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CNIS ats ace a coe LTTE N eae ec CCST oun ete eumeon latte ese eaten) que o aceite. ECR ora Ca ae age etc ES Pee ee Ee DCE Isa iam cea tc tt ae cn Tent Or Pante he te manuais, actividade onde é excepcionalmente bom e inventivo. UEC EMI at CMU On (at etc Taner m ie Mn teeta € a fazer bricolage com o seu avo Léon. SS Tu uuu oun Meo Tecate ae Bcc « Um estupendo romance para adolescentes.»» enna He een 39 QUILOS DE ESPERANCA 35 QUILOS DE ESPERANCA Anna Gavalda Tredgdo Augusto Afonso dos Reis Asrupamento Bscolas Dr. Fort. de Almeida ‘Anna Gavalda nasceu em 1970 «em Boulogne-Bilancourt. E professora de frances e autora de Queria Ter Alguém a Minha Espera Num Sitio Qualquer, Grande Prémio RTL LIRE 2000 edo romance Eu Amava-a ‘que estéa ser adaptado ao cinema, ‘A sua obra esta traduzida em varios idiomas. Biblioteca Escola Sede Publcagbes Dom Quirote Ecco aris Rus hone ira, n2 6-2 1050-24 Lisboa «Portugal Reservados todos os direitos de acord com alegilagao em vigor ‘Tul original 35 Klos dEspoir 6 2002, Bayard Eaitons Jeunesse {© 2005, Publicagbes Dom Quixote Design {Atelier Henrique Cyatte com 3 colaboragao de Rite Miia: Revisdo | a bya 12 ecigéo I Margo de 2005, Pagina ilo de Carvalho eps legal. 22427605, Impresso eacabamento | Guide ~ Arts Grafices ISBN I gr220a6009 ‘Ao meu avd e a Marie Tondelier Detesto a escola. @ coisa que mais odeio no mundo. E mais ainda... Ela dé cabo da minha vida. nhava e inventava mil e uma aventuras para contar "© meu cio de peluche adorado. A minha ‘me que eu passava horas a fio a tagarélar e a luo portanto que era feliz. tol 235 Oils de pean [sn Corte Parece que nessa manha parti muito contente. Os meus pais devem ter pasado as férias a encher-me a cabega com isso: «Tens muita sorte, vais para a escola como os grandes...»; «Ollha-me s6 para esta pasta novi- nha, to gira! E para ires & escola!» e nha nha nha nha nha nha... Parece que no chorei. (Eu sou curioso, creio que tinha vontade de ver quais, eram os brinquedos e as pegas de Lego que iria encon- trar na escola...) Dizem que vinha encantado e comi bem, quando voltei a casa 4 hora do almogo, e que vol- tei para o meu quarto a contar tudo ao Grodoudou. Pois &, se eu soubesse, teria saboreado melhor esses tiltimos minutos de felicidade, pois logo a seguir a minha vida comegou a correr mal. — Vamos ~ disse a minha mie. —Aonde? ~ Para a escola, claro! — Nao quero. — Nao qué?! ~ Nao quero ir mais. ~ Ora essa... E porqué? : ~ Porque jé fui, vi como era e nao me interessa. Tenho muitas coisas para fazer aqui no meu quaito. Disse a0 Grodoudow que the ia construir uma maquina especial para detectar todos os ossos que estilo enterra- dos debaixo da minha cama, por isso nao tenho tempo para ir escola. A minha mie ajoelhou-se e eu abanei a cabeca. Ela insistiu e eu comecei a chorar. 3 Qos porns Ame Gavel Ela levantou-me ¢ eu comecei a berrar. E cla deu-me uma bofetada. Era a primeira da-minha vida. Agrupamento Fscolas, Pois era. Dt. Fort. de Almeida Era a escola. hs Era o principio do pesadelo, fasd Esta hist6ria, ouvi-a contar os meus pais mais de mil vezes aos amigos, as educadoras, aos professores, 08 psicdlogos, aos ortofonistas e a assistente social. Ede cada vez que a toro a ouvir lembro-me logo que acabei por nunca ter construido o detector de ossos ao Grodoudou. Agora tenho treze anos e estou no 5® ano. Esté bem, eu sei, ha qualquer coisa que nao esté certa, Explico ja, no vale a pena contarem pelos dedos. Chumbei duas vezes: na 2° classe e no 52 ano. Cada vez que se fala de escola 14 em casa, nfo é dificil adivinhar, é um drama... A minha mae chora e © meu pai ralha, ou entao € ao contrario, é a minha mie que ralha ¢ 0 meu pai fica calado. Vé-los assim torna-me infeliz, mas que posso fazer? Que Ihes posso dizer nessas situages? Nada. Nao posso dizer nada, Porque se abro a boca ainda € pior. Sé hé uma coisa que eles sabem repetir como papagaios: «Estudal» «Estuda!» «Estuda!» «Estudal» «Estudal» bal 25 cls eer Ame Cova Esta bem, j4 percebi. Nao sou assim tao parvo como isso. Gostaria muito de estudar; mas o problema € que iio consigo. Tudo o que se passa na escola, para mim, € como se fosse chinés. Entra-me por um ouvido e sai- -me por outro. Tém-me levado a milhares de médicos, dos olhos, das orelhas e até do cérebro. E a conclusio de todo este tempo perdido é a de que eu tenho um problema de concentragao. Pudera! Sei muito bem o que tenho, bastava perguntarem-me. Problemas? Nao tenho nenhum. E apenas a escola que ndo me inte- ressa. Nao me interessa. Ponto final. O Ginico ano em que fui feliz na escola, foi no infan- tério com uma educadora que se chamava Marie. A ela, jamais a esquecerei. Quanto mais penso nisso, mais tenho a certeza de que Marie se tomou educadora de infancia para poder continuar a fazer aquilo de que mais gostava na vida, isto é, pequenos trabalhos, criar e construir coisas, Fiquei logo a gostar dela. Desde a manha do primeiro dia. Ela propria fazia a sua roupa, tricotava as suas cami- solas e inventava os seus colares, brincos e anéis. Nao havia um tinico dia em que nao levéssemos qualquer coisa para casa: um ourigo em pasta de papel, um gato feito de uma garrafa de leite, um rato de uma casca de noz, mobiles, desenhos, pinturas, colagens... Era uma daquelas educadoras que nao ficava & espera do Dia da Mie para deitar mos 8 obra. Dizia que um dia ganho era um dia em que realizassemos qualquer coisa. Quando penso nisto, acho que este ano de felicidade também estd na origem de todas as minhas tristezas, pois foi 35 Guts espera Ata Gove a partir desse momento que compreendi uma coisa muito simples: no mundo nao hé nada que me inte- resse mais do que as minhas préprias mos e aquilo que elas podem construir. Para terminar de falar de Marie nao posso deixar de dizer o que Ihe devo. Devo-lhe um curso prepa- ratorio bastante oportuno. Porque ela compreendeu perfeitamente com quem estava metida. Ela sabia que eu chorava facilmente quando se tratava de escre- ver o meu nome, que eu no fixava nada e que era uma tragédia para mim trautear uma cantilena. No fim do ano, no tltimo dia, fui despedis-me dela. Tinha um n6 na garganta e custava-me falar. Entreguei-lhe © meu presente, uma bela caixa para pér lipis com uma gavetinha para os clipes, outra para pioneses, um lugar para a borracha e tudo. Passei horas a decoré-lae a acabé-la. Vi muito bem que ela tinha gostado e estava tGo emocionada como eu. Disse-me: = Também tenho uma prenda para ti, Grégoire... Era um livro grande. Depois continuou: —No préximo ano, quando estiveres na classe dos grandes, com a professora Daret, tens de te aplicar bas- ante... Sabes porqué? Abanei a cabega. ~ Para poderes ler tudo o que esse livro tra: Chegado a casa, pedi a minha mae que me lesse o titulo do livro. Ela pés aquele livro grande em cima dos joelhos e disse: ~ 1000 Actividades para Maos Pequenas. Estou mesmo a ver, desarrumagao a vista! al 1 au de pera [Aone Coal Detestei a professora Daret. Detestei o som da vor dela, a sua maneira de sere aquela mania horrorosa de ter sempre meninos preferidos. No entanto aprendi a ler porque queria construir o hipopétamo com emba- lagens de ovos da pagina 124. No meu boletim de final da pré-escolar, Marie escre- veu: «Este rapaz tem a cabega em forma de coador, dedos de fada e um grande coragio. Tem de se conseguir fazer qualquer coisa dele.» Foi a primeira e a ultima vez da minha vida em que um membro do ensino oficial me tratou com atengao. eee De qualquer maneira, conhego muitos que no gos- tam dela. Vocés, por exemplo. Se vos perguntarem? «Gostam da escola?» Abanardo a cabeca e, evidente- mente, responderdo que nfo. Sé os lambe-botas que dizem sim a tudo ou entio aqueles que sdo tio bons que se divertem por ir todas as manhiis testar as suas capacidades. Sem contar esses... quem gosta verdadei- ramente da escola? Ninguém. E quem a detesta ver dadeiramente? Também nao so muitos. Sim. Aqueles como eu, a quem chamam cébulas e que tém sempre dores de barriga. Eu acordo, pelo menos, uma hora antes do desper- tador tocar e durante uma hora a minha barriga no péra de inchar... Quando chega o momento de sair 3 lor de eae Aone Govaia do meu beliche, sinto tal enjoo que tenho a impres- sao de estar num barco no alto mar. © pequeno- -almogo é um suplicio. Na verdade nao consigo engolit nada, mas, como a minha mie esta sempre atrés de mim, acabo por comer umas bolachas, No autocarro a minha dor de barriga transforma-se numa bola dura. Se encontrar colegas e falarmos de Zelda, por exemplo, a coisa melhora ¢ a bola diminui, mas se for sozinho ela comega a asfixiar-me. No entanto o pior de tudo é quand entro no recinto. O cheiro da escola poe-me doente. Os anos passam e os lugares mudam, mas o cheiro é 0 mesmo. Um cheiro de giz misturado com ténis velhos agarra-se-me na garganta e tenho von- tade de vomitar. A bola comega a desinchar por volta das qua- tro horas e desaparece completamente quando tomo a abrir a porta do meu quarto. Ela sé volta a aparecet quando os meus pais chegam e comegam a mexer na minha pasta para verificar os meus cadernos, os trabalhos de casa e a fazer perguntas acerca de como se passou o dia. No entanto, nessas alturas, ela nao fica to grande porque agora j4 me habituei a essas crises, Enfim, no exactamente. Estou a mentir... Nao me dou mesmo nada com essas crises. As crises sucedem- -se e eu ndo me consigo habituar a elas. Sofro muito com isso. Como os meus pais também nao se dio as mil maravilhas, todos os dias precisam de discutir; eu € as minhas notas fracas servem-lhes de pretexto. E sempre a mesma coisa, atiram as culpas um ao outro. 1 fe 35 Ql eEperaa Ane Goat A minha mie acusa 0 meu pai de nunca ter arranjado tempo de cuidar de mim e o meu pai responde-lhe que a culpa € dela, que ela me mimou de mais. Estou farto, estou mesmo farto.. Estou farto a um tal ponto que vocés nem conse- guem imaginar. Nesses momentos fago orelhas moucas e concen- tro-me naquilo que estou a construir: uma nave espa- cial para Anakin Skywalker com os meus jogos de Lego, ‘ou um aparelho para espremer tubos de pasta dentifrica com 0 Meccano, ou uma pirimide gigante em Kaplas. A seguir vem o suplicio dos deveres. Se for a minha mie a ajudar-me, acaba sempre a chorar. Se for o meu Pai, sou eu que acabo sempre a chorar. Ao contar-vos tudo isto, nao queria que pensassem que os meus pais sdo estpidos ou que estdio sempre a irritar-se comigo. Nao, eles so super, quer dizer... Sao normais. E a escola que estraga tudo. Alids, foi por isso mesmo que anotei apenas metade dos meus tra- balhos de casa no ano passado. Foi para evitar todas aquelas crises e arrelias. Era essa a tinica razio, porém nao tive coragem de a dizer a directora do colégio quando me encontrei a chorar no seu gabinete. Que estupidez! De qualquer modo fiz bem em ficar calado. Que teria aquela grande perua percebido? Nada, pois no més seguinte estava a mandar-me embora 2 le ce pegs ne Cole Mandou-me embora por causa do desporto. E preciso que se diga que detesto quase tanto 0 des- porto como a escola, Nao tanto mas quase. Claro, se me vissem compreenderiam melhor! Nao sou muito alto, nem muito gordo nem muito forte. Diria mesmo mais: 1ndo sou muito alto, nem muito gordo nem rechonchu- dinho. Ha vezes em que ponho as maos nos quadris e vejo- -me ag espelho enchendo o peito. E bastante surpreen- dente, dir-se-ia uma minhoca a fazer musculag3o, ou entdio um daqueles a querer imitar Astérix legionario: pensamos que ele é bem constituido mas quando tira a sua capa de pele reparamos que é um verdadeiro trinca-espinhas. Quando vejo a minha imagem, é nele que penso. Mas, enfim, nao me posso aborrecer com tudo na vida, € preciso pér de lado certas coisas, sendio tornar- -me-ia um verdadeiro tot6. E foi a disciplina de educa- 0 fisica que pus de lado no ano passado. Sé de escre- ver estas palavras rasga-se-me um sorriso na cara... Pois € a professora Berluron e as suas aulas de educagao fi- sica que devo os melhores risos da minha vida. Tudo comegou assit = Grégoire Dubose ~ disse ela consultando a sua cadereta. = Sim. Eu sabia que ia falhar a sequéncia de exercicios fazer uma figura ridicula. $6 queria era que tudo aquilo acabasse. ta ber 25 Gls iperana [Anne Gea Mal avancei, jé os outros comegavam a rir. Contudo, por uma s6 vez, néo riam da minha capa- cidade nula para o desporto, riam por causa da figura que eu fazia. Tinha-me esquecido do meu equipamen- to de gindstica e, como era a terceira vez no trimestre, pedi ao itmao do Benjamin que me emprestasse o dele para nao levar uma falta de material. (Tive mais faltas num ano do que vocés em toda a vossa vida!) O que eu ndo sabia era que o irméo do Benjamin era um clone do Gigante verde e que media um metro e no- venta... Ali ia eu a bambolear num equipamento XXL e com ténis ntimero 45. Escusado serd dizer que fiz algum sucesso... ~ Mas que traje vem a ser esse? — berrou a profes- sora Berluron. Fiz um ar inocente e disse: ~ Nao sei, nao percebo, senhora professora, na semana passada servia-me muito bem... Nao com- preendo.. Com cara de enfado, disse: ~ Faca uma cambalhota para a frente a pés juntos. Fiz uma primeira cambalhota catastréfica e perdi um ténis. Os outros desataram a rir. Entdo, para os divertir, dei mais uma fazendo de maneira que 0 outro ténis fosse pelos ares. Quando me levantei via-se um bocado das minhas cuecas porque as calgas tinham escorregado. A profes- sora estava vermelha ¢ os meus colegas mortos de riso. Ouvir todos aqueles risos, funcionou como um clique porque, pela primeira vez, no eram risos maldosos, eram risos incriveis, como no citco, e a partir dessa 35 Qo de pean tana Cova aula decidi ser o palhago das aulas de gindstica. © bobo da professora Berluron, Ouvir pessoas rir gracas a n6s acalenta-nos 0 coracio e, a seguir, € como uma droga: quanto mais as pessoas riem, mais se tem vontade de as fazer rit. A professora Berluron marcou-me tantas faltas de castigo que jé nao sobrava mais espaco na folha da caderneta. Acabei por ser expulso por tudo isso, mas rio estou arrependido. Foi gracas a ela que, pelo menos, me senti um bocadinho mais feliz na escola e me senti um pouco mais dtil. E preciso dizer que causei uma enorme algazarra. Antes, ninguém me queria na sua equipa, porque eu era muito desajeitado, mas, depois, batiam-se para me terem porque com as minhas palhacadas desestabili- zava os adversérios. Lembro-me de um dia ter ficado a baliza... Que grande confusao... Quando a bola se aproximava, eu comecava a trepar pelas redes da ba- lisa como se fosse um macaco assustado a gritar de ter- ror e, quando tinha de voltar a pér a bola em jogo, fazia de maneira que ela fosse para trds e sofréssemos um canto. Houve uma vez que me atirei em frente para agarrar a hola. Claro, nem sequer a toquei, mas levantei-me a mastigar um tufo de erva como se fosse um vaca a fazer «muuuu», Nesse dia, a Karine Leligvre fez chichi nas calgas e eu levei um castigo de duas horas... Mas valeu a pena. Fui expulso por causa do cavalo de argdes. Alias, isto foi bastante desagraddvel porque naquela vez eu nfo estava a fazer palhagadas. Tinha de se saltar aquele grande aparelho apoiando-se nos pulsos e quando foi bsl 25 Giles de ern Ane Goat a minha ver coloquei-me mal e aleijei-me muito na. enfim na... enfim, esto a ver o que eu quero dizer... Fi- quei com o pirilau feito em compota. Claro que os outros pensaram que eu estava a fingir, ao gritar «ai ai ai ai alii», para os fazer rir, ea professora Berluron man- dou-me directamente para a directora. Com as dores nem sequer me conseguia pdr direito, no entanto nao chorei. Nao Ihes queria dar esse prazer. Os meus pais também nao acreditaram em mim e, quando souberam que me tinham mandado embora de vez, & que foram elas. Pelo menos dessa ver gritaram juntos e na mesma direcedo até se fartarem. Quando, por fim, me deixaram it para o quarto, fechei a porta, sentei-me no chao e disse para comigo: «Ou te metes na cama e comegas a chorat, e tens razdo para chorar, porque a tua vida no vale nada e tu tam- bem ndo e nao havia problema nenhum se morresses j4, ou te levantas e comegas a construir qualquer coisa,» ‘Nessa noite fiz um animal monstruoso utilizando uma data de porcarias que tinha encontrado numas obras e a que pus o nome de «Berluda-Peluda». Nao ficou nada de especial, contesso, mas fez-me bem e evitou-me ensopar a minha almofada. Nesse momento, 0 tinico que me consolow foi o meu avd. Alids, no é de admirar porque o meu avé Léon sempre me consolou desde muito pequeno e desde que comecei a ter idade para o acompanhar até 2 sua cabana. 2s les de ena Calo A cabana do avé Léon é todo um mundo. £ 0 meu refigio e a minha caverna de Ali Babs. Quando a minha avé nos comega a chatear um bocadinho, ele vira-se para mim e segreda-me: — Grégoire, que tal irmos dar uma volta até a Leon- landia? E la desaparecemos nés sorrateiramente debaixo dos reparos da minha avé: — LA vais tu intoxicar o pequeno. Ele encolhe os ombros e respond —Por favor, Charlotte, por favor. Nés precisamos de estar s6s para reflectir. —Reflectir em qué, pode saber-se? — Eu penso na minha vida passada e Grégoire na sua vida futura. A minha av6 volta-se acrescentando que preferia ser surda a ouvir tal coisa, ao que o meu avé responde sempre: — Mas, meu amor, surda jé tu és. O meu avé € tio engenhocas como eu e, para mais, € inteligente. Na escola era um carola: era o melhor em tudo e uma vez confessou-me que nunca tinha estu- dado aos domingos («Porqué? - Olha! Porque nao tinha vontade.» ). Era o melhor na Matematica, no Latim, no Portugués, no Inglés, na Histéria, em tudo! Aos dezas- sete anos foi admitido na Escola Politécnica mais exi- gente do pais. E a seguir construiu coisas gigantescas: pontes, nés rodovidrios em auto-estradas, ttineis, bar- ragens, etc. Quando he perguntei o que fazia ele exac- tamente, tornou a acender a prisca e respondeu como se pensasse em vor alta: by) 35 Quis de pene Aa Coat ~ Nao sei bem. Nunca soube definir bem qual a minha fungao... Digamos que me pediam para analisar projectos ¢ dar a minha opiniaio: sera que a coisa em questo se vai aguentar, sim ou nao? = $6 isso. ~ SG isso, s6 isso... E ndio € pouco, rapaz! Se Tespon- deres sim e a barragem nao se aguentar, fards figura de um grandessissimo imbecil, acredita! A cabana do meu avé é 0 lugar do mundo onde eu me sinto mais feliz. No entanto nao € nada de espe- cial: apenas uma cabana feita de pranchas e telas onduladas, no fundo do jardim, onde se sente muito frio no Inverno e muito calor no Verio. Cada ver que posso vou até Id. Para fazer pequenos trabalhos, utili- zar as ferramentas ou pedacos de madeira, ver o avo Léon a trabalhar (neste momento esté a fazer um mével por medida para um restaurante), para lhe pedir conselhos ou simplesmente para estar ld. Pelo prazer de me sentar num lugar que tem a ver comigo. Hé um bocado, contei-vos que o cheiro da escola me dava vontade de vomitar. Pois bem, aqui € 0 contrétio. Quando entro neste refiigio atafulhado, abro bem as natinas para cheirar com toda a forga o odor da felici- dade. O odor do éleo velho, da massa lubrificante, do aquecedor eléctrico, do ferro de soldar, da cola de madeira, do tabaco e de tudo o resto. E delicioso. Pro- meti a mim proprio que um dia o ia conseguir destilar € inventar um perfume a que chamaria «Aroma de Cabana». Para cheirar quando a vida me correr mal. 25 aos desea Ane Gos Quando soube que eu tinha reprovado na 2? classe, © meu avé Léon sentou-me nos joelhos e contou-me a histéria da lebre ¢ da tartaruga. Lembro-me muito bem como me senti protegido encostado a ele e como era suave a sua vor: — Estas a ver, rapaz, ninguém dava nada por aquela tartaruga perdida, era demasiado lenta... Eno entanto, foi ela que ganhou... E sabes porque € que ganhou? Ganhou porque era uma senhorita corajosa e valente. E tu também, Grégoire, és corajoso... Eu sei, ja te vi trabalhar Vi-te passar horas seguidas no frio a lixar um pedaco de madeira ou a pintar maquetes... Para mim, é& como ela. ~ Mas na escola nunca nos mandam trabalhar com lixa nem madeira! — respondi solugando. ~ Pedem-nos coisas impossiveis de fazer! Quando ele soube que eu chumbei no 5® ano, a coisa ji nfio soou da mesma maneira. Cheguei a casa deles como era hébito e ele nem sequer me respondeu quando 0 cumprimentei. Come- mos em silencio e, depois do café, ele nunca mais se decidia a sair. ~ Ava? ~ Que 6? = Vamos para a cabana? — Nao. — Porqué? — Porque a tua mae deu-me uma ma noticia., = Nao te consigo compreender! Detestas a escola e fazes tudo para ainda passares mais tempo nela. (al teal 2 Qu pnan [Aone Covel Eu fiquei calado. ~ Mas tu nao és assim to burro, que diabo! Ou és? Ele estava zangado. - Sim. ~ lsso irrita-me! E muito mais facil dizermos que nao prestamos para nada e cruzarmos os bragos! Pois claro! E a fatalidade! E muito facil dizermos que no temos sorte! Entao, e agora? Quais sio os teus projec- tos? Vais repetir 0 5®, depois 0 6° e com um pouco de sorte estas a terminar o 12° lé para os trinta anos! Eu retorcia o canto de uma almofada sem ousar levantar os olhos. ~ Nao, sinceramente, nao te compreendo. Em todo © caso, ndo contes mais com o avé Léon. Eu gosto das pessoas que agarram a vida! Nao gosto de preguigo- sos que passam a vida a queixar-se e depois so expulsos Por indisciplina! Isso nao faz sentido! Primeiro expulso, depois reprovado. Bravo! Mas que lindo cenétio! Dou- -te os meus parabéns! Quando penso que sempre te defendi... Sempre! Dizia aos teus pais para confiarem em ti, ajudava-te a encontrares desculpas, encorajava- -te! Vou dizer-te uma coisa, meu amigo: é mais facil ser infeliz do que feliz, e eu, estés-me a ouvir, ndo gosto de pessoas que escolhem a facilidade, nem gosto de chora- mingas! Que diabo, sé feliz! Faz o que for preciso para seres 1! feli Ele comegou a tossir. A minha avé acorreu e eu sai. Fui até a cabana, Tinha muito frio. Sentei-me num velho bidao e comecei a pensar como poderia fazer para agarrar a vida 35 lc apes dna Cao Estava pronto a construir tudo e mais alguma coisa, no entanto tinha um problema: nao tinha projecto, nem modelo, nem esquemas, nem materiais, nem fer- ramentas, nem nada. Tinha apenas um peso enorme no corago, o que me impedia de chorar. Com o meu canivete gravei qualquer coisa na bancada do meu avé e voltei para minha casa sem me ir despedir. Em caa, a crise foi mais prolongada, mais ruidosa e angustiante do que habitualmente. Estévamos no fim do més de Junho e nenhum colégio me queria aceitar em Setembro. Os meus pais andavam deses- perados. Era muito cansativo. Eu, por meu lado, enco- Ihia-me cada vez mais. Pensava que, a forca de tanto me encolher, de passar despercebido, iria acabar por desaparecer completamente e assim todos os meus problemas seriam resolvidos de uma vez por todas. Tinha sido expulso a 11 de Junho. Ao principio ficava em casa durante todo o dia. De manha via dese- nhos animados ou.as televendas (mostram sempre objectos incriveis) e & tarde relia bandas desenhadas, antigas ou continuava o puzzle de 5000 mil pecas que me oferecera a minha tia Fanny. Porém, depressa me fartei. Precisava de qualquer coisa com que ocupar as mios... Ento, comecei a ins- peccionar a casa para ver se havia melhoramentos a fazer. Frequentemente ouvia a minha mie queixar-se, dizendo que o seu sonho era o de poder passar a ferro sentada. Decidi pois dedicar-me ao assunto. bast ] 251 35 Qe pene A Cave Desmontei o suporte da tabua de passar, que a impe- dia de passar as pernas por baixo, calculei a altura e fixei quatro pés de madeira como se tratasse de uma escrivaninha normal. A seguir, recuperei as rodinhas de uma velha mesa rolante que tinha encontrado no passeio da frente na semana que passara e fixei-as numa cadeira que ja ninguém utilizava. Até Ihe arran- jei uma base para poisar o ferro, pois ela tinha trocado de modelo havia pouco tempo. Era um ferro a vapor e cu julguei que aquela base nao era suficientemente sélida. Isto levou-me varios dias. Depois, atirei-me ao motor da maquina de cortar relva. Desmontei-o total- mente ¢ limpei-o peca a pega. Ela pegou logo a pri- meira. O meu pai nem queria acreditar, mas eu sabia perfeitamente que ndo valia a pena té-la levado a ofi- cina, era apenas um problema de sujidade. Ao fim da tarde, ao jantar, o ambiente estava mais telaxado. A minha mae fez-me uma tosta mista com ovo a cavalo, o meu prato preferido, para me agrade- cer, e 0 meu pai no acendeu a televisio. Foi ele o primeiro a falar: ~ Pois é, o que nos arrelia em ti, rapaz, é que tu até tens muita capacidade... Portanto, que podemos nos fazer por ti, para te ajudar? Tu ndo gostas da escola. E um facto. Mas a escola é obrigatéria até aos dezasseis anos, sabes disso, nao sabes? Abanei a cabega e ele continuou: ~E um circulo vicioso: quanto menos estudas, mais detestas a escola; quanto mais detestas a escola, menos estudas... Como é que vais resolver isso? 2 Gals ce pean Aare Covae — Vou esperar até fazer dezasseis anos e, depois, arregago as mangas. — Mas ai, estas a sonhar! Quem é que te vai dar emprego? ~ Ninguém, eu sei, mas hei-de inventar coisas ¢ construir coisas. Nao preciso de muito dinheiro para viver. — Nao te fies nisso! Eu sei que nao precisas de ser to rico como o tio Patinhas, mas, de qualquer modo, vais pregisar de mais do que aquilo que pensas. Vais precisar de ter ferramentas, uma oficina, uma carti- nha... e sei Ié que mais. Nao importa, deixemos o pro- blema do dinheiro por agora, nao ¢ isso que me preo- cupa. Falemos antes dos estudos... Grégoire, nao fagas essa cara de enjoado, olha para mim se faz favor. Tu nunca conseguirés nada sem um m{inimo de conhec mentos. Supde tu que inventas uma coisa fantdstica. Vais precisar de registar a patente, nao é? E por isso tens de a redigir correctamente... E mais, nao se expe uma invengdo assim sem mais nem menos, é preciso mostrar esquemas, escalas, cotas, para ser levado a sério, sendo roubam-te a ideia em menos de nada, ~ Achas? = Nao acho, tenho a certeza. Tudo aquilo me deixava perplexo. Embora confuso, sentia que ele tinha razio: ~E que... eu inventei uma coisa que podia assegu- rar dinheiro suficiente para mim, para os meus filhos e até para vés. — De que se trata? ~ perguntou a minha mie, sor- rindo. ta | 25 duos pean Aan Coat — Juram que guardam esta informag3o em top secret? im ~ responderam eles ao mesmo tempo. —Jura. — Juro. ~ Eu também. ~ Nao, diz «juro», mama. —Juro. — Entao ai vai. Trata-se de um tipo de calcado feito especialmente para andar na montanha... teria um talao amovivel. Punha-se em posicZo normal para trepar, tirava-se quando se caminha em terreno plano ¢ voltava-se a colocar para descer, mas nao na mesma posigdo, na parte da frente, por baixo da biqueira... assim fica-se sempre em equilibrio... Os meus pais concordaram. — Nao esté nada mal vista a id minha mae. — Precisarias de te pdr em contacto com uma marca de artigos desportivos de montanha... Fiquei feliz ao sentir que eles se interessavam por mim. No entanto 0 encantamento quebrou-se quando © meu pai acrescentou: ~ Mas para comercializares a tua maravilha tens de ser bom em matemética, em informdtica e em econo- mia... Voltamos ao que eu te estava a dizer ha bocado.... dele - disse a Continuei a fazer tarefas até ao fim de Julho. Aju- dei os nossos novos vizinhos a limpar o jardim. Arran- quei tantas ervas daninhas que até os meus dedos abri- ram gretas e ficaram enegrecidos. Pareciam as maos de Hulk. 5 Gales de panna |e cael Os nossos visinhos chamam-se Sr. ¢ Sr." Marti- neau. Tinham um filho chamado Charles, um ano mais velho do que eu. Estava sempre colado aos jogos de computador ou aquelas séries parvas e sempre que me dirigia a palavra era para me perguntar para que ano ia eu no préximo ano lectivo. Aquilo comecava a tomar-se um pouco iritante. A minha mie continuava os telefonemas para me encontrar um estabelecimento que tivesse a grande bon- dade de se dignar aceitar-me em Setembro. Todas as manhis recebfamos montes de prospectos na caixa de corteio. Fotografias lindas em papel brilhante que elo- giavam os méritos deste ou daquele colégio. Era patético e completamente enganador. Bu fo- Iheava-os abanando a cabeca, sobretudo perguntava a mim proprio o que teriam feito para terem conseguido tirar uma fotografia dos alunos a sorrir. Ou eles tinham sido pagos, ou tinham-lhes dito que o professor de francés tinha caido numa ravina. $6 havia uma escola que me agradava, mas ficava numa vila situada em Pétaouchnoque-les-Oies, para os lados de Valence. Nas fotografias, nao se viam os alunos atrés das carteiras a sorrir ingenuamente. Viamo-los numa estufa a enva- sar plantas ou numa bancada de trabalho a cortar pranchas de madeira e, estes, ndo estavam a rir, esta- vam concentrados. Tinha aspecto de no ser ma, con- tudo era uma escola técnica. ‘As minhas dores de barriga voltavam sem avisar. © Sr. Martineau fez-me uma proposta: ajudé-lo a descolar 0 papel de parede velho, pagando-me. Acei- asl 0] 35 Que pera [Aone Coal tei. Fomos ao Aki e alugdmos duas maquinas descola- doras a vapor. A mulher dele ¢ 0 Charles tinham ido de férias e os meus pais estavam a trahalhar Estévamos tranquilos. Fizemos um bom trabalho; mas foi muito cansativo! Sobretudo por causa do calor. Estar no meio do vapor quando fazem 30® & sombra, nem vos conto... Uma auténtica sauna! Pela primeira vez na vida bebi cer- veja e detestei O avo Léon, que de vez em quando passava por lé, deu-nos uma ajudinha. O Sr. Martineau estava encan. tado. Dizia ele: «Nés somos trabalhadores valentes, mas 0 Sr. Dubosc é um artista...» De facto, o meu avé deu a volta a todos os problemas de canalizagao e de clectricidade, enquanto nés nos desfazfamos em suor proferindo palavrdes. O Sr. Martineau dizia frequentemente: «merdus merda merdum merdorum merdis merdis» (6 latim). Finalmente os meus pais acabaram por me inscre- ver no colégio Jean-Moulin mesmo ao lado de nossa casa. Primeiro, no me queriam mandar para lé porque gozava de mé reputagao. Parece que l4 0 nivel € muito baixo e que os alunos sao assaltados, porém, como era © tinico que se dispunha a aceitar-me, ndo tiveram alternativa. Entregaram a minha caderneta escolar € eu fui a uma maquina automética tirar fotografias. Fiquei com uma cara horrivel nessas fotografias. Pen- sei como iriam ficar contentes no colégio com o seu novo recruta: um rapaz de treze anos a fazer 0 5° ano com as maos de Hulk e a cara de Frankenstein... Aquilo € que era um bom negécio! 35 Glee de ips Cale (© més de Julho passou num abrir e fechar de olhos Aprendi a colar papel de parede. Aprendi a espalhar a cola sem fazer grumos (aprendi a palavra «grumo») e retirar 0 excedente das bordas do papel. Aprendi a desenrola-lo convenientemente, a trabalhar o rolo pequeno para pressionar as margens ¢ colar sem deixar bolhas. Posso dizer que hoje em dia sou um 4s da cola de papel. Ajudei, também, o meu av6 a desembaragar fios elécericos e a fazer testes: ~ Esta ligado? — Nao. —E agora? - Nao. = Irra. E agora? - Sim. Preparei sandufches de cinquenta centimetros, en- vernizei portas, troquei fusiveis e escutei os entendi- dos durante um més, Um més feliz. Teria gostado que aquilo nunca mais que em Setembro comegasse outra obra com outro patrdo... Era nisso que eu pensava enquanto trincava a minha sanduiche de chourigo: ainda tenho de aguentar mais trés anos e depois adeusinho. ‘Trés anos é muito tempo. se acabasse € Outra coisa que me deixava desesperado era a satide do avé Léon. Ele cada vez tossia com mais frequéncia, durante mais tempo ea cada passo sentava-se. A minha av6 obrigou-me a prometer que o obrigaria a deixar de fumar mas eu nao conseguia. Ele respondia-me: ia lal — Ao menos tenho este prazer, Tot. Um destes dias acaba-se tudo. Aquele género de resposta punha-me louco. — Nao, Toté, por causa desse prazer € que tu vais morrer! Ele brincava: — Desde quando é que te dei licenga para me cha- mares Toté, Tots? Era quando ele sorria assim que me lembrava que ele era a tinica pessoa no mundo que nao podia mor- ter. Isso nunca. No dltimo dia, o Sr. Martineau convidou-nos, a mim ao meu avé, para jantarmos num restaurante muito bom e, no fim da refeigo, ambos fumaram um charuto enorme. Nem queria pensar na mégoa que a minha avo sentiria se soubesse disso.. ‘Ao despedirmo-nos, o meu vizinho entregou-me um envelope: ~ Toma. Bem o mereces... Nao o abri logo. Abri-o em cima da cama depois de chegar a casa. Continha duzentos euros. Quatro notas cor de laranja... Fiquei meio atordoado: nunca tinha visto nem tido tanto dinheiro na minha vida. Nao quis falar disso aos meus pais porque eles obrigar-me-iam a deposité-lo numa conta-poupanga que me tinham aberto para quando eu fosse mais velho. Escondi as notas num lugar onde ninguém teria a ideia de as pro- curar © comecei a congemina Que poderia comprar com todo aquele dinheiro? Motores eléctricos para as minhas maquetas?. (Sao muito caros!) Bandas desenhadas? O manual: Cem 25 Quer a pans Aare Coal Conserugdes Extraordindrias? Um blusio da Timberland? Um tico-tico da Bosch? ‘Aquelas quatro notas faziam-me vertigens e, quando fechdmos a casa a 31 de Julho para irmos de férias, passei mais de uma hora a procurar um esconderijo suficientemente seguro. Tal e qual como a minha mae que andava as voltas pela casa com os candelabros de prata da sua tia avé Fazfamos ambos uma figura um pouco ridicula. Acho que os assaltantes sto sempre mais espertos do que nés. Nao tenho nada a contar-vos de extraordinério a propésito dese més de Agosto, senio que foi com- prido e aborrecido. Como todos 0s anos, 0s meus pais alugaram um apartamento na Bretanha e, como todos 0s anos, tive de preencher paginas e paginas do ca- demo de férias Passaporte para 0 5" ano, o Regresso. Passava horas seguidas a mordiscar a caneta e a olhar para as gaivotas. Imaginava que me transformava em, gaivota. Imaginava que voava até ao farol vermelho e branco, Ié ao longe. Imaginava que me tornava amigo de uma andori- nha e que em Setembro, no dia 4 por exemplo ~ que por acaso € 0 dia de voltar para a escola! ~, partfamos para os paises quentes. Imaginava que atravessava © oceano, imaginava que famos... ‘Até que abanava a cabeca para voltar a realidade, Tomava a ler o problema de matemética, um pro- blema estdpido acerca de empilhar sacos de gesso, lal (ual 3 Ouse pean Aone Coat € continuava a imaginar: uma gaivota vinha e descui- dava-se em cima do enunciado... Splatch! Um grande pedago de excremento branco a inutilizar toda a pagina. Imaginava o que poderia fazer com sete sacos de cimento Enfim, imaginava... Os meus pais nao vigiavam de perto o meu traba- Iho. Estavam em férias e no tinham vontade nenhuma de apanhar uma seca a decifrar os meus gatafunhos. Tudo o que me exigiam era que passasse a parte da manh sentado numa escrivaninha. Nada daquilo fazia sentido. Enchia as paginas da- quele maldito caderno com desenhos e esquemas malucos. Nao me aborrecia, no entanto a vida nfo me causava nenhum efeito especial. Pensava: estar aqui ou noutro lugar qualquer, tanto me faz! Também pensava: ser ou no ser, tanto me faz! (Como podem constatar, sou um zero em matemética mas até me defendo mais ou menos em filosofia!) A tarde ia até a praia com a minha mae ou o meu pai, porém nunca com os dois ao mesmo tempo. ‘Também isso fazia parte do plano de férias deles: nao estarem obrigados a aturar-se um ao outro. Passava- -se qualquer coisa, ndo muito agradavel, entre eles. Frequentemente, havia segundos sentidos, conside- ragdes ou observagGes cdusticas que nos mergulha- vam num profundo siléncio. Eramos uma familia que estava sempre de mau humor. Como gostaria de risos e anedotas 4 mesa, mas nao tinha a menor ilusao. 2 les de para Aa Galo Quando chegou a hora de fazer as malas e arrumar a casa, sentiu-se um alivio no ar. Que coisa idiota! Gastar tanto dinheiro e ir para to longe para final- mente ficar aliviado por regressar a casa... Acho isto bastante idiota. A minha mie foi buscar os candelabros e eu o meu dinheiro. (Agora j4 vos posso contar, tinha enrolado as notds ¢ tinha-as enfiado na mochila do meu antigo Action Man!) As folhas das drvores amareleceram e as minhas dores de barriga voltaram. Ia pois entrar no colégio Jean-Moulin. Nao era o mais velho da minha turma e muito menos o mais burro. Desenrasquei-me bem. Fiquei ao fundo da sala e evitei cruzar-me com os rufias da es- cola. Pus de lado a ideia de comprar um blusio da Timberland pois acho que aqui nao o ia usar por muito tempo... A escola jé nao me punha muito mal disposto pela simples razio de que nao tinha a impressao de andar numa escola. Tinha a impressio de estar numa espécie de lugar onde se guardam animais, onde recolhiam dois mil adolescentes de manha & tarde. Bu estava em constante estado de vegetacao. Estava chocado com a maneira como certos alunos se dirigiam aos professo- res. Tentava pasar o mais desapercebido possivel e contava os dias. bas! 25 clos esperar Arn Cova A meio de Outubro a minha mie passou-se. J4 nao suportava mais a falta do (ou da, nunca cheguei a saber!) professor de Francés. J4 no suportava mais 0 meu vocabulario ¢ dizia-me que eu estava cada vez mais burro. Tao burro que s6 me faltava comer palha. Ela nao entendia porque é que eu nunca trazia notas e, sobretudo, ficava histérica quando me ia buscar as cinco horas e via rapazes da minha idade a fumarem. charros debaixo das arcadas. Logo, grande crise 14 em casa. Berros, lagrimas e ra- nho com fartura. Conclusio, colégio interno. Depois de uma noite agitada, os meus pais decidiram de comum acordo mandar-me para um colégio interno. Que fixe! Naquela noite cerrei os dentes. No dia seguinte era quarta-feira. Fui a casa dos meus avés. A minha av6 tinha-me preparado batatas saltea- das, como eu gosto, e o meu avé nao me queria falar. O ambiente estava pesado. Depois do café fomos até a cabana. Ele meteu um cigarro na boca sem o acendet — Deixei de fumar. Nao penses que o fago por mim, fago-o por causa da chata da minha mulher. Sori. A seguir, pediu-me que o ajudasse a aparafusar umas dobradigas, e quando, por fim, fiquei com o espirito ocupado, ele comegou a falar suavemente: — Grégoire? - Sim. | 5 Glo eins dra Caale — Disseram-me que ias para um colégio interno, é verdade? — Nao te agrada a ideia? Preferi ficar calado. Nao queria voltar a choramin- gar como um mitido da 2.* classe. Ele pegou no batente que eu tinha nas mos, pousou- -o, e levantou-me a cabeca segurando-me no queixo. — Ouve, Tots, ouve com atengio. Eu sei mais coisas do que tu pensas. Sei quanto detestas a escola e tam- bém sei o que se passa em tua casa. Enfim, nao sei mas desconfio que entre os teus pais... Imagino que 0 ambiente do dia-a-dia nao deve ser o mais agradavel.. Fiz uma careta. — Grégoire, tens de confiar em mim, fui eu que tive a ideia do colégio interno, fui eu quem a fer ger- minar na cabega da tua mae... Nao me olhes assim. Acho que sera muito melhor para ti safres dali por algum tempo, apanhares ar fresco, mudares de am- biente. No meio dos teus pais, asfixias. Es filho tnico, eles sé te tém a ti e concentram tudo sobre ti. Eles no se dao conta do mal que te esto a fazer exigindo tanto de ti. Nao, nao se dio conta. Acho que o problema é mais profundo do que isso... Acho que eles deviam comecar por resolver os seus préprios problemas antes de perderem a cabeca com o teu caso. Nao, Grégoire, nao fagas essa cara. Nao, Grégoire, niio quero que fiques triste, apenas quero que tu... Ora bolas! Nem sequer j4 te posso pegar ao colo! J és grande de mais. Dé um abraco ao avé... Nao chores... Senio fica tudo muito triste... oo a RASA ly be) — Nao € tristeza, av6, é s6 um bocado de égua que transbordou.. ~ Va l4, meu valente, meu netinho... Vamos acabar com esta choradeira. Temos de nos refazer. Temos de terminar o mével do José, se quisermos comer de graga no Papa-jantares... Olha, passa-me a chave de fendas. Limpei o ranho na manga. A seguir, em pleno siléncio, quando comegava a atacar a segunda porta, ele acrescentou: — Apenas uma tiltima coisa e depois nao se fala mais. disso. O que te queria dizer é muito importante... Que- ria dizer-te que quando os teus pais discutem, nao é por tua causa. E por causa deles, sé deles. Tu nao és culpado disso, nao tens culpa nenhuma, estés a ouvir? Nenhuma. E digo-te mais ainda, se fosses o melhor da turma, se tirasses dezanoves e vintes, pois olha, tenho a certeza de que eles continuariam a discutir. Com a \inica diferenga de que seriam obrigados a encontrar outro pretexto, apenas isso. Fiquei calado. Dei uma primeira demao de Bondex no mével do Joseph. Quando cheguei a casa, os meus pais estavam a for Ihcar uns prospectos ¢ a fazer contas com a maquina da calcular. Se a vida fosse como na banda desenhada, a cabega deles estaria a deitar fumo. Eu disse «boa. -noite» dirigindo-me rapidamente para o quarto, porém eles impediram-me: ~ Grégoire, vem c4. Ao owvir a vor dele, percebi que o meu pai no es- tava para brincadeiras. 25 Oalon eGeaes ta Cava — Senta-te. Perguntava a mim mesmo o que me itia ainda sair na tifa... —Como sabes, a tua mae e eu decidimos mandar-te para um colégio interno... Baixei os olhos e pensei: «Pelo menos em alguma coisa estiio de acordo! J4 nao era sem tempo. E pena que seja por uma coisa téo ma...» — Imagino que esta ideia nao te deixe muito con- tente, mas assim, Nos estamos num impasse. Na escola no fazes nada, foste expulso, nenhuma escola te quer aceitar e este colégio nao presta. Nao existem mil e uma solugdes... Mas o que tu talvez nao saibas € que isto vai sair muito caro. E preciso que tenhas cons- ciéncia de que vamos fazer um grande esforgo finan- ceiro. Por dentro, ri-me: «Oh... mas nao valia a pena! Obrigado, senhorias. Sois bons de mais. Posso beijar- -vos os pés?» O meu pai continuou: — Nao queres saber para onde vais? ~ Estds-te nas tintas? — Nao. = Pois fica sabendo que ainda nao encontramos nada. Isto é um verdadeiro quebra-cabegas. A tua mae passou toda a tarde ao telefone... e nada. Temos de encontrar um estabelecimento onde te aceitem com o ano j4 em curso € que... — Quero ir para aqui ~ disse eu cortando-lhe a pala- vra. = Para aqui, onde? sl lol 35 Ques de pera Ana Coal — Para aqui. Entreguei-lhe o pequeno prospecto desdobrivel onde se podiam ver os alunos a trabalhar atras de uma ban- cada. A minha mie pds os culos: ~ Onde fica? A trinta quilémetros de Valence... Escola Técnica de Grandchamps... Mas no tem as disciplinas da escola... — Tem, sim. Também faz escola. — Como sabes? — perguntou o meu pai. — Porque telefonei, -Tu? — Sim, telefonei. ~ Quando? —Mesmo antes do comego das férias. ~ Tul... Tu telefonaste?... Porqué? ~ Porque sim... para saber. ~Eentao? ~ Entao, nada. ~ Porque nao nos disseste nada? ~ Porque é imposstvel. ~ Imposstvel, porqué? ~ Porque eles aceitam os alunos segundo 0 dossié escolar, € 0 meu é muito mau! E tGo mau que nem serve para pegar fogo.. Os meus pais calaram-se. O meu pai tinha come- sado a ler o programa da Escola de Grandchamps e a minha mae suspirava. Nos trés dias que se seguiram fui as aulas normal- mente. Comecei a compreender 0 que queria sdo «ter um fusivel queimado». 235 Ovo eps Ame Gan Era isso mesmo. Tinha queimado um fusivel. Uma parte de mim tinha-se apagado e tudo me era indife- rente. Nao fazia nada. Ja nao tinha ideias nem desejos. Nada. Assemelhava-me aos meus jogos de Lego, den- tro de uma caixa de cartéo, quando os dei a Gabriel, © meu primo pequenino. Passava todo o tempo a ver televisio. Quilémetros e quilémetros de video-cli- pes. Ficava estendido na cama horas a fio. Nem sequer tinha vontade de fazer engenhocas. Os meus bracos baloigavam estupidamente ao lado do meu corpo de magricelas. Por vezes, até parecia que estavam mortos. Apenas os utilizava para segurar no comando da tele- visio ou para tirar uma lata do frigorifico. Sentia-me feioe parvo. A minha mie tinha razdo: s6 me faltava comer palha. Nem sequer tinha vontade de ir a casa dos meus avés. Eles eram muito simpaticos, mas nio compreen- diam. Eram demasiado velhos. E depois, como poderia © meu avé Léon entender os meus problemas? Nada, visto que ele sempre tinha sido um 4s em tudo. Ele nunca tinha tido problemas. Quanto aos meus pais, nem vale a pena falar... Eles nem sequer ja se falavam. Uns verdadeiros fantasmas. Por vezes tinha vontade de Ihes dar um bom aba- no para que hes safsse qualquer coisa... o qué? Nao sei. Uma palavra, um sorriso, um gesto? Qualquer coisa. Estava eu refastelado em frente da televisio quando © telefone tocou. ~ Entao Tots, esqueceste-te de mim? ta lel 1 duos de pera Aone Covel = Ham!... Nao estou como muita vontade de ir hoje... = Eento 0 mével do Joseph? Tinhas prometido que me ajudavas a entregé-lo hoje! Pois era! Tinha-me esquecido completamente disso. = Vou ja, av6. Desculpa! ~ Nao faz mal, Tot6, nao faz mal. Ele néo foge. Para nos agradecer, Joseph ofereceu-nos uma bela patuscada. Comi uma tarte do tamanho do Vestvio, com uma data de coisas, alcaparras, cebola, ervas aro- maticas, pimento... Menha. O avé Léon observava-me sorridente: ~ Até dé gosto ver, Tots. Ainda bem que este velho te explora de vez em quando, assim podes comer até encheres a barriga ~E tu? Nao comes nada? ~ Oh... Nao tenho muita fome... A tua avé em- panturrou-me mais uma vez ao pequeno-almogo. Eu sabia que ele estava a mentir. Depois de comer, fomos visitar as cozinhas. Fiquei espantado ao ver o tamanho das frigideiras e das caga- rolas. Eram enormes. Grandes conchas de sopa, colhe- res de pau que pareciam catapultas, dezenas de facas dispostas em ordem de tamanho e altamente bem afia- das. Joseph atirou: — Olhem, este aqui € 0 Titi! © nosso iltimo recruta... E bom rapaz. Vamos por-lhe uma touca de cozinheiro e a seguir, dentro de alguns anos, veremos entrar os tipos 235 Goose iprana| Ame Gove do roteiro de restaurantes a piscarem-lhe 0 olho, aposto convosco! Nao se diz bom-dia, Titi? = Bom-dia. O rapaz descascava um grande monte de batatas. Tinha um ar bastante satisfeito, Os pés dele tinham desaparecido debaixo de uma montanha de cascas. Ao olhar para ele, pensei: «Deve ter uns dezasseis anos.» Ao deixar-me em casa, 0 avo Léon insistiu: — Bom, fazemos como combinado, nao é? -Sim. ~ Nao te preocupes com os erras, nem com o es- tilo, nem com a tua caligrafia. Nao te preocupes com nada disso. Dizes apenas aquilo que te vai na alma, entendido? ~ Sim, sim. Deitei maos 4 obra naquela mesma noite. Mesmo assim, pteocupei-me um pouco com a apresenta- a0 e fiz onze rascunhos, apesar da carta ser bastante curta... Tomo a copié-la para vés. «Senhor Director da Escola de Grandchamps, Gostaria muito de ser admitido no seu estabelecimento ‘mas sei que é impossivel porque o meu dossié escolar é bas- tante mau. Vina publicidade que a sua escola tinha atelids de mecé- nica, corpintaria, salas de informatica, uma estufa e mais coisas ‘Acho que na vida ndo existem apenas notas. Acho que também existe a motivacdo. lal last 35 ul pera jAma Goad Gostaria de ir para Grandchamps porque me parece que era af que seria mais feliz. Nao sou grande nem gordo, peso 35 quilos de esperanca. Adeus, Grégoire Dubosc PS.n.° 1: Ba primeira vez que suplico a alguém para ir d escola, ndo sei se estou doente. nae P.S. n® 2: Mando-ihe os planos de wma maquina de descascar bananas que inventei quando tinha sete anos.» Voltei a lé-la mais uma vez. Pareceu-me que 0 es- tilo era um bocado «anjinho» mas no tinha coragem de recomegar uma décima terceira veo. Imaginei a cara do director quando lesse aquilo... Certamente ia pensar: «C4 temos mais um esperti- nho», antes de fazer um bola com ela e atiré-la para o cesto de papéis. J4 nao tinha muita vontade de mandar a carta mas, como tinha prometido ao avé Léon, nao podia recuar. Meti a carta no corteio, quando voltava do colégio, € foi ao sentar-me para lanchar que voltei a ler o pros. Pecto e vi que o director era afinal uma directora. Mas Que burro!, pensei mordendo-me por dentro. Que grande burro! 35 quilos de burrice, € o que €... 25 Glos ce pangs fra Cole A seguir, chegaram as férias de Todos-os-Santos. Fui para Orléans, para casa da tia Fanny, irma da minha mie. Joguei no computador do meu tio, nunca me dei- tei antes da meia-noite e dormia até o mais tarde pos- sivel, até que 0 meu: primo pequenino saltasse para cima da minha cama e berrasse: — Ego! Vamo fazé égo! Guégoire, ana! Durante quatro dias fiz coisas com Lego: uma gara- gem, uma aldeia, um barco... Cada vez que terminava qualquer coisa, o meu priminho ficava supercontente, admirava-a e depois catrapis!, deitava-a ao cho com toda a forga para a desfazer em mil pedacos. Na pri- meira vez fiquei bastante irritado mas quando o vi rir esqueci logo as duas horas perdidas. Adorava ouvi-lo rir, o meu fusfvel tomnava a ligar-se. Foi a minha mae que me veio buscar & estagao de Austerlitz. Uma vez dentro do carro, ela disse: = Tenho duas noticias para te dar, uma boa, outra mé. Comego por qual? — Pela boa. ~ A directora do Grandchamps telefonou ontem, Disse que estava de acordo em admitir-te, mas tens de fazer uma espécie de teste primeiro.. ~ Pffff... Se & a isso que chamas uma boa noticia. Um teste! Que queres que faga com um teste? Papeli- nhos? E a ma? =O teu avd esté no hospital. Eu sabia, tinha a certeza, sentia que era isso. —E grave? asl 28 duos de pwn Aone cal ~Nio sabemos. Teve uma indisposicdo e o hospital mantém-no em observagio. Est4 muito fraco. ~ Quero ir vé-lo. ~ Nao. Por agora no se pode. Ninguém pode visi- té-lo, Ele tem obrigatoriamente de recuperar as forgas primeiro, A minha mae comegou a chorar. Levei o livro de gramética para ir revendo no TOV, ‘mas no o abri. Nem sequer tentei fingir. Estava in- capaz de ordlenar os pensamentos. O comboio percor- ria a imensa extensiio de cabos eléctricos ¢ a cada Poste que passava, eu dizia em voz baixa: «avd Léon, avé Léon... avd Léon... avé Léon... av Léon... avd Léon... avé Léon...» e entre cada poste, dizia: «Nao morras. Fica ca. Preciso de ti. A Charlotte também, Que fara ela sem ti? Ficaré muito triste. E eu? Nao morras. Nao podes morrer. Eu ainda sou novo de mais, Quero que me vejas crescer. Queto que sintas orgulho em mim. Eu ainda mal comecei a minha vida. Preciso de ti. E depois, se um dia me casar, quero que conhesas a minha mulher e os meus filhos. Quero-lhes mostrar a tua cabana. Quero que eles sintam o teu cheito. Quero que Adormeci Quando desci do comboio em Valence, tinha um senhor 4 minha espera. Durante o trajecto até a escola soube que era 0 jardineiro da escola, enfim... 0 «re- gente» como ele dizi 2 Ouest Gostei bastante de andar na carrinha dele, chei- rava a gaséleo e a folhas secas. Jantei no refeitério com os outros alunos internos. Tudo rapaziada forte. Foram simpiiticos comigo, deram- -me uma data de «dicas» acerca da escola: os melhores esconderijos para fumar, como fazer para que a se~ nhora da cantina nos desse uma dose suplementar, qual era o esquema para subir até ao dormitério das raparigas pelas escadas de socorro, quais as manias dos, profes ¢ tudo mais. Eles riam muito, pareciam parvos. Porém aquela parvoice era boa, era parvoice de rapaz. ‘As mis deles estavam bonitas, com pequenos cor- tes por todo lado e com as unhas sujas. Numa certa altura perguntaram-me porque estava ali: ~ Porque nenhuma escola me quer aceitar. Aguilo f@-los rie. —Nenhuma? ~ Nao. Nenhuma. =Nem o asilo? = Nao — disse eu —, até no asilo acharam que tinha uma mé influéncia sobre os outros. Houve um que me deu uma palmada nas costas: — Bem-vindo ao clube, meu! Depois, falei-thes do teste que devia fazer no dia seguinte de manha. = Entio, que fazes ainda aqui? Vai dormir, esperta- Ihdo, para estares em forma! Tive dificuldade-em dormir. Tive um sonho esqui- sito. Estava com o meu avé Léon que nao parava de tw ta) 35 Gul ce pean Anna Cavite ‘me puxar a roupa, perguntando: «Onde fica o escon- derijo para fumar? Pergunta-lhes onde é...» Ao pequeno-almogo nao consegui engolir nada. © meu estémago parecia de cimento armado. Nunca ‘me tinha dofdo tanto na vida. Tinha de respirar devagar © 0 meu suor era gelado. Estava a escaldar e gelado ao mesmo tempo. Mandaram-me sentar numa pequena sala de aulas, onde fiquei sozinho um bom bocado. Pensei que se tives. sem esquecido de mim, Depois chegou uma senhora que me entregou uma espécie de cademo para preencher. As linhas dangavam. em frente dos meus olhos. Nao entendia nada daquilo. Pus 0s cotovelos em cima da mesa e a cabega entre as m4os para me acalmar, respirar e nfo pensar em nada. De repente, dei comigo de nariz em cima dos grafitis escritos no tampo da mesa. Havia um que dizia: «Gosto de mamas grandes» e outro, a0 lado, dizia: «Eu, prefiro as chaves-inglesas.» Aquilo fer-me sortir e comecei a trabalhar. Ao prinefpio a coisa ia, mas quanto mais virava as paginas, menus encontrava as respostas. Comecei a entrar em panico. O pior, era um parderafo com meia daizia de linhas. © enunciado dizia: «Encontre e cor- tija os ertos deste texto.» Era horrfvel, eu nao encon- trava nenhum. Sentia-me o pior dos piores. Um texto cheio de erros e eu nem sequer encontrava um! Sen- tia um né na garganta € o nariz a picar. Abti bem os olhos. Nao devia chorar. Nao podia chorar. 35 Quo de ptr |Ame Gnade EU NAO QUERIA, esto a compreender? Apesar disso, a maldita apareceu, uma grande lé- grima que nao senti chegar e que se esparramou em cima do caderno... Cerrei os dentes com forga mas senti que no ia aguentar, que o dique ia ceder. Havia muito tempo que me forgava a nao chorar e que me recusava a pensar em certas coisas... Porém, chega um momento em que toda essa lama, escon- dida no fundo do nosso cérebro, li muito no fundo, tem de:sair... Eu sabia que se comegasse a chorar no iria conseguir parar, € tudo me viria 8 meméria a0 mesmo tempo: O Grodoudou, a Marie, todos aque- les anos em que eu tinha sido sempre o ultimo. Sem- pre o grande azelha de servigo. Os meus pais que ja no gostavam um do outro, todos aqueles dias tristes Idem casa, o meu avé Léon numa cama de hospital ‘com tubos no nariz com a vida cada vez mais perto do fim, Estava quase a desfazer-me em lagrimas e a morder os labios até fazer sangue quando ouvi uma voz: «Entio, Tot6, o que nos ests para af a arranjar? Que historia vem a ser essa? Fazes o favor de parar de fungar para cima da caneta como um porco? Ainda acabas por estragé-la.» Sé me faltava mais esta, agora estava a ficar ma- luco... Ouvia vores! HE... Vocés devem ter-se enganado, af em cima, eu no sou a Joana d’Arc. Sou apenas um lingrinhas as voltas no mesmo sitio. «Esta bem, senhor Jeremias, avisa-me quando para res a cartoga, pata que possamos trabalhar juntos, durante um bocado.» Nee tas]

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