios al mercado es elevada, como ha
sido, a universalidad, sustituye la realidad, es consagración de
la armonía. Es un virtual armónico que justifica la
contradicción de la realidad. Posee todos los sentidos, los de
ella y su contrario. Lo caótico lo es por no subordinarse, por
no comprender, su lógica armónica.
La vida pierde valor si no se inscribe en las dinámicas
de generación armónica de esta universalidad fetichizada que
ha sustituido a la propia realidad. La crisis de substancia del
sujeto no es vista como resultado de la virtualización de su
existencia por un sistema relacional reificador. Resuelta aún

ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


11

Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 69.


202 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

más dramática si el que está en crisis, como hoy, es el refugio:


el ser. Plantearse esta angustia podría ser base devolver la
transcendentalidad superior a esa realidad fáctica.
Preguntarse si lo más importante como trascedentalidad es
la vida de Sísifo. Mas no, la filosofía se conforma con la
tranquilidad justificativa del ser. En ello Adorno ve el hecho
de que el sujeto tiene que ser entendido desde una ontología
que reconozca su particularidad. Que este está velado de bajo
de una fuerte reificación de la objetividad. El sujeto se
convierte de manos de los sistemas contemporáneos en un
metarrelato universal que dice hablar de lo que hace
desaparecer. Ironiza luego, demostrando la ilógica de la
formalización del ser: “En la tautología en que desemboca este ser
se ha esfumado el sujeto: Y bien, el Ser, ¿Qué es ser? Él es el mismo”12.
Los límites de esa definición entre ente y ser
devienen de la zozobra de un finito que quiere definir la
infinitud. La filosofía, en sus ansias de determinar la
objetividad dialéctica del sujeto, que existe más allá de
cualquier entelequia filosófica como negatividad, con
pretensión de infinitud termina por declarar su cierre.
Cortapisas que garanticen la existencia del discurso es la
solución de lo que llaman discurso trascendente. Mas la
pretensión de verdad que pudiera ser compromiso con el
sujeto y su realidad termina siendo garantía de su
fornecimiento exclusivo de la filosofía. Solo puede
encontrase una solución a esto en una ontología concreta.
Que asuma su compromiso con sujetos específicos en un
tiempo histórico. Así la filosofía no será metafísica, ahistoria,
que termine negando su propio objeto general: el sujeto. Si
esta busca la verdad como vinculación con el sujeto que la
crea, es asumiendo su falibilidad histórica, su carácter
transicional, no como cualidad de sí misma, sino de la

ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


12

Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 74.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 203

realidad que relata: “...para que la filosofía sea más que un puro
mecanismo tiene que exponer el fracaso total”13.
No es esto un nuevo escepticismo agnóstico, sino
una epistemología trascedente que asume su carácter
histórico. Es indispensable la pretensión sistémica de verdad,
modelos explicativos y cosmovisivos sin los cuales la
filosofía solo quedaría como subsidiaria de las ciencias
particulares. Sin embargo su carácter histórico encausaría esa
pretensión de totalidad y sistema hacia interpretaciones que
intenten no terminar en apriorismos ideológicos o
epistémicos que nieguen la posibilidad de conocer la
negatividad inherente a la existencia humana. Allí donde la
filosofía ha pretendido la infinitud habla más un sujeto
singular queriendo perpetuar su existencia, que el sujeto
universal que la ontología pretende develar. Adorno es
contundente en su interpretación: “Lo que aquí se revela es
menos una meditación mística, que la miseria del pensamiento: aspira
a su alteridad y no se puede permitir nada sin la angustia de perder en
el intento lo que afirma”14.
La ontología pierde su reflexión negativa. Con ella
abandona cualquier papel trascendente en una realidad que
deslegitima. La teoría del ser tiene el pretendido objetivo de
negar toda concreción. Con ella niega al sujeto. Adorno se
sitúa en este punto para vislumbrar en la ideología del sujeto
su paradojal desaparición: “…de la exigencia de desembrujar lo
hecho por manos de hombres en el concepto. En vez de reconocer en las
situaciones humanas, las confunde con el mundus intilligibilis”15.
Al igual que la acción racionalidad de Weber parece
que vuelve a entender lo concreto, lo particular, lo singular,

ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


13

Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 74.


ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. Alfredo Brotons.
14

Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 82.


ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. Alfredo Brotons.
15

Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 88.


204 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

mas es solo un momento de la construcción de una


universalidad particular abstracta. Adorno advierte que la
ontología fundamental pretende resolver la contradicción
entre el pensamiento y la existencia, restablecer el orden. El
refugio de la universalización es lo subjetivado de él sale la
respuesta. La intersubjetividad es el escenario de una
contradicción. Allí se encuentra la alteridad el otro en la
incompatibilidad del uno y el otro está el sufrimiento. Ese
relacionarse es imposible normalizarlo, negar su perfil
contradictorio. Mas esa subjetividad no es la de una
particularidad asumida, particular redimida, sino la de una
universalización de un proyecto del ser. La trascendentalidad
referida de la libertad es la realización efectiva de la ontología
del ser. El ser que precisa desaparecer sujetos para realizarse
y en su realización dotarlos de objetividad16.
La base de la racionalidad instrumental se encuentra
en esta necesidad de orden. Es esta la que genera la
construcción de un mundo racional cerrado. Donde las
explicaciones causales se encuentran en lógicas epistémicas,
matemáticas, más allá de la acción de sus sujetos. En tanto
estas son una alteridad negativa es dejar a la dialéctica sin
contradicción. Es esta la razón aparente de la contradicción
entre sistemas filosóficos y objetividad. Adorno sitúa en esta
contradicción el hecho de que haya una sucesión de ordenes
filosóficos, la ratio niega la realidad caótica por ende la
objetividad le impone el constante buscar de articulaciones
justificativas del orden.

16“Esa ratio tiembla ante lo que perdura amenazadoramente por debajo de su ámbito
de dominio y crece proporcionalmente con su mismo poder. Este miedo marcó en sus
comienzos la forma de conducta que en conjunto es constitutiva para el pensamiento
burgués neutralizar a toda prisa cualquier paso que conduzca que en conjunto es
constitutiva para el pensamiento burgués neutralizar a toda prisa cualquier paso que
conduzca a la emancipación reafirmando al necesidad del orden” . ADORNO,
Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda. Madrid:
Editorial Taurus, 1984, p. 29.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 205

Hay que añadir que no solo es en esta ratio que este


constante pensar se impone. Si una sociedad que intente la
“reconciliación” inicia la solución de la contradicción sufrida
en la que se encuentra la objetividad, solo podrá alcanzar esta
en una articulación que permita desde el pensamiento a la
praxis una articulación abierta de ser y sujeto. Que permita
la existencia de la negatividad propia del pensamiento. Sino
será más fácil que sea ideología de un grupo burocrático
dominante que pensamiento de la solución final de las
contradicciones. La negatividad es indispensable a una
construcción alternativa donde el sujeto ya no sea cooptado
por el sistema, por el ser. Si la dialéctica es siempre no un
episteme, sino ontología de lo contradictorio. La realidad
esta así constituida, las filosofías racionales logocentricas
solo han intentado negar esta contradicción desde el interés
de uno de sus sujetos derivando entonces en ideología.
La filosofía tiene que pagar un pecado original que
deja posibilidad al pensar positivo, apartado de mediaciones.
El concepto identifica, cierra las determinaciones negativas
para calificar: “Es índice de lo que hay de falso en la identidad en la
adecuación de lo concebido con el concepto”17. Si bien en él hay
identidad, hay también cierre de la esencia. La filosofía lejos
de contemplarse en conceptos debe tratar la temporalidad de
estos para superarlos y comprender así modelos de análisis
que permitan la interpretación de la heterogeneidad de la
realidad.
Mas lo heterogéneo no abarca lo contradictorio. Si
bien la lógica hegeliana asume lo heterogéneo como
identidad mellada por lo que le es distinto, y desde ahí lo
segrega de la lógica, ello no debe llevar a vaciar de
contradicción la dialéctica. La dialéctica es expresión de lo
heterogéneo en su contracción, pero siempre la búsqueda de
esa contradicción de la que está cargada la realidad, la

ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


17

Madrid: Editorial Taurus, 1984, Pág. 13.


206 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

totalidad que debe enunciar. Si el hiperlogiscismo de Hegel,


al negar el carácter reductible a la lógica de lo contradictorio
esta errado, erramos también al pensar en una
heterogeneidad no contradictoria, como carga las tintas
Adorno al criticar a Hegel. La autodeterminación del
movimiento de Hegel hiperlógico, no puede llevar a plantear
la carencia de la contradicción como casualidad. Esta
contradicción no es cualidad lógica sino ontológica. Deviene
de la misma escisión de lo real que ha conllevado a la
separación entre la palabra y la cosa desde la modernidad.
En su crítica a la visión determinista conceptual del
pensamiento dialectico Adorno asoma una crítica demás
abusiva de la contradicción como base de la dialéctica
hegeliana. El reconocimiento de la contradicción es la
asunción filosófica de la negatividad de la realidad. Si una
filosofía no reconoce la contradicción como grado ultimo de
contrarios, no antagónicos en si termina explicando la
realidad como un ente ahí. La esencia de filosofías que
pretendieron alcanzar conocimientos a priori de cualquier
realidad, bajo criterios de verdad, de lógica epistémico
céntrica, está en la no asunción de la contradicción. Esta
como elemento no del pensamiento, sino de la realidad es
precisamente tensión a toda filosofía que pretenda, como
critica Adorno en este texto, un parámetro lógico de verdad,
que en su arrogancia epistémica olvide su carácter histórico
transitorio. Cualquier dialéctica debe partir de ella. Que
filosofías específicas no hayan vislumbrado el carácter no
contradictorio de parte de las relaciones de lo real, es muestra
de la limitada visión histórica de estas, que terminaron
elevando un sistema de contradicciones como único modelo
de lo real. Mas la solución no puede ser la renuncia a la
comprensión de la contradicción de la realidad. Sino la
filosofía como critica el propio Adorno camina hacia la
matematizacion lógica de la realidad y el sujeto.
Adorno nos pone ante otra cara realidad la expresión
de una totalidad debe explicar la subjetividad como esfera
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 207

que se objetiva en las contradicciones de la objetividad. Así


debe reconocer la esencia frente a la existencia. La crisis de
la filosofía sistemática se debe a que sus desarrollos fueron
cerrados desde su logicismo antihumano. Este derivo hacia
dogmatizaciones que enrumbaron hacia el fracaso. Mas a
este reduccionismo, que conllevó a la negación de la realidad,
desde estructuras metafísicas con su propia lógica
independiente del mundo que expresaban, la filosofía debe
anteponer sistemas críticos. Sino la filosofía hace: un
dominio “cuasiburocratico de disponer sobre el ente” ente
conceptualizado, matematizado. Ello debe orientarnos a la
cuestión del interés al que se responde, mas la lucha de clase
como la expreso el marxismo cayó en desgracia de
descreimiento cuando erigió la práctica como elemento de
validación, unido a la hiperlogicidad interna del sistema de
contradicciones discriminantes que esta asumió. Llevó a su
crisis cuando la práctica solo hiso imponer la existencia
determinada a la esencia, cerró el cauce crítico para un nuevo
desarrollo teórico.
Esclarece Adorno con la ratio burguesa que domina
tras el anciem régimen, corta el impulso negador del
pensamiento pues advierte las esencia subversivas de esta.
Así pasa también con el filosofar marxista en el dominio del
socialismo real, este solo surge como ideología que sostiene
la emergencia del poder pero desde allí es cosificado en un
instrumental conceptual que niega lo no conceptuado, en
una existencia que niega la esencia irredenta para limitar las
potencialidades emancipadoras que alterarían el curso social
indispensable a la reproducción del poder de la burocracia.
Este sufrió igual separación formal de su contenido,
cosificación categorial que negó la totalidad y se destinó a la
exposición fría y detallada del hecho.18 A pesar de su positiva

18
“La ratio que con tal de imponerse como sistema a que se refería cayó en una
contradicción irremediable con la objetividad a la que violentaba a pesar de darse aires
208 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

e irrestricta forma de explicar, la realidad está negada en ese


propio carácter positivo. Filosofía devenida ideología.
Adorno critica que la asunción filosófica de sistemas
lógicos cerrados dados en el apriorismo epistémico terminan
por negar la posibilidad de la negatividad19. La negatividad
del sujeto es su capacidad de liberación y emancipación. Las
sociedades industriales y postindustriales desarrolladas, han
construido sistemas de negación de la heterogeneidad que
contemplan la enajenación de la capacidad e negatividad
social. Si el sistema capitalista lo ha articulado desde una
racionalidad instrumental auto legitimada, las sociedades del
socialismo real no fueron alternativas al reproducir este
sistema en condiciones de legitimidad y reproductividad
sociales diferentes. En estas además desde una ideología que
decía ser dialéctica. Por eso ante su reificación armonizante,
cabe la sentencia adorniana:
La dialéctica es esfuerzo al servicio de la
reconciliación a la solución de la contradicción que deviene
de la lucha entre objeto y sujeto20. Mas en una realidad donde
el sujeto ha sido convertido en objeto de otro sujeto. En la
crítica a Bergson y Husserl enfatiza que el valor de la
racionalidad está en la comprensión de la cualidad

de comprenderla”. ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José


María Ripalda. Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 13.
19 “Por el contario el telos de la filosofía es lo abierto y descubierto, tan anti sistémico
que como su libertad de emprender inerme la explicación de los fenómenos. Lo que
tiene que guardar de sistemática es el sistematismo con que se le enfrenta lo heterogéneo.
En este sentido se mueve el mundo burocratizado”. ADORNO, Theodor W.
Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda. Madrid: Editorial Taurus,
1984, p. 28.
20 “Dialéctica es el desgarrón del sujeto y el objeto que se ha abierto paso hasta la
conciencia por eso no la puede eludir el sujeto y surca todo lo que este piensa incluso en
el exterior a él. Pero el fin de la dialéctica seria la reconciliación. Esta emanciparía lo
que no es idéntico lo rescataría de la coacción espiritualizada, señalaría por primera
vez una pluralidad de lo distinto sobre al que la dialéctica ya no tiene poder alguno”.
ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.
Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 23.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 209

multilateral potencial tensionante de la heterogeneidad, de la


contradicción de la realidad21. El conocimiento es una utopía
nunca una concreción. Es la utopía de poder plantear la
contradicción a través del concepto, a la vez que se reconoce
que este es incapaz de aquello 22. Cuando el pensamiento
filosófico deja de asumir la multilateralidad de la totalidad la
contradicción entre sus múltiples elementos constitutivos de
esta solo es contributiva a la adecuación de la identidad que
la existencia necesita. El mantenimiento de lo existente, la
anulación de la negatividad, necesita de ello.
La dialéctica no perdió esta capacidad por reducir lo
heterogéneo a lo contradictorio, sino por limitarlo en su
compresión totalizadora por una parte, y por otra por su
pretensión de trascendentalidad infinita. El asumir una
identidad determinada, limitó la multicausalidad y
multilateralidad de lo contradictorio en una causual
conceptual. Si a ello le añadimos la pretensión de
atemporalidad y de ahistoricidad entonces la dialéctica
termina siendo la determinación apriorística de una
contradicción en nombre de la totalidad. Mas el pensamiento
como plantea Adorno debe asumir el reto de que conceptuar
es identificar y por ello la filosofía debe reconocer que su
explicación de lo contradictorio será siempre limitada la
totalidad no le es dada como un objeto único.
La filosofía termina creando una identidad desde la
variedad de la experiencia. Más si la enunciación de la
contradicción lleva implícita el reconocimiento de la

21 “La filosofía debe confiar en que el concepto puede ser superar al concepto, al
instrumento que es su límite, esta confianza en poder alcanzar lo supraconceptual es
así una parte necesaria de la ingenuidad de la que adolece”. ADORNO, Theodor
W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda. Madrid: Editorial Taurus,
1984, p. 18.
22 “Pero si el empobrecimiento que la dialéctica reporta a la experiencia es objeto de
escándalo para la sana razón en el mundo tecnocrático se revela como adecuado a la
uniformidad de este”. ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José
María Ripalda. Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 13.
210 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

temporalidad histórica entonces no se enuncia como límite


de la razón, como unilateralismo explicativo de la filosofía.
Si el marxismo de Marx, si se permite referirlo de esa forma,
enuncia como contradicción fundamental la de trabajo
capital no está desdeñando el cumulo de heterogeneidades
contradictorias de este modo de producción de la vida, en
tanto asume en su enunciado las determinación históricas de
su análisis y la temporalidad de este. El error de otros
pensamientos posteriores fue asumir esta contradicción, con
la carga de sus enunciados temporales, como la única
existente en la realidad y vaciarla de contenido histórico.
Erigiéndola entonces como identidad que deja sustituye
como cristalización suficiente, el análisis dialéctico. La razón
anteponiendo a la realidad los productos de su construcción
conceptual.
Ha de buscarse el sujeto. Dentro de los restos de las
ontologías trascendentales que lo han invisibilizado. Dar su
universalidad a la particularidad concreta, que significa
reconocer la limitación de los discursos filosóficos ante la
capacidad negativa de ese sujeto. La búsqueda de la
contradicción en la que vive el dolor de la realidad que lo
niega “…en crudo contraste con el ideal científico habitual la
objetividad del conocimiento dialectico no precisa de menos sino de más
sujeto”23.
La vuelta a ese sujeto precisa antes la comprensión
de los modelos que también se antepusieron a la razón
trascendental. Y la búsqueda en sus principios justificativos
de aquellos elementos que permitan el rencuentro. Ya no por
el amor a la capacidad de la filosofía de ser un discurso de
verdad. Sino porque donde ella no lo es, es discurso de la
falacia. Falacia que arrasa con la vida de sujetos concretos,
en nombre de la falsa racionalidad. Que además hace de las

ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.


23

Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 48.


Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 211

alternativas pingues intentos de reedición de esta en nuevos


cauces.
La racionalidad instrumental que hemos visto
criticada por Adorno no es entelequia cuasi filosófica. El
sujeto abstracto auto legitimado por una razón universal
predicativa y armónica, es el que domina la crisis en la que se
encuentra la cultura hoy. No hay una crisis de modelos
políticos. Sino del medio en el que se desarrolla la vida. Esta
ha definido un sujeto concreto. Cuya reproducción
consciente es el resultado de la reificación de sus sentidos.
Es el sujeto del mercado. Que bajo las normas de la eficiencia
y la competitividad asume como naturales la desaparición
social de masas que no han logrado los regímenes de
“aprendizaje” necesarios.
Esta ontología dominante de un sujeto universal
abstracto contiene una paradoja. Por un lado es medio de la
dominación mentalizada de los sujetos concretos que
legitiman la reificación social. Productores que asumen
como únicas las formas mercantiles de regular la producción.
Y ciudadanos que odian la política, pero asumen la
democracia liberal como la única vía de ordenar el poder. Al
mismo tiempo es el escenario de formas nuevas de generar
su efectivación particular. En la lucha de sujetos concretos
que pugnan por desarrollar otra comunidad no mercantil, de
reproducir la vida. Anteponiendo su racionalidad a la de la
razón falsa del sujeto universal abstracto. Que refrendan
formas horizontales de organizar lo público. Son estos los de
un Sísifo que se cuestiona el ascender, que antepone su vida
a la legitimidad del castigo.
212 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

A la búsqueda de un sujeto particular y concreto con


trascendentalidad.

Recordando que todo intento filosófico es siempre


un dialogo con ídolos damos cuenta de que Adorno no está
solo en esa búsqueda. Remite a otro esfuerzo paradigmático
en la búsqueda de retornar desde la filosofía la concretud
particular del sujeto ante la realidad. Rescatar la ontología
parte de reconocer que esta en sus variables se ha convertido
al decir de Adorno en un instrumental ideológico que
esconde la contradicción al propio sujeto. Solo reconociendo
ese hecho podrá alcanzar su objetivo, explicar al sujeto. El
develamiento de la función ideológica del sujeto: individual
del liberal o histórico del marxismo dogmático, es esencial
para la vuelta de la objetividad. Ello tiene en la crítica a su
trascendentalidad universal un paso imprescindible. Su
reconocimiento es base para anteponer la tarscendentalidad
de lo singular y particular concreto. Esta daría cuenta de que
sus conceptualizaciones universales abstractas terminaron
negando su función efectivante. Lo absoluto del ser se
efectiva en sí mismo. La libertad puede necesitar la negación
de la vida de los sujetos. El interés histórico de la clase puede
necesitar la desaparición de algunos obreros.
La supuesta neutralidad de lo trascedente que niega
el sujeto en su concreción singular particular es lapidada por
Adorno como simple interés de insertarse en el confort de la
época. La apuesta a participar de las reglas aceptadas por la
actualidad dominante24.
Precisamente la Dialéctica Negativa ha iniciado con
una aserción originaria. La crítica al relativismo hiper práxico
de Marx en la oncena tesis: “La filosofía, que antaño pareció
24 “…doctrinas que se evaden del cómo sin importarles el sujeto son al igual
que la filosofía del ser más compatibles con la endurecida constitución del mundo actual
y las oportunidades de éxito que ofrece, que una brizna de reflexión subjetiva sobre sí
mismo y el propio cautiverio de lo real”. ADORNO, Theodor W. Dialéctica
Negativa.Trad. José María Ripalda.Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 72.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 213

superada, sigue viva porque se dejó pasar el momento de su realización.


El juicio sumario de que no ha hecho más que interpretar el mundo y
mutilarse a sí misma de pura resignación ante la realidad se convierte
en derrotismo de la razón, después que ha fracasado la transformación
del mundo”25. La aseveración marxista de la función solo
explicativa de la filosofía, si bien es un radicalismo ideológico
propio de su filosofía de la praxis, sentó un antecedente
utilizado por los ideólogos del Socialismo Real para acallar el
carácter alterico del pensamiento crítico y de la filosofía. Y
sirvió también como justificación única a aquellos
pensamientos que veían en él una amenaza, desde ella
despacharon en conjunto todo su teorizar. Adorno insiste en
el carácter específico de la filosofía ante la práctica
transformadora del sujeto. En ello hay una doble crítica, a la
visión de que la filosofía debe asumir la práctica, así como
aquella en que la filosofía no contempla sus resultados
interpretativos como temporales. Con lo cual, ante el fracaso
práctico de enunciados históricos, queda inerme sin
capacidad crítica. La filosofía de la praxis fue reificada.
En el proceso de su conversión en ideología de
estado, la cítrica a los substancialismos idealistas fue
contestada con otro idealismo abstracto y universal. El de
una materialidad concreta que enuncia los contenidos a una
consciencia que es siempre reflejo. En esa regresión
filosófica, no se reconoce como objetivo los procesos
conscientes, ni el carácter “subjetivo” (dígase mediado por
los sentidos de sujetos sociales concretos e históricos) de la
“base económica”. Ello fue el triunfo de la concretud y el
sujeto enfrentado al objeto, de un sujeto práctico. Cabe dar
cuanta que todo ello en un constructor que pretendía
responder el esencialismo filosófico, que determinaba
siempre de forma idealista al sujeto desde un universal
abstracto.

25 ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa.Trad. José María


Ripalda.. Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 11.
214 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Desde ahí se criticó la abstracción de los valores de


uso del mercado ante el carácter concreto del trabajo. Se
fustigó la democracia liberal formal, que niega la
participación efectiva y la posibilidad social de participar en
lo público. La concretud ante la trascendentalidad. Mas solo
cabe, desde la dialéctica negativa, la constatación de algunos
fatos. Lo que parecía una vuelta al sujeto concreto, un
humanismo que lo liberaba en su particularidad universal, no
fue más en la práctica que la re significación de la
universalidad abstracta del humanismo moderno.
En nombre de la vuelta a la concretud uno de los
primeros impactos lo sufrió la propia actividad del pensar.
La filosofía dejo de ser alteridad negativa, y solo afirmativa y
positiva. Muchos manuales llegaban a la formación más
teológica que filosófica, de la llegada de un nuevo orden. La
historia podría hacerse sin sujeto, estaba demostrado.
En la afirmación de la práctica habría que distinguir
su proximidad con las ideas de la acción práctica del
utilitarismo. Que aparentemente vuelve sobre un sujeto
concreto. A la vez que erige otra particularidad en
universalidad abstracta para cerrar el cauce trascendental,
que como superación negativa, dimana del empoderamiento
de los sujetos concretos. Tensión siempre entre existencia y
posibilidad. Potente e inmanente alteridad que empuja la
utopía. La concretud productiva fue interpretada como la
fáctica satisfacción de necesidades. La materialidad
democrática fue asumida como simple prejuicio a la
participación política real y protagónica. El resultado: el
mismo, la construcción de una ontología ideologizada, que
en nombre del sujeto construyó un sistema de relaciones que
lo negaban.
Por ello Adorno insiste, si la filosofía se convierte en
pretensión praxica, deja trás de sí la capacidad negativa del
sujeto. Ello necesita una filosofía que pueda negarse a sí, que
no pretenda lo trascendente en el tiempo histórico, que
asuma lo perecedero del tiempo histórico. Que asuma el
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 215

compromiso de ser explicación hoy y por hoy de la realidad.


Cuando altera esa misión cae en reduccionismo
ideologizante, que le restringe la capacidad de asumir la
crítica de la práctica del sujeto. El descredito inusitado de
filosofía, de manos de los desarrollos de las ciencias
particulares, se debe en cierto sentido a que tras la pretensión
de totalidad transcendente, se impuso una lógica opuesta: la
hiperlogicidad del discurso conceptual que dejó los
problemas de la concreción humana en manos de las ciencias
particulares. No por casualidad de manos de estas, en buena
parte de la contemporaneidad, han llegado los desarrollos
últimos de la filosofía. Ello es también muestra de que la
obsolescencia de la reflexión filosófica no pasa de ser
ideología de la anticrítica. Existen problemáticas que no
pueden ser resueltas en el campo de las ciencias particulares.
La filosofía tiene que plantearse la concretud de la
realidad. Para ello ha de responderse la ideología del sujeto.
En su base se encuentra un discurso del reconocimiento de
la necesidad de satisfacer al sujeto. En su respuesta como
filósofo de la praxis Adorno expone un argumento concreto:
“Pero los procesos reales la producción y reproducción de la vida social
minan lo que en cierto modo un filosofar ontológico trata de despertar
como un conjuro”26. Es esta una crítica al filosofar que termina
por decretar la errancia de la realidad, su falta de cientificidad
y por tanto de verdad. Es la verdad contra la realidad, la
razón contra su origen primero. Si los ideologismos terminan
construyendo una falsa realidad que niega las
contradicciones reales esta filosofía niega la realidad misma.
La razón en un extremo de autoridad. Por ello Adorno presta
atención en especial a la idea de necesidad. Que ha sido base
de la ideologización del sujeto de la necesidad. Necesidades
que terminan vaciando de sentido al sujeto que deben
satisfacer.

26 ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María


Ripalda.Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 72.
216 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Aunque radical de más (sigue siendo la necesidad el


principio basal de las acciones praxicas del sujeto) expresa
luego Adorno, una paradoja, la cárcel de Sísifo de la sociedad
actual: los modelos de necesidad27. Estos imponen su
fagocitación por la persecución de satisfacciones continuas.
Estas se individualizan, parecen realizaciones propias,
creaciones propias. Cuando son tan solo las creaciones
fantasmagóricas de los fetiches efectivantes de intereses
dominantes.
Esa muestra nítida del ser trascedente hace del sujeto
un objeto de las necesidades. Estas determinan sobre él,
marcan las formas y los medios únicos desde las cuales
pueden ser satisfechas a las relaciones que debe en darle
satisfacción. El gozo es una invención que solo genera la
eterna frustración que lanza al nuevo bregar. Mas la sociedad
actual no tiene ya el modelo de sujetos que en una carrera
eterna asumen la búsqueda del placer, lo lúdico. El displacer
genera reactivaciones28. Estos sujetos para la necesidad
necesitan con la disciplina de los nuevos tiempos, no quieren
el placer ya lo saben imposible. Solo no quieren la tortura del
juicio propio. Lo que generó desde el displacer, las henchidas
protestas de claveles rojos en la segunda mitad del siglo XX.
Ahora ya solo genera tímidas reacciones conservadoras de
estratos medios, allí donde la ideología y la política
intentaron estructurar un curso en la satisfacción efectiva de
necesidades, reeditando viejas estrategias desarrollistas del
siglo pasado. Estas no dieron cuenta de que el modelo de
necesidad continúa generado un sujeto que está impulsado a

27 “…ni siquiera la ingenuidad empedernida puede ya seguir confiando en


la afirmación de que los procesos sociales se siguen guiando inmediatamente por al
oferta y la demanda, o sea por las necesidades”. ADORNO, Theodor W.
Dialéctica Negativa.Trad. José María Ripalda. Madrid: Editorial Taurus,
1984, p. 96.
28 MARCUSE, Hebert: El hombre unidimensional. Trad. Aurelio
Alonso. La Habana: Ciencias Sociales, 1969.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 217

necesitar, no le importa su propia vida le importa la


necesidad.
El único camino posible es dar cuenta de las
verdaderas necesidades tras el amasijo de ficción creado por
esta sociedad. “Las necesidades son un conglomerado de verdad y
mentira, el pensamiento que desease lo que debe seria el verdadero” 29.
En la sociedad la satisfacción de la necesidad es el perfecto
medio de realización de la violación del otro. Los tiempos
liberales oníricos del mercado, como un gran espacio de
servicio y satisfacción, están lejos de la realidad. En nuestra
sociedad las necesidades son impuestas al otro desde una
falsa realidad que parécele propia. Este acto es el de una
sociedad totémica, donde necesidades naturales de valores
de uso, son revestidas de implicaciones simbólicas no
escogidas desde su naturalidad por los sujetos particulares.
Es más los niegan. La necesidad es el momento de la
introyección de los intereses del otro, mas no del otro igual,
sino de una alteridad universal abstracta más allá de cualquier
determinación que impele a su realización. El ser de
Heiddegger en tiempos de Internet. En tiempos en que sus
consecuencias concretas son síntomas inacallados, que
ninguna ontología trascendental podría cerrar los ojos ante
ella.
Hay que reconocer este sujeto no como un sujeto
para la necesidad sino necesitado30. Lo mueve en esa lógica
su propia reproducción. Pero conlleva a su reconocimiento
como sujeto particular, particularidad con universalidad
propia no predicada. La trascendentalidad debe estar en su
vida, en su acción fundante. Mas si el sujeto es su acción la

29 ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María


Ripalda. Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 13.
30 “…hay necesidades reales que pueden ser objetivamente ideologías, sin que
ello constituya un titulum iuris para negarlas”. ADORNO, Theodor W.
Dialéctica Negativa. Trad. José María Ripalda.Madrid: Editorial Taurus,
1984, p. 96.
218 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

satisfacción debe ser resultado de su ontología. Este


esquema no cabe en la abstracta universalidad
trascendentalidad que desde una dimensión armónica del ser
justifica todas las concreciones posibles más allá de cualquier
realización particular del sujeto. El ser necesita antes que el
ente, este solo efectiva lo ya necesitado. E allí el remanente
cítrico y base de una fundación nueva31. Las necesidades del
propio sujeto, la alteridad que no puede alcanzar la
trascendentalidad universal es la propia particularidad. Es el
dolor del pensamiento, el trauma el temor, esa cuota de
particularidad y singularidad que aún no lograse establecer
como universal, porque la condición primera del ser social
es ser individual. En ello se encuentran las bases de la
transformación de la virtualización de la vida.
Desde esta idea se trasluce una crítica a varios
discursos y practicas emancipadoras del siglo XX. El
marxismo dominante en este antepuso a la democracia y
libertades liberales la democracia material. Identificó la
satisfacción de necesidades como el fin último de todo el
proyecto. Siguió viendo al sujeto como objeto de la
necesidad y no como sujeto necesitado. De allí no pudo
concluir un modelo de realización del sujeto en su
posibilidad siempre negativa, activa. No construyo
relaciones nuevas de reproducir la existencia. Tras el hastío
de la frustración los sujetos particulares, reaccionaron contra
una universalidad que no podía continuar satisfaciendo el
cumulo de necesidades materiales trascedentemente
instituido, la individualidad, la subjetividad, reaccionaron
buscando su realización.
El neoliberalismo depauperó los niveles de
satisfacción de necesidades al extremo en nuestro
31 “…y es que incluso en las necesidades del hombre manipulado
y administrado algo reacciona que las hace en parte inaccesibles: el
excedente en participación subjetividad del que el sistema no se ha
podido apoderar por completo”. ADORNO, Theodor W. Dialéctica
Negativa. Trad. José María Ripalda. Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 96.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 219

continente. Como ninguna dictadura logró hacerlo, con


niveles de gubernamentalidad altos. La crisis del sistema dejó
tras de sí un sujeto mayoritario materialmente necesitado.
Los proyectos progresistas re articularon un sujeto político a
partir de ese entramado. La paradoja es que su base
ideológica fue la satisfacción de necesidades materiales
preteridas. Desde este no se crearon modelos nuevos de
reproducción política y articulación social. Ello hiso que tras
la bonanzas iniciales, estos proyectos hayan caído
progresivamente en las dinámicas reactivas propia de los
modelos de necesidades de la sociedad mercantil. Ante los
discursos de las redistribuciones realizadas los propios
sujetos beneficiados reaccionan con el clamor de una
insatisfacción que no es propia. Es en realidad la
insatisfacción del modelo estructurado en necesidades
fetichizadas. Esta reacción tiene en el clamor de la
subjetividad el grito de un sufrimiento el de la autoconciencia
que hace responsable ante la insatisfacción. Allí donde las
manos del mercado se ocultan esta recae en la individualidad.
Allí donde la política intentó un modelo de materialidad
fetichizado, la reacción es contra ella. La política juzga de
ingratitud a sus beneficiarios ellos la juzgan de insuficiente.
Y es que estos proyectos no articularon una ideología
nueva basada en el reconocimiento y empoderamiento a la
subjetividad revelada contra el neoliberalismo. En medio de
la noche del fin de la historia se levantó el sujeto no
formalizado, el particular y concretamente trascedente. Pero
los proyectos emancipatórios que encauzaron su repuesta no
dieron cuenta que la tarea no era solo la satisfacción de
necesidades , sino la atención del necesitado. La creación de
un mundo de lo real ante ese mundo de virtualizaciones y
fetiches mercantiles. Ese mundo real precisaba el
empoderamiento de los sujetos en ese proceso de
satisfacción, la radicalización de la democratización del
trabajo, la ampliación de la participación política, el cambio
de la lógica corporativa de los partidos. Posible desde la
220 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

construcción de la una práctica política social y cultural con


centro en el trascendente sujeto particular. Sin embargo no
transformaron la mentira de las necesidades del sistema, no
fueron capaces de realizar la verdad. Al tratar de nuevo al
sujeto como objeto de la necesidad, se insertaron en la
dinámica de neurosis establecida por el capital. Prometieron
súper yo sin afirmar la verdad real del yo, el resultado: una
rebelión de esos sujetos neuróticos. El capital neoliberal
tenia listo, nunca fue desmontado, los medios de
reproducción necesarios para articular una respuesta
orgánica.
Adorno continua argumentando: “La conciencia
subjetiva de los hombres está demasiado debilitada socialmente para
hacer saltar las constantes que la aprisionan”32. La conciencia
subjetiva está dañada es cierto, la de los hombre, y cabe
señalar en el siglo XXI, la de las mujeres también. El
problema central es que siguiendo su propia lógica, la
particularidad es irreductible. La existencia del hombre y la
mujer concretas de las cuales el sistema no puede prescindir,
están tan oprimidas que han hecho que de la podredumbre
que del amasijo subjetivo fabricado la industria cultural
surjan reacciones cada vez más sistémicas y anti
hegemónicas. Es que el sistema cada vez más incurre en la
desaparición de las condiciones básicas de existencias. Ello
conlleva a que el sujeto se afirme en la vida. Nadie piensa
para el suicidio, ese sería el particular más bello para el
sistema mercantil. Mas la vida se afirma. Si en las sociedades
centrales el nihilismo puede ser la respuesta, en nuestra
periferia sangrienta la articulación comunitaria excluida es
cada vez más fuerte. Aunque el sistema usas sus medios para
acallarla y satanizarla. Le pone nombres de violencia, crimen,
pero son gritos de una conciencia del dolor que busca una
respuesta.

32 ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María


Ripalda. Madrid: Editorial Taurus, 1984, p. 99.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 221

La paradoja es que las expresiones políticas que


parecieron interpretarlo pretendieron el imposible, el
bonapartismo de Estado, en vez de asumir la radicalidad de
ese discurso del sufrimiento. Las condiciones de inicios del
siglo XXI parecían engañosamente plantear la posibilidad
redistributiva. Desde ese contexto las alternativas
terminaron tratando al sujeto que pretendían libertar como
la propia dominación. Distribuyeron bienes materiales de
consumo, no la posibilidad social de producirlos. De
redistribuir la capacidad de reconocimiento material y
simbólico que da la participación y acción social. La
paradoja: la izquierda está entre una clase que quiere más
neoliberalismo y una masa que deja su base social porque no
logró satisfacer todas las necesidades que ahora ponen al
sujeto particular ante la tortura de perder las conquistas
totémicas el consumo. No se trata de aminorar la carga de
Sísifo sino de posibilitarle los medios para que deslegitime el
castigo y pueda asumir una nueva práctica propia.

Conclusiones.

La crítica presente en el pensamiento de W Adorno


a la ideología del sujeto representa una sólidad repuesta a la
trascendentalidad negadora de la acción activa de aquel. Ello
constituye base para una formulación teórica de una
dialéctica que resignifique las condiciones de determinación
de la reproducción del sujeto. Que en su negatividad es base
posible de un humanismo concreto particular.
Este humanismo que fundamneta se base en una
crítica a las reificaciones que desde las tradiciones
dominantes de la contemporaneidad intentaron formular un
humanismo transcendente. El discurso sobre el humanismo
de un sujeto particular y concreto, funda la base para la crítica
también a las prácticas de dominación actuales así como a las
alternatividades que en su decurso han quedado presas de los
modelos de necesidad creados por la propia necesidad.
222 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Desde este es posible una crítica positivamente negativa de


los proyectos sociales actuales latinoamericanos.

Bibliografía

ACOSTA, Yamandú. La constitución del sujeto en la


filosofía latinoamericana. En: Nuestra América y el
Pensamiento Crítico: Fragmentos de Pensamiento Crítico de
América Latina y el Caribe. Buenos Aires: Consejo
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ADORNO, Theodor W. Dialéctica Negativa. Trad. José María
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Lyotard, François. La condición postmoderna. Madrid: Ediciones
Cátedra, 1987.
Valdez, Gilberto. La hegemonía como desafío. Los nuevos
gobiernos y el movimiento social popular en América Latina.
En: Rencauzar la utopía. Movimientos Sociales y cambio
político en América Latina. La Habana: Editorial
Caminos, 2012.
Pensar la resistencia.
Vigencia del pensamiento de
Adorno, y algunos elementos de
la realidad social
contemporánea1.
Sebastián M. Ferreira Peñaflor2
Yo no sé muchas cosas, es verdad.
Digo tan sólo lo que he visto.
Y he visto:
que la cuna del hombre la mecen con cuentos,
que los gritos de angustia del hombre los ahogan con cuentos,
que el llanto del hombre lo taponan con cuentos,
que los huesos del hombre los entierran con cuentos,
y que el miedo del hombre...
ha inventado todos los cuentos.
Yo no sé muchas cosas, es verdad,
pero me han dormido con todos los cuentos...
y sé todos los cuentos.

León Felipe
(Sé todos los cuentos.)

I - Introducción

El presente se erige a partir del seminario del


profesor Ricardo Timm de Souza, de las discusiones que
formaron parte de su desarrollo, así como de las experiencias
de nuestras realidades. Por lo cual, tiene en su esencia
1Trabajo presentado para SEMINARIO: T. ADORNO: Actualidad de la
Dialéctica negativa. A cargo del PROFESOR: RICARDO TIMM DE
SOUZA. Junio/2015. Para ser publicado en libro sobre el seminario.
2 Mestrando pelo convênio CAPES/Udelar, bolsista CNPq.
224 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

algunos rasgos de la indignación frente al mundo


contemporáneo en el que estamos insertos. El motivo es la
necesidad de continuar pensando, reflexionando y
criticando, los distintos asuntos que tienen que ver con
nuestro presente. En ese sentido, consideramos que Adorno
ha reflexionado sobre asuntos que creemos tienden a
procurar líneas de fuga y fisura a tanta opresión instalada
como naturalizada.
Vemos en el autor una crítica concreta a lo que
sucedía en Alemania, y la intención de pensar como sucedió
Auschwitz -entre otra cosas- así como el lugar de la filosofía.
Es así, que en esta serie de análisis que desenvuelven la
posibilidad de poder pensar nuestra realidad y nuestra
actualidad utilizando algunas de las herramientas que hemos
heredado, como condición de posibilidad, a efectos de poder
ejercer la resistencia frente a lo que nos oprime. Si Adorno
reflexiona acerca de como fue posible Auschwitz y sus
consecuencias, nosotros intentaremos manifestar una
reflexión que contribuya a pensar, como es que siguen
aconteciendo estas formas de fascismo, que de algún modo
encubierta o no, es necesaria la resistencia.
Es justo decir, que al leer Dialéctica negativa,
encontramos una vigencia que nos podría parecer un texto
que fue escrito ayer debido a la actualidad que mantiene. Por
lo tanto, consideramos fundamental algunas de las lecturas
que podamos realizar a partir del mismo para pensar nuestro
presente.
Por último, tenemos la necesidad de vincular el texto,
así como caracterizarlo en el marco de lo que engloba nuestra
sociedad occidental y tercermundista caracterizada por
determinada forma de pensar y decir las cosas, en las cuales
estamos siendo constantemente estereotipados de distintas
formas, y ahí consideramos necesario que nuestro discursos
encuentren senderos para oponerse a la hegemonía
mediática y cotidiana. La escalada represiva existente en
nuestra América, nos insta a definir líneas posibles de
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 225

resistencia, frente a discursos reaccionarios que tienen por


objetivo el encrudecimiento de las actuales condiciones
sociales. Para resistir hoy, como ayer, “es necesario quebrar
el cerco del olvido” y la indiferencia frente a la realidad que
acontece.

II
“La justicia es lo que
conviene al más fuerte”
Trasímaco.

La primera parte de Dialéctica negativa titulada


“Relación con la ontología” comienza con un ataque
explícito a Heidegger, marcando el tono con que se llevará a
cabo la tarea de crítica por parte de La Escuela de Francfort,
y aquí particularmente Adorno, a la forma de hacer filosofía,
enmarcada en los hechos de los fascismos que atravesaron
Europa, allí Adorno dice: “Las ontologías en Alemania,
sobre todo la heideggeriana, siguen operando sin que
intimiden las huellas del pasado político3”. Adorno, en el
marco de la crítica a Heidegger, explicitará la tarea de la
dialéctica, a continuación, citaremos el pasaje, debido a que
tiene consecuencias importantes en nuestra interpretación
filosófica:
Uno de los motivos de la dialéctica es acabar con
aquello que Heidegger elude usurpando un punto de
vista más allá de la diferencia entre sujeto y objeto,
en la cual se revela la inadecuación de la ratio con lo
pensado. El pensar no puede conquistar ninguna
posición en la que desaparecería inmediatamente esa
separación entre sujeto y objeto que se encuentra en
cualquier pensamiento, en el pensar mismo. Por eso,
el momento de verdad de Heidegger se nivela con el

3ADORNO, Theodor. Dialéctica Negativa. Trad. Alfredo Brotons Muñoz.


Madrid: Ed. Akal, 2011. P. 67.
226 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
irracionalismo de una concepción del mundo. Hoy
día, como en los tiempos de Kant, la filosofía
demanda la crítica de la razón por ésta, no su
destierro o abolición.4
La Dialéctica negativa como una praxis no
desconectada de la teoría. La dialéctica positiva agrega a
través de las contradicciones, Adorno cuestiona esta
dialéctica, ya que sin la contracción la dialéctica no tiene
sentido, cada objeto debe mantenerse en tensión con las
palabras. La piedra de toque de la dialéctica negativa es la
contracción. Adorno crítica a Parménides por la identidad
entre el ser y el pensar, dentro de esta línea se encuentra
Heidegger. Para Adorno Ser sería una cosa y pensar otra. Lo
no-parmenídeo sería mantener la tensión, frente a la
totalización e identificación entre ser y pensar. Eso es lo que
todavía estaría por comenzar, un proceso de
desmitologización de la razón, es necesario negar la razón
pura.
En Meditaciones sobre la metafísica, la parte III de
Los modelos en Dialéctica negativa, Adorno dice lo siguiente:
El sentimiento después de Auschwitz se eriza contra
toda afirmación de la positividad del ser-ahí como
charlatanería, injusticia para con las víctimas, contra
que del destino de éstas se exprima un sentido por
lixiviado, tiene su momento objetivo tras
acontecimientos que condenan al ridículo la
construcción de un sentido de la inmanencia que
irradia de una trascendencia afirmativamente
establecida5.
Fredric Jameson, en relación a la última parte de Los
modelos, hace la siguiente interpretación de lo tratado por
Adorno:

4Idem. P. 89.
5Idem. P. 331.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 227
El capítulo acerca de la metafísica, no obstante, daría
la impresión de que atañe a los propios paralogismos
de Adorno: la muerte está en todas partes y
omnipresente, quizás sobre todo en esta sociedad
capitalista tardía después de Auschwitz; pero, por
otro lado, parecería que hemos eliminado todo
pensamiento acerca de ella del tejido de la vida
cotidiana6.
En primer lugar, es preciso darle un contexto a esta
indignación que manifiesta Adorno. Luego de los procesos
de fascismos en Europa, se trataría de impedir su repetición,
sí es que no se repiten. En una conferencia trasmitida por
radio en 19667, mismo año de la publicación de Dialéctica
negativa, Adorno manifiesta los marcos referenciales, veamos
unicamente el aspecto de la necesidad crítica. “La exigencia
de que Auschwitz no se repita es la primera de todas en la
educación”8.
Fundamentarla tendría algo de monstruoso ante la
monstruosidad de lo sucedido. Pero el que se haya
tomado tan escasa conciencia de esa exigencia, así
como de los interrogantes que plantea, muestra que
lo monstruoso no ha penetrado lo bastante en los
hombres, síntoma de que la posibilidad de repetición
persiste en lo que atañe al estado de conciencia e
inconciencia de estos. Cualquier debate sobre los
ideales de educación es vano e indiferente en
comparación con este: que Auschwitz no se repita9.

6JAMESON, Fredric. Marxismo tardío. Adorno y la persistencia de la dialéctica.


Trad. María Julia De Ruschi. Buenos Aires: Fondo de Cultura económica,
2010. Pp. 179-180. Ver también en esta misma obra la relación con Kant
y los paralogismos, con los modelos de Adorno. pp. 121 y ss.
7Se trata de “La educación después de Auschwitz”.
8ADORNO, Theodor. “La educación después de Auschwitz” en Consignas.
Trad. Ramón Bilbao. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1973.. P. 80.
9Ibidem.
228 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Tendríamos en primer lugar, un trabajo de


“concientización” o toma de conciencia o producción de
una conciencia capaz de reconocer lo monstruoso de lo
sucedido pero también la posibilidad constante de su
repetición, así como las formas de repetición, de producción
y reproducción de determinada forma de vida como plantea
en Dialéctica negativa. Primera pregunta entonces: ¿cuál es el
alcance de nuestra educación? Y ¿qué medidas puede tomar
esta para evitar que Auschwitz se repita? ¿La educación
puede cumplir con tal ideal?, ¿cómo sería posible que
cumpliera con ese ideal? ¿Cuando se plantea el término
“educación” se la manifiesta en tanto institución o tendría
un carácter más amplio?
Adorno manifestará a lo largo del texto determinado
papel que tendría que cumplir las ciencias, como por ejemplo
la psicología o, mejor dicho el psicoanálisis, y la antropología.
De las referencias que se señalan a lo largo del texto tenemos
a Freud y particularmente El malestar en la cultura10. Respecto
a los elementos que se manifiestan aquí como conciencia o
inconciencia: ¿qué tomará Adorno del psicoanálisis -
fundamentalmente Freud-? Más adelante en el texto se hará
referencia a Psicología de las masas y análisis del yo, y
también a El malestar de la cultura. Uno de los caracteres
más interesantes del texto tiene que ver con el lugar que
adquiere el sujeto:
Como la posibilidad de alterar las condiciones
objetivas, es decir, sociales y políticas, en las que se
incuban tales acontecimientos es hoy en extremo
limitada, los intentos por contrarrestar la repetición
se reducen necesariamente al aspecto subjetivo. Por
este entiendo también, en lo esencial, la psicología de
los hombres que hacen tales cosas11.

10Idem. P. 80, 81.


11 Idem. P. 81.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 229

En este sentido, el papel fundamental del


psicoanálisis12, además del papel del sujeto como una
condición de posibilidad para evitar la repetición. Será
necesario a decir de Adorno un “giro hacia el sujeto”13.
Frente a la sujeción de los hombres, Adorno insiste en que
“la única fuerza verdadera contra el principio de Auschwitz
sería la autonomía, si se me permite expresar la expresión
kantiana; la fuerza de la reflexión, de la autodeterminación,
del no entrar en el juego del otro”14.
La educación después de Auschwitz, puede ser trabajado
desde varios aspectos, por más de ser muy breve, tiene una
riqueza muy importante, a los efectos de comprender como
sería posible contrarrestar los principios que produjeron
Auschwitz. Aquí hemos resaltado es la aspecto de la crítica
entendida como esa fuerza de la reflexión para comprender
lo que sucede hoy15. Adorno finaliza el texto con la siguiente
afirmación que como veremos, vuelca cierto pesimismo:

12Sí bien el psicoanálisis adquiere un peso muy importante en la obra de


Adorno particularmente en Dialéctica negativa y La educación después
de Auschwitz, en esta última,él mismo plantea: (…) quisiera insistir
explícitamente en que el retorno o no del fascismo es en definitiva un
problema social, no psicológico. Si me detengo tanto en los aspectos
psicológicos es exclusivamente porque los otros momentos, más
esenciales, escapan en buena medida, precisamente, a la voluntad de la
educación, si no ya a la intervención de los individuos en general. pp. 83-
84.
13Idem. P. 82.
14Idem. P. 84.
15Sobre el final del texto Adorno manifiesta la necesidad de una
educación política: Finalmente, la educación política debería proponerse
como objetivo central impedir que Auschwitz se repita. Ello sólo será
posible si trata este problema, el más importante de todos, abiertamente,
sin miedo de chocar con poderes establecidos de cualquier tipo. Para ello
debería transformarse en sociología, es decir, esclarecer acerca del juego
de las fuerzas sociales que se mueven tras la superficie de las formas
políticas. P. 95. así como también la necesidad de plantear críticamente la
“razón de Estado”.
230 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
Temo que las medidas que pudiesen adoptarse en el
campo de la educación, por amplias que fuesen, no
impedirían que volviesen a surgir los asesinos de
escritorio. Pero que haya hombres que,
subordinados como esclavos, ejecuten los que les
mandan, con lo que perpetúan su propia esclavitud
y pierden su propia dignidad... que haya otros Boger
y Kaduk, es cosa que la educación y la ilustración
pueden impedir en parte16.
Vemos la posibilidad de cotejar esta conclusión que
extrae Adorno, con una publicación anterior en co-autoría
con Horkheimer, Dialéctica de la Ilustración, especialmente, el
excelente como vigente capítulo sobre la industria cultural.
En ese sentido, ¿cómo es posible la realización de este giro
hacia el sujeto que veíamos frente a condiciones estructurales
de nuestra sociedad que se mantienen intactas y que
reproducen además de eso condiciones de empobrecimiento
cultural para la mayor parte de la población? Vayamos a un
pasaje que refleja tendencias actuales acerca de la
monstruosidad de la diversión, el pasaje es extenso, pero
creemos conveniente colocarlo:
(…) la industria cultural sigue siendo la industria de
la diversión. Su poder sobre los consumidores está
mediatizado por la diversión, que al fin es disuelto y
anulado no por un mero dictado, sino mediante la
hostilidad inherente al principio mismo de la
diversión. Dado que la incorporación de todas las
tendencias de la industria cultural en la carne y la
sangre del público se realiza a través del entero
proceso social, la supervivencia del mercado en este
sector actúa promoviendo ulteriormente dichas
tendencias (…) Su ideología es el negocio [magnates
del cine]. En ello es verdad que la fuerza de la
industria cultural reside en su unidad con la
necesidad producida por ella y no en la simple

16Idem. P. 95.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 231
oposición a dicha necesidad, aun cuando esta
oposición fuera de la omnipotencia e impotencia. La
diversión es la prolongación del trabajo bajo el
capitalismo tardío. Es buscada por quien quiere
sustraerse al proceso de trabajo mecanizado para
poder estar de nuevo a su altura, en condiciones de
afrontarlo. Pero, al mismo tiempo, la mecanización
ha adquirido tal poder sobre el hombre que disfruta
del tiempo libre y sobre su felicidad, determina tan
íntegramente la fabricación de los productos para la
diversión, que ese sujeto ya no puede experimentar
otra cosa que las copias o reproducciones del mismo
proceso de trabajo17.18
Además de evidenciar una realidad en la cual nos
erigimos como sujetos, empañan en gran medida las
condiciones que parecen importantes en nuestra educación
como esa necesidad de la reflexión y del carácter crítico. Por
supuesto que la producción de esa industria del negocio
como la llaman Adorno y Horkheimer, no tiene intensiones
de contribuir a la crítica. Consideramos fundamental, el
planteo adorniano de la crítica19 como una de las

17 ADORNO,Theodor. & HORKHEIMER, Max. Dialéctica de la


Ilustración. Trad. Juan José Sánchez. Madrid: Editorial Trotta, 2006. P. 181.
18Reflexiones como esta acerca de la cultura de masas la podemos
encontrar por ejemplo casi cien años antes a la Dialéctica de la
Ilustración, por ejemplo en la crítica al Estado moderno realizada por
Nietzsche, Wagner. Remito a: NIETZSCHE, Friedrich. “El Estado griego”
en Obras Completas, Escritos de juventud, Vol I. Trad. Luis E. de Santiago
Guervós. Madrid: Tecnos, 2011. Y también a: WAGNER, Richard. “La
obra de arte del futuro” en El arte del futuro. Trad. Jorge Goldszmidt y M. G.
Burello. Buenos Aires: Ed. Prometeo, 2011.
19Paraeste asunto de la crítica podemos referenciar no sólo el trabajo de
Kant ¿Qué es la Ilustración?, sino también los de Foucault teniendo
como referencia ese texto de Kant, por ejemplo Seguridad, Territorio,
población curso del año 1978 en el Collège de France, así como los
seminarios sobre la Ilustración en Kant, donde manifestará la noción de
una “ontología de nosotros mismos”.
232 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

posibilidades de contribuir a contrarrestar -a esta altura- los


Auschwitz que se siguen re-produciendo. Esto lo podemos
confirmar, a partir del filósofo italiano Giorgio Agamben.
En el primer capítulo de Lo que queda de Auschwitz,
Giorgio Agamben manifiesta, que a partir de los procesos
que se realizaron, en Nuremberg y Jerusalén, por ejemplo no
han agotado el problema aunque fueran necesarias las
condenas, y que el derecho no lo ha resuelto, es más termina
el parágrafo planteando que Auschwitz “está en todas
partes”20. Esto lo continúa corroborando Agamben en este
primer capítulo titulado El testigo, del texto mencionado, en
el octavo parágrafo, introducirá un cita de la Zona Gris de
Primo Levi, donde manifiesta las tareas que tenían que
hacerlas escuadras especiales21 (SonderKommando), en ese
contexto de vergüenza en la que se sentían los deportados
que formaban el escuadrón, se manifiesta la necesidad de
sobrevivir, para poder hacer venganza a partir del testimonio
de todo lo vivido22. Y en ese marco de humillaciones se relata
el episodio de un partido de fútbol entre la escuadra y las SS,
como el horror del campo, si las matanzas siguen, si han
terminado, representa la zona gris23. Agamben culmina el

20AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. Trad. Anonio Gimeno


Cuspinera. Valencia: Pre-Textos, 2010. Pp. 18-19..
21LEVI, Primo. Informe sobre Auschwitz. Trad. Ana Nuño. Barcelona:
Reverso Ediciones, 2005. P. 88: El funcionamiento de las cámaras de gas
y de los crematorios anexos estaba garantizado por un Comando
Especial que trabajaba día y noche en dos turnos. Los miembros de este
Comando vivían aparte, cuidadosamente separados, sin contacto alguno
con los prisioneros ni con el mundo exterior. Sus ropas despedían un
olor nauseabundo,estaban siempre mugrientos y tenían un aspecto
resueltamente salvaje, que los hacía parecerse a verdaderas bestias
feroces. Eran escogidos entre los peores criminales condenados por
delitos de sangre.
22Referencia de La zona gris de Primo Levi en AGAMBEN, Giorgio. Lo
que queda de Auschwitz. Trad. Anonio Gimeno Cuspinera. Valencia: Pre-
Textos, 2010. P. 24.
23AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz. Trad. Antonio Gimeno
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 233

parágrafo en referencia a esto diciendo:


Mas es también nuestra vergüenza, la de quienes no
hemos conocido los campos y que, sin embargo,
asistimos, no se sabe cómo, a aquel partido, que se
repite en cada uno de los partidos de nuestros
estadios, en cada transmisión televisiva, en todas las
formas de normalidad cotidiana. Si no llegamos a
comprender ese partido, si no logramos que termine,
no habrá nunca esperanza.24

III
“...Maldigo la poesía de quien no
toma partido hasta mancharse...”
Gabriel Celaya.

De la resistencia como límite a la “parodia de la libertad”:


“Acusación de antisemitismo” y “teoría de los dos
demonios”.
Adorno tiene importantes pasajes en Dialéctica
negativa, que claramente observamos como su pensamiento
se enraiza en una realidad con muchas dificultades a efectos
de ser superadas y en las cuales nos invitan a seguir pensando
cómo sería posible superar estas dificultades, así: “La
sociedad, según cuyo propio concepto las relaciones de los
hombres quieren estar fundadas en la libertad sin que hasta
hoy la libertad se haya realizado en sus relaciones, es tan
rígida como defectuosa”25. Quien observa esto, está en lo
cierto observar una crítica a la idea de libertad que por
ejemplo podría manifestarnos el liberalismo del siglo XIX.
¿Cómo sería posible re-inventar la dignidad del hombre? En
relación a ello plantea:

Cuspinera. Valencia: Pre-Textos, 2010. P. 25.


24Ibidem.

25Ed. cit. P. 92.


234 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas
Cuanto más desmesurado el poder de las formas
institucionales, tanto más caótica la vida que éstas
imponen y deforman a su imagen. La producción y
reproducción de la vida, junto con todo lo que el
término superestructura cubre, no son tan
transparentes a esa razón cuya realización
reconciliada no sería sino un orden digno del
hombre, aquel sin violencia.26
Quizás estos aspectos sean los más pesimistas en
Adorno, a partir de estos dos pasajes que acabamos de
señalar. Sin embargo al seguir observando las olas de
violencia en las que nos reproducimos, y no nos referimos
unicamente a los genocidios, sino a las condiciones de
posibilidad de esos genocidios, por un lado, que parecen
hacer imposible el sueño de que “Auschwitz no se repita”,
más aún, podemos observar en innumerables momentos
como se continua repitiendo.
(…) El hecho de que en gran medida la libertad no
dejara de ser ideología; el hecho de que los hombres
sean impotentes ante el sistema y no sean capaces de
determinar su vida y la del todo a partir de la razón;
es más, el hecho de que no puedan concebir ya tal
pensamiento sin sufrimiento complementario,
condena su sublevación a convertirse en la figura
inversa: prefieren sardónicamente lo peor a la
apariencia de algo mejor.27
Como habíamos manifestado anteriormente, esto se
rige en la crítica al liberalismo y al mismo tiempo, en esa
“parodia de la libertad”28, observamos actualmente como en

26Ibidem.

27Ib.

28ADORNO, Theodor. Crítica de la cultura y sociedad I. Trad. Jorge Navarro


Pérez. Madrid: Ed. Akal, 2008.. P. 11, : “la estupidez y la mentira que
prosperan al abrigo de la libertad de prensa no son un accidente en el
curso histórico del espíritu, sino el estigma de la esclavitud en que se
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 235

los medios de comunicación, los programas televisivos se


repiten constantemente, la divertido o entretenimiento, las
noticias policiales, los deportes, programas de cocina,
teleteatros que manifiestan un modelo de vida, y así
podemos seguir entre otros espectáculos que tenemos con
solo encender el televisor. Este se puede ver manifestado en
Crítica de la cultura y sociedad I, allí Adorno dirá: “la apariencia
de libertad hace que la reflexión sobre la falta de libertad sea
ahora mucho más difícil que antes, cuando la reflexión se
oponía a la falta patente de libertad; de este modo, la
apariencia de libertad refuerza la dependencia”29. Y en
Dialéctica de la Ilustración, “La industria cultural puede
disponer de la individualidad de forma tan eficaz sólo porque
en esta se reproduce desde siempre la íntima fractura de la
sociedad”30. De forma más evidente, en el final del capítulo
los autores manifiestan:
Todos son libres para bailar y divertirse, de la misma
manera que son libres, desde la neutralización
histórica de la religión, para entrar en una de las
innumerables sectas existentes. Pero la libertad en la
elección de la ideología, que refleja siempre la
coacción económica, se revela en todos los sectores
como la libertad para siempre lo mismo(...) Es el
triunfo de la publicidad en la industria cultural, la
asimilación forzada de los consumidores a las
mercancías culturales, desenmascaradas ya en su
significado31.
La ironía con la que se refieren Adorno y
Horkheimer a la libertad en relación con la industria cultural

desarrolla su liberación, de la emancipación falsa”.


29Ibidem.

30ADORNO,Theodor. & HORKHEIMER, Max. Dialéctica de la


Ilustración. Trad. Juan José Sánchez. Madrid: Editorial Trotta, 2006. P.
200.
31 Idem. P. 212.
236 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

de masas, es la idea de libertad que ya señalamos en otros


dos textos de Adorno entre ellos Dialéctica negativa. Se
manifiesta en función de los hechos acontecidos como
Auschwitz por ejemplo y de lo que ya hablamos. Ahora
nuestra propuesta será mostrar dos ejemplos de líneas de
fisura frente a la totalización del discurso y del pensamiento,
como posibles elementos para la resistencia frente a tanta
atomización mediática, política, etc.
Judith Butler en Vida precaria, coloca la peligrosidad
de lo que son ”hoy” los discursos antisemitas, que en
realidad,habría que decir, discursos contra el Estado de Israel
o su política de Estado. El capítulo 4 del texto mencionado
comienza con una cita del presidente de Harvard Lawrence
Summers en 2002: “avivando el temor de que criticar a Israel
en esta época es exponerse a ser acusado de
antisemitismo”32. Los principales elementos que maneja
Summers, tiene que ver con elementos de índole económico,
por el asunto de suspender las inversiones en Israel: “su
preocupación local fue un petitorio redactado por
defensores de MIT y Harvard en contra de la actual
ocupación israelí y del tratamiento de los palestinos”33.
Butler discutirá este punto planteando como es que se
pueden tomar medidas enérgicas, cuando la que se está
planteando es una medida enérgica. Frente a esta arremetida
de determinado discurso que busca el antisemitismo por ser
crítico con la política del Estado de Israel, dice Judith Butler:
si pensamos que criticar la violencia de Israel o
demandar tácticas específicas que presionen
económicamente al Estado de Israel para que
modifique su política equivale a formar parte de un
“antisemitismo de hecho”, dejaremos de expresar

32BUTLER, Judith. Vida precaria. Trad. Fermín Rodríguez. Buenos Aires:


Ed. Paidós, 2009. Pp. 133-134.
33Idem. P. 134.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 237
nuestra oposición por miedo a ser identificados
como parte de una acción antisemita34.
Judith Butler se enmarca en la posibilidad de poder
pensar criticamente lo que sucede por ejemplo con el Estado
de Israel, y las consecuencias de antisemitismo que intenta
manifiesta Summers a través de su discurso. Si bien Butler es
crítica del Estado de Israel, habría que ver el alcance de la
crítica, si en realidad no hace más que legitimar determinadas
formas de poder por parte de determinados Estados de
occidente y de corporaciones fuertemente económicas.
Veamos uno de sus planteos: “El reclamo ejerce el derecho
democrático de expresar una crítica, y busca desde los
Estados Unidos y otros países presionar económicamente
para que Israel ponga en práctica los derechos de los
palestinos, privados de lo contrario de sus condiciones
básicas de autodeterminación”35.
Luego de que Butler se manifiesta críticamente
frente a la política de ocupación y destrucción por parte del
estado de Israel, su poderío militar, etc. Esto es, que la
definición de antisemitismo manejada en este caso por
Summers y que la hemos escuchado muchas veces tiene que
ver con un posicionamiento político en función de la cual se
busca, “callar al otro” a través de llamarlo antisemita, porque
mantiene una posición crítica frente a las acciones políticas
del Estado de Israel. Butler al situarse desde una posición
crítica, marca la separación entre lo que puede ser una ofensa
a “los judíos” y lo que es la necesidad de pensar críticamente
la política desarrollada por el Estado, así como también
plantea la necesidad de una autodeterminación de Palestina.
En el texto se menciona haber recibido una carta de grupos
y colectivos que militan en Israel y en contra de la posición
de ofensiva del Estado, intentando tejer lazos con los

34Idem. P. 135.
35Idem. P. 148.
238 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

palestinos que sufren por la ocupación36.


Butler se manifiesta en el marco de una crítica al
Estado actual de Israel con su política militar, y manifiesta la
necesidad de un Estado democrático, igualitario, así como la
necesidad de autodeterminación de Palestina. Reconoce la
resistencia que vienen llevando ciertos grupos y en ese
sentido introduce la carta de Rottenberg en el capítulo. Sin
embargo, las medidas que plantea de impacto económico
sobre Israel ¿en qué sentido podrían ser realizables?, y en
segundo lugar: ¿sobre quién repercutirían esas medias? Está
bien que marque una voz que se distingue por su aspecto
crítico frente a la política devastadora del Estado de Israel
hacia Palestina, más aún, el combatir cierta forma de
atomización ideológica y psicológica que buscan
determinadas posiciones políticas pro-política del Estado de
Israel. Contrarrestar la repetición de Auschwitz implica este
tipo deposiciones críticas frente a los que gobiernan,hacen y
deshacen con total impunidad, y además mediante distintas
formas mediáticas intentan callar los gritos de la resistencia.
O el impacto económico que sufrió Chile previo al golpe de
Estado generado por el intervencionismo imperialista y las
burguesías locales aliadas en la desestabilización.
Una referencia a lo sucedido en Uruguay post-
dictadura desde la dictadura y desde su posibilidad. En un
artículo del profesor Carlos Demasi, se muestra la historia de
“la teoría de los dos demonios37” En primer lugar, veamos la
definición que da el profesor Demasi a efectos e que sea
comprendido un hecho que ocurrió en Uruguay en términos

36Verespecialmente carta de Cathering Rottenberg en: BUTLER, Judith.


Vida precaria. Trad. Fermín Rodríguez. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2009.
Pp. 150-152.
37Ver DEMASI, Carlos. “Un repaso de la teoría de los dos demonios” en:
MARCHESI, Aldo; MARKARIAN, Vania; RICO, Álvaro; YAFFÉ,
Jaime: (compiladores). El presente de la dictadura. Estudios y reflexiones a 30
años del golpe de Estado en Uruguay. Montevideo: Ediciones Trilce, 2004. pp.
67-74.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 239

particulares, y cómo fuimos asimilando determinadas


nociones de nuestra historia reciente. Vayamos a la
definición:
La “teoría de los dos demonios” es una explicación
ya clásica del quiebre de las instituciones. Según se
señala, la sociedad fue víctima del embate de dos
fuerzas antagónicas, la guerrilla y el poder militar; y
en el contexto de esa lucha, el golpe de Estado fue
un resultado inevitable. La explicación ha adquirido
formas diferentes y tiene circulación tanto entre la
academia como entre la opinión pública, se la
encuentra en discursos presidenciales, reportajes a ex
guerrilleros y análisis de cientistas políticos, y
también se la puede escuchar en la feria o en las
charlas de café. Tanta unanimidad puede resultar
sospechosa, habida cuenta de que sólo en muy
escasas oportunidades aparecen acuerdos entre
emisores tan diversos38.
Independientemente de conocer o no la historia
reciente del Uruguay, lo que podemos observar en este
artículo es más allá de su valor, es la “preocupación”, o
mejor, la ocupación de una problemática, en la cual, parece
traslucirse en términos de sospechar de una realidad
multiplicada socialmente. Si bien el artículo ocupa un lugar
particular, entre otros que vienen a dar cuenta de
determinados aspectos que tienen que ver con una
conmemoración de un período nefasto de nuestro país. Está
la inquietud de dar cuenta de una realidad que dista de ella
misma. El artículo comienza con la definición que
señalamos, y luego se divide en tres partes: la primera parte
plantea los antecedentes, aquí el profesor Demasi da cuenta
de que “la teoría de los dos demonios” es totalmente
inexistente al momento de la disolución de las Cámaras por
parte de Bordaberry el 27 de junio de 1973: “la teoría de los

38Idem. P. 67.
240 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

dos demonios” “era una explicación imposible de sostener


en 1973: no la menciona Bordaberry como explicación en su
discurso televisivo, anunciando la disolución de las Cámaras,
ni la invocan las organizaciones populares y políticas que
plantearon la resistencia”39. Demasi manifiesta además en
esta reconstrucción que políticos de la derecha uruguaya,
manifestaban el golpe como una actitud personal de
Bordaberry de conducir a los militares hacia eso, pero en
ningún momento se manifiesta la cuestión de la guerrilla40.
Así se desarrolla la primera parte de este artículo en la cual
Demasi manifiesta la clara ausencia de la “teoría de los dos
demonios” en el golpe de estado41.
En la segunda parte del artículo “La instalación”,
Demasi dará cuenta de cuando se comienza a instalar esta
explicación. Veamos su aparición:
La “teoría de los dos demonios” aparece como un
corolario natural de la “Doctrina de la Seguridad
Nacional”. Ésta plantea la existencia de una guerra
permanente que se desarrolla en el seno de la
sociedad, que enfrenta por un lado a las fuerzas de la
“antipatria” impulsadas por el marxismo
internacional, y por otro a las Fuerzas Armadas,
encarnación del “ser nacional”42.
En ese marco de quiebre total con la clase política
por haber sido “cómplice” de la posibilidad para la sedición

39Ibidem. Allí Demasi además da cuenta de que la guerrilla estaba


desmantelada desde el año anterior y da cuenta de un documento de un
libro editado restringidamente por las fuerzas armadas: “Siete meses de
lucha anti-subversiva”(...) y los discursos militares apuntaban a la
corrupción política. Pp. 67-68.
40Idem.. 68. Demasi hace referencias claras a los dichos de Sanguinetti a
un diario argentino.
41Idem. P. 69.
42Ibidem. “Surgida con la destitución de Bordaberry (y cuando la ruptura
de los militares con la clase política era total)...”
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 241

es que se manifiesta según los análisis que viene


desarrollando Demasi la posibilidad de la teoría. Hará
mención al famoso debate televisivo en el marco del
plebicito de 1980 por la “continuidad” o no del régimen43.
Agrega que con la apertura democrática la teoría fue
cobrando más fuerza, pero, ¿cuáles son los motivos de tal
explicación?, ¿qué es lo que está oculto en esa manifestación
de presunta verdad que adquirió mucha fuerza en la
Democracia, y que como vimos la definición de la teoría se
repite en lugares y por sectores diferentes? Demasi clarificará
está serie de preguntas de la siguiente manera:
Desde su instauración, la explicación ha funcionado
también como un elemento de disciplinamiento
social en cuanto incluye una velada amenaza:
cualquier atisbo de demandas de la población son
inmediatamente demonizadas desde el Estado, que
identifica reclamos con “subversión” e invoca el
argumento de que la aparición de una representará
fatalmente la acción del otro, sin que el poder
político tenga la responsabilidad ni posibilidad de
acción44.
Sí en algo tenía razón Nietzsche es que la memoria
se marca a fuego dirá en La genealogía de la moral y Adorno
en Dialéctica negativa: “La libertad inteligible de los
individuos se ensalza a fin de que se pueda pedir más
fácilmente responsabilidades a los sujetos empíricos,
mantenerlos mejor embridados con la perspectiva de un
castigo metafísicamente justificado”45.

43Acerca del debate televisivo de 1980 de Tarigo y Pons Etcheverry con


el coronel Bolentini y el Dr. Viana Reyes:
El debate televisivo sobre la Reforma constitucional de 1980 se puede
ver por Internet.
44Idem. P. 70.
45ADORNO, Theodor. Dialéctica Negativa. Trad. Alfredo Brotons Muñoz.
Madrid: Ed. Akal, 2011. P. 202.
242 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Desde la restauración democrática, la explicación de “los dos


demonios” pasó a ser la versión oficial del gobierno,
remarcada por las palabras del Presidente Sanguinetti en su
discurso del 14 de abril de 1985 (transformado en
conmemoración de los “caídos en defensa de la
democracia”)46. En ese marco de reconciliación “entre
orientales” como viene manifestando Demasi según el
discurso de Sanguinetti, un poco más adelante, planteará que
“la etapa de instauración de la “teoría de los dos demonios”
coincidió con el debate sobre la amnistía, especialmente con
la que beneficiaría a los militares”47.
En la última parte d su artículo, Demasi comienza
mostrando dos párrafos del informe de la Comisión para la
paz 43 y 46,donde se atribuye la responsabilidad al Estado,
quedando la teoría de los dos demonios en la nada. Sin
embargo Demasi, termina mostrando dos discursos del año
2003 por parte del Ministro de Vivienda, en el que se
manifiesta la idea de “bien común” frente a lo que manifiesta
como “corporaciones”48. Demasi culmina su artículo
manifestando cierta disparidad a la hora de la elaboración del
discurso, de la siguiente manera:
Tal vez no parecería sino un discurso más, si no fuera
porque cuando el poder político ha invocado la
necesidad de “contener las demandas de las
corporaciones” siempre ha estado pensando en la
aspiración de reprimir los reclamos sindicales; y, en
cambio, cuando (aun recientemente), se han
escuchado las protestas de los militares, no se
escucha el ya clásico sonsonete de que se trata de

46Ed. cit. P. 71.


47Idem. P. 72.
48Ibidem. P. 72.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 243
quienes “tienen ojos en la nuca” o que “la sociedad
uruguaya ya votó por la paz”49.
Hasta aquí, nuestra intención era mostrar a partir del
artículo del profesor Carlos Demasi, no sólo como es posible
la producción de determinadas verdades, sino las
consecuencias que eso ha tenido en el entramado social, pero
al mismo tiempo, destacar, tanto en J. Butler cono en el
profesor Demasi, de mostrarnos líneas de reflexión para el
desarrollo de nuestra resistencia, a partir de la “crítica” y el
esclarecimiento.

IV- Consideraciones finales.

“Los animales asombrados,


pasaron su mirada del cerdo al hombre,
y del hombre al cerdo; y, nuevamente,
del cerdo al hombre; pero ya era imposible
distinguir quién era uno y quién era otro”.
George Orwell- Rebelión en la Granja.

En estos tiempos, como otrora, es imprescindible


recordar aquel mensaje de Ernesto Che Guevara a sus hijos,
que en definitiva somos todos nosotros que nos indignamos
frente a todos los actos de injusticia que se manifiestan en la
actualidad como formas encubiertas, de lo que ya otros
denominaron “microfascismos”: “Sobre todo, sean siempre
capaces de sentir en lo más hondo cualquier injusticia cometida contra
cualquiera en cualquier parte del mundo. Es la cualidad más linda de
un revolucionario”50.
La desaparición de 43 estudiantes en Ayotzinapa el
año pasado hacen cada vez más presente nuestros motivos
de indignación, de resistencia y de “no olvido de estos

49Idem. Pp. 73-74.


50Carta del Che a sus hijos, se puede encontrar en:
http://bvs.sld.cu/revistas/his/vol_1_98/his13198.htm
244 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

acontecimientos”. “Vivos se los llevaron, vivos los


queremos” son el grito de combate que profieren las
pancartas en cada movilización a lo largo y ancho de nuestra
América. Las recientes muertes en E.E.U.U. de corte racial,
los naufragios con miles de muertos en las costas del mar
Mediterráneo, etc. La reciente victoria obtenida en las
últimas elecciones en Uruguay en 2014 por “no bajar la edad
de imputabilidad” ha dado como resultado la necesidad de
una resistencia frente al discurso más conservador de
nuestras sociedades manifestando como solución a la in-
seguridad, la reducción de la minoría de edad de nuestros
jóvenes, cuando el problema dista de ser ese. Elementos
políticos en Uruguay exigen la reflexión, el pedido de
renuncia del actual Ministro de Defensa por parte de
organizaciones de DDHH; las respuestas de la cúpula militar
frente a las investigaciones a partir del año 1968 con las
“medidas prontas de seguridad” y las violaciones de los
derechos humanos del gobierno de Pacheco, etc, invitan a
reflexionar, sobre el asunto que el profesor Demasi en el
artículo que presentamos, manifestó hace más de diez años.
Sí la esperanza o el pesimismo de Adorno era que
“Auschwitz no se repita”, vemos constantemente como
“Auschwitz se sigue repitiendo”, también podemos decir,
como señalamos en los ejemplos de Butler y Demasi, aquello
que señaló Foucault en Historia de la sexualidad I, La
voluntad de saber: “Que donde hay poder hay resistencia51...”

Referencias bibliográficas

ADORNO, Theodor. Crítica de la cultura y sociedad I. Trad.


Jorge Navarro Pérez. Madrid: Editorial Akal, 2008.
___________ Dialéctica negativa. Trad. Alfredo Brotons

51FOUCAULT, M. Historia de la sexualidad. La voluntad de saber. Trad.


Ulises Guiñazú. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2008.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 245

Muñoz. Madrid: Editorial Akal, 2011.


___________ “La educación después de Auschwitz” en Consignas.
Trad. Ramón Bilbao. Buenos Aires: Amorrortu
editores, 1973.
ADORNO, Theodor. & HORKHEIMER, Max. Dialéctica de
la Ilustración. Trad. Juan José Sánchez. Madrid: Editorial
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FOUCAULT, Michel. Sobre la Ilustración. Madrid: Editorial
Tecnos, 2011.
JAMESON, Fredric. Marxismo tardío. Adorno y la persistencia de
la dialéctica. Trad. María Julia De Ruschi. Buenos Aires:
Fondo de Cultura Económica, 2010.
LEVI, Primo. Informe sobre Auschwitz. Trad. Ana Nuño.
Barcelona: Reverso Ediciones, 2005.
Brevíssima reflexão para pensar
a partir da Vida Danificada
Tiago dos Santos Rodrigues1

Pensar incomoda como andar à chuva


Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Fernando Pessoa.

Fosse tudo igual, não haveria pensamento. Talvez


isso explique o tédio da contemporaneidade. O mundo é
cada vez mais monocromático. Cada vez mais ele se traduz
em tantos e tantos tons de cinza. Que a diferença nos faça
pensar é quase que uma obviedade. A caneta que sempre
encontro em cima da escrivaninha não me traz grandes
questões – houvesse de repente um cavalo, traria questões
enormes, de ordens ontológicas, metafísicas, físicas,
psicológicas. A diferença, o estranhamento, a quebra da
ordem esperada. Os gregos já percebiam isso quando diziam
que o filosofar começava com a admiração. Ora, a admiração
provém justamente da percepção de algo desigual ao nosso
entendimento. De algo que não coincide com ele. Do não-
idêntico.
O não-idêntico, isto é, o refratário à coincidência
com a totalidade, constituiu a fonte primeira de temática
filosófica para Theodor Adorno. Nem sempre como tema
no primeiro plano, mas sempre estando sub-repticiamente
presente em cada ato pensante do filósofo alemão, ainda que
a estética seja em muitos de seus textos a chave de

1Mestrando do programa de pós-graduação em Filosofia da Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 247

interpretação2, a própria arte é para Adorno um locus do não-


idêntico no hodierno identitário. Nesse breve artigo
analisaremos como o filósofo tratou do não-idêntico naquele
ponto que não somente para nós, mas pensamos que
também para Adorno se constituía o ponto nefrálgico da
não-identidade, o sofrimento humano.

Na história da filosofia causa-nos espanto o fato de


que o sofrimento tenha sido tema tão pouco levado em
consideração. Pode-se considerar que o sofrimento esteve
presente no pensamento epicurista, mas, a bem da verdade,
ele era ponto secundário, o que queriam os epicuristas era a
fuga deste e a permanência no prazer – os epicuristas citaram
o sofrimento, mas não se pré-ocuparam com ele. Esse modo
de abordá-lo, secundariamente, ainda está em Sêneca e talvez
mesmo em Espinosa. Mas podemos também nos permitir
fazer a seguinte leitura: que os antigos realmente se
questionavam quanto à dor e não quanto ao sofrimento
propriamente dito. Caio de uma árvore e quebro o braço,
tropeço na rua e ralo o joelho, uma abelha me pica ou um
cão me morde. A dor que provamos nessas ocasiões são
efeitos de causas, falta de cuidado ou azar. Elas são de
alguma forma explicáveis, compreensíveis, sua gênese é
identificável. A dor passa, finda – seja após o beijo na ferida
ou depois de casar. Quando se está com dor de algo, pode-
se de alguma forma vislumbrar o seu término. A dor, nestes
casos, é finita. E as cicatrizes muitas vezes se tornam motivo
de orgulho e satisfação por termos superado esta ou aquela
dor que ela indica. Experenciar uma dor é sentir um desvio
no curso das coisas em se tratando da ordem física-corporal

2 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Razões Plurais itinerários da racionalidade


ética no século XX; Sdorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004. pág. 95
248 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

ou psíquica. Deste modo, nos custa muita dor vencer tal e


tal coisa, conquistar aquilo outro, ou mesmo entender um
texto. Entendida assim, a dor faz parte. Ela é compreendida
numa ordenação que pode ser tida como natural, esperada
ou mesmo querida. O sadomasoquismo e a felicidade das
dores do parto a confirmam. O sofrimento, no entanto, é de
outra natureza. O sofrimento não tem retorno, não tem
repouso, não possui cicatriz porque justamente não cicatriza,
é ferida que permanece aberta e permanece doída. Isso
porque o sofrimento é de uma espécie especial de dor, que
não é provinda da causalidade, que não é um mero azar. O
sofrimento é a dor da injustiça, é uma dor injusta – sem causa
nem autoria. É a dor, por isso mesmo, irracional, a que não
tem justificação. Assim que quando se sofre, não se sofre
precisamente ou somente pelos nervos que se encontram
ativos, sofre-se a não adequação com a situação na qual se se
encontra – sofre-se pela desordem com a qual o mundo é
sacudido – sofre-se por um mundo ofendido.
Pensar o sofrimento, especificamente, leva-se a
pensar em outro dado que com ele é íntimo, a injustiça. Não
existe sofrimento ingênuo, todo o sofrimento, ao contrário,
ataca a ingenuidade. Sofrer é sentir o desacordo entre o que
deveria ser e o que está sendo. Por isso que os filósofos
costumeiramente não se detiveram no problema do
sofrimento, porque tampouco se questionaram quanto à
injustiça mesma. Se eles subsumiam a dor em seus
pensamentos é porque a dor, tão só, pode se prestar a isso
uma vez que ela pode ser entendida como momento nos
processos necessários à própria consecução da vida. O
problema se dá quando, na confusão de dor com sofrimento,
se entendeu que o sofrimento também se prestasse ao
mesmo tratamento, isto é, quando se pensou que o sofrer
pudesse ser compreendido, quer dizer, justificado numa
ordem natural das coisas.
Quem sabe isso se deva, e concomitantemente, ao
fato de que os homens – literalmente, homens, e esse dado
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 249

é algo relevante aqui tendo presente a suspeita – que


produziram filosofia não tivessem provado propriamente e
agudamente o sofrimento injusto e estivessem, não raros os
casos, em posições sociais privilegiadas nas sociedades em
que lhes couber viver. Mesmo que conforme a tese de Dussel
o pensamento filosófico tenha produzido originalidades nas
periferias3, essas originalidades não foram produzidas desde a
periferia em que se encontravam. O estar periférico
certamente fez pensar, mas nem por isso foi pensado.
Mas também não foi mera ingenuidade o que fez
com que o sofrimento passasse com voz muda nas páginas
filosóficas – este esquecimento, mais gritante, literalmente, que
qualquer esquecimento do ser, não foi bem um
esquecimento, foi um desprezo, maior que o do tempo,
assim cremos, diferentemente de Bergson4. Um desprezo
tornado o projeto da racionalidade totalizante. A razão
ocidental caracterizou-se por uma vontade de unificação, de
identificação, de fazer identidade, de fazer síntese. Isso tudo
significa a busca pelo repouso - no final das contas, algo
talvez não muito diferente da ataraxia estoica. A busca do
repouso é também a paixão pela coincidência, logo, pela não-
diferença. As filosofias da identidade, na busca pela auto
justificação, por sua afirmação, tiveram que no caminho do

3 Dussel se expressa nestes termos: “[...] a filosofia parece ter surgido


sempre na periferia, como necessidade de se pensar a si mesma perante
o centro e perante a exterioridade total, ou simplesmente diante do
futuro da libertação. Desde a periferia política, [...] porque necessitados
de exércitos do centro, apareceu o pensamento pré-socrático na atual
Turquia ou no sul da Itália e não na Grécia. O pensamento medieval
emerge das fronteiras do Império; os Padres gregos são periféricos, e da
mesma forma os latinos. Já no renascimento carolíngio, a renovação vem
da periférica Irlanda. Da periférica França surge um Descartes, e da
distante Königsberg irrompe Kant.” DUSSEL, Enrique. Filosofia da
Libertação. São Paulo: Edições Loyola, Editora UNIMEP, 1977. p.10.
4 “Nenhuma questão foi mais desprezada pelos filósofos que a do tempo
[...]”. BERGSON. Henri. Duração e Simultaneidade. São Paulo: Martins
Fontes Editora, 2006. pág. 2.
250 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

seu desenvolvimento depurar os vestígios daquilo que


poderia testemunhar contra a tranquilidade da coincidência.
Daquilo que desde a sua vivacidade fosse forte o suficiente
para resistir a aquela mesma identificação, que não se
prestasse à totalidade porque desbordante de qualquer uma,
porque mais real que qualquer outra realidade. O sofrimento
é o que, por excelência, testemunha contra qualquer
pretensão totalizante.

II

Materialidade. Adorno procura sempre salvar no


pensamento os momentos, diremos nós, cruentos do real.
Aqueles que passando pelo crivo do teste de fogo do
conceito, resistem a ele. É verdade que a evolução do
conceito, de sua força, correu no sentido de retirar deste e
do pensamento o que possuíam de familiaridade com
qualquer coisa que não fosse “espiritual”, que não fosse
produto, strictu senso, do espírito. O conceito, nascido para
tornar o mundo mais inteligível, para que o ser humano
pudesse ter acesso mais adequado e verdadeiro com o que o
circunda e com o que lhe habita, foi gradativamente
rechaçando o que restava de mundaneidade em si querendo
vir a ser per-si, como se não tivesse vindo, nascido, pró-vindo
justamente desse e para esse mundo que passou a
negligenciar. Mas o pensamento sempre será “de algo” porque
esto siempre le hurta un remanente inapresable en su totalidad.5 A
totalidade, o todo, é o não-verdadeiro, segundo a sua clássica
fórmula contra Hegel. Isso porque a totalidade é ilusão, a
totalidade é aquilo que para se afirmar atesta a sua falsidade,
totalidade possui limites, fronteira, e por isso mesmo é o
não-todo, não é o total, somente seria total se não houvesse
fronteira e se, de fato, fosso o tudo. Mas como encontra o

5RIUS, Mercè. T. W. Adorno: del sufrimiento a la verdad. Barcelona: Editora


Laia, 1985. pág. 80
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 251

que não se está dentro de si, como dá de face com a


exterioridade, a mera pretensão de totalidade testemunha-lhe
contra.
No entanto, o pensamento tende a capitular
perante a tentação identificadora do conceito que luta contra
as forças da natureza que resistem à essa mesma
conceptualização, à universalização da singularidade, ou
melhor dizendo, à decapitação da singularidade. É preciso
passar do pensamento à linguagem. Da marcha retilínea à
trama da história. “Cual o espíritu reclama la carne, así el
pensamiento remite al lenguage en toda su materialidad, pues
sólo ella es capaz de iluminar los tramos históricos
rebasados.”6
Adorno recupera nos conceitos o que a tradição
filosófica procurou extirpar, a sua construção histórica, a sua
dependência do concreto contra a sua aparência estritamente
formal.
Somente um saber que tem presente o valor
histórico conjuntural do objeto em sua relação com
os outros objetos consegue liberar a história no
objeto; atualização e concentração de algo já sabido
que transforma o saber. O conhecimento do objeto
em sua constelação é o conhecimento do processo
que ele acumula em si.7
O saber filosófico como constelação é um saber
anti-ideológico na medida em que não desconsidera os
processos pelos quais algo veio a ser o que é, em que não
suplanta as suas mais diversas relações. Na medida em que
mesmo não pretendendo ser um retrato da realidade,
tampouco procura lhe ser uma caricatura expondo somente

6RIUS, Mercè. T. W. Adorno: del sufrimiento a la verdad. Barcelona: Editora


Laia, 1985. pág. 82
7ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pag. 141.
252 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

o traço que poderia ser mais conveniente para estes ou


aqueles fins.
El pensamiento sólo puede concretarse merced a la
objetivación de su momento expressivo, eso es, la
reproducción de las experiencias históricas que laten en
su inconciente. Esta exigencia es cumplida por la
exposición [...]. En la exposición, el significado
conceptual se trasciende a sí mismo remontándose a
la expresividad originaria.8
Expressividade que se encontra na linguagem.
Como a linguagem se expressa na exposição verbal, isto é,
na verbalidade do verbo, na introdução de tempo, propõe-
se uma expressividade narrativa e não mais descritiva. Uma
expressividade, um modo de saber que não negligencie o
tempo, o tempo que há por detrás das coisas e que provém
das coisas – assim que Adorno introduz, aqui e ali, na sua
Dialética Negativa, uma fórmula simples, mas de
importância fundamental: ainda não. “Aquilo que poderia
ser diverso ainda não começou”9, diz ele. Mas um ainda-não
das possibilidades impossíveis, pois na descrição formal do
saber tradicional o ainda-não é ainda-não-descoberto, quer
dizer, é um já-é que ainda não está presente à consciência. É
um ainda crer na força cognoscente do sujeito que dá conta
de toda a realidade e de toda a contingência. Mas a
temporalidade de Adorno, o seu ainda-não, a sua
narratividade, a sua linguagem, a sua dialética negativa deixam
ser o objeto e o deixam falar ainda que a consciência não dê
conta do dizer que é dito. O pensamento positivo caça os
elefantes atrás do seu marfim até que não haja mais elefantes.
A dialética negativa deixa o cervo viver.

8RIUS, Mercè. T. W. Adorno: del sufrimiento a la verdad. Barcelona: Editora


Laia, 1985. pág. 88
9ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pag. 127
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 253

Linguagem supõe, assim como o tempo, a


coparticipação. Não existe linguagem unilateral, esta é
violência de um sobre o outro que é calado, ou melhor,
emudecido. “En canbio, la dialéctica pone a cada palabra en
relación con las otras y con el todo”.10 A linguagem é a recusa
à violência, à essa violência primordial, a de não dar ouvidos
a outrem.

III

Quem fala em flor não diz


tudo.
Quem me fala em dor diz
demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.
Ferreira Gullar

Que uma situação material como o sofrimento seja


a condição para a veracidade da verdade soa estranho desde
que Descartes rejeitou a realidade externa e as sensações
como fontes seguras do conhecimento nas suas Meditações.
Para Adorno, ao contrário, na materialidade do sofrer, na sua
ambiguidade mesma provinda do seu caráter pontualmente
subjetivo e devedora da animalidade que o humano vive,
habita a territorialidade do saber. Que o saber seja teorético,
Adorno como nenhum outro o sabe; na sua Dialética
Negativa realiza uma apologia da teoria, da especulação e
denuncia a renúncia da reflexão em favor da prática11. Mas
também sabe que a revolta da consciência contra a natureza,
quer dizer, a pretensão de dominação desta, transforma-se

10RIUS, Mercè. T. W. Adorno: del sufrimiento a la verdad. Barcelona: Editora


Laia, 1985. pág. 86
11ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pag. 22.
254 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

em subjugação a ela, em retorno à barbárie; este foi o


trabalho realizado ao lado de Horkheimer na Dialética do
Esclarecimento. Esse é o grande paradoxo, a vontade de
dominação da consciência por sobre o objeto revirou numa
sujeição do sujeito ao objeto que pretensamente gostaria de
dominar, e isso porque o pensamento negou o seu momento
material, isto é, a sua própria gênese, a de que todo
pensamento é pensamento de algo, de algo que não é
pensamento; assim sendo, o pensamento deve o seu próprio
pensar, o seu próprio ser à materialidade do mundo, a algo
que não é o si-mesmo, ao que não lhe é idêntico. O não-
idêntico é a condição do pensar – o objeto também
determina o pensamento. A prática do pensamento veio
vindo numa pretensão cada vez maior de dar ao objeto as
suas próprias determinações, de dizer a ele o que ele deveria
ser, de doar-lhe todo o sentido, como se o objeto já não fosse
algo antes mesmo que o pensamento chegasse a ele.
Percebeu-se que essa terra não dava pra batata, mas se dispôs
de todos os modos para que ela o desse. Viu-se que tal
legume não crescia em tal estação, mas violentou-se de todos
os modos o legume até que ele crescesse em todas as
estações. Esta é a adequação da natureza com o conceito,
com a espontaneidade da liberdade do espírito humano que
se recusa a pôr de suspenso os seus poderes. É certo que esse
modo de proceder trouxe avanços técnico-científicos, mas o
ser humano tem pagado o preço na sua alienação e em
algumas novas doenças. A realidade contraditória do real não
se dobra aos conceitos só porque estes o queiram – querer
aqui não é poder. E não se violenta o objeto impunemente.
E é justamente pelo respeito à alteridade do objeto que
Adorno desenvolve a sua dialética negativa. A dialética
negativa busca compreender o predomínio do objeto12. Mais

12TIBURI, Márcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor


Adorno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. pág. 75.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 255

ainda, é ver com os olhos do objeto13, é deixar que ele fale, e


se acaso o objeto, o não idêntico, estiver incapacitado de
gesticular as suas próprias palavras porque quebrantado pelo
peso da dor injusta, é tarefa do pensamento e da dialética dar
voz.
Lá onde o pensamento se projeta para além daquilo
a que, resistindo, ele está ligado, acha-se a sua
liberdade. Essa segue o ímpeto expressivo do sujeito.
A necessidade de dar voz ao sofrimento é condição
de toda a verdade. Pois sofrimento é objetividade
que pesa sobre o sujeito; aquilo que ele experimenta
como seu elemento mais subjetivo, sua expressão, é
objetivamente mediado.14
Aqui Adorno introduz outro elemento estranho à
tradição filosófica, a de que na resistência do objeto se
encontra a liberdade mesma do pensamento. De que nesse
dar voz ao sofrimento do outro se encontre – se nos for lícito
dizer – a vocação do pensamento. O pensamento é chamado
a emprestar a sua voz à alteridade, e não a impor a sua palavra
sobre o outro.
Não se deve filosofar sobre o concreto, e sim
muito mais a partir dele15. Assim, Adorno escreve a sua ética
com reflexões a partir da vida danificada. A vida sofrida,
maltratada, esculachada16 é o ponto de partida do pensamento.

13 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Razões Plurais itinerários da racionalidade


ética no século XX; Adorno, Bergson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004. pág. 105.
14ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pag. 24.
15ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 36.
16O esculacho, do nosso ponto de vista, é a experiência própria do
excluído brasileiro. Ser esculachado pela polícia, pelos moradores dos
bairros nobres, pelo poder público, nos ônibus lotados, nos hospitais
sem leitos, nas cidades sem saneamento e etc. tornou-se há muito o
constitutum do morador de periferia. O esculacho carrega consigo, ao
256 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

O pensamento e a filosofia não devem transformar-se em


discurso que se retroalimenta da desgraça alheia numa
espécie de sadomasoquismo intelectual – como na critica à
militância política progressista, uma coisa é viver para os
pobres, outra, viver dos pobres –, mas devem em todo o
movimento que realizam levar em consideração essa mesma
vida danificada, que antes do conceito querer entrar em
contato com ela, constitui-se numa realidade e numa
violência – devem tê-la como horizonte.
Assim como o terremoto de Lisboa foi decisivo
para que a teodiceia leibniziana fosse posta em questão por
Volteire, para Adorno Auschwitz coloca em suspenso a
racionalidade iluminista e o seu confiante otimismo de estar
numa marcha certa e decisiva rumo ao progresso. Como
pode que o projeto que prometera à humanidade a sua
maioridade, sua emancipação, sua libertação da vida anímica
e mítica resplandeça agora sobre o signo de uma calamidade
triunfal?17 Os campos de concentração, a morte
industrialmente administrada, despertaram – ou ao menos,
deveriam – a modernidade do seu sono dogmático: de que a
razão pura e o espírito absoluto tivessem em si o
determinismo necessário para que o ser humano alcançasse
de uma vez por todas o seu telos, uma felicidade universal.
Em decorrência de uma era dos extremos e das
experiências totalitárias, o pensamento niilista, assim como
o sentimento niilista, tornou-se até mesmo pop no século
XX – o pôr em questão a arquitetônica dos valores, a
superficialidade das relações de dominação, os costumes
petrificados. Mas esse sentimento cético provou-se também
leviano no trato com a realidade ao afirmar que tudo e em todos

mesmo tempo, um escárnio e uma indiferença. Uma indiferença pela não


pré-ocupação e um escárnio por uma prazer masoquista em tornar
conhecido que não se está nem aí.
17 Cf. ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. pág. 17
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 257

os modos poderia ser relativo. O ceticismo, é verdade, nunca


saiu de moda. Argumentos céticos povoam a filosofia desde
o seu nascimento, e métodos céticos foram, por vezes,
usados para fundamentarem posições com caráter absoluto
– a dúvida cartesiana e o seu ego cogito. Ainda assim, a
dúvida fundamental, a que não cessa de se repetir em
qualquer escola filosófica permanece: existe alguma verdade
objetiva? Existe algo que se possa chamar de a verdade? Ou
estaremos permanentemente a mercê das vontades de
verdade.
Por mais que possa ter assumido ares progressivos,
o momento reacionário foi sempre associado ao
relativismo, já na sofística enquanto disponibilidade
para os interesses mais fortes.18
Por isso o relativismo é irmão do absolutismo19,
pois, ao deixar a razão livre de ter qualquer compromisso
com a verdade, faz com que aquela, a razão, metamorfoseia-
se em força do mais forte, em razão do mais forte. Os fracos
nada lhe poderiam objetar uma vez que não haveria objeção
real a ser feita. Onde tudo é relativo, o nada se torna absoluto
e a violência sobre o outro é permissível, afinal, não é nada.
O relativismo é a recusa de se colocar em choque com o
objeto e com o outro. É a recusa de se incomodar, em outras
palavras, de ter que pensar, de ter que se demorar
pacientemente sobre o objeto e de se questionar
verdadeiramente sobre questões que a realidade impõe. O
relativismo, ao modo radical, a suposição de que tudo possa
não ser, é uma versão contemporânea do cogito cartesiano –
há dúvida sobre o outro – incluso seu sofrimento –, mas
certeza sobre si.

18ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 39.
19Cf. ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 37.
258 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

Adorno certamente não opta por modelos


absolutistas de filosofias e de verdades, mas, como
racionalista que é, sabe que a procura pela expressividade da
verdade é tarefa filosófica.
Cabe àqueles que, em sua formação espiritual,
tiveram a felicidade imerecida de não se adaptar
completamente às normas vigentes – uma felicidade
que eles muito frequentemente perderam em sua
relação com o mundo circundante -, expor com um
esforço moral, por assim dizer por procuração,
aquilo que a maioria daqueles em favor dos quais eles
o dizem não conseguem ver ou se proíbem por
respeito à realidade.20
O que não significa necessariamente apostar no
dogmatismo, mas, pelo contrário, na pluralidade das
manifestações da verdade. O que ele defende é uma
expressão da verdade, não uma definição positiva dela.
Porque “la verdade como categoria epistemológica no sólo
tiene uma ascendência antroplológica (instinto-expresión);
posee también connotaciones éticas.”21 Assim, “só há uma
expressão para a verdade, o pensamento que nega a
injustiça.”22 No entanto, essa negação da negação não se
torna por isso positividade. Que a negação da negação venha
a dar em positividade é a quintessência das filosofias da
identidade23. É a redução a todas as esferas ao modelo
matemático do menos com menos dá mais. É se usar do
negativo com artimanha, trazendo-o de volta ao bojo das

20ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 43
21RIUS, Mercè. T. W. Adorno: del sufrimiento a la verdad. Barcelona: Editora
Laia, 1985. pág. 91.
22 Cf. ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. pág. 181.
23Cf. ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 137.
Ricardo Timm de Souza, Jair Tauchen (Orgs.) 259

equivalências e relações de troca, princípio fundamental da


ideologia capitalista. Negação da negação dando em
positividade é fazer com que a questão da justiça seja um
cálculo e a injustiça um erro na equação, um sopro de
ignorância. Deste modo que quando a Veja e a Globo
veiculam uma notícia falsa, editam um debate claramente em
favor de um dos candidatos ou dão apoio a regimes de
exceção, não reconheçam que estejam realizando atos
moralmente censuráveis, isto é, participando da injustiça,
mesmo que o discurso que ofereçam defenda o poder e não
a impotência – erramos sem querer, desculpam-se eles. No seu
sem querer querendo, responsabilizam-se pela ignorância e
não por má-fé com o público. Negar a injustiça feita não é já
fazer justiça. Porque para se fazer justiça à justiça não se
pode supor que haja representação desta, isto é, uma
positividade dela. Uma consciência que inserisse entre ela e
aquilo que pensa um terceiro elemento, as imagens,
reproduziria sem perceber o idealismo; um corpo de
representações substituiria o objeto do conhecimento, e o
arbítrio de tais representações é o arbítrio daqueles que
decretam24. Foi o erro grotesco cometido, por exemplo, na
União Soviética, onde a despeito de uma ditadura do
proletariado, de uma utopia que tivesse já chegado, se
perpetuou instituições burocráticas que insultavam a mesma
teoria que essas instituições carregavam na boca na medida
que ao invés de transformar as consciências, a subjugavam25.
A negatividade é a potência da dialética. Uma vez positivada
uma realidade, ela se tornará assassina, pois procurará
manter-se positiva, não quererá ser negada. A positividade
não admite a crítica. Coincidir a justiça com qualquer dado

24ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 176.
25Cf. ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 174.
260 Adorno e a dialética negativa: leituras contemporâneas

real, com qualquer ser-aí, é recair na identidade, no mito, e


identidade é a forma originária da ideologia26.

Referências

ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio


Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009.
_______. Mínima Moralia. Trad. Gabriel Cohn. Rio de
Janeiro: Beco do Açougue, 2008.
_______. HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
BERGSON. Henri. Duração e Simultaneidade. São Paulo:
Martins Fontes Editora, 2006.
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação. São Paulo: Edições
Loyola, Editora UNIMEP, 1977.
RIUS, Mercè. T. W. Adorno: del sufrimiento a la verdad.
Barcelona: Editora Laia, 1985.
SOUZA, Ricardo Timm de. Razões Plurais itinerários da
racionalidade ética no século XX; Adorno, Bergson, Derrida,
Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
TIBURI, Márcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de
Theodor Adorno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

26ADORNO. T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. pág. 129.

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