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© by E ditora E scuta para edição em língua portuguesa

T itulo original: Goce.


1* edição: fevereiro de 2007

E d it o r e s
M anoel Tosta B erlinck
M aria C ristin a R ios M agalhães

C a pa

Im ageriaestudio

P r o d u ç ã o E d it o r ia l

A raide Sanches

D ados in te rn a c io n a l de C a ta lo g a ç ã o n a P u b lic a ç ã o (C IP )

B825g Braunstein, Néstor

Gozo / Néstor Braunstein ; tradução de M onica Seincman. - São


Paulo: Escuta, 2007.
344 p. ; 21 cm.

ISBN 978-85-7137-257-3

1. Psicanálise. 2. Gozo. 3. Prazer. 4. Sexualidade. 5. Histeria.


6. Psicose. 7. Desejo. 8. Lacan, Jacques. 9. Freud, Sigmund.
I. Seincman. Monica. II. Título.
CDU 159.964.21
159.922.1
CDD 616.9792
(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - CRB 10/1507)

E ditora E scu ta Ltda.


R ua Dr. H om em de M ello, 446
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Sumário

R eeditar, reescrever, atu alizar 5

P r im e ir a p a r t e : T e o r ia

I - O gozo: de L acan a F reu d 11


1. No com eço 11
2. O gozo em Freud 20
3. Retorno aos princípios freudianos 35
4. Além do princípio de prazer 43

II - O s gozos distintos 55
1. Entre gozo e linguagem 55
2. O gozo (não) é a satisfação de uma pulsão 58
3. A palavra, diafragm a do gozo 67
4. A Coisa e o objeto @ 77
5. A castração e o nom e-do-Pai 85
6. As barreiras ao gozo 99
7. A “causação do sujeito” ou além da angústia 109

III - G ozo e sexualidade 121


1. Os equívocos da sexualidade 121
2. O gozo do ser, o gozo fálico e o gozo do Outro 132
3. A castração com o causa 145
4. Os três gozos e a banda de M oebius 153
5. Freud (Lacan) ou Foucault 159
IV - D ecifram ento do gozo 177
1. O gozo está cifrado 177
2. A carta 52 184
3. A psicanálise nos cam inhos de Proust.
Gozo e tempo 196

S egunda parte: C l ín ic a

V - O gozo na histeria 215


1. O psicanalista e a histérica 215
2. t ' função do gozo 224
3. Histeria e saber 234

VI - A perversão, desm entido do gozo 243


1. O “positivo” da neurose? 243
2. O fantasm a perverso: sabergozar 250
3. O perverso e o gozo fem inino 260

VII - @ -dicção do gozo 267


1. Não se elege a psicose 267
2. Psicose e discurso 273
3. D roga-@ -dicção 279

VIII - G o zo e ética na ex p eriên cia p sican alítica 289


1. U m a prática linguageira 289
2. Pulsionar e seus destinos 293
3. O dever do desejo 299
4. O ato e a culpa 304
5. A analogia i munológica 311
6. A carta ao pai 316
7. Ceder o desejo? 321
8. Para três gozos, três supereus 327
9. Do am or em psicanálise 331
Reeditar, reescrever, atualizar

Gozo era o nom e original deste livro lançado no M éxico em


1990. Em 1994 explicaram -m e que a edição em francês não poderia
c ir c u la r co m e ss e títu lo tão p a rc im o n io s o p o rq u e e ra p o u c o
explícito para o leitor leigo. Assim , Gozo foi publicado pela editora
P o in t H o rs -L ig n e com o títu lo de La jo u is s a n c e : un c o n c e p t
lacanien. A p artir de então sucederam -se reim pressões tanto em
castelhano com o em francês, até que a editora Point H ors-L igne
d eixou de p ublicar. H á pouco tem po recebi um a so licitação da
E ditions Erès, de m uito prestígio, que propunha um a nova edição
da obra. Respondi que preferia que não fosse outra reimpressão, pois
havia detectado erros que gostaria de corrigir e que a tradução para
o francês iria se b en eficiar com um a revisão. O convite da Érès
levou-m e a um a releitura cuidadosa e, com ela, à convicção de que
ho je p o d e ria tra n s m itir de um m o d o m ais c la ro os c o n c e ito s
elaborados 15 anos antes. Assim, em maio de 2005, surgiu uma nova
edição em francês, m eticulosam ente revisada por Daniel Koren, com
um a nova cap a (K lim t foi su b stitu íd o por P arm ig ianino) e com
m uitas alterações, incluindo algum as referências bibliográficas de
atualização que me pareceram im prescindíveis.
Gozo era bem recebido em toda a A m érica Latina, bem aceito
na E spanha e era freqüentem ente citado na bibliografia lacaniana
internacional em inglês e francês. M eu amigo Jean-Michel Rabaté me
fez se n tir ex trem am en te hon rad o ao ped ir-m e que escrev e sse o
c a p ítu lo s o b re “ D e s e jo e g o z o no e n s in o de L a c a n ” p a ra o
6 G ozo

Cam bridge C om panion to Lacan que ele preparava. R edigir esse


capítulo implicava resumir muitas das próprias teses do texto do livro
em espanhol; ali tam bém descobri, especialm ente pelas marcações
da tradutora, Tam ara Francês, que podia e devia explicar m elhor
m in h a s p ro p o s ta s m e sm o q u e as c r ític a s e x te r io r e s fo sse m
escassas.
Por todos estes antecedentes, autorizaria um a nova reimpressão
em castelhano ou submeteria todo o material a uma exaustiva revisão
de acordo com as alterações feitas na edição francesa? Escolhi esta
ú ltim a o p ç ã o e tra b a lh e i a v id a m e n te em m e a d o s de 2005 na
transform açi.o do texto. O resultado é o volum e que o leitor tem
agora em suas mãos.
A o rg a n iz a ç ã o n ão foi a lte ra d a ; os o ito c a p ítu lo s foram
m antidos, conservando seus títulos originais. M as não há nem um
p a rá g ra fo q u e te n h a a m e sm a re d a ç ã o , a lg u m a s re fe rê n c ia s
desapareceram , vários erros e erratas foram corrigidos (nada garante
que não apareceram novos), a bibliografia foi atualizada a partir da
edição de Autres Écrits de Lacan em 2001, muitos textos importantes
elaborados por colegas nestes anos foram incorporados às notas do
livro e, em algum caso, co n cretam en te no cap ítu lo III, “G ozo e
sexualid ad e” , sentiu-se, m ais que a conveniência, a exigência de
in c lu ir um item e sp e c ia l, o q u in to , p ara a b o rd a r as co m p lex as
relações entre o ensino de Lacan e o pensam ento de Foucault. Assim
surgiram essas páginas, articuladas com o conjunto do livro, sob o
título de “Freud (Lacan) ou Foucault” que atualizam o ponto m ais
debatido atualm ente da contribuição lacaniano sobre o gozo.
É tam bém nesse terceiro capítulo que aparece um a inovação
term inológica que me parece se impor, pelo m enos em espanhol: a
psicanálise é uma gozología. Alguns (Jean Allouch etc.) propuseram
que é um a erotologia, mas esses m esm os autores reconhecem que
essa dim ensão que eu qualifico de gozeira da psicanálise tem pouca
relação com E ros e sim um a ín tim a co n ex ão , q uan d o não um a
consubstanciação, com a freudiana pulsão de morte. Em francês ou
em inglês seria difícil encontrar um a palavra eufônica e correta para
nom ear isso que em espanhol fica tão claro e rico de significação:
gozología. Junto a esse novo term o surgem outros sintagm as que
a tim idez c o respeito por convenções linguajeiras m antiveram à
Reeditar, reescrever, atualizar 7

d is tâ n c ia te m p o a trá s: a s p ir a ç õ e s g o z e ir a s , c o n s id e r a ç õ e s
gozológicas, gozificação e desgozificação do corpo etc. U m a vez
que o gozo tomou seu lugar na conceituação freudiana e lacaniana,
a contribuição dos sufixos que nossa língua oferece converte-se em
necessidade expressiva para que não haja razões para renunciar.
Após estas considerações podem os voltar ao princípio e No
princípio...

N ésto rA . Braunstein
Cuernavaca, M éxico, janeiro de 2006
Prim eira Parte

T e o r ia
I

O gozo: de Lacan a Freud

1. N o com eço ...

Estaria tentado a com eçar com um a fórm ula gnômica:

Im A nfang w ar der Genuss (No princípio era o gozo),

que, é claro, se contraporia ao com eço do Evangelho de São João:


Im A nfang war das Wort (No princípio era a palavra).

Não me dccido a fazê-lo, porque a contraposição seria falsa e,


entre gozo e palavra, não se pode dizer qual vem prim eiro à m edi­
da que am bos se delim itam reciprocam ente e se im bricam de um
m odo que a experiência da psicanálise m ostra com o inextricável.
Porque som ente há gozo no ser que fala e porque fala. E porque
som ente há palavra em relação a um gozo que por ela se torna pos­
sível ao m esm o tem po que lim itad o . É claro que a fó rm u la Im
A nfang war der Genuss agradaria ao último Lacan, mas seria inim a­
ginável para G oethe e seu Fausto que do verbo (Wort) de São João,
passavam à fo rç a , ao sentido e, por fim, ao ato: No p rincípio era
o a to , um ato que tam bém , por força, é efeito da palavra e está em
relação com o gozo.
U m a alternativa seria causar equívoco, buscando um sinônimo
que pareça aceitável e escrever:
Im Anfang war die Freude (No princípio era a alegria),
12 G ozo

um aforism o que enfatizaria o aspecto bem -aventurado e jubiloso


que acom panha o gozo. Todavia, ao escrev er de tal m odo m inha
tentadora fórm ula gnôm ica com eçaria a confundir o gozo com sua
sig nificação co rren te, in esp ecífica, tão d istan te daquela que lhe
adjudicam os ao co n sid erá-lo um con ceito central na psicanálise
contem porânea. Por certo que, tratando-se de psicanálise, a seguinte
fórmula inevitavelm ente se ouve como muito parecida com a anterior:
Iin Anfang war Freud (No princípio era Freud).
E, uma vez pronunciada, deve-se buscar o G enuss, o gozo, em
Freud, em um Freud para quem o gozo nunca foi outra coisa senão
um vocábulo da língua, não fazendo dele um conceito de sua teoria.
A significação vulgar, a do dicionário, é um a som bra daquela
que convém distinguir constantem ente caso se queira especificar este
te rm o em seu c o n c e ito p s ic a n a lític o . E n e s s e tra b a lh o de
discrim inação nunca se fica de todo conform e; as duas acepções
sem pre passam , im perceptivelm ente, da oposição à vizinhança. A
vulgar converte em sinônimos gozo e prazer. A psicanalítica enfrenta-
os fazendo do gozo ora um excesso intolerável do prazer, ora uma
m anifestação do corpo m ais próxim a à tensão extrem a, à dor e ao
sofrim ento. E deve optar: ou um a ou outra.
E eis-m e, aqui, disposto a encadear um discurso sobre o gozo,
tarefa im p o ssív el, pois o gozo, sendo do corpo e no corpo é da
ordem do inefável, já que paradoxalm ente somente pela palavra pode
ser circunscrito, indicado. O gozo é o que escorre do discurso, mas
contudo esse inefável é a substância m esm a do que se fala ao longo
de um a análise e, tratarei de mostrá-lo, aquilo de que sempre e desde
sem pre fala o discurso da psicanálise. “G oze” ( “goce”, no original),
em espanhol, é um im perativo, um a ordem , uma injunção que não
poderia se confundir com seu precedente m ais arcaico na língua, o
“gozo” que, por ser inefável, é impossível de ser dito com o presente
do in d ic a tiv o da p rim e ira p esso a do singular. P ois, ao d izê-lo ,
dissolve-se, com o com o im pronunciável nom e de Deus. “G ozo”
(“g o c e ”, no o rig in a l) em esp a n h o l, d e r G e n u ss em alem ão, la
jouissance em francês. N unca enjoyment. G ozarão os tradutores do
in g lê s, b u sc a n d o em su a lín g u a a p a la v ra ju s ta . A te n d e n d o à
impossibilidade de nomeá-lo e à origem lacaniana do conceito muitos
optam sim p lesm en te pelo uso do francês: jo u issa n ce . “G ozo” e
O gozo: de Lacan a Freud 13

jouissance que derivam do verbo latino gaudere (alegrar-se) (sich


freuen, Freunde, Freud!) e que reserva* algumas surpresas na língua
c o rr e n te , q u a n d o se d e s d o b r a em su a s a c e p ç õ e s se g u n d o a
autoridade, segundo a Real A cadem ia Espanhola:
G o z ar: 1. T er e p o ss u ir a lg u m a co isa; c o m o d ig n id a d e , b e n s
o u re n d a .// 2. T er g o sto , c o m p la c ê n c ia e a le g ria p o r a lg u m a c o is a ./
/ 3. C o n h e c e r c a r n a l m e n t e u m a m u l h e r ./ / 4 . S e n t i r p r a z e r ,
e x p e rim e n ta r s u a v e s e g ra ta s e m o ç õ e s .

E interessante que a dim ensão objetiva da prim eira acepção


predom ine sobre a dim ensão subjetiva da segunda e da quarta, que
o gozo seja algo que se tem m ais do que algo que se sente. E é
s u r p r e e n d e n te a te r c e ir a a c e p ç ã o . N ão se p o d e d u v id a r do
invo lu n tário da d istração do acad êm ico ao não ex clu ir que seja
‘o u tr a ” m u lh e r a q u e p o d e c o n h e c e r c a rn a lm e n te a “u m a ” e
tam pouco se pode duvidar de seu pudor, não isento de lacanismo no
uso do artigo indefinido “um a”, pois não se pode aceder às mulheres
senão tom ando-as um a por uma. O sexism o sem ântico im prim e sua
m arca inconfessa nesta acepção: gozar, sim, mas de uma m ulher no
co n h ecim en to da carne. P areceria ser inconceb ível gozar de um
hom em . E, para elas, só restaria gozar “conhecendo” outra. Não há
reciprocidade no gozo. Palavra de acadêm ico em que o psicanalista
deverá pensar. “G ozar” que deriva do latim gaudere e que tem uma
herança reconhecida no verbo m uito castiço “foder” (“jo d e r” , no
o rig in a l), um v o c á b u lo que tev e de e s p e ra r que o c a le n d á rio
m arcasse o ano de 1984 para que a Real A cadem ia Espanhola lhe
desse lugar pela prim eira vez na trigésim a edição de seu dicionário
e com uma etim ologia que se quer arbitrária, pois o faz descender
do latim futuere (fomicar), do qual indubitavelmente deriva a palavra
francesa fo u tre. U m verbo que teve de esperar séculos para entrar
no dicionário e que finalm ente pôde fazê-lo, mas precedido de um a
advertência insólita: “Voz muito dissonante” 1 (algum a relação, ainda

* No original, o verbo está no singular, referindo-se apenas ao gozo, d eixan­


do de lado jo u issa n c e. (N. da T.)
1. Na últim a edição do D icionário da Real A cadem ia Espanhol (2001) segue-
se dizendo que é vocábulo m a!sonante, m esm o tendo sido elim inado o
advérbio m uito. Há um a certa atualização, correto?
14 G ozo

que por oposição, com a afirm ação lacaniana sobre a psicanálise


com o um a “ética do bem d izer” ?). De qualquer m aneira, o verbo
“foder” não teria muito do que se queixar, pois um a vez adm itido,
irrom pe carregado desde um princípio com quatro acepções muito
ligadas ao gaudere latino e a seus derivados g oza r e jo id r. Essas
q u atro acepções são, em sín tese, as seguintes: 1. F o rn icar.2// 2.
M olestar, estorvar.// 3. A rruinar, dar a perder.// 4. Interjeição que
denota assom bro ou incredulidade.
As proxim idades sem ânticas de “gozar” e “ foder” poderiam
nos lev ar a acrescen tar a esse p ar o verbo “jo g a r” (“ju g a r ” , no
original), especialm ente se considerarm os a proxim idade fonológica
em fra n c ê s e n tre jo u i r e jo u e r . N ão o b s ta n te , a in v e stig a ç ã o
filo ló g ic a nos e n sin a q u e p a la v ra s com o “jo g a r ” e “jó ia ” não
procedem do gaudere, e sim do jo c u m que é um gracejo ou uma
troça, algo próxim o ao Witz freudiano, se nos colocarm os no plano
da linguagem e de seus artifícios.
Seria tam bém possível pensar que este “jo g a r” (“ju g a r ” , no
original) explica o “conjugar” , a operação gram atical que se realiza
•■•;rbo mas apenas para advertir ao final que a “conjugação”
não é jo g o , mas subjugação, um subm eter os verbos ao torm ento
de um m e sm o ju g o (ju g u in em la tim ). J o g a r e c o n ju g a r que
re m e te ria m ao c é le b re sen tid o a n tité tic o das v o zes, ag o ra não
prim itivas, agora derivadas, que interessaram em seu m om ento ao
Freud paralingüista.
E útil o e sc la re c im e n to , a se m â n tic a e a e tim o lo g ia para
introduzir este vocábulo “gozo” que receberá da psicanálise outro
valor e brilho.
Em p sic a n á lise , o g ozo en tra atrav essan d o a porta de sua
significação convencional e assim aparece às vezes na escrita de
Freud, às vezes no Lacan dos prim eiros tempos, com o sinônim o de
um a grande alegria, de prazer extrem o, de júbilo ou de êxtase.
Inútil e m odesto seria fazer o assinalam ento das oportunidades
em que Freud recorre à palavra G enuss. M as seria bom recordar,
independentem ente dos vocábulos usados, certos m omentos capitais

2. Na edição de 2001 “ fornicar” foi convertido para "p ra tic ar o coito''


O gozo: de Lacan a Freud 15

em que o gozo, agora lacaniano, é destacado por Freud no espaço


da c lín ic a . S o b re is s o , n ã o se p o d e d e ix a r de m e n c io n a r a
voluptuosa expressão que ele observa no H om em dos Ratos quando
recorda o relato da tortura, um intenso prazer que era desconhecido
pelo paciente no auge do horror evocativo. Ou o júbilo que Freud
percebe no rosto de seu netinho quando está envolvido em brincar
com um objeto, o fam oso carretel, da m esm a form a que o próprio
m enino é jogado pela alternância entre a presença e a ausência da
mãe; jogo de vai-c-vem do ser que se reitera ao fazer entrar e sair
sua im agem do m arco de um e sp e lh o . Ou o go zo v o lu p tu o so ,
infinito, que experim enta o presidente Schreber, tam bém diante do
espelho, ao constatar a transform ação paulatina de seu corpo em um
corpo feminino.
O v o c á b u lo “ g o z o ” a p a re c e no e n sin o de L acan afeta d o
tam bém pelo uso convencional; não podia ser diferente. Assim foi
até um m om ento que pode ser especificado com rigor cronológico.
M as, antes, encontram os o gozo com o equivalente do júbilo, e o
júbilo encontrando seu paradigm a no reconhecim ento no espelho da
im agem unificada de si m esm o, do m oi (alia Erlebnis). Logo surge
o gozo no advento do sím bolo (fort-da) que perm ite um prim eiro
nível de autonom ia frente aos m andados da vida.
R eferência errática ao gozo nos prim eiros anos de um ensino,
o de Lacan, que se centra em torno do desejo: a relação do desejo
com o desejo do O utro e do reconhecim ento recíproco, dialético,
intersubjetivo dos desejos. Um desejo que transcendeu os m arcos
da necessidade e que som ente pode se fazer reconhecer alienando-
se no significante, no O utro com o lugar do código e da Lei.
Não é que o desejo esteja desnaturalizado pela alienação e por
ter de se expressar com o dem anda por m eio da palavra; não é que
o desejo caia sob o ju g o do significante ou que este o desvie ou o
transtorne; não, é que o desejo som ente ch eg a a ser desejo pela
m ediação da ordem sim bólica que o constitui com o tal. A palavra é
essa maldição redentora sem a qual não haveria sujeito, nem desejo,
nem m undo. E este o eixo do ensino de Lacan durante alguns anos,
até o fim da década de 1950. Os conceitos-chave nesse período são:
desejo, alienação e significante. Seu d iscurso gira em torno das
vicissitudes do desejo, a refração deste na dem anda articulada, o
16 G ozo

desejo de reconhecim ento e o reconhecim ento do desejo, o acesso


à realid ad e que p assa p ela im p o sição ao su je ito das c o n d içõ es
im postas pelo Outro (o mundo, a ordem sim bólica que induz efeitos
im aginários, a regulação da satisfação das necessidades e o ajuste
das condições dessa satisfação). São as conseqüências obrigatórias
de p e n sa r a p rá tic a a n a lític a co m o m o lin ete de p a la v ra s e de
reconhecer a função da palavra no cam po da linguagem.
Não foram poucos os discípulos e os leitores de Lacan que se
ativ e ra m a e s ta a p re c ia ç ã o m en o s p á tic a do que p a té tic a dos
c o n c e ito s . N ão fo ram m u ito s, se é q u e h o u v e alg u m , os que
perceberam a sacudida da árvore conceituai da psicanálise naquele
dia, já muito distante, em que Lacan anunciou que a originalidade da
con d ição do d esejo do hom em se im p licav a em outra dim ensão
diferente, em outro pólo contraposto ao desejo, que é o gozo.
De im ediato, nada pareceu notar-se. Foi m uito lentamente que
se fez p a te n te q u e o n o v o c o n c e ito re d e lin e a v a o e sta tu to da
p sic a n á lise e o b rig a v a a p ra tic a r um seg u n d o reto rn o a F reud,
colocando-se além da dialética do desejo na obra de subversão do
sujeito, tanto do sujeito da ciência quanto o da filosofia.
N ada havia de arbitrariedade em Lacan ao prom over, assim, a
n o ç ã o do g o z o a um lu g a r c e n tr a l da r e fle x ã o a n a lític a em
contraposição ao desejo, seu “outro pólo” . Por isso é necessário que
o conceito de gozo tenha que se esclarecer em um a dupla oposição,
por um lado, com relação ao desejo e, por outro, com relação àquele
que parece ser seu sinônimo: o prazer. Definir o gozo como conceito
é d is tin g u i-lo em seu v a lo r d ia c rític o d ife re n c ia l n e ssa d u p la
articulação com o prazer e com o desejo.
M as de onde vem a jo u is s a n c e ? Por que L acan recorre ao
te rm o g o z o e d e le faz um c o n c e ito c e n tra l? N ão o e x tra i do
dicionário da língua que se confunde com o prazer, não é da obra
de F reud na qual se liga ao jú b ilo e à voluptuosidade, ainda que
m asoquista. Temos de adm itir que a jouissance chega a Lacan por
um cam inho inesperado que é o do direito: Lacan se nutre com a
filosofia do direito de Hegel, na qual aparece o Genuss, o gozo, como
algo que é “sub jetiv o ” , “p articu lar” , im possível de com partilhar,
inacessível ao entendim ento e oposto ao desejo que resulta de um
reconhecim ento recíproco de duas consciências e que é “objetivo”,
O gozo: de Lacan a Freud 17

“universal”, sujeito à legislação. A oposição entre gozo/desejo, central


em Lacan, tem, pois, raiz hegeliana. Lacan lê Freud com um a faca
afiada na pedra de Hegel.
Não se insistiu o bastante sobre este ponto, m esm o que Lacan
o indicasse claram ente nas prim eiras lições do sem inário 20. Esta
im portação conceituai a partir da teoria do direito (proibições) e da
moral (deveres) poderia desenvolver-se am plam ente com profusão
de citações. C ontentar-m e-ei sim plesm ente em rem eter o leitor às
partes 36 a 39 da Propedêutica filosófica de 1810.3 E quando, então,
o dialético tom a partido contra o gozo que é “acidental” e quando
se pronuncia a favor do esquecim ento de si m esm o para se dirigir
ao que considera “essencial” das obras hum anas, aquilo que rem ete
e concerne aos demais.
Também a partir desta rem ota origem , vê-se que a questão do
gozo com o particular é um a questão ética. A psicanálise não pode
ser indiferente nesta oposição que enfrenta o corpo gozante com o
desejo que passa pela regulação do significante e da lei. A filosofia
e o direito, em suma, o discurso do senhor, privilegia a dim ensão
desiderativa. H egel, no texto citado, afirma: “Se expresso que uma
c o is a ta m b é m m e a g ra d a ou se m e re m e to ao g o z o , so m e n te
expresso que a coisa tem esse valor para m im . Com isso, suprim i
a relação possível com outros, que se baseia no entendim ento” .
Gozo que no discurso do direito rem ete à noção de “usufruto”,
de d esfru te da coisa com o um objeto de apropriação. O sistem a
jurídico oculta que a apropriação é um a expropriação, pois alguma
coisa som ente é “m inha” enquanto há outros para quem o “m inha”
é alheio. Pode-se gozar legitim am ente apenas daquilo que se possui
e para possuí-lo plenam ente é necessário que o outro renuncie às
suas pretensões sobre esse objeto. Aqui se encontram e confluem
rapidam ente as teorias do direito e da psicanálise. Coloca-se desde
um p r im e ir o m o m e n to a q u e s tã o fu n d a m e n ta l d a p r im e ira
propriedade de cada sujeito, seu corpo, e as relações deste corpo
com o corpo do outro tal com o estão asseg u radas por um certo
discurso ou vínculo social. Q uestão da com pra e da posse do outro

3. G. W. F. H egel. Propedêutica filo só fic a . M éxico: U nam , 1984. p. 59-62.


18 G ozo

na e s c r a v id ã o , no f e u d a lis m o ou no c a p ita lis m o e tam b é m


problem ática psicanalítica do objeto da dem anda; trata-se tanto do
objeto oral com o do excrem entício. O central é o gozo, o usufruto,
a propriedade do objeto, a disputa em torno do gozo do m esm o e
do g o z o m e sm o c o m o o b je to de litíg io , a a p r o p r ia ç ã o ou
expropriação do gozo na relação com o Outro. M eu corpo é meu ou
está consagrado ao gozo do O utro, esse Outro do significante e da
lei que me despoja desta propriedade que som ente pode ser minha
quando arrancada da am bição e do capricho do Outro?
O d ire ito m o stra com isso su a e ssê n c ia: a re g u la ç ã o das
restrições im postas ao gozo dos corpos. E, em outras palavras, o
contrato social. O que é lícito fazer e até onde se pode chegar com
o p ró p rio co rp o e com o dos d e m a is? T em a, co m o se vê, das
barreiras ao gozo. Licitude e licenças.
M as não é só a teoria do direito. Também a m edicina e o que
a psicanálise descobre nela atuam com o fonte de inspiração para a
promoção lacaniana do conceito de gozo. Foi em 5 de março de 1958
que, em seu sem inário dedicado a “As form ações do inconsciente”4
Lacan propôs a m encionada bipolaridade entre gozo e desejo. Mas
foi em um a o c a s iã o b a s ta n te p o s te rio r, em 1966, fa la n d o de
“Psicanálise e m edicina”, que ele recordou a experiência banal do
m édico obrigado a constatar vez ou outra que, sob a aparência da
dem anda de cura, esconde-se com freqüência um apego à doença
que derrota sem perdão os progressos que a técnica põe ao alcance
do m édico. Q ue o corpo não é unicam ente a su b stância extensa
preconizada por D escartes em oposição à substância pensante, mas
que “ foi feito para gozar, gozar de si m esm o” .5 Este gozo, disse, é
o mais evidente, ao m esm o tem po que o mais oculto na relação que
estabelecem o saber, a ciência e a técnica com essa carne que sofre
e q u e é fe ita c o rp o q u e se p õ e nas m ãos do m é d ic o p a ra sua
m anipulação. Ali está, à vista de todos: o gozo é a carta roubada que
o im becil do delegado não pode encontrar no corpo do paciente

4. J. L acan (1958). Le sém inaire. Livre V. Les fo rm a tio n s de l'in c o n sc ien t.


Paris: Seuil, 1998. p. 251-2.
5. J. L acan (1966). Intervenciones y textos. Buenos A ires: M anantial, 1985.
p. 86-99.
O gozo: de Lacan a Freud 19

depois de fotografá-lo, radiografá-lo, calibrá-lo e diagramá-lo até uma


escala molecular. O gozo é o vivente de um a substância que se faz
ouvir por m eio do desgarram ento de si m esm o e da colocação em
xeque do saber que pretende dom iná-la.
A m edicina surge, deve-se lem brar a lição de C anguilhem ,6
com o um a reflexão sobre a doença e sobre o sofrim ento doloroso
dos c o rp o s. A p re o c u p a ç ã o com a saú d e e co m a fis io lo g ia é
secundária ao interesse pela patologia. A m edicina define sua meta
como um estado de bem -estar, de adaptação e de equilíbrio. Não é
difícil reconhecer nela o ideal freudiano inicial (m édico, certamente)
do princípio de prazer, da menor tensão, da constância e o equilíbrio.
A saúde recebe da m edicina sua clássica definição: “é o silêncio dos
órgãos” . M as o silêncio não é senão ignorância, a indiferença do
co rp o e de suas p artes ante a a g itação da v id a. “ G o zar de boa
saúd e” pode ser, assim , um a renúncia à ex p eriên cia do gozo em
favor das vivências do prazer, do que alheia e aliena o sujeito da vida
do seu corpo com o um a propriedade de alguém , ele mesmo, que o
usufrui. N aquela conferência Lacan dizia: “O que cham o gozo no
sentido daquilo que o corpo experim en ta é sem pre da ordem da
te n s ã o , do fo r ç a m e n to , do g a s to , in c lu s iv e d a p ro e z a .
Indiscutivelm ente, há gozo no nível em que com eça aparecer a dor,
e sa b e m o s q u e é s o m e n te n e s s e n ív e l d a d o r q u e se p o d e
experim entar toda um a dim ensão do organism o que, de outro modo,
perm anece velada” .
O “gozo da boa saúde” pode ser o contrário do gozo do corpo
como experiência vivida do mesmo. A medicina vê-se, assim, dividida
entre as m etas do p razer e o gozo e, n o rm alm en te, assum e sem
crítica a dem anda que se lhe formula: a de colocar barreiras ao gozo,
ignorando-o com o d im ensão corporal da sub jetividade. Pode-se
aludir à pergunta sobre esta relação entre m edicina e gozo e o vínculo
que esse não querer saber do médico tem com o discurso do senhor,
ou p ode-se elud i-la. P refiro aludir a ela: outros poderão tratá-la
m in u c io sa m e n te .7 N ão serão os p rim e iro s, m as talv ez os m ais

6. G C anguilhem . Lo norm al v Io p atológico. B uenos Aires: Siglo XX I, 1971.


7. J. C lavreul. L ’ordre m édical. Paris: Seuil, 1979.
20 G ozo

precisos. Ao term inar sua conferência de 1966, Lacan definia sua


am bição: co n tin u a r e m an ter com vida p ró p ria a d e sco b erta de
F reud, fazen d o de si m esm o um “ m issio n ário do m éd ic o ” . Era
d estacan d o essa idéia do gozo do corpo com o o que se localiza
“além do princípio de prazer”, que Lacan assum ia de modo radical
sua missão, contrária à em presa universal da produtividade. O saber
resiste à noção do gozo inerente aos corpos, uma idéia que somente
se p ode p ro p o r a p a rtir da “d e sc o b e rta de F re u d ” , de F reu d no
sentido subjetivo do “de” , aquilo que Freud descobriu, e tam bém no
sentido objetivo, aquilo que L acan descobrir ao descobrir Freud.
Essa descoberta de Freud tem um nom e inequívoco: o inconsciente.
C abe então a pergunta: por que apenas a partir da novidade lançada
por Freud pode-se estabelecer o articulação entre gozo e corpo?
Para respondê-la, deve-se fazer um segundo “retom o a Freud” .

2. O g o zo em Freud

Pois... lm Anfang w ar Freud.


N o começo era Freud pregado ao discurso oficial da medicina,
aderido a uma concepção m ecânica e fisiológica do sistema nervoso
com o um aparelho reflexo que recebia e descarregava as excitações
que a ele chegavam. O organism o, tal como concebido pelo primeiro
F reud, está regulado por vias nervosas aferentes e eferentes que
aspiram evitar a tensão e a dor e provocar estados de distensão, de
ap azig u am en to , de d iferen ça en erg ética m ínim a, que se sentem
subjetivam ente como prazer. Para esse Freud médico e neurologista,
c e n á rio m ais do q u e a u to r d a d e s c o b e rta do in c o n s c ie n te , as
neuroses eram estados m órbidos que sobrevinham sob a form a do
sofrim ento quando o aparelho não podia livrar-se dos increm entos
de energ ia que o transform avam . R ecordem os esquem aticam ente
que ele reconhecia três organizações diferentes:8 um sistem a $ para
r e c e b e r as e x c ita ç õ e s e d a r c o n ta d as m o d if ic a ç õ e s q u e se

8. S. Freud (1896). O bras com pletas. Trad. J. L. E tcheverry. B uenos Aires:


A m orrortu, 1976. v. I, p. 1.
O gozo: de Lacan a Freud 21

produziam no entorno; um sistem a para equilibrar as cargas, para


facilitar os cam inhos de descarga, para fixar e avaliar as excitações;
e um sistem a co para registrar os acontecim entos com o experiência
m em orizada e oferecer um acesso direto à realidade.
N esta prim eira exposição m etapsicológica, de 1895, o eu faz
parte do sistema VF e ocupa um lugar decisivo no processo defensivo
a serv iço do p rin cíp io de p razer-d esp razer. C om este aparelho,
apresenta-se um a prim eira versão da origem e funcionam ento do
inconsciente.
O paciente da neurose, o “doente” , é um a criança que viveu
passivam ente um a sedução por parte de um adulto; a sexualidade
aparece p rim eiro no O utro. E ssa cria n ç a reg istro u (em co) essa
irrupção do real sexual externo. A lem brança é um a m arca que não
pode integrar-se no sistem a de representações (ou de “neurônios” )
que é o siste m a do eu ('P ), p o rq u e sua p re s e n ç a p ro v o c a um
aum ento tensional que não encontra cam inhos para sua descarga.
Em outras p alavras, a lem b ran ça trau m ática é um tipo de corpo
e stra n h o ao eu que am eaça o sistem a em seu co n ju n to . P ara o
p rin c íp io de p razer, q u e p re te n d e o e q u ilíb rio e n erg é tic o , e sta
le m b ran ça é in a ssim ilá v e l, não cabe na m em ó ria, e p o r isso é
separada do sistem a reconhecido das representações. É assim que
a lem brança se torna traum atism o, ao m esm o tem po ferida e arma
fe rin a que não se p ode to le ra r; d o r e to rtu ra de um a m em ó ria
inconciliáveis com o eu. O aparelho neuronal - ou o sujeito, caso
se q u e ira a rris c a r u m a p re m o n iç ã o de la c a n ism o se p a ra -se
horrorizado da lem brança. M as esse afastam ento, essa repressão,
longe de fa z e r d e s a p a re c e r a e v o c a ç ão do tra u m a, a ete rn iz a:
impossível m etabolizar e digerir, fica a lem brança como um quisto
localizado na estrutura psíquica. Já não é possível atenuá-la, dela se
esquivar com o raciocínio ou com o esquecim ento.
O paradoxo é evidente: o p rincípio de prazer determ inou o
ostracism o e a exclusão da lem brança traum ática. Para se proteger
do desprazer, o aparelho decretou a ignorância dessa presença do
Outro e de seu desejo que intervém sobre o corpo de um a criança,
objeto indefeso do qual abusa para gozar. M as, ao cindir-se com o
núcleo reprim ido de representações inconciliáveis com o eu, este
réprobo do psiquism o, m etam orfoseado em m em ória inconsciente,
22 G ozo

conserva-se para sempre, torna-se indestrutível, atrai e liga a ele as


e x p e r iê n c ia s p o s te r io r e s e r e to rn a , o p r e s s iv o , às v e z e s nas
p o sterio rm en te cham adas “form ações do in co n scien te” , entre as
quais o sintom a é a mais sensacional. Lacan insistirá em assinalar
que o reprim ido não existe senão por seu retorno e que a repressão
é o m esm o que o retorno do reprim ido. O princípio econôm ico do
p ra z e r e n g e n d ro u a p e rs is tê n c ia o n e ro s a e a n tie c o n ô m ic a do
intolerável que volta e faz sofrer. O sujeito, aquele do inconsciente,
experim enta a si m esm o na tortura dessa m em ória recorrente que
o põe em cena com o objeto da lascívia do Outro.
O eu p ro d u ziu o efeito parad o x al de ap risio n a r o inim igo
perigoso, o desencadeante de reações im previsíveis se deixado em
liberdade. Para conservá-lo na prisão, deve viver defendendo-se de
sua possível fuga, de um a fuga que não deixa de se produzir quando
se e n fra q u e c e m as d e fe sa s. F ic a su b m e tid o a seu su b m e tid o ,
escravo de seu escravizado. A gora, o agente traum atizante não é
mais o O utro, mas a lem brança da sedução que ataca - e sem pre -
desde dentro, desde sua prisão. Não há escape possível. O sistem a
gerou aquilo do qual, dorav an te, terá de se defender. O externo
tornou-se o mais íntimo, um interior inacessível e ameaçador.
E sta p rim eira teoria da etiologia das neuroses é o solo natal
d a q u ilo de q u e a p s ic a n á lis e n u n c a c h e g a rá a se d e sp re n d e r.
Incluindo aí a teoria do gozo.
A sedução. O corpo da criança é a coisa indefesa e se presta
ao abuso. O objeto reclam ado por e para o Outro. Essa sedução se
faz p resente com os prim eiros cuidados, com os m odos com o se
adm inistra .a satisfação das necessidades, com a regulação e sujeição
do corpo da criança às exigências e aos desejos inconscientes do
O u tro . H á um m otivo d aq u ilo que não p ode h av er m otivo, um
en ig m a sem solução. Q uem poderá definir o lugar que a criança
o cu p a com o objeto no fan tasm a do O utro, em especial o O utro
m aterno, que é o sujeito? Quem poderá saber o que ele m esm o e
d esd e o nascim ento rep resen ta no desejo do O utro? A se-dução
vetoriza, atrai e aliena o desejo da criança em relação ao desejo desse
O u tro q u e c h am a a si (se-d u z) ao m esm o tem p o em que erige
defesas e em ite proibições que constituem e rodeiam com cercas de
aram e farpado o objeto de um gozo eventual. D esejar e desejar o
O gozo: de Lacan a Freud 23

proibido. A sedução originária, essencial, não caricata, localiza o


gozo no corpo e o prepara para sua im ediata condenação. O gozo
chega assim a ser inaceitável, intolerável, inarticulável, indizível. Em
outras palavras: fica subm etido à castração. Assim, faz-se sexual a
sexualidade, canalizando-a pelas vias que Freud batizou com o nome
de um certo rei de Tebas de sorte tão funesta com o sua memória.
Parece que seguíam os no cam inho de Freud, mas, sem nos
afastarm os de suas form ulações, o desviam os no que se refere às
c o n se q ü ê n c ia s. O a p a re lh o p síq u ic o que d esen h am o s não está
governado por um princípio soberano, o do prazer-desprazer, mas
por dois princípios contrapostos. Colocando esquem aticam ente: de
um lado, o clássico princípio de prazer, regulador e homeostático (se
nos atreverm os a usar um a palavra que Freud nunca usou, se é que
chegou a co n h ecê-la); e, de o u tro , um p rin cíp io que está além ,
cham em o-lo por enquanto de gozo, gozo do corpo, que orienta um
retorno incessante de excitações irreprim íveis, um a força constante
que desequilibra, sexualiza, torna o sujeito desejante e não m áquina
reflexa. Não seria lícito figurar assim, m ediante o gozo, o Aqueronta
da in d e lé v e l ep íg ra fe da T ra u m d e u tu n g ? a sa rç a ard en te onde
habitam as som bras irredim idas que perturbam para sem pre o sono
dos vivos? Flectere si nequeo superas, Acheronte movebo.
A carne do infans é desde o princípio um objeto para o gozo,
para o desejo e p ara o fantasm a do O utro. E le d ev erá con seg u ir
representar para si seu lugar no O utro, ou seja, deverá constituir-
se com o sujeito passando, im prescindivelm ente, pelos significantes
que procedem desse O utro sedutor e gozante e, ao m esm o tempo,
i n te r - d ito r do g o z o . O g o z o fic a a ssim c o n f in a d o p o r e s s a
in te rv e n ç ã o da p a la v ra , em um co rp o sile n c ia d o , o co rp o das
pulsões, da busca com pulsiva de um reencontro sem pre fracassado
com o objeto. Falo do Wunsch freudiano, efeito da experiência de
satisfação. Falo do desejo inconsciente e de seu sujeito.
O sujeito, aquele que Lacan introduz na psicanálise por tê-lo
ouvido falar nela, produz-se, então, com o função de articulação, de
dobradiça, entre dois O utros, o O utro do sistem a significante, da
linguagem e da Lei, por um lado, e o O utro que é corpo gozante,

9. S. F reud (1900). O bras com pletas, v. IV, p. 339-436.


24 G ozo

in c a p a z de e n c o n tra r um lu g a r nos in te rc â m b io s sim b ó lic o s,


aparecendo nas entrelinhas do texto, suposto.
A teoria traum ática do prim eiro Freud é a colocação em cena
d e sse e x c e sso de e x c ita ç ã o e carg a, d esse gozo im p o ssív el de
m anejar que se apresenta ultrapassando o sistem a am ortecedor das
representações (Freud), dos significantes (Lacan), que são o lugar
do Outro. O gozo: inefável e ilegal; traum ático. Um excesso (trop-
matisme, C. Soler) que é um buraco (trou-m atism e) no sim bólico,
segundo expressão de L acan .10 Esse buraco indica o lugar do real
insuportável. Deste modo, o gozo consegue ser o exterior, o Outro,
dentro de si mesmo, representante do Um resignado para entrar no
m undo dos intercâm bios e da reciprocidade. Um topos inacessível
para o sujeito que o aloja e que, por razão alheia, a do Outro exterior
in ternalizado, deve ser cu idadosam ente exilado. E sta posição de
exterioridade interior, tão semelhante àquilo que Freud chamou Isso
(E s), é trab alh ad a topolo g icam en te por L acan quando se fala de
extim idadeV É, sem dúvida, o obscuro núcleo de nosso ser (Kern
u n se re s W esen ). N ão se tra ta a í de p a la v ra s , não se tra ta do
in c o n s c ie n te . M as ta m p o u c o é a lh e io à lin g u a g e m , p o is é da
linguagem que fica excluído e é apenas pela linguagem que podemos
conhecê-lo. Não; não é palavra, é letra, escritura a decifrar. O de-
cifram ento do gozo requererá um capítulo especial, o quarto.
Ao resen h ar seu sem in ário sobre A lógica do fa n ta sm a em
1967, L acan 12 chegou a dizer que esse gozo, núcleo de nosso ser,
“é a única ôntica adm issível (avouable - confessável) para nós”. A
substância da análise. M as o gozo não pode ser abordado senão a
partir de sua perda, da erosão do gozo produzida no corpo pelo que
vem d esde o O utro e que deix a nele suas m arcas. O O utro não
corresponde a nenhuma subjetividade, mas sim às cicatrizes deixadas
na pele e nas m ucosas, pedículos que se com binam nos orifícios,

10. J. L acan. Le sém inaire. Livre XXI. Les non-dupes errent. A ula de 19 de
fevereiro de 1974. Inédito.
11. J. L acan (1959). Le sém inaire. Livre VII. L ’étique dans la psychanalyse.
Paris: Seuil, 1986. p. 167.
12. J. L acan (1967). R e s e h a s d e e n se n a n za . B uenos A ires: M anantial, 1984.
p. 45. O rnicur?, n. 29, p. 17, 1984.
O gozo: de Lacan a Freud 25

ulceração e usura, escarificação e lástima, m ágoa e dor, penetração


e castração. (Tudo isso é apenas paráfrase.)
O trauma freudiano explicava as psiconeuroses de defesa; agora
pode-se dizer que essa defesa é defesa frente a uma elevação no
gozo, que a defesa é neutralização de uma lem brança vivida de modo
prazeroso ou desprazeroso. Se a experiência foi de prazer, as defesas
e os controles devem erigir-se no próprio sujeito: a configuração
sin to m á tic a , c e n tra d a na fo rm a ç ã o re a tiv a , s e rá a da n e u ro se
obsessiva, a de alguém que se distancia de seu próprio gozo. Se a
e x p e riê n c ia foi d e s p ra z e ro s a , s e g u n d o F re u d , o p e rig o s e rá
representado com o provindo do Outro sedutor; as defesas serão as
da aversão e da conversão som ática próprias da histeria frente a um
gozo suposto no Outro. Os dois modos de relação com o desejo do
outro que caracterizam , distinguem e opõem a neurose obsessiva e
a histeria são, assim , m odos de separação. O sujeito se desvia do
gozo que é deslocado e realocado no corpo com o sintoma.
Com o estabelecim ento da neurose, isso, o corpo, fala; o gozo
desterrado volta por seus foros, dem anda um interlocutor, dirige-se
a um saber que falta para que suas inscrições possam ser decifradas
p elo ú n ico d e s fila d e iro p o ssív e l, a p a la v ra . E ssa é a d o u trin a
freudiana do sintom a. A fórm ula consagrada e reiterada várias vezes
por Freud para definir o sintom a é “satisfação sexual substitutiva” .
A teo ria do tratam en to p sican alítico está fundada, desde o
princípio, na possibilidade de habilitar o cam inho da palavra a esse
gozo sexual, encapsulado e seqüestrado não disponível ao sujeito.
Em Freud, tam bém em Lacan no início, o objetivo é a inclusão do
reprim ido no contexto de um discurso am plo e coerente. A prática
da análise deveria perm itir a inclusão do gozo na história do sujeito
com o in teg ran d o -a a um saber que pode ch eg ar a ser o saber de
alguém , pronto a dotar-se de sentido, pronto, por isso m esm o, ao
e q u ív o c o e ao in c o m e n s u rá v e l. Wo E s w a r s o ll Ich w erd en .
Im possível dizê-lo com m aior econom ia.
E sta posição do sintom a como gozo encapsulado é paradigm á­
tica e vale para todas as formações do inconsciente. O inconscien­
te m esm o c o n s is te n e s s a a tiv id a d e d os p ro c e s s o s p rim á rio s
encarregados de operar um prim eiro decifram ento, um a transposi­
ção, uma Entstellung dos movimentos pulsionais até figurá-los como
26 G o zo

cum prim entos do desejo. A condensação c o deslocam ento, opera­


ções ex ercid as sobre um a su bstância significante, são passagens
dessa escritu ra originária à palavra, são processos de transform a­
ção do gozo em dizer, do gozo do corpo em dizer em torno desse
gozo. Os processos prim ários executam um contrabando do gozo.
O gozo, por ter de dizê-lo, é evocado, frustrado, deslocado para o
cam po do perdido, ao outro pólo: o do desejo.
M as o in c o n sc ie n te e x iste ap en as na m ed id a em que seja
escutado. Som ente se isso que é dito encontra um bom entendedor,
alguém que não o afogue no marulho do sentido, alguém que resgate
su a c o n d iç ã o e n ig m á tic a e h a b ilite um p o s s ív e l g o z a r do
d e c ifra m e n to . A ssim , o in c o n sc ie n te d e p e n d e da fo rm a çã o do
analista. O gozo, suposto prévio, será o efeito e o produto da ação
interpretativa que produz a boa sorte, a feliz hora de um saber alegre.
Toda a teoria freudiana sobre os sonhos e sua interpretação é
re-volvida p o r L acan a partir de suas conferências pelo rádio em
junho de 1970,13 na qual os processos do inconsciente são postos
em re la ç ã o com o g o zo . E, p o u c o d e p o is, no se m in á rio 2 0 ,14
e s p e c if ic a r á su a c o lo c a ç ã o ao e s ta b e le c e r q u e , a p e s a r d e o
inconsciente estar estruturado com o um a linguagem , não é menos
claro que o inconsciente depende do gozo e é um aparelho que serve
para a conversão do gozo em discurso. N ão creio que seja injusto
b uscar aí o sentido do aforism o freudiano clássico: “o sonho é a
realização de um desejo”. A realização do desejo (Erfiillung) é sua
satisfação, portanto, seu desaparecim ento com o desejo, com o falta
a ser, com o cisão do sujeito. Por isso, pode-se dizer que o sonho é
alucinação do gozo e tam bém defesa em relação a ele (em suma,
fo rm a ç ã o de c o m p ro m is s o ), p o is e s b a r r a no im p o s s ív e l de
rep resen tar e dizer. E sabido que o processo de interpretação do
sonho encontra um lim ite no contato com a satisfação desnuda do
desejo que deve figurar e que esse é o m om ento do despertar e da
angústia. A angústia é o afeto que se interpõe entre o desejo e o
gozo, entre o sujeito e a Coisa.

I 3. J. L acan (1970). Radiophonie. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. p. 403-48.
14. J. L acan (1973). Le sém inaire. Livre XX. E ncore. Paris: Seuil, 1975. p. 49.
O gozo: de Lacan a Freud 27

É lam bem sabido que a interpretação do sonho conduz a um


enigm a ininterpretável; é o ponto em que o sonho assenta no não
conhecido, em um inacessível lugar de sombras. F reud15 reconhece
e batiza esse ponto com o nome de “um bigo” do sonho; ele é, pode-
se generalizar, o um bigo de todas as form ações do inconsciente.
Todas elas podem ser com preendidas com o eflorescências, com o
fu n g o s q u e se e le v a m d e s d e um m ic é lio q u e e s tá além das
possibilidades do dizer: S (A). Faltam palavras para sim bolizar isso
que pelas próprias palavras chega a se produzir com o im possível,
real, gozo.
Não seria trabalho inútil reler sob esta luz toda A interpretação
d o s s o n h o s , m o s tra n d o a re la ç ã o q u e há e n tre a E n ts te llu n g
( d is to r s ã o ) o p e ra d a p e lo tra b a lh o d o s o n h o c o m o p rim e iro
decifram ento do gozo e pelo trabalho interpretativo do analista. Por
esse cam inho d esem bocar-se-ia no capítulo 7 e se descobriria na
concepção do aparelho psíquico a m aquinaria que converte o gozo
em um discurso que o evoca e que é a única via que perm ite abordá-
lo. R azão p ela qual o sonho é o cam in h o real que conduz... ao
impossível, a esse impossível decifrado e tom ado irreconhecível pelo
trabalho do inconsciente.
O in c o n s c ie n te em seu tear, u rd in d o os so n h o s, p e rm ite
c o n tin u a r d o rm in d o . E o g u a rd iã o do re p o u so . Se o so n h o é
form ação de com prom isso a serviço do princípio de prazer, é devido
à sua n a tu re z a b ifro n te. D e c ifra o g o zo , c o lo ca-o em palav ras,
cuidando ao mesm o tempo para que seu m ontante não exceda certos
lim ites de segurança, tratando de colocar o fluxo das representações
oníricas no centro desse “tijolo de segurança” por onde devem voar
os aviões para evitar a perturbação do encontro com outros objetos
voadores. E possível recordar que o prim eiro Lacan (na conferência
de 6 de ju lh o de 1953 sobre o im aginário, o real e o sim bólico)
enquanto preparava seu discurso de Roma, sustentava que a leitura
de A interpretação dos sonhos m ostrava que sonhar era imaginarizar
o sím bolo, enquanto interpretar o sonho era sim bolizar a im agem .
E bem que p o d eria ser assim , m as ao preço de d esco n sid erar o
resto , o sig n ific a n te do in d izív e l com qUe se tro p eça ao qu erer

15. S. Freud ( 1900). O bras com pletas, v. V, p. 5.


28 G ozo

sim bolizar a imagem [S (A)] e o do irrepresentável quando se trata


de im aginarizar o símbolo. O que ficaria de fora? O não especular,
o o b je to @ * q u e , c o m o c a u s a do d e s e jo (m a is -d e - g o z o ), é
justam ente o m icélio sobre o qual se eleva o fungo do sonho como
discurso e tam bém o discurso com o sonho, assento e suporte de um
prim eiro decifram ento do gozo. Assim entendem os, com Lacan, a
m icótica m etáfora de Freud. O sonho, cogum elo do gozo.
D eslocam ento? Sim ; deslocar, transpor. Esse é o trabalho do
in consciente. U m m ald ito (sa c ré ) d eslocam ento. E o de L acan?
Entstellung, re-flexão de Freud a partir do gozo. Segundo retom o.
Também nós terem os de retornar.
A “ P sic o p a to lo g ia da v ida c o tid ia n a ” 16 ilu stra, to m ando o
d is c u rs o c o m o um so n h o , a p re s e n ç a d e s te c if ra m e n to e
d e c ifra m en to do gozo. O su jeito tra n sto rn a d o , su b v e rtid o pela
em ergência de um saber inesperado (la p su s) ou pela falta de um
significante que traz associações perturbadoras (esquecim ento de
nomes próprios, inesquecível Signorelli) ou por uma ação que falha
na h ip o crisia do eu. O sujeito fica deslocado e envergonhado. A
tensão (u n ea sin ess) do corpo confessa o gozo que escapou pelos
resquícios da função intencional da palavra que consistia em mantê-
lo c in d id o e d e s c o n h e c id o . O s u je ito d o la p s u s é o s u je ito
“em baraçado” que m anifesta seu embaraço ao não saber m ais quem
é, porque o O utro éxtim o se expressou. A verdade pega a m entira

* O leitor pode se su rp reen d er ao en co n trar esta grafia para se referir ao


que L acan considerava sua criação m ais im portante. E le com eçou utilizan­
do o a em itálico para in d ic a r que se tratava de um objeto im aginário. O
uso habitual com a letra a m inúscula presta-se a co n fu sõ es em diferentes
c ontextos com a preposição “ a” em espanhol, ou com a conjugação do
verto “ter” (il/elle a) em francês. Se L acan tivesse co n tad o com nossos
d isp o sitiv o s atuais de escrita, é bem possível que houvesse adm itido este
signo (@ ) com entusiasm o: é um a letra pura, sem valor fonem ático, um a
e scrita caren te de toda significação, o m atem a por ex celência. H averia de
d izer que @ é @ -fônico. G ostaria que o uso da letra @ no texto que se­
gue pudesse c h eg a r a ser de uso universal em nossa álgebra Iacaniana. N a
linguagem falada, de q u a lq u e r form a, deverá seguir pro n u n cian d o a p ri­
m eira letra do alfabeto, da m esm a m aneira que d izem os “ zero ” ou “um ”
para m aternas que som ente podem ficar danificados pela fala.
16. S. Freud (1901). O bras com pletas, v. VI.
O gozo: de Lacan a Freud 29

no eq u ív o c o e o eu se re v e la n esse m o m en to com o fu nção de


d e s c o n h e c im e n to , de p ro te ç ã o fre n te ao e x c e sso , A p a la v ra ,
norm alm ente, tem a m issão de im pedir que essas fugas (cotidianas
e psicopatológicas) se repitam . M issão impossível.
Sabe-se que Freud trabalhava em 1905 sobre duas mesas. Em
uma escrevia “O chiste e sua relação com o inconsciente”,17 na outra
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” .18 Quem observou que
as duas obras são um a? Os freudólogos preo cupam -se ainda em
descobrir qual das duas foi prim eiram ente term inada ou publicada
sem considerar a fraternidade solidária entre as duas portas, duas
portas que são o corp o do sim bólico e o sim b ólico do corpo. O
chiste e a sexualidade, o atam ento entre palavra e gozo, revelam -se
tanto em um quan to no o u tro texto. D o lado do Witz, o afeto, a
a le g ria , a e x p lo sã o p ra z e n te ira da g a rg a lh a d a , a e x c ita ç ã o da
lem brança do chiste escutado ou relatado, o riso com o objeto de
intercâmbio, a dem anda que está im plícita ao relatar um chiste: “Dê-
me sua risa d a ” , a sacu d id a corporal que é p ro vocada p ela saída
insólita e surpreendente de um a palavra estranha ao discurso. Todas
são e x p re s s õ e s de u m a s e x u a lid a d e q u e d e s liz a e p a tin a no
pavim ento do significante. O corpo é um efeito feito na carne pela
palavra que o habita; é o corpo constitu íd o pelos intercâm bios e
respostas recíprocas às dem andas. A sexualidade - é a tese de 1905
- tem um a genealogia, que é a da dialética da dem anda e do desejo
entre o sujeito e o Outro. O sujeito é essa função de articulação entre
o corpo e o O utro, o corpo com o O utro e o O utro com o corpo. O
afeto é um efeito da incorporação da estrutura e da incorporação do
sujeito na estrutura. Esse é o chiste.
Q ue a palavra tome corpo, que o corpo tom e a palavra. O gozo
decifra-se no riso que está além do sentido. Se a explicação m ata o
chiste é porque o transfere desde o sem sentido, onde se goza, até
o sentido, onde sua existência já é de prazer. O gozo desconcerta,
o prazer con-certa, acalm a. C abe aos p sican alistas tirar a lição e
decidir para onde apontarão com sua intervenção: para o sentido que
dá prazer ou para o gozo que revela o ser?

17. S. F reud (1905). O bras com pletas, v. VIII.


IX. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. VII.
30 G o zo

A sexualidade endógena ou exógena? A pulsão, um fato natural


ou um efeito dos intercâm bios? O gozo, em anando do sujeito ou do
O utro?
As topologias bilaterais, diádicas, opositivas, não podem senão
extraviar. O im pério da ban d a de M oebius e sua d esconcertante
continuidade é aqui absoluto. A sexualidade não afeta o corpo a partir
de d en tro dele m esm o ou a p a rtir de fo ra do gozo p e rv e rso do
O utro, mas é litoral de união-desunião do sujeito e do Outro. Caso
fosse p o ssív el d esen h ar o su jeito e o O utro com o dois círcu lo s
eulerianos, dever-se-ia tom ar a precaução de não fazê-los com dois
traços fechados sobre si m esm os,

mas com um traço tão contínuo quanto o da própria borda da banda


de Moebius:

Sujeito Outro

no qual a m ínim a descontinuidade im posta ao arranco do vetor não


é m ais do que um artifício necessário à representação intuitiva, pois
nenhum a descontinuidade pode se m arcar no real entre um a e Outra
sexualidade. A sexualidade, a pulsão, o gozo. D e Um e do Outro. De
um fora que é dentro e de um dentro que está fora.
O princípio de prazer revela aqui sua essência. É o m odo de
conter e refrear, por m eio de um a instância interposta - o eu - o
gozo. Sua operação não depende da Lei. É uma barreira que Lacan
cham a “quase natural”.19 Seu funcionam ento é com parável ao dos

19. J. L acan (1960). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 821; E scrito s 2. M éxico:
Siglo X X I, 1984. p. 801.
( i )'o/.o: de L acan a Freud 3!

liiMvcis na instalação elétrica. A Lei, Lei aqui com maiúscula, agrega-


.(■ secu n d a ria m en te e faz d e sta b a rra q u ase n a tu ra l um sujeito
Iurrado. O prazer é um dispositivo built-in, incorporado desde o
pi incípio, um a função da ordem vital, incoerente, m as ineludível. A
e le se a g re g a rá, em um m o m en to lo g ic a m e n te p o ste rio r, um a
pmihição externa além de toda a contestação: é a Lei. Lacan escreve
Iri do p ra z e r” e “Lei do d e se jo ” . D ev e-se o b se rv a r o uso das
m in ú scu la s e das m a iú s c u la s q u e re m e te m u m as à o rd e m da
n .iiureza e o u tra s ao re g is tro sim b ó lic o . A lei do p ra z e r é o
lundamento, orgânico, diríam os, da Lei.
0 gozo está proibido ao que fala com o tal. A Lei funda-se por
t-sia proibição; é Outra, um a segunda, interdição. É aquela que Freud
encontra quando deve reconhecer em sua teoria e na clínica o caráter
decisivo, irredutível e heteróclito do com plexo de castração. E a
pmibição do gozo que traz um a m arca e um sacrifício: aquele que
iecai sobre o falo que é, por sua vez, o sím bolo dessa proibição. A
I .ei faz, assim, a lei entrar na ordem sim bólica. A Lei do desejo.
Tudo que foi exposto sobre a teoria lacaniana do gozo tem lu-
(■ar, em meio a esta revisão da obra de Freud na perspectiva de um
segundo retorno a ela para ressignificá-la em torno do conceito de
gozo, à m edida que, com o se sabe, o com plexo de castração é o
ponto culm inante da teoria da sexualidade na obra de Freud. Com
eleito, os três ensaios de 1905 não culm inam senão em 1923 com
o artigo “A organização genital infantil”20 que preanuncia os decisi­
vos acréscim o s que fez aos três ensaios, n a e d ição de 1924, na
leescrita da psicopatologia psicanalítica em 1926 com “Inibição, sin-
loma e angústia” e na nova teoria das perversões, autêntico final dos
"Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” , que é o artigo “Feti-
ih ism o ”21 de 1927.
Ter-se-á a oportunidade de voltar à relação entre gozo e cas­
tração. Poder-se-ia dizer que tal é a oposição fundam ental na clínica
lacaniana já que é o eixo sobre o qual se articula a direção do trata­
mento analítico. O interessante, no momento, é m arcar como a teoria
freudiana da sexualidade deve ser entendida a partir do com plexo de
eastração . E ad ia n ta r, d e sd e já , e s ta re la ç ã o das d u as leis: a do

20. S. Freud (1923). O bras com pletas, v. XIX , p. 145-50.


2 1. S. Freud (1927). O bras com pletas, v. X X I, p. 147-52.
32 G ozo

prazer e a Lei da castração ou do desejo. A segunda é a que se en­


carna - se incorpora m elhor do que se encarna no sujeito por
meio daquilo que Freud descobriu antes do com plexo de castração,
ou seja, o com plexo de Édipo. Incorpora-se, posto que faz da car­
ne corpo, desaloja o gozo dessa carne, o barra, o proíbe, o desloca,
o prom ete. O sujeito deve renunciar ao gozo em troca de uma pro­
m essa de outro gozo que é aquele próprio dos sujeitos da Lei. Pelas
vias - am bas assinaladas por Freud, am bas contestadas justificada-
m ente por Lacan - da angústia de castração m asculina e da inveja
fem inina do pênis, o sujeito vê-se levado, prim eiro, à localização do
gozo em um lugar do corpo e, segundo, à proibição do acesso a
esse gozo localizado se não passar antes pelo cam po da dem anda
dirigida ao O utro, ao Outro sexo, no amor. O gozo originário, gozo
da Coisa, gozo anterior à Lei, é um gozo interdito, m aldito, que de­
veria ser declinado e substituído por um a prom essa de gozo fálico
que é consecutiva à aceitação da castração: “Somente lhe é lícito pro­
curar aquilo que perdeu” .
O gozo fálico é possível a partir da inclusão do sujeito como
súdito da Lei no registro simbólico, com o sujeito da palavra que está
subm etido às leis da linguagem. O gozo sexual faz-se, assim, gozo
perm itido pelas vias do simbólico.
O freudiano com plexo de É dipo encontra, então, seu lugar
com o dobradiça articulatória entre dois gozos diferentes.
A Lei, que separa do gozo da mãe e põe o nom e-do-Pai nesse
lugar, o rd en a desejar; este d esejo en co n tra sua possib ilid ad e de
re a liz a çã o p o r m eio do viés do am or - q u e será um tem a a ser
tra ta d o na p e rs p e c tiv a do g o zo (c a p ítu lo 8) - , do am o r com o
sentim ento encarregado de suprir a inexistência da relação sexual e
de trazer de volta o gozo a que se teve de renunciar.
A obra de Freud, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
encontra sua continuação lógica nos trabalhos sobre a psicologia da
vida am orosa,22 também três, e nesse texto capital sobre o am or que,
de m odo aparentem ente paradoxal, cham a-se “Sobre o narcisism o:
um a introdução” .23

22. S. Freud (1910, 1912, 1918). O bras com pletas, v. XI, p. 155-204.
23. S. Freud (1914). O bras com pletas, v. XI, p. 65-98.
O gozo: de Lacan a Freud 33

É com o clínico da história am orosa de seus sujeitos que Freud


encontra as tendências disso ciativ as na vida sexual dos hom ens,
ten d ên cias essas que os levam a d e sm e m b ra r em si m esm os a
ternura e a sensualidade e a cindir o objeto am oroso entre a mãe e
a prostituta, assegurando assim sua insatisfação e fugindo sem parar
de um a para a outra. A partir daí, já em 1913, Freud enuncia em seu
texto “Sobre a degradação da vida erótica” que há algo im plícito na
p ró p ria p u lsão sexual que c o n sp ira c o n tra sua total satisfação .
Finalm ente, com seu terceiro artigo sobre a vida am orosa, “O tabu
da virgindade”, ele chega a distinguir na vida sexual o caráter inibidor
do gozo que tem o fantasm a do gozo do Outro, das m ulheres neste
c a so , e c o lo c a r á com c la r e z a q u e os d e s e jo s se e n g e n d ra m
reciprocam ente (ainda que a fórm ula segundo a qual o desejo é o
desejo do O utro não seja sua), enquanto os gozos de um e de outro
(sexo) instauram -se em um plano de oposição e concorrência.
A vida am orosa não é, pois, em nenhum m om ento da obra de
Freud, um a prom essa de bem -av cn tu ran ça e com plem entaridade.
Isto fica claro com o o dia quando se lê “Sobre o narcisism o: um a
introdução” . Por meio do am or, o sujeito tenta recuperar o estado
de absoluta felicidade de que supostam ente dispunha quando era His
Majesty, lhe Baby e era encarregado de suprir tudo o que faltava no
Outro. Prim eiro tempo do Edipo, identificação com o falo mais do
que “narcisism o originário” com o ali é cham ado. “D eve (o bebê)
realizar os sonhos, os desejos não realizados de seus pais” .24 Para
isso, co n ta com o am or p o r si m esm o, reflex o do am or que lhe
dispensa o Outro. A investidura sem lim ites que recebe sua própria
imagem especular será m odelo, eu ideal que terá de se perder e ser
re c u p e ra d a p o r m e io d a o b e d iê n c ia ao s d ita d o s do O u tro ,
constituindo-se aí o ideal do eu. O amor do eu ideal passa pela relação
am orosa com um outro que se eleg e sem pre segundo o m odelo
n a rc ísic o . A o u tra , a c h a m a d a e le iç ã o de o b je to p o r ap o io ou
anaclítica, não é senão um a variação da eleição narcísica, enquanto
as figuras de predileção am orosa, a mãe nutriz e o pai protetor, não
são nada além do sustento necessário para esse eu do narcisism o.
As outras quatro form as de eleição de objeto de am or (que não é,

.’■I. S. F reu d (1914). O bras com pletas, v. XIV, p. 88.


34 G ozo

obviam ente, o objeto do desejo) que Freud distingue são, clara e


confessam ente, narcisistas. Do gozo ao desejo, do desejo ao amor,
e o amor, por sua vez, recaindo sobre um objeto do qual se desloca
a im agem de si m esm o. N ão; não há nada o que fazer, a relação
sexual não existe.
M as o eu é, d esd e o p rin c íp io da o b ra de F reu d , d esd e o
“Projeto para um a psicologia científica” (E n tw u rf), de 1895, uma
instância de proteção e de desvio das cargas de tensão para torná-
las inócuas e assim lim itar a tensão sexual, ou seja, o gozo, que é
d esp ertad o no o rg an ism o q u ando se o rie n ta para a e x p e riên c ia
o rig in ária e m ítica da satisfação. A função do eu é regulada pelo
princípio do prazer, tende ao igualamento das cargas, à homeostase,
à evitação do desprazer, com o m enor esforço. Seu objetivo é o de
servir econom icam ente ao organism o com o um todo pondo limites
à tensão que se engendra no próprio organismo. O gozo, para Lacan,
é o que não serve para nada. Em Freud, não apenas não serve, como
a m eaça e c o n tra ria o p rin c íp io do d esp ra z er-p ra ze r. O m odelo
freudiano do gozo é o que encontram os, parece-m e, voltando aos
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, no Vorlust, no “prazer
prelim inar” que Freud opõe ao prazer final da descarga orgásm ica.
D esse prazer prévio, originado nas zonas erógenas, diz25 que é um
efeito que carece de fim e em nada contribui (antes da puberdade)
ao desenvolvim ento do processo sexual. Por isso Freud distinguia
a excitação sexual da satisfação sexual, que suprim e toda tensão e
serve, sob o m odo de “pequena m orte” com o antecipação do que
será depois o “princípio de N irvana”, o estado relratário a qualquer
n ova incitação. N ão inutilm ente, o capítulo dedicado ao tem a do
prazer prelim inar se intitula “0 problema da excitação sexual” (grifo
m eu). Esse “problem a” (para quem ?) é a prefiguração mais clara do
c o n c e ito d e g o z o de L a c a n q u e a p a re c e em F re u d a n te s das
concepções subversivas de 1920, formuladas em “Além do princípio
de prazer” .
É am plam ente conhecido o equívoco que se erigiu sobre as
teses freudianas que prom oviam a sexualidade a um lugar central na
constituição e na arquitetura do sujeito. Pretendeu-se fundar sobre

25. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. VII.


() gozo: de Lacan a Freud 35

F reud c o n s titu iç õ e s de a s p e c to te ó ric o q u e p re c o n iz a v a m a


liberação” da sexualidade, confundindo o orgasm o com a saúde
mental e m esm o com a felicidade. Fez-se da psicanálise um novo
evangelho da normalização genital. Deixou-se de lado o que qualquer
um poderia ver na obra de Freud: o pouco, o relativo, o am bíguo e
o pouco a le n ta d o r de q u a n to ele e sc re v e u so b re a c ó p u la e o
o rg a sm o , e o c e tic is m o co m q u e se m p re te v e o am o r corno
cam inho para ela. Podem os, agora, entendê-lo à luz da teoria do
gozo, pois o prazer aparece relacionado a ele com o curto-circuito,
como corte brusco que põe limites a um corpo que se experim enta
como tal. E o prazer da cham ada “satisfação sexual” que interrompe
o aumento tensional - seu m odelo é a em issão seminal no orgasm o
masculino - , trazendo, com a descarga, a decepção.
Ou seja, a p sican álise, com F reud e com L acan, coloca-se
como uma corrente contrária às ilusões que perm itiriam sonhar com
;i superação da cisão subjetiva por meio do encontro am oroso que,
no físico e no espiritual, suturaria o sujeito com o objeto, o exilado
to m sua pátria, o desejante com a Coisa. Sobre este fato, fatalmente
c o n stata d o na e x p e riê n c ia da a n á lise , fu n d a -se o e sc an d a lo so
aforism o lacaniano “a relação sexual não ex iste” , pois não existe
como rapport, como relação que se estabelece na lógica, e não existe
com o um novo aporte do que cada um perdeu ao entrar na vida,
com o efeito da seção, d a sexão, da re sse c ç ã o do gozo, que se
cham a castração.

y R etorno aos p rincípios freudianos

Voltemos ao princípio. Aos Amfangen da psicanálise, ao inédito


c já citado “Projeto...”, de 1895,2h fundam ento não renunciado e não
icnunciável de todas as construções m etapsicológicas posteriores.
Voltar ao princípio é retornar a esse com eço m ítico e absoluto
na experiência de satisfação que é o fia t lux da existência. Antes era
o c a o s tão a b s o lu to , q u e nem c a o s h a v ia , o in o m e a d o e

'<> S. Freud (1896). O bras com pletas, v. I.


36 G ozo

irrepresentável, o nada no obscuro claustro m aterno onde não havia


quem pudesse presum ir que ali algo se encontrava ou faltava algo.
O p o n to de p a r tid a do s u je ito , o p a rto do p s iq u is m o , é
concebido, então, com o a vivência do desam paro absoluto de um
organismo inerme frente à necessidade, incapaz de aliviá-la e acalmar
a excitação interna sem a produção de um a alteração externa que
tra g a o o b je to da s a tis f a ç ã o e p e rm ita a a ç ã o e s p e c íf ic a e
apaziguadora. A incapacidade do organism o para sobreviver por sua
conta o consagra à m orte. Som ente o Outro poderá salvá-lo e disso
derivará “sua autoridade obscura” . Vive-se sob a prem issa de que
alguém, “um indivíduo experim entado observa o estado da criança”.
P ara isso, é m iste r q u e esse O u tro e ste ja d isp o n ív e l e que sua
atenção seja alertada pelo choro, pelo grito que “cobra assim a função
s e c u n d á r ia , im p o r ta n te ao e x tre m o , do e n te n d im e n to (ou
co m unicação), e o desvalim ento inicial do ser hum ano é a fonte
prim ordial de todos os m otivos m orais” .27
A ação do próxim o auxiliador perm ite a vivência de satisfação
que, na perspectiva do organism o, torna possível a sobrevivência e,
na perspectiva da vida aním ica, m arca-se com a reprodução de um
norte absoluto p ara a b ú sso la do desejo. O d esejo ( W unsch) é o
m ovim ento subjetivo da reanim ação constante de lem brança dessa
vivência fundam ental. Todas as suas aventuras e desventuras serão
com paradas com o presum ido Paraíso da experiência de satisfação
que nada m ais é do que um a invenção retroativa. A pós expor, na
terceira pessoa, elucubração sobre a vivência de satisfação, Freud
pula para a prim eira pessoa do singular. Cito: “Não duvido que esta
anim ação do desejo p ro d u za inicialm ente o m esm o efeito que a
percepção, ou seja, um a alucinação. Se, em sua raiz, se introduz a
ação refletora, é inevitável a desilusão”.28
V ivência de satisfação-desejo-reanim ação do passado com o
a lu c in a ç ã o - c o m p a r a ç ã o do q u e há com o q u e h o u v e ( “ ação
re f le to r a ” )-d e silu sã o . In e v itá v e l. O q u e não fa lta é a fa lta ao
com parar o que temos com a experiência mítica, mágica, fantástica,
paradisíaca, perfeita, daquilo que tivem os e perdem os. O que não

27. Idem , ibidem , p. 362-3.


28. Idem , ibidem , p. 364.
( ) gozo: de Lacan a Freud 37

pode faltar é a desilusão. É isto que há no começo. Do psiquismo. Da


psicanálise.
Assim se dá. As percepções das coisas não harm onizam com
;i lembrança fundamental. Não totalmente; “som ente em parte”. Uma
parte do com plexo de representações, um “ingrediente”, perm ane-
i c idêntico, enquanto um segundo varia. O objeto da percepção de­
compõe-se: satisfaz o desejo e não o satisfaz. “Depois a linguagem
criará, para e s ta d eco m p o sição , o term o ju íz o ”.29 Assim, o ingre­
diente constante será nom eado com o a coisa do m undo (das Ding)
c o elemento inconstante será sua atividade ou propriedade, “seu pre­
dicado”.
N ão a p e n a s as m o tiv a ç õ e s m o ra is, m as ta m b é m to d o o
pensamento, “o ju lg a r”, surgem dessa m arca decisiva do Outro no
futuro sujeito, dessa representação inicial da C oisa que condena o
‘-cr a viver na d esilu são . E não p o d eria h av er d esilusão, se não
houver, antes, ilusão.
Para o ser no m undo, há apenas dessem elhanças, disparidades,
desencontros, desvios, dis-cursos. A coincidência do esperado com
o encontrado põe fim ao ato de pensar; o organism o se descarrega,
sc esvazia. A discordância, em contrapartida, proporciona o impulso
para o trabalho de pensar. Para discernir, na percepção presente, a
distância com relação à representação de das D ing ausente. Se se
produz um feliz encontro com o objeto, não há chance algum a para
o ato de pensar. São os setores em dissidência aqueles que despertam
o interesse.v)
Vive-se pelo Outro, pelo próximo, pelo Nebenmensch. M as este
ii;io é o ú n ic o s a lv a d o r. E, ao m esm o te m p o , “o ú n ic o p o d e r
■iiixiliador e o primeiro objeto hostil. Sobre o próximo, então, aprende
o ser hum ano a discernir... E assim o com plexo do próxim o cinde-
si- em dois com ponentes, um dos quais se im põe por um encaixe
constante, m antém -se reunido com o um a D ing (Coisa) enquanto o
miiro (com ponente) é com preendido por um trabalho mnêm ico... e
origina, pelo cam inho judicioso do estabelecim ento de diferenças, a
ii presentação do próprio corpo” .

"I Idem , ibidem , p. 373.


'() Idem , ibidem , p. 376.
38 G o zo

Talvez tenha que me desculpar por esta revisão do prim eiro


Freud que ninguém me pediu. E que me desculpe dizendo que nada
do que está aqui escrito responde à solicitude de ninguém e que
som ente pretendo colocar o leitor nas origens de das Ding, da Coisa
freudiana, p ara p oderm os ad en trar nos d esp enhadeiros do gozo
lacaniano. Ou que continue com o desenvolvim ento. Será melhor.
N o c o m e ç o ... Im A n fa n g w ar d a s D in g , m as q u a n d o é a
Coisa, não há sujeito que possa julgá-la. Perdida a Coisa (e o gozo
está do lado da Coisa, assim com o o desejo está do lado do O utro),31
depois de estabelecida um a disparidade irrecuperável com o objeto,
pode chegar a haver um sujeito. N a m arca, no rastro da C oisa. O
objeto, perdido, é a causa do sujeito. De alguém que ainda não é Um,
de alguém que se conta, pensa e tem m otivações éticas a partir do
que não pode subsistir sem esse Outro a quem prim eiro apela com
seu grito e depois com sua palavra articulada.
D as Ding é o que fica no sujeito como marca daquilo que nunca
haverá. A “descarga” ficou vedada, viver-se-á na desilusão, dever-
se-á pensar, discernir, estabelecer a diferença entre as coisas, todas,
e a Coisa, im peratriz intangível da vida aním ica, objeto absoluto.
E Freud não ficou no estabelecim ento desse ponto de partida.
A bordou tam bém , dez dias depois (entre 25 de setem bro e 5 de
outubro de 1895), as conseqüencias, ou seja, a passagem desse mito
da o rig e m p a ra “os p ro c e ss o s p s íq u ic o s n o rm a is ” . P ro c e sso s
norm ais que são possibilitados pelas “associações lingüísticas”, que
perm item “o pensar observador, consciente” . Com o? Porque esses
“signos de descarga lingüística... equiparam os processos de pensar
aos p ro c e sso s p e rc e p tiv o s , lhes dão um a re a lid a d e o b je tiv a e
possibilitam sua m em ória”.32
Vê-se com clareza que, em Freud, os processos de pensar não
têm em si “realidade objetiva” , mas que ela lhes é dada pelos signos
lin g ü ístico s que eq uiparam p ensam ento e percepção e os fazem
assim m e m o rá v e is, h istó ric o s. (Sig n o s = Z eich en . No ca p ítu lo
d e d ic a d o ao d e c if r a m e n to do g o z o tira re m o s p r o v e ito d a
term inologia freudiana.)

31. J. L acan (1964). É crits, p. 853; E scritos II, p. 832.


32. S. F reud (1896). O bras com pletas, v. I, p. 414.
O gozo: de Lacan a Freud 39

A realidade objetiva do pensam ento procede dos trilham entos


(Bahnungem ) lingüísticos. E esse decifram ento, esse transborda-
inento do ser pela linguagem, não tem sua origem na própria lingua­
gem, em um processo de aprendizagem ou de im itação da palavra,
mas na experiência de dor, no contato com
... o b jc to s -p e rc e p ç õ e s q u e fa z e m a lg u é m g r ita r p o rq u e e x c ita m
dor, e a d q u ire e n o rm e im p o rtâ n c ia q u e e sta a sso c ia ç ã o d e um som
(...) e n fa tiz e e ste o b je to c o m o h o stil e sirv a p a ra d irig ir a a te n ç ã o
p a ra a (im a g e m ) p e r c e p ç ã o . T o d a v e z q u e d ia n te d a d o r n ã o se
re c e b e m b o n s s ig n o s de q u a lid a d e do o b je to , a n o tíc ia do
p r ó p r io g r ita r s e rv e c o m o c a r a c te rís tic a d o o b je to . E n tã o , e s s a
a s s o c i a ç ã o é u m m e io p a r a t o r n a r c o n s c i e n t e s , e o b j e t o s d a
a te n ç ã o , a s le m b ra n ç a s e x c ita tó r ia s d o d e s p r a z e r . F o i c r ia d a a
p r im e ira c la s s e d e l e m b r a n ç a s c o n s c ie n te s . D a q u i a in v e n ta r a
lin g u a g e m , a d is tâ n c ia n ã o é g ra n d e (...) A s sim , a v e rig u a m o s q u e
o c a r a c te rís tic o d o p ro c e s s o d o p e n s a r d is c e r n e n te é q u e n e le a
a te n ç ã o e s tá v o lta d a d e a n te m ã o p a ra o s sig n o s d a d e s c a r g a d o
p e n sa r, o s s ig n o s d e lin g u a g e m .-*3

O que ficou de d a s D ing para o sujeito im aturo? Nada. Não a


representação, não a lembrança. Som ente o desespero pela ausência.
0 grito descarnado. O fundam ento do ser ja z nessa diferença entre
as representações possíveis e a coisa que desapareceu para sempre,
deixando a reprodução do desencontro e da disparidade sobre as
experiências da realidade, de um a realidade que depende de e, às
ve/.es, não é outra senão o O utro da linguagem , dessa linguagem na
qual haverá de transbordar as desrazões, estabelecer as diferenças,
lerá que alienar-se.
A incorporação do ser à linguagem é a causa de um des-terro
definitivo e irreversível com relação à Coisa. E a Coisa, na definição
dada por Lacan quando retom a e com enta Freud no seminário sobre
a é tic a na p s ic a n á lis e , é “ a q u ilo d o re a l q u e p a d e c e p e lo
••ignificante” .34 A ssim com o se d iria de alguém “que pad ece de
1 atarro”, que “padece do sintom a” . Voltaremos a esta definição.

' Idem , ibidem , p. 414-5.


'•I .1. L acan (1960). Le sém inaire. L ivre VII. L ’étique ilans Ia psvch a n a lyse.
A ula de 27 de jan eiro de 1960, p. 142.
40 G ozo

A palavra é o rastro que corre atrás do barco, o sulco que não


pode a lc a n ç ar o arado que o causa. M as do arado e do barco é
impossível saber senão pelas m arcas que deixam em seu caminho.
A terra e o mar, o corpo, em uma palavra, trazem sobre si a inscrição
do irrecuperável. A palavra grava-se na carne e torna essa carne um
corpo que é sim b o lizad o nos in tercâm b io s com o O utro. Falar,
pensar, passar pelos significantes da Lei; estes são os efeitos da falta
do objeto que tom a assim o lugar da C oisa (D in g ). Som os todos
náufragos resgatados do gozo que perdem os ao entrar na linguagem.
A conseqüência é o discernim ento, a distinção linguageira da
pluralidade e variedade dos objetos do m undo. O sujeito nasce e se
integra à realidade consensual e com partilhada a partir de seu exílio
da Coisa, essa Coisa que cria o silêncio ou o caos com o o que havia
anteriorm ente. A pátria é um efeito do exílio e da nostalgia.
É assim que Lacan elabora com o se constitui o gozo a partir
da “m itopsicologia” freudiana. No princípio era o Gozo, mas desse
gozo não se sabe senão a partir do momento em que foi perdido. Por
estar perdido, é. E porque o gozo é o real, o im possível, é que se o
persegue pelos criadores cam inhos da repetição. A palavra, vinda do
Outro, terá de ser o pharinakon, rem édio e veneno (cf. Derrida, La
disem inación3S), instrum ento am bivalente que separa e devolve o
gozo, mas sem pre m arcando-o com um minus, com um a perda que
é a diferença irrecuperável entre o significante e o referente, entre
a palavra e as coisas.
O gozo da C oisa está perdido, o gozo som ente será possível
atravessando o cam po das palavras. Mas será outro gozo: frustrado
e evocador; nostálgico. Temos de seguir com Freud e dar com ele
o salto irreversível que leva dos Am fangen ao Jenseits, dos começos
ao além, além do princípio de prazer, sobre o terreno já abonado pelo
que significou a descoberta do inconsciente e suas form ações como
modos de tratar o gozo, deslocá-lo e colocá-lo em palavras. Ponto
talvez propício para propor um novo aforismo: o inconsciente é um
trabalho cuja m atéria-prim a é gozo e seu produto é discurso.
O in co n scien te não seria nada sem a teo ria sexual. E vice-
versa. E da psicanálise nada resta a não ser se apoiar sobre esses

35. J. D errida. La disem inación. M adrid: Fundam entos, 1975. p. 192-262.


O gozo: de Lacan a Freud 41

dois pés: o inconsciente (que, com o se sabe, não é de Freud, mas


de Lacan) e a sexualidade que, como teoria, explica o esvaziam ento
do gozo do corpo e sua passagem à articulação significante da qual
resultam o sujeito e o objeto que é a causa de seu desejo. Temas que
deixo indicados aqui antes de retom á-los no capítulo seguinte.
Freud teve dificuldades para reconhecer desde o princípio essa
fonte perturbadora que assalta o aparelho desde dentro e que não
aspira à fantasia nem à retração. O naturalism o o levou depois a
c o n c eb ê -la co m o um a “e n e rg ia ” e d a r-lh e o nom e de “ lib id o ” ,
p a la v ra de o rig e m la tin a , m as q u e a p e n a s a lc a n ç a sua p le n a
significação quando se considera que Liebe é, em alemão, o nom e
do amor.
E foi com esse termo am bíguo de libido que Freud incluiu o
gozo (naturalizado, quantificado de modo metafórico) em sua teoria.
Seus relatos clínicos, sua concepção da “eleição da neurose”, seus
postulados genéticos sobre os deslocam entos da libido por zonas
distintas do corpo para acabar no “prim ado genital” que, para ele,
é o do falo, porque há som ente um genital, o m asculino, e somente
uma libido, aquela ligada ao órgão viril tanto no menino quanto na
m enina, são m odos de conceber o gozo e prestar-lhe um a m archa
teórica com patível com o conjunto da doutrina e da clínica. Assim,
eis a clínica psicanalítica com o um a história das errâncias do gozo,
de suas “fixações”, de suas “regressões” , de sua transform ação em
sintom as, de sua “in troversão” sobre fantasm as, essas form ações
im aginárias que substituem a ação no exterior e que são “reservas
naturais” do gozo. No fantasm a o gozo é assubjetivo, m anifesta-se
em sin to m a s, em re p re ssõ e s h isté ric a s, em fo rm ações reativas
obsessivas, em distanciam entos e precauções fóbicas, em invasões
irrefreáveis que determ inam a ruptura p sicótica com a realidade
exterior, em coagulações que se encenam na perversão. E a teoria
do tratam ento tam bém se im pregna com esta errância da libido sobre
os objetos externos: é assim que se confere um privilégio seletivo
à figura do psicanalista. A teoria do gozo é o fundam ento inconfesso
da tran sferên cia, que é ao m esm o tem po resistên cia e m otor do
tratam ento, ímã que atrai a libido e abism o insondável do qual terá
de se livrar para que um final de análise seja possível. Em suma, a
teoria da libido é a teoria do gozo. Tudo isto é muito sucinto, mas
42 G ozo

“recorra [a Freud] e o verá”,36 com o disse Lacan em outra ocasião


sobre a qual retornarem os.
O su je ito n asce p o r e s ta r e x ila d o da C oisa, do gozo não
sim bolizado e se orienta para um “prim ado genital” que não é outra
coisa senão a prim azia do significante, tendo esse significante como
fundam ento o falo, suporte de todos os processos de significação.
A tal ponto que dizer “A significação do falo” é um a redundância,
pois não há outra, conform e falava Lacan,37 ironizando o título de
um de seus “escritos” .38 D a C oisa ao falo, ou seja, à castração: esse
é o sentido da rota freudiana que acaba dando o lugar central na
psicopatologia ao com plexo de castração e às suas vicissitudes. O
com plexo reorganiza por retroação todo o acontecido anterior ao
estabelecim ento desta prim azia fálica. O processo de subjetivação
po d e e ste n d e r-se co m o um a su c e ssã o de m ig raç õ e s, e x ílio s e
esvaziam entos do gozo. A sexualidade passa, assim, por “fases” que
seguem essa longa jo rn a d a que leva do real anterior e exterior à
sim bolização (a C oisa dos com eços), ao real que fica com o saldo
im possível depois da sim bolização e que se pretende apreender com
as pin ças da p alav ra, m as que escorre e, além disso, se produz
com o efeito de discurso pela própria palavra, o objeto @, o fugidio
mais de gozo.
É por tudo isso que a sexualidade humana, com todas as suas
m ultiform es m anifestações, é ela própria m ais um a sublim ação do
que aquilo que é sublim ado. Sublim ar é sexualizar e não, como pre­
tenderia um a leitura apressada, “dessexualizar” . Pois a sexualidade
é sim bolização do gozo que é, assim, des-naturalizado, humanizado,
colocado em palavras na relação da m ulher e do hom em com seus
corpos e com o corpo do Outro. E aí que Freud se vê diante da ár­
dua questão da heterogeneidade dos gozos, enigm a que o leva à su ■
cessão de escritos em que trata de explicar a assim etria dos gozos
m asculino e fem inino a partir da assim etria que o com plexo de cas ■
tração (sofrido por ambos) determ ina com relação ao falo. Questão

36. J. L acan (1970). R adiophonie, p. 420.


37. J. L acan. Le sém inaire. Livre X V III. A ula de 2 de ju n h o de 1971. Inédito.
38. J. L acan (1958). L.a signíficación du phallus, In: E crits, p. 685-696 (E scri
tos 2, p. 665-75).
() gozo: de Lacan a Freud 43

chi heterogeneidade dos gozos que ocupará Lacan em seu esforço


para responder a pergunta freudiana: o que quer urna mulher?
Já mencionei que a observação mais precária da vida amorosa,
0 elem entar do que se escuta em uma análise, consegue m ostrar que
os seres hum anos, os falantes (falentes), não estão governados pelo
princípio de prazer. Freud não podia deixar de constatá-lo. E, se o
■iinor não pode ser entendido sem que se leve em consideração esse
1atai destino de ter de se inscrever com o gozo, pode m enos ainda
iiiribuir ao p rin cíp io de p razer a o u tra ativ id ad e que parece sua
contrapartida: a g uerra.19 As observações sobre a guerra e a m orte
do p e río d o da P rim e ira G u e rra M u n d ia l c o n c o rd a m com as
observações sobre a vida am orosa. O artigo dedicado ao tabu da
virgin d ad e411 (1919) ap resen ta a co n clu são de que os gozos não
co n flu e m , m as riv a liz a m -s e e n tre si. U m ano a n tes, já h av ia
observado e estabelecido que o desejo feminino não estava orientado
para o hom em , mas para o pênis e que o órgão podia ser substituído
simbolicamente pelo filho.41 O homem era ali, para ela, um apêndice
necessário, m as, em ú ltim a in stân cia, p rescin d ív el. E n q u an to o
homem, por sua vez, não podia tam pouco satisfazer, ou melhor, não
satisfazer sua aspiração sexual com um a m ulher que é apenas um
substituto (E rsa tz) da mãe proibida.

I. A lém do prin cíp io de prazer

É n e c e s s á r io m e m o riz a r to d o s e s te s a n te c e d e n te s p a ra
com preender o trabalho de Freud nos com eços de 1919, uma época
cm que se p oderia dizer que não trabalhava em duas m esas, mas
\im cm três e que o leva a um a reform ulação que im plica um novo
começo para a psicanálise. Com efeito, ainda que “Além do princípio
de prazer”42 veja a luz em 1920, sua redação data dos m eses de

'•>. N. A. B raunstein. El psicoanálisis y la guerra. In: P or el cam ino de Freud,


M éxico: Siglo X X I, 2001. p. 28-40.
10 S. Freud (1917). O bras com pletas, v. X I, p. 189-204.
11 S. Freud (1917). O bras com pletas, v. XII, p. 118-22.
I ’ S. Freud (1920). O bras com pletas, v. X V III, p. 7-62.
44 G o zo

m arço a maio de 1919, mês que tam bém viu a segunda e definitiva
redação do artigo sobre “O estranho” (D as U nheim lich).41 Por sua
vez, o térm ino de “Bate-se num a criança”44 teve lugar em m arço de
1919. N unca se destacou o bastante, nem sequer o próprio Freud,
a diáfana unidade dos três textos e a luz que eles, com o conjunto,
lançam sobre (e recebem de) o conceito de gozo.
C om eçando pelo estranho: por que aderiria o processo cultu­
ral a essas criações com caráter sinistro e por que teriam as repre­
sentações do horroroso a pregnância que têm sobre o imaginário dos
hom ens, se o princípio de prazer governa com o soberano? Por que
reincidiria o sujeito em pesadelos que o m ostram acuado, sem saí­
da, condenado a ser o objeto de sevícias c crueldades? Por que ape­
gar-se às antecipações da morte e do holocausto, às prem onições do
fracasso, aos fantasm as da vergonha, aos estragos c cobranças da
culpa, às possessões dem oníacas, às invasões do horrendo im pen­
sável, in e x p re ssá v e l? Q ual a n e c e ssid a d e ou a co n v en iên cia de
criar hidras e dragões, íncubos c súcubos, infernos e suplícios?
E p o ssív el q u e um a p rim e ira re sp o sta co lo q ue em jo g o a
consciência “que nos faz culpados”, o preço pago pelo prazer obtido
ou fantasiado, a presença em cada um a dessa instância revelada por
Freud nesses m esm os anos: o supereu.45 Não é m era coincidência,
não. A prim eira resposta que nos ocorre volta de im ediato com o
pergunta: e por que em um organism o supostam ente regido pelo
p rincípio de prazer, o supereu? É evidente que o supereu não se
com padece na busca de um a m enor tensão, mas instala no indivíduo
um a eficiente maquinaria para não dormir nos braços do prazer e para
exigir a retaliação por qualquer crime cometido, mesmo que seja mais
com o pensam ento do que com a ação. A tal ponto que não faltou

43. S. Freud (1919). O bras coniplelas, v. X V II, p. 219-52.


44. Idem , ibidem , p. 175-200.
45. M. G e rez A m bertín. L as voces dei superyó. B uenos A ires: M anantial,
1993. N esse livro encontra-se um a m inuciosa resenha do processo que
leva Freud a elaborar o conceito de supereu para dar conta do conjunto da
clínica psicanalítica. Igualm ente im pressionante é o trabalho sobre o su ­
pereu nos escritos e sem inários de L acan. Insistir-se-á nesta referên cia no
capítulo 8 desta obra.
O gozo: de Lacan a Freud 45

p s ic a n a lis ta (B e rg le r) q u e s u g e ris s e q u e e s tá re g id o p o r um
“princípio de tortura” .
O supereu é a instância que vigia e pune as transgressões, é
o código legal e penal e a força jurídica e policial que ordena dentro
de cada um o suplício. N a gráfica im agem freudiana (à qual não
poderíam os dar um estatuto ontológico) com anda a intranqüilidade,
ex ige satisfaçõ es que não são as das n e c essid ad es, nem as das
d e m a n d a s e m a rc a o d e s e jo co m o p e rig o so e im p re e n c h ív e l.
Esgrim indo a am eaça de castração nos homens e a do abandono nas
m u lh e re s, p e rp e tu a seu s im p e ra tiv o s de s a c rifíc io , de d ív id a
im pagável, de posse subjugante exercida pelo Outro. Sua exortação
incessante não é senão a que se expressa com um a única palavra:
“G o z e !” , ag o ra co m o im p e ra tiv o do v erb o que c o n flu i p a ra a
significação hom ofônica do substantivo. Com mais confiança, nos
tutearia, ordenando: “G oza!” (“Jo u is/”).
Com ele, graças a ele, o erotism o se tinge de culpa e a culpa
se erotiza, o am or se liga à transgressão, o prazer entra na caixa
re g is tra d o ra das d ív id a s, o p ecad o se faz g o zo, a c o n sc iê n c ia
conhece o gozo oral dos re-m ordim entos (rem orsos), as cham as do
inferno deitam sua som bra sobre a carne inflam ável de todos nós,
seres privados da relação sexual. O supereu troca o prazer por gozo,
p a ra que não se e x tin g a com os d e rra m a m e n to s da sa tisfa ç ã o
alcançada. D aí tam bém sua característica, assin alada por Freud,
re la tiv iz a d a p o r L acan no sem in ário sobre a ética, de ser m ais
prem ente quanto maiores forem as oferendas que recebe.
O apoio ao estranho ou om inoso pela presença constante do
su p e re u é p ro v a de um m a so q u ism o p rim o rd ia l que ab ra n d a ,
sem pre, o princípio de prazer. Conhecidas são as provas que Freud
traz por ocasião de sua reviravolta dos anos 1920. A com pulsão à
repetição, descoberta anos antes na transferência analítica, que nos
m o stra os fa la n te s co m o seres c a re n te s de in te lig ê n c ia , d essa
inteligência que governa o reino animal, isso que nos leva a tropeçar
du as v ezes na m esm a p e d ra p ara, d ep o is do seg u n d o tro p e ço ,
procurá-la pela terceira vez para que nos responda a pergunta sobre
o p o rq u ê de n os c h o c a rm o s co m e la nas d u as o p o rtu n id a d e s
anteriores e darm o-nos por satisfeitos até haverm o-nos derrotado
para tirar a pedra do cam inho e estarm os, assim , habilitados para
46 G ozo

tropeçar na seguinte. Que o diga Sísifo, que o conte Prometeu, que


o expliquem as D anaídes e os m ártires e os cientistas.
No m esm o sentido abunda a im possibilidade de se separar da
lem brança trau m ática, do acidente, da hum ilhação, da evocação
dolorosa que nos ataca desde dentro. Ou o jo g o das crianças que
c o n v o c a os f a n ta s m a s de se r a b a n d o n a d o ( fo r t- d a ), de se r
devorado, en v enenado, seduzido, golpeado, vigiado, perseguido,
acossado, torturado, vilipendiado, castigado.46
Ou a ex periência com provada às vezes na análise da reação
terapêutica negativa em que o sujeito não é digno do alívio de seu
sofrim ento, insistindo em sustentá-lo a ponto de preferir abandonar
a análise do que perm itir o restabelecim ento de sua saúde. Amam
seu s d e lírio s , am am seu s sin to m a s, m ais q u e a si m e sm o s, e
testemunham em sua carne esse infeliz imperativo do gozo. A defesa
é defesa do sofrim ento e a técnica psicanalítica é torpe se não tom a
o gozo, no lugar do prazer, com o ponto de partida na abordagem de
cada caso.
O supereu m arca o sujeito com um m andam ento de gozo. Mas
esse im perativo é tam bém um chamado: você não está a serviço de
si m esmo, mas presta contas a algo que lhe é superior e que é sua
causa, sua Causa. A existência lhe é oferecida e deve prestar contas
dela, ainda que não a tenha pedido, deve oferecer sua libra de carne
a um D eus inclem ente. O que re-liga os sujeitos é essa noção da
culpa de existir que se apagaria com a adoração e a gratidão A quele
que nos fez seus d evedores, a quem se instituiu com o credor. O
princípio do sacrifício é o fundam ento e não o efeito das religiões.
E o gozo é consusbtancial ao sacrifício. Em sua oferenda é o sujeito
que se oferece, se subm ete ao jugo que o instala na com unidade, que
o inclui dentro do vínculo social, fazendo-o partícipe do clã (socius).
E sabido que para Lacan, diferentem ente de Freud, a castração
não é um a am eaça, m as, pelo co n trário , é salv ad o ra. A am eaça
verdadeira, a terrível, é que não haja castração. A clínica mostra, às
vezes, que os defeitos na função do pai, que é a de incluir o sujeito
na ordem sim bólica, é a causa de um apelo desesperado, patético,

46. N. A. B raunstein. Mi papá me pega (m e am a). In: Freudiano v lacaniano.


B uenos A ires: M anantial, 1994. p. 151-72.
O gozo: de Lacan a Freud 47

à intervenção castradora que separe a criança do gozo e do desejo


da M ãe. É quando o sintom a vem suprir o defeito apontado. E a
esclarecedora leitura lacaniana, não freudiana, do caso do pequeno
Hans. O menino não tinha nada a temer desse pai dom esticado que
tão facilm ente cedia a ele seu lugar no leito junto à mãe. O cavalo
não é o sím bolo ou o equivalente do pai real, mas a figura do Pai
Ideal que é cham ado para corrigir a falha paterna.
Igualm ente, o fantasm a de “B ate-se num a criança”47 está cen­
trado em torno do segundo tem po do m esm o, o que cai sob a re­
pressão, que é a fórm ula “meu pai me bate” . Aí o castigo não anula
o sujeito, mas o cham a à ex-sistência, m arca-o com o pecador, de­
saloja-o do gozo m ortífero da mãe. E um instrum ento que funcio­
na com o significante (S,) e deixa com o saldo o sujeito (S) que dará
conta de seus atos no mundo da linguagem , por meio da palavra. Se
o chicote produz dor, é porque o O utro pede essa dor com o pren­
da de reparação e redenção, porque o O utro pede esse estrem eci­
m e n to da c a rn e m a c h u c a d a , e ss e p ra n to e e ssa p ro m e ssa de
subm issão. E a prova de que “você im porta para alguém ” . Se o nas­
cim ento do irmão, esse irm ão que se faz castigar no prim eiro tem ­
po do fa n ta sm a , e sse irm ão q u e e ra o c o n la c ta n e u m do o lh a r
envenenado observado por Santo Agostinho, ameaçava o sujeito com
a extinção, com o desaparecim ento do sujeito do campo do Outro,
o castigo do segundo tem po do fantasm a não apenas m ortifica o
desejo sádico expresso no prim eiro, m as devolve à existência e se
impõe a dívida de viver.48
Já m encionei o sem in ário de 5 de m arço de 1958 no qual
Lacan enunciou a relação e a oposição entre o desejo e o gozo como
fu n d a m e n ta l p a ra c o m p re e n d e r o que a c o n te c e na e x p e riê n c ia
p s ic a n a lític a . N e sse d ia se p ro to c o lo u o n a sc im e n to do novo
co n ceito dc gozo. N o sem in ário anterior, em 12 de fevereiro de
1958 ,4y L acan a ssin a la v a q u e os a ç o ite s arrancam o su je ito da
onipotência e o lançam na existência. A criança, assim, flagelada, não
é nem tudo nem nada. As chicotadas são dadas, têm algo de um dom

47. S. Freud (1919). Pegan a un nino. In: O bras com pletas, v. XVII.
48. N. A. B raunstein. Mi papá me pega (m e am a). In: F reudiano y lacaniano.
49. J. L acan (1958). Le sém inaire. Livre V. L es fo rm a tio n s de l ’in co n scien t,
p. 247.
48 G ozo

de significante que devolve à ex-sistência alienada, não em Um, mas


no O utro. F azer-se flag elar é um m odo de ra tific a r o desejo do
O utro colocado em dúvida desde o aparecim ento do rival. Isto é
freq ü e n te m en te co n sta ta d o nas crian ças p o litra u m a tizad as, nas
crianças que devem so b rep o r-se à hostilidade m o rtífera de suas
m ã e s, em ta n ta s v ítim a s f la g e la d a s , em ta n to s a c id e n te s e
m anifestações de um destino inflexível e atroz. O chicote produz a
abolição, mas também a constituição do sujeito em sua divisão; suas
chagas cham am à vida. O fantasm a do flagelo está além do princípio
de prazer, certo; é gozo, certam ente; m as é também o princípio de
um a segurança, a de ser um objeto que conta no desejo do Outro.
“Porque te quero, te espanco” é a significação latente dos fantasmas
de Jó que asseguram ao sujeito um lugar no discurso do senhor e
o cham am ora à resignação, ora à rebelião. Também acontece assim
no gozo de C risto ao inverter a dívida sob a form a da invocação:
“M eu Senhor, m eu Senhor, por que m e a b an d o n astes?” . A ssim ,
existir é existir para a Lei, ser sujeito a ela, assegurar-se de que todos
os seres hum anos estão sob a palm atória e recebem seu ser junto
com a m arca do desejo do O utro. Assim é com o, historicam ente,
se apresentou e se justificou o discurso do senhor.
T od o s esse s arg u m e n to s ju n to s fizeram F reud p o stu la r a
e x istê n c ia de um a p u lsão fu n d am en tal, a de m o rte, da qual as
pulsões de vida são desvios, ram ificações que passam pela imagem
narcísica do eu. A pulsão de m orte é a pulsão, pura e sim ples. A
p s ic a n á lis e re c o m e ç a n os an o s 1920, q u a n d o as e x p lic a ç õ e s
naturalistas são q uestionadas. As tentativas do próprio Freud de
preservá-las sob o manto de um a “m itobiologia” são toscas e fazem
ressaltar, por contraste, aquilo de que se trata. Isto ocorre ao mesmo
te m p o em q u e F re u d se vê fo rç a d o a a b a n d o n a r o p ro je to de
construir um a m etapsicologia fundada no princípio de prazer. A
interrupção da série de artigos metapsicológicos de Freud ao término
dos cinco prim eiros50 não tem outra causa senão aquela que se lê
com o au tên tica co n tin u ação em “A lém do p rincípio de p ra z e r” .
Avançando sobre capítulos posteriores, tenho de dizer desde já que
a e x istê n c ia h u m an a não ap o n ta p a ra a d iste n sã o , m as p a ra a

50. S. Freud ( 1915-1917). O bras com pletas, v. XIV, p. 105-256.


O gozo: de Lacan a Freud 49

inscrição h istó rica, h isto rizad a, do p ad ecer su b jetiv o . A clín ica


m o s tra até a e x a u s tã o e sta v o c a ç ã o da p a la v ra p a ra se fa z e r
reconhecer com o signo, com o escritura, por m eio das desgraças,
dos açoites da vida, das ex igências de que o O utro reconheça a
passagem significativa do sujeito, das provações da resistência e
tolerância desse O utro, dos tensionam entos constantes e o máxim o
da lâmina libidinal.
Em tudo isso - e o que eu estou dizendo não é a opinião de
todos os lacanianos - . salta à vista um traço particular do gozo. O
g o z o é d ia lé tic o a in d a q u e se o p o n h a à d ia lé tic a do d e se jo .
Inicialm ente devem os entender que a referência dialética em Lacan
não é h eg elian a, pois em L acan não p o d e ria se rec o n h ec er um
m om ento final de síntese ao qual se chegaria por algum a “astúcia
da ra z ã o ” . C om e fe ito , c re io que não se p o d e su ste n ta r que a
dim ensão do desejo seria em si dialética, enquanto a do gozo não o
seria. Essa é a posição sustentada por J.-A. M iller51 em seu seminário
de 2 de maio de 1984: “O próprio conceito de gozo é um conceito
fundam entalm ente não dialético em relação ao desejo” . Nesse dia o
herdeiro de Lacan desenvolveu, com particular perspicácia, a idéia
de que o ensino de Lacan teria adotado um a linha oposta à dialética
a partir, justam ente, de seu texto de 1960, “Subversão do sujeito e
dialética do desejo no inconsciente freudiano”. Esta posição de M iller
é c o n g ru e n te , p o r o u tro lad o , com a q u e la s u s te n ta d a em sua
conferência “Teoria dos gozos” ,52 na qual defendia que é possível
d iz e r sem ro d eio q u e o d esejo é o d esejo do O u tro , m as não é
possível postular que o gozo seja o gozo do O utro. No que tem os
de concordar. Claro que o gozo de um não se confunde com o “gozo
do O utro” . Sem dúvida, não para evitar essa confusão, deixa o gozo
de estar ligado à dim ensão do Outro e à dialética do sujeito com ele.
E não é possível concordar com M iller, quando, nesse m esm o dia
de 1984, afirm ou que o desenvolvim ento do ensino de Lacan de
1960 a 1964, de “ Subversão do sujeito” a “Posição do inconsciente” ,
consiste na elim inação da referência dialética.

51. J.-A . M iller. Sem inário L ’extim ité. Inédito.


52. J.-A . M iller. Recorrido de Lacan Buenos Aires: M anantial, 1986. p. 149-60.
50 G ozo

O discutível dessa afirm ação de M iller com prova-se ao seguir


o fio do sem inário de Lacan, particularm ente quando chegamos a “A
lógica do fantasm a” e, muito especificam ente, à lição de 31 de maio
de 1967.53 Nesse dia, Lacan recordou que foi Hegel quem introduziu
a noção de g ozo e isso a p artir da co n trad ição entre o gozo do
senhor e o gozo do escravo, entre o ócio de um e o gozo da coisa
do outro “não apenas com o essa coisa que ele leva ao senhor, mas
ao transform á-la tornando-a aceitável”. Lacan incluiu esta referência
preciosa para entender a natureza dialética do gozo:
E d ip o n ã o s a b ia d e q u e g o z a v a . C o lo q u e i a q u e s tã o d e se
J o c a sta o sa b ia e, in clu siv e , p o r q u e não , se u m a b o a pa rte d e seu
g o z o n ã o c o n s is tia e m m a n te r E d ip o ig n o ra n te (...) q u e p a rte do
g o z o d e J o c a s ta c o rre s p o n d e a d e ix á - lo n a ig n o râ n c ia ? É n e s s e
n ív e l q u e , g ra ç a s a F re u d , c o lo c a m -s e a g o ra as p e rg u n ta s s é ria s
c o m re sp e ito à v e rd ad e (...) O q u e H e g el e n tre v ê é q u e n a o rig e m
a p o s iç ã o d o s e n h o r é d e re n ú n c ia a o g o z o , a p o s s ib ilid a d e d e
c o m p ro m e tê -lo to d o ao re d o r d e s ta d is p o s iç ã o ou n ã o d o c o rp o ,
n ã o a p e n a s o seu, m a s ta m b é m o d o o u tro . E o O u tro , a p a rtir do
m o m e n to e m q u e a lu ta so c ial in tro d u z o fa to d e q u e as re la ç õ e s
d o s c o rp o s e ste ja m d o m in a d a s p e lo q u e se c h a m a lei, o O u tro , c
o c o n ju n to d o s c o rp o s, (g rifo s m e u s )

Em suma, estas breves citações de Lacan de 1967 confirm am


a consideração do gozo em uma referência dialética, ainda que essa
dialética lacaniana e não hegeliana não leve a nenhuma síntese. Trata-
se nela do particular, m as de um particu lar que som ente aparece
com o tal à m edida que é um afastam ento com relação ao universal.
O gozo, sim , é do Um , mas desse U m não há prevenção possível,
se não for a partir do enfrentam ento com o Outro e com a divisão
instalada no Outro entre seu desejo e seu gozo. E, além disso, há um
gozo que depende da ignorância do O utro, que se extrai, com o na
J o c a s ta , de sa b e r que o O u tro não sab e. E e ssa é a d ia lé tic a ,
opositiva, divergente, dos gozos. Os gozos que não se definem em
si, mas diacriticam ente, por diferença, com relação ao que não é esse
gozo. O posição dos gozos entre o senhor e o escravo, entre o gozo
m asculino e o fem inino, entre o privador e o privado, entre o que

53. J. Lacan ( 1967). Le Sem inaire. Libre XIV. La logique du fantasm e. Inédito.
O gozo: de Lacan a Freud 51

sabe e o que ignora, entre uma raça e outra. Por que não estabelecer,
então, com o aprendem os a fazer com relação ao significante, que
o valor do gozo não tem outra substância senão um a diferença com
relação ao que este gozo presente não é l
H á ainda algo m ais a dizer em torno desta oposição binária
c o lo c a d a p o r L a c a n e n tre o g o z o e o d e s e jo . O d e s e jo de
reconhecim ento (do desejo), noção-chave do primeiro Lacan, auxilia
a luta dialética com o desejo do Outro e, portanto, o gozo da batalha,
da guerra por fazer reconhecer o próprio desejo frente ao desejo-
não-desejo do Outro. (D esejo-não-desejo, já que o desejo do Outro
é um desejo de ser reconhecido e não de reconhecer mais alguém).
E s ta é a c h a v e d o s te x to s fre u d ia n o s s o b re o m a s o q u is m o ,
co m eçan d o p o r “B ate-se n u m a c ria n ç a ” . E tam bém a ch av e da
clínica da vida e da história. Com o conceito de gozo (contraposto
ao de desejo), a luta de m orte entre o senhor e o escravo (com todas
as suas variantes e versões) encontra seu fundam ento.
“ Se m e c a s tig a m é p o rq u e m eu d e s e jo e x is te e não foi
desvanecido no desejo do Outro. Nesse castigo recupero meu gozo
ao preço de aliená-lo na relação de oposição com o O utro” . O gozo
se faz possível um a vez que se aplaca, com esta in terv en ção do
O utro que é aco lh id a com o um a salvação com relação ao O utro
gozo, este sim não dialético, que é o gozo terrorífico e irrefreado do
Um sem a interv en ção d iferen ciad o ra do O utro. O flagelo é um
significante que cham a à ex-sistência, a transitar por um a relação
d ia lé tic a e co n tra p o sta dos gozos que se a rticu la com a relação
dialética do desejo, m as que não se confunde com ela, com seus
“acordos” e com seus pactos sim bólicos. D eve-se recordar um a vez
m ais as fra se s de H e g e l, q u e fo ram c ita d a s no co m e ço d e ste
capítulo, para advertir que, na concepção ju ríd ica do gozo, este é
particular, diferentem ente do desejo que é universal. E tam bém que,
evocando Lacan em seu breve artigo dedicado ao Trieb de Freud,54
o desejo vem do Outro, enquanto o gozo está do lado da Coisa, do
lado do Um. De acordo. M as isso não exclui o gozo da dialética,
pois o gozo do Um apenas pode ser alcançado tirando-o do gozo do

54. J. Lacan. Du T rieb de Freud et du d ésir de l ’analyse. In: E c r its, p. 851-4.


(E scrito s II, p. 830-3).
52 G ozo

O utro c preservando-o de seus em bates. O gozo procurado pelos


açoites que provêm do Outro, do destino ou de Deus, é um a marca
que rubrica este desejo-não-desejo do O utro. Um a forma de forçá-
lo a reconhecer a existência de um.
G ozar é usufruir de algo. Essa “função no uso” é o despojo de
alguém que não dispõe do mesmo direito de usufruto. O corpo é esse
bem prim eiro que é, ao m esm o tem po, cam po de batalha entre o
gozo do U m e o gozo do O utro. A quem pertence o corpo? É ele
meu escravo e posso dispor dele ou, pelo contrário, sou eu o escravo
do Outro que pode dispor de mim e desse corpo que eu, fantasma-
ticamente, e em m inha condição de testa-de-ferro creio que “tenho”?
O que acontece com o Outro, que cova cavo nele, se condeno este
corpo à m orte (suicídio de separação) ou o m ortifico com drogas
que o anestesiam e o privam de responder às suas dem andas?
Não. O gozo está do lado da C oisa, com o dizia Lacam com
ju steza, m as não se alcança a C oisa senão separando-a da cadeia
significante e, portanto, reconhecendo um a certa relação com ela.
N ada ilustra m elhor isso do que o suicida, mas também se com prova
isso nos adictos, nos psicóticos, nos escritores para quem a escrita
represen ta um m odo de escapar aos vínculos do discurso. Todas
essas form as da adicção serão abordadas no capítulo 7.
O prazer está do lado do arco-reflexo. E o que leva a pata da
rã a se contrair, quando lhe é aplicada um a corrente elétrica. Jamais
se poderá criar um objeto. Os falantes inscrevem seus trabalhos, seus
discursos, no tem po. Vivem se m atando e deixando o testem unho
de seu p a d e c e r, de seu p a re c e r, de seu p a ra -se r. A su b stâ n c ia
verd ad eira da p u lsão de m orte e stá do lado do gozo, da dor, da
façanha.
A m o rte, p sic a n a lític a , não é a p re te n d id a in ércia de um a
natureza inanim ada, mas este registro em que se inscreve a paixão
im possível de um a subjetividade por meio de suas atri(e)bulações,
de suas derivas, de suas lutas antieconôm icas que vulnerabilizam o
princípio de prazer. Por isso, justificam -se os sarcasmos que Lacan
dirige a F reud, quando este fala das virtudes unitivas de E ros e
quando sustenta a idéia da vida, da vida humana, como orientada para
a criação de unidades superiores e cada vez m ais am plas. N ão é
necessário evocar a fissão nuclear para com preender que Freud -
O gozo: de Lacan a Freud 53

aí - não é congruente nem sequer consigo m esm o e que toda a sua


re fle x ã o so b re a h istó ria da h u m a n id a d e , em “ O m a l-e sta r na
civilização”, deixa m anifesta essa onipresença da pulsão de morte
com o su b strato últim o de toda ação hum ana no individual e no
coletivo.
A m e ta d a p u ls ã o n ão é o a p la c a m e n to , a s a tis fa ç ã o
(.Befriedigim g: Fried = paz), mas a falha que relança o m ovim ento
pulsional, incansavelm ente, sem pre para frente. E a história de cada
um é a h istó ria dos m o d o s de fa lh a r o o b je to im p o ssív e l; um
resultado da inexistência da relação sexual. E isto vale tam bém para
a h istó ria da cultura, da organização dos m odos de afrontar essa
inexistência.
O sujeito tem um a sub-stância que é gozo. Se a prim eira teoria
fre u d ia n a do p siq u ism o p ro p u n h a um su je ito g o v e rn a d o pelo
princípio de prazer e no qual a sexualidade era uma im pureza e um a
tensão trazida pela sedução do Outro, o adulto perverso. A segunda
teoria m ostra o increm ento das excitações com o algo que se origina
no interior (é a idéia de pulsão de m orte), que adere a fantasm as e
que requer do O utro que se integre dialeticam ente, de um m odo
especificado pelo estandarte do fantasm a, no aparelho do gozo.
O com entário e a reescritura da obra com pleta de Freud à luz
do gozo são possíveis e até necessários, pois renova o que Freud
disse. E stam o s ag o ra em co n d içõ es de refo rm u lar a h istó ria da
psicanálise à luz dos tom bos que sofreu e estabelecer quatro (ou
c in c o ) p o n to s e s s e n c ia is . O p r im e ir o é o d e s c o b rim e n to do
in c o n sc ie n te e seus p ro c e sso s de c o m p o siç ã o , com o p ro je to
freudiano de fazê-lo andar pelos cam inhos do princípio de prazer
(1895-1915). O segundo é o m om ento em que Freud transcende o
natu ralism o orig in ário e lança a teo ria escandalosa da pulsão de
m orte (1920-1930). Esse ponto, com o se sabe, não foi aceito pelo
m o vim ento p sican alítico oficial que preferiu inclinar-se por um
reflu x o do p e n sa r e p elo e d ific a r p s ic a n a lític o s em fu n ç ão de
objetivos hom eostáticos. C ontra esse refluxo, ergueu-se o “retom o
a F re u d ” lacaniano (1953-1958) que se concentrou em torno do
evidente, mas ao m esm o tem po do desconhecido, inclusive para o
próprio Freud, de que “o inconsciente está estruturado com o um a
linguagem ” , terceiro m om ento crucial da história da psicanálise, que
54 G o zo

abriu a p o ssib ilid ad e desse q u arto giro (a p artir de 1958) que é


aquele em que nos incluím os, analistas posteriores a Lacan. A tese
central é que o inconsciente está estruturado com o uma linguagem ,
sim, mas depende, com o tal, do gozo; é um processador do gozo
por meio do aparelho linguageiro que transm uta o gozo em discurso.
E ev id en te que p ara cada um d estes q u atro m om entos (ou
cinco, se in clu irm o s com o m ais um o tem p o de refluxo que se
produz entre o segundo e o terceiro [1938-1953]) corresponde uma
m odalidade diferente de conceber a psicanálise, sua prática, o lugar
do p sican alista e o processo de sua form ação. Em sum a, o gozo
perm ite e obriga a reescrever e refazer a psicanálise.
n

Os gozos distintos

1. E ntre gozo e linguagem

Todo sujeito está e é cham ado a ser. Esta convocação não po­
deria proceder desde dentro, desde algum a força interior que resi­
diria nele ou nela, de um a necessidade biológica que o im pulsionaria
a se desenvolver. A invocação é subjetivante, faz sujeito. A ele se
pede que fale, assum indo o nome que o O utro lhe deu. Tem de fa­
lar, dizer quem é, identificar-se. O Outro requer sua palavra: se a lin­
guagem m ata a coisa ao substituí-la, tornando-a ausente, a palavra
deve reapresentá-la, ordenando necessariam ente o reconhecim ento
deste Outro da linguagem , aquele que confere a vida, separando-se
d e la , m o rtific a n d o . O su je ito ad v ém , a lc a n ç a , a ssim , su a ex-
sistência... mas por ela deve. O Outro indica-lhe de mil m aneiras que
a vida que recebeu não é gratuita, que deve pagar por ela.
M as com que m oeda poderia pagar o infans, o sujeito anterior
à função da palavra, o preço de sua ex-sistência? Pagar quer dizer
que se aceita a dívida e o pagam ento é uma renúncia. Cada m oeda
entregue, não im porta sua natureza, é um a renúncia ao gozo; cada
vez que é dada, não pode voltar a ser usada. A com pra de um novo
objeto ou um novo em préstim o o b rig a a dar um a nova m oeda; a
p erd a é in ev itáv el. E p ara v iv er tem de pagar, d esp ed ir-se com
renúncia do gozo. É mais, a clínica m ostra os efeitos devastadores
que se produzem naqueles a quem a existência é dada gratuitamente,
56 G ozo

aqueles que não tropeçam com um O utro que seja demandante em


um sistem a de equivalências, aqueles que recebem antes de pedir,
fora do regim e de intercâm bios, quando a satisfação antecipada das
dem andas desfaz a própria possibilidade do desejo.
“ O to m a lá dá cá do leite e c o c ô ” 1 de q u e falei em o u tra
oportunidade m anda que a vida se desenvolva em um m ercado do
gozo, no qual nada se adquire a não ser pagando. A transação nunca
é a boa, nunca é aceita de boa vontade, nunca se sabe se o preço
pago corresponde ao valor do que se recebe em troca, mas é preciso
resignar-se com a perda que im plica entregar algo real em troca de
um a recom pensa que é sim bólica, um quantum de gozo em troca
do brilho inconsistente das im agens e das precárias certezas que dão
as palavras de am or e os signos sem pre falazes que em anam do
Outro, de um O utro que tam bém se pergunta por que haveria ele de
renunciar a seu gozo. O Outro com m aiúscula, representado sempre
p a ra o s u je ito p o r a lg u é m no im a g in á rio , p o r um o u tro com
m inúscula, com o que com eçam os a esboçar a função e tam bém os
im passes do amor.
O conflito entre o sujeito e o O utro seria fatal se não existisse
um a instância sim bólica que regulasse os intercâmbios. É a Lei, mas
esta, ainda que cega, não é neutra, pois se trata da Lei do O utro, da
cultura, que é consubstanciai à linguagem e se m anifesta para cada
falante com o a obrigação de se apropriar de um a língua materna.
A Lei é som ente a im posição destas lim itações e perdas do
gozo. Ser um bom m enino, um m enino cuidadoso, bem educado,
ou seja, seguindo a etim ologia, bem conduzido a partir de fora para
aceitar que a m ãe pertence ao O utro, que a mãe chega a existir a
partir do m om ento em que o O utro (Lei de proibição do incesto) a
barra com sua interdição, que o peito é um objeto im possível que
existe em um reino de alucinação, que o excrem ento tam bém deve
ser entregue para o gozo do Outro educador, que sua produção não
pode ser gozada por si m esm o, que se pode, em sum a, especular
com esse b em , re ta rd a r sua e n tre g a ou so ltá -lo q u a n d o não é
esperado, mas que a razão (lo g o s) do O utro acabará se im pondo

1. N. A. B raunstein. L ingüistería (L acan y el lenguaje). In: El lenguaje v el


inconsciente fre u d ia n o . M éxico: Siglo X X I, 1982. p. 172.
O s gozos distintos 57

sobre o gozo da acumulação e da tensão, que ao limite dessa barreira


n a tu ra l q u e é a lei d o p r a z e r se s o b re p õ e a L ei do O u tro ,
prom ulgando o im possível de sua franquia, e que os gozos de olhar,
ser visto, bater, cuspir, m order, vom itar, ser batido, falar, escutar,
ser o u v id o , g rita r e ser g rita d o , tod o s eles e stã o su b m etid o s à
educação, à repressão de seus representantes pulsionais, à supressão
discursiva das palavras inconvenientes, à retorsão sobre si mesmo,
à transform ação no contrário, ao d eslocam ento sublim atório dos
objetos e dos fins, ao desconhecim ento, à conversão do gozo em
vergonha, asco e dor, e da m ordida em rem orsos.
O s p a rá g ra fo s p r e c e d e n te s p o d e m se r e s u m ir em su a
co n c lu sã o : a in co m p a tib ilid a d e e n tre g ozo e L ei, que é Lei da
linguagem, a que obriga desejar e abdicar do gozo. Ela obriga a viver
convertendo as aspirações ao gozo em termos de discurso articulado,
de vínculo social. A dem anda está condicionada pelo que se pode
pedir. Do gozo o rig in ário não resta senão a n o stalgia que o cria
retroativamente, que o mitifica, a partir de quando foi perdido, já que
é irrecu p eráv el nessa fo rm a e que tem de ser vertido por outro
canal, pervertido. O corpo, em princípio um reservatório ilim itado
do gozo, vai progressivam ente sendo esvaziado dessa substância
(m ítico fluido libidinal) que passava por seus poros, inundava seus
m eandros e se agrupava em suas bordas oriliciais. Agora, poderá ser
alcançado, sim , mas passando pelo cam inho do narcisism o, pelo
cam po das imagens e das palavras, com o um gozo linguageiro, posto
fo ra do c o rp o ( h o r s - c o r p s ), su b m e tid o ao s im p e ra tiv o s e às
aspirações do ideal do eu que o com andam com falsas prom essas
de recuperação [I(A )].
Do gozo do ser ter-se-á passado para o gozo fálico. D a C oisa
a b s o lu ta do p o n to de p a rtid a , a b s o lu ta p o rq u e não c o n h e c ia
o b stácu lo s nem m ercados da renúncia, apenas ficam os objetos
fantasm áticos que causam o desejo desviando para outra coisa, as
coisas do O utro, as que som ente são m arcadas, quando alcançadas,
pela diferença frustrante, pela perda relativa à Coisa que pretendiam.
O o b je to @, o ferecid o co m o m a is-d e -g o z o (p lu s-d e -jo u ir ), é a
m edida do gozo faltante e, por isso, por ser m anifestação da falta-
a -s e r, é c a u s a do d e s e jo . P o is o g o z o de @ é r e s id u a l, é
com pensatório, indicador do gozo que falta por ter de transacioná-
58 G ozo

lo com o Outro que só dá tirando. Assim como a m ais-valia é o mais


de valor que produz o trabalhador, sendo-lhe arrebatado no próprio
ato da produção pelo O utro (assim o estipula o contrato de trabalho)
e restando para ele som ente um rem anescente de prazer sob a forma
de salário que relança o processo e que o obriga a regressar no dia
se g u in te , o m ais de g o zo é e sse g o zo q u e é a ra z ão de ser do
movimento pulsional e, ao m esm o tempo, o que o sujeito perde, seu
minus, a libra de carne, o valor usurário às vezes entregue à cobiça
insaciável do O utro Shylock.
M as ninguém se resigna de bom grado à renúncia que lhe é
e x ig id a . O g o z o re c h a ç a d o v o lta p o r se u s fo ro s, in siste . É o
fundamento da com pulsão à repetição. O perdido não é o esquecido;
mais ainda, é o fundam ento m esm o da m em ória, de um a m em ória
in co n scien te que e stá além da erosão, de um d esejo infinito de
recuperação que se m anifesta em outro discurso, o do inconsciente,
o da cadeia da enunciação que corre subterrânea e que alim enta e
perturba a cadeia do enunciado.
Para ter e conservar a vida teve de se aceitar a perda da bolsa:
nunca se term ina de perdoar o ladrão.

2. O gozo (não) é a satisfação de u m a pulsão

D ifundir, com en tar e estender, tirando novas conclusões do


ensino de L acan, ir além da letra de seus textos, não é operação
ise n ta de risco s. M u ita s v ezes o e x p o sito r c ita um a frase, um
aforismo de fácil m em orização e o leitor é seduzido pela facilidade
da expressão. M as um a citação é, em princípio, um a interpretação
(o a n a lis ta sa b e b em q u a n d o re c o rta u m a e x p re s s ã o de seu
analisante e a devolve subentendendo as aspas), e, além disso, é um
recorte que apenas conserva seu sentido à m edida que se conserve
o contexto em que o citado recebe seu valor. O problem a se agrava
quando, co m o a c o n te ce m u itas vezes, o p rim eiro c o m e n tarista
conhece e m aneja perfeitam ente o texto do qual extrai sua citação,
mas o entrega a um público que, por sua vez, torna-se o segundo
c o m e n ta rista , c ita d o r de seg u n d a m ão, fu n d a d o r de um a doxa
corrente que desfigura o ensino sem alterar a literalidade.
O s gozos distintos 59

Seja este prólogo uma introdução ao com entário de uma sen­


tença de Lacan que está alcançando um triste destino entre os laca-
nianos a partir dos comentaristas. Refiro-m e à expressão m ulticitada
de O gozo é a satisfação de uma p u lsã o que aparece com o frase
subordinada no m eio de um a oração no sem inário da ética.2
E sta fra s e é re to m a d a p o r J a c q u e s -A la in M ille r em seu
sem inário de 19843 e é levada quase ao absoluto em um texto de
D iana Rabinovich4 em que se lê: “O gozo, definido sempre por Lacan
com o gozo de um corpo, recebe sua definição clara em A ética: o
gozo é a satisfação de um a pulsão” . É atraente ter uma definição tão
co n c isa , a p aren tem en te irrefu táv el e a v a liz a d a pela p a lav ra do
M estre. M as nada seria tão perigoso. O equívoco se agrava pelo
m odo de intitular os sem inários que têm J.-A . M iller com o editor.
É sabido que Lacan nunca intitulou as aulas, apenas o seminário em
seu conjunto. E, ainda assim , de um m odo não definitivo com o o
prova o fato de os sem inários III, VIII e XI terem sido editados com
títulos diferentes dos que tinham quando eram aulas de seminário.
É m uito m enos possível evitar os equívocos quando se escandem
os sem inários em fragmentos e os nom eiam .
O sem inário de 4 de m aio de 19605 nos chega assim com o
título, talvez pouco discutível, de “A pulsão de m orte”. O que sim
é problem ático é que, com o segundo subtítulo, relativo a uma parte
de seu texto, aparece “O gozo, satisfação de um a pulsão” .
É necessário, então, voltar à precisão da palavra lacaniana para
não ficar com a falsa idéia de que a pulsão é com patível com a idéia
de satisfação, idéia profundam ente antifreudiana, já que para Freud
é a necessidade que é satisfeita, enquanto a pulsão é um ser mítico,
grande em sua indeterm inação, um a força constante, uma exigência
incessante im posta ao psiquismo por sua ligação com o corporal que

2. J. L acan (1960). Le sem inaire. Livre VII. L ’élique d a n s la psychanalyse.


Paris: Seuil, 1986. p. 248.
3. J.-A . M iller. S em inário L es réponses dit réel. Inédito, m im eo g ratad o ,
1983-1984.
4. D. R abinovich. S e x u a lid a d y significante. B uenos Aires: M anantial, 1986.
p. 47.
5. J. L acan (1960). Le sem inaire Livre VII. L ’étique d ans la psych a n a lyse,
p. 243-256.
60 G ozo

estimula além de qualquer domesticação possível, sempre para frente.


A pulsão não se satisfaz, insiste, repete-se, tende a um branco que
sem pre falha e seu objetivo não se alcança com a saciedade, com
a p a z ( F r ie d e ) de su a s a tis f a ç ã o (B e fr ie d g u n g ), m as com o
relan çam en to da flech a, sem p re tenso o arco de sua aspiração.
Freud6 pôde dizer que “a m eta de um a pulsão é, em todos os casos,
a satisfação que apenas pode-se alcançar cancelando o estado de
estimulação na fonte da pulsão” para se referir imediatamente depois,
às p u lsõ es de m eta in ib id a q u e “ ta m b é m ” se asso ciam a um a
satisfação parcial. Há um a distinção entre ter uma m eta e alcançá-
la. A meta (Z iel) é um a aspiração.
M as não é inútil, ou tarefa de estudiosos, dissipar o equívoco.
Pelo contrário, se o gozo não é a satisfação de um a pulsão, podemos
aprender da discussão aquilo que sim é ou, m elhor dizendo, em que
s e n tid o m u ito p a r tic u la r e r e s tr itiv o p o d e -s e d iz e r, co m o
efetivamente o disse Lacan, que o gozo é a satisfação de uma pulsão,
sim , mas de um a m uito específica, a pulsão de m orte, que não é
aquela em que se pensa em princípio quando se fala em geral da
pulsão e, muito menos, é a satisfação de toda e qualquer pulsão, de
um a Trieb indefinida no conjunto pulsional.
Para esclarecer isso definitivam ente deve-se recorrer ao texto,
em vez de percorrer seus despenhadeiros. Im põe-se a citação em
seu contexto:
C o isa p a r a d o x a l, c u rio s a , m as é im p o s s ív e l r e g is tr a r a
e x p e r iê n c ia a n a lític a d e o u tro m o d o , a ra z ã o , o d is c u r s o , a
a rtic u la ç ã o s ig n ific a n te c o m o tal, e s tá a í n o c o m e ç o a b o v o , e s tá
a í no e s ta d o in c o n s c ie n te , a n te s d o n a s c im e n to d e a lg o d e se ja
e x p e r iê n c ia h u m a n a , e s tá a í f u n d id a , d e s c o n h e c id a , in d o m a d a ,
ig n o ra d a in c lu s iv e p o r a q u e le q u e é seu su p o rte . E é e m re la ç ã o
a u m a s itu a ç ã o e s tr u tu r a d a d e ta l m o d o q u e o h o m e m tem , num
s e g u n d o te m p o , q u e s itu a r su a s n e c e s s id a d e s . A to m a d a do
h o m e m n o c a m p o d o i n c o n s c i e n t e te m u m c a r á te r p r im itiv o ,
f u n d a m e n ta l . M a s e s t e c a m p o , à m e d i d a q u e e s t á d e s d e u m
c o m e ç o o r g a n iz a d o l o g ic a m e n te , s o f r e u m a S p a ltu n g , q u e se
m a n té m em to d o o d e s e n v o lv im e n to p o ste rio r, e é c o m re la ç ã o a

6. S. Freud (1915). O bras com pletas. Trad. J. L. E tcheverry. B uenos Aires:


A m orrortu, 1976. v. XIV, p. 118.
O s gozos distintos 61

e sta S p a ltu n g q u e se d e v e a rtic u la r a fu n ç ã o d o d e se jo c o m o tal.


E s te d e s e jo a p r e s e n ta a s s im c e r ta s a r e s ta s , u m p o n to c e g o , e é
p re c is a m e n te a í q u e a e x p e riê n c ia fre u d ia n a c o n s e g u e c o m p lic a r
a d ire ç ã o d a d a a o h o m e m p o r su a p ró p ria in te g ra ç ã o .
P ro b le m a d o g o z o , q u a n d o e ste se a p re se n ta fu n d id o em um
c a m p o c e n tr a l de in a c e s s ib ilid a d e , d e o b s c u rid a d e e de
o p a cid ad e , em um c a m p o c erc a d o p o r u m a b a rre ira q u e to rn a m ais
d ifíc il se u a c e s s o a o s u je ito , in a c e s s ív e l ta lv e z à m e d id a q u e o
g o z o se a p r e s e n te n ã o p u r a e s im p le s m e n te c o m o a s a tis fa ç ã o
d e u m a n e c e s s id a d e , m a s c o m o a s a tis fa ç ã o d e u m a p u ls ã o , no
se n tid o em q u e e ste te rm o n e c e s s ita a e la b o r a ç ã o c o m p le x a q u e
tra to a q u i d e a r tic u la r d ia n te d e v o c ê s .1 (G rifo s m e u s .)
A p u ls ã o p r o p ria m e n te d ita é a lg o m u ito c o m p le x o ... p a ra
q u e m q u e r q u e se a p r o x im e d e la d e m o d o e s t r it o , p r o c u ra n d o
c o m p r e e n d e r o q u e F r e u d a r ti c u l a s o b r e e la . A p u ls ã o n ã o é
re d u tív e l à c o m p le x id a d e d a te n d ê n c ia e n te n d id a e m seu se n tid o
m a is a m p lo , o d a e n e rg é tic a . A tin g e u m a d im e n s ã o h is tó ric a , d e
c u jo v e rd a d e iro a lc a n c e te m o s d e n o s p re c a v e r.
E s t a d i m e n s ã o se m a r c a n a i n s i s t ê n c i a c o m q u e se
a p re se n ta , a o se re la c io n a r (a p u lsã o ) c o m a lg o m e m o rá v e l, p o sto
qu e m em o riza d o . A re m e m o ra ç ã o , a h isto riz a ç ã o , é c o e x te n s iv a ao
fu n c io n a m e n to d a p u ls ã o no q u e se c h a m a p s íq u ic o h u m a n o . É
ta m b é m a í q u e se re g is tra , q u e entra no re g is tro d a e x p eriên c ia, a
d e s tr u iç ã o .

Isto posto, L acan p assa a ilu stra r o c o n c e ito por m eio do


sistem a do p ap a Pio V I, fáb u la do m arq u ês de S ade em que se
propõe que é pelo crim e que o hom em vem a colaborar nas novas
criaçõ es da natureza. L acan então lê, p ara seus ouvintes, o que
talvez seja a citação mais extensa de seus 28 anos de seminário para
lhes ensinar, a respeito da pulsão de m orte, que ela deve cindir-se
entre o que resulta do princípio energético ou princípio do Nirvana,
que conduz ao zero, ao inanim ado, à aniquilação e, po r outro lado
(grifos meus), a pulsão de morte. E acrescenta:
A p u ls ã o d e m o rte d e v e s itu a r-s e n o d o m ín io h is tó ric o , j á
q u e se a r tic u la e m um n ív el q u e s o m e n te é d e fin ív e l e m fu n ç ã o

7. J. L acan (1960). Le sem inaire. Livre VII. L 'e tiq u e dans la psychanalyse,
p. 247-248.
62 G ozo

d a c a d e ia sig n ific a n te , ou seja, c o m o um sin a l, um sinal de o rd e m ,


p o d e n d o s e r c o l o c a d a e m r e la ç ã o c o m o f u n c i o n a m e n t o d a
n a tu r e z a . F a z f a lt a a lg o a lé m , d e o n d e e la p r ó p r i a p o s s a s e r
c a p ta d a e m u m a m e m o r iz a ç ã o f u n d a m e n ta l, d e m o d o q u e tu d o
p o s s a s e r r e t o m a d o , n ã o s i m p l e s m e n t e n o m o v im e n to d a s
m e ta m o rfo se s, m a s a p a rtir d e u m a in te n ç ã o in icial."

P ara L acan , então, seguindo B ern feld , “ um dos freudianos


mais ortodoxos” , deve-se distinguir entre o m ovim ento energético
até o zero e aquele que nós, com o analistas, podem os cham ar em
nosso registro de pulsão, algo que está além da tendência a retornar
ao inanim ado. Com a pulsão, que detectam os em nossa experiência,
encontram os algo que se aproxim a da vontade de destruição, “de
O u tra-co isa à m ed id a que tudo pode ser q u estionado a p artir da
função do significante” . Esta vontade de destruição que é, segundo
Sade, um a vontade de criação a partir do nada e recom eçar. Esta
força destrutiva e criadora está ligada à história com o m emorável e
m em orizada, suspensa da existência da cadeia significante. Lacan9
vê, assim, a pulsão de morte com o “um a sublim ação criacionista” .
Devem os relem brar as posições sustentadas por Lacan em seu
sem inário de 4 de maio de 1960 para articular os três sentidos do
term o pulsão caso se considere o nível energético que está fora do
registro da experiência psicanalítica e que é um a especulação que
poderíam os ch am ar “m etabiológica” de Freud; esse é o n ív el da
pulsão com o descrito em “As pulsões e suas vicissitudes” 1" de 1915,
cujo eixo é a pulsão sexual, sempre parcial. D ela Lacan deverá dizer"
q u e c o n to r n a o o b je to , o o b je to @, q u e te n d e a e le e q u e
n e c e s s a ria m e n te fa lh a , em c o n tra p o s iç ã o à p u ls ã o de m o rte ,
m em orizada, historizante, assim ilável a um a vontade de destruição
que conduz à inscrição do sujeito na cadeia significante. Estas duas
últim as, a parcial e a de m orte, são pertinentes ao nosso cam po e,
no fundo, podem reunir-se já que a meta últim a de toda pulsão é este

8. Idem , ibidem , p. 250.


9. Idem , ibidem , p. 251.
10. S igm und F reu d (1915). O bras com pletas, v. XIV, p. 113-134.
11. J. L a c a n ( 1 9 6 4 ) . L e s é m in a ir e . L i v r e X L L e s q u a tr e c o n c e p ts
fo n d a m e n ta u x de la p sychanalyse. Paris: Seuil, 1973. p. 163.
O s gozos distintos 63

registro da vida no sim bólico não por meio da obediência, mas da


transgressão do princípio de prazer.
Creio ser conveniente citar aqui um com entário anterior:12
A história, postula Freud em “O m al-estar na civilização”, é o
resultado da luta eterna entre a pulsão de morte e as pulsões de vida.
A história, diz H eidegger em sua Introdução à m etafísica, é o resul­
tado da luta eterna entre diké e tekhné, entre a norm a instituída que
aglutina unidades cada vez mais c o m p le x a s e te k h n é , a atividade
dissolvente do hom em que im pugna as ordens e as ordens do esta­
belecido para destruir o existente e criar novas form as de existên­
c ia ... A m b as c o n c e itu a ç õ e s se re c o b re m e c o n v e rg e m , m as a
heideggeriana é mais ajustada porque evita os equívocos biologistas
inevitavelm ente vinculados aos conceitos de vida e morte.
Se, com o acreditam os, a pulsão é o próprio da dem anda que
provoca o desvanecim ento do sujeito (S 0 D), ela, a pulsão, tropeça
no im possível de sua realização. A falta é estrutural; está inscrita no
O utro a que a dem anda se dirige [S (A )]. Em outras palavras, se
considerarmos a pulsão em relação com o campo da linguagem e não
cm um a discutível transcrição biológica e hedonista, não podem os
aceitar sem objeções o sintagm a “satisfação de um a pulsão” . Esse
sintagma não é nem lacaniano nem freudiano, pois parte da confusão
entre pulsão c n ecessid ad e, e a d istin ção entre os dois registros
sem pre esteve clara em nossa experiência. Se o gozo tem a ver com
a pulsão e na medida em que a pulsão deixa um saldo de insatisfação
q u e e s tim u la a re p e tiç ã o , e é n e s ta m e d id a q u e a p u ls ã o é
historizadora, já que m satisfaz. Em lodo caso, poder-se-ia afirm ar
que o gozo é o saldo do m ovim ento pulsional ao redor do objeto
porque isso que se delineia neste caso é o vazio da Coisa, o tropeço
com o real com o impossível.
A outra consideração que nos ajuda a entender a pulsão com o
sendo essen cialm en te pulsão de m orte é a que p arte tam bém de
Freud quando ele nos indica o caráter fundam entalm ente conserva­
dor das pulsões; elas tendem ao restabelecim ento de um estado an­
terior. Q ual é esse estado an terio r últim o a que pode se referir o

12. N. A. B raunstein. Las p u lsio n es y la m uerte. In: La re-flexión d e los


c o n ce p lo s de F reuden la obra d e L acan. M éxico: Siglo XXI, 1983. p. 47.
64 G o zo

falante? N ão é necessário considerar um estado m ineral anterior à


vida e aos intercâm bios m etabólicos tom ando em prestada de um
duvidoso discurso biológico a resposta para um segredo que pode­
mos elucidar com term os psicanalíticos. A morte não é senão aquilo
que restringe todo gozo possível do falante, pois não há gozo senão
do corpo vivente. D aí a consubstancialidade entre a pulsão de morte
e a ordem sim bólica situada por Lacan a partir de seu segundo se­
m inário,13 dedicado ao eu. Se a vida fica definida para nós a partir
do ingresso nas estruturas da subjetividade que são as da transação
com o O utro, ou seja, a partir de que a carne se faça corpo pela in­
trom issão do significante no processo vital, o m ovim ento pulsional
pode ser visto com o esta força que tende à recuperação do estado
anterior à palavra, ou seja, no que viem os trabalhando, à recupera­
ção da C oisa com o objeto absoluto do desejo, à recuperação desse
gozo do ser a partir do qual o sujeito chega a ex-sistir.
Coloca-se novam ente a antinom ia entre o gozo prim eiro, gozo
do ser, e a palavra com o vinda do O utro e co n sagrada ao O utro,
obriga à renúncia ao gozo e dá em troca o prazer e bloqueia o gozo
do ser, exigindo que este seja encam inhado e desencam inhado pelas
vias do pensar. S erá acessív el ao su jeito, sim , m as com o outro
g o z o , um g o z o se g u n d o , se c u n d á rio , se m ió tic o , lin g u a g e iro ,
palanfrório, já que fora do corpo, que a teoria - e já verem os por
quê, pois não é algo evidente, dando lugar a m uitas discussões e
m al-entendidos - considera e designa de um modo que poderíam os
cham ar forçadam ante com o nom e duvidoso, am bíguo, e contudo
necessário, de gozo fá lico .
H á um ponto de partida insondável e insuperável: os casos em
que a função da palavra não existe ou foi anulada e o vivente, ainda
q u a n d o e stá d e n tro do cam p o da lin g u ag em , não se inclui em
intercâm bios discursivos. Pense, à guisa de exem plo e paradigm a,
no autista ou no catatônico. Ou, para estar plenam ente no ponto de
partida absoluto, no recém -nascido e em sua situação com relação
ao O utro: a de um objeto deix ad o à sua disposição e arbítrio ou
arbitrariedade.

13. J. L acan (1954-1955). Le sem inaire. L ivre II. Le m oi... Paris: Seuil, 1978.
Os gozos distintos 65

É o estado de um a indistinção entre eu e o “m undo”, sendo o


m undo, essencialm ente, o corpo da mãe. E sta C oisa originária e
mítica, anterior a qualquer diferença, é cham ada por Freud em seu
texto de 1916 14 com o nom e de eu-real, que é inicial, ou seja, um
ser no real, anterior a qualquer reconhecim ento do O utro, anterior
à entronização posterior do princípio de prazer que construirá um
eu-prazer e que será o eu definitivo, aquele que aceitará em maior
ou m enor medida as coações da realidade que m odifica e continua
o princípio de prazer (poderem os nos deter neste ponto no item 7).
Em relação a este eu -re a l inicial é que in c id e a cham ad a
invocante do Outro que iniciou este capítulo, o apelo subjetivante.
A intervenção do Outro é assim antitética do gozo; desaloja desse real
pleno, expulsa do paraíso e o constitui como o que se perdeu.
A palavra é sempre palavra da Lei que proíbe o gozo. O Paraíso
existe a partir de duas árvores que há nele, cujos frutos não devem
ser com idos. A partir de então, está fechado o cam inho de volta à
C o isa {eu-real), re sta n d o ap en as o do d e ste rro e da re sig n ad a
habitação na linguagem . U m anjo de espada flam ejante assegura o
cum prim ento da Lei.
E sta m o s n e ste m o m e n to n e s ta b a rre ira a lé m d a q u a l e s tá a
C o is a a n a lític a , o n d e se p ro d u z e m fre io s e se o rg a n iz a a in a c e s ­
sib ilid a d e d o o b je to c o m o o b je to d e go zo . É ju s ta m e n te a í q u e se
c o lo c a o c a m p o d e b a ta lh a d e n o ssa e x p eriên c ia (...) P a ra c o m p e n ­
sa r e sta in a c e ssib ilid a d e , é a lé m d e sta b a rre ira q u e se p ro je ta to d a
su b lim a ç ã o in d iv id u a l, e ta m b é m as su b lim a ç õ e s d o s siste m a s de
c o n h e c im e n to e, p o r q u e n ã o , a d o p ró p rio c o n h e c im e n to a n a lí­
t i c o . 15

Ou a C o isa in a c e ssív e l ou o O utro. M as, se n d o e por ser


assim , o O utro é o o b jeto de um ódio p rim itiv o que ju stific a a
negatividade absoluta com o vocação originária do ser. Tal é a razão
de toda pulsão ser no fundo pulsão de m orte, ataque à exigência
alienante de fazer passar o gozo pela cadeia do discurso. Freud diz
o mesmo: “O ódio é, com o relação com o objeto, mais antigo do que

14. S. F re u d (1 9 1 5 ). O bras c o m p le ta s , v. XIV, p. 129.


15. J. L acan (1960). Le sem inaire. Livre VII. L 'étiq u e dans la psych a n a lyse,
p. 239,
66 G ozo

o am or; b ro ta da re p u lsa p rim o rd ia l q u e o eu n a rc ísic o opõe


inicialm ente ao m undo externo pródigo de estím ulos”.16
Se Eros tende à ligação, à constituição de nexos, trata-se de
nexos entre significantes, do vetor que vai de um significante (S,)
a outro significante ( S j. Lacan poderá ironizar com razão o caráter
delirante que assume neste ponto o enunciado freudiano ao pretender
que as lig a ç õ e s e n tre as c é lu la s que lev am à c o n stitu iç ã o de
organism os m ulticelulares ou de sociedades com plexas pudessem
ser um a p ro v a da ação de E ros. E stá bem . as p u lsões são seres
m íticos, mas sobre elas sabem os apenas a partir de nossa prática
linguageira. Os biólogos não podem dizer nada, não é seu cam po,
so b re n o sso E ro s e T an ato s tal c o m o su rg em da e x p e riê n c ia
p sic a n a lític a . A ação da p u lsã o de m o rte recai, en tão, so b re o
in te rv alo da c ad eia, ten d e a d isso lv e r esse v ín cu lo que é o do
d isc u rso . E a ssim co m o n e g a o O u tro e e x p re ssa este an seio
irredimível de retorno ao gozo do ser. E um a atividade iconoclástica
que pede para recomeçar. A negatividade destrutiva que se apodera
do desejo, destacada por F reud,17 Lacan e H yppolite1“ na discussão
em torno da D ie V erneim ing p o d e ser e n te n d id a a p artir d esta
inclusão do gozo do ser na teoria.
A pulsão não é, pois, algo que se satisfaz e dá acesso ao gozo,
mas sim, essencialm ente, um a aspiração de gozo que fracassa por
ter que reconhecer o O utro e pagar-lhe com a quota “gozosa” que
ele exige a título de aluguel pela residência que oferece. Em seu
fundam ento a pulsão é destrutiva e não apaziguável. N ovam ente,
deve-se recorrer a Freud em um a expressão surpreendente por sua
clareza em relação ao gozo. Está em “O m al-estar na civilização”,19
quando trata sobre a pulsão de morte:
M as, a in d a o n d e e m e rg e sem p ro p ó sito se x u a l, in c lu siv e na
m a is c e g a f ú r i a d e s t r u ti v a , é i m p o s s ív e l d e s c o n h e c e r q u e s u a

16. S. Freud (1915). O bras com pletas, v. XIV, p. 133.


17. S. Freud (1926). O bras completas, v. XIX, p. 253 258.
18. J. L a c a n (1 9 5 3 ). É c r its. P a ris: S e u il, 1966; (L a c a n ) p. 3 8 1 -4 0 0 e
(H yppolite) p. 879-888; E scritos 1. M éxico: Siglo XXI, 1984 (L acan) p.
366-383 e E scritos 2. M éxico: Siglo X X I, 1984 (H yppolite) p. 859-866.
19. S. Freud (1930). Obras completas, v. X X I, p. 117.
Os gozos distintos 67

s a tis fa ç ã o se e n la ç a c o m um g o z o n a rc is is ta e x tra o rd in a ria m e n te


e le v a d o , n a m e d id a em q u e e n s in a ao eu o c u m p rim e n to de se u s
a n tig o s d e s e jo s d e o n ip o tê n c ia . M o d e r a d a e d o m a d a , in ib id a em
s u a m e ta , a p u l s ã o d e d e s t r u iç ã o , d i r ig i d a a o s o b j e t o s , v ê -s e
f o r ç a d a a p r o c u r a r p a r a o e u s a t is f a ç ã o d e s u a s n e c e s s i d a d e s
v ita is e o d o m ín io so b re a n a tu re za .

A parece, no item anterior, o sintagm a que dissem os não ser


fre u d ia n o , s a tis fa ç ã o (m as n ão da p u ls ã o , s a tis fa ç ã o do eu).
C oncluindo este item podem os definir o sentido de nossa em presa
ao a n alisar o afo rism a de L acan que lhe dá título: ev itar que a
repetição de uma fórm ula fácil e descontextualizada faça perder de
vista o sentido específico que tem em Lacan e em Freud a ligação
e n tre a p u lsã o e o g o zo . C o n c re ta m e n te , tra te i de re c a lc a r a
originalidade do conceito freudiano de pulsão, uma vez que o mesmo
é transform ado de raiz a partir da introdução da noção de pulsão de
m o rte, pois esse conceito se divorciou da idéia de aspiração a um
apaziguam ento ou satisfação e se vinculou com o gozo com o “além
do princípio de prazer” . Os com entaristas de Lacan o sabem bem,
mas a doxa que se cria chega a ser contraditória com o ensino de
Lacan em um ponto fundam ental.
A pulsão não tranqüiliza nem sacia. A pulsão historiza, faz o
m em orável com o transgressão, confina com o fracasso ao levar ao
real com o im possível e é assim que alcança sua meta.
Já é hora de p assar ao pon to seguinte p ara ev itar um novo
equívoco: o de um a conceituação m aniqueísta e apressada do Outro
como o “m al” que separaria desse suprem o “B em ” que seria a Coisa.

3. A palavra, d iafragm a do gozo

Do gozo do ser, pela introm issão necessária do Outro e de sua


L ei q u e e x ig e m que tal g o z o s e ja e n tre g u e no m e rc a d o dos
intercâm bios, fica uma falta a ser que é o desejo. Pelo Outro há algo
perdido como desfrute do corpo. E o fundam ento da velha aspiração
do W unsch freudiano: a de recuperar, seja pelo curto-circuito da
a lu c in a ç ã o , seja p elo a m p lo c a m in h o das tra n s fo rm a ç õ e s da
realidade, a (identidade de) “percepção” , ou seja, o gozo da Coisa.
68 G ozo

O gozo, o que dele fica inscrito, o Isso freudiano, o pulsional que


foi resignado, tudo isso é caótico, está desarticulado. São impressões
(cf. capítulo IV ) que não podem ser subjetivadas e assum idas como
se n d o de a lg u é m . A s “ r e p r e s e n ta ç õ e s de c o i s a ” f re u d ia n a s
(,Sachvorstellungen, não D ingvorstellungen, pois da Coisa não há
representação) devem ganhar o acesso ao sistem a pré-conscientc,
a rtic u la n d o - s e com as “ r e p r e s e n ta ç õ e s de p a la v r a ”
( W o r tv o r s te llu n g e n ), m as e s te p r o c e s s o n ã o é s im p le s . As
representações de palavra, ou seja, os significantes da língua não
vêm tão-somente sobreinvestir, dar uma carga extra de “energia” aos
significantes do desejo, com o aspiração à recuperação do gozo. O
sgnificante substitui as representações de coisa e lhes impõem outras
leis que não são as pretensões do gozo (qui n 'a ja m a is connu de loi),
mas as do discurso e da linguagem . Do gozo não ficam senão estas
m etáforas e m etoním ias, estas m oedas que do sim bólico vêm para
e n c a rre g a r-s e e “ d e s n a tu ra liz a r” e sse real p ré v io que é ag o ra
inacessível e irrecuperável. Elas sim bolizam ; o sim bolizado é o gozo
perdido, renunciado, entregue à exigência do O utro. Para Freud,
Triebverzicht, renúncia pulsional.
E é assim que a linguagem articulada, a fala, é um caminho que
desencam inha. Para percorrê-lo deve-se ir aonde ele leva, ou seja,
ao exílio, à realidade, às coisas do m undo que não são senão outro
nom e da perda originária. A rticulado com o está em “representações
de coisa” (para co n serv ar a term inologia freudiana), o desejo in­
consciente é inarticulável, deve aceitar as leis da cadeia significan-
te, traduzir o gozo em palavras e perífrases que necessariam ente o
desvirtuam . D eve-se articular com o dem anda, reconhecer o O utro
e torná-lo condição da satisfação. A idéia central que quero desta­
car neste m om ento é que a cadeia significante não tem m edida co­
mum e não tem possibilidade de significar o gozo a que aspira; que
o significante é incom ensurável com o gozo e que a falta de tal m e­
dida comum é o que define o gozo com o um tipo de substância que
corre por baixo, algo que constantem ente se produz e ao m esm o
tem po escapa e é barrado com o im possível, indizível, pelo discur­
so. E que nom e, que nom e senão o de libido corresponderia a essa
substância fabulosa e escorregadia, a esse hom m elettel
Repetindo o elem entar da concepção lacaniana do discurso: o
sujeito é o efeito da cadeia significante, está no lugar do significado
O s gozos distintos 69

de um significante um (S,) que o representa para outro significante


(S2); entre os dois se faz a cadeia. O p ro d u to desta operação de
articulação dos dois significantes é um resto irredutível, um real que
é o resto in-significante, o objeto inalcançável que causa o desejo e
representa o gozo perdido sob a form a de um m ais (minus) de gozo.
Entre o sujeito e o objeto @ assim produzido com o saldo que cai
do e n c o n tro d o s d o is s ig n if ic a n te s h á u m a d is ju n ç ã o , um
desencontro essencial que perm ite escrever a relação entre os dois
efeitos da função da palavra (o sujeito com o significado e o objeto
com o gozo faltante), ora com a dupla barra da disjunção, ora com
o lo sa n g o da fó rm u la do fa n ta s m a . O e n c o n tro de am b o s é,
e x c e tu a n d o - s e a p s ic o s e e c o n fo rm e s e rá v is to no c a p ítu lo
correspondente (capítulo V II), im possível.

___ S, - > S,
8 // @
(S 0 @ )

Cabe insistir na heterogeneidade radical nesta fórmula entre os


significantes e o sujeito que é seu efeito de significação, por um lado,
e, por outro, o gozo, indicado pelo objeto @. Recordem os aqui, que
tudo é estrutura, mas nem tudo é significante,20 @ é, precisam ente,
justam ente, aquilo da estrutura que não é significante.
Com Freud, a p a rtir de Freud, sabem os que este transvaza-
m ento que tam bém é um vazam ento do gozo na articulação signifi­
cante vai, no discurso, se escandindo, se repartindo em momentos,
pontos dram áticos de corte e interrupção, que a teoria psicanalítica
delim itou com o fases ou estádios da evolução psicossexual. Q ual­
quer um se lem bra dos esquem as cron o ló g ico s que colocam nas
abscissas determ inadas idades e nas ordenadas tais fases evolutivas
de m odo a parecer que a psicanálise é outra cronologia do desen­
volvimento, uma a mais. Com Freud, a partir de Freud, sabemos que
todas estas fases, m arcadas com o estão pela renúncia ao gozo oral
prim eiro e anal depois, com incisos nunca bem determ inados sobre

20. J. L acan (1958). R em arque su r lê rapport de D aniel L agache. In: É crits,


p. 659; E scrito s 2, p. 638.
70 G ozo

o gozo uretral, muscular, visual e alguns etcéteras mais, são todas


preparatórias de uma renúncia final que ressignifica retroativam en­
te todas elas e os fantasm as que lhes correspondem . Depois do pre­
lúdio pré-genital sobrevem o atravessam ento edípico da castração,
condição do período de latência, no qual, idealm ente, todas as re­
núncias ao gozo corporal já foram produzidas, restando apenas uma
pura disponibilidade do sujeito para assim ilar-se à palavra “form a­
dora” (alienante) do O utro. N ão por casual coincidência, esse p e­
ríodo de latência coincide com a cham ada “idade escolar” . O não
sepultado pela castração é o que retorna da repressão sob a forma
de sintom as, m onum entos que com em oram o gozo abandonado,
ainda que transposto tam bém, de outra m aneira, nos term os lingua­
geiros. Os sintom as são traduzíveis, interpretáveis, efeitos de “con­
versão” do gozo (a que sem pre rem eterão), formas tam bém elas do
gozo fálico. Tudo acontece assim , até que a pressão da puberdade
reativa as dem andas da sexualidade; estas deverão canalizar sob os
ditam es da prim azia da genitalidade, ou seja, do único genital que é
o m asculino, ficando a m enina dividida entre um gozo que também
é fálico, o do clitóris, igual ou com parável ao do hom em , e outro
gozo, vaginal, que seria com plem entar do gozo fálico e, portanto,
incluído em sua órbita, sob a égide e suprem acia (teses freudianas
que Lacan corrigirá e às quais dará outro alcance). Com Freud e a
partir dele, tem os ouvido falar deste processo de renúncia ao obje­
to m ais arcaico do desejo, cuja dinâm ica se desenrola no cenário do
com plexo de Édipo e que acabará, do lado masculino, cm uma iden­
tificação com o pai rival e, do lado feminino, com uma demanda feita
ao pai depois de aceitar a decepção pela castração inevitável da mãe
com seu saldo de inveja do pênis e aspiração de recuperá-lo sob a
forma de um equivalente sim bólico que é o filho.
A sexualidade, com suas disposições p olim orfas, com seus
com ponentes sexuais “perversos”, com sua m ultiplicidade originária
de zonas e objetos foi, depois deste processo, arrasada. A í onde o
gozo se derram ava de modo anárquico no verde paraíso dos amores
infantis, tem agora um a lei, efeito da castração e da proibição do
in c c s to , q u e d e te rm in a os o b je to s e os m o d o s de s a tis fa ç ã o
acessíveis àquele que fala.
E ste pro cesso é descrito por F reud de m uitos m odos e em
diferentes textos, mas talvez fique m ais claro em “Dois princípios
O s gozos distintos 7I

do funcionam ento m ental” ,21 em que descreve a troca do princípio


dc p ra z e r p o r seu s u b s titu to m o d ific a d o , q u e é o p rin c íp io de
realidade. Nesse artigo, o vocábulo L m sí do Lustprinzip não deve ser
entendido com o “prazer” , ou seja, com o limite e barreira ao gozo,
m as co m o o p ró p rio g o zo , e n q u a n to a re a lid a d e , se n h o ra das
conveniências e reguladora dos ideais, é esta escura razão do Outro
que se superpõe e d eslo ca o gozo do corp o fazendo com que o
sujeito fique dividido entre dois Outros difíceis de conciliar: o corpo
com o Outro que é um estranho ao sustentar aspirações proibidas de
gozo (gozo do Outro) e o Outro da linguagem que reclama renúncias
ao gozo que sem pre se darão a contragosto e que são o fundam ento
dos sintom as e da psicopatologia da vida cotidiana. Este processo
de “dcsgozificação” (criem os um neologism o necessário) justifica
que leiam o s assim , tra n sg re ssiv a m e n te , o a rtig o so b re os dois
princípios. O Lustprinzip corresponde nesse texto ao gozo inicial,
ao que Freud em 191522 cham ou Eu-ideal. O princípio de realidade
é o v erd ad eiro nom e do p rin c íp io de p razer-d esp razer. Os dois
princípios, o de prazer e o de realidade (am bos entrelaçados) aluam
consonantem ente com o barreiras interpostas no cam inho do gozo.
Os gozos sucu m b em à c a stra ç ão e se m etam o rfo seiam ao
terem que se significar passando pelo funil da palavra, aceitando sua
L ei, a da cultura, e evocando sem pre a renúncia pulsional que os
d e s v ia (p e rv e rte ) p o r e sse e s tre ito d e sfila d e iro . D a í F reu d ter
p ro p o s to a e s s a s “ p u ls õ e s p a r c ia is ” c o m o “ p r e c u r s o r a s ” da
c a s tra ç ã o , j á que a p e n a s com e sta a lc a n ç am sua sig n ific a ç ã o
d efin itiv a que é a dc in clu ir sem pre a função im ag in ária do -(j).
Passando pela castração sim bólica os objetos do desejo se marcam
com o lastro de sua im possibilidade. Em relação com <i>, com o Falo
com o significante do gozo que está proibido para o falante com o tal,
é que tudo do gozo que é acessível está barrado e deve deslocar-
se ao longo da cadeia significante, fora do corpo hors-corp. E por
isso que o o b jeto @, o do fantasm a, c a rre g a su b en ten d id a esta
fu n ção da castração . A inda que não se escrev a de tal m odo por
razões de econom ia, seu nom e com pleto é: objeto @ / (-(})).

21. S. Freud (1911). F o rm u lac io n es sobre los dos p rin cíp io s dei a c a ec er
psíquico. In: O bras co m p leta s, v. XII, p. 223.
22. S. Freud (1915). O bras co m p leta s, v. XIV, p. 129-130.
72 G ozo

A carne incorpora-se à linguagem e assim se faz corpo. As as­


pirações pulsionais requerem do O utro, esse Outro a que se dirigem
as dem andas. Por isso a escritura lacaniana da pulsão é S 0 D, e o
sujeito se constitui a partir do m odo em que o Outro significa e res­
ponde à dem anda, im pondo suas condições, m ostrando por onde
sim e por onde não. O sujeito apenas chegará a existir com o um a
conseqüência da ação do Outro da linguagem sobre essa carne que
se fará corpo na m edida em que acolha os cortes que a linguagem
faz no fluxo vital. O corpo se tornará mapa, pergam inho em que se
escreverá a letra que com sangue entra. Um corpo é hum ano ao se
incluir nesse sistem a de transcrições que trocam o gozo pela pala­
vra. A divisão subjetiva (S) alude, entre outras coisas, a esse pro­
cesso de estranham ento que constitui com o Isso, o pólo pulsional
e que deixa o eu encarregado das relações com o O utro e organi­
zador das defesas contra os excessos no gozo. D esde o reprim ido
procede a pulsão com o exigência de trabalho, com o tensão im pos­
ta ao psiquism o por sua relação com o corporal, com o transgres­
são ao princípio de prazer,23 com o aspiração ao gozo que não se
com padece dos m andam entos e restrições que o O utro im põe. A
“dinâm ica” da m etapsicologia freudiana é este conflito entre o gozo
transgressivo e o prazer hom eostático, entre o tudo m enos quieto
desejo sexual infantil e a aspiração de seguir dormindo.
O gozo é declinado (em suas duas acepções: a gram atical e a
subjètiva de “declinar”); agora tem um a clínica do gozo, dos modos
de ju lg á - lo e c o n ju g á - lo , e v o c á - lo e f r u s tr á - lo , re c u s á -lo e
reconquistá-lo sem nada querer saber sobre ele. R eaparece depois
de m etam orfoses linguageiras nas form ações do inconsciente, esse
inconsciente que trabalha com um a m atéria-prim a que é gozo e a
tra n s f o r m a em um p ro d u to q u e é d is c u r s o , u tiliz a n d o e sse
instrum ento que está estruturado com o ele e que é sua condição (“a
linguagem é a condição do inconsciente”, insistia Lacan24): a bateria
do significante que terá que servir a seus fins, a seus fins de gozo.
Não se trata da língua, mas de alíngua da lingüisteria lacaniana, essa

23. J. L a c a n ( 1 9 6 4 ) . L e s e m in a ir e . L i v r e X I. L e s q u a tr e c o n c e p ts
fo n d a m e iita u x de la p sychanalyse, p. 167.
24. J. L acan (1970). A utres écrits (A .E .). Paris: Seuil, 2001. p. 393-403.
O s gozos distintos 73

alíngua que é a carne do fantasm a.25 O inconsciente consegue passar


algo de seu contrabando gozoso, mas, de qualquer forma, para dizer
não à Lei deve aceitar que é sim súdito dela e que se reconhecem
suas co açõ es. O sonho tra n sg re ssiv o n o tu rn o n ão a an ula, m as
c o n firm a seu im p é rio , a s s im c o m o o c h is te . O re p rim id o a
reconhece com m uita dor no sintom a; o incom ensurável do gozo
está condenado a vegetar nos parques bem delim itados do fantasma,
essas reservas falsamente “naturais”. O gozo refugiou-se na fantasia
inconsciente, cujos arquivos e protocolos M clanie Klein explorou,
fantasia louca, irredutível à razão, retaliadora, corrosiva, selvagem,
a sso c ia i, que e v o c a um g o zo do O u tro s u fo c a n te e d e v o ra d o r
vinculado pela “tripeira” ao corpo mítico da M ãe com o representante
da Coisa. Sobre estas form ações im aginárias terroríficas e terríveis
do gozo recairão as repressões e renúncias que tornam o sujeito
dividido, em outras palavras, um bom menino da neurose.
Estam os, com ele, no m undo da com unicação, do sentido e da
recíproca satisfação especular dos eus. O sujeito se desconhece ao
colocar-se sob os em blem as de um si-mesm o, de um s e lf que gruda
seus pedaços gozosos em um a im agem unificada e totalizante de si
e do outro, o “o b jeto ” , com o dizem os p artidários de um a assim
cham ada “teoria das relações objetais” que pretende ser um “novo
p a ra d ig m a ” p a ra a p sic a n á lise e que rap id am en te co n q u isto u a
m aioria das disposições na mundial de psicanálise, sem pre ávida por
qu alq u er novidade que lhe p erm ita retro ced er a tem pos teóricos
anteriores a Freud. N ão é este o escrito ad eq u ad o 26 para fazer o
relato e a crítica desta p sicologia da pessoa total que floresce em
nossos tem pos, portando a bandeira renovadora de um inconfesso
“retorno a... A dler”, não por vergonhoso m enos flagrante, de uma
“ re g re s s ã o c ie n tíf ic a ” c o m o a c h a m a um d o s s e g u id o re s da
repressão anterior, a da psicologia do ego, tão vituperada por Lacan
em seus tem pos. Pois estam os na época em que os partidários do
m odelo que im perou nos anos 1950 e 1960 resultam dem asiado
freudianos, conservadores (dois vocábulos que se tornam sinônimos

25. N. A. B raunstein. L in g ü istería (L acan y el lenguaje). In: E l lenguaje y el


inconsciente fre u d ia n o , p. 213.
26. Cf. N. A. B raunstein. Freud desleído. F reudiano y lacaniano, p. 133-150.
parais “inovadores” ), tradicionais etc. Com o s e lfo o objeto total27
(queá “ a p e sso a do o u tro ”), tê m -se os artefato s que perm item
rejeilr o inconsciente e o objeto sempre parcial da “antiquada” teoria
freuoana das pulsões. N ão posso deix ar de apontar agora que o
centn de tal em presa teórica é a deportação do gozo para fora da
teoriída psicanálise para convertê-la em uma concepção das relações
in tc re sso a is dom inada por ideais de harm onia e com pletudc. Já
podetios im aginar quão bela fica a psicanálise quando conseguim os
tira rJ e la as p u lsõ es, a c a stra ç ã o e o E dipo, o gozo e o desejo
incoisciente e, livres de tal fardo, m ostrar que o tratam ento pode
se reluzir a um relato p o rm e n o riz a d o das in teraçõ es e n tre um
teraputa sim pático e um paciente que aprende com ele a integrar
um e l f p r e v ia m e n te d is s o c ia d o p e la fa lta de u m a m ãe
suficsntem ente boa.28
1 a s sim v a m o s, de d ig r e s s ã o em d ig r e s s ã o , a té n o s s a
com peensão já adiantada de um gozo apalavrado, de um gozo do
qual rio sabem os senão pelo discurso que lhe impõe sua legalidade
e ques divide entre um gozo anterior, m ítico efeito retroativo da
palavu, e um gozo posterior, que se produz ao m esm o tem po em
que ecapa, por ter que atravessar o cam po m inado, para ele, da
lingugem . No entanto, do gozo nada se poderia saber se não fosse
por ete ap alav ram en to . L acan p ôde esp ecu lar sobre o gozo da
árvortou da ostra. Não seria o caso de segui-lo: o gozo não é uma
funçãt vital\ aparece enquanto a vida está m ortificada pela palavra
e pelaLei. E coisa de falantes. A palavra tira o gozo do corpo e se
e n c a r e g a de d a r c o rp o ao g o z o , o u tro c o rp o , um c o rp o de
discuco. Este processo nunca é nem com pleto nem pacífico c ficam
as fo m a ç õ e s do in c o n s c ie n te c o m o m e m o ria is da tra d u ç ã o
imposível, com o em ergências do gozo que não convém. O discurso
é, ret<rica interposta, o p ortador e o produto deste gozo passado
pela hguagem , adm inistrado segundo um a rigorosa econom ia.

27. H K ohut. La restauracion del st-m ism o . B arcelona: P aidos, 1980, L.


R ngell. T h e object in p sychoanalytic therapy. J. o f the Am. Psa. A ss.,
3; p. 302, 1985.
28. M G ill e I. Z. H offm an. A n a ly sis o f transference, Internat: U niversity
Pcss, 1982. 2 vols.
O s gozos distintos 75

A palavra articulada tem, ao mesmo tempo, que deixá-lo passar


c controlá-lo, regular sua voltagem. O significante não existe no céu
das idéias platônicas. Seu lugar é difícil de especificar e Lacan dirá
que as substâncias pensante e extensa de D escartes não conseguem
lo calizá-lo , pois “o sig n ific a n te se situ a no nível da su b stân cia
g o zan te” , ou seja, do corp o que se sente, irredutível à física e à
lógica ou, cm outras palavras, suporte de uma lógica diferente da dos
lógicos. Se o significante está aí e se o gozo som ente existe por sua
in term ed iação , é p orque “o sig n ifican te é a cau sa do g o zo ” , ao
m esm o tem po em que lhe põe um limite e lhe dá razão de ser, ou
seja, que “o significante é o que detém o gozo” .29
O que é a “substância gozante”? A melhor ilustração que posso
p ro p o r é a an a lo g ia m u ito u sad a que c o m p ara o falan te com o
c o m p u ta d o r. O q u e tem n e la ? U m c o rp o , e f e ito d a c ria ç ã o
sig n ific a n te , sem d ú v id a , um p ro d u to d a in d ú s tria que é sua
m aterialidade física, o hardware, totalm ente estúpido em si m esm o
quando é suporte das atividades da m áquina. É um corpo bruto que
não serve para nada até que se lhe incorporam os program as, uma
organização estruturada de significantes, uma informação codificada
e sem corpo, o software. Com o “sou” do hard e com o “penso” do
soft, temos à vista as duas substâncias cartesianas. A m áquina pode
fu n c io n a r p e r f e ita m e n te , m u ito m e lh o r, m ais r á p id a e m ais
eficientem ente do que essas máquinas tontas que som os os falantes.
P ara ela, o q u e não serv e, o que erra. o am b íg u o , é m atéria de
descarte, de descartes. Se é suficientem ente avançada, aprende com
seus erros e os corrige, não se com praz nem se aferra a eles. Seu
hardware é indiferente à com posição e às operações de seu software.
Um não incide sobre o outro, tendo em conta sua com patibilidade
técnica. N ão há aí fantasm a, não há im aginário, estão descartadas
a neurose e a co m p u lsão à repetição. E sta é a d iferen ça en tre a
m áquina e o falante: este últim o é o assento (não o sujeito) de um
gozo que passa por ele, que se sente na confluência do corpo e da
linguagem , que não reconhece um princípio de eficiência e que é a
fonte de uma com placência no erro e no errar. Para que serviria uma

29. J. L acan (1973). Le seniinciire. L iv r e X X . E n c o re . P a ris: S e u il, 1976,


p. 2 6 -2 7 .
76 G ozo

m áquina gozante, se é que a algum cibernético lhe ocorreu inventá-


la? No com putador, o pensar - não o saber, segundo a especificação
de Lacan3" em seu sem inário de 20 de m arço de 1973 - prolifera em
um absoluto d eserto do gozo, na có p u la feliz do hardw are e do
software. No hom em e na mulher, feitos de substância gozante nem
imaginada por Descartes, o significante faz a cópula, não a felicidade.
N este sentido é que proponho que a p alav ra seja o filtro -
recorrendo a um a analogia fotográfica - (não sem que me escapem
as outras conotações), que a palavra é o diafragm a do gozo. Isto
é, que cum pra com relação a esta “substância gozante”, ao fluido
libidinal freudiano ou à m ítica e tão elástica lâm ina lacaniana, a
função de interceptação e de proteção contra excessos indesejáveis
(ou dem asiado desejáveis). D iaphrasein em grego é, precisam ente,
separar, interceptar, estabelecer uma barreira.
A palavra, o fárm aco oferecido pelo O utro, a droga instilada
d e sd e o b e rç o no fa la n te , c o n s id e r a d a a g o ra um te rm o s ta to
regulador, o diafragm a que regula a passagem da luz, essa pupila
que se dilata na obscuridade e se contrai com os raios lum inosos.
Sabemos que luz em dem asia inunda a placa fotográfica e a imagem
fic a v e la d a , e q u e a fa lta de luz n ã o p e rm ite q u e a p la c a se
im p re ssio n e , fa z e n d o com que a im ag em c a re ç a de d efin içã o .
Sabemos tam bém que o diafragm a deve ser sensível, como a pupila,
e graduar seu diâm etro esfincteriano para adequar-se a diferentes
condições e às horas do dia.
Assim funciona a palavra: deixa de atuar ou não existe ou está
destruído seu aparato no psicótico. Assim , o gozo inunda o falante
e varre a subjetividade; rompem-se as barreiras que permitem limitar
a p e n e tra ç ã o d a p a la v ra do O u tro , fic a o c o rp o su b m e tid o a
m etam orfoses incontroláveis que o sujeito presencia atônito. Na
neurose, pelo contrário , assistim os a um espasm o ou co n tratu ra
d e s s e d ia f r a g m a q u e p e rd e f le x ib ilid a d e e n o s m o s tra a
fenom enologia inteira dos clássicos mecanismos de defesa do eu que
não são mais do que operações linguageiras que tendem a refrear um
gozo vivido com o perigoso ou intolerável. Situações especiais e não
redutíveis a esta sim ples oposição do diafragm a fechado ou aberto

30. J. L acan ( 1974). Le sem inaire. Livre XX. E ncore, p. 89.


O s gozos distintos 77

sã o e n c o n tr a d a s n a s p e r v e r s õ e s , to x ic o m a n ia s e d o e n ç a s
psicossom áticas. D ever-se-á falar sobre isso nos capítulos dedicados
à clínica, m as é im portante sublinhar desde já a utilidade clínica da
oposição e da com posição entre gozo e discurso, porque ela está no
cerne da experiência m esm a da análise que consiste em operar sobre
o diafragm a do gozo. As condições do tratam ento não apenas não
são as m esm as, mas devem ser radicalm ente opostas para o caso
em q u e o d ia fra g m a n ão e x is ta (p s ic o s e ) ou e s te ja fe c h a d o
(neurose). O dispositivo freudiano surge da experiência das neuroses
e consiste em criar as condições de possibilidade que perm itam a
passagem do gozo à palavra. E esta tam bém a idéia que nos oferece
um outro cam inho de acesso ao que se desenrola na transferência
que é transferência do saber, certam ente, e constituição do sujeito
suposto saber, mas som ente na m edida em que esta suposição seja
a de um sabergozar que tanto abre para o ato perverso quanto para
o ato a n a lític o , e o n d e s o m e n te o d e s e jo do a n a lis ta p o d e rá
estabelecer a diferença.

4. A c o isa e o objeto @

O gozo ex iste p o r cau sa do sig n ific a n te e à m edida que o


significante não o detenha e o subm eta à sua norm a que é a norm a
fálica. A linguagem é o que funciona com o barreira a um gozo que
não existiria sem ela. No entanto, no que vimos, falamos de um gozo
que inunda o ser e que é devastado pela exigência de apalavrá-lo.
Não há m istério nem contradições, já que tam bém dissem os que a
linguagem é o que produz o gozo com o o que havia antes de sua
intervenção. É a função da linguagem : m atar a coisa, dando-lhe uma
no v a e x istê n c ia , um a v id a d e slo c a d a . E ra o m eu p ro b lem a ao
co m e ç a r o p rim eiro cap ítu lo . E ra p rim eiro o gozo ou o verbo?
Problem a clássico da galinha e do ovo, ou seja, de estruturas que
não reconhecem antes nem depois, ainda que a pergunta sobre sua
gênese retorne sempre. Se o gozo é um efeito retroativo da palavra
que o limita, cabe se perguntar sobre sua origem e ponto de partida.
(S e o u n iv e rso e s tá em e x p a n s ã o , c a b e se p e rg u n ta r so b re o
m om ento em que tudo estava concentrado em um só ponto. ítalo
78 G ozo

C alvino escreveu, a resp eito disto, um co n to menorávil em Ás


cosm icôm icas.) A pergunta pela origem rem ete neessari m ente a
u m a re s p o s ta q u e é d a o rd e m do m ito . B em s: s a b tq u e os
psicanalistas não recusam os os mitos. As pulsões s ã sere míticos
e magnos em sua indeterminação, dizia Freud. E d ip o : comjlexo por
ser m ítico. O fan tasm a fundam en tal co m eço u a er traado por
Lacan como “o m ito individual do neurótico”.31 A libdo laaniana é
um fluido m ítico etc. Por seu lado, o mito originárn do g>zo e de
sua perda posterior recebe de Lacan um a resposta a e art;ula um
termo freudiano com um a ampla tradição filosófica: a Coia. Kant
com Freud. C oisa que na mais breve de suas definiões, jácitada,
mostrando a relação com a palavra, é: “aquilo do realprimorial que
padece pelo significante”.32
A Coisa com o um real puro, anterior a qualqueisimboização,
exterior a qualquer tentativa de apreensão, apagada p ra sem re por
qualquer palavra, núcleo de impossibilidade encerrad; como >s mais
ín tim o e o m ais in acessív el ao su jeito , extim a , ccmo a ciamou
neologicam ente L acan no sem inário VII, A ética a psicoiálise.
Q ualquer rep resen tação dela a d esnaturaliza. Q uahuer un pode
im aginar o seio, o corp o da m ãe, a vida intra-uteriia, o caustro
m a te rn o e o q u e q u e r q u e seja, m as sa b e n d o qui to d a e stas
im agens não são da Coisa, mas que brotam a partir daexistâcia de
um mundo produzido e estruturado pelo sim bólico q c habiita tais
produções im aginárias, tais representações em to rn de un real
impossível de recuperar. Os fantasmas, incluindo o da 3oisa,;ão um
efeito do sofrimento do real pela ação do significante. A im bo zação,
a intrusão da linguagem na carne, induz à falta a ser qie carcteriza
o sujeito e o lança por veredas de desejo. A idéia já bra adantada
por N ietzsche33 em um breve e essencial texto de 18 3, pulicado
postumamente: nada sabemos do real, senão por meio e consruções
fictícias h ab ilitad as p ela linguagem . V ivem os em m muido de

31. J. L acan. Le m ythe original du névrose. O rnicar?, n. 17/8, p. 3 9-307,


1979. [Intervenciones y textos. Buenos Aires: M anantial, 1'85. p. 7-59].
32. J. L acan (1960). Le sem inaire. L ivre VII. L 'é tiq u e d ans U psychnalyse,
p. 142.
33. F. N ietzsche (1873). La verdad y la m entira en el sentido;xtrarm ral. In:
O bras com pletas. B uenos Aires: A guilar, 1947. v. I, p. 39-408.
O s gozos distintos 79

mentiras, de ficções. Lacan dirá que todo discurso é do sem blante34


e tem com o função representar e m ascarar a verdade da qual deriva.
Por isso, o conhecim ento é im possível, ficando apenas o saber que
é um fantasm a.
C o m o v o l t a r s e n ã o fo r p o r u m d i s c u r s o e sp e c ia l a u m a
re a lid a d e p r é -d is c u r s iv a ? E a í o n d e e s tá o s o n h o , o so n h o f u n ­
d a d o r d e to d a id é ia d e c o n h e c im e n to . M a s é a í ta m b é m q u e d e v e
s e r c o n s id e ra d o m ític o . N ã o h á n e n h u m a r e a lid a d e p ré -d is c u rs i­
va. C a d a re a lid a d e se fu n d a e se d e fin e p o r u m d is c u rs o .” ( G ri­
fo s m e u s)

Com o lugar de um gozo não lim itado e mito da falta da falta,


a C oisa se apresenta com o a m eta absoluta do desejo, o lugar ou o
estad o em q u e se c u m p rirá a ab o lição da fa lta a ser, estad o de
N irv a n a , s u p re ssã o de to d a te n sã o d ife re n c ia l com o m u n d o ,
indistinção do ser e do não-ser, morte. A tendência à Coisa é a pulsão
de m orte com o destino final de todos os afãs vitais hum anos. Este
m ito de um a satisfação plena que a lógica do m ito, a que pede um a
concepção da origem , obriga a considerar com o o ponto de partida
e lugar que está aquém dc todo desejo é, ao m esm o tempo, o ponto
de chegada, o estado de repouso absoluto que se alcançaria uma vez
consum ida a cham a da vida e alcançada a quietude última. Viver,
para o ser que fala, é eleger os cam inhos para a morte, deam bular
pelas veredas do extrav io e a errân cia do gozo com vistas à sua
recuperação.
A Coisa, com o objeto absoluto do desejo, abre ao pensam en­
to a dim ensão insólita e abismal de um gozo do ser, anterior à ex-
sistência, um efeito retroativo da linguagem que, ao colocar-se além
da própria coisa, isso que os lingüistas cham am referente, cria a in­
tuição de um aquém . Esta suposição, insiste L acan,16 é insuprim í-
vel e “a linguagem, em seu efeito dc significado, sempre fica ao lado
do referente. Sendo assim, não seria verdade que a linguagem nos

34. N. A. B raunstein. El concepto de sem blante en L acan. In: P or el cam ino


de F reud, p. 121-152.
35. J. L acan (1973). Le sem inaire. L ivre XX. E ncore, p. 33.
36. Idem , ibidem , p. 44.
80 G o zo

impõe o ser e nos obriga a adm itir que, do ser, nunca temos nada?” .
O que nos lança não a parecer, mas a para-ser, a existir de lado, no
cam po do sem blante, dada a “insuficiência” da linguagem.
Creio que já é desnecessário insistir. A Coisa é um efeito da lin­
guagem que introduz a falta e que, assim , separa dela. A Lei da lin­
g u a g e m , a d as s o c ie d a d e s h u m a n a s c u jo e fe ito fin a l e c u jo
fundam ento é a lei da proibição do incesto, a proibição da reintegra­
ção com a m ãe, é a que cria a Coisa e a define com o perda. Desde
que se produz o prim eiro acesso ao sim bólico, a prim eira intrusão
do sím bolo na vida, a Coisa fica obliterada, o gozo fica m arcado por
um m inus e o ente hum ano é cham ado a ser por meio da obrigação
de dizer-se, de articular significantes que expressam sem pre um
único conteúdo fundam ental: o da falta no gozo, único referente,
“única ontologia confessável” para nós, psicanalistas. E é pela falta
que se produz no ente por ter que se dizer que resulta o ser de to­
dos os exilados da Coisa, os falantes. Já no item anterior, aborda­
mos a questão do discurso e vimos que o trabalho de articulação dos
significantes supõe um real prévio, um aquém, o da Coisa e produz
um saldo inassim ilável e incom ensurável, o gozo perdido, causa do
desejo, que é o objeto @, um real posterior. E assim que corre o fio
do desejo, por m eio de dem andas que se repetem em direção ao
O utro e que recebem dele signos, m anifestações, doações, que não
podem preencher o vazio aberto no gozo por ter que sc tornar pa­
lavra. E não é que o Outro seja malevolente, não; é simplesmente que
não tem com que responder ao que lhe é pedido, que manca por falta
de um significante, que está barrado.
Sendo a C oisa irrepresentável - cenário vazio, um espaço que
está além da infranqueável superncie do espelho cujo espaço virtual
q ue faz s u rg ir não é n ad a além da m irag em os o b je to s que
p reten d em s u b stitu í-la , p o v o a r e m o b ilia r esse esp aço , apenas
conseguirão um estatuto espectral, im aginário. São os objetos do
fantasm a ante os quais o sujeito se desvanece (S O @). Introduz-
se assim a distinção essencial entre a C oisa e os objetos (das Ding
e, por outro lado, die Sache, die Objekte, die Gegenstände). É aqui
que podem os considerar o objeto @ que causa o desejo e que move
a pulsão. P or ser a C oisa aquilo que falta, os objetos do m undo
aparecem e se m ultiplicam , os falantes, pela via da linguagem , dão-
O s gozos distintos 81

se um m undo, en tram no m ercad o do g ozo com o O u tro . P ela


expulsão original se constituem com o sujeitos em sua divisão que
é, agora, divisão entre a Coisa e os objetos (inclusive o eu, seguindo
com o sempre Freud, que considerou o eu um objeto particular sobre
o qual recaía um a classe particular de investim entos, os narcísicos).
Os objetos, todos, são derivados da perda, seus sucedâneos, seus
representantes fantasm áticos. D o G ozo, do G rande G ozo inicial e
m ítico, aos gozinhos, aos pequenos @ dos objetos que causam o
desejo e o vetorizam.
D esde o princípio Lacan se propôs explicar essa diferença em
term os topológicos. É por isso que no m esm o ano 1960 em que
reintroduzia a Coisa, concebeu um apólogo que já era uma topologia
grosseira, mas que ilustrava de m odo convincente a diferença entre
a C oisa e o objeto. Refiro-m e a seu fam oso vidro de m ostarda. Sabe
D eus por que tinha que ser vidro e de m ostarda. O que im porta é
que nesse objeto da indústria podem os reconhecer três elem entos:
a) o v id ro , su as p a re d e s , q u e é u m a in v e n ç ã o h u m a n a , u m a
m a n ife s ta ç ã o do p o d e r c r ia d o r da lin g u a g e m ; em su m a, um
sig n ifican te que produz; b) algo que in tu itiv am ente teria estado
antes, o vazio, envolto pelas paredes do vidro e que, no entanto, não
o seria senão pela ação do significante; e c) convida e perm ite que
seja enchido com algo definido, a m ostarda, que não teria, sem o
frasco e o vazio, outro destino que o de esparram ar-se e perder-se
de m odo irrem ediável. E ste apólogo m ostra a função criativ a ex
nihilo do significante que produz o vazio com o essa C oisa que teria
estado desde antes (e isso é falso) e que propõe ao objeto com o
aquilo que pode povoar (de m odo enganoso) esse vazio. D ois anos
m ais tarde, no seminário da identificação,'7 m ostraria a existência de
uma figura topológica que, considero, é mais rigorosa para dar conta
deste desencontro estrutural entre os objetos da pulsão (variáveis,
sem pre substituíveis, segundo o ensino freudiano) e a C oisa com o
o b jeto absoluto ao redor do qual giram todos estes m ovim entos
pulsionais.
O q u e p ro p o n h o , sa b e d o r de que n ão é em rela çã o a e sta
distinção entre a Coisa e o objeto @ trazida por Lacan em 1962, é

37. J. L acan (1962). Sem inário IX, aula de 23 de m aio.


82 G ozo

ilustrar a excentricidade de ambos por meio do toro. Para quem não


sabe do que falo, é necessário rem eter-se à im agem intuitiva de um
anel, ou melhor, de um a câm ara de roda de autom óvel. Para quem
busca referên cias m ais p recisas posso reco m en d ar o livro de J.
G ranon-Lafont.3S Na câmara, no toro, existem dois vazios que, como
o vazio do v aso de m o stard a, são c ria d o s p e la s p a red e s, pela
su p erfície do to ro . U m vazio p e rifé ric o , fech ad o , en v o lto pela
borracha da câm ara, cham ada “alm a” do toro e outro que é o buraco
central, o “ furo pelo qual corre o a r”, com o um a vez o cham ou
L acan , que n ad a en v o lv e. É claro que os d o is v azio s não têm
nenhum a com unicação entre si e estão em dim ensões diferentes.

O qu e n o s m o s tra e s ta e s tr u tu r a tó ric a ? A a tiv id a d e do


significante, a dem anda que se repete e insiste, articulada, vale como
algo que cam inhasse pela superfície interna, girando constantemente
em torno do vazio fechado que é a alm a do toro. O espaço interior
que ela gera é o espaço do d esejo , dessa atividade pulsional que
contorna perm anentem ente o objeto @ e que o perde, tornando a
lançar-se in can sav elm en te em seu en calço. O s ciclos da pulsão
abraçam o objeto sem alcançá-lo. O retorno erra tanto em relação
ao ponto de chegada quanto ao ponto de partida e é assimilável ao
arco descrito por L acan no sem inário XI.39 Sua repetição, ou seja,
a repetição das dem andas que deixa o saldo incobrável do desejo,
volta a tensionar o arco do qual sairão disparadas as flechas que

38. J. G ranon-L afont. La topologie ordinnaire de Jacques Lacan. Paris: Point


H ors-L igne, 1985. p. 45 -67.
39. J. L a c a n ( 1 9 6 4 ) . Le s e m in a ir e . L iv r e X I. L e s q iia ir e c o n c e p ts
fo n d a m e n ta u x de la p sych a n a lyse, p. 163.
Os gozos distintos 83

novam ente voltarão como bum erangues a um lugar próxim o ao da


partida. E sta repetição, nunca se in sistirá o bastante, não é o ato
intencional de um sujeito psicológico, mas o sujeito é o efeito dos
sucessivos lançam entos da flecha. A pulsão é acéfala. A história de
cada um é resultado dos m odos de fracasso dos encontros com o
gozo e do voltar a se lançar atrás dele. (Por isso tive de dedicar um
item in te iro d e ste c a p ítu lo p a ra e s c la re c e r q u e o go zo nã o é
satisfação de um a pulsão.) O toro não existe desde sempre ou desde
um princípio, mas é o efeito deste eterno retorno da pulsão e é por
ele que se configura o outro espaço vazio, central e aberto, que é o
da C o isa to ta lm e n te a lh eia aos in fin ito s reto rn o s circ u la res da
dem anda. A excentricidade que há entre o desejo e o gozo, entre os
o b je to s e a C o isa, en tre o g o zo p e rm itid o (p o sto em p a la v ras,
insatisfatório) e o gozo proibido (vazio central) se m anifesta com
total clareza nesta figura topológica.

Ao redor da alma do toro giram as pulsões, aspirações de gozo


subm etidas à resposta do O utro, $ 0 D, que Freud chamou eróticas
ou de vida. Em seu orbitar, elas criam o espaço central, o buraco
impreservável que é seu atém inabordável. A representação topológica
nos p e rm ite tam b ém a p re e n d e r a d ife re n ç a en tre o cam p o do
princípio de prazer, de seu fracasso inevitável, figurado pela alm a do
toro, isso que cham am os seu vazio periférico, e de seu além que é,
precisam ente, a área da Coisa, do gozo inom inado, no qual impera
84 G ozo

o silêncio das pulsões, irracional na medida em que aí não há nada


e que é aí onde se confirm a que o gozo é o que não serve para nada.
M as esses espaços vazios são, com o no vidro de m ostarda, lugares
de uma atração enigmática. O vazio pede para ser enchido e o sujeito,
anim ado por um a paixão que é horror vacui, lança-se a preenchê-
lo, anula-se na tarefa gozante de povoá-lo. E a atividade pulsional,
j á q u e d e s lo c a d a de to d o fim n a tu ra l ou d a s a tis f a ç ã o de
necessidades, um trabalho de sublim ação que é, segundo a definição
dada por Lacan em 1960, a elevação de um objeto à dignidade da
C oisa.40 Não é o lugar reservado para os exím ios artistas ou para os
seres excepcionais, mas a residência do falante com o tal, o espaço
transicional de W innicott, a área de gozo onde brinca a criança, onde
prolifera o fantasm a, onde se confrontam o gozo do Um e o gozo
do Outro: um espaço de impossibilidade localizado na confluência do
im aginário e do real, sem m ediação sim bólica, onde o sujeito se
precipita e se dissolve.
Rodeado por esse espaço da criação significante que o espreita
sem penetrar nele alça-se o im pério de Tanatos, aí onde as águias
não se atrevem, aí onde, vivente ainda, baixa Antígona para encontrar
sua sepultura, fascinante e perigosa, assento de um gozo letal ao que
a palavra perm ite vislum brar e, tam bém , sustentar a uma distância
respeitosa. A rrisquem os um a tradução de um texto bem conhecido
a título de ilustração:
G a tsb y a c re d ita v a n a luz v e rd e, no fu tu ro o rg á stic o q u e ano
a a n o re c u a à n o s s a fren te . E le n o s e s c a p a ra e n tã o , m as isto não
im p o rta v a - a m a n h ã c o rre re m o s m a is rá p id o , e ste n d e re m o s m ais
a d ia n te n o ss o s b ra ç o s ... E n u m a b e la m a n h ã -

E a ssim p ro s s e g u im o s , b a rc o s c o n tra a c o rre n te , a rra sta d o s


in c e s s a n te m e n te p a ra o p a s s a d o . [F. S c o tt F itz g e r a ld , p a la v r a s
fin a is d e O grande Gatsby.]

E sta im agem da v ida ro d ean d o , e v itan d o e p o sterg an d o o


encontro final e definitivo coloca a questão das barreiras ao gozo que
será abordada no item 6.

40. J. L acan (1960). Le sem inaire. L ivre VII. L 'étiq u e dans la psychanalyse,
p. 133.
O s gozos distintos 85

Mas, antes de chegar aí, tem os que fazer a visita que estam os
devendo ao M estre Falo.

5. A castração e o n o m e-d o -p ai

Sei que a topologia não é popular, mas acho que a maneira mais
sensata e exata de abordar o tem a-eixo deste capítulo que distingue
fo rm a s do g o z o p a s s a p e la fig u ra e s tr a n h a e in q u ie ta n te ,
recentem ente evocada, do toro com sua criação de novas dim ensões
e de e sp aço s in c o m u n ic á v e is. A ssim c o m e ç a m o s a fa z ê -lo no
parágrafo anterior e assim continuarem os agora de modo congruente
com o que ali colocam os. U m a pessoa pode passar a vida viajando
pela superfície interior de um a câm ara de pneu de autom óvel sem
ter a m enor intuição ou representação do buraco central, ou do eixo
ao re d o r do q u a l se g iro u . E m c o m p a ra ç ã o co m o q u e se ria
d e s c o b rir q u e v iv e m o s em um e sp a ç o tó ric o , a fa m o s ís s im a
revolução copem icana pareceria um a m odificação pouco importante
da concepção do m undo em que existimos.
Vou entrar rapidam ente no assunto com um a afirm ação dog­
m ática que poderá parecer apressada, m as que na seqüência tenta­
rei desenvolver de m odo razoável: a superfície da câm ara de ar que
separa de m odo irreversível os dois vazios, colocando-os em dim en­
sões heterogêneas é a função da linguagem , separadora da C oisa,
efeito da lei da cultura, da linguagem com o instauradora de um corte
que não é outro senão a castração sim bólica, a que gira em torno
do significante do Falo ((])). Trata-se do Falo sim bólico, im possível
de fazer negativo, que representa o gozo com o inalcançável para
aquele que fala, pois, tendo ou não pênis, órgão que o representa no
im aginário, é im possível sê-lo. Toda relação com o gozo passa por
esta proibição, por essa im posição de que os objetos @ aos quais
o sujeito poderia aceder suportam sem pre a dim ensão da castração,
o nom e do @ (-()>) de que falam os em um item anterior.
Este é um ponto com plexo e debatido da articulação lacaniana
e de su a le itu ra de F re u d . M u ita tin ta foi g a s ta em to rn o do
“falogocentrism o” da teoria, da assim ilação da função da linguagem
86 G ozo

e da função fálica.41 As objeções (D errida,42 Irigaray43-44-45-46) não


deixam de reconhecer o fato evidente e m aciço desta prerrogativa
fálica. N as p alav ras de D errid a,47 “O falo g o cen trism o não é um
acidente nem um a falta esp ecu lativ a im putável a este ou àquele
teórico. E um a enorm e e antiga razão sobre a qual tam bém deve se
inform ar” . Este é o argum ento que D errida reconhece com o válido
ain d a que não e ste ja de acordo com sua u tiliz a ç ã o , pois o que
acontece com o d escrição de um a situ ação de fato (“a enorm e e
antiga razão ” ), acaba induzindo “um a p rática, um a ética e um a
instituição; portanto, uma política que assegure a tradição de sua
verdade” (ibid.). A queixa é correta e vale com o um a advertência em
torno dos riscos de passar do faloccntrism o da teoria ao falocratismo
opressivo na vida concreta. Caríbdis e Scila são agora a renúncia a
pensar o que de fato acontece e vem acontecendo (falocentrism o)
e, por outro lado, acabar aceitando com conform ism o que a razão
estrutural impõe a passividade aos modos de transformar as injustiças
do fa lo c ra tism o . A p erg u n ta é: com o p o d eriam e n fre n ta r-se os
desm am es da dom inação, já que os princípios fundam entais de seu
poder são desconhecidos?
O questionam ento desta solidariedade entre o significante e o
falo som ente pode se fazer depois de aceitar que a ordem humana,
a L ei, foi fa lo c ê n tric a . O b v ia m e n te , isso não a v a liz a nenhum
androcentrism o, o que historicam ente aconteceu em todos os cantos
do planeta. A psicanálise não toma partido, mas explica a necessidade
da articulação e é sabido que apenas o conhecim ento da necessidade

41. Cf. N. A. B raunstein. El Falo com o S.O .S. (sím bolo, objeto, sem blante).
In: P o r el c am ino de F reud, p. 112-120.
42. J. D errid a. L e fa c te u r de la vérité. P o é tiq u e , P a ris, n. 21, 1975. Em
castelhano em L a tarjeta postal. D e Sócrates a F reud y m ás allât. M éxico:
Siglo X II, 2001. p. 387-485.
43. L. Irigaray. Spéculum , de l ’autre fe m m e . Paris: M inuit, 1974,
44. L. Irigaray. Ce sexe qui n 'en est p a s un. Paris: M inuit, 1971.
45. C. Soler. Ce q u e L acan d isa it des fem m es. P aris: E d itio n s du C ham p
L acanien, 2003.
46. D. L u e p n itz . B e y o n d the P h a llu s. C a m b rid g e C o m p a n io n to L acan.
C am bridge (U K ), C am bridge U niveristy Press, 2003. p. 221-237.
47. J. D errida. L a tarjeta postal. D e Sócrates a F reud y m ás allá, p. 403.
Os gozos distintos 87

pode abrir o cam inho para uma possível liberdade com relação ao
que se apresenta com o fatalidade. É justam ente a chave da posição
lacaniana relativa ao gozo fem inino que abordarem os no próxim o
capítulo. E é o centro da aposta teórica, clínica e inclusive política
da c o n s id e ra ç ã o d a d ife re n ç a e n tre os g o z o s q u e d ev em ser
distinguidos em sua especificidade.
A Lei tem um efeito temível, não angustiante, que é a castração.
Sim bólica, sem dúvida, que m ais poderia ser? P or ela se instala a
separação entre o gozo e o desejo. O proibido faz-se fundam ento do
d e se jo e este deve ser p o sto em p alav ras. C o n form e vínham os
recordando, em Freud e a partir de Freud, toda renúncia ao gozo,
todo pagam ento feito na conta do Outro, todo este esvaziam ento do
g ozo que é a ed ucação das pu lsõ es, cu lm in am no com plexo de
castração que ressignifica todas as perdas anteriores em relação ao
falo, significante da falta como universal para os falantes, que divide
o cam po da sexuação em duas m etades não com plem entares que
são a d o U m e a do O u tro , a do h o m em e a das m u lh e re s. A
sexualidade e a diferença entre os sexos passam a ser, assim , um
fato de lógica que significa e ressignifica a diferença anatômica. Entre
o hom em e a m ulher há um significante que os divide conform e o
m odo particular que têm de se posicionar com respeito a ele; há um
m uro de linguagem que os separa.
O Falo, com o significante, tem a im possibilidade do gozo da
C oisa ou gozo do ser com o significado. A castração não quer dizer
outra coisa senão isto: todo ser humano, todo aquele que fala, está
sujeito à Lei de proibição do incesto e deve renunciar ao objeto
p rim e iro e absoluto de d esejo que é a M ãe. Tendo ou não falo,
ninguém , nem a criança, nem a M ãe, nem o Pai, poderá sê-lo. O
Falo é o significante dessa proibição absoluta; substitui assim esse
ponto zero da linguagem que é a Coisa. Seu valor é idêntico ao do
nom e-do-Pai que, na função m etafórica, substitui o significante do
Desejo da M ãe. Atenção! Coloco aqui um a equação:

Falo = N om e-do-P ai

que em essência é correta, mas à qual se deverá impor, seguindo


Lacan, algum a correção que explique por que a teoria necessita dois
88 G ozo

term os diferentes e qual é a razão derivada da prática clínica que


impõe sua dualidade. N ão tardarem os a fazê-lo.4S
O Falo (O) é o tam pão, tronco do significante, que ao mesmo
tem po m arca o lugar e a im possibilidade da C oisa. O cupa o lugar
central do toro, o buraco “por onde corre o ar” , por onde passa o
dedo no anel. D aí sua função de suporte da Lei e tam bém que sirva
para designar a falta no O utro, a castração da M ãe, seu caráter de
incom pletude, o que a faz desejante de algo que não se com pleta na
relação com o filho. Ou seja, S (A), m aterna que expressa o gozo
com o im possível de subjetivar, obrigando a transitar os estreitos do
desejo e do intercâm bio. Ou, em outras palavras, que se deseja em
função da castração e cujos objetos do desejo levam sua m arca, são
-(p. Os giros da demanda, do que fica insatisfeito da pulsão, realizam-
se ao redor da alm a do toro, de seu vazio periférico que tem a forma
do anel e que vão cingindo e delim itando o vazio central da Coisa
tamponado pelo significante Falo, significante do Desejo da Mãe, que
é continuado e deslocado pelo significante nom e-do-Pai.
C om o q u e v im o s a té a q u i, p o s s o p r o p o r u m a d u p la
equivalência e com ela um a proporção que não deve se apressar para
assum ir sentido m atem ático , m as que é p ara ser p en sad a com o
relação topológica entre lugares irredutíveis. No buraco central do
toro, e n c o n tra m o -n o s com a C o isa co m o o real q u e a c h a seu
significante no Falo (d)) simbólico, enquanto na alm a do toro temos
e s s e in c e s s a n te g ir a r em to rn o do o b je to @, re a l, p e rd id o
retroativam ente a partir das voltas em seu redor. O significante que
polariza essa busca é o falo com o parte faltante à im agem desejada
((p), um sig n ifican te im ag in ário que p ara o su jeito apenas pode
presen tificar-se com o signo da negação, da castração que o faz
desejante e que faz do @ a causa do desejo. Insistindo tratar-se de
um a relação topológica, elástica, e não de uma pretensão calculadora
com intenções de exatidão é que podem os propor que

(p : O @ : Coisa

48. Cf. E. Porge. Le nom s du p è re chez Jacques Lacan. R am onville: Érès,


1997. M. Tort. En una persp ectiv a crítica. In: Fin du dogm e p aternel.
Paris: A ubier, 2005.
O s gozos distintos 89

É fato que a ro ta que leva ao gozo e stá fech ad a e deve-se


to m a r o d e sv io da p a la v ra , sair do g o zo do co rp o e e n tra r no
deslizam ento dos significantes, de um em outro, buscando o elusivo
ponto de estofo. Esse gozo, conotado de castração, é o gozo fá lico
ou gozo do significante ou gozo sem iótico, gozo hors-corps para
distingui-lo dos outros, gozo do ser e gozo do O utro, que são gozos
do corpo e, portanto, gozos hors-langage, fora da palavra, inefáveis.
(D istinguir e separar gozo do ser e gozo do Outro é um risco
te ó ric o em q u e in c o r r o , s a b e d o r de q u e o q u e vem se n d o
estabelecido com o o ensino de Lacan por parte da m aioria de seus
discípulos exegetas e com entaristas tende a identificá-los e fazê-los
sin ô n im o s.49 N as p á g in a s do c a p ítu lo se g u in te , e reco rren d o à
to p o lo g ia da b a n d a de M o e b iu s, su ste n ta re i a n e c e ssid a d e de
diferenciá-los para assim dar conta da diferença clínica que existe
entre o gozo do ser, vinculado à C oisa, e o gozo do O utro que é
tam bém o do O utro sexo, fem inino. O gozo fem inino poderá ser
louco e enigm ático, mas nem por isso as m ulheres são loucas nem
necessitam injeções de inconsciente com o se ouve dizer.)
O Falo, significante a que rem etem todos os dem ais, função
organizadora (no sentido lógico-matemático) dos avatares do falante,
está ausente da cadeia, é im pronunciável, é o círculo que se traça
com o -1, com relação ao que se pode dizer.5" N ão é um significan-

49. E m 1998, quatro após o surgim ento da prim eira edição francesa, trad u ­
ção d a p rim e ira em c a s te lh a n o de G ozo, P a tric k V alas p u b lico u L es
dim en sio n s de la jo u issa n c e. R am onville: E rès. E ssa obra e stá repleta de
citaçõ es tiradas de m eu livro sem nenhum a m enção a ele e sem qualq u er
alusão às fontes pesquisadas pelo autor. N as páginas 78-80 d iscute com
a posição que aqui exponho sobre a distinção do gozo pré-linguajeiro do
ser e o gozo do O utro, pós-linguajeiro. No tenho inconveniente em d e b a ­
ter o ponto, m as m e pergunto: será que não v aleria a pena incluir a refe­
rência do au to r e da o bra com a qual difere? O m esm o é válido para o
e n sa io de M a rc -L é p o ld L evy, C ritiq u e d e la jo u is s a n c e co m m e une,
R am onville: É rès, 2005. Ao assinalar estas flagrantes e suspeitas o m is­
sões, quero d eix ar a certeza de m eu reco n h ecim en to a todos os autores
que sim reconhecem - tanto a favor com o contra - a ex istência das p ri­
m eiras edições deste livro.
50. J. L acan (1960). É crits, p. 823; E scritos 2, p. 803.
90 G ozo

te, tam pouco é o órgão (pênis) nem a im agem deste, mas o que in­
duz em toda im agem o efeito de aparecer m arcada por uma falta,
por uma com pletude. Se é -1 é porque designa, no O utro, um a fal­
ta de significante. Significante, pois, da falta de significante; pura
positividade que m arca de negatividade, que condena a não ser ou­
tra coisa senão sem blante a todo o articulável. M arca-o de negati­
vidade e o faz “p ara-ser” no sentido de que tudo o que se afirma,
seja no sentido da atribuição ou da existência, atura um a sombra:
“isto que é, com o significante, é por não ser F alo”. E reconhecen­
do o Falo neste lugar central, e ao m esm o tempo excêntrico, que se
explica e se m ostra a falta de fundam ento de todo falocratism o e se
confirm a que, sim, efetivam ente, a teoria é “falogocêntrica” . Pois a
castração está no centro do advento do falante e não é nem patri­
mônio nem m otivo de infâm ia para nenhum dos sexos.
O sig n ific a d o do falo com o -1 não é um zero, não é uma
ausência; é um a afirm ação de que o co n ju n to do significante, o
sistema do Outro, é inconsistente, suporta uma ausência que faz dele
um conjunto fechado já que sem essa ausência o conjunto não teria
limites e, conseqüentem ente, não existiria com o conjunto. É assim
que Falo, S(A) e proibição do gozo (da Coisa) com o absoluto, são
equivalentes. Falo é o nom e do significante que desvia da Coisa
intangível para os objetos do desejo.
O sujeito da dem anda, o que resulta da repetição dos arcos na
alma do toro da dem anda de satisfação pulsional (essa satisfação que
não existe, mas que nem por isso se deixa de pedi-la, é mais, é só
o que se pede), esse sujeito que se desvanece para ficar substituído
pelo que pede ao Outro (S O D), tropeça necessariam ente com o fato
da falta de significante no O utro, esse O utro que é desejante, que
está b a rra d o , m as c u jo d e se jo é um e n ig m a ( “O q ue q u e r [de
m im]?”). A significação desta falta (S[A]) é a do gozo como proibido
“ou tam bém que não pode ser dito senão nas entrelinhas para quem
quer que seja sujeito da Lei, já que a Lei se funda nessa proibição
m esm a” .51
Estas distinções su b m e te m -se a u m a d ifícil in tu iç ão na me­
tade superior do g rá fic o do d e s e jo ,52 aí onde o vetor h o riz o n ta l

51. Idem , ibidem , p. 821; E scritos 2, p. 801.


52. Idem , ibidem , p. 817; E scritos 2, p. 797.
Os gozos distintos 91

su p e rio r que vai do gozo à castração intersecciona o vetor retroa­


tivo que corre da direita para a esquerda e conduz da pulsão ao sig-
n ific a n te da fa lta no O u tro . A v alia-se no esq u e m a a d ife re n ç a
topológica que há entre a pulsão, o desejo (d) com o resto que se
produz pela insatisfação da dem anda, o fantasm a (S 0 &>) como res­
posta im aginária ao desejo, por um lado, e à falta do gozo, por ou­
tro, o gozo com o o que deve ser abandonado no ato da enunciação,
sendo que o gozo é a causa e a razão de ser da própria enunciação
e, por fim, a castração com o resultado deste atravessam ento pela
pulsão, sem pre insatisfatória, e pela falta do significante no Outro
que perm itiria um a feliz alienação e daria com pletude ao conjunto e
suporte ao gozo. As letras m aiúsculas que correspondem à pulsão
e à proibição do gozo ou Lei indicam que se trata de term os sim ­
bólicos, enquanto as letras m inúsculas e as cursivas do d do dese­
jo e do @ do objeto do fantasm a estão para indicar graficam ente,
com o escritura, seu caráter de im aginários.

d (desejo)
(fan tasm a)
T
Parte superior do gráfico do de se jo

A c o n d iç ã o da e n u n c ia ç ã o é q u e n ão fa lte a fa lta , que a


castração sim bólica se tenha efetuado, que tenha existido o corte que
faz do sujeito um súdito da Lei. Em term os mais freudianos, menos
la c a n ia n o s , q u e o c o m p le x o de E d ip o te n h a c u m p rid o sua
in c u m b ê n c ia . A C o is a fic o u in te r d ita e o F a lo , s ig n ific a n te
im pronunciável [S(A)], tom ou seu lugar e instaurou, no sujeito, a
dim ensão da falta irrem issível. E a esta falta, efeito do Falo que pôs
92 G ozo

a Coisa a um a distância inevitável, que responde outr< significante


que se constitui em eixo de articulação da palavra faada, que é o
sig n ific a n te que estru tu ra lm e n te re a liz a a castraçãi, ou seja, a
separação em relação ao d esejo da M ãe: é o n o m edo-P ai. Um
significante, este sim, articulável, que funciona com o ui (S,), como
lugar inevitável para o enganche de um segundo signifiante (S2) que
é o modo econôm ico de escrever todo o conjunto de;ignificantes
que apenas alcançam significação à m edida que se artiulam com o
Sj prim ordial, o nom e-do-Pai. O inconsciente, o inconciente como
o não-sabido, é este S, que tem com o suporte o S, q e é o nom e­
do-Pai, palavra articulável que vem no lugar da falta abeta pelo Falo
com o -1 no conjunto do significante, no Outro, signifiando aí a Lei
que decreta a exclusão da Coisa com o Real impossível.E que deixa,
com o o outro eleito da articulação da cadeia significnte S, —* S2,
um resto q u e é o o b je to um real c o n to rn a d o pila p u lsão e
tam bém exterior ao sim bólico, vivido m uitas vezes peb sujeito sob
a form a do afeto que é seu efeito, o efeito de sua q e d a . A ssim
parece desde o próprio princípio da leitura que Lacan53 az de Freud:
“O afetivo neste texto de Freud [Die Verneinung] é conebido como
aquilo que de um a simbolização prim ordial conserva ses efeitos até
na estru tu ração discu rsiv a” . N o esclareced o r co m en írio que fez
deste texto em seu sem inário A exúm idade ,54 J.-A. Mi er fez notar
que esta “sim bolização prim ordial” é a que se faz de un real prévio
(a Coisa, podem os dizer), enquanto os “efeitos” posteiores (desse
real) que subsistem na estruturação discursiva, o que rejresenta nela
o que no discurso é inarticulável, “o afetivo” do dizeide Freud, é
um real q u e o d isc u rso g e ra , m as q u e n ão é d isc u so , é o @
(objeto) que cai dele. E vale a pena conservar sem pre esa distinção
entre o real prévio e o real posterior ao discurso que, reta dizê-lo,
rem ete a um tem po lógico e não cronológico, mostramo a função
de corte que tem a palavra entre a C oisa (anterior) e >objeto @
(posterior), entre um gozo do ser e outro gozo efeito a castração
(Lei da linguagem) que é o gozo fálico, este que corre atrs do objeto
@ q u e c a u s a o d e s e jo . N ão c u s ta d e s c o b r ir p o rtr á s d e s ta

53. J. L acan (1954). É crits, p. 383; E scritos 1, p. 368.


54. J.-A . M iller. Sem inário L ’extim ité, 1986. Inédito.
O s gozos distintos 93

e sp ecificação inicial de L acan a fórm ula do discurso do senhor,


consubstanciai ao discurso do inconsciente, onde S, (neste caso o
n o m e -d o -P a i) o c u p a o lu g a r do a g e n te , ou se ja , o lu g a r do
semblante.

8 @

D isse e inclusive escrevi sob a form a de um a equação que o


nom e-d o -P ai é o m esm o que o Falo, m as não sem um a m ínim a
diferença cuja hora de especificar chegou, pois “o privilégio do falo
é q u e se p o d e g rita r c h a m a n d o -o e e le n u n c a d irá n a d a ” .55 E
inarticulável; p ara dizer dev e-se u nir um significante com outro
sig n ific a n te , já que um sig n ific a n te não pode sig n ific ar-se a si
m e sm o , p o r isso o F a lo é um s ig n if ic a n te m u d o e sem par.
E nquanto o nom e-do-Pai “é o Falo sem dúvida, mas é igualm ente
o nom e-do-P ai... Se este nom e tem algum a eficácia é justam ente
porque alguém se levanta para responder” (idem ) e é por isso que,
sendo o Falo, cum pre ao m esm o tem po um a função que o Falo não
pode cum prir, a de ser o tronco e o ponto de referência a partir do
qual se possibilita a articulação discursiva. Podem os considerar o
Falo com o o significante zero e o nom e-do-Pai com o sua metáfora,
o significante um que vem em seu lugar.
A n te s de re p a s s a r e s in te tiz a r o q u e v e n h o p ro p o n d o , é
necessário que m e detenha neste ponto, porque encontro aqui uma
confusão que se difunde com freqüência em um aspecto-chave da
teoria do gozo. Acabo de citar um a afirm ação inequívoca em que
L acan p ostula, em 1971, a identidade entre nom e-do-Pai e Falo.
Q u an d o L acan o fo rm u la assim , sabe que está m odificando um
p onto essen cial de suas teses anteriores; concretam ente, o m odo
habitual de entender a metáfora paterna proposta em seu artigo sobre
as p s ic o se s. P o r isso , ri-se do d e sc o n c e rto de seus d isc íp u lo s
(“D eus sabe que estrem ecim entos de horror provoquei [ao escrever
que o nom e-do-Pai é o Falo] em certas alm as piedosas” [ibid.]) e

55. J. L acan (1971). Sem inário X V III, aula de 26 de junho.


94 G ozo

explica que quando propôs a metáfora paterna, em 1957,56 não podia


articulá-la melhor. Com efeito, nessa fórm ula anterior encontram os
a razão para que um a autora tão cuidadosa com o Colette Soler,57 em
um a co n fe rê n cia p ro fe rid a em B ru x e la s, e m uitos depois dela,
repitam que o n o m e-d o -P ai realiza “a p ro d u ção do significante
fálico” , que o Falo é secundário à m etáfora. Citem os: “O nome-do-
Pai produz outro significante sem par, o falo. Produze-o (...) como
significação. Isso tam bém se vê na escritura da metáfora: o falo está
abaixo da barra, no lugar do significado. Portanto, produção do falo
com o significação, mas tam bém produção da significação com o
fálica”. A própria autora oferece mais tarde, na m esm a conferência,
uma solução que perm ite conciliar a contradição e que é essencial
para nossa exposição. E a de distinguir o Falo (O), com maiúscula,
“impossível de tornar negativo, significante do gozo”58 e o falo (-cp),
com minúscula, significante do desejo, que, ele sim, é consecutivo
à intervenção do nom e-do-Pai e se apresenta para o sujeito com o
“im agem do pênis, negativado em seu lugar na im agem especular”,
sendo isto “o que predestina o falo a dar corpo ao gozo na dialética
do desejo”,59 o que perm ite que, experim entando sua falta, o sujeito
possa investir o objeto, carregando-o com o valor do que nele falta,
possa tornar-se desejante. “E pois m ais a assunção da castração o
que cria a falta na qual se institui o desejo” .6“ A falta im posta pela
castração e assum ida pelo sujeito com o tal no im aginário é indicada
algebricam ente com o -(p, menos phi.
Temos que aceitar a idéia de um desdobram ento do falo, como
significante, com o conseqüência da intervenção metafórica do nome-
do-Pai. Por um lado, com o N asio afirm ou em outra conferência
desse m esm o ano de 1982,61 na fórm ula da m etáfora paterna, “o
nom e-do-Pai é o significante que se substitui e se condensa ao falo

56. J. L acan (1958). É crits, p. 557; E scritos 2, p. 539.


57. C. Soler. A bords du N om -du-Père. Q uarto, B ruxelas, n. 8, p. 61, 1982.
58. J. L acan (1958). É crits, p. 557; E scritos 2, p. 539.
59. J. L acan (1960). É crits, p. 822; E scritos 2, p. 802.
60. J. L acan (1960). É crits, p. 852; E scritos 2, p. 831.
61. J.-D . N asio. L a forclusion y el N om bre-del-P adre. In: La re-flexion de
los conceptos de F reu d en la obra de Lacan, p. 312.
Os gozos distintos 95

com o sig n ific a n te do d esejo da M ã e ” , e é n esse sen tid o que é


significante do gozo com o proibido, que é um significante sem par
e c o n su b sta n c ia i à Lei de p ro ib iç ã o do in cesto , do gozo com o
absoluto, e, por outro lado, por sua operação, m arca os objetos do
dese jo co m o seus re p re se n ta n te s no im a g in á rio , c o n c e d e -lh es
sig n ific a ç ã o fá lic a . E é isso o q u e se e n c o n tra na fó rm u la da
m etáfora paterna:

Nome do Pai

Esta, à luz do que vimos dizendo, poder-se-á entender assim:


o n o m e -d o -P a i, s ig n ific a n te q u e c h a m a a lg u ém a re sp o n d e r,
articulável, substitui o Falo com o desejo da M ãe (é a prim eira parte
do desenvolvim ento da m etáfora paterna no artigo de Lacan [idem]
em que apresenta) e advém aí com o significante um que tom a o
lugar da C o isa, desse elem en to do R eal que p adecia pelo Falo,
sig n ific a n te in a rtic u lá v e l, c o lo c a n d o -se no lu g a r do lim ite do
conjunto significante, por fora de A, fora do parêntese, conform e
se vê na escritura da fórm ula anterior. Seu efeito é que, no nível do
significado, debaixo da barra, vem todo o significável como investido
pela função fálica e, por isso, à luz do que estam os vendo, a palavra
fa lo deveria escrever-se a í com m inúscula, com o significante do
desejo (q>) que se representa para o sujeito sob a form a da castração
(-cp). “A q u ilo q u e a e x p e riê n c ia a n a lític a te ste m u n h a é que a
castração é, em todo caso, o que regula o desejo, no norm al e no
a n o rm a l” .63 O u, em o u tra s p a la v ra s , q u e o n o m e -d o -P a i não
“produz” o significante fálico (C. Soler), mas a significação fálica
que não esto fa, não perm ite apreender, m as que está sem pre no
m enos (-cp) em relação ao real, lançando o desejo. Em suma, que na

62. J. L acan (1958). É crits, p. 557; E scritos 2, p. 539.


63. J. L acan. (1960). É crits, p. 826; E scritos 2, p. 806. A expressão de L acan
não é fe liz. Q u em p o d e - p s ic a n a litic a m e n te - fa la r d e “n o rm a l” e
“ a n o rm a l" ? Se to d o s so m o s fa la n te s , p a ra q u ê a d istin ç ã o q u e e stá
carregada ideologicam ente pelo discurso norm ativo?
96 G ozo

fórmula lacaniana da metáfora paterna haveria um erro de ortografia


con sisten te em escrev er a p alav ra falo com m aiúscula. O que o
nome-do-Pai “produz” é a significação fálica, mas ele é, por sua vez,
um substituto articulável, dizível, do Falo, significante do gozo, fonte
inarticulável da palavra.
Por isso é que a função do nom e-do-Pai é, para o sujeito, pa-
cificante, nas palavras de Lacan (que brinca com “pacificante” e seu
homófono, pas si fia n t, “não tão fiável”). Pacifica porque, ao induzir
a castraç ão sim b ó lica, põe lim ites ao gozo desen freado que é o
“p io r”, o que, na clínica, se m anifesta com o invasão psicótica de
significan tes que não encontram seu ponto de ancoragem , que é
necessariam ente este significante forcluído nos casos do nome-do-
Pai. E o caos dos S2 pela falta do S, que apenas culm ina e se esta­
biliza quando o delírio vem tomar o lugar desse nome-do-Pai faltante,
de S„ produzindo-se esse rem endo que é a m etáfora delirante.
R e p a s s a n d o e s te p e rc u rs o a m p lo e á rid o , sem d ú v id a -
preferiria que fosse de outro m odo - , encontram os: 1) a Coisa, real
e ao m e sm o te m p o m ític a , e fe ito re tro a tiv o da s im b o liz a ç ã o
prim ordial, objeto absoluto e para sem pre perdido do desejo; 2) o
F a lo , s ig n if ic a n te ím p a r, g ra u z e ro , in d ic a d o r d a ra d ic a l
im possibilidade do acesso à Coisa, sím bolo que instala a divisão dos
sexos e dos gozos, executante do corte da castração sim bólica que
coloca em níveis distintos o ser (do gozo) e o pensar (da palavra)
e que, ao estabelecer com relação a ele a falta no falante, a carência
que se im aginariza como castração, com o falta na imagem desejada,
induz a sig n ific a ç ã o fálica e lan ça o d esejo ; 3) o n om e-do-P ai,
significante um (S,), articulável, diacrítico (isto é, caracterizado por
sua diferença com o resto dos significantes), indutor, produtor e, ao
m esm o tem po, representante de um sujeito (S) ante o conjunto dos
significantes, ante o O utro da linguagem ; 4) o saber inconsciente
(S2), palavra que expressa a im possível integração do sujeito no real,
o necessário desterro que o leva a habitar no O utro da linguagem
depois de haver recusado (pela ação do Falo) o gozo do ser para
tratar de alcançar outro gozo, o do para-ser por meio do sem blante,
e 5) o @ com o efeito real que se produz pelo discurso m esm o, que
suporta sem pre a castração, objeto que seguram ente se perde e que
é um m ais de gozo dependente do vínculo social estabelecido entre
o S, o Sujeito e o A, o Outro, castrado e desejante.
O s gozos distintos 97

A C oisa, com o o passado, é irrecuperável; o objeto, em sua


co n d iç ã o de real, co m o o fu tu ro , é im p o ssív e l. O su je ito está
dividido, tam bém , entre um gozo passado e um gozo futuro, e de
am bos está excluído. O nom e desta exclusão, que impõe uma falta
a ser, é desejo. Os dois, a C oisa e o objeto, escapam ao alcance da
sim bolização. A palavra, sem pre no presente, cortadora do tempo,
fabricante do futuro, é a tesoura que divide o gozo do ser (da Coisa)
e o outro gozo, gozo do O utro (fem inino) que abordarem os m ais
adiante. Mas, em si m esm a, na sua articulação dos significantes, no
exercício do corte, na ev o cação dos gozos p o ssíveis e ausentes,
p a s s a d o s e fu tu r o s , na lin g u a g e m , há ta m b é m um g o z o
essencialm ente distinto dos dois mencionados e que, com o marcado
pela castração, é o gozo fá lico , fora do corpo. Este gozo na palavra
é um a tradução que desnaturaliza (se é que algo do gozo possa ser
“natural”) e ao mesm o tempo torna possível a parte do gozo que é
acessível ao falante.
Este gozo linguajeiro requer a anuência do Outro, um Outro de
quem o sujeito sabe sem nada querer saber; é o gozo não-sabido do
qual depende o inconsciente, estruturado com o um a linguagem e
encarregado da função de decifrar o gozo. Será o tem a do quarto ca­
pítulo. Pois é verdade que, falando, o sujeito goza, mas que, ao m es­
mo tempo, se defende de braços abertos deste gozo, limita-o e o freia
porque é associai e m aledicente. A fala (parole), o discurso corren­
te, opõe a seriedade da língua e da razão consensual à desrazão da
alíngua, do dizer poético, do chiste e das em ergências da verdade
no discurso. Enfim , outra vez, a palavra é o diafragm a do gozo.
Isso é a castração, a citação deve recitar-se neste contexto:
“quer dizer que é necessário que o gozo seja rechaçado para que seja
alcan çad o na escala invertida da Lei do d e se jo ” .64 N esta síntese
sensacional aprendem os que não se trata de um gozo, mas de dois,
o re cu sad o e o que deve ser alcan çad o , e que estes dois não se
separam senão pelo aparecim ento de um a função que os divide, de
um a tesoura ou gadanha que impõe o requisito de atravessar pelo
funil da castração , su bm etendo o órgão que rep resen ta o falo, o
pedacinho de carne que pode estar ou faltar, ser saliente ou ficar

64, J. L acan (1960), É crits, p, 827; E scritos 2, p. 807.


98 G ozo

meio escondido entre as mucosas, a restar sem pre debaixo da função


que lhe atribui ocasionar o gozo. Em tom o dele, traça-se o corte que
produz a divisão impreenchível dos sexos (m itificada pelo andrógino
platônico e seu destino de incom pletude) e se m otiva a angústia do
neurótico que pretende ignorar que já sofreu de saída a castração
que teme e que, com seu desejo, tem pouco a perder e tudo a ganhar,
enquanto a neurótica, acreditando estar fora do gozo fálico, lança-
se a invejá-lo e fecha o cam inho para seu próprio gozo que requer
o falo, m as que não se lim ita a ele, conform e se verá no próxim o
capítulo, dedicado ao gozo e à sexualidade.
Se en u n ciam o s este discurso sobre a distin ção dos gozos é
porque nos parece essencial para um a nova abordagem da clínica
psicanalítica à m edida que as estruturas clínicas (neurose, psicose
e perversão) são modos de se posicionar ante o gozo.
Sucintam ente, e com o um novo adiantam ento do que se verá
em detalhes nos cap ítu lo s co rresp o n d en tes, deve-se falar de um
gozo que se produz pela não instauração (forclusão) do nom e-do-
Pai, um gozo não regulado pelo significante e pela castração, fora
da lin g u a g e m c o m o s u b m is s ã o às le is do in te rc â m b io e às
regulações re cíp ro cas, fora da Lei do desejo , um gozo que não
espera nem aspira a receber do O utro um a resposta à falta a ser,
go zo p sic ó tic o , en fim , aquém da p a la v ra , in u n d a n te , in v aso r,
ilimitado. D este - discutido - gozo do ser sabemos não apenas pela
necessidade lógica de concebê-lo, mas porque aparece clinicam ente
nesses sujeitos cujo corpo é um cenário de onde se derram a, sem
lim ites, a p a la v ra do O utro, suas o n d as, v ib raçõ es e raio s que
dispõem nele insólitas transform ações, onde a palavra opera com o
um real alucinatório e onde a linguagem pode chegar, pela via do
delírio, a colocar um freio precário ao gozo.
E há o gozo posterior à castração, o gozo fálico, sim, mas que
não pode ser simbolizado por meio da palavra e de seus intercâmbios,
em que a castração não é o cam inho para um bem dizer, mas uma
ameaça que bloqueia a insistência no desejo e em que o gozo fálico
fica sequestrado, reprimido, e se manifesta, simbolizado, mas retido,
em sinto m as q u e recaem sobre o co rp o (e tem os a h isteria ) ou
sobre o p en sam en to (e tem os a neurose o b sessiv o -com pulsiva).
(Veja o capítulo V)
O s gozos distintos 99

Há, além disso, a saída voluntária do regim e dos intercâm bios


por m eio dessa m ercadoria que é a droga e que pode transform ar-
se em um a a-dicção (A-dición, @ -dicción) definitiva; ali o gozo do
ser é alcançado por meio de um curto-circuito que deixa o corpo à
m ercê do O utro e de seu desejo. (Veja o capítulo VII)
Há, por outro lado, a tentativa de se apoderar das influências
do gozo, fazendo-o pren d a e p resa de um saber à disposição do
sujeito, que, por meio de técnicas corporais, conseguiria liberar-se
da intolerável castração, deslocando-a sobre um objeto degradado e
subm etido m ediante práticas perversas. Sem saber que o fantasm a
de sa b e rg o z a r é, p o r su a v e z , d e fe s a c o n tra o a m e a ç a d o r do
insondável gozo do Outro. (Veja o capítulo VI)
E há, por fim, depois da intervenção do nom e-do-Pai, um gozo
que é d i-v e rsã o d esse g ozo o rig in á rio , re g u la ç ã o do gozo pela
castração sim bólica, deslocam ento, m udança de registro, tradução
para outro código, desnaturalização, m etam orfose irreversível que
leva a transacioná-lo no m ercado em que se discute e se decide qual
é o q u a n tu m de gozo que pode ser alcan çad o pelo cam in h o do
desejo. D este gozo, a força das tradições nosológicas obrigar-nos-
ia a dizer que é “norm al” , com o que estaríam os qualificando de
“ anorm ais” os dem ais. M as sabe-se bem que os psicanalistas não
podem os falar em tais term o s/’5 ainda que possam os, sim, recorrer
ao trocadilho de Lacan, nunca tão claro com o neste contexto: trata-
se da norm e mâle, da norm a do macho.
U m a clínica do gozo que regula eticamente o ato analítico e que
distingue os significados psicótico, perverso, adicto, neurótico ou
apalavrado do gozo em cada estrutura. U m a clínica que é a razão
de ser de todos estes capítulos e itens, deste longo percurso pelos
despenhadeiros do gozo.

6. A s b arreiras ao gozo

O gozo está proibido e não som ente, com o acreditam os im ­


becis (estou tirando as aspas com o observa qualquer leitor avisado),

65. J. L acan. C ourt eniretien a la R.T.B. Q uarto, Bruxelas, n. 22, p. 31, 1985.
100 G o zo

por um mau arranjo da sociedade. N ão é que o O utro não leixa go­


zar, mas o gozo tam bém falta ao O utro, a com pletude naia m ais é
do que um fantasm a do neurótico neste tempo espantosam nte ator­
m entado por exigências idílicas. O essencial, com o Freul m esm o
diz, é que a relação sexual não existe, que o am or não é ura via re­
com endável para atenuar o m al-estar na cultura, que o disejo, es­
preitado por um deus m aligno, erra na desventura pelos deertos do
gozo. “Este dram a não é o acidente que se acredita. E essêicia: pois
o desejo vem do O utro, e o gozo está do lado da C oisa” .66
P or aí com eçam os nosso percurso, por d istinguir ogozo do
que pode lhe parecer, mas que são seu contrário: em primero lugar,
o prazer; em segundo, o desejo. E agora encontram os ests velhos
conhecidos em seu caráter de barreiras interpostas no caninho do
gozo. P ois o prazer, lig ação v ital, lu b rific a n te dos in ó m o d o s,
nivelador das diferenças, é a trava quase natural que faz dc sujeito
um travado, um S barrado, S. Ao pôr lim ites ao gozo, ao jrocurar
n a e x p e r iê n c ia p a r a d ig m á tic a d a c ó p u la , com o o r g s m o , a
detum escência, o prazer é o antídoto do gozo.
A essa lei hom eostática, e levantando-se sobre ela, sona-se a
Lei da linguagem que impõe a renúncia aos gozos, que des;ozifica
o corpo e se significa ao redor do Falo com seu correlato}ue é a
castração, a qual faz aparecer o sujeito com o carente e, assm, ins­
titui o desejo, esse girar incansável pela superfície interiorio toro
ao redor de seu obscuro objeto. Sim; o desejo colocador en pala­
vras é um a transação e um a defesa que m antém o gozo em ;eu ho­
rizonte de im possibilidade; o desejo deve dobrar-se à Lei, jraças à
função do Pai. O desejo ser desejo do Outro significa dizer iue está
subm etido e que aceitou a Lei, que trata de ajustá-la como jode no
exílio da Coisa, deslizando-se até os objetos que o causam j o ilu­
dem. D eve aceitar o despojo inicial, de estrutura, para logo elacio-
nar-se com esses objetos da pequena econom ia de perdas e [anhos.
D izia L acan67 em seu sem inário dedicado à angústia; “O deejo e a
Lei são um a única barreira que obstrui nosso acesso à C o is” .

66. J. L acan (1964). Écrils, p. 853; E scritos 2, p. 832.


67. J. L acan (1962). Sem inário X, aula de 19 de dezem bro. Inédito.
Dsjozos distintos 101

O desejo m arca os cam inhos para a pulsão que são caminhos


ieinsatisfação. '‘Por esta razão a pulsão divide o sujeito e o desejo,
ieejo que não se sustenta, senão pela relação que ele desconhece,
•on esta divisão com um objeto que o causa. Esta é a estrutura do
àitasma”: S O @.6S
Assim, o desejo se desconhece a si m esm o em uma formação
inginária, o fantasm a, que coloca em cena a aspiração ao gozo e
at, conseqüentem ente, é outra barreira ao gozo. E isso tanto se o
ueito se lim ita a im aginá-lo neuroticam ente e renuncia, assim, a
npor-lhe na realidade (“ intro v ersão da lib id o ” , dizia um Freud
jt>guizado), quanto se o atuasse de m odo perverso, pois em ambos
iscasos acaba se dando conta de que se tratava de outra coisa, de
ic o objeto está perdido tanto no fantasm a m asturbatório quanto
atentativa perversa de dem onstrar que o gozo pode ser conseguido
c meio do saber fazer com os corpos, o próprio e o do partenaire.
O fa n ta s m a p ro p õ e o b je to s @ c o m o c o n d iç õ e s ou
ntrumentos de gozo, e estes objetos são um efeito, com o visto, do
rdo e da castração que os carrega de valor fálico negativo. Estes
iljetos, com o dem onstrava Freud em 191769 em seu célebre trabalho
o r e as transm utações das pulsões (sua aproxim ação m áxim a da
uição e do conceito do objeto @ de L acan), estão subm etidos a
ib stitu iç õ e s e d e s lo c a m e n to s sim b ó lic o s em um siste m a de
■CLiivalências como o que existe entre o pênis, o filho-Lumpf, o cocô,
n resen te, o dinheiro e, para a mulher, o varão com o apêndice do
ao cobiçado.
E os objetos, as coisas deste m undo, não são m ais que telas
);recidas ao fantasm a com o prom essas de gratificação imaginária,
i f assu m em seu p re ç o as m e rc a d o ria s q u e a p u b lic id a d e se
: c a rre g a de “ e n c a re c e r” e re c o m e n d a r o seu co n su m o , sendo
;imo é uma atividade que opera, sem o saber, sobre o objeto @ de
Lican. V ê-se com clareza que a realidade e a não proliferação dos
;»jetos operam tam bém com o defesas contra o gozo.
O discurso de Lacan se aproxim a aqui ao de M arx e o de Marx
acde F reu d . M a is-v a lia e m ais de gozo, m e rc ad o ria e fetiche,

6 8 J. L acan (1964). É c r its, p. 853; E scritos 2, p. 832.


69 S. Freud (1917). O bras c o m p leta s, v. X V II, p. 113-119.
102 G ozo

dinheiro e falo, ouro e cocô, exploração e ganhos ou perdas, salário


e d esp o jo , g ozo do Um e gozo do O u tro , c o n tra to e roubo e a
propriedade com o um roubo, valor de troca e valor de uso (ou de
gozo?) são todas referências que se aproximam da economia política
e desta outra que é seu fundam ento e que é uma econom ia de gozo.
Nas palavras do econom ista Karl Polanyi: “Há um ponto negativo no
qual todos os etnógrafos m odernos estão de acordo: ausência do
m óbil do b e n e fíc io ; a a u sê n c ia do p rin c íp io de tra b a lh a r p ela
rem uneração; ausência do princípio do menor esforço; e sobretudo
a ausência de qualquer instituição separada e diferenciada, baseada
em m otivos eco n ô m ico s”711 e nas de N orm an de O. B row n,71 que
também cita Polanyi: “A categoria última da economia é o poder; mas
o poder não é um a categoria econôm ica... é, em sua essência, uma
categoria psicológica” . Enfim , todo o capítulo 15 deste Life against
dealh (títu lo o rig in al da obra que estam o s cita n d o ) p o d eria ser
incluído neste tex to sobre o gozo. P or isso é m elhor cau sar um
curto-circuito e convocar um convidado inesperado, Aldous Huxley,72
que em seu C ontraponto (de 1928) nos diz:
O in stin to d e a d q u irir c o m p o rta , a m eu ver, m ais p e rv e rsõ e s
d o q u e o in stin to se x u a l. P e lo m en o s, as p e sso a s m e p a re c e m , no
e n ta n to , m a is e s tr a n h a s a re s p e ito d o d in h e ir o d o q u e d e se u s
a m o re s ... N in g u é m se e n c o n tr a d e ig u a l m o d o (q u e o s e n te s o u -
r a d o r e s ) i n c e s s a n t e m e n te p r e o c u p a d o p e lo s e x o ; s u p o n h o s e r
p o rq u e n a s q u e s tõ e s s e x u a is é p o s s ív e l a s a tis fa ç ã o fis io ló g ic a ,
e n q u a n to n ã o e x is te isso com re la ç ã o ao d in h e iro . Q u a n d o o c o r­
p o se e n c o n tra sa c ia d o , o e sp írito d e ix a d e p e n sa r n o a lim e n to ou
na m ulher. M as a fo m e d e d in h e iro ou de p osse é q u a se p u ra m e n ­
te u m a c o is a m e n ta l. N ã o h á s a tis f a ç ã o fís ic a p o s s ív e l. N o s s o s
c o rp o s o b rig a m , p o r a ssim d ize r, o in s tin to se x u a l a se c o n d u z ir
n o rm a lm e n te ... N o q u e se re fe re a o in stin to d e a d q u irir n ã o e x is ­
te c o rp o re g u la d o r, n ã o h á u m a m a s s a d e c a rn e b e m s ó lid a q u e
d e v a se r tira d a d o s trilh o s d o h á b ito fisio ló g ic o . A m a is lev e te n ­
d ê n c ia à p e r v e r s ã o p õ e - s e i m e d i a t a m e n t e d e m a n ife s to . M a s

70. K. Polanyi. La grau tansform ación. M éxico: Fondo de C ultura E conóm ica,
2003. p. 91.
71. N. O. B row n. E ros y Tánatos. M éxico: M ortiz, 1967. p. 293.
72. A. Huxley. C ontrapunto. B arcelona: Seix Barrai, 1983. p. 302.
Os gozos distintos 103

ta lv e z a p a la v ra p e rv e rsã o n ã o te n h a se n tid o n e ste c o n te x to . P o r­


q u e a p e rv e rsã o im p lic a a e x is tê n c ia de um a n o rm a, d a q u a l se se ­
p ara. Q u al é a v e rd a d e ira n o rm a d o in stin to d e a q u is iç ã o ?

A econom ia, a atividade de produção e de consum o, encontra


sua razão além do princípio de prazer. A psicanálise questiona tanto
a econom ia política clássica quanto seu revestim ento m arxista. O
número, a contabilidade, a acum ulação reconhecem seu fundam ento
na castração e na investidura do dinheiro com o @/-cp.
Um caso particular que poderia alentar a reflexão de Huxley é
o de don Juan que classifica as m ulheres segundo a geografia (por
países) e as contabiliza de m odo que seus desvelos de conquistador
não apontam ao objeto, mas ao catálogo que leva seu serviçal no qual
se inscreve o registro de suas vitórias. T rata-se, em seu caso, de
rebaixar esse lim ite que a relação com o corpo impõe à sexualidade.
No catálogo, na coleção de fotografias de “suas” m ulheres que um
neurótico pode levar, acreditando havê-las “possuído” , no fato de
passar o sexo à contabilidade, encontra-se um a m aneira especial de
en fren tar o p ra z e r com o b arreira ao g ozo e su sten tar a im agem
tú rg id a do falo além de seu d ecad en te d estin o . N ada a dizer da
a n g ú stia de c a s tra ç ã o q u e su ste n ta e q u e q u e r d e sm e n tir este
colecionador singular que é don Juan.
Os objetos, os fetiches, as m ercadorias, constituem a realidade
que tem a m esm a substância que o fantasm a, que servem com o ele
para encobrir o real, com o telas que distanciam da coisa vedada pela
Lei. Essa Lei que não proíbe, mas que impõe o desejo e o desejo em
vão: esforçar-se, ir atrás do objeto que, por outro lado, nada mais
é que engano, aparência, sem blante. Escorregadiço.
Frente a essa im possibilidade e ao decepcionante das coisas,
alça-se um fantasm a particular, um m odo especial de im aginarizar
um gozo do qual o sujeito poderia se apoderar e exercer dom ínio e
p o ss e , o fa n ta s m a de c h e g a r ao g o z o p o r m eio do sa b e r, da
articulação de significantes que perm itiriam a apropriação do real e
a um a dicção que confirm e ao sujeito que está de posse da verdade.
O fa n ta sm a de um s a b e rg o z a r que fu n d a m e n ta e a p ro x im a os
discursos do senhor, da ciência e da perversão. Este saber teria que
ceg ar o poço im p reen ch ív el que o rd en a a relação sexual com o
im possível p orque o Falo é um sig n ifican te sem par que ordena
104 G ozo

posições assim étricas e gozos não conciliáveis entre o homem e a


m u lh e r (q u e , p r e c is a m e n te p o r is s o , p o r n ã o h a v e r O u tro
significante, que seja o próprio, não existe).
Em suma, que o gozo está defendido, que a Coisa está rodeada
de aram es farpados, círculos de fogo, cercas eletrificadas, muros
de Berlim , que a tornam objeto em inente do desejo precisam ente
p elo halo de im p o ssib ilid a d e q u e a circ u n d a . A L ei e a ordem
sim b ó lic a , p o r um lado, o c o n ju n to fa n ta s m á tic o d a s fu n ç õ e s
im agin á ria s, saber e realid ad e inclu so s, e, finalm ente, o desejo
mesmo, por outro, constituem um conjunto de defesas que o gozo
encontra além da prim eira defesa, “quase natural”, que é o prazer.
N este contexto, a sexualidade, função vinculada tanto ao desejo
com o ao prazer, regulada pela Lei, é tam bém cham ariz oferecido e,
às vezes, barreira ao gozo.
Com tantos obstáculos, devendo atravessar-se tantas cam adas
concêntricas da cebola para alcançar o núcleo do gozo, o vacúolo
central da C oisa, é fácil con ceb er que seja inalcançável. Talvez,
com o o Falo é o significante do gozo com o im possível, reste dizer
que a barreira erigida no cam inho do gozo é a castração e assim é
com o aparece no vetor horizontal superior, aquele da enunciação (o
da cadeia inconsciente), no gráfico do desejo com entado há pouco.
D o gozo à ca stra çã o e, p assan d o p ela castração , ao desejo que
aspira recuperar o gozo recusado pela via enganosa do sem blante.
O sem blante da articulação discursiva inventa um m undo que não
é senão flor de retórica, jogo m entiroso de m etáforas e m etoním ias,
de p ro c e s s o s p rim á rio s e s e c u n d á rio s . O g o zo é do c o rp o (o
Outro), mas não é alcançável senão passando pelos desfiladeiros da
lin g u a g e m ... (ta m b é m o O u tro ) q u e o tra n sfo rm a m de m odo
irreversível e o tornam irreconhecível.
A C o isa é o q u e d o real, um re al q u e to d a v ia não tem o s q u e
lim ita r, o re a l e m s u a to ta lid a d e , ta n to o re a l q u e é p ró p r io ao
s u je ito q u a n to o re a l c o m o q u a l se te m q u e h a v e r s e n d o - lh e
e x te r io r , é o q u e , d o re a l p r i m o r d i a l, d i r ía m o s , p a d e c e p e lo
s ig n if ic a n te .73

73. J. L acan (1960). Le sem inaire. L ivre VII. L 'étiq u e d a n s la psych a n a txse,
p. 142.
Os gozos distintos 105

É claro que aqui a d itin ção entre e x terio r e in terior não é


p ertin en te, p o is tal d is tin ã o é, p re c isa m e n te, um e fe ito desse
significante que faz padeceie que marca a Coisa, que tira do buraco
central do toro e propulsion o falante a dar voltas em tom o de sua
alma, a do toro. A C oisa n o sabe do dentro e do fora; o que está
fora, despatriado, é o sujeio em relação com sua origem , fora do
gozo do ser.
E, no entanto, com o jíc ite i, algo da Coisa, do real prim ordial,
conserva seus efeitos até na;struturação discursiva. M as a passagem
da Coisa ao discurso não é iem fácil nem direta. Entre ambos, entre
gozo e desejo, está a angúsia que será objeto do últim o item deste
já tão grande capítulo.
A articulação do gozoIo ser e o gozo fálico é o inconsciente.
Pode ser visto em sua dupkfunção: prim eiro, a de perm itir que o
gozo seja possível e, seguno, a de condená-lo a ser im possível ao
o b rig á -lo a a c e ita r a Lei a e o rd e n a sua c o n v e rsã o do real ao
sim b ó lico e que induz efeios im ag in ário s. D eve-se co lo car em
p a la v ra s e v iv e r n o s e m d a n te , n a s f r o n te ir a s do re a l. D o
in c o n sc ie n te não cabe faze nem o elo g io nem o denegrim ento.
Conform e o cristal com que; olhado lhe cabe um ou outro. M elhor
é dizer que aí e, com a d ifíil tarefa de articular o O utro que é o
corpo, um a vez que foi subrrctido à castração simbólica, mas dentro
do qual ficam en claves ati os que resistem à norm alização e ao
Outro da linguagem, o educdor aliado da realidade por meio do Eu.
U m in c o n sc ie n te qu e, assm , não é nem o Isso das e x ig ê n cias
p u lsio n ais nem o Eu dos necanism os de d efesa. E ste tem a será
abordado de m odo m ais prenso no c a p ítu lo IV - “D ecifram ento
do gozo” .
Junto a estas consideações acerca das barreiras ao gozo, é
im portante acrescentar isso |ue não é barreira ao gozo, o nome-do-
Pai, m esm o quando possa s pensar o contrário. Esse significante
torn a p ossível ao gozo p o im eio da tradução, da lo calização do
sig n ifican te fálico no luga de articulação, que perm ite ao gozo
subjetivar-se. D eve-se distnguir aqui o pai real e sua função do
significante que o represena no sujeito, o nom e-do-P ai ou, como
vim os, re p re se n ta n te-d o -F lo (que não tem nom e). A função do
106 G ozo

n o m e-d o -P ai74 é a de co n ju g ar a Lei (ela sim o b stácu lo ) com o


desejo. E sta consid eração não “p a tria rc al” do Pai, graças a cujo
nome nem o hom em nem a m ulher ficam aderidos ao serviço sexual
da m ãe, dá a en ten d er, tiran d o o im a g in á rio , os co m p le x o s de
c a s tra ç ã o e de É d ip o . A c a s tra ç ã o m e sm a p e rd e seu a sp e c to
supostam ente am eaçador e sinistro para passar a ser exatam ente o
contrário, uma função de habilitação para o gozo, a condição de uma
relativa e precária imunidade contra esse m aligno gozo do Outro que
deixa o sujeito fora do simbólico. Essa função de passagem é, como
já d isse m o s , p o s s ib ilita d a p e lo in c o n s c ie n te e n c a rre g a d o de
transportar o gozo do corpo para a palavra. Não é um segredo que
está estruturado com o um a linguagem . T am pouco a linguagem é
b a rre ira ao g o zo . P e lo c o n trá rio , é o a p a re lh o do g o z o 7’ que
apresenta e representa este gozo cuja falta tornaria inútil o universo.
O que fica além do prin cíp io de p razer está su stentado sobre a
linguagem ;76 se algo da linguagem é barreira contra o gozo é o fato
de que, ao falar, produzem -se efeitos de sentido, de com preensão,
de so ld a d u ra do s im b ó lic o co m o im a g in á rio , de re c íp ro c a s
co n firm açõ es n arcísicas en tre os in te rlo c u to re s que são, m uito
claram ente, travas opostas ao gozo que se produzem pelo blablablá.
Podem rastrear-se aqui as distintas funções do aparelho psíquico
freudiano, das diversas tópicas dessa m áquina m etabólica do gozo
inventada por Freud.
O gozo fá lic o inscreve-se na articulação do real, do que resta
da Coisa, um a vez que se deslocou o desejo, e o simbólico, que pode
com por-se por m eio da colocação em palavras do gozo ordenado
pelo significante. Entre um O utro e o outro, o sujeito deve se ins­
crever.
O gozo do se r tem outra in scrição, é inefável, está fora do
simbólico, em um a atribuição im aginária que fazemos inventando-
o com o se fosse gozo do O utro, de um O utro devastador que, por
falta de inscrição do nome-do-Pai (forclusão), reaparece no real. Fica

74. E. P o rg e . L e s n o m s -d u -P è r e c h e z J a c q u e s L a ca n . P o n c tu a tio n s et
problém atique.
75. J. L acan ( 1974). Le sem inaire. Livre XX. E ncore, p. 52.
76. Idem , ibidem , p. 49.
Os gozos distintos 107

entendido que não é o Outro que goza, que há som ente gozo de um
que goza atrib u in d o um gozo ao O utro que o tom ará com o seu
objeto.77
N este agrupam ento dos registros de dois em dois, proposto
por Lacan, fica um terceiro espaço de sobreposição, o do imaginário,
recobrindo-se com o sim bólico, m as sem alcançar o real, que é o
nível do s e n tid o ; g raças ao sentido constituem -se os ob jeto s da
re alid a d e , o c o n se n so c o m p a rtilh a d o , o a co rd o g a ra n tid o p ela
palavra, a ideologia; o gozo fica excluído dele e é defendido por todas
as instâncias assinaladas nos parágrafos anteriores. O sentido serve
ao re c o n h e c im e n to do m u n d o do q u al o a rtífic e é em n o sso s
tempos o com unicador, o G rande Outro das mass media, aquele que
junta as representações atrás da televisão, aquele que uniform iza no
planeta os modos de manter o gozo à distância e configura os eus que
se reconhecem reciprocam ente em um ideal comum, ou seja, que se
m assificam d e sg o z ific a n d o -se seg u n d o a fó rm u la fre u d ian a de
1921.™
Lacan inscreveu estas relações em seu nó borrom eu quando
proferiu sua terceira conferência em R om a,79 de m odo que, sendo
cada um dos aros da corda a rep resen tação de um dos registros,
fica um a área de trip la so b rep o sição do real, do sim bólico e do
imaginário na qual se localiza o objeto @ que tem esse triplo estatuto,
essa tripla pertinência. V ê-se no nó três áreas de dupla sobreposição
que excluem um dos três registros: gozo do O utro (sem simbólico),
gozo fálico (sem im aginário) e cam po do sentido (sem real... e sem
gozo).

77. Ph. Julien. L ’étrange jo u issa n c e du prochain. É thique et psychanalyse.


Paris: Seuil, 1995.
78. S. Freud (1921). O bras com pletas, v. X V III, p. 110.
79. J. L acan. La troisièm e. Lettres de /'É c o le Freudienne, Paris, n. 16, p. 177­
203, 1975; em c a ste lh a n o , A c ta s de la E scu ela F re u d ia n a de P aris.
Barcelona: Petrel, 1980.
108 G ozo

Voltando a algo já visto no item anterior, vale a pena realçar


que, nesta escritura de seu nó, Lacan escreve o gozo fálico com as
iniciais J cp, ou seja, usa o p h i m inúsculo que rem ete ao significante
im aginário, ao falo com o sem blante e não ao Falo com maiúscula,
sig n ifican te do gozo que, h ab ilitan d o a função do nom e-do-Pai,
condena as portas do gozo do ser. Vale a pena reter esta distinção.
A credito que não forço a concepção de Lacan, ainda quando
tr a n s g r id a o q u e e x p lic ita m e n te d is s e n e s s a c o n fe rê n c ia , se
proponho: 1) que a ciência, essa atividade que se propõe a apropriar-
se do real p o r m eio do sim bólico, é hom óloga ao gozo fálico ao
repudiar todo im aginário e nada querer saber do gozo do Outro, do
Outro sexo (naquilo que se aproxim a à perversão tal com o se verá
no c a p ítu lo c o rre sp o n d e n te ); 2) q u e a id e o lo g ia co m o á rea de
acordo em torno da realid ad e ocu p a o terreno do sentido ao ter
horror ao real; e que 3) a religião, consagrada ao gozo do grande
O u tro , in e fá v e l, m ística, c o lo c a -se na in terse cç ão do real e do
im aginário. E ntão, a psicanálise, saber sobre esta estrutura, saber
b o rro m e u , e n c o n tra seu lu g a r em to rn o do o b je to @, fu g id io
inclusive para o saber - objeto do qual não poderia haver ciência -
que se localiza a um tem po nos três registros e m arca a necessária
in com pletude que afeta todas as tentativas de dizer um a verdade
plena, de conseguir esse Saber A bsoluto com o qual sonha o senhor.
Os gozos distintos 109

7. A “cau sação do su jeito ” ou além da angústia

A o e n c e rra r este c a p ítu lo , esc o lh o d a r-lh e um a e stru tu ra


cíclica, franckiana (mús.), e voltar ao com eço, retom ando à célula
originária: “O sujeito é e está cham ado a ser” . Em outras palavras,
o s u je ito n ão c re sc e n o s v a so s, n ão é um p ro d u to n a tu ra l, é
“resposta do real”. Para que exista é necessário que alguém o chame
(no duplo sentido, de call e de nam e [him or her]). Com a invocação
do Outro, o significante entra no real e produz o sujeito com o efeito
de significação, com o resposta. Assim o entendeu Lacan ao longo
de seu ensino.80 A carne se torna corpo e esse corpo é de alguém ,
corpo sexuado, subm etido à Lei, desgozificado, linguageiro.
“N o p rin c íp io e ra o g o z o ” , m as o g o z o não e ra p o rq u e
som ente existe depois de havê-lo perdido. A C oisa é o real, mas
apenas com o m ortificado pela linguagem . Para Freud, no princípio
era o que se chama, equivocadam ente, “Eu-realidade (inicial).81 Mal,
por que a tradução correta de Real-Ich seria E u-real, enquanto “a
re a lid a d e ” seria, conform e os casos e os m om entos da escritura
freudiana, R ealität ou W irklichkeit. N a citação anterior, coloquei
entre parên teses a palavra in icia l, porque ela é um adjetivo que
q u alifica o E u-real (sig n ifican d o que esse eu-real está desde um
prim eiro m om ento) e não tom a parte do substantivo à m edida que
não se o põe a um segundo e suposto “E u -realidade d efin itiv o ” ,
fórm ula que aparece em um a nota com plem entar de Jam es Strachey
na S ta n d a rd E d itio n , e não de F re u d . F reu d ja m a is opôs duas
form as diferentes de “E u-realidade”. E certo que falou dele de duas
m aneiras diferentes em dois m om entos distintos de sua reflexão e
isso é o que deu chance de erro aos co m en taristas. Com efeito,
podem os observar que define pela prim eira vez um Real-Ich em seu
artigo de 1911 sobre os dois princípios do funcionam ento m ental82

80. J. L acan (1956). Le sem inaire. Livre III. Les psychoses. Paris: Seuil, 1976.
p. 210-211 ; Sem inário X , aula de 9 de jan eiro de 1963, L’E tourdit, Ecrits,
p. 459, onde se lê: “E o sujeito que, com o efeito de significação, é resposta
do real” .
81. S. Freud (1915). O bras co m p leta s, v. XIV, p. 130,
82. S. F re u d (1911). F o rm u lac io n es so b re los dos p rin cip io s dei su ced er
psíquico. In: O bras com pletas, v. XII, p. 223-231.
110 G o zo

e n esse te x to o sin ta g m a E u -re a l tem o sen tid o de um eu que


reconhece o princípio de realidade com o guia tutelar. E sse é, por
co n se g u in te , um “e u -r e a lid a d e ”. A p ro p o s ta de 1915S3 é um a
inversão total; não é um acréscim o de outro E u-real “in ic ia l” e
diferente do “definitivo”, o m esmo do artigo de 1911, que teria de
dar lugar, entre o “m om ento inicial” e o “m om ento definitivo”, a um
interm ediário que seria o Lust-Ich, o Eu-prazer. A expressão “Eu-
realidade definitivo” é posterior, não figura no artigo sobre as pulsões
e os destinos pulsionais. A parece um a única vez na obra de Freud,
no artigo de 1925 em torno da denegação*4 e aí está incluída em
um a clara relação de oposição com o “Eu-prazer inicial”.
Para deixar claro e resum ir este ponto, insistirei em que nas
obras de F reu d há três oposiçõ es de dois term os, nunca os três
sucessivam ente relacionados.
a) N o artigo sobre os dois princípios de 1911, trata-se de dois
modos de funcionam ento do eu (Lust-Ich e Real Ich) que estão em
função dos princípios de prazer e de realidade com uma anterioridade
cronológica do prim eiro (acredito que fica m ais claro quando se
traduz Lust com o “gozo” e não com o “prazer”, seguindo a distinção
la c a n ia n a e n tre am bos que d e riv a da e la b o ra ç ã o fre u d ia n a do
d u a lism o p u lsio n a l dos anos 1920; n e ste caso , v a lo riz a m o s a
prim azia do eu do gozo sobre o eu da realidade). N essa prim eira
distinção freudiana há, então, eu-prazer (gozo do ser) e eu-realidade
(“pela ligação com os restos de palavra”);
b) no artig o d ed icad o às p u lsõ es na “M e ta p sic o lo g ia ” , de
1915,1(5 a oposição é a mesma, mas a relação é exatam ente a inversa,
porque o que é originário é o Eu-real e o Eu-prazer se desenvolve
a p a rtir d e le ; o s u je ito n a sc e com o E u -re a l e o E u -p ra z e r e
desenvolve a partir dele; o sujeito nasce com o Eu-real, subm erso no
re al; se c u n d a ria m e n te vai su rg in d o n ele um eu re g u lad o pelo
princípio de prazer e, finalmente,

83. S. F re u d (1915). O bras c o m p leta s, v. XIV, p. 129. O c o m e n tá rio de


Strachey aparece em um a nota de rodapé.
84. S. Freud (1925). O bras com pletas, v. X IX , p. 255-256.
85. S. Freud (1915). O bras com pletas, v. XIV, p. 129.
Os gozos distintos

c) no breve ensaio sobre a negação, de 1924,86 retom a-se a


oposição nos term o s prim eiro s, os de 1911, entre um E u-prazer
originário e um Eu-realidade definitivo. A penas a nota de Strachey
dá b a se p a ra p e n s a r em u m a c o n s id e ra ç ã o fre u d ia n a de três
m om entos d iferen tes. O V ocabulárioS7 de L ap lan ch e e P ontalis
contribui para a confusão, já que, depois de reconhecer que no texto
de 1925 Freud não retom a a expressão de “eu-realidade inicial” que
havia usado em 1915, estabelece que “O ‘eu-realidade definitivo’
corresponderia a um terceiro tem po” (grifos meus).
E sta co n fu são causou estrag o s até no m ais autorizado dos
leitores que F reud pôde im aginar, o p ró p rio L acan, que em seu
sem in ário E n c o re ss re p ro v a F reu d p o r h a v e r se eq u iv o ca d o ao
postular um L ust-lch com o anterior ao R eal-Ich. Lacan salta aqui
em cim a de b), da form ulação de 1915, coincidente em tudo com
sua própria idéia.
Acredito que se deva ater a esse escrito de 1915: no princípio
era o eu-real, um ser aí (d a sein ), posto no desam paro. L ogo será
possível teo rizar sobre o eu -p razer e o eu-realidade, integrado à
realidade, no m undo convencional do sentido, na intersecção do
im aginário e do sim bólico, efeito da ação da m etáfora paterna. O eu
in te g ra d o à r e a lid a d e , o do n a r c is is m o c h a m a d o p o r F re u d
“secundário” não é senão a continuação e um a sim ples modificação
do L u st-lc h , do E u -p razer que aprendeu p ela e x p eriên cia que é
c o n v e n ie n te a c e ita r o e x iste n te ain d a q u e seja d esa g ra d á v el e
contrário ao princípio de prazer. O eu da realidade, o de 1911 que
retorna em 1925 com a ca rg a do adjetivo “d e fin itiv o ” , não está
“além do princípio de prazer” . Seu princípio não é de gozo com o
o do Eu-real do texto de 1915, aquele que odeia o Outro antes que
a realidade lhe im ponha a conveniência de amá-lo. Poder-se-á, deste
modo, conservar as três articulações freudianas, a de 1915 por um
lado, e as de 1911 e 1924, por outro, distinguindo o eu-real do eu
da realidade, ou seja, do fantasm a, pois a realidade ( W irklichkeit)
nada mais é do que um fantasm a que afasta o gozo, que protege dele.

86. S. Freud (1925). La denegación. In: O bras com pletas, v. XIX.


87. J. L aplanche e J.-B. Pontalis. Vocabulaire de la p sychanalyse. Paris: PUF,
1967; verbete M oi-plaisir - M oi-réalité.
88. J. L acan. Le sem inaire. L ivre XX. E ncore, p. 52.
112 G ozo

São m u ita s as o p o rtu n id a d e s em que L acan re c o rre u ao


sintagma “sujeito do gozo”.*9 Considero que se pode falar de “sujeito
do gozo” apenas em relação com o eu-real, anterior ao sim bólico,
mergulhado no mundo do Outro; este é o sujeito subm erso no “gozo
do ser” .
Para Lacan este su jeito do gozo não existe senão com o um
mito necessário, pois “de nenhum a maneira é possível isolá-lo como
sujeito” .90 A idéia de um sujeito do gozo anterior à intervenção do
significante, de um puro real, é correlativa do outro ente m ítico que
Lacan vai resgatar do texto de Freud, o da Coisa. Pois, se o sujeito
su rg e do ch am ad o q u e faz o O u tro , o que há a n tes p a ra que a
in v o c a ç ã o s u b je tiv a n te re s s o e ? Q u a l é e s s e re a l q u e há de
responder? D e um lado, está o desejo invocante, o do O utro. De
outro, está o gozo, o do ser. D e um lado, a palavra apeladora, do
outro, o grito pelado. D a intersecção entre ambos, haverá de surgir
o sujeito do significante, sujeito do desejo. Lacan tem uma escritura
para este sujeito do gozo, ainda quando não o cham asse assim, é S,
esse sem barra que aparece no esquem a L, definido nos E scritos,
com o o sujeito “em sua inefável e estúpida existência” .91
E sse “grito p ela d o ” ressoa no O utro e algo vem d aí com o
resposta. O grito se faz significante do sujeito e m ostra o caminho:
a m á q u in a g o z a n te so m e n te p o d e s o c o rre r suas n e c e ssid a d e s
im plicando-se em outra dim ensão, a linguageira. O gozo leva a ex-
sistir. O p ré -su je ito S do g ozo se c o n fro n ta com um O u tro da
o n ip o tê n c ia , a b so lu to , sem b a rra , q u e se a p re s e n ta e lo g o se
reapresentará como Mãe. Neste esquema, temos a figuração do gozo
prim ário, o da C oisa ou do ser. Podem os representá-lo com o dois
círculos alheios entre si:

89. Por exem plo, em três ocasiões no Sem inário X, A angú stia , au la de 13 de
m arço de 1963, e nos sem inários de 29 de jan e iro e 14 de m aio de 1969.
N a obra escrita em “ Presentación de las m em órias de un n e u ró p ata ”, em
A utres Ecrits, p. 215. D evo a A lfonso H erresa esta valiosa observação.
90. J. L acan (1963). Sem inário X, aula de 13 de m arço.
91. J. Lacan (1955). Écrits, p. 53 e ( 1958), p. 557; E scritos 1, p. 47 e E scritos
2, p. 530-531.
Os gozos distintos 113

O Sujeito mítico e sem barra deve inscrever seu gozo, fazendo-


se ouvir pelo Outro, transform ando-se naquilo que entrega, em seu
grito desesperado, aparecendo no cam po do O utro com o @, como
ob jeto que esc a p a à fun ção de sig n ifican te, com o corpo que se
oferece ao olhar, com o voz soluçante para o ouvido, com o boca que
clam a pelo seio. E aí que encontra que não há tal onipotência do
O utro, que o O utro está igualm ente subm etido à castração, que não
está com pleto, mas que é desejante e que seu desejo aparece para
e le c o m o um e n ig m a sem r e s p o s ta p o s s ív e l. N e ste se g u n d o
m om ento, enco n tram o s o sujeito entrando no cam po do O utro e
fazen d o -se re p re se n ta r aí com o o b jeto que p re e n c h e a falta do
O utro. E o m om ento da alienação ou o m om ento da angústia, da
despossessão total para servir um O utro voraz e insaciável. Neste
ponto, o gozo se torna terrorífico; é o das fantasias fragm entadoras
e sinistras, o da confrontação no lugar do objeto com uma falta que
é preenchida no Outro pela criança que vem satisfazê-la.
E scapando do gozo do ser, cai-se na angústia, adiantam ento e
correlato da alienação. O sujeito aspiraria encontrar-se satisfeito na
satisfação que ofereceria ao Outro. E a posição neurótica infantil de
base que im pulsiona o infans a subm eter-se à dem anda alienante do
O utro, livrando-se assim da carga da vida. M as a alienação consiste
justam ente em que não é isto o que se consegue:

A a li e n a ç ã o te m u m a c a r a p a t e n t e , q u e n ã o é q u e n ó s
s e ja m o s o O u tro , o u q u e o s o u tro s (c o m o se d iz ) n o s a c o lh a m
d e s f ig u r a n d o - n o s o u d e f o rm a n d o - n o s . O p r ó p r io d a a lie n a ç ã o
n ã o é q u e s e ja m o s r e c o l h id o s , r e p r e s e n t a d o s n o o u tr o ; e la se
fu n d a e s s e n c ia lm e n te , p e lo c o n trá rio , n a re c u s a d o O u tro c o m o
v in d o o c u p a r o lu g a r d e s ta in te rro g a ç ã o d o se r... Q u e ir a o C é u ,
114 G ozo

p o is, q u e a a lie n a ç ã o c o n sista em q u e n o s e n c o n tre m o s c ô m o d o s


no lu g a r d o O u tro .92

M as o Céu não o quer assim e por isso deve suar m uito, deve
se esforçar e correr atrás daquilo que poderia reparar a divisão do
sujeito que se p ro d u z com o c o n seq ü ên cia de ser reje ita d o pelo
Outro, pela im posição de uma separação com relação a esse Outro
cuja e ssên cia é a falta. Teve que atrav essar pela an g ú stia e pela
alienação para advir se tornar desejo, aceitar a inevitável castração
e se reconhecer com o sujeito partido pelo significante e, portanto,
sujeito separado do objeto do fantasm a. Separar-se do O utro sem
renunciar a ele, deixando um presente em suas mãos, o objeto @,
tendo salvo a vida à custa de ter perdido a bolsa em resposta à sua
intimação imperiosa: a bolsa ou a vida! Deixou em suas mãos a bolsa,
o gozo, e recuperou um a vida atingida no essencial. Além disso, a
relação com o gozo não se fará d esde S, m as, p assando por @,
desde S. V iver-se-á no fantasm a.
A operação neste ponto pode se representar com os clássicos
círculos eulerianos. O ser do sujeito teve de passar pelas redes do
significante, pelo Outro. A alienação tropeça com o desejo e com a
rejeição do O utro. Esse Outro está barrado por um a falta [S(A)] e
essa falta não é preenchida pelo sujeito que se oferece para isso. A
pergunta por seu desejo, o do O utro, perm anece aberta, é enigm a
e, por sua vez, chave da existência. O sujeito não consegue que seu
s e n tid o se p re e n c h a p le n a m e n te no O u tro e se s e p a ra d e le .
S ubtraindo-se à intim ação que revela a incom pletude do O utro e
traçando o que ao O utro faltaria se ele se negasse a reconhecê-lo
com o Outro; é assim que o sujeito recupera seu ser. A relação entre
o S ujeito e o O utro não pode ser de inclusão, nem tam pouco de
e x c lu sã o co m o o e ra no p o n to de p a rtid a , o dos dois c írc u lo s
isolados. H á um a zona de in tersecção de onde a falta de Um se
sobrepõe à falta de Outro; é a área correspondente ao objeto @ que
deixa a das barras, a de S e a de A:

92. J. L acan (1967). Le sem inaire. Livre XIV. La logique du fa n ta sm e . A ula


de 1 1 de janeiro.
O s gozos distintos

O q u e do e n s in o de L a c a n a c a b a m o s d e (r e -) e la b o ra r ?
R espondam os rapidamente: a relação de oposição e de passagem do
gozo ao desejo. Lacan ocupou-se desta questão entre 1963 e 1964,
em seus se m in á rio s X, A a n g ú stia , e XI, O s qu a tro c o n c e ito s
fundam entais da psicanálise e em seu artigo intitulado “Posição do
inconsciente” .93 Fê-lo de duas m aneiras sucessivas e diferentes que,
com o os círculos eulerianos, parecem obrigar a eleger à custa de
uma perda. A exposição no seminário da angústia, cronologicam ente
a prim eira, condensa-se em torno de um quadro cham ado divisão
subjetiva; nesse quadro a palavra “divisão” alude, sim, à barra do
sujeito, mas em que o essencial está dado pela adoção do m odelo
m a te m á tic o d a d ivisã o : q u a n ta s v ezes S em A ? É o p rim e iro
m om ento, o do gozo. O “quadro” m ostra que o sujeito somente pode
entrar em A para inscrever seu gozo com o @; mas, com o resultado
desta operação, produz-se um quociente que é a barra do Outro (A);
é o segundo m om ento, o da angústia e isto dá lugar a um terceiro
m om ento, o da divisão, @ dividido por S, o sujeito, depois de passar
pela posição de objeto @ para o Outro, produz-se com o um sujeito
barrado ($), sujeito do desejo inconsciente. Entre o Sujeito e o Outro,
“o in co n scien te é o co rte em ato ” .94 R esta assim um resíduo da
operação: S. E hora de inscrever a divisão:

93. J. L acan (1960). É crits, p. 829; E scritos 2, p. 808.


94. Ibidem .
116 G ozo

A S gozo

@ A angústia

S desejo

E ste m odelo aritm ético da d ivisão não satisfez L acan, que


n u n c a d eu as ra z õ e s de seu d e s in te r e s s e p o s te r io r p o r e s ta
fo rm u lação q u e não p asso u p a ra os E sc rito s nem v o lto u a ser
reto m a d a no S e m in á rio . Foi su b s titu íd a no ano se g u in te p ela
referência lógica à disjunção, as duas form as, vel e aut, de nossa
co n ju n ç ã o “o u ” , e p e la re fe rê n c ia to p o ló g ic a fig u ra d a com os
círculos eulerianos. D a “divisão subjetiva”95 passou à “causação do
s u je ito ”96 p elo d u p lo p ro c e sso de in c lu sã o -e x c lu sã o , re u n ião -
intersecção ou alienação-separação. N esse m om ento, in teressa a
L acan a c a u sa , o o b je to @ co m o c a u sa m aterial que o p e ra na
psicanálise a partir da incidência do significante. D aí que proponha
esse neologism o, se não for barbarism o, de “causação”97 do sujeito
quando teria sido m ais côm odo se tivesse p ro p o sto o sin tag m a
“produção do sujeito” .
M as não foi o interesse arqueológico, m as clínico o que me
levou a p assar por este m om ento fugaz do ensino de L acan, no

95. J. L acan (1963). Sem inário X, aula de 13 de março.


96 J. (1960-1964). É crits, p. 841-842 “Postions de l ’in conscient” ; E scritos
2, p. 821.
97. C uriosam ente este neologism o falta no índice 789 néologism es de Jacques
Lctcan, P aris: E P E L , 2002. Q ue sejam , pois, 790. O L ittré re co n h ece
"causativo” , m as não “causação” .
Os gozos distintos

sem inário dedicado à angústia, esse afeto, o único, que não engana
e q u e a p a re c e , c o m o o m o stra o p e s a d e lo , no m o m e n to d a
aproxim ação do gozo. Se o sonho está orientado pelo desejo que
deve realizar e pelo dorm ir que deve proteger mediante uma série de
distrações (por que não traduzir tam bém assim a Entstellung que os
processos prim ários operam ?), a angústia é esse ponto de anulação
subjetiva, de afânise em que o sujeito desaparece na confrontação
com o insondável da falta no O utro, da castração entendida com o
castração do O utro, da M ãe, para nom eá-la,98 “ ... revelando-se a
natureza do falo. O sujeito se divide aqui, diz-nos Freud com relação
à realidade, vendo ao m esm o tem po abrir-se em si o abism o contra
o qual se defenderá com um a fobia, e, por outro lado, recobrindo-
o com essa superfície de onde erigirá o fetiche, ou seja, a existência
do pênis (m aterno) com o m antida, ainda que deslocada” .
O sujeito se desvanece ante o gozo do O utro, esse gozo que
se ap resen ta de várias m aneiras: com as fauces abertas m onstro
v o ra z do p e s a d e lo , as fo rm a s de um d e s tin o d e v a s ta d o r e
inescrutável, com o ruído sinistro de um grito que nos envolve: o
grito da natureza que ressoa em nós com o no quadro de M unch, esse
grito que não é ouvido pelos personagens que dão as costas à boca
que prefere o barulho e seguem seu cam inho, com o sem blante do
gozo que o neurótico, em seu im aginário, atribui à viúva negra e à
m antis religiosa, com esse inefável gozo fem inino que se coloca
“além do falo” e “além do sentido” . Esse inesquecível gozo do Outro
condena a relação sexual a não existir. Assim, vem o-nos lançados a
tratar a relação, sem pre equívoca, entre o gozo e a sexualidde. Será
o tem a do nosso próxim o capítulo.
A angústia tem, portanto, um a função de interm ediação entre
o gozo e o desejo, entre o S e o S, entre o sujeito nonato, abolido
do p rim e iro e o su je ito c in d id o do seg u n d o . U m a p o siç ã o de
p a ssa g e m de g ozo a d e se jo que se d e c la ra c lin ic a m e n te com o
angústia no neurótico e no perverso. Entre a falta da falta, própria
do gozo psicótico (posição superior no quadro da divisão subjetiva)

98. J. L acan (1965). É crits, p. 877; E scritos 2, p. 856.


1 18 G ozo

e a colocação em palavras da falta que define o sujeit< desejante,


m eta final do tratam ento analítico. A angústia não depeide da falta,
pelo c o n trá rio , a a n g ú stia su rg e q u an d o o o b jeto d> d e se jo se
presentifica e contra ela é que o sujeito recorre aos baluaies da fobia
e do fetiche que acabam os de recordar.
Em am bos os casos, na neurose e na perversão, >sujeito se
identifica com o que ele é para o O utro, põe-se com o oljeto pronto
a satisfa z e r sua dem an d a na n eurose ou atua com o iistrum ento
destinado a preservar seu gozo (o do Outro) na perversãi. E os dois
acabariam tropeçando - era a posição de Freud - com ointolerável
da falta que os obriga a retroceder em seu desejo. Lacan ieste ponto
difere do fundador da análise e faz da castração não un fantasm a
temível, com o acontece no neurótico, ou inaceitável, corio se passa
na perversão, não um ponto de parada e rocha viva na qial tropeça
a análise, mas um ponto de partida. Precisam ente porqie o objeto
o é de um a falta “o que se deveria ensinar a dar ao neurcico é essa
coisa que ele não im agina, é nada, justam ente sua angútia” ,99 em
lugar de se oferecer ele m esm o com o objeto, para satisfizer o que
o O utro queira dem andar-lhe, supondo que assim , de bim grado,
poderá se subornar esse Outro.
O sujeito se equivoca ao supor que o que o O utro |uer é sua
castração , que é sua castração (ou dela) o que falta a< O utro, e
desconhece que a castração sim bólica é aquela que lhe fã im posta
ao entrar no universo linguajeiro. Em vez de se estabeleer ante o
Outro com o desejante, dá a si m esm o com o oferecido, figira-se em
se u f a n ta s m a c o m o um p e r v e r s o q u e p o d e rá o f e r e e r su a s
“coisinhas” para que o O utro goze e fique contente e o ane, para
ter um lugar estável nele. Cede seu desejo, protege-se delecomo se
fosse um perigo, especializa-se em assegurar sua “egocidde”, seu
encobrim ento da falta que o habita; é, nem mais nem m enc, um eu
forte, e n c o b rid o r da castração . D esta posição paradigrrática da
n e u ro se é q u e L acan e x tra i seu s a fo rism o s so b re o anor que
m arcam o sem inário da angústia com traços inesquecíveis o am or

99. J. L acan (1962). Sem inário X, aula de 5 de dezem bro.


Os gozos distintos 119

consiste em dar o que não se tem e o am or é o único que pode fazer


com que o gozo condescenda ao desejo .100,101
A p recia-se aqui a posição d iferen te de L acan a respeito de
Freud. O pai não é proibidor nem tem ível, nem rival nem gozante.
É um nom e-do-Pai, puro significante do Falo, que se distancia do
D esejo -d a-M ãe e que m arca com a castração (-cp) os objetos do
desejo que se tornam assim significantes da falta e ficam investidos
de valor fálico. A falta não é tem ível; pelo contrário, a aceitação da
própria im agem com o carente é o que perm ite que o corpo do Outro
se transform e em objeto causa de desejo; é o fator que proíbe e que
m arca com um a culpa que não é psicológica, mas estrutural, o auto-
erotism o; é, por fim , o que canaliza essa “transfusão da libido do
corpo para o objeto”.102
A opção para o sujeito é clara: entre o gozo e o desejo, das
duas uma, ou a angústia pela falta da falta (“não é a nostalgia do que
cham a seio m aterno que engendra a angústia, m as sua im inência,
tudo o que nos anuncia algo que perm ite entrever que se voltará para
ele”) 103 ou o am or que é dar a falta, a castração (o -cp), o único que
poderá perm itir a condescendência de um em relação ao outro. A
experiência da análise dá-se integralmente, por meio da palavra, entre
estas duas passarelas que conduzem do gozo ao desejo: angústia e
amor. A travessando a angústia, além do fantasma, para o amor... com
seu caráter fatal.

100. A expressão “o am or é da r o que não se tem ” é o contrário do que pensam


certos autores, por e xem plo, Jean Allouch; u m a constante no ensino de
Lacan. Isto é lido e m m uitos se m inários (V, VIII, X, XI, XII, XIII, XVII
e XXII). O acréscim o “... a q ue m não o que ira ” aparece apenas um a
vez. No Sem inário X X II (aula de 11 de m arço de 1975), se diz que a
fó rm u la define “o a m o r das mulheres, enquanto um a por u m a elas ex-
siste n” .
101. Cf. a últim a frase deste livro, p. 336.
102. J. L acan (1960). É crits, p. 822; E scritos 2, p. 801.
103. J. L acan (1962). S em inário X, aula de 5 de dezembro.
ni

Gozo e sexualidade

1. O s eq u ív o co s da sexualidade

M u ito s p o n to s de p a r tid a p o s s ív e is c o m p e te m e n tre si,


deixando-m e perplexo no m om ento de com eçar a escrever sobre este
tem a, rico com o é em m al-en ten d id o s. D ev e-se eleger, deve-se
equivocar, deve-se perder.
Poderia com eçar reportando-m e à m itologia ou à cronologia
das elaborações de Freud, ou às m odificações im postas no dito de
Freud pela recuperação de seu dizer no ensino de Lacan ou regressar
a pontos elaborados no capítulo anterior, ou tomar alguma referência
literária, filoso-filosófica ou cinematográfica. Deve-se apostar e tratar
de en tretecer estes com eços possíveis. E scolho assim um a breve
epígrafe de Lacan que nos subm erge em nosso assunto:
Q u e o ato g e n ita l c o m e f e ito te n h a q u e e n c o n t r a r seu l u g a r
n a a r t i c u l a ç ã o i n c o n s c i e n t e d o d e s e j o , e is a í a d e s c o b e r t a d a
an álise...1

que pode se com pletar com esta outra:


S e o r e c o n h e c i m e n t o d a p o s i ç ã o se x u a l d o su je ito n ã o e s t á
lig a d o a o a p a ra to sim b ó lic o , a a n á lise e o f r e u d is m o não têm

1. J. Lacan. E crits. Paris: Seuil, 1966, p. 6 3 3 . E m esp a n h o l: E scritos 2.


M éxico, Siglo XXI, 1984, p, 613.
122 G ozo

se n ã o que d e sa p a re c e r, pois não q u e rem d iz e r a b so lu ta m e n te


nada. O su je ito e n c o n t r a se u lu g a r e m u m a p a r a to s i m b ó li c o pré-
f o r m a d o , q u e i n s t a u r a a lei n a s e x u a l i d a d e . E e s t a lei a p e n a s
p e r m ite ao su je ito re a liz a r s u a se x u a lid a d e no plan o sim b ó lic o . É
isso o q u e q u e r d i z e r o É d i p o , e se a a n á l i s e n ã o s o u b e s s e isso,
não haveria d e sc o b erto a b so lu ta m en te nada.2

Todos podem os constatar que quando, no início do século, ao


abordar este tem a em 1905, Freud devia com eçar dem onstrando
que, c o n tra ria m e n te à o p in iã o p o p u la r e ao sab er da ép o ca, a
sexualidade estava presente muito além do cam po restrito de onde
se centrava, ou seja, no adulto e em torno da cópula e da função de
reprodução; hoje, em um novo século, vem o-nos obrigados a um
m ovim ento inverso, a restringir e questionar a ideologia que vê a
sexualidade e seus sím bolos invadindo todos os lugares. Em nosso
tem po, afirm ar o sentido sexual de um a m anifestação subjetiva é
form ular um a obviedade que não surpreende ninguém (nem pode
interessar). E um efeito paradoxal do sucesso da psicanálise que
marcou a m odernidade com suas teses provocando, assim, um novo
fecham ento do inconsciente. A m ística da repressão foi substituída
por uma nova m ística, da liberação e a atuação dos im pulsos agora,
já que sustenta a m esm a repressão anterior. Pois essa é a utilidade
das duas epígrafes, não se trata da m istificação de um a tendência
natural à satisfação entendida com o “gozo” , mas de dem onstrar os
modos em que “o aparato sim bólico” é o organizador da sexualidade
de hom ens e m u lh eres, de fa la n te s, p ara u sar o term o que não
prejulga. E tam bém esse rico aparato linguajeiro o que pode jogar
para manter a sexualidade sujeita a ideologias reprimidas.
E um a questão talvez mais fácil de entender do que de articular
de m odo com preensível, porque deve sustentar ao m esm o tempo
duas teses aparentem ente contraditórias. O próprio Freud não ficou
alheio à dificuldade que pode ser apreciada no parágrafo final do
p ró lo g o de 1920 ao s se u s “ T rê s e n s a io s s o b re a te o r ia da
sexualidade”,3 no qual sustenta que a m aior fonte de resistências à

2. J. Lacan. Le Sém inaire. L ivre III. L es psychoses. Paris: Seuil, 1981. p. 191.
3. S. F r e u d (1905). O b ra s c o m p le ta s . B u e n o s Aires: Am orrortu, 1978.
v. VII, p. 121.
G ozo e sexualidade 123

psicanálise procede de sua “insistência na importância da vida sexual


para todas as atividades hum anas” (grifos m eus) ao m esm o tempo
em que q u a lific a co m o “d isp aratad a c e n su ra ” o p an sexualism o
atribuído à psicanálise.
C om o que vim os nos dois c a p ítu lo s a n terio re s, podem os
levantar a dificuldade desta afirmação e negação simultâneas. Trata-
se n ã o do p a n s e x u a lis m o d a te o ria , m as do fa lo c e n tris m o
dem onstrado pela clínica psicanalítica e que indicaria que todo o
cam po da linguagem , e portanto da cultura, está m arcado por esta
função da castração, limite do gozo, condição do gozo acessível aos
falantes, navalha que corta e separa os gozos do ser, do significante
e do O utro, assim com o os gozos dos hom ens e das m ulheres. A í
a sexualidade não é a causa nem o princípio explicativo posto em
jo g o p e la a n á lis e , m a s o e fe ito , a c o n s e q ü ê n c ia de um
posicionam ento exigido de todos os usuários da palavra com relação
à castração , re g u lad o ra dos in tercâm b io s, co n d ição do discurso
com o vínculo social. Perm anece a questão de saber se a psicanálise
pode ser o cam inho para pensar e para chegar “além da castração”
em novas e distintas circunstâncias históricas, quando os discursos
tra d ic io n a lis ta s ten h am sid o de fato u ltra p a ssa d o s p o r o u tra s
fo rm açõ es d isc u rsiv a s q u e c o n te sta m as so lu ç õ es u n iv ersais e
estabelecem , de acordo com a letra e o espírito do descobrim ento
freudiano, a consideração individual dos casos.
Em outras palavras, o objeto da psican álise, o objeto que é
causa do desejo e do m ais de gozo, @, é certam ente @ -sexual, mas
nem por isso sua instauração é independente da Lei que tem como
significante o Falo representado pelo nom e-do-Pai. O falocentrismo
histórico e teórico é o fundam ento da ordem patriarcal. N ecessidade
estrutural e universal para as sociedades hum anas, ou racionalização
de uma form a da dominação? Este é o tem a de muitos e apaixonantes
debates contem porâneos que questionam , ao m esm o tem po em que
anim am com seus desafios o discurso do psicanalista.
Pansexualism o da teoria? Certam ente não, mas sim referência
fá lic a já q u e o fa lo é o fu n d a m e n to da o rd e m sim b ó lic a , um
significante, “o significante destinado a designar em seu conjunto os
efeitos de significado, já que o significante os condiciona por sua
124 G o zo

presença de significante”,4 a articulação da conjunção do logos com


o desejo, a razão necessária e suficiente para que o inconsciente seja
estruturado com o um a linguagem . A acusação acerca do presum ido
pansex u alism o da psican álise não deve p ro v o car um excesso na
defesa que leve a desconhecer o papel decisivo desta Bedeutung,
d esta sig n ific a ç ã o ou referên cia co n fo rm e se p refira tra d u zir o
conceito de Frege.
O prim eiro problem a que flagela o pensador, psicanalista ou
não, que se aproxim e da questão da sexualidade é distinguir o que
é da ordem da biologia (do organism o) e o que é da ordem da psi­
canálise (do sujeito), separando, em cada um a delas, o que corres­
ponde às representações ideológicas que invadem o terreno, cam po
privilegiado de todas as distorções, desde o desconhecim ento, a re­
pressão e a hipocrisia até o exibicionism o da presum ida superação
de prejuízos. Ferenczi5 com eçava sua “teoria da genitalidade” afir­
m ando de m odo atrevido: “Foi tarefa dos psicanalistas resgatar os
problem as da sexualidade do gabinete peçonhento da ciência, em
que estiveram enclausurados durante séculos” . N a verdade, pouco
havia encerrado esses séculos, e a obra de Freud, mais do que res­
gatar, cham ou a atenção sobre um a zona de ignorância, destacan­
do c o m o tra ç o e s s e n c ia l de seu tr a b a lh o “ su a d e lib e ra d a
independência com relação à investigação biológica”,6 e se em 1905
insistia no “caráter fundam ental do quim ism o sexual”, em 1920 re­
tirava silenciosam ente o parágrafo que prom ovia essa hipótese na­
turalista.7
E a d istinção entre o biológico e o psican alítico que leva a
pensar a sexualidade por analogia com a pulsão de nutrição, com a
fom e, dentro do m odelo da necessidade e da satisfação que lhe é
essencialm ente inadequado ou, m elhor dito, que serve tão-som ente
para m arcar as diferenças, pois a sexualidade é o que o apetite não
é... a m enos que se sexualize, se hum anize, se dirija ao seio antes

4. J. Lacan (1958). E crits, p. 690; E scritos 2, p. 669-670.


5. S. Ferenczi (1923). Thalassa, una teoria de la genitalidad. Buenos Aires;
Letra Viva, 1983. p. 5.
6. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. VII, p. 121. (“Pró logo ” à edição de
1915 de “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade)
7. Ibidem, p. 197, nota 12.
G ozo e sexualidade 125

ou em lugar do leite. Freud nem sem pre foi claro a esse respeito,
pois sua prim eira teoria das pulsões baseava-se na clássica distinção
das duas g ra n d e s n e c e ssid a d e s: a da c o n se rv a ç ã o , p ró p ria ao
indivíduo, e a da reprodução, própria da espécie, que seria expressa
por meio da pulsão sexual com sua energia específica, a libido. Hoje,
teria menos oportunidades de se confundir, quando a reprodução não
é algo que a espécie necessita, m as que a am eaça (problem a da
su p e rp o p u la ç ã o , d iz e m ) e q u a n d o a fu n ção re p ro d u to ra po d e
cum prir-se in vitro, ou de m uitas outras form as, sem pulsões que
tu rv e m a fin a lid a d e ; h o je, q u a n d o a ssistim o s d ia ria m e n te aos
p ro m isso re s e tem ív eis p ro g re sso s na a p licação da e n g e n h a ria
genética; hoje, quando, por outro lado, se rom peram todos os marcos
q u e p re te n d ia m c o lo c a r a se x u a lid a d e co m o fo n te de p ra z e r e
quando refulge mais do que nunca a questão de sua relação com o
gozo, tanto pelo que lhe abre de cam inho quanto pelo que o torna
tela encobridora e de defesa conform e deixam os estabelecido no
item 6 do capítulo anterior; hoje, quando a p sicanálise recebe as
im p u g n a ç õ e s q u e p ro ced em dos ad e p to s de n o v as vias p a ra a
sexualidade (fem inism o(s) e queer theory) em prim eiro lugar.
Neste ponto cabe denunciar o obscurantism o a que a psicaná­
lise deu esp aço , ap esar de F reu d , c o n tra L acan, no que tange à
confusão entre a “satisfação sexual” , o orgasm o, e a obtenção da
“saúde m ental” , a genitalidade bem -sucedida e a coorte de noções
relacionadas: a felicidade, a m aturidade, a com pletude etc. Por sua
vez, este conjunto de justificações norm atizantes e de ideais refor-
rados tom avam com o modelo a fome saciada, a redução das tensões,
a descarga da excitação e o vazam ento sem inal com o análogo à re­
pleção estom acal. Fazia-se - e em m uitos casos e lugares continua
se fazendo - da cópula, da conjunção sexual (preferivelmente hetero)
um ideal que estaria de acordo com a aspiração unitiva de Eros, o
ca m in h o p ara a felicid ad e quan d o não fazia a rev o lu ção social
(Reich), a possibilidade de cum prir o que seria um sonho universal
de retorno à unidade originária, ao claustro materno. Eis um exem ­
plo ilustre:
C heguei à conclusão de que o ser humano busca
permanentemente, desde seu nascimento, o estabelecimento da
situação intra uterina e que se aferra a este desejo de forma
126 G ozo

mágica e alucinatória (...) o coito permite o retorno real, ainda que


somente parcial, ao útero materno.8
Sucedem -se as form ulações de teorias psicanalíticas centradas
no p a ra d ig m a d o o rg a s m o m a s c u lin o e de “ in v e s tig a ç õ e s ” ,
supostam ente fisiológicas, que buscam e periodicam ente afirm am
que conseguem encontrar um equivalente “objetivo” (e m asculino)
do o rg a sm o p a ra a m u lh er, e ja c u la ç õ e s , c o n tra ç õ e s p é lv ic a s,
paroxism os centelográficos ou revestim entos neuronais.
A difusão de um certo saber psicanalítico elevado à categoria
de evangelho do gozo chega inclusive a modificar a atitude subjetiva
diante da cópula. Assim, Lacan observa em seu sem inário de 27 de
abril de 19669 que, se antigam ente o poeta podia dizer anim al post
coitum triste ao que alguém soube agregar “exceto a m ulher e o
galo”, atualm ente os homens já não se sentem tristes por terem tido
um o rg a sm o c o n fo rm e à re g ra p s ic a n a lític a , ao p a sso que as
m ulheres, que antes estavam contentes porque a tristeza era de seus
partenaires, agora sim estão tristes porque não sabem se gozaram
ou não convenientem ente. Enquanto isso o galo continua cantando...
e as m ulheres despertam dos sonhos da profunda psicologia.
É verdade que há um a relação entre o orgasm o (que pode ser
obtido por m eio da cópula, mas não necessariam ente por meio dela
com o o provam a m asturbação, os sonhos eróticos e as em issões
seminais em situações de angústia) e o gozo. M as essa relação não
é de identidade nem de perfeição nem de recuperação de algum a
m ítica u n id ad e o rig in ária. N ão co n stitu i, em si, um a m eta para
prop o r a ninguém e ainda m enos desd e um a p erspectiva que se
proclam e freudiana.
Proponho ao leitor que faça uma prova, que busque nos índices
analíticos das O bras com p leta s de F reud o artigo “o rg asm o ” . E
provável que se surpreenda ao com provar que os dedos das mãos
sobram para contar as referências, que um a única vez aparece esta
palavra nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” 10 e isso para
dizer que o lactente que m am a com fruição alcança um a reação

8. S. Ferenczi (1923). Thalassa, una teoria de la genitalidad, p. 25.


9. J. Lacan (1966). Sem inário XIII, aula de 27 de abril.
10. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. VII, p. 163.
( iozo e sexualidade 127

m uscular que é “um tipo de orgasm o” . O fundador da psicanálise


jam ais escreveu algo que garantisse a atual m itologia sexológica
sobre a função saudável do orgasmo. Se o leitor revisar essas poucas
referências, a surpresa se confundirá com o riso ao ler que uma delas
relaciona o orgasm o com a raiva das m eninas depois de receber um
enema. No que tange à sua fenomenologia, Freud sempre com parava
o orgasm o com os m odelos pouco recom endáveis do ataque, ora
epilético, ora histérico. N unca falou de “satisfação genital total” , e
se Freud tem algo a dizer a respeito, é algo m uito pessoal: “Eu sei
que o m áxim o de prazer da união sexual não é senão um prazer de
órgão que depende da atividade dos genitais” .11
Não são muitas mais as referências que encontram os quando
buscam os o artigo “satisfação sexual”, mas fica sim claro que para
Freud esta não é idêntica ao orgasm o. Pode inclusive dizer que “o
amor, o am or sexual, nos ofereceu a ex periência m ais intensa de
sensação prazerosa avassaladora, dando-nos assim o arquétipo para
no ssa asp ira ç ã o a e la ” 12 p ara, via de reg ra, d e saco n selh a r esse
cam inho a quem aspire à felicidade, coisa que fizeram “com a maior
veem ência os sábios de todos os tem pos” (ibid., p. 99).
Lacan é, pois, rigorosamente freudiano ao questionar a religião
gossexual de nossos já longos dias de “revolução sexual” com o é
cham ada não sem certa com icidade involuntária. Em sua fórm ula
m ais ex tre m a , pôde ch e g a r a d iz e r q u e 13 “o g rande seg red o da
psicanálise é que não há ato sexual” , explicando-se assim que em
nossa prim eira epígrafe se refira ao “ato genital” que é o que não tem
nenhum a prim azia, mas que deve buscar e encontrar o m odo de se
acom odar no aparato linguageiro “na articulação inconsciente do
desejo” . É ela, justam ente, a que condena o ato a esta insatisfação
essencial que é, desde Freud, consubstanciai à própria pulsão sexual.
R esultando disso que, depois de m uito debater acerca de se havia
ou não ato sexual, Lacan acaba em itindo uma sentença lapidar: sim,
há, mas não há ato sexual que não seja ato fracassado. Isso ocorre
porque não há, entre o hom em e a mulher, relação sexual, proporção

U . S . Freud (1916-1917). O bras com pletas, v. XVI, p. 296.


12. S. Freud (1939). O bras com pletas, v. XXI, p. 82.
13. J. Lacan (1967). Sem inário XIV, aula de 12 de abril.
128 G ozo

sex u al, re a p o rte se x u a l, c o rre s p o n d ê n c ia ou h a rm o n ia que os


predestinem para se conjugar, para se reunir sob o m esm o jugo.
Assim, o ato sexual constitui um mal-entendido com relação ao
g ozo (até c a b e ria a p e rg u n ta : w ho fr a m e d the se x u a l act?). O
orgasmo não é, do gozo, outra coisa senão o ponto final, o momento
da abolição de toda dem anda na qual o desejo não é cum prido nem
satisfeito, m as enganado pelo prêm io do m áxim o prazer, fugaz e
fugidio, d e n u n ciad o p elo s co m en taristas m ais lúcidos de nosso
te m p o q u e fa la m d a “ n o v e la c a n ô n ic a do o r g a s m o ” , 14 um a
n e o m ito lo g ia q u e tem co m o um de seus m a io res e fe ito s o de
pretender assim ilar o gozo fem inino ao modelo m asculino e borrar
as diferenças entre os sexos ao universalizar o gozo peniano como
paradigm a da satisfação sexual que não existe. D esm entido do gozo
feminino com o O utro gozo que é, segundo a tese de nosso capítulo
VI, a essência da perversão: a crença de que não há outro gozo além
do fálico.
O g o zo , com o sab em o s, e stá p ro ib id o - aos dois sexos -
porque todo sujeito é um súdito da Lei, de seu significante, do Falo
obliterador da C oisa e representado pelo nom e-do-Pai que abre o
cam inho para a articulação das dem andas que cernem o indizível e
inalcançável objeto do desejo. E com o sujeito da castração que cada
um entra no ato sexual. O órgão que representa o falo no imaginário,
pênis ou clitóris, está aí com o indicador de uma carência com relação
ao gozo, prometido a um a suposta e impredizível função reprodutora
que é assubjetiva (para a mulher não há representação da fecundação;
dela se poderá saber bastante depois, e do homem nem falem os).
Como seres da linguagem estam os subm etidos à limitação no gozo
sexual, que é o fim da ereção, a detum escência, de um a m aneira
diferente p ara o hom em e p ara a m ulher. N o hom em o orgasm o
re p re se n ta o p o n to de an u lação de to d a dem an da, en q u an to na
m ulher, fre q ü e n te m en te a d em an d a su b siste , não se e sg o ta na
ejaculação do outro, ficando um saldo irresoluto que m otiva seu
encore, seu pedido de algo mais.

14, P. Bruckner e A. Finkielkraut, E l nuevo desorden am oroso. Barcelona:


Anagrama, 1979.
Gozo e sexualidade 129

No p aro x ism o do prazer, d isso lv e-se toda relação com um


ob jeto qualquer. O fu n cio n am en to h o m e o stá tico do org an ism o
representa aí o m ecanism o de detenção do gozo; não se trata da
função de um sujeito, mas de sua dissolução instantânea, de sua
redução ao pedaço de carne flácida que fica com o saldo do ato. O
final da cópula deixa um saldo de castração. É por isso que a cópula
chega a ser o lugar privilegiado da insatisfação dos integrantes do
par. A anulação da ereção é experim entada como um a perda de modo
diferente para o hom em que dela sofre, da da m ulher que deixou
essa função a cargo de seu partenaire. N este sentido a psicanálise
coloca-se contra toda a m ística da sexualidade com o fonte de um
conhecim ento superior, de um a transubstanciação, de um vislum bre
de vidas ultraterrestres. Trata-se, sim, de um desvanecim ento do ser
do sujeito identificado com seu apêndice fálico, de um deixar de
gozar que, por isso, é um a “pequena m orte” .
O saldo do ato sexual é a separação, o desgarram ento, e isto
com relação ao corpo do outro a que se abraçou e que agora escorre,
com relação ao filho que poderia se engendrar, com relação ao órgão
da có p u la que se separa tanto da m ulher quanto do hom em pela
detum escência e com relação à própria satisfação que se revelou em
seu d e sv a n e c im e n to , na se p a ra ç ão do su je ito com relação a si
m esm o. L onge de qualq u er recuperação de unidade não há nem
reencontro do varão com a mãe, nem reencontro da m enina com o
pênis. O gozo se revelou com o utópico, subm etido à castração. E
por isso que Lacan pôde usar os adjetivos m ais grosseiros de seu
vocabulário contra essas concepções (re)unitivas que lhe pareceram
im b e c is e a b je ta s , c h e g a n d o a q u a lific a r de d e lira n te a id éia
(freu d ian a) que assim ila a có p u la à ten d ên cia das células e dos
organism os de se ju n ta r e constituir conjuntos de com plexidade e
organização crescentes.
N o e n ta n to , p o r n ão e x is tir a re la ç ã o se x u a l, p o r que a
conjunção não é senão um a ilusão, é que a sexualidade existe na
realidade. É justam ente um efeito da falha e da falta; a sexualidade
(hum ana, ev identem ente) é “fáltica” , gira em torno desse objeto
terceiro que escapa no encontro sexual, em torno do mais de gozo.
Em torno do objeto que se constitui com o perdido, por exem plo,
quando Freud im agina seu filho, aquele que ele criou com o objeto
130 G ozo

teórico, dizendo: “Pena que não possa beijar a mim m esm o”, corte
com relação a si mesm o que “o levará mais tarde a buscar em outra
pessoa a parte correspondente” .15
A divisão primordial, aquela que põe em marcha a sexualidade
em seu sentido psicanalítico, é a divisão do sujeito com relação ao
gozo induzida pela castração e é esta que conduz ao desprendimento
do objeto @, suplência do gozo que falta. O objeto faz-se exótico
à medida que vem em lugar da parte laltante ao sujeito na imagem
d e s e ja d a .16 É p re c isa m e n te p o r ser sep aráv el que “o falo está
predestinado a dar corpo ao gozo na dialética do desejo” (ibid.) e por
aí é que se produz a transfusão da libido do corpo para o objeto, para
essa “p arte c o rre sp o n d e n te ” (no corp o do o utro) da qual Freud
falava.
O rebaixam ento da sublime dignidade que o misticismo (antigo
e oriental ou m oderno e ocidental) atribui ao ato sexual não conduz
a psicanálise pelo caminho regressivo da preconização de um retomo
ao auto-erotism o e a um gozo idiota, sem pre ao alcance da m ão,
nem , p o r o utro lado, ao que seria o inverso e a recíp ro ca d esta
regressão, a exaltação de valores ascéticos e de renúncia ao gozo do
corpo em função de estar esse gozo lim itado pelo prazer.
A psicanálise está em outro lugar. Não é uma técnica do corpo
com o tolam ente objetava H eidegger a Lacan (conform e o relato de
Lacan, e segundo se depreende de um a entrevista feita ao filósofo
na qual afirm a que as conseqüências filosóficas da psicanálise são
in su ste n tá v e is p o rq u e b io lo g iz a m a e ssê n c ia do hom em ) nem
tam pouco é um a ideologia espiritualizante que exalte a sublim ação.
N este sentido a psicanálise é um a ética que se m anifesta em um a
técnica linguageira centrada em torno desta articulação do desejo
inconsciente que define os m odos com o cada um se acerca ou se
d ista n c ia do ato g en ital, afirm an d o cad a um sua d iferen ç a, sua
peculiaridade, rebento do desejo, em sua aproxim ação ao gozo.
Isto, sem que se deixe de co m provar aqui e ali na clínica o
efeito da culpa que é inerente às práticas masturbatórias. A culpa não
depende de sanções ou códigos exteriores nem tampouco da ridícula

15. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. VII, p. 165.


16. J. Lacan (1960). É crits, p. 822; E scritos 2, p. 802.
( io/.o e sexualidade 131

aineaça de que, “se você se tocar, eu o corto ” , m as da resignação


do órgão ao cum prim ento de sua função de intercâm bio, passando
pela subjetivação da falta que é o que concede ao gozo seu valor.
Valor de gozo que corresponde ao órgão e que se desvaloriza como
significação para um sujeito com o disponibilidade perm anente de
uma satisfação que não deixa marcas, que tira a pulsão de sua função
m em orável e h isto rizad o ra ligada ao nom e pró p rio e ao registro
simbólico. É ainda pertinente - talvez mais que nunca - a já clássica
c rític a de M a r c u s e 17 à “ d e s u b lim a ç ã o r e p r e s s iv a ” o fe re c id a
generosam ente aos consum idores do sexo real e virtual.
A fa lta , o q u e F re u d e n sin o u a c h a m a r “ c a s tra ç ã o ” , é o
fundam ento da ordem sexual. É um a falta na im agem , ou melhor,
e com o o evidencia o mito de Narciso, o fato de que o sujeito está
separado de sua im agem e que, entre ele e ele m esm o, opera um a
proibição. N arciso viverá feliz se, e som ente se, não se encontrar
consigo m esm o. A superfície do espelho indica a presença desse
Outro infranqueável que o separa de si m esmo: é um dos sentidos
im plícitos na barra do S, S, que é em Lacan o m atem a do sujeito.
O traço vertical é feito de um cristal apagado que introduz a falta e
m arca a ausência de relação entre alguém e si m esm o percebido
com o outro. A quele que aparece no reflexo especular é um objeto
proibido, aquele que se é no olhar do O utro, aquele que recebe um
nom e “p ró p rio ” que é o sig n ific a n te cu jo sig n ificad o é o gozo
perdido. E o primeiro m andam ento a que se subm ete o falante: “Não
go zarás de ti m esm o, te d eves. A p en alid ad e é d ura e se cham a
psicose.
Trata-se - repetim os - desta função da castração simbólica que
faz passar do gozo ao desejo e abre a possibilidade de outro gozo
cunhado pela Lei do desejo, um gozo além da falta em ser. D eve­
se adm itir a falta, o que não se tem, para poder dar isso que não se
tem no amor, aí onde o gozo se valoriza, chegando a ser um valor
que se transfere ao corpo do partenaire.
D escartada a m iragem do gozo total que realizaria a pessoa no
encontro com outro corpo e aceito que o orgasm o “não é senão um

17. H. Marcuse. E ros v c iv iliza c ió n . México: Joaquín Mortiz, 1965. p, 20 5­


228.
132 G o zo

prazer de órgão que depende dos genitais” 114 ou um desvio desses


lábios q u e não p o d em se b e ija r a si m esm o s, “um a co n ce ssã o
m asturbatória”, 19 com o disse um a vez Lacan, falando da cópula para
d is tin g u i- la d as n o ç õ e s e s p ú ria s do “ b a n h o o c e â n ic o ” ou da
reconquista do narcisism o prim ário, e d escartada tam bém a vã e
consoladora idéia de que no encontro sexual algo do Outro passaria
ao Um, abre-se então, e som ente então, a questão da natureza dos
gozos do U m e do O utro e a questão da relação entre am bos os
gozos.

2. O gozo do ser, o gozo fálico e o gozo do O utro

N o item 6 do c a p ítu lo an terio r, h av ia afirm ad o , seg uindo


Lacan, o gozo do Outro na interseção do im aginário e do real sem
m ediação sim bólica (p. 99). E preferível que o relem bre: “O gozo
do ser (...) é inefável, está fora do sim bólico, em um a atribuição
im aginária que fazemos inventando-o com o se fosse gozo do Outro,
de um O utro devastador que, pela falta de inscrição do nome-do-Pai
( f o r c lu s ã o ) , r e a p a re c e no r e a l” . E, d o is p a rá g ra fo s a b a ix o ,
reproduzia o esquem a do nó borrom eu de “A terceira” , no qual se
pode “ver o espaço” do que ali se cham a gozo do Outro (Jouissance
el l ’Autre). M as o que talvez escape ao olho do cúm plice que é meu
leitor é que a este gozo que Lacan cham a gozo do Outro, eu o estava
designando com outra expressão, usada tam bém algumas vezes por
Lacan, com o se fosse um sinônim o, de gozo do ser. (Em francês
um único fonem a distingue as expressões jo u issa n c e de l ’être e
jouissance de l ’Autre.) N a frase que reproduzo, deslizava a idéia de
que é um gozo do ser ao qual atribuím os (sem que necessariam ente
o s e ja ) a c o n d iç ã o de se r g o z o do O u tro . E sse g o z o do ser,
sem elhante a um impensável gozo da árvore ou da ostra (jouissance
de l ’huître), o ligávam os no item 4 (p. 77) com a C oisa. N esse
m om ento dizíam os que a palavra era a navalha que o separava de

18. S. Freud (1916-1917). O bras com pletas, v. XVI, p. 296.


19. J. Lacan (1967). Sem inário X IV, aula de 24 de maio.
( io/.o e sexualidade 133

uma classe diferente do gozo filtrado pela castração, aquele que tinha
o Falo com o fundam ento significante e que era gozo fá lic o (J. <j>).
Finalmente, e para com pletar um trio de autocitações, acrescentemos
que no item 5 (p. 85) havia assum ido o risco de me distanciar do
explícito do ensino de Lacan para explicar a exigência clínica de
distinguir e até de opor o gozo do ser e o gozo do O utro entendido,
vamos descobrindo as cartas, com o gozo do Outro sexo. D o Outro
sexo, do sexo que é Outro com relação ao Falo, ou seja, do feminino.
Em L ’étourdit, se lê: “C ham am os heterossexual, por definição, a
quem am a as m ulheres, qualquer que seja seu sexo”.20
M inha pretensão, já adiantada, é a de explicar a diferença entre
os gozos por meio da topologia da banda de M oebius. Prom essa ou
ameaça, chegou o m om ento de cum pri-la, mas não sem antes passar
pela im prescindível e extensa volta que passa pelo que ensina sobre
o tem a a experiência clínica da psicanálise e de seu funcionam ento.
A grande volta abarcará o item 2 deste capítulo, no qual se insiste
na distinção dos três gozos, e o item 3, no qual se m ostrará a lista
causal da castração. O desfecho topológico - não se assuste - fica
para o item 4.
N a tese, colocada desde então, o que procuro dem onstrar é
que o gozo fálico, gozo ligado à palavra, efeito da castração que
e s p e ra e se c o n so m e em q u a lq u e r fa la n te , g o zo lin g u a g e iro ,
sem iótico, fora do corpo, é a tesoura que separa e opõe dois gozos
corporais distintos, deixados fora da linguagem , que eram , de um
lado, o gozo do se r, gozo perdido pela castração, m ítico e ligado à
Coisa, anterior à significação fálica, apreciável em certas form as da
psicose e, de outro, o gozo do O utro, tam bém corporal, que não foi
p e rd id o p e la c a stra ç ã o , m as que e m e rg ia além dela, e fe ito da
passagem pela linguagem, mas fora dela, inefável e inexplicável, que
é o gozo fem inino.
Im põe-se talvez criticar - outra vez! - o m odelo naturalista,
francam ente insuficiente, dos ciclos de necessidade-satisfação, da
fom e e da saciedade, que pareceria (sem que assim fosse) enco n ­
trar um a analogia na atividade sexual do m acho, mas que resulta,

20. J. L acan ( 1973). A u tres écrits. Paris: Seuil, 2001. p. 467.


134 G o zo

sob todos os aspectos, inadequado para explicar a experiência das


fêmeas desta espécie presa pela linguagem que constituím os entre
uns e outras. Freud partiu da extrapolação desse modelo insuficiente.
E necessário extraviar-se em relação à sexualidade, caso se parta
desse ponto, da tentativa de com preender a sexualidade hum ana so­
bre a base de seus pretensos fundam entos biológicos ou de conduta,
e não da subordinação do funcionam ento genital à Lei, ao com ple­
xo de castração e ao corte que ele instaura entre gozo e desejo.
O m odelo da fome, do instinto, serve justam ente para obturar
as resp o stas com sua p reten sa facilid ad e. O trabalho teórico da
p sican álise, desde sua fu ndação até nossos dias, foi o de tom ar
d is tâ n c ia com re la ç ã o às suas c o m o d id a d e s. U m a vez que se
evidenciou a separação entre a sexualidade e a função reprodutora
e, mais adiante, que a sexualidade não podia ser entendida segundo
a racionalidade biológica do princípio de prazer, mas a partir do gozo
implicado em seu exercício, surgiu o problem a de definir esse gozo
em term os do m asculino e do fem inino e em term os daquilo que do
gozo do outro (aqui com m inúscula) é subjetivável por “cada um ”
no (des)encontro sexual. Problem a, pois, da heterogeneidade dos
g o z o s e da d ific u ld a d e re c o n h e c id a já p o r F reu d p a ra d e fin ir
psicanaliticam ente a diferença entre o m asculino e o fem inino, e
resolvido por ele de um m odo para ele m esm o insatisfatório com o
um a o p o sição entre atividade e p assiv id ad e no m arco pulsional,
depois de afirm ar o caráter m asculino de toda libido. Tese que não
deixa de ser questionável e irritante.
P roblem a insolúvel para o saber quando se confronta com o
gozo que, por essência, é irredutível à palavra e se confunde com
todo o a c o n te c e r do co rp o do qual n ad a se p ode dizer. O que
podem os saber sobre o gozo, não o nosso, mas o do Outro, em cuja
pele não podem os nos meter? Problem a que angustia a hum anidade
desde sua aurora com a divisão entre o gozo do suor do trabalho para
Adão e o da dor obstétrica para Eva, ambos os gozos que são efeito
da Lei depois da expulsão sem remédio do gozo paradisíaco anterior.
N o m ito de T irésias, o vidente, a q u estão dos gozos e sua
diferença é m ais clara. T irésias, peram bulando pelo m onte, viu a
cópula de duas serpentes e, conform e duas versões, ou as separou
ou matou a fêm ea. A conseqüência foi que - com o castigo? - ficou
( io/.o e sexualidade 135

iransform ado em m ulher durante sete anos, ao fim dos quais voltou
a rep etir sua ação d e sa g re g a n te em o u tro p ar vip erin o e assim
recu p ero u seu sex o p rim itiv o . T em p o s d e p o is, Jú p ite r e H era
d isc u tia m so b re o g o z o do h o m em e d a m u lh e r n a c ó p u la e
decidiram que a m elhor m aneira de dirim ir a questão era perguntar
ao único que havia tido as duas identidades. C onvocado, Tirésias
respondeu, sem vacilar, que caso se dividisse o deleite sexual em dez
partes, nove corresp o n d eriam à m ulher e um a ao hom em . H era,
assim o dizem , vendo traído o segredo de seu sexo, e acreditando
que era m elhor que não se soubesse, o castigou com a cegueira;
Júpiter, não podendo absolvê-lo da sanção im posta por sua cônjuge,
com pensou-o com os dotes de vidente. E é assim, cego-vidente, que
ele é visto intervir no dram a do Édipo. E stá claro que Tirésias só se
tornou sábio depois de sofrer a sanção e de receber o prêm io. Se
houvesse se tornado antes, quando o cham aram para se declarar,
teria sabido - na posição do psicanalista - que não devia contestar,
sendo preferível devolver a pergunta e, se chegava a contestar, que
nada era m ais tolo do que argum entar um a diferença quantitativa,
com o se a substância de que são feitos os gozos do hom em e da
m ulher fosse a m esm a e o assunto pudesse ser resolvido por meio
de algum tipo de proporção. Foi a prim eira vítim a dos horrores da
quantificação em m atéria de subjetividade.
O q u e d is c u tia m o s re is do O lim p o g ira v a em to rn o do
impensável e do irrepresentável do gozo do O utro. Sem elhante é a
questão do gozo que cada um dos participantes perde por não ser
esse Outro. O gozo, de um ou outro sexo, funciona a fundo perdido.
Fica im possível, por m ais forte que seja o abraço, apoderar-se do
gozo do outro tanto no sentido subjetivo (não posso viver no corpo
do outro, sentir o que ele sente) quanto no objetivo (somente há gozo
no co rp o de um e isso de m odo sem p re p arcial, com o gozo de
órgão, O rganlust).
D e m o d o q u e o g o z o se p ro d u z no e n c o n tro das z o n as
eró g e n a s e e sc a p a dos dois do casal em v irtu d e de sua pró p ria
divisão. E ste gozo do O utro p erten ce c ertam en te ao registro do
f a n ta s m a , m as n em p o r iss o d e ix a d e te r e f e ito s re a is na
subjetividade. D e mil m aneiras, e de modo privilegiado nos sonhos
e nos sintom as, a clínica psicanalítica m ostra os efeitos, às vezes
136 G o zo

inibidores e angustiantes, às vezes estimulantes, sempre enigm áticos


e m o b iliz a d o r e s , do s a b e r do in c o n s c ie n te , re s u lta d o d e s ta
im possibilidade de se apropriar do gozo alheio. G ozar do corpo do
outro (hetero ou hom o) sexuado. Isso é possível? Poderá um dos
p a r tic ip a n te s na c ó p u la s a b e r o q u e o c o rre no o u tr o ? S ão
c o m p a tív e is ou c o m p a rá v e is a m b o s o s g o z o s ? S ão g o z o s
c o n v e r g e n te s q u e se a s s e g u ra m re c ip r o c a m e n te ? L a c a n o
questionava, precisam ente, com o tem os adiantado pela função da
castração. Por isso pôde dizer:
O sujeito conclui que n ão tem o ó rg ã o que c h am are i - j á
q u e t e n h o q u e e s c o l h e r u m a p a la v r a - o g o z o ú n ic o , u n i f ic a n t e ;
a q u e l e q u e fa ria u m g o z o s i n g u l a r n a c o n j u n ç ã o d o s s u j e it o s de
s e x o o p o s t o [p o is] n ã o h á r e a l i z a ç ã o s u b j e ti v a d o s u j e i t o c o m o
e l e m e n t o , c o m o p a r te n a ir e s e x u a d o n i s s o q u e e le - e l a i m a g i n a m
d o a to s e x u a l . 21

Em p sic a n á lise não há nada p a re c id o com yin g e ya n g , o


sim pático par de peixinhos que juntos enchem um círculo.
N o p rim eiro cap ítu lo , su stentei que o gozo é tam bém um a
função incluída na dialética, mas que não se tratava de um acordo
das subjetividades, mas de uma rivalidade dos gozos na qual sempre
está em jo g o o gozo perdido, a incom ensurabilidade entre o gozo de
um e de outro, a falta de um a ju sta m edida para avaliar o que é o
bem (ou o m al) de c a d a um . A d is p u ta de H era e J ú p ite r é a
form ulação m ítica desta ancestral discórdia entre os sexos na qual
nenhum T irésias pode arbitrar, m uito m enos se irá quantificar um
rapport sexual que - é sabido - não existe.
E aqui que tradicionalm ente funcionou o paradigm a do gozo
peniano com sua clara localização no tempo do orgasmo e no espaço
da ereção-detum escência que dá ao varão o tão duvidoso quanto
vibrante privilégio de um saber certeiro sobre a satisfação genital.
M as, é bom lem brar, esse desvanecim ento instantâneo do ser do
sujeito no orgasm o é correlativo da perda do gozo que escapa de
m odo irrecuperável com o sêmen. É um curto-circuito; os fuzíveis
saltam, a luz se apaga. Na obscuridade subseqüente, surge a tentativa
de localizá-lo, de apreendê-lo e assegurá-lo. O saber certeiro é agora

21. J. L acan ( 1968). Sem inário X VI, aula de 1 7 d e janeiro.


( iozo e sexualidade 137

o da inelutável perda com um saldo de descontentam ento em relação


às possibilidades do gozo peniano (fálico, já que o pênis representa
o significante fálico no im aginário pelo real de sua detum escência)
para assegurar a satisfação subjetiva.
L ocalizá-lo, onde? N a geografia com o um gozo exótico que
brota nos tristes trópicos; na etnologia com o patrim ônio de alguma
raça ou trib o fa b u lo sa ; na h istó ria com o c o n q u ista de alg u m a
civilização de sábios que já se extinguiu; na religião como êxtase dos
benditos incapazes de transm itir o que sentiram; na mitologia da qual
é c o lo fã o e p a ra d ig m a a c o n stru ç ã o fre u d ia n a do pai g o zad o r
primitivo; na anatomia quando se esquadrinha nas neurofibras ou nos
p a tte r n s de d e sc a rg a ; n a p o lític a e no d ire ito q u e p re te n d e m
adm inistrar, canalizar e d istrib u ir um a sexualidade “legítim a” ou
contestatória; na quím ica que prom ete inventar paraísos artificiais
e vende substâncias que privilegiam o gozo sexual; na cibernética
que perm itiria abolir a m aldição bíblica do trabalho, encarregando
disso os gólens que não pretendem gozar, deixando assim o gozo em
m ão s de se u s in v e n to r e s , sem re c la m a ç õ e s nem in v e ja s ; na
p sic a n á lise , en fim , que o ta c h a de in alcan çáv el em F reu d pelo
tropeço com a rocha viva da castração e que habilita outras buscas
que confinam com o delírio com o nos casos de Ferenczi e de Reich
até encontrar a articulação lógica e topológica de Lacan. Na terra que
ele lavrou se planta a sem ente deste discurso.
Localizá-lo, onde? Se o pênis é o órgão que não pode sustentar
su a e re ç ã o (e a e re ç ã o é ju s ta m e n te o g o zo do ó rg ã o q u e se
desvanece com o orgasm o), e se a m ulher dá m ostras de outro gozo
que é, em parte, hom ólogo ao do macho, localizado primordialmente
no clitóris, m as que não se reduz a ser apenas este gozo que pode
in clu siv e faltar nela; se a m u lh er pode ex p erim en tar gozos que
e sc a p a m a e s s a e ta m b é m a q u a lq u e r lo c a liz a ç ã o , a b re -se a
possibilidade de que o gozo que falta ao Falo seja o gozo dela como
O utro do Um , com o O utro desse significante fálico que unifica o
sujeito e que o representa ante o conjunto dos significantes. Assim
aparece a questão do gozo do O utro entendido com o o O utro sexo,
esse eteroz (hetero -) rad ical com relação ao Falo ao adm iti-lo e
reconhecê-lo. m as ao m esm o tem po ao não se esgotar em si e no
universo de significações que ele impõe.
138 G ozo

P o r isso o gozo fem inino aparece com o gozo do O utro e a


intenção de governá-lo no cam po do saber deu lugar às respostas
que a cab am o s de d e sc re v e r e a m u itas o u tras. P ois, se o gozo
escapa ao saber (historicam ente sem pre ligado ao poder), o saber
se em penha em pegá-lo justam ente aí onde suas precisões sem pre
lhe fogem, nas mulheres, no dark continent de que falava esse Freud
que, ao final de sua vida, chegou à conclusão de que nunca pôde
resp o n d er a p erg u n ta sobre o que q u e r um a m ulher e, portanto,
sobre o que é um a mulher. Lacan acrescentava que a psicanálise, o
m odo m ais radical de interrogar o falante sobre sua experiência,
quando aplicada às m ulheres e quando as próprias m ulheres com o
p ra tic a n te s d e ssa p sic a n á lise , q u e stio n a v a m a si m esm as, não
c o n s e g u ir a m ta m p o u c o a lte r a r n a d a d ig n o de d e s ta c a r d a
perplexidade reinante a respeito do gozo fem inino. Ao enigm a, que
parece intem poral, m uitos Édipos arriscaram infinitas respostas e
provocaram a ruína de m uitas esfinges. Poderíam os qualificar tais
respostas ora de neuróticas ora de psicóticas, mas com o propostas
que tentam ligar o gozo com o saber, dizia Lacan, “abrem a porta
a todos os atos perversos” .22 Com o já adiantei ao tratar o tem a do
gozo nas perversões, poderei falar mais sobre essa relação entre o
saber im possível sobre o gozo fem inino e a tentativa perversa de
d om in ar o que escap a ao saber, d esm en tin d o -o ( V erleugnung) e
reduzindo o gozo das mulheres unicam ente ao gozo fálico, algo que
equivale a considerar as m ulheres com o hom ens incompletos.
A d e n tra r na q u e stã o do g o z o fe m in in o e x ig e u m a n o v a
passagem pelo tem a da castração. Vejamos.
N em as m u lh eres nem os h o m en s n ascem com o tais, m as
c h eg am a sê -lo s a p a rtir de um a c o n te c im e n to in icial que é a
atrib u ição do sexo a um pedaço de carn e to talm ente carente de
representações. O O utro profere no m om ento do nascim ento uma
palavra, “hom em ” ou “m ulher” que fará as vezes de destino além da
a n a to m ia , se fo r o c a so . O c o rte , o c o r te da c a s tr a ç ã o , é
ad m in istra d o p e la p alav ra que se c c io n a - sex io n a - os co rp o s
arrem essando-os à vida em uma das duas pátrias irreconciliáveis e

22. J. L acan (1967). Sem inário XIV, aula 7 de junho.


( iozo e sexualidade 139

não com plem entares da espécie. É o real que m itifica o andrógino


platônico ou a extração da costela (da cauda, segundo certos mitos
hebraicos, esse idiom a do qual o som tsela tem tanto o sentido de
“costela” quanto o de “infortúnio, tropeço”),23 costela ou cauda desse
andrógino que era Adão antes da divina cirurgia.
O que faz o corte (linguageiro) da designação do sexo é marcar
a alteridade de cada um dos falantes. E por isso que a palavra é,
cm e s sê n c ia , c a s tra ç ã o , se p a ra ç ã o e, em u m a p a la v ra que em
espanhol causa um equívoco m aravilhoso, a b la ção*. A sexualidade
é estabelecida poi um discurso e os órgãos da anatom ia deverão (ou
não) c o n fo rm a r-se com ele. D esd e o d isc u rs o , p elo d isc u rso ,
d ete rm in a -se o v alo r do ó rg ão que “ fa z ” com sua p rese n ça ou
ausência a diferença que a sim boliza no O utro da linguagem. E esta
diferença, com o no-la ensina Freud e é confirm ada incessantem ente
pela clínica psicanalítica, não é importante em si, por algo que tenha
a ver com inervações, com o m aior tam anho do pênis com relação
ao clitóris, com as sensações precoces que possam existir ou faltar
de um a estesia vaginal qualquer ou com determ inações culturais de
p rim azia fálica, mas pela d escoberta inevitável c m ais ou m enos
tardia de que a castração existe e opera na mãe, esse Outro primordial
que tem que deixar de ser fálico tanto para o m enino quanto para a
m enina e que determ ina, secundariam ente, a possibilidade de uma
identificação norm ativa para o m enino com seu pai que o tem (o
órgão) e, do lado fem inino, um a dem anda dirigida a quem o tem
para que lho dê, deslocando o O utro da dem anda de amor da m ãe
para o pai e instalando a equivalência sim bólica entre falo e criança
(das Kleine).
É pela falta que o sujeito, hom em ou mulher, se vê forçado a
renunciar ao auto-erotism o e a m arcar o gozo m asturbatório com
um a cu lp a que não depende dos códigos cu lturais. E ssa cu lp a é
in eren te à p reten são de d esm en tir a c a stra ç ão , de op erar com o
subterfúgio, um atalho de auto-suficiência interposto no cam inho do

23. R. G raves e R. Patai. H ebrew M yths. N ew York: Greenw ic h House, 1983.


p. 69.
* E m espanhol, há homofonia entre ablação (a bla cio n ) e falação (hablación).
(N. d a T . )
140 G ozo

gozo. A diferença sexual im plica a castração para am bos os sexos.


(Q uase) ninguém tem os dois. O gozo não poderia m aterializar-se
em um só, sobre o p ró p rio corpo; im pele a filtrar as aspirações
desse corpo fazendo-as passar pelo campo do Outro, do Outro sexo,
e constituindo o Falo com o o significante da falta, daquilo que se
busca fora porque não está em seu lugar na im agem de si. É assim
que o falo se constitui em terceiro no jogo entre o homem e a mulher,
bu scad o no O u tro e co n d e n a d o a faltar. O d e se n c o n tro é fatal,
estrutural, alheio aos (bons) desejos delas e deles. O ausente é o
causador do desejo que é o desejo do Outro.
Os am antes, no ato sexual, abraçam e rodeiam essa falta que
está em seu cen tro , in te rio r ex clu íd o de cad a um e d esejad o no
O utro. Freud se eq u iv o cav a a este respeito quando escrevia: “ A
pulsão sexual põe-se agora [com a puberdade] a serviço da função
de reprodução; torna-se, por assim dizer, altruísta”.24 A introdução
posterior do narcisism o chegaria para corrigir essa idéia que poderia
fundam entar os fantasm as da dadivosidade e dos dons recíprocos
na obediência a fins superiores que seriam os da espécie.
E no ato sexual (que não existe senão fracassado) que se joga
e s ta r e la ç ã o do h o m e m e d a m u lh e r c o m o g o z o , p o is a
representação do falo recai sobre o Outro do abraço, esse Outro que
e s c o rre g a na s e p a ra ç ã o p o s te rio r, fic a n d o o ó rg ã o , ó rg ã o da
conjunção, reduzido a algo desfeito, perdido para a mulher, relratário
ao gozo para o hom em , separado de ambos.
O O utro é o falo - assim , com m inúscula - no que tange ao
valor de gozo que o sujeito não pode satisfazer em si (-cp). Por isso
é que o O utro é m ensageiro da castração do Um (“Ao verm e verás
que algo falta em você”). Precisam ente por não contar com o falo
entra-se no ato sexual e se com preende assim o adágio lacaniano de
que o am or consiste em dar o que não se tem , em dar ao O utro a
c a s tr a ç ã o . D a í p ro v ê m as d u a s p r o p o s iç õ e s , a p a re n te m e n te
contraditórias, assentadas por Lacan em seu seminário de 31 de maio
de 1967:25 a) que não existe o ato sexu a l com o possibilidade de
in te g ra ç ã o , re s titu iç ã o ou re sg a te do p e rd id o na “ se x ã o ” , que

24. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. VII, p. 189.


25. J. Lacan (1967). Sem inário XIV, aula de 31 de maio.
Gozo e sexualidade 141

constitui o hom em e a m ulher com o castrados, e b) não há senão


o ato sexual para m otivar essa articulação pela qual o sujeito busca
no corpo do O utro o gozo faltante, a resposta à sua insatisfação.
Quem participa no ato sexual, seja qual for o seu sexo e o de seu
partenaire, o faz desde um a posição subjetiva e de enunciação: é
uma declaração de sexo. Certam ente, inconsciente.
N ão há com plem entaridade dos sexos, mas é sim verdade a
necessidade que sejam dois para que cada um se defina por não ser
o O utro em um sistem a de o p o sição sig n ifican te. A diferen ça é
irredutível. O que entre am bos delineiam é o que lhes falta, o falo
como terceiro interessado na relação e cuja representação recai sobre
um órgão marcado pelo complexo de castração, um órgão cujo único
p ap el é o de in tro d u ç ã o ao s in te rc â m b io s , c h e g a n d o a se r o
verdadeiro p a rten a ire do ato sexual, esse ato que se v erifica na
interseção de duas faltas e no fato de que cada um dos participantes
é -<p para o O utro.
Não se creia, no entanto, em algum tipo de simetria. É verdade
que não é possív el d efin ir um estatu to p sican alítico dos term os
“m asculino” e “fem inino”, mas as condições da castração de cada
um diferem no sentido de que para a cópula - se quiser participar
dela - do lado do homem, é necessária a ereção do m em bro viril e,
do lado da mulher, é necessária... a ereção do m em bro viril. Do lado
do hom em é requisito o desejo, do lado da m ulher o consentim ento.
A p ossibilidade da violação, em princípio apenas ao personagem
“falóforo” , é a im posição desse consentim ento.
Na assim etria do lugar dos desejos respectivos é que devem os
buscar a causa de que, para Freud, a única tradução relativam ente
aceitável para os term os m asculino e fem inino no inconsciente seja
o da atividade c passividade; com certeza isto não tem relação algu­
ma com a penetração do esperm atozóide no óvulo, uma “interpre­
tação” que não pode senão levar ao riso. O homem se dirige à mulher,
em relação ao ato sexual, colocando seu desejo com o dem anda de
satisfação, fazendo dela um objeto em seu fantasm a, concedendo-
lhe o valor fálico, objeto para seu gozo eventual. Com o disse Lacan:

... não se é o q u e se t e m e é p o r q u e o h o m e m te m o ó r g ã o fálico


q u e ele n ã o o é; isso i m p l i c a q u e d o o u tr o lado se ja -s e o q u e não
142 G ozo

se te m , o u seja, q u e é j u s t a m e n t e p o r n ã o ter o falo q u e a m u lh e r


p o d e a s s u m i r seu v a lo r .26

E la, p o r su a vez, não o te n d o , tem de sê-lo , e n c a rn á -lo ,


revestir-se desse valor que pode provocar essa ereção, condição da
cópula. Seu desejo não pode se m anifestar diretamente, mas tem que
se dirig ir a despertar o desejo do O utro. É o lado fem inino dessa
generalidade que cham am os com plexo de castração e que aparece
com o c o n sa g ra ç ã o a um a fu n ção de m a scarad a, a m esm a que
c o n fe re um a sp e c to fe m in in o a um h o m em q u e o s te n ta seus
atributos viris.
Por tudo isso, o acesso ao ato genital parece menos carregado
de dificuldades para as mulheres do que para os homens. Elas, uma
vez definidas a si m esm as e por si m esm as com o desejantes, não
possuindo o órgão da conexão, têm o cam inho facilitado, não tendo
senão que ir em direção a quem o tem... e ver com o ele as arranja.
A f r ig id e z n ã o tem a ssim n em a tr a n s c e n d ê n c ia nem as
conseqüências que ensom brecem a im potência do lado m asculino,
onde o desejo pode inclusive adquirir uma função inibitória, como
é reiteradamente comprovado. N ada a renunciar, nada a arriscar, pois
a castração está dada de entrada e não de saída com o é o caso do
hom em . Freud colocava esta diferença em term os parecidos e não
com relação a cada ato sexual, mas em relação ao Édipo, esse Édipo
cuja transgressão no sentido de incesto pai-filha não tem, em geral
e por estas m esm as razões, as devastadoras conseqüências clínicas
do incesto do m enino com a m ãe. Tal “vantagem ” do sexo frágil
ficava contrabalançada no discurso freudiano por esta im posição da
dupla exigência de ter que se transplantar a zona erógena dom inante
e d e fin itiv a do c litó ris p ara a v a g in a . C re io que n e ste p o n to
atualm ente ninguém concorda com Freud.27

26. J. Lacan (1967). Sem inário XIV, aula d e l 9 de abril .


27. Cf. um artigo que fez sucesso no pen sam ento feminista apesar d a grosse ­
ria (e falocentrism o) de seus enunciados, A. Koedt (1968), “O mito do
o rga sm o vagin al” (“El mito dei orgasm o vaginal” ), traduzido e re produzi­
do e m D ebate fem in ista , México, v. 12, n. 23, p. 254-263, 2001, muito
b e m c om e n tad o nesse m esm o núm ero por J. Gerhard (2000), p. 220-253,
“D e volta a ‘El mito dei orgasm o va g ina l’” (“ De vuelta a El m ito d e i o r­
gasm o v a g in a l”).
G ozo e sexualidade 143

O certo é que tanto para a m ulher como para o homem a cópula


requer a ereção peniana com o condição necessária, ainda que não
suficiente (o desejo de um e o consentim ento da outra devem se
acrescentar), e relega à condição de contingentes todas as dem ais
variáveis corporais. Falta dizer que esta constatação banal, assim
com o a diferença de posições assentada no parágrafo anterior, não
autoriza privilégios nem determ ina maiores vantagens ou facilidades
para um dos d o is p a rte n a ire s ain d a que im a g in a riam en te seja
possível encontrar que um deles, na posição de neurótico, inveja,
despreza ou tem e em seu fantasm a a posição e o gozo do outro.
N a verdade, a condição da cópula não passa pelo que se tem,
mas pelo que se deixa de ter com o conseqüência da divisão sexual.
O falo nada assegura ao seu possuidor a não ser o fato de estar nele
a parte faltante da imagem ideal de si, causa da insvestidura libidinal
acordada ao outro corpo e razão da recusa ao gozo sobre si mesmo,
idiopático, intranscendente. O canal da transfusão de libido a outro
co rp o se p ro d u z ta n to no c a so da e le iç ã o de o b je to hom o ou
h eterossexual. O d ecisivo não são os ó rgãos m isturados, mas as
posição subjetivas, ou seja, a declaração de sexo.
O falo é o objeto da recíp ro ca despossessão que conduz ao
jog o do cortejo e do am or; é o que as m ulheres ou outros hom ens
buscam em um hom em e, tese ligeiram en te escandalosa, que os
hom ens buscam nas m ulheres - ou em outros hom ens, assim como
as m ulheres o buscam .
Para Lacan,2* há um engano, um logro*, que é constitutivo do
ato sexual. O homem busca aí um com plem ento segundo a promessa
bíblica de chegar a ser “um a única carne” e term ina achando que
há, com efeito, um a única carne, a sua. Ou seja, que, no final, há
um d e s e n g a n o com re la ç ã o a e sse lo g ro da fa ls a p ro m e ssa :
buscando a carne unificada encontra a castração e a verdade do ato
sexual, a de que o gozo falta em algum a parte.

28. J. Lacan (1967). Sem inário XIV, aula de 31 de maio.


* No original “tim o” , que e m c a s te lh a n o tem o se ntido de logro e que res­
soará c om íntimo e extimo. (N. da T.)
144 G ozo

D estaquem os ainda a dissociação entre o orgasm o genital, que


é ponta e limite do gozo, e o ato copulatório que culm ina ou deveria
cu lm in ar no o rg asm o p ara o falan te hom em “im p o rtunado pelo
falo”,29 mas não para o falante mulher. É claro que o orgasm o não
requer a conjunção dos corpos e que esta não deve, nem tem por
que, te rm in a r em q u a lq u e r p a ro x ism o . E sta d isso c ia ç ã o leva à
pergunta sobre o que representa o gozo sexual no nível do sujeito,
de c a d a um . E s ta n ã o é u m a q u e s tã o de s e x o lo g ia , m as de
erotologia,30 de gozologia - diria com prazer, ainda que ciente da
im possibilidade do “objeto” gozo para o entendim ento - certam ente
u m a q u e s tã o de p s ic a n á lis e , u m a d im e n s ã o q u e se a b re à
investigação particular das vias abertas ao gozo de cada um fora de
toda norm atização biológica ou cultural.
A resp eito do term o erotologia: o prim eiro uso da p alav ra
erotologia em língua francesa foi proposto em 1882. O Dictionnaire
H istorique de la Langue Française, de Robert, possui o vocábulo
e também a definição: “o estudo do am or físico e das obras eróticas”.
Freud nunca o usou e Lacan o fez em duas ocasiões, em sem inários
ainda inéditos. N a prim eira aula do sem inário sobre a angústia (19
de dezem bro de 1962), disse que a prática à qual nos dedicam os, a
psicanálise, “merece o nom e de erotologia” . Nove anos m ais tarde,
no se m in á rio X V III(a ), O s a b e r d o a n a lista , na a u la de 4 de
n o v em b ro de 1971, afirm o u q u e “o g ozo e stá na o rdem (?) da
erotologia” . M eu am igo Jean A llouch retom a o termo e insiste em
sua consubstancialidade com a psicanálise (op. cit.). Em um texto
p o sterio r d eclara31 que o v o cáb u lo é p ouco co n v en ien te (é um a
a p o sta , sem d ú v id a u m a lo u c u ra , p o is n in g u ém ig n o ra que as
intervenções do deuzinho Eros quase não têm razão nem sentido”).
A p a la v ra g o z o lo g ia , v in c u la d a ao c o n c e ito la c a n ia n o que
trab alh am o s, teria a vantagem de sua esp ecificid ad e ainda que,
devem os reconhecer, do escorregadio objeto @ não poderia haver
ciência. Em francês, deveria ser criado o vocábulo jo uissologie, e

29. J. Lacan (1973). Le sem inaire. L ivre XX. E ncore, p. 70.


30. J. Allouch. La psychanalyse: une érotologie depassage. Paris: E PE L, 1998.
31. J. Allouch. L acan et les m in orités s e x u e ll e s . C ité s, P a ris: P.U.F., n. 16,
p. 72, 2003.
( iozo e sexualidade 145

e m seguida - intenção nada fácil - traduzi-lo para o inglês com o


jouissology. O que ninguém que tenha acom panhado este texto até
agora p o d eria n eg ar é que a d efin ição da p sic a n á lise não pode
renunciar ao seu objeto, o de sua prática e sua teoria que é o gozo,
u m gozo que - tem os visto e ainda verem os - está m ais perto de
Tanatos do que de Eros.

3. A castração co m o cau sa

L acan’2 foi incansável na insistência sobre este ponto que hoje


se discute detalhadam ente. O com plexo de castração - ou seja, um a
o rd e m de d e te rm in a ç ã o a c e s s ív e l à p s ic a n á lis e e so m e n te à
psicanálise com o prática linguageira - tem aí a função de nó com
relação à p rodução dos hom ens e das m ulheres, com relação ao
“desenvolvim ento” de uns e outros (questão dos estádios ou fases
libidinais), com relação à determ inação da posição clínica do sujeito
com o neurótico, perverso ou psicótico, com relação à possibilidade
e m odalidade de abordagem do ato genital e até no posicionam ento
frente à crian ça que se p ro d u z a partir dele. A anatom ia não é o
destino, senão a partir da palavra que a recolhe e a significa. A função
(da cópula) não faz o órgão, m as é o órgão, o pênis, aquilo que é
apropriado pela linguagem . A ordem sim bólica realiza no órgão uma
função m uito interessante que é a de transform á-lo em significante
da perda que se produz no gozo pela ação da Lei; em outras palavras,
o sim bólico subm ete ao corte castratório.33N ão é outro o sentido da
m ile n a r p rá tic a da c irc u n c is ã o , m arca do O u tro no ó rgão que
representa o falo.
A castração significa que o gozo, estando perdido, deve ser sig­
nificado, definido, cercado, evocado com o entretecido de fios sig-
n if ic a n te s q u e d e s e n h a m se u s r e s e r v a tó r io s , e s ta g n a m -n o ,
acum ulam -no, evitam sua dispersão. A castração é um condensador
do gozo que o torna subjetivável, su b je tiv o e, ao m esm o tempo,

32. J. Lacan (1958). É crits, p. 685; E scritos 2, p. 665.


33. J. L acan (1966). Sem inário XIV, aula de 27 de abril.
146 G ozo

estranho, extim o; vetoriza-o, canaliza-o, assinala-lhe e lhe proíbe ca­


m inhos. Por ser sim bólica (não real) e assim étrica (com o vim os)
abre para um m undo de perguntas a respeito de seus efeitos sobre
o gozo, do gozo que falta, da possibilidade de se ressarcir da per­
da, do gozo do O utro, perguntas sem fim que fazem pulular as res­
postas no incerto m undo do saber, no lugar da verdade inarticulável.
E assim que se transform am em anunciados: teorias sexuais infan­
tis, novelas fam iliares do neurótico, noções sexológicas, ensaios de
teoria sexual dos adultos, das fem inistas e dos analistas. N enhum
destes enunciados poderia liberar-se das cargas ideológicas e por
isso é im prescindível o debate que os esclareça.
O F a lo é p rim o rd ia lm e n te o q u e faz p a d e c e r a C o isa , o
significante que se im prim e sobre o real, o nom e da falta no Outro,
a barra do D esejo da M ãe, aquilo que rem ete do gozo da mãe ao
nom e-do-Pai, que o m etaforiza e o condena (no sentido em que se
diz “bloquear um a porta”). É esse ponto de im possibilidade, grau
zero do sig n ifican te, onde se im p lan ta um S, que cham a o outro
significante, o resto da cadeia, que abreviam os com a notação S!?
o saber em todas as suas m odalidades. É o indicador da falta (no
gozo). Por su a in te rv e n ç ã o com o sig n ific a n te , a falta po d e ser
nomeada. O Falo indica o lugar de ausência que deve ser colonizado
pelo que sim se nomeia, pelo semblante que vem no lugar da verdade
e é agente do discurso, de todos os discursos. Por ser o localizador
da falta (-(p) é o organizador e o com andante do desejo, encarna a
resposta do sujeito à falta de ser. A ssim , os objetos que são causa
do d e s e jo (@ ) a lc a n ç a m u m a s ig n if ic a ç ã o f á lic a , e stã o
correlacionados à castração. O Falo é o corpo infantil, o que pode
preencher a falta na mãe, antes de ser barrado pela castração. O que
falta no corp o está no cam po do O utro e que é aí onde deve ser
buscado.
Com o órgão34 perm ite a cópula, é o que está em jogo nela, o
que - por tê-lo ou não - determ ina as posições subjetivas dos dois
da união; e não apenas quando os dois têm o título de “hom em ” e
“mulher”. Por seu destino de detumescência o órgão volátil e instável

34. Rem etem os n ovam ente à distinção do falo co m o significante, c o m o órgão


e c o m o sem blante. N. A. Braunstein. P or el cam ino de Freud, p. 112-120.
Gozo e sexualidade 147

que é o pênis estorva o gozo, ao m esm o tem po que lhe m arca o


cam inho. Um dos sentidos essenciais do com plexo de castração é
essa can alização que faz o gozo passar pelos genitais de am bos
partenaires. O gozo é imaginarizado por esse vôo de pássaro que não
pode se sustentar no ar, que deve se separar de seu parte-en-aire. *
E im possibilidade, não im potência, e é inerente à própria pulsão
sexual, tal com o indicada pelo próprio Freud. C om o tal, gozo fálico
localizado nos genitais (O rganlust) e concentrado no pênis ou no
clitóris, está presente nos dois sexos e não há razão algum a para
supor que seja diferente em um e no outro, ou m aior de um lado do
que do o u tro , pois não há rela ç ã o n atu ral alg um a en tre gozo e
tam anho ou a visibilidade. Q ualquer técnico eletrônico sabe que as
válvulas não são superiores aos transistores.
Talvez Lacan exagerasse em A lógica do fa n ta sm a 35 ao dizer
que
A e r e ç ã o n ã o t e m n a d a a v e r c o m o d e s e j o , p o i s o d e s e jo
p o d e a t u a r p e r f e i t a m e n t e , f u n c i o n a r , s e m e s t a r d e m o d o a lg u m
a c o m p a n h a d o p o r ela. A e r e ç ã o é u m f e n ô m e n o q u e d e v e ficar no
c a m i n h o d o g o z o . Q u e r o d i z e r q u e p o r si m e s m a e s t a e r e ç ã o é
g o z o e q u e j u s t a m e n t e s e d e m a n d a , p a r a q u e s e e f e t u e o a to
s e x u a l, q u e e la n ã o se d e te n h a : é g o z o a u to -e r ó tic o .

Fala-se aqui, claramente, da ereção peniana descuidando de que


tam bém o clitóris é um órgão erétil, cuja ereção de form a algum a é
con d ição n ecessária nem dem an d a p ara a cópula. A objeção que
prete n d o fo rm u lar a essas c o rta n te s asse v e ra ç õ es recai sobre a
suposta independência entre ereção e desejo frente à idéia difundida
de que a ereção é o teste do desejo. E claro que há ereções sem
desejo e que há desejo sem ereção, mas a cópula só é possível à
m edida que confluem a ereção e o desejo. Não se pode contem plar
isoladam ente a função da ereção sem levar em conta seu correlato
inevitável, a detum escência. A diferença entre ambas deixa um resto,
um a p erd a, q u e é a do o b jeto @ com o in te rse çã o entre o gozo
perdido e o desejo causado, anim ando-se ambas reciprocam ente em

* Parte no ar. (N. da T.)


35. J. Lacan (1967). Sem inário X IV , aula de 21 de junho.
148 G ozo

sua repetição. N ão há aí satisfação, mas am ortecim ento pelo prazer


de órgão.
D eve-se colocar também em dúvida a afirmação lacaniana feita
regularmente sobre um a suposta equivalência entre o gozo masculino
ligado à ereção e o gozo fem inino experim entado como algo que as
m oças d e sig n a ria m e n tre si co m o “ o g o lp e do e le v a d o r” , um
conhecim ento que Lacan atribui antes à sua experiência viril do que
à psicanalítica. E evidente que há diferenças radicais entre os dois
partenaires com relação ao gozo. O que não se pode dizer é que tal
diferença seja universalizável.
A questão se coloca com o relação com o saber e com o saber
com o fantasm a que possibilitaria o gozo proibido. A localização do
gozo m asculino (e de sua interrupção) é óbvia, não deixa dúvidas.
O hom em e s tá c o m p le ta m e n te no gozo fálico , sem re síd u o no
sem blante do gozo que depende da ereção. M as o que acontece no
O utro (sexo)? Eis aqui um enigm a de H era e Júpiter, de todas as
e s fin g e s , d o s h o m e n s e d as m u lh e re s , d o s fis io lo g is ta s , dos
neuróticos e dos p erversos, dos p sicanalistas e das psicanalistas,
aquilo que m antinha a perplexidade de Freud e que encontra resposta
em L a c a n , re s p o s ta d e n ã o r e s p o s ta , a firm a ç ã o de um g o z o
recôndito, inefável, no corpo e além da linguagem que contorna o
im p o ssív e l de um sa b e r e q u e su ste n ta o g o zo com o lig a d o à
im possibilidade de dizer toda a verdade que, com o dizia Nietzsche,
é mulher. E sse gozo das m ulheres que é, em parte, gozo fálico e,
em parte, en ig m ático , e stá ligado ao indizível e é escrito com o
m atem a S (Á). Para as mulheres o semblante - função da linguagem,
efeito im aginário do significante - e o gozo estão dissociados. Está,
sim, o visível-sensível-dizível do gozo... e há, além disso, encore.
Sendo assim , existe realm ente este gozo vivido e declarado
inefável? Com o distingui-lo de um fantasma, de uma quimera, de um
sonho que poderia estar sustentado tão-som ente pela insatisfação
geral e crescente com as duvidosas prom essas do gozo fálico?36 O
próprio Lacan reserva ao gozo fem inino um estatuto incerto, o de
uma crença:

36. S. André. Q ue veia une fe m m e ? Paris: Navarin, 1987 e Seuil, 1995; em


espanhol, Q ué quiere una m u je rl México: Siglo Veintiuno, 2002.
<ozo e sexualidade 149

Ficam to d o s c o n v e n c id o s de q u e acre d ito em D eus.


A c r e d i t o n o g o z o d a m u lh e r , e n q u a n t o e s t á d e m a i s , à c o n d i ç ã o
d e q u e a n te e s s e d e m a is c o lo q u e m u m a te la a té q u e o te n h a
e x p li c a d o b e m . 37

U m a crença, já se sabe, é pouco segura e quem a m anifesta


vita com prom eter-se (com o ao dizer: “acho que vai chover”) ou é,
10 outro extrem o, um a certeza extrem a e devoradora, algo que pode
evar alguém a m orrer por sua causa (justam ente, esse “acredito em
Deus” cujo equivalente lacaniano é o gozo fem inino).
À luz da clín ica parece certo que há um gozo fem inino que
;stá além do falo e da detum escência que aguarda o órgão que o
e p re s e n ta , um g o z o no c o rp o ( en c o r p s ), um g o zo q u e n ão
om plem enta o masculino, mas que se apresenta com o um plus, algo
nais (encore), suplem entar, que faz naufragar todas as tentativas de
EStringi-lo e localizá-lo. O desm entido (Verleugnung) deste gozo
sm pre animou as tentativas para controlá-lo desde os modos mais
]rimitivos com o a infundibulectom ia até os m ais científicos, tais
om o a m oderna sexologia m assoterápica e a busca de seus centros
incefálicos ou dos p o n to s g da vag in a. T am bém a in ten ção de
em eter esse gozo m isterioso a um contato sobrenatural da alm a
om D eus que faz do êxtase um orgasm o. A segregação de um a
deologia em torno do gozo e dos m ísticos é o rosto espelhado da
d e o lo g ia d o s e x ó lo g o . N o M é x ic o : “ a m e s m a g a ta , m as
nal tratada” .*
Em Freud, há um reconhecim ento do desdobram ento de um
çozo fálico (c lito ria n o ) e o u tro g ozo d ife re n te , c o n ce p ção em
;ssência fecunda, mas que sofreu depois pela pretensão freudiana
le lo c a liz á -lo n o v a m e n te , ag o ra na v ag in a. S ão co n h ecid as as
:onseqüências infelizes que trouxe esta afirm ação do fundador da
m álise, cujo efeito trágico, paradigm ático e extrem o pôde ser visto
ias operações (três) a que se subm eteu a princesa M aria Bonaparte
:>ara aproxim ar o clitóris da vagina™ e cujos efeitos mais difundidos
foram os de um a insatisfação de muitas m ulheres com seu próprio

37. J. L acan (1973). Le sem inaire. L ivre X X . E ncore, p. 71.


* No original: “ la m ism a gata, pero revolcada” . (N. da T.)
38. S. André. Marie Bonaparte, 1882-1962. O rnicar?, Paris, n. 46, p. 97, 1988.
150 G ozo

gozo. P o ssiv e lm e n te n enhum a tese fre u d ia n a esbarrou em um a


oposição tão inflam ada e virulenta, tão ju stificada. As fem inistas
alinharam suas flechas contra a psicanálise, acusada de mil maneiras
de releg ar e in ferio rizar o gozo fem inino em função do m odelo
masculino de ereção-penetração-ejaculação, modelo de que se tratou
(e não se conseguiu) provar co m o p a trim ô n io com um a am bos
os sexos.
A insatisfação com o gozo fálico prom ove a busca de outros
modos e m odalidades de gozar sobre o fundo do enigm a em torno
do gozo fem inino. A intenção de definir e alcançar gozos parafálicos
e perifálicos pelo lado do prolongam ento da duração do coito, do
ascetism o , do d eslo cam en to q u ím ico m ed ian te su b stân cias que
provocam a ereção ou que sejam capazes de provocar orgasm os por
estim ulação de centros nervosos, da sublim ação estética ou da dor
física absorve a im aginação e os esforços de poetas e cientistas.
T am bém de p sic a n a lis ta s que en te n d e m que o fis t-fu c k in g , as
práticas S/M ou a proliferação de encontros m últiplos e anônim os
podem revelar novas verdades.
A p s ic a n á lis e tin h a , d esd e o p rin c íp io , d esd e a re sp o sta
consignada pelas histéricas e desde a pergunta que essa resposta
encobria, a missão de produzir um a resposta diferente à questão dos
gozos o rto -m eta- e p arafálico s. As p ro p o stas fo rm uladas pelos
a n a lista s era m d e c e p c io n a n te s p e lo e rro co m u m de p ro d u z ir
fórmulas supostam ente universais ou universalizáveis. O colóquio de
Am sterdã em 1960 reuniu dois trabalhos, um de L acan39 e outro de
P e rrie r e G r a n o f f ,40 q u e p ro p u s e ra m a lg o n o v o a p a r tir da
e x p e r iê n c ia a n a lític a e q u e e s tã o n a b a s e d a e la b o ra ç ã o
(relativamente) definitiva realizada por Lacan em seus seminários de
1972-1973;41 neles a resposta ao enigm a m ilenar é alcançada por
uma via lógica que desem boca em fórm ulas e form ulações rodeadas
por um halo de despudor.
A ausência de solução universal ao enigm a do gozo fem inino
conduziu à escandalosa (som ente em aparência, pois de fato é uma

39. J. Lacan (1960). É c r its , p. 725; E scritos 2, p.704.


40. F. Perrier e W. Granoff. Le d ésir et lefé m in in . Paris: Aubier, 1979,
41 J. Lacan. Le sem inaire. Livre XX, Encore.
G ozo e sexualidade 151

verdade banal e sem pre reconhecida)propsição lacaniana de que


A m ulher não existe. Isto im plica qie eis, um a a um a, devem e
podem encontrar sua resposta, a delasqueião é com plem entar nem
análoga à resposta m asculina, mas i d ep ndente e suplem entar a
esta. E isso porque, para Lacan, eiasnãotodas estão, estão com o
não-todas no gozo fálico e que, com cfalonem tudo está dito sobre
o gozo. São os hom ens os que se em ienhm em falar da m ulher e
em en c o n tra r um u n iv ersal p ara o ;ozcque elas sentem e eles
pressentem , um gozo que, por escapr da redes do saber é m uitas
vezes tem ido e até tido com o hostil.
O suplem ento de gozo extrafálio (en corps, encore) que não
p o d ia ser d ito , d e v ia se r e s c rito . )ev iria tam b ém e s c re v e r a
im possibilidade de dizê-lo. Para isso.ardiamente Lacan chegou às
fórmulas da sexuação,42 da sexuaçãoe no da sexualidade nem do
sexo, da eleição de um m odo particilarle se p osicionar de cada
falante ante a função fálica que está eterninada não pela anatom ia
nem p ela cultura, m as pelos a v a ta rs dt com p lexo de castração
(determ inante do saber inconsciente)e di desejo que resulta desse
com plexo com o expediente para a smjeti ação da falta a ser.
Com relação a estas fórm ulas disexiação que dividem a parte
cham ada homem e a parte cham ada nulhc dos seres falantes, tomei
a d e c is ã o de n ã o in c lu ir n e s te li'ro im a r e p ro d u ç ã o e um a
interpretação a mais, que se agregari às árias existentes. Perm ito-
m e, em tro c a , re m e te o le ito r a o se m n á rio de L a c a n 43 e aos
c o m e n tá rio s e n riq u e c e d o re s q u e s fiieram (p o r e x em p lo , em
A n d ré44 e M illo t45). P or outro lado arrsearei um a resp o sta que
im plicar a m arcação de uma diferena con postulações explícitas e
a meu ver confusas do próprio Laca:, apoxim ando-m e e adotando
sugestões que procedem de autores <ue s ocuparam seriam ente da

42. Ibid., p. 73.


43. idem, ibidem.
44. S. André. Que veut une fe m m e ?
45. C. Millot. H orsexe: essai su r le transxuaisnie. Paris: Point Hors-Ligne,
1983; e m espanhol, E xsexo. Barcelcia: f r a d i s o , 1984; em português,
Extrasexo. Ensaio sobre o transexualimo. So Paulo: Escuta, 1992.
152 G ozo

questão, Serge A ndré,46 e Gerard Pom m ier,47 e C olette Soler,48 para


as quais procurarei encontrar um modelo topológico.
E o m om ento de repetir e repassar o que foi apresentado no
começo do segundo item deste capítulo: havíamos chegado ao ponto
de s e p a ra r um g o z o do se r e um g o z o fá lic o e os h a v ía m o s
localizado, com Lacan, em duas áreas diferentes do nó borrom eu
(figura à p. 108). No ensino de Lacan, o gozo que cham ei gozo do
s e r é cham ado tam bém , indistintam ente, gozo do Outro. M as de que
Outro se trata? Pois é possível falar tanto a) do corpo com o Outro,
Outro radical, fora da linguagem, assento de um gozo ligado à Coisa,
impossível de sim bolizar ou b) o Outro, grande Outro, precisam ente
como o Outro da linguagem, da Lei e do código (código que poderia
h a v e r, m as q u e n ã o h á ), do O u tro o n d e d ev e se s ig n if ic a r a
m ensagem , o O utro indicado com o A no gráfico do desejo ou pode,
por ora interrom perem os aqui a enunciação, referir-se c) ao Outro
que é o O utro sexo e o O utro sexo é sem pre o fem inino (E teroz),
pois o sexo que é Um é o que está integralm ente regulado pelo
significante e pela Lei do falo.
Acredito que a expressão gozo do Outro é infeliz, porque, dada
a polivalência do O utro lacaniano e de seu matema, o A m aiúsculo,
todos os gozos são g ozos do O utro: 1) o gozo do corpo fora da
linguagem (que estou denom inando de gozo do ser); 2) o gozo que
passa pela articulação linguageira subm etida à Lei, m arcado pela
cultura (cham ado aqui e com Lacan gozo fálico); e 3) um terceiro
gozo, suplem entar e situado além da castração e de seu sím bolo que
é o gozo fem in in o p ara o qual pro p o n h o reservar, a e ste sim , a
denom inação de gozo do O utro (sexo). G ozo do O utro (sexo), é
preciso esclarecer, no sentido sub jetivo do genitivo de, o O utro
com o aquele que goza, e não no sentido objetivo, pois é im possível
gozar do O utro com o objeto do gozo do Um. D este terceiro gozo,
o gozo além do falo, é que cabe falar ao term inar este capítulo.

46. S. André. Q ue veut une fe m m e ?


47. G. Pommier. L ’exception jem in in e . Paris: Point Hors-Ligne, 1985.
48. C. Soler, C e que Lacan disait des fe m m es ... ln: Progress. Paris: Éditions
du C h a m p Lacanien, s/d.
( lozo e sexualidade 153

D eclarar com o desafortunado e acabar reconhecendo de modo


restrito o sintagm a gozo do Outro exige algum a precisão adicional.
Se algo e stá claro , co n fo rm e já se d isse e se cito u no cap ítu lo
anterior, é que “o desejo vem do O utro e o gozo está do lado da
C oisa” ;49 neste sentido deve-se ver o gozo sem pre com o referido ao
Um, esse Um do qual os falantes somos desalojados pela intervenção
invocante do Outro que cinde a subjetividade, sendo o gozo o que
lalta ao Outro e ao m esm o tem po o que ele proíbe no Um, isso que
se expressa nos maternas com a dupla barra do Outro e do sujeito.
Assim, e som ente assim, o gozo se apresenta ao sujeito como sendo
o O utro, o radicalm en te ausente que en co n tra seu sím bolo no O
m aiúsculo do falo e se m an ifesta no m undo da linguagem com o
nom e-do-Pai.
Por tudo isso é que reconhecem os, em um a últim a análise:
1. gozo do ser (da Coisa, mítico);
2. gozo fálico (do significante, linguageiro), e
3. gozo do O utro (fem inino, inefável).
Sim, deveria concordar com Lacan quanto ao gozo do ser (1)
e o gozo do O utro (3) se inscreverem na m esm a região (m arcada
c o m o J .A ., jo u is s a n c e de l ’A u tre ) do nó b o rro m eu e sc rito em
superfície plana, na região da interseção do real e do imaginário, sem
m ediação sim bólica, com o algo corporal alheio à função fálica que
é a função da palavra. N ão deixa de ser paradoxal - mas tem de ser
a ssim - q u e o g o z o m a rc a d o c o m o s e n d o “ do O u tro ” fiq u e
totalm ente fora do sim bólico (figura na p. 108)

4. O s três gozos e a b anda de M oebius

T rata-se agora de articular estes três gozos sem nunca perder


de vista que, com eles, não nos m ovem os em um terreno especu­
lativo, mas em um a referência constante à clínica, a um a clínica que
terá de pensar de m odo diferente com o conceito de gozo.

49. J. L acan (1964). Écrits, p. 853; E scritos 2, p. 832.


154 G ozo

A enum eração dos três tipos de gozo tem algo de excessivo ou


de bizarro; é com o a superposição de três substâncias heterogêneas,
algo assim com o as três identificações reconhecidas por Freud no
capítulo 7 de sua “Psicologia das m assas” ou os três m asoquism os
do artigo sobre o “problem a econôm ico”, reunindo três coisas que
não parecem som ar-se, mas proceder de conjuntos diferentes. Não
poderia ser de outro modo, sendo o gozo o que está em relação com
a lógica: o que dela fica excluído. E para isso que fica tão difícil
cap tar com as p alavras de um d iscurso, convém um a apreensão
topológica.
D eve-se partir da clínica, dos gozos não-ditos, os que não pas­
sam pelo diafragm a colim ador da palavra, os de um a dissolução da
subjetividade, externos a qualquer vida de relação, extradiscursivos.
Falo dos corpos reduzidos à sua existência corporal na em briaguez
extrem a, o autism o, a infans-cia. Isso em um extrem o. N o outro,
as experiências extáticas de quem , havendo atravessado todas as
barreiras oportunam ente indicadas ao gozo, e muito particularm en­
te aquela que é seu contrário, o desejo, encontram -se em um a re­
lação direta, im ediata com o gozo. Entre os dois extrem os, estão os
gozos diafragm atizados, regulados pelos esfíncteres linguageiros,
subm etidos à castração e à sua lei, perseguidores de um objeto fan-
tasm ático que escapa inexoravelm ente com o a tartaruga ao bom
Aquiles ou com o a m ulher ao homem. N ão é errôneo dizer que este
últim o, o fálico, é gozo perverso (ou seja, virado de costas, trans­
ferido, m eta-fórico), enquanto os outros dois são loucos.
M as deve-se atentar para não confundir estes dois gozos que
estão fora da linguagem , pois eles não são iguais e sim o contrário
um do outro; ou, m elhor dizendo, seu avesso. O autismo, apesar de
a clínica psiquiátrica clássica englobá-lo sob a m esm a rubrica da
psicose, não é assim ilável à paranóia. Entre ambos, entre o aquém
e o além da palavra, estende-se este cam po da cobertura insuficiente
do real por meio da linguagem que nos dá uma “realidade”, um certo
substituto do gozo que nos escapa. É o cam po que Lacan cham ou
de s e m b la n te e N ie tz s c h e , com m ais c ru e z a , de m e n tir a . O
sem blante ou a mentira, ambos tributários do falo e de seu gozo, são
as condições de possibilidade do discurso, pois não há discurso que
não seja o do semblante.
Ciozo e sexualidade 155

S eria fácil m o strar to p o lo g icam en te a relação entre os três


gozos sobre a superfície de u m a fo lh a de p a p el. B a sta ria traçar
três círculos concêntricos que representariam as relações existentes
entre os três gozos.

Figurariam aí uma zona central que constituiria o núcleo do ser


(o círculo de dentro), o mais íntim o e ao m esm o tem po inacessível,
a terra estrangeira interior, isso que do Real fica excluído e padece
pelo significante; aí representar-se-ia o gozo do ser. No meio pode
fazer-se fig u rar esta zona so m b read a, a da p alav ra que m arca e
lim ita a Coisa, condenando-a ao silêncio e às filtrações inesperadas,
espaço do significante do gozo fálico. E ficaria um além, um a zona
de gozo que seria exterior, a do gozo que excede a significação e a
função fálica, aquele que faz da m ulher um a não-toda (pas-toute),
c u ja s p is ta s - já q u e n ã o c o n h e c im e n to - nos d a ria m c e rta s
experiências de m ísticos e paranóicos que vão além do órgão que
estorva com o falo. E a área do gozo do Outro (sexo).
Este modelo é dem asiado singelo. O problem a é que com ele
perde-se a possibilidade de m ostrar a continuidade e a oposição que
há entre os dois gozos do corpo (o central e o exterior) separados
pela colocação em palavras que faz passar o gozo pelo funil do falo.
C om os círculos concêntricos, a separação é absoluta e entre am ­
bos os gozos não há oposição, mas simples falta de contato. Por isso
é que proponho recorrer a outro m odelo e a outra dem onstração que
L acan usou em um contexto totalm ente diferente, o da banda de
M oebius. É necessário neste ponto recordar o essencial desta figura
topológica. O leitor interessado nos detalhes técnicos e na utilização
156 G ozo

que L acan dá a e ssa fig u ra p o d e re c o rre r ao livro já citad o de


G ranon-L afont.50 Darei por conhecidas as propriedades topológicas
da banda.
N ão nos conform am os com a relação entre três espaços visí­
veis e claram ente separados entre si, com o são vistos em nossos cír­
culos concêntricos, e por isso preferim os a banda, essa cinta com
uma m eia torsão. Sabem os que a banda de M oebius que habitual­
m ente m anejam os - a que fazem os juntando em uma cinta a borda
superior de um de seus extrem os com a borda inferior do outro -
é uma falsa banda de M oebius porque se a cortássem os ao meio e
no com prim ento com um a tesoura, o que ficaria seria novam ente
uma cinta, um a superfície com dois lados e duas bordas. Sabemos
também que ao espaço aberto pelo corte não se poderia, por sua vez,
cortar. Esse espaço que é virtual e intangível é a banda de M oebius
verdadeira. O intangível e incorpóreo espaço do corte é essencial
para nossa concepção dos três gozos e da separação entre eles.
C onsidero que o gozo do ser e o gozo do O utro (sexo), os dois
gozos que estão fora da palavra, têm a m esm a falsa continuidade
daquela observada na falsa banda de M oebius. É aí onde a tesoura,
bonito objeto para indicar a função da castração, a introm issão do
significante fálico (caso se queira dizer de um m odo menos intuitivo
e mais preciso), produz esse vazio, essa separação de gozo originário
que abre as portas do gozo acessível aos sujeitos da palavra, o gozo
fálico, o dos encantos e das decepções linguajeiras. Trata-se de um
gozo sem corpo, fora do corpo, na linguagem, que opera uma divisão
e um enfrentam ento. O gozo do corpo fica agora dividido em dois,
armado de direito e avesso, fora da linguagem (figurado com o corte
na banda de M oebius) que o partiu em um gozo do ser, anterior ao
corte e um gozo do Outro, seu antípoda, sua antífona, seu além, que
é secundário e inconcebível sem esse corte.
A credito ter explicado o por quê de m inha resistência em con­
ceber os três gozos com o esquem a sim ples dos círculos concên­
tricos que carecia da riqueza heurística que devem os agradecer à
banda de M oebius e à oposição entre a banda falsa e a verdadeira.

50. J. G ranon-Lafont. La topologie ordinaire de J a cq u es Lacan. Paris: Point


Hors-Ligne, 1985.
( iozo e sexualidade 157

M inha proposta torna evidente que a castração é justam ente o


corte que faz com que a substância dos dois gozos do corpo seja
a mesma, mas que não são o m esm o, que são distintos sem que se
possa passar do um ao outro. H á entre eles um a descontinuidade
que lhes é essencial. O corpo, com sua superfície, é um, com seu
direito e seu avesso. A linguagem (o Falo) é esse ser virtual que
produz nele a oposição e a diferenciação dos três gozos, é esse hálito
sutil que m arca o im possível do reencontro com o perdido gozo do
ser e o p o ssív el, m u tilad o , que se in sta u ra p ela interv en ção da
palavra. O corte da castração é com pleto, total, do lado do homem
que o entorna pelo funil habilitado em si pelo órgão que o representa
(recordem os pela últim a vez que não é questão de anatomia, mas de
relação com uma representação im aginária do órgão com o faltante
ao desejo). O corte é incom pleto nas m ulheres que não tropeçam
com o e sto rv o de um ó rg ão q u e em sua im agem c o rp o ral põe
barreira ao gozo com o sem blante de falo; é um corte não-todo, um
corte que, um a vez efetuado, abre um além e rem ete ao significante
q u e f a lta n a b a te r ia d o O u tro d a lin g u a g e m , ao e n ig m a da
fem inilidade, claro, enigm a desde o ponto de vista do falo.
D a heterogeneidade incom unicável dos gozos (pois dois deles
são inefáveis e rem etem ao S [A] faltante) resulta necessariam ente
a im possib ilid ad e no real da relação sexual. Se o Falo fosse um
significante que tivesse par, se existisse o significante próprio de A
m ulher, a relação poderia articular-se, poderia inscrever-se; algum
tipo de c o m p le m e n ta rid ad e seria p o ssív e l. M as por fa lta r esse
significante instaura-se um desequilíbrio que configura e delineia o
gozo vinculado à castração e os dois gozos que estão um aquém
{gozo do ser) e outro além (gozo do Outro) do corte. Em síntese:
antes da palavra está o gozo do ser, depois da palavra, o gozo do
O utro (sexo); entre um e outro, o gozo sem iótico, o que está ligado
ao falo, o da palavra que separa do corpo.
Jean A llo u ch 51 nos deu a p o ssib ilid a d e de restitu ir o texto
a u tê n tic o de u m a re fe rê n c ia la c a n ia n a q u e d iz lin d a m e n te da
existência e a diferença entre estes três gozos:

5 1 . J. A llouch. Le sexe du m aître. Paris: E xils, 2001. p. 205.


158 G ozo

N a d a h á m a is a r d e n t e d o q u e a q u il o q u e , n o d i s c u r s o , faz
r e f e r ê n c i a a o g o z o [a o g o z o d o se r], o d i s c u r s o o t o c a ali se m
p a r a r , p o i s d a l i é q u e e l e s e o r i g i n a [o g o z o f á l i c o ] , V o l t a a
c o m o v ê - lo , p o sto q u e t e n ta r e to r n a r a e s s a o rig em . E é a s s i m q u e
i m p u g n a to d o a p a z i g u a m e n t o [g o z o d o O u t r o ] . 52

As denom inações dos três gozos têm sido intercaladas no dito


de Lacan.
A credito que deva insistir em assinalar essa diferença entre os
dois gozos que se situam fora da linguagem , em não assim ilá-los,
ainda quando - com o efetivam ente acontece - estejamos vulnerando
com um a interpretação o texto de Lacan. Se não se insiste nisso, a
concepção lacaniana da fem inilidade faria das m ulheres seres que
som ente podem ex-sistir com o linguageiras e vinculadas à ordem e
à Lei do falo. M uitas reprovações procedentes do feminismo ficariam
plenam en te ju stific ad a s p orque a elas, com o m ulheres, não lhes
restaria outro reduto que esse lugar im pensável da Coisa, em que o
silêncio se confunde com o grito, em que todas as significações se
desvanecem e onde a vida cede seu lugar à m orte. Seu gozo seria
gozo fálico e, se assim não fosse, som ente lhes restaria o silêncio
das árvores e das ostras ou o grito que ninguém escuta e nada diz.
Nessa concepção, não haveria para o fem inino senão a im postura e
a m ascarada fálica, por um lado, e, por outro, a aceitação passiva
do lugar de @, de objeto, para o fantasm a de um sujeito que faria
valer sobre ela um desejo essencialm ente perverso.
A riq u e z a da fo rm u lação de L acan é a p reciad a q u an d o se
valoriza sem prejuízos sua afirm ação de que A m ulher não existe.
E las, as m u lh e re s, c o n sid e ra d a s u m a a um a, to d as d ife re n te s,
carecem de universal, estão instaladas em um a relação que lhes é
e s s e n c ia l co m o F a lo , sim , m as e s tã o c o m o n ã o - to d a (s ) aí,
perseguindo tam bém , além disso, um sig nificante im possível de
articular, “algo” que não e stá aq u ém , m as sim além da palavra,
S (A). Tal significante leva ou poderia levá-la (não é o caso de criar
ou tro u n iv e rsa l depo is de h av ê-lo d e sc a rta d o ) a um m undo de
valores de experiência vivida que está além do im perialism o fálico

52. J. Lacan (1969). Sem inário XVII, aula de 17 de fevereiro. A referência equi­
vocada encontra-se na edição "oficial” do m esmo seminário, p. 80.
Gozo e sexualidade 159

c seu universo de significações, segredo desses m ísticos e dessas


m ísticas que não, não são loucos/as, e d essas sutilezas da alm a
feminina que desbaratam , no dizer dos enam orados, as arrogâncias
"fa ló fo ra s” . T rata-se de um além cujo lem a é encore e que é o
direito desse avesso que é a loucura ou o avesso desse direito à
loucura sem a qual todos os direitos são desprezados.

5. F reu d (L acan) ou F o u cau lt

2005. A atualização que este livro necessita com maior urgência


- acredito - é a referência ao gozo do Outro, ao gozo no fálico que
está além da p alav ra, o que surge p ela im p o tê n c ia do saber em
ab ran g ê-lo . N estes 15 anos (1 9 9 0 -2 0 0 5 ) tra n sc o rrid o s desd e a
prim eira edição de Gozo surgiu, como herdeira dos Gay and Lesbian
Studies dos anos 1980 - herdeiros, por sua vez, do grande choque
de pensam ento que representou o fem inism o dos anos 1970 a
q u e e r th eo ry, q u e tom ou e d e sen v o lv eu nos E sta d o s U n id o s o
trabalh o de in v estig ação da h istó ria da an tig ü id ad e clássica que
devem os a M ichel F oucault (1926-1984). A expressão intraduzível
queer theory foi cu nhada por Teresa de L auretis53 exatam ente em
1990 p a ra d ar c o n ta d os m ú ltip lo s fe n ô m e n o s e e x p e riê n c ia s
subjetivas e das teorias correspondentes sobre as m odalidade do
gozo que escapam à norm atividade social im posta e dom inantes e
que foi batizada com o presunçoso nom e de heteronormativida.de.
A heteronorm atividade é a norma social que se apresenta como
a colu n a vertebral das sociedades dem ocráticas avançadas. E ssa
n o rm a n ão p r e c is a s e r s a n c io n a d a p e lo a p a r a to ju r íd ic o .
C o rre sp o n d e à id e o lo g ia e aos p re ju íz o s dos ho m en s bran co s,
adultos, de classe m édia, definidos em sua orientação sexual frente
às m ulheres, m onogâm icos e centrados no par heterossexual como
parad ig m a da relação am o ro sa e nos valores do casam ento e da
fam ília. “Pressupõe que um a relação com plem entar entre os sexos

53. Cf. D. Halperin. San F oucault. Cuadernos de Litoral. C órd oba (Argenti­
na): Edelp, 2000. p. 135-136.
160 G ozo

é tanto um a regra natural (tal com o as coisas deveriam ser)” .54 A


heteronorm atividade não é apenas um com plexo ideológico ou, se
o for, é no sentido mais radical: o de uma ideologia que configura
os seres àqueles que se dirige, classificando-os e fazendo-os sentir-
se estranhos a si m esm os (q u eer, ou seja, “raros”) quando não se
ajustam ao sistem a regulador.
Q ueer são, então, todos aqueles que não se ajustam a essa
norm a: as m u lh eres, na m ed id a em que não se assum em com o
“co m p le m e n to ” dos hom ens; as m inorias raciais e cultu rais; os
indigentes e sem família; os hom ens e as m ulheres que buscam sua
s a tis fa ç ã o p e sso a l em re la ç õ e s e e n c o n tro s fo ra dos p a d rõ e s
(g e n ita is , h e te ro s s e x u a is ); os q u e são o b je to de se g re g a ç ão e
desconfiança porque seu m odo de gozar é queer, alien, diferente do
esperado. O esperado não é aquele estatisticam ente majoritário, pois
em vista da diversidade do queer, temos que a m aioria da população
é a discrim inada. M as a ideologia oficial im põe-se pela força de um
biopoder (Foucault) que é efeito do discurso dos bons gozantes e
dos bons pensantes. O discurso é o instrum ento transindividual que
exerce sua força perform ativa independentem ente das instâncias do
sujeito, de seu acordo ou de seu desejo.
O b io p o d er se m an ifesta crian d o e d istrib u in d o rótulos de
identidade que pretender dizer, a partir da norm a, o que o outro é
em relação com o que deveria ser. Os sistem as classificatórios (a
psico p ato lo g ia em pim eiro lugar, desde fins do século XIX) são
poderosos discursos criadores de identidades anormais. O fascinante
processo de produção do queer foi estudado ex austivam ente por
M ichel Foucault; ele abriu novas frentes para um saber renovador
e crítico. Foucault não chegou a usar a palavra queer com o sentido
que ela tom ou anos depois de sua m orte e que prevalece até hoje.
Seus cursos no Collège de France55 são investigações exem plares,

54. T. Dean. Lacan and queer theory. In: Jean-M. Rabaté (éd.). The C am bridge
C om panion to Lacan. Cambridge: C am bridge Univ. Press, 2003. p. 238.
55. M. Foucault. Le p o u v o ir psychiatrique (1973-1973), L es a n orm aux ( 19 7 3 ­
1975), Il fa u t défendre la société, (1975-1976), N aissance de la biopolitique
(1978-1979) e L ’herm éneutique du su jet (1981-1982). Paris: G allim ard,
Seuil, 2003, 1999, 1997, 2004 e 2001. respectivamente. O conjunto c o n s ­
titui uma obra unitária e transcendente, cujo interesse para a psicanálise é
G ozo e sexualidade 161

co n tin u a d a s atu a lm e n te p o r m u ito s p e n sa d o re s re u n id o s sob a


rubrica da queer theory.
A hipótese básica dessa teoria é que a identidade sexual e a
identidade de gênero, da mesma forma que todas aquelas identidades
que recebem sua denom inação a partir da ideologia dom inante, são
total ou parcialm ente construções sociais que classificam e segregam
os “diferentes” . A conseqüência política desses estudos críticos é o
de um desafio ao biopoder e suas pretensões dogm áticas de lim itar
os cam inhos do gozo do Outro assim definido.
Em term os lacanianos poderíam os dizer que o Outro é aquele
que pretende gozar além da unificação que se queria m onopolítica
por parte do significante fálico. O gozo do O utro é o de quem se
d istan cia da norm a; é um gozo suspeito, a que dev eria lim itar e
su b m ete r à L ei. A Lei tem v o cação de p e rv e rsã o e n q u an to não
reconhece outro gozo além do que vem à luz sob o sol do órgão
erétil do homem, do falo com o semblante. A ordem heteronorm ativa
seria: “todos ao redor do falo e de seu substituto, o nom e-do-Pai” .
“Fora da igreja não há salvação” se dizia antes; “fora do nome-do-
P ai” tam pouco, dir-se-ia hoje com um tapete falso e arcaicam ente
lacaniano.
A teo ria q u e e r está a m e a ç a d a p e lo seu p ró p rio êxito . As
publicações se m ultiplicam , seus expositores são convidados para
d esen v o lv e r suas p o siçõ es em todos os fóruns, as liv rarias têm
prateleiras especiais para esses livros, a academ ia - longe de isolá-
la - oferece-lhe um lugar proem inente. Seu im pulso irreverente se
d e sv an e c e pelo su rg im en to de um a n ova n o rm a tiv id a d e e pela
co o p ta çã o na d istrib u iç ã o do poder, pelo m enos no intelectual.
N inguém ou quase ninguém se faz defensor aberto do pensam ento
straight, que passou a ser politicam ente incorreto. Não se terminou
com o sex ism o , com o racism o nem com a h o m o fobia, m as se
consegu iu que esses devem ser ocultados. O closet é agora o de
quem se trai a si próprio com lapsos c sintom as que delatam sua

evidente, ainda que as considerações feitas pelo autor nem sem pre sejam
" ju sta s”. Cf. J. Derrida, “Ê tre juste avec F reu d” , in P en ser la fo lie . E ssais
sitr M icliel Foucault. Paris: Galilée, 1992, p. 139-195, um texto que subli­
nha a injustiça na avaliação freudiana de Foucault.
162 G ozo

resistência a este conjunto de m inoria que continua sendo o objeto


de sua repulsa. N ão é que os bem p en san tes e os bem gozantes
tenham reprim ido - no sentido psicanalítico - suas perdas; é que
aprenderam a suprim i-las do discurso.56
D esd e o p rin c íp io os im p u ls io n a d o re s d e sse m o v im e n to
teórico e político estavam divididos quanto ao lugar que deveriam
dar, dentro de suas concepções, ao p ensam ento psicanalítico em
geral e ao lacan ian o em p articular. M uitos, p articularm ente nos
Estados Unidos, consideram que, além das discutíveis afirmações de
F re u d e d e L a c a n , e le s n ã o p o d e ria m p r e s c in d ir do a p o rte
p sicanalítico e de valorizar a utilidade que a teoria e a prática da
psicanálise têm para o sucesso de seus objetivos. Por outro lado,
a ssim c o m o n o s a n o s 1970 m u ita s p io n e ir a s do fe m in ism o
consideraram que Freud era o m ale ch a u vin ist p ig prom otor das
desgraças das m ulheres, existem vários autores que se lançaram e
ainda se lançam contra Lacan como se ele tivesse sido um evangélico
da h e te ro n o r m a tiv id a d e , a lg u é m q u e p r e te n d ia c o n d e n a r as
perversões em nom e de princípios patriarcais e discrim inatórios.
Estes últim os são os que insistem em se opor a Foucault contra um
L acan a quem satanizam com o o adversário. A luta em torno da
psicanálise no seio da queer theory é apaixonante.
G ostaria de poder dar conta das posições em jogo. Entre elas
o mais recente e decidido opositor à teoria e à prática da psicanálise
é D idier Eribon, que dá título ao nosso últim o item deste capítulo:
T e m o s q u e ele ger: é F r e u d ( L a c a n ) o u F o u c a u lt. É F o u c a u lt
ou a p sic a n á lis e . C re io q u e to d a a g ra n d e z a do p ro jeto
f o u c a u l t i a n o c o n s i s t e p r e c i s a m e n t e no f a to d e q u e e le p r o c u r a
d e s t r u ir a te o ria p s ic a n a lític a d o p s i q u i s m o i n d iv id u a l p a ra o p o r-
lhe u m a te o ria d a i n d iv i d u a ç ã o c o m o e f e i to d o c o r p o s u b m e ti d o ,
d o c o r p o d i s c i p l i n a d o . 57

56. Assim, o presidente Fox, do México, pôde declarar, em maio de 2005,


que “os m exicanos nos Estados Unidos aceitam trabalhos que nem sequer
os negros querenv'. O escândalo assumiu proporções internacionais, e ape­
sar disso o arrogante “estadista” se negou a pedir as desc ulpas que se lhe
exigiam e se limitou a dizer que havia sido mal interpretado.
57. D. Eribon. Ê chapper à la psyclianalyse. Paris: Léo Scheer, 2005. p. 86.
Gozo e sexualidade 163

P a ra E rib o n , b ió g ra fo e a m ig o ín tim o de F o u c a u lt, “ o


psiquism o do qual a psicanálise se ocupa é um produto da sociedade
d isc ip lin á ria e a p sic a n á lise é um a e n g re n a g e m da te c n o lo g ia
d iscip lin ária” (ibid.). E sta posição extrem a é vista com sim patia
tam bém em certos círculos lacanianos. Para Jean Allouch:
... o s p s i c a n a l i s t a s n ã o d e n u n c i a m o s e r r o s ; c a l a m - s e e s e
e sp a n ta m , fazendo com o se F o u c a u lt nos os houvesse
co m pro m etid o, com o se ele não houvesse articu la d o
p u b lic a m e n te u m a c rític a ra z o á v e l d a p s ic a n á lis e , alg o qu e
e q u iv a l e r i a a u m a e s p é c i e d e o r a ç ã o f ú n e b re [re p rim e n d a ] p a ra a
p s i c a n á l i s e . 5*1

Se a psicanálise é o que F oucault disse - continua Allouch -


está a cab ad a e isso “ in clu siv e d esde antes da m orte de L a c a n ”
(ibid.). Assim, reiterando um a frase anterior, acrescenta esta fórm ula
cortante: “A psicanálise será foucaultiana ou deixará de ser; isto quer
dizer que tem os a obrigação de fazer com que Lacan se reúna com
Foucault” (idem, p. 179). M ais ainda: “Foucault nos precedeu e nós
não tem os n ad a m elhor a fazer, com L acan, do que alc an ç á-lo ”
(idem , p. 173).
Vemos, então, a p sicanálise se enfren tan d o com quem quer
destruí-la e tendo que proteger-se de quem quer salvá-la seguindo
a o rd e m de a c o m p a n h a r F o u c a u lt. S u ste n ta re m o s nas p ág in a s
seguintes que todos eles partem de um erro de perspectiva e de um
desconhecim ento de que a p sicanálise, tanto em Freud com o em
Lacan, é o fundam ento irrenunciável e o antecedente direto do qual
a teoria queer deriva com o um a conseqüência lógica e necessária.
Tam bém desconhecem - no sentido da recusa da realidade - o que
falta em Foucault, o “esforço m ais” que havia permitido a ele romper,
radicalm ente, com o sistem a heteronorm ativo.
C om o disse Tim Dean:
P o d e in d ic a r que, ain d a que a teo ria q u e e r re m e ta sua
g e n e a lo g i a intelectual a M ic h e l F o u c a u lt, ela, na ve rdad e , c o m e ç a
c o m F reu d , e s p e cific a m e n te co m suas teo rias da perv ersid ad e
p o l i m o r f a , a s e x u a l i d a d e i n f a n til e o i n c o n s c i e n t e . O “ r e to r n o a
F re u d ” de L ac an im p lic o u re d e sc o b rir tudo aq u ilo que é m ais

58. J. A llouch. Le sexe du m aître, p. 169.


164 G ozo

e s t r a n h o e r e f r a t á r i o - t u d o a q u i l o q u e c o n t i n u a s e n d o a lh e i o
a n o sso s m o d o s n o rm ais e de se n tid o c o m u m no p e n sa m e n to -
acerca da su b je tiv id a d e hum ana. Isto , desde um a
p ersp ec tiv a a n g lo a m e ric a n a , faz a p s ic a n á lis e de L a c a n
p a r e c e r b a s ta n te q u e e r (...) A p s i c a n á l i s e l a c a n i a n a p o d e
a p o r ta r m u n iç õ e s que c o n trib u e m p a r a a c r í t i c a q u e e r da
h e t e r o n o r m a t i v i d a d e . 59

Essa crítica queer com eça, historicam ente, com a extensa nota
q u e F re u d a c r e s c e n ta ao s “ T rê s e n s a io s s o b re a te o r ia da
sexualidade” em 1915:
A i n v e s t i g a ç ã o p s i c a n a l í t i c a o p õ e - s e te r m i n a n te m e n te à
t e n t a ti v a d e s e p a r a r o s h o m o s s e x u a i s d o s o u t r o s s e r e s h u m a n o s
c o m o um g r u p o d e ín dole s in g u la r (...) S a b e q u e to d o s o s h o m e n s
são c a p a z e s d e e le g e r u m ob jeto d e seu p ró p rio se x o e q u e d e fato
o te n h a m c o n su m a d o n o in c o n s c ie n te (...) A p s ic a n á lis e
c o n s i d e r a m e l h o r q u e o o r i g i n á r i o a p a r t i r d o q u a l l o g o se
d e s e n v o l v e m , p o r r e s t r i ç ã o p a r a u m o u o u t r o lad o , t a n t o o tip o
n o r m a l c o m o o in v e rtid o é a in d e p e n d ê n c ia d a n o m e a ç ã o de
o b je to a r e s p e ito d o se x o d e s te ú ltim o , a l ib e r d a d e d e d i s p o r de
o b j e t o s t a n t o m a s c u l i n o s q u a n t o f e m i n i n o s , tal c o m o s e p o d e
o b s e r v a r n a i n f â n c i a , e m e s t a d o s p r i m i t i v o s e e m é p o c a s p ré -
h istó ric a s. N o se n tid o da p sic a n á lise , e n tã o , nem se q u e r o
in te r e s s e s e x u a l e x c lu s iv o d o h o m e m p e la m u lh e r é a lg o ó b v io ,
m a s u m p r o b l e m a q u e r e q u e r e s c la r e c i m e n to . 60 (G rif o s m e u s )

Freud sabia do que falava. N inguém ignora que essa posição


teórica é o resultado da análises de suas próprias tendências e dos
saldos de sua relação com Fliess.
N ão cansarei o leitor com citações que possivelm ente já sejam
conhecidas. Sabem os que quando se p erguntava a Freud sobre a
possibilidade de transform ar a orientação sexual de alguém ele dizia
q ue era m uito difícil, m ediante a p sican álise, alguém p assar da
h o m o sse x u a lid a d e p ara a h e te ro sse x u a lid a d e e v ice -v e rsa . N a
conhecida carta de 193661 à m ãe norteam ericana preocupada com

59. T. Dean. L ac an and queer theory, p. 238.


60. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. VII, p. 132-133.
61. S. Freud. E p isto la d o (1891-1939). Barcelona: Plaza y Janés. 1970. v. II.
p. 170.
( io/.o e sexualidade 165

,i hom ossexualidade de seu filho, depois de censurá-la por se negar


;i cham ar a coisas pelo seu nome, dizia-lhe sem rodeio que não havia
razões para se envergonhar dessa condição que não supõe vício nem
d e g ra d a ç ã o a lg u m a e q u e n ão se p o d e c la s s if ic á - la c o m o
e nferm idade, m as com o um a variante da função sexual. E certo
que, co m o no traçad o sob re a p sic a n á lise leiga, a m a io ria dos
psicanalistas seguiu um a política contrária às posições de Freud e
sabe-se que sua filha Anna, em 1956, im pediu que um a jornalista
inglesa reproduzisse essa carta no The O bserver. T odavia há, em
m u ito s p a ís e s , p s ic a n a lis ta s q u e c o n tin u a m p e n sa n d o q u e a
hom ossexualidade é um a enferm idade e que se deveria proibir os
gays de exercer a psicanálise.
L a c a n , q u e é c e n s u ra d o p o r h a v e r s u s te n ta d o em seu s
sem inários I (1953) e VIII (1960) que a hom ossexualidade era um a
m odalidade da perversão, foi um adm irador da obra de Foucault e
alguém que nunca fez, em sua trajetória institucional, outra coisa que
se o p o r a q u alq u er intenção de segregação dos p sicanalistas em
função de suas preferências sexuais. A palavra “perversão” jam ais
conteve, para ele, uma qualificação m oralizante e foi pensada sempre
co m o u m a c o n sta ta ç ã o c lín ic a que não d e v ia se m an c h ar com
valorizações que vulnerassem a neutralidade do analista. Lacan esteve
m uito atento aos progressos conseguidos pelo fem inism o na luta
pela ig ualdade e é evidente que suas teses sobre a fem inilidade,
apresentada no Sem inário Encore (1972-1973), são sua resposta às
críticas que se faziam às teses freudianas desde o M ovim ento de
Liberação Fem inina. A trevo-m e a dizer que suas concepções sobre
a repartição dos falantes entre homens e m ulheres e suas teses sobre
o gozo suplem entar são a co n trib u ição m áxim a da psican álise à
gozologia (erotologia) fem inina na história da hum anidade. A partir
delas o conceito de perversão m udou de signo e por isso podem os
sustentar que a perversão é a crença de que existe apenas um gozo,
o fálico, ao m esm o tempo em que desm ente a possibilidade de um
gozo O utro.
Igual a Freud, cabe assinalar que a posição nítida do m estre
en co n tro u resistên cias en tre seus m ais p róxim os colaboradores.
A inda hoje é possível ler que alguns de seus seguidores - e não dos
166 G ozo

menos im portantes - com o é o caso de Charles M elm an/’2 em que


p e se c e rta s d e n e g a ç õ e s in c id e n ta is , a rg u m e n ta m s o b re a
h o m o ssex u alid ad e d esde to m ad as de p o sição in eq u iv o cam en te
homofóbicas:
E v e rd ad e que o h o m o sse x u a l não e le g eu seu d e stin o
[c u sta -n o s a d m iti-lo e, a in d a a ss im , q u e tr is te d e s tin o /] e q u e as
m esm a s forças que em ou tro s c o n d u z e m à h e te ro ssex u a lid a d e
re v e l a m n e le s, às v e z e s p a r a p r o f u n d a s u r p r e s a d o s u j e it o e se m
q u e p o s s a e v i t á - l o [ta l c o m o , c la r o , e le m e s m o g o s ta r ia d e te r
p o d id o e s c o lh e r ] , q u e e le e s t a v a d o o u t r o la d o ( sic ). A p e n a s a
re lig iã o p o d e c o n d e n a r a d e s o n ra ou a e x c lu s ã o [não n ó s, os
p s ic a n a lis ta s , q u e e s ta m o s e x c lu íd o s d e s s e p r iv ilé g io ] . D i t o isto,
p a r e c e p o s s ív e l f o r m u l a r u m j u í z o é tic o , q u e p a r ti r i a m e n o s da
ne ce ssid a d e geral de se g u ran ç a narcisística in d u zid a po r um a
se x u a lid a d e d ifere n te e q u e f o r m u la r ía m o s a partir d e sta pergunta:
a h o m o s s e x u a li d a d e d á ao su je ito u m a m a i o r lib e rd a d e a re sp eito
d e s ta o r d e m d a l in g u a g e m d o q u e p e lo v ié s d o i n c o n s c i e n t e n os
d e t e r m i n a ? [ q u e m f a l o u d e m a i o r o u m e n o r lib e r d a d e a n te a
lin g u a g e m e m f u n ç ã o d a s p r e fe r ê n c ia s se x u a is ? ]. A p e n a s p o d e -
se r e s p o n d e r n e g a t i v a m e n t e . A p e r v e r s ã o [ a s s im ila d a , s e c o m
u m a v a lo r a ç ã o p e jo r a tiv a , à c o n d iç ã o d e h o m o s s e x u a l] é u m
siste m a de c o n stra n g im e n to s e de d e p e n d ê n c ia s a in d a m ais
ríg id o d o q u e a q u e le q u e e la i m p u g n a p e la s u a i n s u f ic iê n c ia , seu
c a r á t e r p r o s a i c o o u s u a e s t u p i d e z [ D e s te la d o s o m o s isso , m a s
“d o o u tro la d o ” n o s g a n h a m ], É p o r isso q u e não se p o d e ace ita r
q ue a p e rv e rsã o h o m o sse x u a l seja p o rta d o ra de e m a n c ip a ç ã o ;
p a re c e q u e u m a in v a s ã o p ela o rd e m fá lic a tem in c id ê n c ia s
e s s e n c i a l m e n t e c o n s e r v a d o r a s , m e s m o q u a n d o se o p o n h a a o mal
g o sto estabelecido.

E sta s são as lin h a s fin a is de um g ra n d e a rtig o so b re a


h o m o s s e x u a lid a d e d e s d e u m a p e r s p e c tiv a q u e se p re te n d e
rigorosam ente clínica e lacaniana. O autor não deixa de lamentar que
na hom ossexualidade masculina com o na fem inina encontra-se uma
se n te n ç a in u m a n a d o pai em to d a s as fig u ra s q u e p u d e sse m
representá-lo; ódio, chega a dizer, que com um ente é transm itido por

62. Ch. Melman. D ictionnaire de la psych a n a lyse. Verbete “ Hom osexualité” .


Paris: Albin Michel, 1997. p. 276-282.
Gozo e sexualidade 167

um a m ãe q u e e n c o n tra no filh o a fo rm a de v in g a r-se por sua


castração.
Reproduzi fiel e amplamente as opiniões de Melman para deixar
claro que as críticas de Foucault à psicanálise não são infundadas,
m as não podem se re fe rir à p sic a n á lise em g eral, mas a certos
paladinos da norm a que se distanciam explicitam ente do discuro de
Freud e Lacan: a delfina efetiva no prim eiro caso, A nna Freud, e o
delfín frustrado no segundo, Charles M elm an. N ão obstante, isso é
0 anedótico. O que verdadeiram ente im porta é a contribuição da
psicanálise ao tema e a política que a prática e a teoria da psicanálise
induzem . N esse sentido é que abraço a tese c itad a de Tim D ean
sobre o caráter pioneiro do pensam ento freudolacaniano para uma
autêntica teoria queer. E não é que a psicanálise deva correr atrás
de F oucault com a esperança de alcançá-lo (A llouch), mas que é
Foucault quem , ao renegar os desenvolvim entos de Freud e Lacan,
cai em f o rm u la ç õ e s a m b íg u a s q u e tu rv a m os c o n tu n d e n te s
resultados de suas ricas investigações arqueológicas e históricas.
A que me refiro? À ignorância nada inocente - de muitas coisas
Foucault poderia ser acusado, mas jamais de ignorância e ingenuidade
- e ao silêncio sobre a pulsão de morte em Freud e do conceito de
gozo em Lacan, tudo isso que, segundo dem onstram os no capítulo
1 deste livro, obrigava a reescrever a história da psicanálise para nela
in s c r e v e r q u e d a s q u e d ã o s e n tid o ao s p a s s o s p ré v io s do
descobrim ento freudiano.
Iniciando por Freud, assinalamos, além disso: a) suas já citadas
idéias sobre a hom ossexualidade, totalm ente contrárias a qualquer
heteronorm atividade; b) a afirm ação da perversão polim orfa com o
berço da subjetividade que subjaz em todos os seres hum anos ao
longo de toda su a vida; c) a n o ção de que todas as pulsões são
parciais e aspiram um a satisfação que não encontram e que impele
sem pre adiante na busca de novas m etas; d) a superação de toda
perspectiva biológica ou biologizante para entender a sexualidade
hum ana; e) a afirm ação do caráter transgressivo da pulsão que não
se a ju s ta com as m e ta s do p r in c íp io d o p ra z e r, m as q u e as
prejudicam num percurso que leva o sujeito “além ” ; f) a tese de que
essa pulsão de m orte é a essência da pulsão que sem pre está mais
ou m en o s lig a d a às p u lsõ e s de vida; g) o c a rá te r rep e titiv o da
168 G ozo

insistência pulsional; e h) a (condenação) de toda possibilidade de


com plem entaridade através de um a genitalidade alcançada (sem pre
alvo dos sarcasm o s de L acan ); enfim , tudo na teoria de F reud
consp ira con tra um a leitura n orm ativa e defende a e ssên cia da
psicanálise: escutar o que é dito em cada análise, em cada minuto
do d iscu rso do p acien te, ren u n cian d o e co n testan d o todo saber
prévio. A teoria das pulsões e de sua especificidade transgressiva,
repetitiva, m asoquista ao m áxim o, é a base para começar a pensar uma
teoria queer, contrária à assunção de identidades provenientes do
Outro.
A teoria queer é que está am eaçada pelo desconhecim ento da
psicanálise quando acredita que um a identidade gay ou lésbica ou
sadom asoquista ou que quer que seja, pode ser um im pedim ento
contra a heteronormatividade, sendo que essas identidades procedem
de classificações e juízos elaborados pelo Outro. Não é invertendo
o sig n o da d isc rim in a ç ã o q u e e la é d e rro ta d a . A in v e stig a ç ã o
psicanalítica é uma ferram enta essencial para a desconstrução das
categorias norm ativas. Por que? Porque perm ite revelar em cada
caso a singularidade do desejo, base para a form ação posterior de
m ovim entos com un itário s onde se ju n tam , sem se confundir, os
sujeitos rodeados por um a taxonom ia que sem pre é um efeito da
hostilidade do outro, hostilidade que se disfarça em objetividade e
que pretende fazer parecer o que é diferente com o se fosse disforme,
cam bem be, digno de ser corrigido.
E do lado de Lacan? L acan aportou, além de um a releitura
d e sm istific a d o ra e antico n v en cio n al de Freud, os co n ceito s que
podem servir de base para um a teoria irrecuperável pelo discurso
oficial. C oncretam ente, a im pugnação das m etas de “m aturidade
genital” que prim avam no discurso analítico quando ele iniciou seu
e n sin o e - o m ais im p o rta n te , aq u ilo no qual in sistire m o s - a
prom oção do conceito de gozo ao lugar central da reflexão analítica.
O gozo como - insistim os - o pólo oposto ao desejo. Entre os dois,
e n tre g o zo e d e se jo é que se jo g a a to ta lid a d e da e x p e riê n c ia
subjetiva. Em am bos os casos trata-se de um sujeito im erso nas
redes da linguagem, cindido e separado do objeto que é causa de seu
desejo e ev o cad o r do gozo p roibido. C om o co n seq ü ên cia dessa
onipresença da dim ensão gozante da existência é que se sucedem as
Gozo e sexualidade 169

teses lacanianas que servem de o b stácu lo in transponível para o


im perialism o fálico que m arca nossa cultura e im pele os sujeitos a
viverem sob as grades que canalizam o gozo pelas valetas que o
poder cava.
O m onolitism o fálico nas fórm ulas lacanianas da sexuação é
todo o contrário de um a prostração ante os altares de Príapo. Desse
m onolito surge a tese de que a m ulher é não-toda com relação a ele
(Ele) e que ele nada pode a não ser sonhar com organizar o mundo
sob sua égide, que ele é, por sua vez, não-todo porque elas (não há
Ela) e x iste m e p o rta m a m en sag em de um g o z o su p lem en ta r,
irredutível à linguagem , sentido m as inexplicável nos term os do
im perialism o arrogante que conduziu a voz cantante na história. D aí
que Lacan termine falando da perversão, em uma linha coerente com
a freudiana, em termos de seu valor civilizatório e inovador, sem que
isso im plique criar um a nova ética de signo inverso à que dominou
o discurso oficial, o do senhor.
Por isso é que a co n clu são de L acan, co n seq ü ê n cia de sua
invenção do objeto de que a relação sexual não existe, é a base
para toda teoria queer. Não há qualquer relação norm al ou natural
en tre os sexos. S eu s g o zo s não são c o m p le m e n ta re s e o único
acordo possível entre eles com eça a partir do reconhecim ento da
heretogeneidade que não é nem biológica nem natural. As diferenças
culturais existem - que ninguém duvide disso - e elas são suscetíveis
de desconstrução. M as a diferença nos dois cam pos “a parte homem
e a parte m ulher dos seres falantes”63 não é um a invenção da cultura
- sem que por isso se rem eta a um a diferença biológica não é
suscetível de desconstrução,64 não é, com o alguns pretendem , “um
b in a rism o que é u m a p ro d u ção s e x is ta ” ,65 u m a c o n stru ç ão que
poderia ser destruída na m edida em que foi fabricada pela cultura.
N a perspectiva da psicanálise a contestação da divisão sexual em
hom ens e m ulheres tem um nome: desm entida da diferença entre os
sexos (“já o sei, mas é assim ” ).

63. J. Lacan (1973). Le sem inaire. L ivre XX. E n co re , p. 73-74.


64. J. Copjec. R ea d m y D esire. Lacan A g a in st ihe H isto ricists. C am bridge
(Mass): M IT Press, 1994. E spe cialm ente o notável capítulo 8 (p. 20 1­
236) “ Sex and the euthanasia o f R e ason ”.
65. D. Halperin. San F oucault, p. 67.
170 G o zo

O trabalho político ainda a ser realizado nesse campo é imenso


e e x iste m m u ltid õ e s q u e m ilita m n e sse se n tid o e c o n se g u e m
d iariam en te v itórias: ig ualdade ju ríd ic a ; não d iscrim in ação das
minorias sexuais sequer pela igreja ou exército; direitos à reprodução;
casais e casam entos hom ossexuais reconhecidos pela lei; fam ílias
monoparentais; mudanças na legislação sobre o nome dos filhos que
antes im punha o patroním ico; paridade nos postos de poder entre
homens e m ulheres; abolição da cultura do closet para os que vivem
fora da norm a hetero etc. A psicanálise não pode senão aplaudir esse
m ovim ento contrário aos ideais sociais m ilenares de adaptação a
normas repressivas; m uitos são os que encontraram em sua própria
análise o cam inho para se m anifestar abertam ente nesse sentido.
M as a ex ig ên cia da p sicanálise é m ais radical e vai além dessas
c o n q u is ta s n e c e s s á ria s que estã o fo rte m e n te re c o n h e c id a s na
tra je tó ria in d iv id u a l e te ó ric a de F o u c a u lt co m o h isto ria d o r e
desconstrutor das categorias segregacionistas, com o denunciante
dos abusos do biopoder.
E ju sta m e n te esse o valor da n o ção de g ozo que F o u cau lt
pretende desconhecer. Vejamos um p arágrafo m uito conhecido e
chave em nossa argum entação:
A se x u a lid a d e é u m a fig ura história m u ito real, e ela m e s m a
su s c ito u , c o m o e le m e n to e s p e c u la tiv o r e q u e r id o p e lo seu
f u n c io n a m e n t o , a n o ç ã o de se x o . N ã o se d e v e a c r e d ita r q u e
d iz e n d o sim ao s e x o se d ig a n ã o ao p o d e r; s e g u e -s e , p elo
c o n tr á r io , o fio d o d is p o s i t iv o d e s e x u a li d a d e . Se m e d i a n te u m a
i n v e r s ã o tá t i c a d o s d i v e r s o s m e c a n i s m o s d a s e x u a l i d a d e se q u e r
f a z e r valer, c o n tr a o poder, o s c o rp o s, o s p r a ze res , os s a b e re s e m
sua m u ltip lic id a d e e sua p o ssib ilid a d e de resistência, c o n v é m
p rim e iro lib e rtar-se d a in stân c ia d o sexo. C o n tra o d is p o s itiv o d a
s e x u a lid a d e , o p o n to d e a p o io d o c o n tr a - a ta q u e n ã o d e v e s e r
o se x o -d e se jo , m a s o s c o rp o s e o s p r a z e r e s .66 ( G rif o s m e u s )

O texto de Foucault é de 1976. Lem bram os que é de 1958 a


citação do sem inário de Lacan que declaram os com o ata de batismo
do gozo, aquela onde se dizia que até então o ensino de Lacan havia

66. M. Foucault. H istoria de la sexualidad. I - La volunta d de saber. M éxi­


co: Siglo V eintiuno, 1977. p. 191.
Gozo e sexualidade 171

girado em torno do desejo, mas que a partir desse m om ento deveria


ser lev ad o em c o n sid e ra ç ã o o “p ó lo o p o s to ” que é o gozo. Já
sabem os que a partir de então o ensino lacaniano girou em torno da
contraposição do gozo e o desejo e que encontrou seu ponto decisivo
de in fle x ã o q u an d o , em 1962, no se m in á rio so b re a a n g ú stia ,
introduziu a noção de objeto@ com m ais de gozo. O “pólo oposto”
im plica que o desejo foi considerado a partir daí um a barreira no
cam inho do gozo. Por essa razão nossa obra desde 1990 tom ava a
form ulação de Lacan de 1960, quando afirm ava que apenas o am or
pode fazer com que o gozo condescenda ao desejo, e a invertia na
últim a linha - que tam bém poderá ser lida nesta nova edição - ao
postular que apenas o am or pode fazer, por sua vez, que o desejo
condescenda ao gozo. Pois é a instância analítica que perm ite levar
o su je ito a c o n fro n ta r-s e com seu d e se jo , m o m en to em que a
experiênca deverá ser interrom pida para perm itir ao sujeito procurar
os cam inhos pelos quais poderá transitar para que seu desejo abra
cam inho ao gozo. Isto não é F oucau lt contra-atacando em nom e
“dos corpos e dos prazeres” ; isto é Lacan trabalhando bravam ente
nessa direção durante m ais de vinte anos (1958-1981).
O problem a é que Foucault chega a problem atizar o sexo como
cam inho ao gozo e isso o com prom ete pelas vias de um a nova ética,
desconhecida pela m aioria dos foucaultianos, m as que não passou
despercebida pelos leitores mais lúcidos: um a ética com prom etida
com o ascetism o e com a desconfiança, quando não à refutação da
se x u a lid a d e (“o d is p o s itiv o d a ...” ) c o n s id e ra d a , p o r su a vez,
m ecanism o do biopoder.
É certo que não devem ser entendidas ao pé da letra as afir­
m ações de Foucault que parecem dizer o contrário do que ele quer
realm ente dizer. M as com o sabê-lo? Estarem os dispostos a adm itir
com ele que a sexualidade (“o dispositivo de...”) é repressiva, des­
p ó tic a , d e stin a d a a d is trib u ir aos in d iv íd u o s su b m e te n d o -o s a
hierarquias? Não acham os suspeita a prom oção das “artes da exis­
tê n c ia ” ,67 pelas q uais d evem os e n te n d e r “ as p ráticas sen satas e
voluntárias por meio das quais os hom ens não apenas fixam regras

67. M. Foucault. H istoria de la sexualidad. II - El uso de los p laceres. M éxi­


co: Siglo Veintiuno, 1986. p. 313-314.
172 G o zo

de conduta, m as buscam transform ar-se a si próprios, m odificar-


se em seu ser singular e fazer de sua vida um a obra que apresenta
certos valores estéticos e responde a certos critérios de estilo” ? Não
são estas artes, estas technologies o fth e self.,68 este “cuidado de si”,
esta “estética da existência”, uma continuação e uma culm inação das
aspirações do senhor que não reconhece a servidão necessária im ­
posta pelas pulsões e por seu caráter linguageiro? Não caem sobre
os om b ro s dos su jeito s o fardo de novos ideais que con serv am
gatopardianam ente aquilo que pretendem m udar? Q uando ouvim os
um de seus m ais autorizados continuadores, Paul Veyne, dizendo:
P o d e m o s a d iv in h a r o q u e r e s u l ta d o d i a g n ó s ti c o [de
F o u c a u l t ] : o e u (m o i), q u e t o m a a si m e s m o c o m o u m a o b r a a
realizar, p o d ia su s te n ta r u m a m o ral não b a s e a d a na trad ição ou na
razão; c o m o artista de si m e s m o , g o z a r ia d e s s a a u to n o m ia d a qual
a m o d e r n i d a d e j á n ã o p o d e p r e s c i n d i r (...) Já n ã o é n e c e s s á r i a a
re v o lu ç ã o p a ra c o m e ç a r a nos a tu a liz a rm o s: o eu é a nova
p o s s ib i l id a d e e s t r a t é g i c a . 69 ( g rifo s d e P. V e yn e)

não nos estrem ecem os pensando que voltam os ao reino da ilusão de


um eu autônom o, dono de si, superado etc.? E assim sucessivam en­
te com ênfase na ascese, a insistência em “resistir à sexualidade” ,
a ordem de “liberar-se da instância do sexo”, a referência à desse-
xualização (claro, entendida como desgenitalização) etc. As citações
seriam supérfluas. Não em vão tem os ouvido Jean Allouch susten­
tar que o m ais im portante filósofo no ensino de Lacan era... Plotino,
depois de dar um sem inário na cidade do M éxico sobre o tem a do
amor e no qual a palavra “gozo” não foi pronunciada uma única vez.7(1

68. L. Martin (ed.). Technologies o f the Self. A Sem in a r with M ichel Foucault.
Amherst: M assachuse tts Univ. Press, 1988.
69. Paul Veyne. Le dernier Foucault et sa morale. C ritique, Paris, n. 471-472,
p. 939, 1986.
70. Ao interrogá-lo em um a cordial conversa sobre essa exclusão, respondeu-
nos que preferia não falar do gozo porque “os millerianos” ha viam se apo­
derado da palavra em questão. Curioso critério epistemológico! Para não
ser injusto com nosso amigo, digam os que no seu livro Le sexe du m aitre
(op. cit.) há u m a sábia e certeira exposição sobre o objeto @ c o m o m ais
de gozo e do caráter m asoquista de todo gozo (p. 205-240) que c o m p a rti­
lham com o sentido e com a letra de nossas formulações de 1990.
G ozo e sexualidade 173

Talvez agora possam os co m p reen d er o título deste item . É


Freud (Lacan) ou Foucault pela insistência deste último em bagunçar
os conceitos fundam entais da p sicanálise (transferência, pulsão,
inconsciente e rep etição ; vale a pena reco rd ar) para reim plantar
novos ideais, para prom over um a nova ética que pretende superar
a antiga que levou à liberação da sexualidade dos traiçoeiros gabinetes
da ciência oficial (Ferenczi, op. cil.) e a um trabalho com intenção
de fazer com que o sujeito procure cam inhos pelos quais o desejo
pode condescender ao gozo.
T am pouco cabe fechar os olhos ante o grande escotom a de
F o u c a u lt q u e tem as d im e n sõ e s de u m a se m ic e g u e ira: o gozo
fe m in in o . N a o b ra do h is to ria d o r e d e s c o n s tru to r os p ra z e res
aparecem como indiferenciados e as referências concretas se dirigem
sem p re ao p ra z e r d os h o m e n s, q u e e le s p o d em a lc a n ç a r com
hom ens, m ulheres ou adolescentes. Um capítulo inteiro da H istória
da sexualidade71 intitula-se “A m ulher” , sem qualquer referência à
sexualidade fem inina. Todo discurso gira em torno do casam ento e
do lu g ar que a m u lh er o c u p a com o g u a rd iã do lar do hom em ,
obrig ad a a p restar-lhe fidelidade: “O adultério era ju rid icam en te
condenado e m oralm ente censurado pelo entendim ento da injustiça
que o homem fazia àquele cuja m ulher seduzia” (idem, p. 159). Que
ninguém espere encontrar um a linha sobre a m ulher com o sujeito do
“p ra z e r” , m uito m enos com o gozante. R aras vezes aparecem na
obra escrita e nas m últiplas entrevistas que concedeu, referências
explícitas aos m ovim entos intelectuais e políticos que agitavam a
sociedade nos últimos 15 anos da vida de M ichel Foucault. Por que?
Por ser a categoria de feminilidade uma invenção sexista? Para evitar
cair nas arm adilhas do dispositivo da sexualidade sobrevalorizando
o sexo com o fonte de “prazer” (já que não se falava de gozo)? Por
um a negativa geral em diferenciar, já que a distinção seria cúm plice
da segregação? Inclino-m e a pensar “m al” , a acreditar que Foucault
não podia adm itir outro p razer sexual que o m asculino, hom o ou
hetero; isso é secundário. N ão sei o porquê deste desconhecim ento;
nego-m e a fazer psicanálise aplicada. Seu hagiógrafo disse:

71. M. Foucault. H istoria de la sexuatidad. H l - La in q u ie tu d de sí. M éxico:


Siglo Veintiuno, 1990. Gap. V, “ L a m ujer” , p. 137-193.
174 G o zo

F o u c a u lt n ã o e ra u m m o n s t r o a n tif e m in is ta c o m o o f ig u r a m
s e u s d e t r a t o r e s . P e l o c o n t r á r i o , t r a b a l h a v a c o m m u it o e n t u s i a s ­
mo com suas c o le g as m u lh e re s , a p o ia v a o su rg im e n to de
o r g a n i z a ç õ e s p o lític a s de g r u p o s m a r g i n a i s , in c l u i n d o o d a s m u ­
lh ere s [até isso ! ] e t in h a a i n t e n ç ã o d e q u e L ib e r a tio n lhe d e s s e
v o z a v á r ia s t e n d ê n c i a s e m e r g e n t e s d e n t r o d o m o v i m e n t o f e m i ­
n i s t a . T a m b é m p a r t i c i p o u , e m m e n o r p r o p o r ç ã o , n a l u ta p e l o
direito ao a b o r to n a F r a n ç a . 72

F a lta s u b lin h a r a d e n e g a ç ã o im p líc ita em c a d a um dos


enunciados. E é suficiente ler as várias (três) biografias de Foucault
para saber do despojam ento de suas referências sobre o fem inism o
e seu silêncio sobre a especificidade dos prazeres fem ininos e das
práticas eróticas do sexo que não o seu.
E s ta c r ític a a F o u c a u lt n u n c a p o d e r ia d e s c o n h e c e r a
im portância capital de seus estudos antes e depois da H istória da
sexualidade. R esum irem os nossas teses unindo-nos às conclusões
do já citado artigo de Tim D ean:7-1 o conceito lacaniano de gozo é
um a ferram enta necessária para qualquer propósito de m odificar o
cam po epistem ológico da vida dos seres que falam, de suas vidas
com o realidades corporais. Infelizm ente a m aneira com o Foucault
abordou o tem a “dos p razeres” - desconhecendo sua d iferença e
oposição ao gozo - levou m uitos teóricos queer e tam bém alguns
psicanalistas a ver com otim ism o o prazer, como se ele não estivesse
em aranhado pelo seu “além ” e pudesse se expandir sem encontrar
o u tra s b a rre ira s q u e n ão as c u ltu ra is à q u e la s q u e h a v e ria de
desconstruir. N essa utopia foucaultiana pareceria que os obstáculos
à fe lic id a d e sex u al dos co rp o s fo ssem um sim p les p la n o m al
concebido proveniente do exterior; com o se não existissem barreiras
internas para o prazer, inerente à m ontagem linguageira da pulsão.
E absolutam ente ingênuo supor que o sexo possa chegar a ser apenas
um a questão de prazer e afirm ação de si, de cuidado e de dom ínio,
no lugar de ser o ponto onde necessariam ente um se encontra com

72. D. Halperin. San F oucault, p. 182-183.


73. T. Dean. Lacan and queer theory, p. 251.
G ozo e sexualidade 175

a n e g a tiv id a d e e com o g o zo co m o u m a b u sc a , com in d íc io s


m asoquistas, de um objeto do desejo que se escapa. Isso é o que
Freud entendeu com a idéia que descartam Foucault e a m aioria dos
que se inspiram nele: a pulsão de morte. Não, não devem os alcançar
um Foucault que está adiante da psicanálise. D evem os entender que
é a teoria queer que será ou não lacaniana. O trabalho ainda a ser
realizado não é excessivo: basta incorporar a categoria psicanalítica
de gozo com o além do prazer; é o que perm itirá à teoria passar da
im potência à im possibilidade. O preço é a renúncia ao m essianism o
e à soteriologia.
IV

Deciframento do gozo

1. O g o zo e stá cifrado

A bordarei, aqui, um m om ento crucial, de virada, no ensino de


Lacan, um m om ento que requer um trabalho especial para elucidar
os a n te c e d e n te s q u e têm em su a p ro d u ç ã o e p a ra e x tr a ir as
conseqüências que acarreta para a prática da análise. R efiro-m e à
expressão que figura no texto Televisão:
O q u e F r e u d a r ti c u l a c o m o p r o c e s s o p r i m á r i o n o i n c o n s ­
c ie n t e - isto é m eu , m a s q u e m p r o c u r a r e n c o n t r a r á n ã o é alg o
q u e se cifra, m as que se decifra. E u digo: o próprio gozo. N e s t e c aso
e le n ã o c o n s titu i e n e r g i a e n ã o p o d e r ia se i n s c re v e r c o m o t a l . 1

A proposição é taxativa e definitiva. É tão imponente o que ela


m obiliza e desloca na teoria que o com entário do texto obriga a uma
releitu ra do ensino anterior de L acan e a um a reflexão do texto
freudiano em seu conjunto. E sta tese condensa e concretiza um a
n ova co n cep ção teórica da p sican álise, solidária com as dem ais
modificações que, na m esma época, se apreciam na sempre inquieta,
inquietante, revisão lacaniana de Freud.
Q ue me perdoem a ênfase na literalidade e o afã exegético
lim itante na repetição: o que está cifrado é o gozo, é por isso que

1. J. L acan (1970), A utres écrits (A.E.). P aris: Seuil, 2001, p. 522.


178 G ozo

pode ser d ecifrad o . Q uem o d e c ifra ria? Um bom d ecifrad o r: o


processo prim ário (no singular?) articulado por Freud, ou seja, o par
da condensação e deslocam ento. É um a expressão diáfana, não se
presta a m al-entendidos: o processo prim ário, o inconsciente, não
é cifra, não é ocultação, é com eço de desvelado (aleth eia ). Ele é
agora e sem pre d ecifram en to , passagem do cifrado, da letra, do
escrito, do codicilo, da partitura, para outro terreno, o da palavra,
o do d is c u rs o . A p o n ta p a ra um o u tro q u e lh e o u to rg a rá um a
significação, que o incluirá nas redes do sentido, possibilitará que seja
im aginarizado, relacio n ad o com um eu do en unciado. Indica-se
assim u m a p a s sa g e m do in d iz ív e l [S (A )] p a ra a a rtic u la ç ã o
sig n ific a n te [s (A )]. A ssim , o p ro c e sso p rim á rio serv e p ara a
passagem do gozo ao discurso. Em outras palavras, o inconsciente
freudiano, que opera por condensação e deslocam ento, é o processo
pelo qual o gozo, cifrado, é decifrado e transladado para o vínculo
social, p ara a p a la v ra a rtic u la d a e d irig id a a alguém , p ro n ta a
carregar-se de sentido em quem escuta. Pronta a mal-entendido.
O gozo é assim transplantado, exilado do corpo para a lingua­
gem: “Fazer passar o gozo para o inconsciente, ou seja, para a con­
tabilidade, é com efeito um maldito (sacré) deslocam ento”.2 Valham
as redundâncias: o inconsciente não é o lugar originário do gozo que
é gozo do corpo. É desde esta pátria que o gozo deve tom ar o ca­
m inho do exílio e passar a habitar no discurso e recuperar-se nele.
R etorno im possível e eterno retorno. O sujeito constituir-se-á no
ostracism o, indo do U m originário ao Outro da palavra. Já não ha­
verá para L acan espaço no qual sonhar com “a palavra plena e a
palavra vazia na realização psicanalítica do sujeito”, título do primeiro
item do discurso de R om a.3 As palavras faltarão daqui em diante
para que a verdade possa ser toda dita. Verdade do Um, gozo, e ver­
dade do O utro da linguagem e da cultura, saber absoluto, as duas
esquartejando-se reciprocam ente. Entre am bas, o sujeito da psica­
nálise, partido, barrado, varrido por sua dupla pertinência.
A e x p eriên cia da p sican álise tem com o ponto de partid a a
palavra, a m ansão do dito (a referência a H eidegger é óbvia), um

2. Idem, ibidem, p. 420.


3. J. Lacan (1953). É crits. Paris: Seuil, 1966, p. 247. E m espanhol, E scritos
1. México: Siglo XXI, 1984, p. 236.
Decifram ento do gozo 179

‘decifram ento de dit-m ension significante pura”.4 Esse é o cam po


fen o m ên ico re c o n h e c id o d esde um co m eço com o o p e rad o r do
primeiro retorno de Lacan a Freud, ao terreno da “verbalização” . É
neste cam po que o criador da psicanálise tropeça com um m otor
invisível da articulação e do jogo significante, de um “algo” inédito
que b an h a a p a la v ra e se m an ifesta com o re-to rsõ es da própria
a rtic u la ç ão p a la v re ira, “ tecid o de eq u ív o c o s, de m etáfo ras, de
m etoním ias”.5 Freud lhe dá um nom e mítico, libido e Lacan outro
nome igualmente mítico: lâmina (lamelle). A palavra de Freud perde
algo de seu poder evocador em português, confom e já dissemos no
prim eiro capítulo: “libido” é um vocábulo que pede ser pensado em
uma língua cm que o am or se diz Liebe. E o m ito freudiano. O de
Lacan é o da em anação de um a baba que se desprende do corpo e
recobre o cam po vital de um sujeito. As palavras giram em torno
desta coisa inconcebível “que Freud supõe no limite dos processos
prim ários”6 (aqui sim no plural) e que nada m ais é do que o próprio
gozo. A articulação significante, o trabalho do inconsciente, bordeja,
d e lim ita, d e s-lin d a (?!) esse gozo que e stav a cifrado, ignorado,
sep u ltad o em um co rp o e x te rio r à p alav ra. O gozo sub jacen te,
substancial, suposto pela experiência analítica de Freud em diante.
A decifrar.
G ozo do exílio e da nostalgia pela m aldição (necessária) de
habitar na linguagem , fora do paraíso. Esse gozo sem o qual seria
in ú til o u n iv e rso ,7 m as q u e não se a lcan ça, e sim se ev o ca, se
circunscreve, se deslinda, se convoca, m antém -se a um a distância
p ru d e n te p o r m eio de m e tá fo ra s que p re n d e m ao sen tid o e de
m etoním ias que o postergam . Pois sim, a relação da palavra com o
gozo é o que faz da psicanálise um a ética do bem dizer.
Um decifram ento e um maldito deslocam ento do Um ao Outro.
Do g ozo ao desejo que é, como sem pre, d esejo do O utro. E que,
também com o sempre, com o sempre em Lacan, é falta a ser, nostalgia

4. J. L acan (1970). A. E., p. 515.


5. Idem, ibidem.
6. Idem, ibidem.
7. J. L acan (1960). É crits, p. 819. E m espanhol, E scritos 2, México: Siglo
XXI, 1984. p. 800.
180 G ozo

de um passado m ítico a ser recuperado em um futuro não menos


ilusório, m ediante o fantasm a vivido no presente. O inconsciente é,
então, um dizer que se diz (enunciação) a partir daquilo que do gozo
se inscreveu. Inscrição de um a escritura que suporta uma e muitas
leituras. O gozo se adere no dizer que o decifra. M as o sujeito não
sabe e não quer saber nada de tal transcrição. Com as palavras de
1973, “o in c o n sc ie n te não é q u e o ser p en se (...) é q u e o ser,
falando, goze e não queira saber nada mais sobre isso”. N esse dizer,
o go zo “c o n siste (...) nos d e sfila d e iro s ló g ico s”8 p elo s quais o
discurso atravessa.9 Os processos prim ários não realizam o desejo
(com o poderiam , se seu resultado é alucinatório?), mas satisfazem
um sujeito que o ignora, quando utiliza recursos que são os de sua
alíngua aí onde p ensa que obedece à língua dos lingüistas e dos
g ra m á tic o s . C a d a um com seu m o d o p e c u lia r de e s v a z ia r os
tesouros de alíngua originária, linguageira, lingüistéril. E aesse modo
singular de viver nas m argens da língua cham a-se estilo. Pelo que
se pode aventurar esta outra definição - mais u m a -d o inconsciente:
é o estilo de cada um para d ecifrar seu gozo, para filtrá-lo pelos
desfiladeiros lógicos que o dosificam e que se pretende am pliar na
experiên cia da análise. Pois a palavra é o diafragm a do gozo e a
neurose exibe um a obturação rígida que impede o contato do gozo
com o dizer.
O que se diz é o gozo, mas o gozo, próprio do dizer, desapa­
rece no dito, fica esquecido, é um resto perdido porque passa pela
bateria significante da língua que o leva a se carregar de sentido, esse
sentido que o outro escuta no que en ten d e.10 Entre o fato de dizer
(enunciação) e o produto que se recolhe (o enunciado) há um es­
quecido constituinte que é o do gozo de quem falou. O real irrecu­
perável travestido no sentido. E não há dito sem dizer. O dito disse,
sem sabê-lo, uma perda. Para nós, o modelo do dito é o que se diz
na análise. A psicanálise tem um material sobre o qual trabalha: a di­
ferença entre o dito e o dizer. H á sem pre um destino inelutável que
se im põe à cadeia dos significantes e que se pretende perdoar na

8. J. Lacan (1973).L e sem inaire. L ivre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975. p. 95.
9. J. Lacan (1970). A. E., p. 515.
10. J. Lacan (1973). A. E., p. 449.
D ecifram ento do gozo 181

experiência da análise, na qual o outro da elocução é um outro que


não entende e que devolve ao que fala a pergunta pelo gozo que ig­
nora em seu dizer. Funções do silêncio e da escansão no tem po e
espaço da sessão, presença do analista, esse que o é porque acei­
tou o conselho de evitar com preender. A interpretação é uma evo­
cação do gozo perd id o ao falar. Em tal m edida, rem ete ao real.
M esm o quando o analista, sem saber nada disto, tam bém ignore que
é no real do gozo que intervém .
Pois a palavra está espreitada e deslocada pelo sentido, essa
sombra imaginária que persegue, infatigável, os significantes que vão
se encad ean d o no discu rso . É a função da p alav ra no cam po da
lin g u a g e m . N o s te rm o s q u e L a c a n in s c re v e q u a n d o d iz su a
R a d io fo n ia , o s ig n ific a n te flu tu a p o r cim a da b a rra do signo,
enquanto o significado flui debaixo... ao que caberia acrescentar que
o referente escapa com o produto dessa operação, é o resto de real
que fica esquecido. Esse resto é o objeto @, causa do desejo, mais
de gozo (minus, enquanto gozo perdido para o falante) e semblante
do real que assim , e x c lu in d o -se , faz-se p re se n te no que se diz.
Simbólico da articulação significante, imaginário do sentido e real do
gozo evocado constituem a trindade onipresente em toda palavra.
Vazia de plenitude e plena de vacuidade.
E se a palavra não se diz? O sujeito fica eclipsado, posto que
já não há um significante que o represente ante outro significante.
O falante em udece e, em seu lugar, aparece o sintom a que é o re­
verso, desde o discurso, ao gozo, um gozo ignorado e repudiado.
Freud não tinha vergonha em definir o sintom a com o um a “satis­
fação sexual substituta” ; era sua form a de dizer que o sintom a é um
gozo não sentido e sem sentido, desarticulado. A palavra não dita,
desdita, é sintom a e gozo des-sentido, jouis-sens, escreverá Lacan,11
vocábulo intraduzível de alíngua lacaniana para o qual puderam ar­
riscar neologism os tais com o gossentido, eugozo, eugossentido.*
De qualquer form a, o gozo não é anterior, mas se constitui na
retroativ id ad e da p alavra, com o o saldo que ela nunca consegue
reintegrar, com o o que produz e deixa para trás em progresso. Baba

11. J. Lacan (1974). A. E ., p. 517.


* E m francês jo u is -se n s (goze-sentido) é hom ó fon o a jo u issa n c e (gozo) e a
j 'o u ïs sens (eu ouço sentido). (N. da T.)
182 G ozo

de caracol, nunca recuperada. N ão que o caracol se ancore ou se


tinja em sua baba, mas que em seu andar a segregue.12 “Não que o
significante se ancore (ancre) ou se tinja (encre) no prurido (...),
mas que o perm ita entre outros traços com que se significa o gozo
e cujo problem a é saber o que se satisfaz nele” . E assim, pela paixão
do sig n ifican te, é que o corpo se torn a o lug ar do O utro (1970,
idem ). E por isso que apenas cabe falar de gozo com relação ao
anim al que fala e cabe não supor o gozo fora da linguagem que o
constitui com o resto (real) perdido, @.
O in c o n s c ie n te , o d e F re u d e ta m b é m o de L a c a n , é
decifram ento. A verdade que fala por m eio do processo prim ário c
um a verd ad e de gozo, de gozo antieconôm ico, na contram ão do
p rin c íp io de p razer, da m en o r ten são , da h o m eo stase, da é tica
prudente do justo meio e da m oderação aristotélica. Nisto, L acan 13
tom a sua d istân cia com relação a Freud. C orrige-o. N ão há um a
te rm o d in â m ic a c u jo s p rin c íp io s d a ria m ao in c o n s c ie n te um a
e x p lic a ç ã o p ó stu m a (ib id .). N a v erd ad e, nem o sen tid o nem a
energética interessavam Freud. D o sonho recusava ambos aspectos,
um p o r não ser esse n c ia l, o o u tro p o r ser esp ecu lativ o ; apenas
ficav a, co m o aqu ilo p ro p ria m e n te p sic a n a lític o , o tra b a lh o do
sonho, que transform ava o desejo em um determ inado conteúdo
m anifesto, utilizando a m atéria-prim a dos pensam entos latentes que
se revelavam na sessão com o associações “livres” . Isto em 1933,
na “N ovas conferências introdutórias à p sicanálise” .14 E que mal
pese ao próprio Freud, “incom preendido, ainda que por si mesmo,
por ter querido fazer-se entender...” .15
N o in c o n s c ie n te n ão é o p ra z e r a ta rá x ic o , m as o g o z o
d esco n certan te que se d ecifra em um discurso. E esse discurso,
pelas som bras do'sentido que arrasta atrás de si, é ao m esm o tempo
desconhecim ento do gozo, alienação do gozo no cam po do Outro.

12. J. Lacan (1970). A E., p. 418.


13. Idem, p. 523. “Posto que esta fam osa tensão m enor com que Freud arti­
cula o prazer, qual o destino da ética de Aristóteles?”
14. S. Freud (1932-1933). Nuevas conferencias de introducción al psicoanáli-
sis. In: O bras com pletas. Buenos Aires: Amorrortu, 1979. v. XXII, p. 7.
15. J. Lacan (1970). A E., p. 407.
D ecifram ento do gozo 183

Se assim é, delim ita-se a possibilidade e o terreno da psicanálise


com o práxis ética: a recuperação (im possível?) do gozo perdido. Ou
ao menos a intenção. Que aqueles que encontrem nestas palavras um
eco de Proust não se sintam enganados pelas que vêm a seguir.
Gozar-se no despertar que atravessa os alam brados do sentido
e colocam ao pensante a p erg u n ta pelo ser. C om o alcançar esse
resu lta d o se não há à m ão m ais do que u m a p rá tic a de falação
(b a va rd a g e)! Do gozo em um a ponta, gozo cifrado, ao gozo na
o u tr a , g o z o r e c u p e ra d o . P o r iss o o a to p s ic a n a lític o e s tá
determ inado segundo o gozo e, ao m esmo tempo, pelos m odos que
requer para preservar-se d ele.16 E sta expressão sobre a natureza do
ato analítico deve se som ar e contrapor-se às já clássicas expressões
que aparecem em “Função e cam po da palavra e da linguagem em
psicanálise” (op. cit.), no qual se reconhece que a análise não tem
outro m eio, senão o da palavra. Sim , no m eio da palavra, com o
m e io d a p a la v ra , no m e io d iz e r d a v e rd a d e , m as tu d o isso
determ inado por algo que não é palavra, mas gozo, gozo do corpo,
coceira perm itida pelo sig n ifican te quando sacode e rasura tanto
q u an to p ossível o sen tid o q u e som ente ap arece à m edida que o
sujeito se aliena de seu gozo ao ofertá-lo ao Outro da significação.
Esta “rasura” 17 do sentido aponta para a recuperação do gozo perdido
pelo único meio ao alcance do falante, o gozo do decifram ento.
D este gozar do decifram ento, Lacan faz o traço definitório de
um a nova relação do sujeito com o saber, o gaio saber considerado
um a virtude, por certo um a virtude pecam inosa. É o aspecto ético
da teo ria do gozo que ab so rv erá o capítulo 8, ao term inar nosso
p ercurso.
No final desta gaia ciência, não há outra coisa senão a queda
no p e cad o p ela re c o n c ilia ç ã o do sab er e o g ozo p ro ib id o , p ela
evocação do gozo nos intervalos da palavra quando se atravessa a
superfície especular do sentido. U m gozo que vai além da impotência
frente ao real, não para encontrá-lo, mas para m arcar esse real como

16. J. Lacan. C om ptes re ndus d ’enseign em en t 1964-1968. O rnicar?, n. 29,


p. 24, 1984. E m espanhol, Reseflas de ensênanza. In: Hacici ei Tercer
E ncuentro d ei C am po F reudiano. Buenos Aires, 1984, p. 58. A citação é
de 1969.
17. J. Lacan (1974). A. E., p. 526.
184 G ozo

im possível, e que denuncia o eu com o aliado da realidade exterior


e de suas cam isas-de-força tecidas pela convenção e pela obediência
às dem andas do O utro. Um g o zar do decifram ento que rem ete à
realidade essencial do sujeito, esse real além do im aginário e do
sim bólico, que é tocado e deslindado pelos processos prim ários que
imperam no inconsciente, pelo dizer de metáforas e metonímias que
engancham o gozo im possível de articular. G ozar na fronteira do
im possív el, g o zar do d ecifram en to do gozo cifrado, num erado,
contabilizado, gozar de um saber que não preexiste ao dizer e que,
portanto, não é descoberto, a não ser que o invente. R eencontrar-
se com esse gozo que subjaz ao fato de falar, mas do qual o sujeito
nada quer saber, afirmar o gozo pelo estilo ou pelo estilete da palavra
que o inscreve no O utro ao qual ela se dirige. E, no final, nenhum a
com pletude, um a queda no pecado. “Oh. Inteligência, solidão em
c h a m a s ( ...) p á ra m o de e s p e lh o s ! ” - e x c la m a rá o p o e t a .1S
Purgatório.

2. A c a rta 52

Creio que é chegado o m omento de um a prim eira revisão. Para


fazê-la, servir-me-ei da mais simples das representações topológicas:
a linha reta. N ela temos duas pontas e em cada um a das pontas está
o g o z o . E n tre e sse s d o is e x tre m o s c o lo c a m -s e p ro c e s s o s de
cifram ento e decifram ento que perm item reencontrar, no final, o que
estava no princípio, o gozo, que leva, sim, as m arcas e a fadiga do
trânsito pelos pontos interm ediários desta sucessão de estados que
p r im e ir o o d e s n a tu r a liz a m e d e p o is o r e c u p e ra m , u m a vez
tra n s f o r m a d o . N ã o é a rris c a d o c h a m a r de s u b lim a ç ã o e s ta
m etam orfose. D o gozo perdido ao gozo recobrado, transm udado.
Do gozo recusado ao que pode ser alcançado...
Volto ao início para mostrar que esta exposição segue um curso
rigorosam ente coerente com a expressão de Lacan e - ver-se-á -

18. J. Gorostiza. Muerte sin fin. In: P oesia com pleta. México: Fondo de C u l ­
tura E conóm ica, 1984.
D ecifram ento do gozo 185

não alheia à m etapsicologia de Freud: “O que Freud articula como


processo prim ário no inconsciente (...) não é algo que se cifra, mas
que se decifra (...) o próprio gozo” . Se no extrem o esquerdo da linha
fig u r a o g o z o , d e v e -s e r e c o n h e c e r q u e e n tr e o g o z o e seu
decifram ento pelo inconsciente deve haver um estado ou momento
interm ediário em que é o gozo cifrado, convertido em um grupo de
inscrições em si carentes de sentido, mas prontas a se carregar com
ele um a vez tenham sido subm etidas a um processo de deciframento.
Ficam , assim , delim itados três estados ordenados sucessivam ente:
1) o do gozo prim ordial, 2) o de seu cifram ento ou escritura e 3) o
de seu decifram ento inconsciente. Esta construção linear, com o se
vê, está im posta pela razão e pela experiência; não é facultativa, é
imperativa.
O inconsciente - isto é Freud, isto é Lacan, isto é a psicanálise
de todos e de sem pre - já é um discurso, um a passagem do gozo
à palavra, na qual um significante não significa nada se não se articula
co m o u tro s ig n if ic a n te . N e s te c a s o , o q u e é s ig n if ic a d o e
representado pelo significante é o sujeito, sujeito do inconsciente,
efeito da articulação. A gora refulge, inapelável, o dito de Lacan: “O
inconsciente se articula pelo que do ser vem ao dizer”.19 Do ser do
g o z o ao “ p e n s o ” do s u je ito da c iê n c ia e aí, e n tre os d o is, a
articulação do inconsciente.
O inconsciente é m anifestação da verdade, de “isso” do ser que
vem ao dizer. Mas a verdade, que assim fala, não diz a verdade. Os
processos prim ários produzem um a transposição, um a Entstellung
da v erd ad e que veicu lam . O gozo ch eg a ao d izer filtrado pelas
malhas da linguagem. U m a vez produzido esse dizer - o menor relato
de um son h o b a sta p ara c o m p ro v á -lo - , é n e cessário um novo
processo de decifram ento para se incorporar esse discurso dentro
do cam po do sentido. Esse trabalho recebe de Freud o nome preciso
de D eu tu n g , in te rp re ta çã o . P ara e v ita r c o n fu sõ es, é n e ce ssá rio
m anter a distinção que existe entre a operação que se faz sobre uma
escritura que é um decifram ento (o m odelo é o dos hieróglifos), e
a operação que recai sobre a palavra tal com o ela é proferida pelo
analista na situação da análise e que é interpretação. Assim, o gozo

19. J. L acan (1970). A. E p. 426.


186 G ozo

é aquilo que se decifra, os processos prim ários são já decifram ento


e eles são su scetív eis de in terp retação . O d ecifrado revela um a
escritura que, com o tal, é semsentido* (nonsense, pas-de-sens) e não
cham a o O utro com o o faz a palavra. A interpretação recai sobre a
leitura d essa escritu ra, “é sentido e vai co n tra a sig n ific açã o ”20
(1972). E sta distinção não rem ete a um a oposição binária na qual
houvesse que esco lh er entre d ecifram ento e interpretação, mas a
uma com plem entação que mostra, até a evidência, que cada uma das
duas operações recai sobre um ponto distinto dessa linha reta que
vai do gozo cifrado ao gozar do decifram ento.
É necessário insistir nesta com plem entaridade da escritura e da
leitura, do decifram ento e da interpretação, pois não é raro ver que
m esm o os m ais lúcidos e leais com entaristas de Lacan se deixam
levar pelo entusiasm o ao advertir a novidade acrescentada por Lacan
em seu e n s in o , q u a n d o fa z v a le r “ a in s tâ n c ia da le tra no
inconsciente” e passam a uma exegese que confronta uma leitura de
L acan , “ m o d e rn a ” - e sc ritu ra i - , com o u tra le itu ra de L acan ,
“antiga” e centrad a sobre a palavra falada e sobre o significante.
M inha intenção em tudo o que escrevi e que escreverei é destacar
e evid en ciar a continuidade e a d iferen ça to pológica na reta dos
pontos de inserção próprios a cada um a das duas operações.
O inconsciente é, nessa reta, um ponto intermediário de junção
no cam inho do decifram ento que se encontra entre o sistem a das
in scriç õ e s q u e o p reced e e o d iálo g o com sua im p reg n ação de
sentido que o segue. É um estado interm ediário no decifram ento do
gozo. Já é discurso, mas um discurso que parece colocar-se antes
e à m argem do outro da interlocução e do sentido. D eve-se voltar
- sem pre - a Freud:
P o i s b e m , s e p r o s s i g o p a r a m i m m e s m o a a n á l i s e , se m
p r e o c u p a r - m e c o m os o u tro s (pa ra q u e m , na verdade, u m a v i v ê n ­
c ia tã o p e s s o a l c o m o m e u s o n h o d e m o d o a l g u m p o d e lh e s e s ­
tar destinada), c h eg o a pen sa m e n to s que me surpreendem , que
n ã o h a v ia o b s e r v a d o n o i n te rio r d e m im m e s m o , q u e n ã o a p e n a s
m e s ã o a l h e i o s , m a s t a m b é m d e s a g r a d á v e is , e q u e p o r i s s o eu

* C om o no original (sinsentido). (N. da T.).


20. J. Lacan (1970). A. E., p. 475.
D ecifram ento do gozo 187

q u e r ia c o n te s t a r e n e r g i c a m e n t e , e n q u a n t o a c a d e ia d e p e n s a m e n ­
tos q u e d isc o rre p e la a n á lise se m e im p õ e d e m o d o in e x o r á v e l .21

A situação que Freud descreve com o paradigm ática do sonho


é a de um locutor sem alocutário, um a cadeia de significantes que
se enlaçam , seguindo seus próprios desígnios e que fazem do eu
uma testemunha, um simples cenário no qual se representa uma obra
perturbadora, desconcertante, que não é entendida nem apreciada por
e ste e s p e c ta d o r q u e q u e ria c o n te s tá -la com e n e rg ia . Isto é o
inconsciente e este é seu trabalho. A interpretação é um trabalho
posterior que, vencendo resistências, introduz o O utro do diálogo,
inicialm ente alheio, nessa vivência pessoal e solipsista. Esse Outro
é, ju stam en te, o sujeito suposto saber da transferência, um Outro
inventado pelo discurso psicanalítico, absolutam ente desnecessário,
contingente, lugar de um desvelam ento daquilo que o eu, animado
pela paixão da ignorância, nada quer saber.
Se volto à ficção desta linha reta (“a verdade tem estrutura de
ficção” ), constato que o extrem o final da m esm a não é o sentido,
(“agora en ten d o ” ), m as o gozo recuperado (“A h!” ). E ste final é
possível somente atravessando a linha com pleta que leva do gozo ao
gozo, a um gozo O utro. A in te rp re ta çã o co n d uz ao sentido, um
sentido que podemos considerar equivalente ao sistema freudiano da
percepção-consciência e que se vincula à coerência que impera em
“nosso eu oficial”. Do eu testem unha não o processo prim ário, mas
o secundário, mais concretam ente e no caso do sonho, a elaboração
secundária, processo de m aquiagem da verdade que tende a proteger
o dorm ir e am ortecer o im pacto do real sobre o eu da vigília que se
apega à realidade, a essa realid ad e que está feita ju stam e n te de
sentido, na junção do sim bólico e do im aginário,22 com exclusão do
real. (Cf. figura do nó borrem eano, p. 108)
N ão se pode falar sem ser inundado pelo sentido, mas este está
com andado pelo fantasm a, é o im aginário que flui sob a cadeia dos
sig n ifican tes que flutua. A ex p eriên cia analítica não aponta para
c o n so lid á -lo nem p ara re tific á -lo , o fe re c en d o um novo e m ais
consistente, mas para deslocá-lo, para levantar seu peso de lastro,

21. S. Freud (1901). Sobre los suenos. In: O bras com p leta s, v. V, p. 654.
22. J. Lacan (1973), La troisième. L ettres de FÉcole Freudienne, n. 16,1975, p. 41.
188 G ozo

para com o v ê-lo , p ara denu n ciá-lo em sua su sp eita pretensão de


suturação da relação do sujeito com a verdade que fala. A análise
aponta para reintroduzir a dim ensão do real do gozo que o discurso
exclui. Pois tudo na experiência analítica se organiza com vistas ao
esvaziam ento do sentido, a chegar a um único e último sentido: que
a relação sexual é o que não há, que é um sem sen tid o e que o
discurso é um bordado ou um zum bido que tende a se alongar e
an eg a r (e [a] n eg ar) e ste topo ante o qual a p a la v ra se declara
derrotada e a pulsão, silenciosa, volta por seus direitos. “A essência
da teoria psicanalítica é um discurso sem palavra” .23
A gora, o percurso está com pleto. O traçado da linha exigia
deter-se e identificar estes cinco pontos de sua trajetória: a) o gozo
originário; b) sua inscrição ou cifram ento; c) seu decifram ento em
um d iscu rso c o n fu so e in c o e re n te que m a n ife sta a v e rd a d e ao
m esm o tem po que a dissim ula; d) sua interpretação que lhe restitui
a coerência à custa de aum entar o desconhecim ento e, finalm ente,
e) o e sv a z ia m e n to d e sse se n tid o re d u n d a n te p a ra re c u p e ra r a
verdade da inscrição originária, mas transubstanciada agora em um
saber inventado que consiste em gozar do decifrado. Vale dizer que
é um p e rc u rs o q u e le v a d o g o zo à s u b lim a ç ã o ? E a fó rm u la
q u e proponho: de ponta a ponta do gozo.
E de im ediato dou-m e conta: não estou enunciando algo novo,
nem estou pondo às claras um aspecto desconhecido do pensam ento
de Lacan, mas estou regressando, armado com o arsenal das últimas
referências do ensino de Lacan, às origens da psicanálise. Pois o que
encontro ao recapitular o escrito sobre um a linha com dois extremos
e com três estados interm ediários que são o cifrado, o decifram ento
e a interpretação produtora de sentido, não é nem mais nem menos
do que a reprodução literal do esquem a desenhado em todos os seus
pontos por Freud na célebre carta 52 de 6 de dezem bro de 1896,
que agora conhecem os em uma versão não expurgada.24
O texto é acessível e conhecido por todos os psicanalistas, mas
não obstante requer ser citado in extenso para deixar claro até que

23. J. Lacan (1968). Sem inário X V II, aula de 13 de novembro.


24. S. Freud (1896). Carta 52 dos “Fragm entos de la corre spo ndencia con
Fliess” . In: O bras c o m p leta s, v, I, p. 274.
Decifram ento do gozo 189

ponto é coerente com a teoria do gozo e, m ais ainda, para m ostrar


que n e le e s tá d e f in id a u m a c la ra d is tin ç ã o e n tre o Isso e o
inconsciente e, portanto, que na carta 52 tem os um deslum brante
ponto de origem que condensa as duas tópicas de Freud e as duas
grandes épocas do ensino de Lacan. Podem os fazê-lo sem ter que
fo rçar em n ad a a in te rp re ta çã o do tex to fre u d ia n o , antes, sim ,
voltando com exatidão à sua literalidade.
F re u d p a rte da id é ia de u m a e s tra tific a ç ã o s u c e ssiv a do
p siq u ism o h u m an o q u e su p õ e que os p ro c e sso s aním ico s e da
m em ória estão sujeitos a um reordenam ento que obedece a certas
novas circunstâncias. D esta nova ordenação, Freud tem um a clara
concepção: é um a retranscrição, urna Umschrift. As duas palavras
em itálico aparecem sublinhadas por Freud. Umschrift implica tratar-
se de escritu ra, co n cretam en te, de inscrição. “O essencialm ente
novo” nesta teoria é a tese da existência da m em ória da experiência
com o um a série de inscrições sucessivas e coexistentes, não menos
de três. E o registro nelas recorre a “d iversas classes de signos”
(Zeichen).
E im ediatam ente, para tornar gráfico seu pensam ento, desenha
um esquem a, m uito co nhecido, com cinco elem entos ordenados
linearm ente, dos quais os três interm ediários estão caracterizados,
além da inicial de seu nom e, pelos núm eros rom anos I, II e III. A
idéia de que estes sistemas de inscrições tivessem suportes neuronais
é reconhecida no texto com o muito cômoda, m as não indispensável,
adm issível a título provisório e, portanto, descartável.
No extrem o esquerdo da linha, está a notação W, que remete
a W ahrnehm ungen, corretam ente traduzida para o espanhol e para
o inglês com o p ercep çõ es. M as o term o p o d e p restar-se a m a l­
e n te n d id o , c a so se ja to m a d o no s e n tid o té c n ic o q u e tem em
p s ic o lo g ia . D e s te s “ n e u r ô n io s W " , F re u d d iz q u e n e le s “ as
percepções se originam e a consciência se agrega, mas que em si
m esm os não conservam m arca do acontecido. Pois a consciência
e a m em ória são m utuam ente excludentes" (grifos de Freud).
190 G ozo

1 II III

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Impressões - -» Isso - > Inconsciente - »Pré-cons­ -> Fading 8


ciente

Gozo perdido - > Ciframento -» Decifrado - > Sentido --»Gozo recuperado

Do que se trata? De um registro direto da experiência. De uma


W arhnehm ung que em alem ão im plica claram ente a apreensão da
verdade, do real tal com o cai, golpeia, m arca um ser que recebe o
im pacto e não conserva traços nem m em ória do acontecido. Para
e v ita r o eq u ív o co com a co n cep ção trad icional, psico ló g ica, da
p e rc e p ç ã o , q u e su p õ e o s u je ito c o m o j á c o n s titu íd o e co m o
c o n s titu in te d as p e rc e p ç õ e s q u e se ria m u m a fu n ç ão d ele, do
percipiens considerado fonte e origem do perceptum , penso que é
preferível recorrer aqui ao term o de impressão no seu duplo sentido
daquilo que im pressiona (um a placa ou película sensível) e daquilo
q u e se im p rim e , q u e fic a g ra v a d o . S ã o , p o is , im p re s s õ e s
assubjetivas, acéfalas, feitas em ninguém, m atrizes de um a escritura
da qual um sujeito advirá.
A idéia está claram ente exposta pelo próprio Freud quando,
m u ito s anos d ep o is, e x p o rá sua a n a lo g ia do p siq u ism o com o
W underblock, com o bloco m ágico,25 no qual a inscrição feita com
um estilete sobre um a superfície de celulóide se faz sem deixar tra­
ços no próprio celulóide (um a vez que não se levanta), mas deixando
as m arcas im pressas em um a película de cera m acia colocada de­
baixo. Estas im pressões sem m em ória que estão no extrem o do apa­
re lh o e q u e d ev erão ser re c u p e ra d a s (ou não) pelas in scriçõ es
posteriores são a inequívoca m anifestação de um real originário do
su jeito, a n te rio r à sim b o liz a ç ã o , q u e é o p ró p rio Gozo e rem ete
ao conceito freu d o -lacan ian o da C o isa . O conjunto do aparelho

25. S. Freud (1925). N o ta s o b re la p izarra m á g ic a . In: O b ra s c o m p leta s,


v. 19, p. 239.
Decifrarriento dogozo 191

ordenar-se-á aparti deste m om ento fundante em que um protossu-


jeito (perdoanlo o Tbrido grecolatino) é im pressionado, impresso,
pelo Real. E, s nãi se tem m edo das analogias, por que não falar
de im printinglD u sja, da cunhagem matricial do futuro falante por
um a experiênca qie é anterior e exterior à linguagem , ainda que,
como é o caso ia in'estigação etológica, a linguagem não seja alheia
à experiência nesna a que são subm etidos, em seu caso, gansos e
sím ios pelo d síg ro dos sábios. Im pressões do gozo, hieróglifos
assistem áticos cunagem de um a m oeda na superfície de um cor­
po. M arcas.
D estas h p re s õ e s , p assa-se a um sistem a p rim eiro (I), de
quê? D e signo depercepção, de W ahrnehm ungszeichen, que é “o
prim eiro regisro” <u “a prim eira transcrição” (N iederschrift) de tais
im pressões. G m ose vê, Freud insiste na idéia da escritura. A go­
ra, agrega a rnção capital em Lacan, de signos, de Zeichen. A ca­
racterização feudana destes signos é precisa e preciosa: eles não
são susceptívds di consciência e estão dispostos (“articulados”, se
lê na traduçãcparío espanhol) segundo um a associação por sim ul­
taneidade. A sim ,jm a escritura que é puro signo, carente de sen­
tido e carenteie odenação no tempo. Neste sistema, com o em toda
escritura, nãohá dacronia. A ssim com o um livro ou um disco fo-
nográlico tên tocb o seu conteúdo ao m esm o tem po, no instante,
mas no qual i coijunto de inscrições im pressas e gravadas não re­
p re se n ta nadi p aa n inguém , se não se su b m eter a um processo
diacrônico q e insaure a sucessão, que o torne audível, que o tras­
lade por meii de im decifram ento da escritura, por m eio de um a
leitura. Este sstem dos W ahrnehmungszeichen é, pois, um registro
cifrado das inpresões de gozo que m arcaram a carne do protos-
sujeito. Estasmaras não são significantes, são - e é o próprio Freud
da carta 52 cuem) destaca - signos, m arcas anteriores à palavra,
que parecemprefi;urar a oposição que Lacan26 fará notória em Te­
levisão, quaido ojõe o registro do signo ao registro do sentido.
Q ue n » m etom em p o r ex ce ssiv a m e n te apressad o , se me
atrevo a afim ar iue esta sucinta descrição feita por F reud deste
prim eiro regstro oincide exatam ente e no essencial com isso que,

26. J. L acan (974). 1. E., p. 515.


192 G ozo

nos anos do “bloco m ágico”, cham ará Isso. Bastará apenas deixar
de lado a sub-reptícia hipóstase de um discurso alheio à experiência
psicanalítica (o do “pólo b iológico”) p ara com preender que essa
referência é tão p rescindível e supérflua com o a que ele próprio
indica nessa carta 52 sobre um suporte neuronal de seus “extratos
psíquicos” . Pois a biologia em questão se reduz - e isto é o cerne
da questão - a que estas experiências que não vacilo em qualificar
com o im pressões do gozo são marcas escritas no corpo, ou melhor,
na carne que se torn ará corpo por graça e obra d esta cunhagem .
Não há ordem nem concerto, não há sentido e não há tempo. Assim
é com o o gozo é cifrado. Lacan27 aporta um a im agem esclarecedora,
quando com para esta desordem sincrônica com o funcionam ento de
um a lo teria, um g ra n d e g lo b o ch eio de p ed ras nas quais estão
inscritas cifras que nada significam em si mesmas. U m a desordem
de marcas escriturais que está prestes a adquirir sentido uma vez que
se p ro d u z a o s o rte io , u m a vez q u e e la s sa ia m em um a c e rta
seqüência ao acaso ou arbitrária que as porá em relação com um a
matriz sim bólica preexistente (atribuição de prêm ios) que dotará de
sentido a série de bolinhas sorteadas. O globo cheio de inscrições
é o “caldeirão pleno de ferventes estím ulos” do Isso freudiano. Aí
e stá o gozo cifrado. A penas o significante poderá in stau rar um a
ordem ao desdobrar estes elem entos da escritura em uma diacronia.
Em suma, postulo que este prim eiro sistem a de inscrição da carta
52 é o Isso da segunda tópica e que suas características são as que
perm item distingui-lo do segundo sistema, o do inconsciente, que já
é um d ecifram en to e um a tradução d esta e sc ritu ra prim ária das
m arcas do gozo.
O núm ero é, na im agem da loteria assim com o na língua de
todos os dias, a cifra. U m a cifra sem sentido. E linguagem , mas do
lado da pura escritu ra, hieróglifo carente de p alavra, no qual os
elem entos são alheios à organização do discurso, no qual não há um
agente da palav ra que se d irija a um o u tro para esta b e le c er um
vínculo social. F ora do sentido, mas p ro n to p ara ca rreg ar-se de
sentido. Para isto, é necessário que se produza “o sorteio”, que se
instaure um a série, que o número, além de sua função cardinal, se

27. J. L acan (1958). É crits, p. 58; E scritos 2, p. 638 (1960).


D ecifram ento do gozo 193

"o rd e n e ” , q u e seja “ um ” na série dos núm ero s, que seja “e sse ”


núm ero na relação dos que saem sorteados com os da outra série
de núm eros; no caso da loteria, a da ordem dos prêm ios.28
O Isso é um conjunto de elem entos gráficos, não submetidos
a nenhum a hierarquia organizacional, totalm ente com paráveis e in-
tercambiáveis entre si, alheios à contradição lógica ou dialética, puras
positividades que não conhecem a negação. É o império do gozo (do
ser) anterior à organização subjetiva, sendo esta um efeito da orde­
nação que, no reino do significante, im põe a m etáfora paterna. Sa­
bemos que o nome-do-Pai entroniza a prim azia do significante fálico
que esvazia o gozo do corpo fazendo-o passar por um a zona estri­
tam ente lim itada do corpo (gozo fálico), subm etida à Lei.
Isto, tão essencialm ente “lacan ian o ” com o é, está afirm ado
com todas as letras por Freud na m esm a carta 52 que expõe esta
to p o lo g ia re tilín e a do g ozo e da p a la v ra , de seu c ifra m e n to e
decifram ento.
P o r trás disto, a idéia de zo n a s e ró g e n a s resignadas. Ou
seja: n a in fâ n c ia , o d e s p r e n d i m e n t o s e x u a l se ria r e c e b id o de
n u m e ro s o s lu g are s do corpo, que logo são a p en a s c a p a z e s de
d e s p r e n d e r a s u b s tâ n c ia d e a n g ú s tia d e 28 [dias], e n ã o j á as
o u tras . N e s t a d i f e r e n c i a ç ã o e l i m i ta ç ã o [residiria] o p ro g r e s s o d a
c u ltu r a , o d e s e n v o l v i m e n t o d a m o r a l e d o i n d iv íd u o .

Em resum o, o sistem a cham ado por Freud na carta 52 dos sig­


nos perceptivos, dos W ahrnehmungszeichen (WZ), é um sistem a de
passagem das im pressões corporais (W) para um a escritura desor­
ganizada, p ara um cifram ento que existe na sincronia e na desor­
dem . N esse sistem a não há noções de tem po, de contradição e de
ordem. E stá prefigurado em todos os seus aspectos o Isso que nas­
ceria 25 anos depois e constitui um tipo de m atéria-prim a para que
nela se opere o significante, ou seja, a bateria das diferenciações e
dos valores que introduz a língua, o código das significações. E tam ­
bém possível dizer que neste caos em que está cifrada a experiên­
cia vivida não opera a língua dos lingüistas, mas alíngua lingüistéril
da psicanálise cuja significação não é de sentido, mas de gozo.

28. Cf. J.-A. Miller. Seminários de 19 de d e ze m b ro de 1984 e de Ia de abril


de 1987 (inéditos).
194 G ozo

A questão para o psicanalista é recuperar esta possibilidade de


gozo que está obstruída, sem tradução, no sistem a do Isso. Para ial,
tem um único recurso: o da palavra. Esse foi o prim eiro aspecto da
descoberta lacaniana em seu retom o a Freud: que o inconsciente está
estruturado com o um a linguagem ... ao que se deve acrescentar que
é apenas na análise que seus elem entos se ordenam em um discurso,
que o gozo co n d escen d e à audição, à ordenação em um a cadeia
tem poral diacrônica. E na experiência analítica onde a escritura (do
gozo) perm ite sua leitura e onde a letra se presta à palavra.
P o d em o s n os v a le r de u m a a n a lo g ia té c n ic a , o CD: um a
delgada lâm ina m etálica em que estão registrados núm eros, cifras,
dígitos, que coexistem sincronicam ente em um a superfície polida
alheia com pletam ente, em si, à arte m usical. Essas inscrições sem
sentido estão, no entanto, em condições de serem decodificadas,
d e c ifra d a s p o r um ra io la s e r q u e as tra n s fo rm a em im p u lso s
e lé tr ic o s ; e s te s , p o r su a v e z , são e n v ia d o s a um sis te m a de
transform ação e tradução em m ovim entos que afetam um falante de
o n d e saem tra n sfo rm a d o s em m úsica. P o d e -se c o m p le ta r e sta
analogia recordando os estados prévios à transcrição num érica das
in scriçõ es d ig itais: p a rtitu ra do c o m p o sito r que tam bém é um a
escritura sincrônica e hieroglífica que deverá ser codificada pelo
intérprete (sim ; aquele que faz a interpretação) e passada para o
cifram ento digital, para o decifram ento eletrônico, para o som e,
finalmente, para a audição diacrônica na qual será o ouvinte o que
d o ta r á a m ú s ic a e s c u ta d a d e um s e n tid o em r e la ç ã o à su a
subjetividade [vetor s (A)].
E p o d e -s e v o lta r m ais u m a v ez ao p o n to de p a rtid a : os
processos prim ários que Freud descobre no inconsciente não são
algo que se cifra, mas algo que se decifra. Em outras palavras: do
cao s do Isso no q ual o g o zo e s tá c ifra d o p a s s a -se a um certo
o rd e n a m e n to , a u m a fo rm a de e x tra ç ã o d as b o lin h a s , a um a
s u c e s s ã o d ia c rô n ic a d a sa íd a d e sse s sig n o s q u e h a v ia m sido
transcritos a elem entos de outra ordem, a significantes cuja bateria
está na língua, tom ados do capo do Outro da palavra. Os processos
prim ários produzem um resultado que já é discurso, um discurso que
parece, a olho nu, carente de sentido e absurdo, mas que já está em
condições de ganhar sentido e ser transm itido.
I K'cüram ento do gozo 195

O U nbew usst ( U bw ), o in co n scien te, é, na carta 52, assim


definido: com o um a segunda transcrição em que já não primam as
iissociações por sim ultaneidade, m as “outros nexos, talvez causais” .
A causalidade im plica a sucessão no tem po da causa e o efeito, a
diacronia. Enquanto discurso (o dito), o inconsciente já é algo que
se escuta, um m aterial em que o gozo deverá ficar esquecido, será
esse reste oublié de que se fala em L ’étourdit (1973, op. cit.). Este
inconsciente é palavra ordenada segundo nexos que repugnam o
pensam ento organizado pela sintaxe e pela lógica. A interpretação é
a atividade que, tom ando com o ponto de partida as form ações do
inconsciente, dotará essa palavra de sentido e a expulsará do reino
do “absurdo” .
É o nível da terceira transcrição que se descreve na carta 52:
aquela que leva do Ubw ao Vbw, do inconsciente ao pré-consciente
( V o rb e w u s st), q u e e s tá “ lig a d o a r e p r e s e n ta ç õ e s - p a la v r a s ,
c o rre s p o n d e n te ao n o s s o eu o f ic ia l” . A q u i, d ã o -s e to d a s as
c a r a c te r ís tic a s do p e n s a r ra c io n a l, no q u a l o e n c a d e a m e n to
significante carrega consigo ondas de sentido, um sentido que “é de
e fe ito p o s te r io r ( n a c h tr ä g lic h ) n a o rd e m d o te m p o ” . F re u d
a c re sc e n ta q u e e sse s “ n e u rô n io s -c o n sc iê n c ia ” seriam tam bém
“neurônios-percepção” , esses que preferi cham ar de “im pressões” .
Fica, assim , o ap arelh o com o um a linha na qual o ordenam ento
su c e ssiv o im p lic a a a n u la ç ã o do tem p o em c a d a um dos dois
extrem os. O gozo atem poral está figurado em cada um a das duas
pontas da reta que atrav essa por a) o cifrado, b) o decifram ento
inconsciente e c) a interpretação que dá sentido no pré-consciente
quando se liga a e x p eriên cia v ivida com a o rdem da linguagem
oralizada, feita oração, articulada com o proposições subm etidas à
lógica dos processos secundários, suscetíveis de serem catalogadas
com o verdadeiras ou falsas.
Freud com pleta sua descrição do aparelho assim constituído
afirmando que entre um e outro sistema existe uma incompatibilidade
de leitura ou de código que obriga que as inscrições que caracterizam
cada um deles devam ser traduzidas para passar de um a modalidade
de inscrição para a seguinte. Esta teoria vale tanto para o psiquism o
n o rm al co m o p a ra as n e u ro se s - c o n c e b id a s co m o e fe ito s da
repressão, ou seja, da im p o ssib ilid ad e de “trad u ção do m aterial
196 G ozo

p síquico ” - e tam bém para o tratam ento que deve ser o processo
c ap az de fa z e r com que o retid o em in sc riç õ e s a n te rio res seja
transferido para os novos m odos de leitura próprios dos sistem as
m ais avançados. O avanço que traz a leitura lacaniana que proponho
da ca rta 52 c o n siste em d e sta c a r que o q u e se c ifra e o que se
d e c ifr a é “ o p r ó p r io g o z o ” . E s ta e la b o r a ç ã o do s c o n c e ito s
f re u d ia n o s n o s p e rm ite r e to r n a r à o b ra d o p ró p rio F re u d e
estabelecer de m odo inequívoco a continuidade que existe entre o
Isso da segunda tópica c o inconsciente da prim eira; essas instâncias
não se intercam b iam ou se substituem reciprocam ente: são dois
sistem as topologicam ente diferenciados e dois m odos diferentes,
e sc ritu ra i o um , e p a la v re iro o o u tro , de tra ta r as para sem pre
irrecuperáveis im pressões originárias.
A seqüência, em síntese, é: do gozo bruto (W) ao Isso (Wz)
do Isso ao Inco n sciente (Ub), do In co n scien te ao P ré-consciente
(V b) e do P ré -c o n sc ie n te à C o n sc iê n c ia (B ew ); este não é um
sistem a de in scriçõ es, m as um m om ento vivencial que retom a o
ponto de partida inicial (“... so that the neurones o f consciousness
would once again be perceptual neurones and in themselves without
m em ory”)29 (grifos m eus).

3. A psican álise nos cam in h o s de P roust. G o zo e tem po

O g o zo , g o zo do corp o im p re ssio n a d o , g ozo do U m sem


O utro, apenas pode ser recuperado m ediante um recurso ao Outro,
o Outro m esm o da linguagem e do sentido, que perturba, obstaculiza
e proíbe esse gozo. A experiência da análise pretende, na figura do
analista, encarnar e suprim ir esse O utro do diálogo e da resistência
para que o gozo bloqueado em sistem as de inscrição não decifrados
possa ser subjetivado. O Outro da linguagem é o m uro que deverá
ser atra v e ssa d o n e ssa b u sca das m arcas d eix ad as pelo gozo. O

29. J. W. M asson (comp.). The com plete letters o f S ig m u n d F reud to W ilhelm


F liess - 1887-1904. C am bridge (Mass.): Harvard University Press, 1985.
p. 207.
Decifram ento do gozo 197

co rp o é a p ra n c h a ou tá b u a v a z ia , o c e n á rio , o liv ro , o disco


m arcado pelas inscrições ou g ravações cifradas. A análise será,
assim, processo de leitura com agulha (estilo) ou raio laser que tom e
audível o que está inscrito e desconhecido para o sujeito: o próprio
gozo. Para este trabalho, não há código oculto a descobrir; em todo
caso, há um código ou pedra de R oseta a inventar, o sistem a de
alíngua em que o gozo foi cifrado, alheio à bateria de significantes
com s ig n ific a ç ã o c o n v e n c io n a l. D a im p re ssã o , e sc o lh e n d o a
íw pressão e a repressão, à expressão, à pro d ução desse livro ou
dessa letra-carta escondida, roubada ao mesm o tem po que exposta,
com o a de Poe, em cada um dos falantes.
R e -c ita n d o : “O in c o n sc ie n te e s tá e s tru tu ra d o co m o um a
linguagem , mas é na análise que se ordena com o discurso” .30 E ao
ordenar-se com o discurso, palavra dirigida ao outro, carrega-se de
sentido insólito, revela-se com o saber subjacente ao sujeito, m ostra­
se c o m o p o rta d o r do g o z o q u e a tra v e s s a o a g o ra p e rm e á v e l
d ia fra g m a da p a la v ra q u e até e n tã o o b lo q u e a v a . E g o z a r do
d e c ifra m en to , jo u is-se n s, j ’o u is sens, jo u is sa n c e que p o d eriam
passar, com o já vim os, com o gossen tid o ou eugossentido. F azer
passar o gozo pelo diafragma da palavra, articulá-lo, traduzi-lo, passá-
lo p e la co n ta b ilid a d e . Para isso , é m ister d esarm ar a c o erê n cia
discursiva, atentar contra a gram ática, jo g ar com o equívoco lógico
e hom ofônico, atravessar a barreira do sentido e descolar o Humpty-
D um pty que a controla, aquele cham ado por Freud, já em 1896,
nessa m esm a carta 52, de “nosso Eu oficial”.
P elo cam in h o d ev e-se re s s ig n ific a r v o ltan d o no tem p o as
m arcas da m em ória e atravessar os fantasm as que conduziram em
cada m om ento e em cada caso à fixação das lem branças. Trata-se
de d esp ejar e construir os fantasm as o riginários estruturantes da
experiência e da história pessoal que se apresentam na com pulsão
de repetição. Repetição? Sim , dos m odos particulares de cada um
de falhar ao encontro com o objeto do desejo. E recuperar assim o
gozo perdido à m edida que o desejo não aponta para o futuro, mas
que é nostalgia, m em ória gravada na carne sem linguagem e rasgada
pelo O utro, pelo que o Um foi com o objeto no desejo do O utro e

30. J. L acan (1974). A. E., p. 452.


198 G ozo

daquilo que saiu co n stitu in d o -se ao p reço de um a cisão interna,


com o sujeito barrado e dividido entre o Um e o Outro, fazendo do
corpo Outro e fazendo do Outro o lugar e o cenário em que pretende
recuperar-se com o U m , isso que se cham a em psicanálise o Ideal
do Eu. Entre o Um e o Outro. Entre a neurose, alienação no Outro
e a psicose, alienação no Um. Entre o Outro sem o Um da neurose
e o Um sem o O utro da psicose. Entre a letra sem leitura do Um,
da p sic o se , e o d isc u rso su b m etid o aos có d ig o s do O utro, que
d e sc o n h e c e a e s s ê n c ia e s c ritu ra i do g o z o na n e u ro se . P o is a
subjetividade navega entre Caríbdis e Scila. Seus naufrágios são a
substância da psicanálise.
O su-jeito com o o que sub-jaz, a subs-tância, o su-posto do
d is c u rs o , c o n -ju g a d o em su as fra se s, c ifra d o q u e d e v e rá ser
decifrado, Eu que deve advir no lugar onde é desconhecido, aí onde
Isso estava com o um hieróglifo no deserto, com o um livro enterrado
com o cadáver de seu dono. Por trás desses objetivos, ordena-se a
prática da análise e se decidem todos os seus m om entos: para pegar
o g o z o c o m o d e c if r a m e n to p o r m e io do jo g o e o fo g o do s
encadeam entos e das substituições significantes, pelo chiste e pela
surpresa, pela aleteia heideggeriana e pela epifania joyciana, pela
evocação inesperada que burla as defesas, pela agudeza do estilo que
rasg a a s u p e rfíc ie e stú p id a do d iscu rso que não diz à força de
“querer dizer” .
Esta colocação da recuperação do gozo perdido está na própria
origem da reflexão freudiana. N ão seria, por acaso, a “identidade de
percepção” a m eta que orienta toda a atividade do aparelho psíquico?
E não seria a “identidade de pensam ento” o que interpõe - pela via
dos processos secundários - um a b arreira de sentido, de sentido
regulado para e pelo eu, no cam inho para essa recuperação do gozo
o riginário? L ido assim , arm ados com a distinção lacaniana entre
prazer e gozo, é difícil não reconhecer j á em Freud e desde o começo
que a concepção do psiquismo está determinada pelo gozo, pelo gozo
com o perdido e com o recuperável por m eio de um a elaboração que
passa por sistemas intermediários e no qual a neurose é definida como
im possibilidade da recuperação enquanto a psicose é ora instalação
no gozo, ora renúncia para recuperá-lo. E stá em jogo a função do
real. A identidade de percepção ser alcançada pelo curto-circuito da
Decifram ento do gozo 199

alucinação que libera a passagem pelos estádios que decifram o


gozo. O inconsciente não é alucinação, mas discurso. O dispositivo
freudiano da análise é um a colocação em cena concebida para que
este discurso se desdobre.
A transferência se fundam enta na suposição de que o Outro a
quem o su je ito se d irig e d isp õ e do c ó d ig o que d e c ifra rá seu
hieróglifo ou, em outra analogia, que a m úsica existe não no disco,
mas no aparelho que o leva a se transform ar em sons. A estratégia
da a n á lis e c o n s is te em p a s s a r esse disco pelo laser in-diferente,
a-pático, para que se tornem audíveis as inscrições gravadas nele,
p a ra q u e a sin c ro n ia do Isso se tra n s fo rm e em d ia c ro n ia do
inconsciente e este, por sua vez, em gossentido. Pois o O utro da
transferência não é o dono do sentido, m as o pretexto para que o
texto escrito em alíngua torne-se gossentido.
R e ssig n ific a ç ã o do p assad o q u e c o n v e rte todo fa lan te em
sujeito de um a anagnórise a ser produzida, de um desvelam ento da
identidade originária e desconhecida, de um rebatism o a partir de
um a n o v a re la ç ã o do su je ito do d isc u rso com o gozo que (o)
transporta e o desconhece. A proposta é a de passar da palavra da
lingüística para a letra vocalizada da lingüisteria (lingu-histeria), aí
onde a voz já não é cadeia, mas objeto m ais de gozar e causa de
desejo. E a cadeia, a palavra falada, é o instrum ento indispensável
para receber a voz com o objeto que evoca e faz semblante do gozo.
Que retorna do discurso para a marca, do significante para a letra,
do desejo para a pulsão, da com unicação para o gozo.
O livro está escrito. O disco está gravado. D eve-se torná-los
audíveis, convertê-los em palavra e em música. Recuperar, retrouver,
a escritu ra que m arca o falante. A “ identidade de percepção” é o
reencontro com a experiência de satisfação proibida ao que fala como
tal. N esse ponto em que se entrelaçam os dois extremos do aparelho
freudiano da carta 52, percepção e consciência, Wy e Bew, o gozo,
gozo do objeto, substitui o sujeito cindido pelo significante, substitui
o p ró p rio sig n ific a n te e an u la a se q ü ê n c ia tem poral da p ala v ra
ordenada no discurso.
É isto que d e sc o b riu e é n isto q u e se eq u iv o co u M aree i
Proust, totalmente à margem da investigação psicanalítica, enquanto
trabalhava em uma substância que é a m esm a da análise: o gozo.
200 G ozo

A la recherche du tem ps perdu,1" busca do tem po perdido, é a


crônica de um a análise sem analista, fora da transferência. Suas
3.200 páginas são uma investigação (recherche) detalhada das chaves
q u e u m a s u b je tiv id a d e o b e d e c e . O r e s u lta d o tra n s m ite um a
experiência ao m esm o tem po paradigm ática e irrepetível. Pode-se
d is c u tir q u em é o O u tro da e s c ritu ra p ro u s tia n a , seu leito r, a
p osterid ad e etc. D ifícil seria afirm ar q u e esse O utro é o sujeito
suposto saber da experiência analítica. C ontudo, o resultado deste
ricercare, a obra volum osa, pede interpretação, decifram ento de seu
decifram ento, com entário. Proust deixa, com o produto, um objeto
artístico que d eslo ca o autor, um a o b ra que, assim com o o quis
Joyce com relação à sua, será objeto durante séculos da elucubração
especular e especulativa dos eruditos e dos universitários, objeto do
scholarship.
O que m e in te re ssa m o strar aqui - b a sta m o strá-lo , não é
necessário dem onstrá-lo - é que Em busca do tem po perdido é o
m odelo de um a análise e a m elhor ilustração que se pode prover das
h ip ó teses freu d ian as da ca rta 52 e das c o n seq ü ên cias da teoria
lacaniana do gozo tal com o surge da experiência analítica. Com uma
única objeção: Proust não recuperará o Tempo ao cabo de seu longo
itinerário, pois não é o Tem po aquilo que perdeu. Pelo contrário, é
no Tem po em que se perdeu, no tem po dos relógios e da história,
no te m p o do d is c u rs o , n a d ia c ro n ia e na o rd e n a ç ã o de seu s
m om entos com o sucessivos e seriais. E o que term ina por encontrar
é o gozo, isto é, a anulação do Tem po. P roust se encontra com a
sincronia, o fecham ento do m ovim ento progrediente do aparelho
psíquico. Sim , o gozo não transcorre no Tem po, mas no instante
que é a abolição do decurso (do discurso) tem poral. O instante e a
eternidade estão fora da ordem que distingue passado, presente e
futuro. Os tem pos verbais, por sua vez, estão determ inados pelo
discurso, estão em relação à enunciação da palavra que estabelece
uma seqüência que não existe no Real; que é um efeito do Simbólico.

31. M. Proust. À la recherche du tem ps perdu. Paris: Gallimard, 1969. (La


Plêiade). No texto citado, coloca-se entre parênteses o núm ero da página
do v. III de ssa edição. A tradução é minha. [En busca d e i tiem po perdido.
Madrid: Alianza, várias edições.]
Decifram ento do gozo 201

O tempo proustiano, “tem po recuperado” do último volume de


sua obra, é, na verdade, o tem po abolido pelo retorno das m arcas
prim eiras. U m a palavra estrangeira de nobre linhagem filosófica
impõe-se: A ufhebung.
Em Em busca do tem po perdido trata-se, m ais um a vez, da
epifania do gozo pelo reencontro com o incunábulo de sua prim eira
edição. O tem a, sem pre o m esm o, sem pre v ariad o , recorre nos
múltiplos exemplos dados por Proust: o sabor da madalena submersa
em um chá, o som de um a breve frase m usical, o tropeço resultado
do encontro do pé com um par de ladrilhos desiguais, a rigidez ao
tato de um guardanapo engom ado, o som de um a colher que golpeia
contra um recipiente e que devolve à viagem pela estrada de ferro,
em que um em pregado bateu com um ferro a roda do vagão preso,
o livro casualm ente achado na biblioteca e que é o mesmo que a mãe
lera p ara o filh o in so n e, h oje idoso. Em que pese a re fe rê n c ia
temporal que se lê no título da obra monumental não se deve enxertar
nada no texto para substituir a idéia de “tem po” pela de “gozo” . Basta
le r a p ro s a do p ró p rio P ro u s t: a r e c o r r ê n c ia do g o z o é um a
re ssu rre iç ã o do ser que foi e e sse ser re ssu sc ita d o g o stav a “de
fra g m e n to s de e x is tê n c ia s u b tr a íd o s ao te m p o ” em u m a
contem plação que, “m esm o que de eternidade, era fugidia” (v. III,
875). N e sse s m o m e n to s em q u e o te m p o é an u la d o , an u la -se
tam bém o sujeito, a m enos que este consiga recobrar-se, aferrando-
se às sensações da realidade exterior do tem po presente e do espaço
circundante.
E se o lu g a r a tu a l n ã o h o u v e s s e v e n c id o de im e d ia to ,
a c r e d ito q u e h a v e r - s e - i a p e rd id o o c o n h e c im e n to , p o is tais
r e s s u r r e i ç õ e s d o p a s s a d o , n o s e g u n d o e m q u e d u r a m , s ã o tã o
totais que não ap en a s o b rig a m n o sso s o lh o s a d e ix a r de ver o
q u a r t o q u e e s t á j u n t o a e le s, p a r a o l h a r o c a m i n h o m a r g e a d o d e
á r v o re s o u a m a r é c r e s c e n te , o b r i g a m n o s s o s n a r iz e s a r e s p i ra r o
ar de lu g are s m u ito d istan te s, n o ssa v o n ta d e de e le g e r en tre
d i v e r s o s p r o j e t o s q u e n o s p r o p õ e m , n o s s a p e s s o a a a c r e d it a r - s e
r o d e a d a p o r e le s , o u p e l o m e n o s a e s b a r r a r c o m e l e s e c o m os
lu g ares presentes, no a tu rd im en to de u m a in ce rte z a se m elh an te
à q u e se e x p e r i m e n t a às v e z e s a n te u m a v is ã o in e f á v e l, no
m o m e n t o de a dorm e ce r. (Ibid.)
202 G ozo

Inefável, com a p alav ra fora de jo g o , nestes m om entos de


“alegria extratem poral causada, seja pelo ruído da colher, seja pelo
sabor da m adalena” (v. III, p. 877, grifos meus).
Um tem po, pois, que é a anulação do tem po depois de havê-
lo vivido, de havê- lo esquecido, de haver atravessado o esquecim en­
to, de h aver ressuscitado em um “gozo d ireto ” , no qual “a única
m aneira de gostar mais delas é conhecê-las m ais com pletam ente, aí
onde se encontravam , ou seja, em mim m esm o, esclarecendo-as até
suas profundidades” (ibid.)- Um tem po do gozo que rom pe com os
m arcos sociais do tem po com partilhado com os m arcos fenomeno-
lógicos do tem po das coisas e com os m arcos psicobiológicos do
tem po da própria vida. Um tem po feito de instantes sem dim ensão,
da m esm a m aneira que a linha reta está constituída por pontos sem
dim ensão.32 N este sentido é que, insisto, o tem po de Proust é a li­
quidação do tem po. E, com o ele disse, extratem poral. O discurso
está no tempo: o gozo está fora dele: im plica-o e o anula. É o tem ­
po subm etido a um a Aufhebung que o recupera dissolvendo-o. Por
isso é que o título do último volum e de Em busca do tempo perdi­
do p o d e ria ser, m elh o r, o tem p o a u fg e h o b e n do que o tem p o
retrouvé, “recuperado” , nas traduções para o castelhano.
Não é o retorno do passado. E “m uito mais, talvez algo que,
com um ao mesm o tem po ao passado e ao presente, é bastante mais
e ss e n c ia l do q u e e les d o is ” (v. III, p. 8 7 2 ). E o q u e su p e ra a
decep ção que in e v ita v e lm e n te aco m p an h a as e x p e riên cias e os
am ores da realidade, a superação da defasagem entre a imaginação,
o desejo e a mem ória.
M a s q u e u m ru íd o , u m olor, j á e s c u t a d o ou j á r e s p i r a d o , o
se jam n o v a m e n te , ao m e s m o te m p o no p re sen te e n o p assad o ,
re a is se m s e r e m a tu a is, id e a i s s e m s e r e m a b str a to s, e d e r e p e n t e
a e s s ê n c i a p e r m a n e n t e e h a b i t u a l m e n t e o c u l t a d a s c o i s a s se vê
l i b e r a d a e n o s s o v e r d a d e i r o e u q u e , às v e z e s h á m u i t o t e m p o ,
p a r e c i a m o r t o , m a s n ã o o e s t a v a p o r c o m p l e t o , d e s p e r t a e se
a n im a a o re c e b e r o a lim e n to celestial q u e lhe é trazido. U m m in u to
d e s c a r r e g a d o d a o r d e m d o t e m p o r e c r i o u e m n ó s, p a r a se n t i-l o ,
o h o m e m d e s c a r r e g a d o da o r d e m d o t e m p o . E c o m p r e e n d e - s e

32. G Bachelard (1932). La intuicion de! instante. Buenos Aires: Siglo Veinte,
1973.
D e c ifra m e n to d o g o zo 203

q u e e le c o n f ie e m s u a a le g r ia , a in d a q u a n d o o s i m p l e s s a b o r de
u m a m a d a l e n a n ã o p a r e ç a l o g i c a m e n t e c o n t e r as r a z õ e s d e tal
a le g r ia , c o m p r e e n d e - s e q u e a p a la v r a “ m o r t e ” c a r e ç a d e s e n t id o
p a r a e le ; s i t u a d o f o r a d o t e m p o , o q u e p o d e r i a e l e t e m e r d o
porvir? (v. III, p. 87 2-87 3)

Os dois tem pos nos quais virtualm ente transcorre a existência,


passado e futuro, estão determ inados e fixos com o tais a partir do
instante presente que é o instante do “p en so ” , do discurso atual.
Passado e futuro não existem no real, são dim ensões introduzidas
pelo sim bólico que arrastam seus efeitos no im aginário sob a form a
da m em ória em relação ao “atrás” e de desejo em relação à “frente” ;
daí ego sum, aqui-e-agora. O sujeito proustiano em erge com o tal a
partir de sua escapada da “ordem do tem po”, ou seja, da ordem de
um a vida psicológica centrada na construção fantasm ática do ego.
A ressurreição, a recuperação do gozo do eu verdadeiro que parecia
m orto porque estav a sepultado, é um a ep ifan ia do real inefável,
ilustra a saída da ordem do discurso que instaura o tempo passado
com o m orto e o tem po futuro com o tem po da m orte. O presente,
tirado do tem po, é ao m esm o tem po um instante fugaz e um a visão
da eternidade. A nulados e postos de lado o sim bólico e o imaginário,
re s ta tã o -s o m e n te o r e s p le n d o r do re a l p u ro , q u e d is s o lv e a
subjetividade, que m erece o nom e de “alucinação” no discurso de
Freud e de Lacan. O sujeito encontra-se com o objeto causa de seu
desejo sem a interposição do fantasma. Tal é o sentido da manuseada
fórm ula lacaniana do “atravessam ento do fantasm a” .
Vive-se. Corpo e linguagem . O utro que é o corpo, não-eu, e
O u tro q u e é a lin g u a g e m , tam p o u co eu. E u é o re p re se n ta n te
im aginário do sujeito, que pretende suturar esta divisão entre duas
substâncias alheias e estranhas. Sobre o corpo se estam pa a m arca
da experiência vivida, um a experiência para ser significada com os
signos do Outro da linguagem . Os sabores das m adalenas, as sonatas
de Vinteuil, as im agens das árvores e os cam panários. Para o sujeito
habitado pela palavra, resta um recurso, a evocação, a memória, a
ordenação seriada, as referências espaço-tem porais. Um recurso que
p ro p o r c io n a p á lid a s im a g e n s , d e s o c u p a d a s p e lo s p ro c e s s o s
secundários do pensam ento, decepcionantes, carentes de vivacidade,
m ortas, fazendo pen sar no que elas eram quando estavam vivas,
204 G ozo

seladas sem pre a fogo por um a diferença, m arcadas pelo signo da


negação. O real é o perdido. Nos m om entos em que retorna, chama-
se alucinação. É possível recuperar o gozo originário de outro modo
a não ser sob as form as esfum açadas da evocação e da nostalgia?
Proust responde que sim, que aquilo que em Freud é “identidade de
p e r c e p ç ã o ” p o d e te r lu g a r a p a r tir de um e n c o n tro c a s u a l,
contingente, não-intencional. Em seu caso, um tropeço em ladrilhos
desnivelados que faz surgir nele um a vivência deliciosa: “A felicidade
q u e a c a b a v a de e x p e r im e n ta r e ra c e r ta m e n te a m e sm a q u e
e x p e rim e n te i ao c o m e r a m a d a le n a e cu ja s c a u sa s p ro fu n d a s
posterguei buscar então” (v. III, p. 867).
“Onde encontram os este real?” - pergunta-se Lacan.33
P o i s é, c o m e fe ito , u m e n c o n t r o , u m e n c o n t r o e s s e n c i a l, é
d i s t o q u e se tra ta o q u e a p s i c a n á l i s e d e s c o b r i u e m u m a c it a ç ã o
q u e s e m p r e v o l t a c o m u m r e a l q u e se s u b t r a i . .. É a tiq u é , q u e
to m a m o s do v o c abu lário de A ristó tele s em sua b u sc a da causa.
T ra d u z im o -la c o m o o e n c o n tro do real. O real e stá alé m do
a u tó m a to n , do re to rn o , da in s is tê n c ia do s sig n o s a q u e nos
v e m o s l e v a d o s p e lo p r i n c í p i o d e pra ze r. O re al é a q u il o q u e j a z
s e m p r e d e t r á s d o a u tó m a to n , e d o q u e r e s u l t a tã o e v i d e n t e q u e
é a p r e o c u p a ç ã o d e F r e u d e m to d a a s u a b u s c a (recherche).
As duas buscas, a de Freud e a de Proust, são um a única. A
m esm a que a de Lacan, a do gozo que espreita por trás dos encon­
tros “fortuitos”, “com o por acaso” . E não se trata da felicidade, mas
do m om ento em que o sujeito é transbordado pelo real, quando se
quebram os m arcos tranqüilizadores da realidade, a de todos.
A f u n ç ã o d a tiq u é , d o r e a l c o m o e n c o n t r o - o e n c o n t r o
c o m o p o d e n d o ser fracassado, que é e ssen cialm en te en co n tro
f r a c a s s a d o - a p r e s e n t o u - s e p r i m e i r o na histó ria d a p s ic a n á lis e de
u m a m a n e i r a q u e , p o r si só, b a s t a p a r a d e s p e r t a r n o s s a a te n ç ã o :
a d o t ra u m a tis m o . (Ibid.)

O traum atism o com o tropeço com o real, com o que sem pre
volta ao seu lugar, com o im possível do eterno retom o, com isso,

33. J. L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre concepts fo n d a m en ta u x


de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. p. 53-54.
D ecifram ento do gozo 205

Isso, que não deixa nunca de estar presente com o pano de fundo
de to d a a e x p e riê n c ia . O tra u m á tic o não c o m o a g ra d á v e l ou
d e s a g ra d á v e l, fo ra do r e g is tro d o s e n s ív e l p a ra a lg u é m , do
“ p a to ló g ic o ” (n o s e n tid o k a n tia n o ) , m as c o m o e x c e s s iv o ,
inassim ilável, produtor de um fa d in g do sujeito. No reencontro do
Tempo proustiano, na “identidade de percepção” freudiana e no gozo
lacaniano, tem os este den o m in ad o r com um da abolição tanto do
tempo quanto do espaço que m arcam a subjetividade.
N este ponto da exposição é difícil resistir à tentação de citar
e g lo sa r to d a a e x p e riê n c ia que P ro u st relata na b ib lio te c a dos
G uerm antes e que é o ponto de partida (m ítico) da escritura de seu
liv ro . T ra ta -se d esse p o n to do re la to em qu e, d epois de 3.200
páginas de novela, o autor percebe que tudo nele fora uma preparação
p ara o m om ento em que tro p e ç a ria com um a re ssu rrre iç ã o das
sensações que, com o m arcas de origem , o rientarão sua vida. N a
c o n c e p ç ão que venho d ese n v o lv e n d o , trata-se do m om ento do
encontro dos dois extrem os da linha reta descrita na carta de Freud.
D eslizav a-m e ra p id a m e n te sobre tudo isso, m ais
i m p e r i o s a m e n t e s o l i c i t a d o p e l o c a r á te r d e c e r t e z a c o m o q u a l se
i m p u n h a e s ta f e li c i d a d e d o q u e p o r b u s c a r s u a c a u s a , b u s c a e m
o u tro tem p o d e m o ra d a . M a s eu a d iv in h a v a e sta c a u s a ao
c o m p a r a r as d i v e r s a s i m p r e s s õ e s f e li z e s q u e t i n h a m e n tr e si e m
c o m u m o que eu e x p e r im e n ta v a n elas ao m e s m o te m p o no
m o m e n t o a tu a l e e m u m m o m e n t o d i s t a n t e , a té s o b r e p o r o
p a s s a d o n o p re sen te e f a z e r -m e v a cilar e m sa be r e m qua l d o s dois
m e enco ntrav a; para d ize r a v erdade, o ser que en tã o sabo rea v a
e m m im esta im p ressão a sa b o rea v a n aq u ilo q ue e la p o ssu ía de
c o m u m com um d ia a n tig o e ag o ra, n a q u ilo q u e tin h a de
e x tra te m p o ral, um ser q u e ap en as ap are cia q u an d o , p o r um a
d e s s a s i d e n t i d a d e s e n t r e o p r e s e n t e e o p a s s a d o , p o d i a se
e n c o n tra r no ú n ico m eio em q u e p u d e sse viver, g o z a r da
e s s ê n c i a , d a s c o i s a s , o u s e j a , f o r a d o t e m p o ” . 34 E c o n t i n u o

34. Dev olvo a vírgula que separa “ da essência, das coisas” que todas as edi­
ç õ es francesas e espanholas o m ite m por considerar que é um “erro ev i­
d e n te ” , v. III, p. 1134, e m referência ao v. III, p. 871, n. 6. Considero que
ali não há um “erro” de Proust, m as um a absoluta exatidão tanto nas pala­
vras com o na pontuação da frase.
206 G ozo

c ita n d o P ro u st: Isto e x p lic a v a q ue m in h a s in q u ie ta ç õ e s so b re


m in h a m o rte cessaram no m om ento em que reconheci
in c o n s c ie n te m e n te o s a b o r d a p e q u e n a m a d a le n a , p o sto q u e
n e sse m o m e n t o o s e r q u e e u h a v ia sid o e ra u m se r e x tra te m p o ra l
e, p o r c o n s e g u i n t e , d e s p r e o c u p a d o d a s v i c i s s i t u d e s d o fu t u r o .
E s t e s e r n u n c a h a v i a c h e g a d o a m i m c j a m a i s h a v i a se
m a n i f e s t a d o f o r a d a a ç ã o , d o g o z o i m e d ia t o , c a d a v e z q u e o
m ila g re d e u m a a n a lo g ia m e fize ra e s c a p a r d o p re sen te . S o m e n te
ele t in h a o p o d e r de m e f a z e r r e c u p e r a r os d ia s a n tig o s, o t e m p o
p e r d id o , a n te o q u a l o s e s fo r ç o s d e m in h a m e m ó r ia e d e m in h a
in te lig ê n c ia fr a c a s s a v a m se m pre, (v. III, p. 871, g rifo s m e u s )

A credito que a idéia de Proust sobre o tem po em sua obra e


em sua vida está suficientem ente clara e que a reiteração das cita­
ções apenas poderia privar o leitor do gozo de recorrer pessoalmente
às cinqüenta páginas da cena da biblioteca. M as devem os passar ao
ponto seguinte que leva ao seu auge a leitura que, a partir de Proust,
pode se fazer de Freud e de Lacan. R efiro-m e ao gozo com o uma
escritura e às possibilidades e às m odalidades da leitura dos signos
gravados, sobre os quais está edificado nosso eu real.
Ao longo do ensino de Lacan, insiste-se na idéia de que não há
gozo que não o do corpo. Não poucas vezes o estudioso enfrenta
com in c re d u lid a d e e s ta afirm a ç ão , p o is p a re c e c o n tra p o r-se à
experiência do gozo do espírito ou do saber, daquilo que poderia
acertadamente qualificar-se de gozo do significante, esse gozo fálico
de nossos cuidados expositivos nos três capítulos anteriores. E é
claro que um a form ulação não acaba com a outra, mas o postulado
lacaniano é que, se o significante pode ser portador do gozo, o é à
m edida que evoca e m obiliza as escrituras registradas com o gozo
anterior e exterior ao significante. Pois a palavra é o caminho aberto
ao falan te p ara se acercar do gozo perdido que, esse, é gozo do
corpo. De m odo que, psicose à parte, apenas há acesso ao gozo do
corpo pelo cam inho da articulação significante. E há outro gozo,
além, o gozo do O utro (sexo).
Isto im p lica a su c e ssã o já d e sc rita de m arcas, cifra m en to
d essas ex p eriên cias em um Isso de sincronia e perm utabilidade,
d ecifra m en to das in sc riç õ e s do Isso em um a p a la v ra absurda e
care n te de se n tid o q u e p arece m ais acid en te do que revelação,
interpretação dessa palavra insensata do inconsciente em um sistema
D ecifram ento do gozo 207

regulado de significações segundo o conjunto da língua e, finalmente,


a travessia da barreira do sentido para recuperar, depois do vaguear
palavreiro, a verdade de um sujeito exilado do gozo.
A v i r tu d e (...) d o g a io s a b e r (...) n ã o se tr a ta d e m o r d i s c a r
o se ntido, m as de rasu rá-lo o m ais p ossível se m q u e fa ç a liga para
e s t a virtude , g o z a n d o d o d e c i f r a m e n to , o q u e i m p l i c a q u e o gaio
s a b e r n ã o p r o d u z a , a o f i n a l , s e n ã o a q u e d a , o r e t o r n o ao
p e c a d o . 35 (1971 )36

O Proust da cena da biblioteca sente e vive a recuperação do


gozo que é a anulação do tem po na superp o sição do passado da
mem ória, do presente do fantasm a e do futuro do desejo em um ins­
tante de epifania e im ortalidade. Os objetos de suas rem em orações
se carregam para ele de sentidos ocultos. Eles assum em o caráter
de hieróglifos que pedem para ser decifrados; este deciframento “era
d ifíc il, m as apenas ele fo rn e c e a lg u m a v erd ade para ler” (v. III,
p. 878). Apenas ele, “porque as verdades que a inteligência capta di­
retam ente com toda clareza no m undo da plena luz têm algo menos
profundo, m enos necessário do que aquelas que a vida nos com u­
nicou ao nosso pesar em um a im pressão, m aterial posto que entrou
por nossos sentidos, mas do qual podem os apreender o esp írito ”
(ibid.). Estas im pressões com põem -se em nós com o um livro, “um
livro de bruxarias com plicado e florido”, frente ao qual não temos
a liberdade de escolher, mas que se nos apresentam com o revela­
ções de nosso ser verdadeiro e oculto.
Q u em p o d e rá le r p o r n ó s e s te “ liv ro in te rio r de sig n o s
d e s c o n h e c id o s ” ? Q u e m p o d e rá d iz e r q u e o te n h a m o s
verdadeiram ente lido quando a leitura “é um ato de criação”, ou seja,
que co n stitu i re tro a tiv a m en te (n a c h trä g lic h ) ao lido, no qual a
escritura se constitui com o prévia a partir de sua leitura? Qual era
a ordem de realidade de Em busca do tem po perdido antes de sua
escritura pelo sujeito Proust? D o livro pode-se afirm ar aquilo que
L acan disse do in co n scien te: nem e ra nem não era, p erten cia à
ordem do não realizado. Sua escritura o cria e ao criá-lo o projeta

35. J. L acan (1974). A. É., p. 526.


36. N. A. Braunstein. Existe o sentido, mas não o Sentido do sentido no qual
o sentido nos faz acreditar, 2004. No prelo.
208 G ozo

retroativam ente no tem po, o faz aparecer em um passado que nunca


existiu, é m ais, cria o passado com o aquilo que é recuperado pela
escritura.
A s s im , a s in c r o n ia do o b je to , do p ro d u to c ria d o , é a
co n seqü ên cia da d iacronia de sua ordenação em leitura e de sua
transform ação em uma nova escritura, a do livro que hoje qualquer
leitor pode ler, se o quiser e se tiver a coragem necessária, com a
assinatura de Mareei Proust. O que acontece agora já não tem relação
com a v iv ê n c ia de P ro u st. E le d e c ifro u seu liv ro in te rio r e o
transform ou em objeto, um objeto que é um a obra de arte e que se
oferece ao consum o de um leitor que pode (ou não) usá-lo com o
in stru m e n to p a ra o d e c ifra m e n to de su a p ró p ria a lín g u a , das
inscrições das quais ele próprio é um efeito. N este sentido, propõe-
se o objeto da sublim ação com o em baixador do real:
A arte é o q u e h á de m ais real, a m ais a u stera e sc o la d a vida
e o v e r d a d e i r o J u í z o F i n a l. E s s e liv ro , o m a i s p e n o s o d e t o d o s
pa ra decifrar, é t a m b é m o ú n ico q u e a re alid a d e nos dito u, o ún ico
c u ja “ im p r e s s ã o ” foi feita e m nó s p e la re alidade m e s m a (...) O livro
c o m c a r a c t e r e s f i g u r a d o s , n ã o t r a ç a d o s p o r n ó s, é n o s s o ú n i c o
livro. (v. III, p. 880)

N ão é n e c e ssá rio ab u sar da p a rá fra se q u ando as id éias se


expressam com tal justeza e quando a superposição dos significantes
utilizados torna transparente a relação entre a proposta proustiana e
a em presa de um a análise: “Um grande escritor não tem, no sentido
com um , que inventar este livro essencial, o único verdadeiro, posto
que já existe em cada um de nós; tem que traduzi-lo. O dever e a
tarefa de um escritor são os de um tradutor” (v. III, p. 890).
E ste tr a b a lh o d o artista, q u e tr a ta d e ve r sob a m até ria , sob
a e x p e r iê n c ia , so b as p a la v ra s , a lg u m a c o is a d if e r e n te , é
e x a ta m e n te o tra b a lh o in v e rs o d a q u e le que, em c a d a m in u to ,
q u a n d o v ivem os sep arad o s de nós m esm os, o am or próprio, a
p a ix ã o , a in telig ên cia e o c o stu m e tam b é m c u m p re m e m nós,
q u a n d o a m a ssam , sobre n o ssas im p re ss õ e s v erd ad eiras, e p a ra
q u e n o s se jam o c u lta d a s por c o m p le to , as n o m e n c la tu ra s e os
fin s p r á tic o s q u e f a ls a m e n t e c h a m a m o s v id a... E sta a rte tão
c o m p l i c a d a é, j u s t a m e n t e , a ú n i c a a r t e v i v e n t e . S o m e n t e e l a
e x p r e s s a p a r a o s d e m a i s e n o s faz v e r n o s s a p r ó p r i a v id a , e s t a
D ecifram ento do gozo 209

vida que não pode “observar-se”, e da qual as aparências que se


observam necessitam ser traduzidas e amiúde lidas ao contrário
e penosamente decifradas. Este trabalho que fizeram nosso amor
próprio, nossa paixão, nosso espírito de im itação, nossa
inteligência abstrata e nossos costumes; este é o trabalho que a
arte deverá desfazer, é a marcha em sentido contrário, o retorno
às profundezas, onde aquilo que ex istiu realm ente jaz
desconhecido por nós, que nos fará seguir, (v. III, p, 896)

“E ste trab alh o do a rtista ...” etc., tem ín tim a relação com a
p rá tic a da p sic a n á lise com o d esm o n tag em dos esp e lh ism o s do
im aginário, das arm adilhas do am or próprio, das capas sobrepostas
de nom enclaturas e de significantes convencionais, de desmontagem
p e r via d i le v a r e p a ra p e r m e a b iliz a r o in c o n s c ie n te , e sse
intermediário entre o Isso e o diálogo. Pelo cam inho de Proust e pelo
de Freud, chega-se a um resultado com parável: a recuperação do
gozo m ediante um regozijo no decifram ento. A suposição de partida
é a mesma: o livro já está inscrito, o disco já está gravado, mas essas
inscrições estão sepultadas com o hieróglifos no deserto. N ão há o
que inventar nem o que agregar; deve-se recuperar e traduzir com
fidelidade o texto orig in ário que exige a d iscrim inação para não
distinguir o que é idêntico e para não confundir o que é diferente.
E p ara quê? Para ch eg ar a um a nova escritu ra, p ara que o gozo
decifrado se inscreva em um ato que faça passar ao real o efeito
desse decifram ento. A í onde o sujeito sabe de um a vez por todas
quem é a partir da certeza que deriva de um a ação que inscreve seu
nom e próprio com o conseqüência dessa ação. H istorizando.
Porque - dito com as melhores palavras - os atos são nos­
so símbolo. Qualquer destino, por longo e complicado que seja,
consta na realidade de um único momento: o momento em que o
homem sabe para sempre que é [pois] um destino não é melhor
que outro, mas todo homem deve acatar o que leva dentro.37
Ao final do percurso não há, não pode haver, um a superação
d a p a rtiç ã o c o n stitu tiv a do su je ito , e ssa p a rtiç ã o im p o sta p ela
e s tr u tu r a e n tre o U m do G o zo e o O u tro da lin g u a g e m . M as

37. J. L. Borges (1949). Biografia de Tadeo Isidoro Cruz. In: El Aleph. B u e ­


nos Aires: Emecé, múltiplas edições.
210 G ozo

tam pouco há um a resignação, m as sim a assunção do lugar segundo


da subjetiv id ad e com respeito ao saber, a um saber sem sujeito,
escritura objetivada da qual o falante é efeito, com o “resposta do
real”.38-19
Para alcançar esse resultado deve-se atravessar m uralhas de
co m p reen são , de sentido, de sig n ificação , de apego aos m arcos
consensuais da realidade, às certezas com partilhadas, à ideologia de
um saber totalizante que é efeito do discurso da U niversidade (pelo
cam inho da “educação” e-ducere e pelo cam inho da uniform ização
das re p re s e n ta ç õ e s p o r m e io d a in d ú s tria d a c o m u n ic a ç ã o ).
R ecordando sem pre que o falante goza, m as seu gozo o horroriza
e dele nada quer saber. Que o Um se apaga, mas é de extraordinário
d e sc o n h e c id o no d isc u rso q u e é o d isc u rso do O u tro ; q u e as
estruturas constituídas do sujeito tendem a obturar este nível do gozo
com o m atriz do falante.
Ao final do percurso, podem os refazer a história: a de Freud,
com sua apreensão genial do conjunto da estrutura psíquica na carta
52 e seu p acien te trab alh o de recherche que o lev a a cen trar-se
prim eiro no trabalho de interpretação, de D eutung, das form ações
do incon scien te. A p artir de sonhos, atos frustrados e sintom as,
e ste b e le c e u o c a tó lo g o d os re c u rs o s q u e p o s s ib ilita m q u e se
o u to rg u e sentido às m an ifestaçõ es ap aren tem en te ab surdas dos
processos primários. Logo, gradualmente, resistindo-se a ele, admitiu
que este inconsciente já é tradução e passagem pelo rodam oinho da
palavra de um a realidade mais fundam ental, sincrônica, real, à qual
denom inou de Isso. Por seu lado Lacan, mais de meio século depois,
re fe z o c a m in h o : p a rtiu d a e x p e r iê n c ia a n a lític a q u e,
fe n o m e n o lo g ic a m e n te , é e x p e riê n c ia da p ala v ra , p e rd e u -se ao
confundir Isso e inconsciente em sua célebre fórm ula gnôm ica: Isso
fa la e logo distinguiu os dois planos: enquanto o in consciente é
p alav ra e fala, é discurso (do O utro), o Isso goza e está feito de
signos, não de palavras. E possível que nestes term os a distinção
seja esquem ática e que caiba um a precisão adicional. O inconsciente
não a p e n a s é d is c u rs o do O u tro , m as e s tá sim , p o r su a vez,

38. J, L acan (1973)./!. É , p. 458.


39. J.-A. Miller (1983-1984). Seminário: D es réponses du réel. Inédito.
D ecifram ento do gozo 211

estruturado com o um a linguagem . Nesse sentido tem duas caras, é


de d u p la verten te: p o r um lado, o lh a as e sc ritu ras do Isso e as
decifra; por outro, recebe os significantes que são os do O utro e
com esses significantes realiza seu trabalho de leitura. O inconsciente
se sustenta nesse incôm odo encavalam ento: entre o inefável núcleo
de nosso ser e as estruturas do intercâm bio da palavra.
Em sín tese, o in co n scien te é d ecifram en to do gozo e seus
p ro d u to s são su sc e tív e is de in te rp re ta ç ã o . A p rá x is d a an á lise
c o n s iste em in te rv ir so b re o d isc u rso d e sa rm a n d o a tra m a de
significações para que aflore esse gozo do decifram ento de um saber
que não é saber de ninguém do qual alguém, o sujeito, é o efeito, o
filho. Regozijo.
V

O gozo na histeria

1. O p sican alista e a h istérica

U m a certa tradição impõe que o analista com ece a falar sobre


a histeria e as histéricas, fazendo seu elogio e m anifestando sua
gratidão por serem elas as inventoras da psicanálise, aquelas que
fo rçaram o F reud m éd ico a c a la r e a q u elas que o en sin a ram a
escutar.1U m a vez que inventaram o psicanalista e que este aprendeu
ao se render com ouvidos com placentes ao desdobram ento de seu
sofrim ento, enam oraram -se de sua invenção, deste objeto admirável
que se sustentava sem desfalecer em um contrato de longa audição.
Porque o psicanalista não pede senão que se fale e por elas fazerem
do relato porm enorizado de seus sintom as e de seus desencontros
com o O u tro um m odo de se su ste n ta r n a e x istên c ia ; p o rq u e o
analista registra com sua atenção flutuante todas as suas desventuras
e p orque elas vivem suas desv en tu ras p a ra a testem unha que as

1. L. Israel. La jo u issa n c e de l ' hystérique. Paris: Arcanes, 1996. E ste livro,


public ado e m francês vários anos depois de G ozo, tem - apesar do título
- algu ns pontos de contato c om o que se aborda neste capítulo. C o rr e s­
ponde, sem dúvida, a idéias que já estavam no ambiente, c o m o o prova o
que seja a elaboração escrita de um seminário oferecido pelo autor em 1974.
Israel morreu em 1996, qu ando seu livro estava no prelo. Inicia com um
“Elo gio da histérica” , p. 43.
216 Cio/ii

escutará com sim patia com placente; por isto é que o encontro di
ambos está inscrito de antem ão na natureza das coisas e se oferciv
à prim eira vista com o um paradigm a da predestinação.
M as não é que a histérica apenas invente para o psicanalistn
Também o analista inventa para a histérica, porque o dispositivo qui
inventaram entre ambos reproduz a espécie que o engendrou. A tal
p o n to q u e h oje, la c a n ia n o s p o r fim , a c eitam o s com o um fato
estabelecido que a histerização estrutural é a condição para que todo
falante, não im porta sua estrutura clínica, possa entrar em análise
A fórm ula do discurso da histeria é a fórm ula do com eço de uma
análise. Tem de haver um a queixa, um sintom a, transform ado cm
dem anda de saber, que encubra uma dem anda incondicional de amor
e que se dirija a quem supostam ente detenha esse saber sobre aquilo
que se ignora de si mesmo. O sofrimento, transformado em pergunta
feita ao O utro, é o fundam ento que torna possível um a análise. O
d isp o sitiv o an a lític o é o o fe re c im en to do terren o para que um
discurso se histerifique. N ão há, então, por que estranhar se, desde
que existe psicanálise, a h isteria m udou em suas m odalidades de
apresentação. A solidariedade entre histeria e psicanálise é completa.
(Solidariedade não im plica harm onia.) As histéricas inventaram o
d isp o sitiv o que en g endrou o analista, o analista que pede e que
produz histéricas, estas que desdobram hoje seus encantos no campo
da e s c u ta e não no cam p o p rim e iro da visão. Se antes elas se
m o strav am com o e sp etácu lo ch arco tian o que se d erre tia com a
hipnose, é pelo falar que as reconhecem os hoje.
E na dupla analista e histérica é impossível decidir/dizer quem
foi o primeiro.
E ste é o fato . C om o o assin alo u L acan, com sua o ferta o
psicanalista cria hoje a dem anda. À histérica não custa reconhecer
que foi isso exatam ente o que sem pre quis, antes ainda de chegar
a sabê-lo. D ispor de um O utro sobre o qual descarregar seu sintoma
e su a in s a tis fa ç ã o , um s u p o rte e um te ste m u n h o n e u tro , não
culpabilizador com o o foram todos os que antes a escutaram, alguém
capaz de entender a verdade em sua palavra em lugar de rejeitá-la
c o m o m e n tiro sa ou in c o n siste n te . Q uando o en c o n tra, cura-se
ra p id a m e n te e faz do O u tro um su b stitu to dos sintom as. Freud
cham ou isto de “neurose de transferência” ; Lacan não o segue nesse
O gozo na histeria 217

cam in h o , ain d a q u e ta m p o u c o se d e te n h a p a ra c o n s id e ra r em
detalhes este sintagm a freudiano. Suponho que por achar que esta
expressão é pleonástica. Pois a transferência é a neurose, a neurose
necessária para que a análise progrida.
A neurose entra na transferência e assim o sujeito da neurose
entra em análise. A “satisfação sexual substitutiva” que era o sintoma
se desloca agora sobre a figura do analista e o gozo que se ancorava
no sofrim ento m uda agora de ancoradouro. Pois não fica à deriva,
não, quando se assen ta no nível do d iscurso, ou seja, da pulsão
vocal, m odalidade da Trieb que apenas foi entrevista (por R obert
Fliess) antes de Lacan.
A an álise p o d eria ser o cen ário e o porto de d estin o desta
m udança na localização do gozo. Sim ; há um gozo da análise, do
cu m p rim e n to da re g ra fu n d a m e n ta l, do c o n tra to a n a lític o , do
enquadre discretam ente erotizado no qual “tudo” poderia acontecer
sem q u e “ n a d a ” a c o n te ç a , d o s in te rc â m b io s d e d is c u rs o s e
interpretações, do falar e do ser falado. E um a das ciladas da análise
e, p o r v e z e s , d as m a is d if íc e is de ro m p e r p e la “ tra m a de
satisfações”2 que é capaz de envolver tanto o analisante quanto o
analista que não saiba estar à altura de sua função.
A histérica e o analista inventam-se reciprocamente com relação
ao gozo. O desejo do analista deverá, então, aparecer com o vala de
contenção e canal de evacuação p ara esse gozo; se não consegue
fazê-lo, o estan cam en to da an álise é a co n seq ü ên cia inevitável.
Apalpa-se aqui a dim ensão de gozo da transferência que é, com o o
queria Freud, m odalidade da resistência, sem por isso deixar de ser
o m otor da análise. Transferência do gozo, dos fundos depositados
no banco do inconsciente, do capital quantificado, cifrado.
A histérica quererá ser escutada se o Outro quiser que lhe fale.
Não se trata de um encontro fortuito, mas do cum prim ento de um a
exigência estrutural. Ela dem anda ser ouvida, pede o tempo do Outro
com o m edida do desejo de sua palavra. O discurso, diferentem ente
do instante do olhar, requer tem po para ser desenvolvido e é assim
que o tem p o se to rn a o b je to e o d isc u rso tem de se a rm ar dos

2. J. Lacan (1958-1961). Écrils. Paris: Seuil, 1966. p. 602. E m espanhol, E s­


c rito s 2. México, Siglo X X I, 1984. p. 582.
218 G ozo

re c u rso s que p erm itam que o O u tro se su ste n te com o ouvinte.


S u s p e n sõ e s da fra se , e n tre c o rta m e n to p o r ch o ro s e su sp iro s,
insinuações de relatos saborosos ou dolorosos que se postergam ,
criação do suspenso em torno de uma revelação que tarda, rodeios
e desvios aparentem ente caprichosos quando o Outro formula uma
p ergunta, d osificação cu id ad osa das confidências, aproxim ações
en viesadas do escabroso. C om o não haveria de ocorrer a Freud,
escutando-as, a im agem da cebola com suas cam adas concêntricas
de resistência à m edida que o discurso se aproxim a do centro, do
“núcleo pato g ên ico ” que é a lem brança do traum a, fortaleza que
encerra o encontro do gozo com o gozo do Outro?
O d isc u rso , assim e stru tu ra d o , seduz, co n d u z até si. M as
apenas a quem quer e espera ser seduzido. O sedutor conta com o
beneplácito daquele que pede para ser seduzido, que não é, portanto,
sua vítim a, mas seu cúm plice. N ão excessivo, portanto, recordar
aqui que o ato analítico está determinado pelo gozo e pela necessidade
de se preservar dele.
A histérica é entusiasta da análise, um a análise que lhe custa,
que avança em meio a imensas dificuldades, das quais se queixa, mas
que não acaba de recom endar e ate exigir àqueles que a rodeiam.
A ssim, dá a partida a análise, com a exposição detalhada dos
so frim en to s e da resp o n sab ilid ad e que o O utro e sua traição ou
ingratidão têm em si. A tendendo aos signos do interesse do analista
que ele deixa escapar para aderir à sua dem anda, para lhe oferecer
em a b u n d â n c ia o s d a d o s , os so n h o s ou as a s s o c ia ç õ e s
transferenciais vividas com o dem andas form uladas a ela. É o que
os m édicos e h ip n o tizad o res de an tig am en te haviam conhecido
c o m o um tra ç o de c a r á te r e q u e b a tiz a ra m co m o n o m e de
“sugestionabilidade”. Esse traço deu base a Freud para escrever um
inesquecível capítulo de sua psicologia das massas.
C om um desespero por se fazer am ar que a leva a crer que
ama... e daí apaixonar-se não há mais do que um passo. A espreita
de m anifestações do desejo do Outro que puderam se filtrar como
dem andas e pronta para satisfazer tais dem andas, para sacrificar-se
inclusive até a imolação.
Esta disponibilidade para aquilo que o Outro pudesse demandar
a p arece com o um a “p la stic id a d e ” especial que con trasta com o
outro pólo que é a “rigidez” obsessiva. Que o Outro diga o que lhe
O gozo na histeria 219

falta para ser dado, para que ela se dê no lugar da falta do Outro,
ou seja, para se identificar, para chegar a ser o desejo do Outro.
Se o O utro quer ser um escultor que plasm e os seres humanos
segundo formas ideais, encontrará na histérica a argila m aleável que
lhe perm itirá ser um Pigmaleão.
Se o O utro se entregou a um a causa que o uniform iza, ela se
apaixonará pelo uniform e que foi investido com o objeto do desejo.
Aventais de m édicos, batinas de sacerdotes, togas de m agistrados,
b elezas da o ste n taç ã o e da m aq u iag em , e lo q ü ên c ia s do d ize r e
poderes da política que atuarão assim com o objetos im aginários aos
qu ais se p re n d e rá o su jeito em um a d im en são quase eto ló g ica.
Encanto suave do apagam ento do eu na-identificação com o ideal do
eu do Outro. A salvação na Causa.
M ais freqüente é que o objeto que o Outro reconhece tam bém
seja um a mulher, a O utra mulher. Aparece aí a pergunta pelo atributo
que a O utra tem com o segredo da atração que sobre ele exerce e da
identificação com o que pode ser o m otivo da atração entre eles. O
papel de interm ediária e de espiã dos segredos do am or lhe vem a
propósito. O perará com o “procuradora”, com o ju iz e, parte, com o
“ a c o n v id a d a ” (cf. S im o n e de B e a u v o ir), co m o e le m e n to que
sustenta as intrigas, identificando-se e escutando as queixas de uma
e outra parte, com o Dora, representando os papéis que a tram a lhe
inspira.
Q uer se encarregar do gozo, extraindo-o da suposta jazida que
é o O utro e para isso não há cam inho mais curto do que confundir-
se com ele, en trar em sua bolsa. O gozo é um a essência que lhe
escapa e que apenas poderia ser fixado sobre a base de reconhecê-
lo e pegá-lo no Outro, um O utro que deve ser construído, esculpido
e defendido a qualquer custo. O Outro que é o assento de um gozo
ilim ita d o , o Pai ideal, p rim itiv o , m o rto desd e sem pre, do m ito
freu d ian o que ela, a h istérica, em penha-se em sustentar além de
todos os desm entidos.3
A esse g ozo alh eio e fu g id io trata ela de m im ar, fa ze n d o
sem blante dele (“artifícios” , diziam os clínicos depreciativos). Em
u m a atu ação à qual não co n c e d e m aio r co n fian ç a, in se g u ra de

3. C. M illot. N ododaddy. Paris: Point H ors L igne, 1988.


220 G tm i

e x p e rim e n ta r o q u e re p re s e n ta . E n tra n a in trig a co m o atri/.,


figurando-se o que poderia sentir no lugar do O utro e os efeitos qiu-
se produzirão no O utro segundo as diferentes op(era)ções que cm
cada m om ento lhe são oferecidas para que interprete seu papel. Daí
que sua própria atuação lhe é apresentada como artificial, rebuscada,
falsa. Lacan aludirá ao costado Sem Fé da intriga histérica, deste
desdobram ento que a leva a ficar um tem po sobre o cenário e entre
os espectadores, participando e subtraindo-se no jo g o dram ático,
dizendo-se a cada m om ento que é “de m entirinha” que está nele c
logo saberão quem ela é de verdade, estando sem estar, sentindo a
im postura do gesto e a im postação da voz, oferecendo ao Outro um
corpo an estesiad o ou m orto que é observado desde fora por um
olhar ansioso de captar o que esse Outro faz ante seu corpo deixado
no abandono e na anestesia.
M a s o c o m p ro m is s o é m e n o s fin g id o do q u e e la crê.
Equivocar-se-á ao identificar a dem anda do O utro, um a dem anda
que ela pediu e tom ou com o objeto de seu desejo, com o desejo do
O u tro . T erá de v iv e r p a ra p r e e n c h e r o O u tro , c o n s a g ra d a a
satisfazer o que supõe ser o desejo do O utro à custa do sacrifício
de seu desejo, o próprio, um desejo duvidoso que deixa de bom
g ra d o e com a lív io . O p ta rá d e ste m o d o p o r um c a m in h o de
abnegação, de sacrifício , de renúncia. P ara isso, terá de ser um
com plem ento im prescindível, um objeto apendicular do Outro. E de
nada se queixará depois m ais am argam ente do que de haver sido
tratada com o objeto. Em sua imaginação se figurará que o Outro a
quer perversa (inocente) e se representará fantasm aticam ente essa
perv ersão p ara assim asseg u rar-se do O utro segundo a fórm ula
proclam ada p o r L acan 4 com o característica geral das neuroses e
confirm ando as observações de Freud em seus trabalhos sobre os
fantasm as e sobre o ataque histérico de 1908 e 1909.5,#
O ferece-se com o objeto que encobre a castração do Outro que
aparece assim , graças a este apêndice pórtico, em sua com pletude

4. J. Lacan (1960). É crits, p. 825; E scritos 2, p. 805.


5. S. Freud (1908). O bras com pletas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires:
A m orrortu, 1976. v. IX, p. 139.
6. S igm und Freud (1909). O bras com pletas, v. IX, p. 207.
O gozo na histeria 221

sem falhas, no lugar do dono e senhor do gozo, no sítio inacessível


do Urvater. Essa é a fórm ula da histeria proposta por Lacan em seu
sem in á rio so b re a tra n sfe rê n c ia e lo g o d e ix a d a (p o r q u ê? ) no
esquecim ento:7

@ 0 A
-cp

A o p e ra ç ã o é in te re sse ira . S er n o fa n ta sm a o o b je to que


assegura o gozo do p a rten a ire do am or p ara assim negar, não a
castração do O utro, com o acontece nas perversões, mas a própria,
é a lg o q u e le v a a o c u p a r um lu g a r p re f e r e n c ia l, a to rn a r-s e
im prescindível - no fantasm a - para o Outro. Este lugar é incerto.
C om o estar convencida desse lugar de privilégio do qual a O utra
m ulher poderia despojá-la? Até que ponto é digno e o Outro aprecia
o sa c rifíc io e a h om enagem que receb e? Q ue efeito s podem se
produzir por sua separação e sua perda?
Se o O utro a quer, é m ister que dê provas. D eve-se ver até que
ponto está disposto a chegar e se é capaz de responder às oferendas
ilimitadas que recebeu. A lâm ina libidinal que a une com esse Outro
incerto é um órgão elástico que deve ser constantem ente estirado até
com provar seu lim ite.8
E o O utro, à larga, quase fatalm ente, revela não m erecer os
sa c rifíc io s, ser incap az de re sp o n d e r com g ratid ão , ser traidor,
pervertido, sádico, indigno da confiança depositada. O ato seguinte
ao da o fe re n d a sacrificial sob o lem a de “ tudo por e le ” é o da
re p ro v a ç ã o , da a c u sa ç ã o , da a u to c o m is e ra ç ã o , da re c la m a ç ã o
violenta, da provocação que produzirá as provas palpáveis da traição
do Outro. E o terceiro ato é o do deslocam ento para um novo Outro,
p e sso a ou c a u sa , que p a re ç a e x ig ir o s a c rifíc io p a ssio n a l para
restau rar ou alcançar sua plenitude. Sem pre à espera desse O utro
absoluto, definitivo, ao qual ela ofereceria Tudo. Frente a essa figura

7. J. Lacan. Le sem inaire. L ivre VIII. Le transferi. Paris: Seuil, 1991. p. 289
e 295.
8. J. L ac an (1960-1964). É crits, p. 848; E scritos 2, p. 828.
222 C io/n

do Pai Ideal, todos os dem ais (os outros com m inúscula) estão em
falta, são m enos válidos.
Assim, entendem -se as quatro belezas da histérica.
Queixosa, vítima, objeto de humilhações, traições, incompreen-
sões e ingratidões, ela é alm a bela, depositária im erecida de sevícias
e desgraças. O ferece-se com o objeto ao olhar e à escuta do Outro.
“O lhe ao que me vejo reduzida.” “Ouça, se é que pode suportar, o
relato de m inhas d esv en tu ras.” Sade o prefigurou com um título
m ordaz: Justine ou os infortúnios da virtude. O ser da alm a bela
confunde-se com essa queixa continuada, esse prolongado lam en­
to, essa sucessão de sintom as e crueldades. O gozo corre ao largo
do relato sem que seja identificado com o tal nos porm enores das
traições do am ado, os erros dos m édicos que deixam um resto de
corpo que sofre, descartado, m arcado por cicatrizes cirúrgicas, as
faltas de reconhecim ento por parte dos filhos e am igos, as injusti­
ças de chefes e professores. Sofre e chora ao contar na outra cena.
C onta reavivando o sofrim ento das experiências desagregadoras na
extensão da lâm ina além do tolerável. O relato da inocência perse­
guida, do sujeito que é castigado quando som ente segue a lei do
coração, exige a inversão dialética indicada por Lacan no com eço de
seu ensino.9 O fantasm a de flagelo, batem numa criança, isolado por
Freud, é a colocação em cena privilegiada da alm a bela.
A segunda beleza da histérica é a belle indifférence. Bela indi­
ferença para atravessar, sem se despentear, os furacões e m oinhos
de d esespero que se geram em torno dela. O O utro se confronta
com seus próprios limites frente a uma experiência, aparentem ente
im previsível, que o insta a atuar e logo o preenche de reprovações
por sua atuação. Toda vez que o Outro resolve fazer algo em prol
ou contra a dem anda histérica, dem anda de que se responda a seu
oferecim ento e entrega, ela se subtrai à homenagem ou à reação que
suscitou. N ão é isso que ela queria. Seu desejo continua sendo um
desejo insatisfeito. A indiferença, quando não o franco desdém , são
respostas à m obilização do O utro. Insensibilidade que tam bém o é,
ou que prim eiro é, do corpo. O alim ento ou a bofetada, as carícias
e o sexo, os adornos e as vestim entas que realçam ou que desm e­

9. J. L acan (1951-1952). É crits, p. 219; E scritos 2, p. 211.


O gozo na histeria 223

recem a beleza “dão no m esm o” . São problem as para o desejo do


Outro, esse desejo que ela desperta ou invoca, mas que ignora, im ­
p áv id a, p o rq u e não lh e diz re sp e ito . C h eg an d o ao ex trem o da
anorexia nervosa, na qual a colocação em jogo inclui a própria vida
e m obiliza seu entorno, sem que isso lhe importe, o desespero de um
entorno sem pre crescente. É que a angústia do O utro pode chegar
a ser um alim ento que nutre e acalm a um a fom e que está além da
fome, necessidade insaciável de um nada que eleva a potência fáli­
ca de quem se recusa, ela, à dom inação do significante fálico. E ela
quem - subtraindo-se - m ostra a inútil vaidade do desejo. São eles
quem os reprovam .
A terceira beleza é a da “bela adorm ecida” que sonha com um
futuro despertar em um paraíso de felicidade, mas que, enquanto
isso, espera sem se agitar a chegada de um desejante que a desperte.
O desejo não lhe diz respeito; ela atua na lista da ausência de desejo.
A ação está assim sem pre suspensa e, quando finalm ente se produz,
será ig n o ra n d o as c o n se q ü ê n c ia s, se rá p a ra ser a rra sta d a p ela
turbulência incom preensível do Outro. Amar, estudar, lutar por uma
causa, ter um filho, com portar-se a favor ou contra certas regras,
trabalhar, são coisas alheias, coisas que ela pode fazer, mas sem
se n ti-la s c o m o su as, co m frie z a , p re s ta n d o -s e (sem se d ar) a
satisfazer ex p ectativ as estran h as, d isso ciad a das conseqüências.
Enquanto não as faz está dorm indo, quando as faz é sonâmbula. Em
um futuro, algum a vez, o desejo m anifestado pelo beijo do príncipe,
o am or, p o d e rá re sg a tá -la de sua apatia. P ois d ela não procede
nenhum desejo; está encantada.
A quarta beleza da histérica é a que a opõe a seu alter ego: a
fera. A b e le z a q u a rta vem ao seu e n c o n tro co m um c a rra sc o
sanguinário que a faz objeto das vilezas m ais abjetas. O ser brutal,
tosco, violento, carente de delicadeza, que a relega e a humilha é algo
de q u e se q u e ix a sem c e s s a r e q u e p a re c e , a p e n a s p a re c e , a
atualização necessária de um fantasm a m asoquista. A dupla da bela
e da fera a p a re c e com c h a m a tiv a fre q ü ê n c ia nos c o n su ltó rio s
analíticos. A história da alm a bela, da bela ind iferença e da bela
adorm ecida parece requerer em algum m om ento a aparição deste
personagem com plem entar que é o responsável pelos infortúnios da
virtude, dando substância e espessura às queixas, essas queixas que
se re p e te m n r n o to n a m n te a n te a sé rie do s f a iilia r e s , dos
sacerdotes, dos:onfidente e dos terapeutas e que, tolos suspeitam
disso, são a fone de um g a o recôndito, um gozo qtt procede não
do m asoquism o mas do fanasma que acom panha o sifrimento, que
é o de relatar ese sofrimeno ante um ouvido com prensivo que se
identifica com da no proteto c na com -paixão (M itlid).
Em suas ndinhas, os psiquiatras vingam -se e cpetem o que
seus livros nãodizem : quena especialidade há dua vítim as por
antonomásia, q e são a muller do alcoolista e o maricb da histérica.
As vezes, os dos fazem un casal e o resultado garaite o gozo de
ambos. Para o pscanalista, oda vítim a é suspeita de cumplicidade
q u a n d o não o a t o r in teL ctu al do crim e . (S im ;3 s liv ro s de
ju risp ru d ê n c ia e tã o im p re n a d o s de co m icidade iivoluntária.)
In c lu siv e um aralista p e rp ic a z com o L u cien Is ré l ch eg o u a
escrever um artig) que se chm ava assim: “A vítima d histérica”.10

2. E m função dogozo

Bem; chegoi o momeno de abandonar os retrato: falados para


e n tra r na c o n s id ra ç ã o e stu tu ra l e a p rec iar o quese g an h a ao
introduzir o conceto de “goz>” na clínica do pitiatism oantigo nome
desta venerável nurose da ciai nem os psiquiatras qiErern saber.
A histérica, )stentandosua insatisfação, advoga )or um gozo
su p rem o , subline. A solu<áo que se o fe re c e ao faante é a da
norm alização sex al, passan o pela castração, que ginem torno de
um significante dcgozo com( impossível: o falo. A histrica o recusa
( e s ta é u m a d a s ra z õ e s eT ão a m e n o r p a ra falai se m p re da
“histérica” indepeidentemene do sexo de suas credencais). O falo,
cam inho o fe re c iò ao g o z o ie todos e de cada um, é om ado por
e la n ão c o m o sg n ific a n t;, m as c o m o o b je to qu< se re v e la
insuficiente, incapz de cumjrir suas promessas. A histrica leva ao
extrem o a posiçãí estruturalfem inina que não se satishz com ele.

10. L. Israel. L ’hystrique, te se£ e t le m édecin. Paris: M a s s a , 1976. (Em


português, A histrica, o sexo? o m édico. São Paulo: Escuta 1995.)
O gozo na histeria 225

C ontestando o vetor que vai desde A m ulher (que não existe) até o
falo, sublinha a im portância do outro vetor, aquele que, dentro do
cam po fem inino mesmo, dirige-se ao enigm a do que é e do que quer
uma mulher:

N ã o -to d a é a fó rm u la la c a n ia n a , a m u lh e r n ã o -to d a na
sig n ific a ç ã o fá lic a , p a rtid a e n tre o hom em e a O u tra m ulher,
dirigindo alternativamente sua pergunta e encontrando sempre meias
respostas sobre este gozo que experim enta, mas que não sabe em
q u e c o n s is te . N a h is té r ic a e s ta a lte r n â n c ia é e x tre m a . O
apaixonam ento de sua entrega não conhece meias palavras. Seu não-
toda é desm en tid o ; a co n sagração absoluta à figura do Pai Ideal
redivivo a leva a um toda-em. M as toda-em não pode conduzir senão
à decepção, ao naufrágio anunciado do falo e de sua soberba. Passa-
se assim do toda-em para o toda-não na relação com o falo e na
c o n te s ta ç ã o d a s v ir ilid a d e s im a g in á r ia s . É o m o m e n to da
identificação com o que falta à imagem, o m omento em que ela, dizia
Lacan, “ faz o hom em ” . Do toda-em ao toda-não com o resultado de
um questionam ento que, nos dois casos, está centrado em torno do
falo e de sua fu n ç ã o . A d e c e p ç ã o anim a e sta p assag e m a um a
pergunta que a leva, em um m om ento de sua dialética, a colocar-
se “toda-na” pergunta dirigida à Outra mulher sobre o gozo feminino:
é a situação de D ora quando se volta para a sra. K, que mal poderia
ser tom ada com o “hom ossexualidade” ou com o “perversão”, ainda
quando o anexo de Freud, acrescentado em 1923, pudesse abonar
226 G ozo

a confusão. É histeria e nada mais do que histeria o que há em sua


posição ante o casal K.
Esta contestação do falo com , ao m esm o tempo, a mimese do
homem, pôde fazer que um livro imprescindível levasse o justo título
de O fe m in ism o esp o n tâ n eo da histérica. A pergunta histérica é
consubstanciai à pergunta sobre a feminilidade. A resposta lacaniana,
“não-toda”, é pouco convincente para a histérica que se joga ao “tudo
ou nada”, oscilante, sempre tem porário e desejante de um definitivo
que sele para sem pre o estatuto de “a m ulher”. D aí tam bém que a
fórm ula do discurso histérico inclua esta busca reiterativa de um
senhor que possa responder sem am bigüidade à pergunta pelo ser
da mulher:
S -» S,

(2> // S2

de um senhor que dê respostas, que ofereça um saber (padres, m é­


dicos, p ro fesso res, p s ic a n a lis ta s ), um sa b e r que, cla ro , sempre
falhará para dizer a verdade e que e sta rá em rela ção de disjunção
(@ // S2) com o objeto que é causa de seu desejo, com o m ais de
gozo, com a verdade que m ove seu discurso. Um senhor que, a
menos que se estreitem os nós da relação, a menos que se creia nis­
so, acabará em fera.
A histérica vai pelo m undo, assim, insegura de sua identidade,
tratando de d efin ir quem é, qual é seu nom e próprio (esse nome
próprio que “a im portuna”),11 mimando diferentes identidades que se
confundem com papéis (sociais, teatrais), à pesca do que é desejo
no O utro para se identificar com o objeto desse desejo e alcançar,
assim , um a id en tid ad e fan tasm ática (terceiro tipo, identificação
histérica, descrita por Freud no capítulo 7 de “Psicologia das massas
e análise do eu ”).12 Repetindo perm anentem ente a pergunta dirigida
em prim eira instância à mãe: o que é ser um a m ulher e com o ela
goza? E qu e, ante a decep ção da resposta (castração fem inina),
deslo ca-se p ara o pai: “o que me fa lta ? ” e que leva a filha a se

11. J. L acan (1960). E crits. p. 822; E scritos 2, p. 802.


12. S. Freud (1921). O bras com pletas, v. XVIII, p. 107.
O gozo na histeria 227

identificar com esse falo que é para o pai uma mulher além da mulher
(castração m asculina).
N a d u p la d a b e la e da fe ra , c o m o já d isse , o g o z o e stá
garantido para ambos. Com um a dupla cujo desejo é, em essência,
um d e se jo in sa tisfe ito , p ro d u z -s e p a ra c e rto s n e u ró tic o s um a
excitante situação de desafio, um aguilhão perm anente para gozar
coo1, o sintoma, sintom a privilegiado “de todo hom em ” ,13 que é essa
m u lh e r. -Ser o p rín c ip e d o b e ijo d e s p e r ta d o r é um fa n ta s m a
com plem entar ao da bela adorm ecida, assim como o é também o de
ser quem detém os segredos do gozo fem inino, superando nisso o
resto dos homens (jm rtenaires inconscientes do ato [homo]-sexual).
Por outro lado, se ela é porta-estandarte de um gozo duvidoso que
estaria além do falo, ele pode se satisfazer com a convicção de que
a vida de casal parece trazer-lhe que não há outro gozo mais do que
o seu, o fálico. E, se ela recusa o álibi e o curto-circuito do prazer,
prolongando e postergando as ocasiões de satisfação, ele percebe
que esta inacessibilidade sustenta sua ereção e pode m ontar cada
(des)encontro sexual sobre um cenário de violação e estupro.
Pois a ausência e a indiferença ante o desejo elevam o gozo à
cond ição de um absoluto inalcan çáv el com o qual se consum a a
façanha de gozar ao quadrado pelo fato (no leito) de gozar de não
gozar. E o desejo não falta, mas, nela, está insatisfeito, pois ela não
se engana, pede o falo e sabe - bem e muito bem - que o pênis não
é senão um sim ulacro descartável, incapaz de assegurar o gozo. Seu
p a rte n a ire é, além do varão, o Pai p rim itiv o , dono de um gozo
irre strito , não subm etido à ca stra ç ão , ex ceção inalcançável que
inscreve a regra da falibilidade de todos os outros. O desejo fica
insatisfeito porque ela não é incauta, com prova um a e outra vez a
castração do Outro c recebe dessa castração seu próprio valor fálico;
por não tê-lo, chega a sê-lo, é non-clupe, pois sabe que o pênis não
é senão a m etoním ia do falo. (N ão quer falar com o palhaço, mas
com o dono do circo.) Claro, os non-dupes errenf, essa é a essência
da neurose. M uitas vezes, vem curar-se de sua incapacidade para
se deixar enganar, da astúcia com que torna seu desejo um desejo
insatisfeito, de sua perdurável engenhosidade para criar insatisfação.

13. J. L acan ( 1975). Sem inário X X III , p. 19.


228 G ozo

O que pede é saber, mas, além, sustenta a insatisfação de seu


desejo; mal poderia, então, com prazer-se com os significantes que
lhe entrega o senhor, o homem de Deus ou da ciência. Sua pergunta
a p o n ta , p o r c im a d a d e m a n d a , ao d e s e jo . C o m o na c ria n ç a
(“infantilism o” tão denunciado), as respostas a seus “por que” não
acalm am a curiosidade, mas a exacerbam . Que o Outro se disponha
a saciar seu ap etite de respostas, encontrando incontinenti nela,
com o resp o sta, um a v erd ad eira “ anorexia m en tal” , um cu sp ir e
vom itar os significantes que pediu. Bulim ia e anorexia. A pergunta
se desm ultiplica, toda ela é um enigma, o saber é posto em suspenso
por sua simples presença. E eis que não há significante de A mulher.
Essa é a resposta de Lacan à pergunta.
Dirige-se ao Outro com uma dem anda (D) insaciável. O Outro,
diante dos porquês da criança, acaba por m ostrar sua falha, o saber
que lhe falta. A resp o sta que a dem anda obtém é a falta a ser do
O utro com o efeito infaltável [S (A)]. A dem anda revelou o desejo
(d) e seu fundo im preenchível.

A (Outro) - D (demanda [de saber]) = S (A ), [d (desejo)]

A discordância entre D e d revela a falta no Outro: o grande A


é A. A demanda feita ao Outro revela inevitavelmente uma falha que
não está nela, mas nele. A ssim , o lugar da incógnita se deslocou.
A gora é ela própria o enigm a para esse Outro que não com preende
e que é insuficiente. M esm o que, e ainda mais quando, seduzido pela
suposição do saber absoluto, esforce-se por dotá-la da resposta. E
que o gozo procede ju stam en te da revelação da insuficiência do
senhor, de sua im potência e de sua castração. Ela o põe a trabalhar,
mas as palavras que ele diz não fazem senão exibir sua falência
(c a rê n c ia de fa lo ). R e c e b e co m c e tic is m o o sa b e r q u e lhe é
oferecido: “Sim; está bem, mas... não é suficiente, algo, não sei bem
o quê, falta” . O clínico se assom bra ao ver que toda palavra sua é
corrigida por ela, ainda quando é sim plesm ente a citação textual do
que ela disse. E que nenhum a palavra poderia dizer o ser dela e
sem pre se aferrará à sua diferença, essa diferença que não quer nem
pode ceder, já que (pre)sente que ser dita pelo Outro é reconhecer
sua castração, essa castração à que se aferra, porque supõe que é
o que o Outro quer e que o Outro gozaria com ela. O analista deve
O gozo na histeria 229

p a rtir, e n tã o , p a ra in te rv ir, de sua n e c e ss á ria im p e rfe iç ão , da


renúncia a tudo que seja saber, da recusa em tom ar o lugar do " que
e n g a n o s a m e n te lh e é a trib u íd o , da c o lo c a ç ã o em ato de sua
ignorância. Também neste sentido cabe afirm ar que é a histérica que
inventou o psicanalista com sua paixão dominante que é a ignorância.
N o d isc u rso da h istérica, as p alav ras e o saber podem ser
a p re e n d id o s , m as e le s n ã o a to c a m em seu c o rp o c o rta d o e
recortado pelo sintom a, pelo ataque de nervos, pelas operações do
cirurgião, pela maquiagem e pela persecução incabável da beleza e
ju v e n tu d e e te rn a , p ela b u sca no esp e lh o e n a o u tra m u lh er do
segredo de seu desejo insatisfeito.
O gozo do sintom a não se dissolve no gozo fálico que passa
pela articulação discursiva. Em outras palavras, é gozo fálico que não
atravessou o diafragm a da palavra, que está retido, reprim ido. Por
isso, F reu d se in clin av a p ela h ip ó tese da d u p la inscrição com a
dissociação entre duas Vorstellungen diferentes, a representação de
coisa e a representação de palavra dissociadas entre si, consciente
e inconsciente coexistindo sem se tocar. E Lacan arrem ata a questão
dizendo que o saber e a verdade não m ordem do m esm o lado da
banda de M o eb iu s.14 A interpretação sábia não levanta a repressão
por irrepreensível que pareça ser nas p erspectivas da lógica e da
técnica. Frente aos discursos do senhor e a universidade, é ela quem
tem razão. Por isso teve que inventar o dispositivo psicanalítico que
é a resposta de Freud ao enigm a da histeria.
O essencial da verdade se subtrai, n ecessariam ente, ao saber
da interpretação, assim com o o substancial, a sensibilidade do corpo,
se subtrai ao gozo fálico. Fica intocada. E sta subtração deve atuar
com o estím ulo do desejo do Outro e, portanto, no lugar do que falta,
v ê -s e in v e s tid a de v a lo r f á lic o , de s ig n ific a ç ã o , de e s ta tu ra
imaginária.
C rian d o a falta a ser (desejo) no O utro é possível para ela
fabricar um desejo postiço, um sim ulacro de desejo. Pois é essa falta
no O u tro q u e o p e ra c o m o m o ld e e c o m o m o d e lo p a ra su a
identificação: ela será isso que falta. D este m odo, alcançará um a

14. J. L acan (1965). É crits, p. 861; E scritos 2, p. 840.


230 G ozo

identidade e poderá aspirar a ser im prescindível, a inscrever-se de


tal m aneira na h istória, por p rocuração, por m eio do O utro e da
o ferenda do quanto ele possa dem andar-lhe. O perou-se, assim , o
engano fundamental que é feito a si m esma ao confundir a demanda
(do O utro) com o d esejo (p ró prio). Ser, no fantasm a, objeto do
desejo passará a ocupar o lugar de ser sujeito. Foi necessário criar
a lacuna, a falta a ser no O utro (com o se não existisse por si só!)
p a ra se o fe re c e r no lu g a r d aq u ilo que pode p re e n ch ê -la. D aí a
c o n s titu iç ã o d a d u p la d a b e la e da fera. D a í sua fo rm id á v e l
predisposição para instalar-se no dispositivo analítico.
Reagindo com emotividade e agitando-se ante o desinteresse do
Outro, reclam ando-lhe a frieza e, pelo contrário, ante a paixão que
poderia despertar, respondendo com a indiferença e com o desapego.
Sem correspondência, na contramão. Cultivando a falta, pedindo ser
vista, reconhecida, ouvida, adm irada, hipnotizada, ordenada por um
O utro que não consegue possuí-la plenam ente porque sem pre fica
esse resto que se subtrai, posto que “isso” que constitui a resposta
não é precisamente o que ela esperava. Pois nenhum pai é O Pai, esse
a que dirige a sua dem anda.
A análise lhe convém , lhe corresponde e é fonte de um gozo
q u e é r e s is tê n c ia ao d e s e jo e que d e v e rá se r c e v a d o e logo
contrariado pela operação do analista. Graças a esse gozo, a análise
pode evoluir e tam bém pode estacionar nos pântanos da neurose de
transferência. Sua paixão requer uma testem unha que seja sujeito de
(a) (com )paixão para quem ela está disposta a viver sofrendo e
oferecendo óbolos sacrificiais. Q ueixando-se de ser tom ada com o
objeto, é com o objeto que vem a se oferecer às m anobras do Outro.
Form ula sua pretensão de especularidade, de intercâm bio recíproco
dos í(@ ), oferecendo i por @, gato por lebre, em um engano do
q u a l é a p r im e ir a v ítim a . S u a id é ia , seu f a n ta s m a , é o do
recobrim ento recíproco e absoluto dos dois desejos. Por isso pode
funcionar com o sacerdotisa do amor. Sua religião é a relação sexual,
essa que não existe. Para fazê-la existir fica o que a supre, o amor,
o que a perm itiria tapar a tripla falha no im aginário, no sim bólico e
no real.
@ é o que falta ao O utro em sua barra (A) para chegar a ser
A . E la se o fe re c e no lu g a r d e s te o b je to r e s ta u r a d o r da
O gozo na histeria 231

integridade, com a esperança de que sua própria cisão subjetiva, sua


p rópria castração, seja superada nesta relação de absolutos. Se o
outro, graças a ela, consegue passar de A a A, ela, de volta e por
identificação, poderá passar de S a S na integridade de um am or
invicto. O ferece-se com o objeto m ais-de-gozo, apresenta-se como
o esto jo que contém essa agalm a, g aran tia de gozo que falta ao
Outro, causando seu desejo. M as o segredo da agalma consiste em
estar oculto, enclausurado, inacessível. Para que o desejo se sustente
é necessário que seu objeto se subtraia e desse m odo fique exaltado
o gozo de que este objeto “queria” ser a condição absoluta. Do desejo
do O utro, ela é - negando-se - a causa objetai e objetivada. Para
p o d e r sê -lo tem que n e g a r-se e ig n o ra r to d a p o ssib ilid a d e de
Befriedigung, sem ear a insatisfação.
A re la ç ã o co m o sa b e r, a q u e se m o s tra no d is c u rs o da
universidade, oferece-lhe uma oportunidade privilegiada. Colocando-
se com o @, no lugar da ignorância oferecida ao discurso do saber
(S J, ela se produz com o sujeito (S) que, em seu devido m om ento,
buscará o senhor. O discurso da histérica é o inverso, especular, do
discurso da universidade.

S -» S, S2 _> @
@ S; S, S

discurso da histérica discurso da universidade

D irige-se ao Pai prim itivo, presum ido dono do gozo e do saber


sobre o gozo, Outro que não conhece a castração, para o qual erige
um lugar de exceção insustentável. T ropeça logo, quando não é ela
m esm a que a provoca, com essa falha que renega e se identifica à
fa lta q u e e s tá a g o ra à v is ta c o m o s e n d o a m e d id a de seu
preenchim ento. “O que me falta é faltar-lhe” pôde dizer alguém ,
ex p ressan d o assim seu desejo pelo lugar que co rresp o n d a a seu
desejo renunciado e insatisfeito. D aí a difícil posição do analista que
não pode se refugiar na im postura da im passibilidade e da falta de
desejo, mas que tam pouco pode perm itir-se indicar-lhe um lugar de
carência para que ela se aninhe nele. É o m om ento de recorrer a
essas v acilaçõ es c alcu lad as da n eu tra lid a d e e essas m ostras da
232 G ozo

n e c e ss á ria im p e rfe iç ã o re c o m e n d a d a s por L aca n , e lu d in d o a


dificuldade de indicar um lugar de identificação que possa depois dar
pé ao álibi do: “Não é por mim que faço isso, mas por você”.
N o s e m in á rio , em 1 9 7 5 ,15 L acan d istin g u iu os trê s tip o s
freudianos da identificação com o ligados a cada um dos anéis da
cadeia borrom eana e referiu a identificação histérica, a terceira da
relação de Freud, à identificação com o im aginário do Outro real.
T ra ta -se de um O u tro real que foi elev ad o à c a te g o ria do Um
absoluto, do Pai originário, para logo subtrair-se dele e elevar-se ela
com a qualidade de objeto de seu desejo.
Por tudo isso, o desejo da histérica é um desejo sem objeto e
essencialm ente insatisfeito: seu objeto é a falta no Outro e isto é o
que insaciavelm ente pede, consum a e consome. M as de tal falta no
Outro não pode ter senão m anifestações duvidosas, palavras que são
tão in certas com o a p o u ca se g u ra n ça que pode c o n c ed e r à sua
própria sinceridade. O costado Sem Fé de sua palavra se projeta
sobre a palav ra do O utro. A dúvida exige provas de coerência e
consistência, provas que não fazem senão alim entar a desconfiança.
A lim en ta-se com a in co n sistên cia do O utro. D e nobod a d d y (C.
M illot, op. cit.)
Tom ar o lugar do objeto @ para desm entir a falha no A e vol­
tar ao Outro imortal dos prim eiros tempos é algo que a irmana, mas
que também a distingue do perverso que ela imagina ser. Vale a pena
com parar e diferenciar. O perverso tom a o lugar do objeto @ em
sua relação com um sujeito, seu partenaire na perversão, no qual se
propõe fazer aparecer a falha subjetiva (S), a dor, a curiosidade por
ver, a submissão a um contrato que ele dita e edita, o despedaçam en­
to frente ao seu olhar de voyeur, a adoção de um credo transgres-
sivo que ele inocula no ato de sua penetração proselitista etc. Na
prática dessas operações perversas, ele não atua por conta própria,
mas por conta de um terceiro, o Outro, a M ãe, cuja incom pletude
é desm entida por esse filho-falo que tomou um valor de fetiche ou
que assum iu o fetiche com o objeto de gozo que nega a castração,
a castração do O utro. Em troca, os histéricos encobrem sua cas­
tração, a que receberam de início, oferecendo-se ao seu par para

15. J . Lacan. Sem inário XXII, aula de 15 de abril.


O gozo na histeria 233

cum prir o desejo que eles m esm os provocam . O perverso solicita


a conversão do outro; a histeria é “de co n v ersão”, faz e se presta
à conversão que oferece a seu partenaire. Lacan expressava esta
divergência dos cam inhos, dizendo: “Para voltar ao fantasma, diga­
mos que o perverso im agina ser o O utro para assegurar seu gozo,
e que isto é o que revela o neurótico im aginando ser um perverso:
ele para assegurar-se do O utro ” .16 E daí a diferença essencial que se
destaca quando se aproxim am as clínicas da histeria e da perversão.
Enquanto ela, a histérica, abom ina o gozo, ele, o perverso, se con­
sagra a cultivá-lo; um a o reprim e e o desterra, o outro o colhe... não
form am uma dupla tão m á a bela e a fera. Ou pior.
O perverso desm ente a “falha” da m ãe - ela não pode senão
ser fálica - e adora, no objeto elevado à dignidade do fetiche, o ins­
trumento mágico que usa para desm enti-la quando não se transforma
ele m esm o em tal fetiche. A histérica não alim enta essa esperança.
Sua m ãe, com o a mãe de D ora, é esse ser carente e depreciado que
constitui o pólo negativo de suas identificações, o lugar de um des­
prezo inevitável. “Se ser m ulher é ser com o ela, então eu não que­
ro ser m ulher”, é seu lema e se consagra a estabelecer uma diferença
(vive la différence!) que assum e as formas do “fantasm a bissexual”
(Freud) e de negação da fem inilidade. O pai se faz digno de com i­
seração por estar unido a um a m ulher tão insuficiente e ela está dis­
posta a se identificar com o que falta ao pai, com a O utra m ulher
que poderia lhe ensinar o que é um a “verdadeira” mulher, com as
senhoras K. A ssim é com o a filha se torna o que preenche a falta
em A, assum e o lugar de <|) e não de m enos, m inúscula, reveste-se
de um valor e de um a significação fálicos. Sua vida está subm etida
aos significantes do desejo do pai, ou seja, de sua castração. Vive,
então, para obedecer ou para repelir esta dem anda, oscilando em suas
identificações. Tanto no positivo como no opositivo, são esses sig­
nificantes os que a guiam pelo m undo sem que ela queira saber de
tal dependência assim iladora. A firm ando, pelo contrário, sua singu­
laridade, pretendendo ser reconhecida com o “ela” e descrevendo-se
aqui no M éxico com o alguém “muito especial” e derretendo-se ante
qualquer um que lhe diga que é “m uito sensível” .

16. J, L acan (1960). É crits, p. 824-825; E scritos 2, p. 805.


234 G ozo

Para esquem atizar: o perverso tem a Mãe e a histérica tem o


Pai com o objeto de culto. A diferença nodal reside na atitude ante a
castração, a que verdadeiram ente importa, a castração do Outro. Se
o perverso a desm ente, a h istérica a abom ina e a reprim e. D aí o
parentesco, daí a oposição, daí a freqüente com plem entaridade. O
perverso “faz A m ulher” , diria, para cotejar sua posição com a da
histérica que, Lacan dixit, “faz o hom em ” .17

3. H isteria e saber

Particular, muito particular, é a relação da histérica com o saber.


S a b e -se q u e e la so fre p o r não sab er, p o r re m in isc ê n c ia s , por
repressões, por falta de continuidade cm seu discurso, por “lacunas
m nêm icas”, pela arm adilha de seu gozo em sintomas que falam sem
dizer, sofre pelo saber que insiste em ser inconsciente. Seu saber
não sabido é fan tasm atizad o por ela no O utro, o sujeito suposto
saber do qual está prestes a se apaixonar justam ente por isso. Sua
falta se preenche no im aginário como discurso sem cesuras. O falo,
q u e se p a ra do g ozo, e n c o n tra seu eq u iv ale n te no saber. A h, se
so u b esse! S ab en d o , o g o zo , a m arrad o ao sintom a, p o d e ria ser
alcançado como articulação discursiva. Mas esse saber que a ela falta
é o atributo do O utro. E ele, exigido, instigado, não dá senão restos
insatisfatórios que, com o já foi dito, alim entam as perguntas. M á-
fé, desprezo? A contece que ele se nega a com partilhar o saber que
não pode ter e, com base nisso, exerce e sustenta seu dom ínio sobre
ela ou o usa de m odo agressivo e hum ilhante, bestial. No fantasm a,
o O utro do saber se torna sádico; conviria cham ar “sabism o” ls esta
relação de cum plicidade que, com freqüência, se estabelece entre a
bela e a fera que a flagela com seu açoite de palavras. Não raro, este
fantasm a do saber com o potência fálica incita a histérica a buscar
apoderar-se do saber, d espertar de seu sonho e de suas fantasias,

17. J. L acan (1969). Sem inário X V I, aula de 18 de junho.


18. N. A. B raunstein. Sabism o. El saber en la histeria. In: P or el c am ino de
Freud, p. 73-85.
O gozo na histeria 235

avivar em si a d o rm id a cu rio sid ad e, tratar de recu p erar o corpo


perdido por meio do saber da fisiologia, da psicologia, da psicanálise
ou da literatura, com o m odo de suprir a falta inelutável do Outro, a
resposta que indubitavelm ente falta ao enigm a que se escreve com
S (A).
D este m odo sustenta a insatisfação provocada pelo falo, por
suas prom essas não cum pridas (versagt). Com o o O utro não pode
dar o saber a que ela aspira, saber sem pre insuficiente, perpetua a
interrogação dirigida à O utra m ulher, aquela que deteria o segredo
do que uma m ulher é e quer. D e certo modo im plica um a passagem
para o outro lado das fórm ulas da sexuação, invertendo o sentido do
vetor: d eter o sab er com o falo e d esde aí tra tar de resp o n d er à
pergunta pelo ser de A m ulher: O — A. O fantasm a de flagelação
rev ela, ag o ra, sua c o n h e c id a rev e rsib ilid a d e . O su jeito que era
passivo e gozava interrogando o Outro passa a ser ativo e a exercer
o sabism o sobre o p a rte n a ire , sobre os alunos, sobre os doentes,
sobre os que estão sofrendo por não ter esse saber. Não é raro que
esse fantasm a do uso sádico do conhecim ento acabe por determ inar
inibições intelectuais e profissionais que são o m otivo, por sua vez,
de novas dem andas ao saber, d esta vez, o psicanalítico. E ali os
fantasm as do sabism o ten d erão a se atu alizar na tran sferên cia e
com o transferência.
D irigir-se ao Outro até fazer aparecer a falha nele para logo se
o fe re c e r co m o tam p ão de tal fa lh a . D e s e sp e rá -lo , m a rc a r sua
insuficiência, propor-lhe com o sujeito de análise ainda quando não
haja dem anda nele, incorrer no risco de que se cure desse sintom a
que é uma mulher, tensionar a lâmina libidinal, provando seus limites,
falar incessantem ente “sobre a relação” fazendo de seus lam entos
acu saçõ es ( K lagen sin d A n k la g e n ),'9 viver sem pre no lim ite da
ruptura e da separação, das lágrim as e da oferenda agressiva, da
entrega que se inscreve no livro cuidadosam ente levado da dívida do
O utro, com um a m em ória d esapiedada das falhas, deslealdades e
inconsistências do Outro. Porque o sacrifício da histérica é um a face
de seu amor, sendo a outra a da acusação pela falta de reciprocidade
daquele que não soube corresponder a tanta entrega. A teatralidade

19. S. Freud (1915-1917). O bras com pletas, v. XIV, p. 246.


236 G o zo

é representação que aponta a um terceiro, o futuro espectador e o


futuro ouvinte do dram a da ingratidão, um terceiro que pode ser
perm utado pelo livro de contabilidade, no qual se anotam sempre os
d a n o s s o f r id o s e q u e e s tá p ro n to ta n to p a ra se r re c o rd a d o
minuciosam ente quanto para ser incrementado. Lacan, em seu artigo
so b re a a g re s siv id a d e , falo u dos “c o n tra g o lp e s a g re ssiv o s da
caridade ” ,20 que constituem um aspecto essencial da intriga histérica:
dando e dando tanto e mais do que lhe é pedido, consegue ela um
devedor, alguém que supostam ente lhe está abastecendo, um ser
inseparável p orque está aí atado pelo que recebeu. É o aspecto
interessado de seu “m aso-heroísm o” (Colette Soler) e de sua “função
civilizadora” (Catherine M illot) cumprida por meio da entrega ao Pai
alternativam ente idealizado e perverso.
A rela ç ã o e sp e c u la r e o fan tasm a d a sim etria dom inam o
cam po. O que dá é o que pede. A projeção é constante: “Eu em seu
lug ar te ria ...” , “ se eu lhe fizesse o que ele me fa z ...”, “ não me
explicou com o pôde fazer isso comigo...”. E tudo isto vivido e atuado
para um terceiro - livro, personagem ou psicanalista - , a testemunha
de su a p a ix ã o , ele q u e d e v e rá se co m p a d ec er, c u lp a r o o u tro ,
a b so lv ê -la em um a e s tru tu ra n a rra tiv a ju d ic iá ria na qual e la é
alternadam ente vítima, jurado, ju iz e carrasco que sanciona e aplica
o m erecido castigo.
Seu eu se torna a m edida de todas as coisas. É inconcebível
que o outro tenha gostos diferentes, se interesse por outras coisas,
queira seus fam iliares em vez dos fam iliares dela, não com partilhe
su a e s p iritu a lid a d e e seu a m o r p elo b e lo . N e c e ssita , e x ig e e
contabiliza as provas de devoção, de que ela im porta para o Outro.
Os c iú m e s n a rc isista s que so fre pela rival, pelo trab alh o , pela
repartição do tem po do O utro, a consom em , mas se transform am ,
p o r su a v ez, em um a n o v a m a n e ira de se fa z e r p re se n te e de
reclam ar a dívida sem pre crescente do Outro. Sua exigência de ser
o o b jeto o n iv alen te do gozo do O utro, de ser a condição de seu
gozo, de que som ente com ela se goza. Seu valor de gozo deve se
equiparar ao gozo que falta ao Outro: é prisioneira do gozo do Outro
que pretende saturar e encapsular ao mesmo tempo em que procura

20. J. L acan. (1948). É crits, p. 1075; E scritos /, p. 100.


O gozo na histeria 237

sem pre subtrair-se a esse gozo alheio para confirm ar seu valor. Pois
é pela falta dele, d ’Ele, que ela alcança valor fálico, valor de gozo.
M as nada lhe consta disso se não for pela insatisfação que pode
trazer e que traz o desejo.
A relação com o gozo do O utro a define nesse difícil papel de
se oferecer para a satisfação ao m esm o tem po em que se subtrai
para que o desejo insatisfeito a sustente no lugar fálico-narcísico da
plenitude que im aginariam ente poderia trazer ao O utro e que a leva
a c o n tro la r co n stan tem en te seu peso na b áscu la do O utro. M as
assim fica em d e p e n d ê n c ia das altas e b aix as em sua c o taç ão ,
e x p o s ta a im p re d iz ív e is v a i-e -v e n s q u e são c a u sa e razão de
fre q ü e n te s fe rid a s n a rc ísic a s d isso q u e os p siq u ia tra s de hoje
qualificam “depressões” e alim entam com medicamentos.
B asta que com o O utro se desdobre, se “farte” (nos dois sen­
tidos) dela, lhe signifique de algum m odo que “não precisa dela” , a
desbanque de seu fantasm a de ser indispensável, coloque outra ou
um equivalente qualquer em seu lu g a r p a ra q u e ela fique privada
da razão que h av ia c o n stru íd o p a ra a su a ex istência, sem fundos
nem fundam entos, infundada. É então que sobrevive sua identifica­
ção ao objeto @ com o desfeito e o gozo se m anifesta com o repro­
vação e autocom paixão m aso q u ista, com o in v e n tá rio in findável
das ingratidões de que é vítima. Sobre isso tem necessidade de fa­
lar, encontrar um a alm a g êm ea q u e se ja su ste n to de sua “neces­
sidade de com unicação” a partir desse “nada” que sente ser e que
entrega com generosidade, disposta sem pre a voltar a ser o “tudo”
do O utro.
Com a insatisfação com o m eta prom etida ao desejo e o rancor
conseqüente, com a contestação m erecida da infalibilidade fálica,
im põe um estandarte inalcansável que cria um abismo entre o desejo
e o g o zo . E ssa d ife re n ç a é p re e n c h id a p elo sintom a. O d esejo
insatisfeito se faz gozo da conversão e a ele se apega amando-o mais
do q u e a si m esm a co m o os d e lira n te s fazem com seu d elírio ,
aferrando-se à queixa e m ostrando seu ser por meio do sofrim ento.
O sintom a está feito de gozo desconhecido e aninha nela as cinco
resistências descritas por Freud em 1926:21 a com pulsão do Isso, o

21. S. Freud (1926). O bras com pletas, v. X X , p. 149-150,


238 G ozo

c a stig o do S u p e re u e as v an agens n a rc ísic a s que d eriv am da


tran sferên cia, a repressão e aiu jeição do O utro aos avatares da
própria doença. E sta queixa, aaliz ad a pelos estigm as que são as
m arcas no co rp o , é um a acusição pelo fracasso do O u tro para
integrar-se em um a relação sen falhas que desculpe o sujeito dos
d e v e re s p a ra com um d e se jo q u e lhe seria p ró p rio . A p elan d o ,
apostando sem pre à existência <a relação sexual... que não existe.
C a b e ria , e n tã o , q u e algiém - e não n e c e ssa ria m en te um
in g ên u o - se p e rg u n te com rla ç ã o a ela com o com relaç ão a
qualquer outro neurótico no qu;l o sintom a é gozo: “E para que se
analisa?” - posto que não quer ed er sua diferença, isso que a tom a
tão “especial”, posto que seu dsejo consiste em sustentar-se como
dem andante e credora, sem pre úsatisfeita. Se, em últim a instância,
carece de fé na própria análise, j, que está sustentada sobre a palavra
da qual ela m esm a duvida e jáque nunca poderá assegurar-se do
lug ar que ela o cupa no O utro,no caso, o próprio analista. E sta
pergunta não pode receber um a esposta geral, sustentando-se como
pano de fundo de toda relação nalftica no vai-e-vem entre o gozo
do sintom a, o gozo na situação nalítica e a alm ejada possibilidade
de sua canalização por m eio do iexível diafragm a da palavra.
Não há resposta que valha jara qualquer histérica, mas convém
su b lin h ar que ela m ostra, de ra n e ira p aradigm ática, a situação
própria de todo falante; não apeias existe dissociação, mas também
fra n c a o p o siç ã o e n tre p ra z e re g o zo . E e s ta é um a d ife re n ç a
fundamental, uma mais, notada p r Carmen G allano ,22 entre histeria
e perversão. Para o perverso, ogozo é buscado e m uito difícil, se
não impossível, distingui-lo do pnzer. Poder-se-ia dizer que completa
a façanha de viver o prazer com) gozo. Enquanto, para a histérica,
o gozo é d esp razero so , d o lo ro o, vergonhoso e asqueroso. Se o
gozo do perverso é m onótono en sua colocação em cena (poucos
livros são mais aborrecidos do q e Os 120 dias de Sodoma, uma vez
que se tenha captado o plano o^anizador m atem ático que o rege),
o gozo da h istérica asso m b ra pir seu polim orfism o, seu caráter
proteiform e, sua im possibilidade e se fixar. Claro que sem exagero:

22. C. G a lla n o . L e b a rra g e de 1'id e r ific a tio n h y sté riq u e . In: H y ste rie et
obsession. Paris: N avarin, 1986. p 219.
O gozo na histeria 239

também aqui sc encontram encobertas a com pulsão à repetição e a


fixidez na conjugação do fantasm a. Os infortúnios da virtude não
são mais divertidos do que a prosperidade do vício.
E nquanto o perverso se afirm a com o vontade de gozo, e esse
é o nom e que tem o desejo nele, a histérica consegue gozar com sua
recusa e indiferença frente aos gozos terrenos em nome de um gozo
a b so lu to e, p o rta n to , im p o ssív e l, além e c o n tra o go zo fálico ,
trazendo ao desejo a insatisfação. O sintom a e o asco, a dor e o
pudor, colonizam para ela as regiões do gozo perdido. A creditando
d iz e r não ao g o zo do O u tro , su ste n ta ju s ta m e n te co m o g ozo,
se p a ra n d o -o das vias fa c ilita d o ra s do p rin c íp io de p razer, das
f a c ilid a d e s c o m p la c e n te s . E o v a lo r é tic o do a p o s to la d o da
dificuldade que ela exerce.
Seu corpo se entrega com o um conjunto de partes dispersas
e carentes de unidade para que sejam a palavra e o desejo do Outro
as argam assas que façam “d isso ” um conjunto. N as palavras de
C a rm e n G a lla n o (o p . c it.) , e la re c u s a as c o n s e q ü ê n c ia s do
significante no real e vive com o sujeito em função da separação (la
coupure) entre o gozo e o corpo. O corpo é oferecido com o em um
anfiteatro de anatomia, é o corpo da lição de Rembrandt sobre o qual
d is s e rta m os s á b io s , é o c o rp o a n e s te s ia d o so b re a m e sa do
q u ir ó la n o , in s e n s ív e l ao se x o q u e é re p u d ia d o ou v iv id o na
indiferença, é o corpo oferecido ao bisturi que corta segm entos ou
nervos im aginários da sensibilidade, o que poderia representar -
assim parece - um ganho na espiritualidade. C arne de cirurgião,
pronta ao suicídio focal e ao esquartejam ento.
D esconfia e rechaça o gozo do O utro, esse gozo que ela pro­
duz por m eio da insatisfação com que nutre o desejo. Assim, aliena-
se do gozo, encerra-o no sintom a e parece dizer: “Eu não gozo para
que o O utro, o O utro da identificação, não goze de m im ” . “Pois pa­
rece que o O utro dem anda sua castração ” .23 E essa m edida que se
apresenta com o “castrante” ; representa a im agem vivente da castra­
ção, com seu corpo de lagartixa, de partes m odulares que se cortam
e se reconstituem . Pois, subtraindo-se, dem onstra a validade univer­
sal da castração, consagrando-se ao Pai prim itivo, aquele da fórmula

23. J. L acan (1960). É crits, p. 8267; E scritos 2, p. 806.


240 G ozo

3 X .O X

diferentem ente do perverso que é quem nega o não-toda da mulher


e afirm a a validade absoluta de

VX.OX,

isso que Freud designou com o prem issa da universalidade do pênis.


D aí procede outro traço clínico, difícil tam bém de distinguir
das desqualificações pejorativas, o da inconstância, o caráter capri­
choso e im previsível, a freqüência das birras histéricas. Isso que
m otiva a queixa do Outro, que se apresenta como “vítima da histé­
rica” e pretende ignorar o gozo que, também ele, deriva do tensiona-
m ento da lâmina, aí onde se chega ao extrem o da palavra e aparece
o gozo no limite do articulável, na injúria, na surra e no desvaneci­
m ento. Pois o gozo da histérica - e o de seu partenaire, obviam en­
te - firm a-se na subtração que ela pratica sobre o desejo, proclam an­
do-o com o um além das satisfações e das reduções de tensão.
C atherine M illot 24 pôde definir a histérica com o a guardiã do
m istério do que é inalcançável pelo lado do gozo fálico. M as esta
insatisfação com o gozo fálico, com o bem aponta Serge A ndré ,25 não
é patrim ô n io das m ulheres. É um a lim itação de todo falante, um
efeito de que não haja significante da mulher e de que não exista a
relação sexual. N este sentido é que cabe se perguntar se, sendo o
desejo o desejo do O utro, não é a histérica um a m anifestação, um
efeito e um a produção do desejo m asculino, isso que nunca se disse
m elhor nem com m enos do que 26 sílabas:* “H om ens nécios que
acu sais / à m ulher sem razão / sem ver que sois a ocasião / do
m e s m o q u e c u lp a is ” e q u e se c o m p le ta com o u tro s q u a tro
heptassílabos: “Pois por que os espantais / da culpa que vós tendes?
/ Q uerei-as qual as fazeis / ou fazei-as qual as buscais” .

24. C. M illot. D e s ire t jo u issa n ce chez T hystérique. In: H ysterie et obsession,


p. 219.
25. S. A ndré. Q ue veut une fe m m e ? P aris: N avarin, 1987.
* T rad u ç ão livre do espanhol, não sen d o m antida a estrutura heptassilábica
que resultaria em 28 síladas.
O gozo na histeria 241

É preciso dizer que em todo este capítulo que chega a seu fim
fez-se referência à histérica com o se se ignorasse que um dos pri­
meiros achados de Freud na nova clínica das neuroses foi o de ca­
sos de histeria m asculina e com o se não se conhecesse o trabalho
que Lucien Israel 26 escreveu sobre o tema. A razão, não por conhe­
cida, deve deixar de se repetir: não se trata de uma diferenciação em
função da sexualidade biológica, mas de um a eleição inconsciente
entre os dois cam pos, do hom em e da mulher, delim itados pelas fór­
m ulas da sexuação. N este sentido, os casos não pouco freqüentes
de histeria m asculina tam bém são casos de histéricas, já que o de­
cisivo é a posição subjetiva ante o significante fálico:

@ 0 A

-cp

Se a negativa ao gozo fálico em função de um gozo que está


além é c a ra c terístic a da h istérica, é claro que ninguém encarna
m elhor essa im pugnação que o homem que sofre de transtornos e
inibições em sua genitalidade: ejaculação precoce e diferentes tipos
de im potência. Casos nos quais se inverte o sentido do desejo, nos
quais se opta pela passividade, pelo dar-se a desejar, nos quais se
opera um a defesa frente ao gozo do Outro, do Outro sexo. Também
ele supõe querer ela sua castração e se protege dela com um sintoma
q u e é o de n ã o d a r s u a f a lta , a f e r r a n d o -s e ao q u e te m e e
com portando-se com o um “bom m enino” que não enfrenta a lei de
proibição do incesto que se estenderia até cobrir “toda m ulher” em
vez do “não-toda ” .27
E, em última instância, deveria buscar a histeria m asculina do
lado da “fera” , do lado da com plem entaridade e da cumplicidade que
estabelece com a histérica com o sua “vítim a” . E aqui que aparece
o sentido final da expressão lacaniana de que “para todo homem uma

26. L. Israel. L ’hislérique, le sexe et le m édecin.


27. N. B raunstein. De sintom as y m ujeres. A lgunas consecuencias de las dife­
rencias psíquicas entre los sexos sobre la vida erótica de hom bres. In: F reu­
d iano y lacaniano. B uenos A ires: A m orrortu, 1994. p. 173-190.
242 G ozo

m ulher é um sinthom a” (op. cit.), um sinthom a histérico, poder-se-


ia arriscar. Pois a histérica não pode sustentar seu discurso se não
encontrar a cum plicidade de alguém que assum a o lugar do Outro
sem barra a que ela se dirige, alguém que se coloque com o o sujeito
que faz dela o objeto @ de seu fantasm a e que esteja disposto a
conferir-lhe o lugar de com plem ento indispensável que ela reclama.
E assim ; nada pode entender-se em psicanálise sem assum ir que o
desejo é o desejo do O utro e o inconsciente é o discurso do Outro...
e que por isso o gozo está proibido ao que fala.
IV

A perversão, desmentido do gozo

1 . O “p o sitiv o ” da neurose?

D e v e -s e p u la r. P u la r d e s d e a n e u ro s e , e s s a n e g a tiv a à
colocação em palavras do gozo, esse negativo, até seu positivo, a
perversão. N ovam ente estam os diante de um a m etáfora fotográfica,
de Freud, desta v ez :1 “a neurose é, por assim dizer, o negativo da
perversão” . Fórm ula, aforism o, que aparece invertida em um artigo
que Lacan nunca devia te r assinado e que foi escrito pelo G rã (ou
o pequeno) o ffd a história do lacanism o .2 Não; a perversão não é o
negativo da neurose, mas seu positivo.
A inversão não é, no e ntanto, total. O negativo da perversão,
d iz ia F re u d , n o s in g u la r, em u m a fó rm u la q u e u n if ic a v a as
perv ersõ es, ag regan d o rep etid am en te, m as apenas entre 1905 e
1920, com o um a questão de fato, que na neurose não havia nada que
indicasse um a inclinação ao fetichismo. N a edição de 1920 de “Três
ensaios sobre a t e o r i a d i sex u alid ad e ,3 esta “p articu larid ad e” da
neurose foi suprim ida porque foi possível ver que os neuróticos não

1. S. Freud (1905). O bras com pletas. Trad. J. L. E tcheverry. B uenos Aires:


A m orrortu, 1979. v. VII, p. 150.
2. J L acan e W. Granoff. El fetichism o, lo sim bólico, y lo im aginário. In: Marc
A uge (éd.). E l objeto en psicoanálisis. B uenos A ires: G edisa, 1987. p. 19­
32.
3. S. Freud (1905). O bras com pletas, v. V II, p. 152, nota 47.
X ü# w àt/ulkúJ# 06<3
0 '

244 G ozo

eram imunes aos encantos do fetiche e que, neste aspecto, essencial


para a com preensão do fenôm eno perverso, não s ç j o dia estabelecer
a jp la ç ã o côm oda (para o a u to t-e .o je ito r) entre perve rsão j ositiva
e neurose negativa.
M as o fato subsiste: o tro/o é recôndito na neurose, e xpressa-
se no sofrim ento, na queixa e no sintom a que o dizern_auando o eu
cala e o sujeito se m ostra em sua divisão, avergonhado se tiver de
ser reconhecido com o gozante. Se o neurótico se com praz é quando
pode assinalar sua falta em relação ao gozo, esse gozo que reconhece
e a trib u i tã o g e o e x o sa in e n te a o s -d e m a is. os q u e v iv em c o m
facilidade, j>em se preocupar Todos esses que se deleitariam com
o espetácu lo que ele lhes pródiga com seu sofrim ento e com sua
cisão subjetiva, a eles, os unificados por seu fantasma, os vitimários,
os_£ais cruéis e insensíveis, as mães e possessijvas. Esses
outros gozantes que queriam sua castração e aos quais o neurótico
resiste, ocultando-se que já sofreu inicialm ente essa castração que
repudia, denyando sgu sofrim ento dp não saber o que fazer com ela,
çcy n a^o n v ej^ ê-la^ m jd esE jo . A histérica do capítulo anterior e o
obsessivo do_capítulojjue_decidi não. escrever m ostram estes dois
pólos do gozo recusado pelo neurótico m ediante a repressão dos
significantes que o evocam e que perm itiriam subjetivá-lo. Assim, o
â n e u r ó tic o g o z a sem o s a b er, d e s c o n h e c e n d o , tra n s p o n d o ,
travestm do .seu gozo com as pom pas do sintom a.
Seu não saber o desgarra e isso o to rn a su je ito d a análise,
agente potencial desse discurso da h isté ric a , e sse n c ia l para que a
e x p e riê n c ia p o ssa com eçar. N a n eu ro se, o gozo ap arece com o
colocação em cena fantasmática de difícil confissão. E um a imageria
da perversão que faria dele um anorm ãf, um ser desdenhável, um
porco porque a ele ocorrem porcarias. E claro que esse descarado
teatro interior lhe perm ite b rin c a r com o in te re sse que despertaria
no O utro ao tomá- lo ou ao ser tomado com o objeto de seu fantasma.
C om sua p e rv e rs ã o de b a n h e irp (que não de tocador sadiano),
torna-se desejável, am ável, condição para o gozo... do Outro. _Não
q u g r se n ã o se [aze^ a m a r. A p e rv e rsã o lhe facilitaria a tarefa. O
script cinem atográfico da perversão no cenário do fantasm a é uma
peça-chave da intriga histérica e da e stra té g ia o b se ssiv a. D e qual
p e rv e rsã o ? De qualquer uma, de todas, da que melhor convier.
A perversão, desm entido do gozo 245

Mas este gozo do neurótico é irrealizável, está condenado ao


arm ário, pode ser atuado de vez em quando, não sem pre, não em
todos os casos, mas sua colocação em cena é sempre decepcionante,
fo rçad a, v iv id a com o su b m issã o aos d esíg n io s de um perv erso
verdadeiro ou com o um desafio aos sentim entos de culpa, pudor e
asco que rodeiam e inundam o ato que se fantasia m ais do que atua.
É mais, sua recusa ao acting perverso em que ocasionalm ente
pode incorrer serve-lhe para patentear a virtude. As excursões do
n e u r ó tic o p e lo c a m p o -jla—p e rv e r s ã o n ã o s ã Q -xaras..-m as se
c a ra c te rizam p o r d e ix ar a im p re ssã o de que a p o n tam m ais ao
renuarso posterior do que ao gozo presente.
Não é, pois, a atuação o que distingue a neurose da perversão,
mas a posição do suieito_ant£_essa atuação. Tampouco é o fantasma,
porque este existe tanto em um caso quanto no outro e é difícil dizer
quem leva a melhor. Nem é a pulsão, cujo catálogo se estabelece no
neurótico tal com o Freud o fez sem recorrer a seu Kraft-Ebing.
Já indiquei onde se en raíza a diferença. Não nos surpreende
que seja no discurso, posto que as estruturas clínicas são fatos de
d isc u rso , m odos de relação com o O u tro , p o siçõ e s su b je tiv as.
R elaçõ es com o in co n scien te, e ssa in stân cia que cad a vez m ais
prefiro traduzir literalm ente do alemão: su ifio-sabida, o não-sah'do
do saber que se crê ignorar (1’insu que sait). N eurose e perversão
(e psicose, sem dúvida) são m odos de relação com o saber tal com o
se m aterializam em discursos.
Só que... só que o discurso do perverso raram ente é escutado
pelo analista. E por razões m uito boas. Com efeito, se o neurótico,
conform e já se disse, busca um saber que lhe perm ita recuperar o
gozo perdido, queixando-se do-Q utro que go za, im aginando com
vergopha que é um desavergonhado, o perverso tom a um a atitude
que é o contrário, o positivo dessa negatividade. Ele vive para o gozo,
sa b e n d o q u an to é dado sa b e r so b re o p ró p rio gozo e o alh eio ,
preg an d o seu evangelho, afirm an d o seus direitos sobre o corpo,
ostentando seu dom ínio. O q ue em um é falta e dever, no outro é
h a v e r e saber. E, assim se n d o , p o r q u e h a v e ria o p e rv e rso de
instaurar o outro no lugar do sujeito suposto saber? O que poderia
esperar - além de conselhos e receitas que a situação analítica exclui
por princípio - da palavra de outro?
246 G ozo

Adiante, abordarei a questão das relações entre a perversão e


o amor. M as desde já posso adiantar que n o p e r v & r s n o a p i n r se
confunde com o erotism o, com a habilidade e a perícia do corpo e
que esse é cTsignificado que acaba tendo a palavra “amor” em seu
d icionário. Sendo assim , que lugar poderia restar para o am or de
transferência por m eio do qual se atam e desatam os nós de uma
análise? Com o inscrever as técnicas do corpo nessa experiência de
pura tagarelice que é uma análise? Penso que aqui temos um a razão
de peso para sustentar quão difícil e infrequente é a efetuação da
p s ic a n á lis e em um v e rd a d e iro p e rv e rso . H á u m d e se n c o n tro
iii, ,estrutural, um a não correspondência de origem entre a vontade de
gozo e o desejo do_analista.
A inversão das posições relativas ao saber é tam bém inversão
de posições relativas à psicanálise. O psicanalista é quem parece
a tr a íd o p e lo d is c u r s o e s q u iv o da p e rv e rs ã o , a c e ita n d o -o ,
co n tentando-se sem pre com pálidos sucedâneos, com a literatura
(Sade e M asoch, M asoch e Sade, pedaços de G ide, de G enet, de
M ishim a) e, fundam entalm ente, com esses sonhos perversos dos
neuróticos, com os relatos que estes fazem quando se encontram
em m ã o s d e um p e r v e r s o , o q u e lh es fa z v iv e r e re v iv e r o
traum atism o sexual infantil condenando-os ao silêncio.
O vínculo do analista com o perverso é aleatório, precário,
sempre no limite da interrupção da experiência, sempre impulsionado
até os extrem os contraditórios em relação ao lugar do analista que
são a cu m p lic id a d e (co m )-e.a c o n te sta çã o .d a perv ersão . Pois o
perverso, se representa a m ascarada de se dirigir ao analista como
depositário do saber do inconsciente, da lei da sexualidade, avalista
dos bons costum es ou árbitro da saúde mental, se segue um destes
jo g o s, é na ex p ectativ a do m om ento do desafio a esses supostos
ideais. Esse m om ento em que, vendo e crendo que o analista encarna
alguns destes valores, poderá lhe dizer a fórm ula que o define, a do
desafio: “E por que não?”. Razão a mais para sustentar a neutralidade
nestes c aso sjsm que a vaciTãçãò, longe_de ser acõnselfiávcl com o
acontece na histeria e n a neurosc-ohsassiva. é queda do emalista e
da análise possível. E é assim que se inscreve a difícil possibilidade,
pois a p assiv idade vale para o perverso com o prova de sedução e
A perversão, desm entido do gozo 247

cum plicidade, enquanto a atividade é um desafio que reforça sua


po.stura,
O perverso atua em direção ao outro, procurando evidências
dessa barra subjetiva no limite m esm o do desvanecim ento (fading),
do reconhecim ento da falta que aparece com o curiosidade e como
desejo de um saber que ele se oferece para preencher. O seu não é
o auto-erotism o, mas a dem anda da participação - partição de outro,
de sua v ítim a ou de seu p ú b lico - do an alista, se for o caso. A
ncurotização_que ele induz no analista, a passagem deste ao discurso
da histérica, éjjm -m dício d ia g n ó stic a c la m da estrutura perversa.
Não se trata, aqui, de um saber a ser alcançado. A questão é
com o d esm en tir, en tre o u tras c o isas, a ig n o rân cia, a fenda que
condena a relação sexual e o sabçr que lhe é concom itante. Damos
aqui nosso prim eiro passo em um a construção progressiva que tende
a determ inar quaLí o desm entido (Verleugnung) perverso. O analista
não pode ser investido com o sujeito suposto saber pelo perverso (ai
do analista que insiste em tom ar esse lugar!), p o is^o suposto saber
é o próprio eu do sujeito. O que ele com seu saber ignora é que não
pode saber do sexo e que aquilo que acum ula com o verdades não
são senão “teorias sexuais” , fantasm as, quim eras que soldam coisas
vistas e ou v id as, pedaços de discu rso s heteró clitos, colagens de
ciências, ideologias, ilusões, legislações e mandatos.
D ia n te do n ã o -s a b ív e l (v a lh a e s te b a rb a rism o ) do sexo,
proclam a um dom ínio imaginário sobre o saber faltante, preenchendo
os ocos com racionalizações, projeções e w ishful thinking. Assim,
nenhum a_surpresa é possível. O que p o d eria cair-lhe com o uma
interpretação feliz entra de antem ão em um a das duas categorias
com plem entares: a do “não é assim ” e a do “eu já sabia” . Sabedor
do quanto pode se saber, sobra apenas um resto que é eyuívoco do
O utro.
E o que sabe? Sabe o que quer: j|ozar. Enquanto no neurótico
o lugar do desejo está selado por um a incógnita, e no psicótico não
existe nem a pergunta, no p erverso o desejo d iam a-se “vontade, de
£ o z o ” , e o único problem a que ele encontra é o de como encontrar
os m eios para assegurá-lo. A gresenta-se sabendo sobre o desejo e
sobre o gozo, conciliaado-os. resolvendo sua contradição originária.
Esta segurança o tom a atraente e fascinante para o neurótico que não
248 G ozo

espera senão encontrar quem lhe resolva a equação de seu desejo,


quem faça de sua pergunta uma dem anda de subm issão. Sendo o
negativo d a perverso, o neurótico não sonha s£nãqç p m se positivar,
com adquirir valoFTafico por refluxo de quem se coloca além da
castração e, chegado o m om ento, faltar-lhe. O neurótico quereria
a p re n d e r com o p e rv erso e levantar, assim , a h ip o tec a de suas
inibições. O perverso o seduz com seu fantasm a de saber-gozar (o
hífen no meio sobra), de sabergozar. E esta é a característica clínica
d o m in an te do p erv erso , a que cam p eia por onde q u ise r em seu
discurso, o fantasm a pré-consciente de alcançar o gozo por meio do
saber e do poder sobre um objeto inanimado, reduzido à ignominiosa
abjeção ou preso por um contrato.
Para isso, para pôr em cena este fantasm a, deve saber como
fazer com o O utro, deve obter sua cum plicidade ou seu terror, deve
aplicar-se e arriscar-se, deve m ostrar-se e ocultar-se, deve manejar
sab iam en te a realidade, ou seja, o sem blante. T rata-se de tornar
operativo o fantasm a, de triunfar aí onde o neurótico fracassa de
antem ão. O fantasm a deve ser colocado em cena e tornar verossímil
esse gozo a que a castração obriga a renunciar. O utro desm entido,
o da falta no gozo, outro sentido para essa Verleugnung na qual Freud
soube ver o m ecanism o essencial da perversão.
E claro que o teatro re-presenta a realidade e que ambos, teatro
e realidade, fantasm a e sem blante, não fazem senão m ascarar o real,
o im possível, a ausência da relação sexual. A realidade não é o real
e o verossímil não é a verdade. M as fazer passar um pelo outro exige
m u ita “c o n sid e ra ç ão aos m eios da e n ce n a ção ” , figu rabi 1id a d e ,
R ucksicht a u f D arstellbarkeit, terceiro dos processos - recordar-
se-á - freudianos na elaboração onírica. O sangue deve ser visto
bem verm elho, o discurso não deve apresentar falhas nem lapsos.
O inconsciente, também ele, sempre tão am bíguo e equívoco, deve
ser desm entido pela elaboração perversa. Não deve haver aí lugar
para o azar, tudo deve estar devidam ente em seu lugar, o ritual deve
estar perfeitam ente especificado pelo contrato ou pelo decreto, nada
do real deve se infiltrar na m ontagem.
O p erverso é um consciencioso m etteur en scène, diferente­
m ente do histérico que observa desde o palco o que ele mesmo faz
na cena e do obsessivo q u e jiirige desde o palco a dem anda de um
A perversão, desm entido do gozo 249

olhar de reconhecim ento por suas façanhas irrisórias. Por este cui­
dado pelo detalhe, por esta proscrição do inconsciente, por este jogo
prem editado com a lei e as transgressões, o perverso é o mais adap­
tado à realidade dos vários personagens que passam pelo proscênio
analítico; está perfeitam ente integrado no discurso, é convincente,
lógico, não apenas perito nos m eandros das leis, mas até legalista e
legislador. E nsinag prega, catequiza e persuade. Seu parentesco com
as posiçQüv-do mi. do m estre, do sacerdote, do político e jlo m é­
dico é e y id e n te . E também com o psicanalista, em um”vínculo que
deve ser assinalado desde já porque é estrutural, caso se queira de­
pois m arcar a diferença.
Assim o encontramos, encravado na realidade, dedicado a fazer
d e sta u m a te la q u e o c u lte o q u e fa lta , p ro c la m a n d o sa b e re s,
legislaçõ es, objetos fetich izad o s, sistem as filosóficos, doutrinas
esotéricas, m etalinguagens, prom essas de paraísos na terra e além,
ídolos e ilusões. F azendo saber porque não se pode saber. E rige
falos, p orque há a castração e ela é intolerável. A do O utro. Isto
deriva do que se lê em Freud 4 desde 1927, mas está aí desde antes,
desde as reuniões das quartas-feiras em Viena, e assim pode se ler
na ata de 24 de fevereiro de 1909,5 quando Freud apresentou o caso
de um fetichista de roupas c com entou:
O p a c i e n t e c h e g o u a s e r m x u f iló s o f o e s e g £ u ia ti v o ,e o s
n o m e s d e se m p e n h a m para e le um p a p el m aior. A lg o p a re c id o com
o q u e t e v e l u g a r n o a s p e c t o e r ó t i c o lh e o c o r r i a n o p l a n o
in te le c tu a l: g le ^ se p a ra v a se u -in te re s s e d a s.x a isa s_ £ o d i r ig i a p a r a
g s p a la v ra s q u e sã o , p o r a ssim d iz e r, a ro u p a g e m d a s id é ia s; isto
e x p lic a seu in te re s se p e la filo so fia .

E ste é, d esd e a d e sco b erta freu d ian a, o m odo perverso de


enfrentar a castração: o desm entido._a conversão jm aginária^de si
mesmo, de um objeto qualquer ou de um ideal em representantes do
gozo que no real falta ao Outro ou do falo que no sim bólico e como
significante representa o gozo perdido.

4. S. Freud (1927). O bras com pletas, v. X X I. p. 147.


5 L ouis Rose (editor e tradutor) Freud and fetishism : previously unpublished
m in u te s of' th e V ie n n a P s y c h o a n a ly tic S o c ie ty . T h e P s y c h o a n a ly tic
Q uarterly, v. 57, n. 2, p. 147-166, 1988.
É ind u b itáv el a função c iv iliz a d o ra (su b lim ató ria, auto- e
aloplástica) que desde sem pre cum priu a perversão, pretendendo -
conseguindo - m uitas vezes ser contestadora e constituir-se como
subversão dissolvente. Ao erigir um ideal contrário ao dom inante,
uma lei contra outra lei, ppe em ação a d ia lé tk a -h e g d ;; na que acaba
com o triunfo da astuta razão.

2 . O fan tasm a perverso: sab erg o zar

O perverso não poderia desm entir sem reconhecer prim eiro o


q u e d e v e ria d e s m e n tir (“j á o sei, m as ajm ja a s s im ” ). A penas
in stalando-se na castração e no deserto de gozo que se estende a
seus pés, pode m ontar o cenário de seu fantasm a que se sustenta
s o b re um d is c u rs o h o m o g ê n e o , n e g a d o r da d is c o rd â jm ia
irrem ediável que há entre o discurso, sempre d o jiem blante, sempre
aju stad o jio verossím il, e o gozo.
^eu_Iantasrna não e m estiço e não circula de um lado para o
outro da alfândega tópica que Freud instalou entre inconsciente e pré-
consciente .6 H abita com todos os d ireitos de proprietário no castelo
fortificado que é o eu. E tem horror ao vazio.^ e ü jto r r a r . vacui faz
do sujeito um mostruário de plenitudes especulares: o dom ínjo sobre
o d eseio. sobre o discurso, sobre o o utro. O eu forte, fortíssim o.
O desm entido recai sobre a castração, sobre o inconsciente, sobre
,a falta inerente ao go^o. Assim é com o se revela o que se pretende
ocultar. 0 rem endo Lapa_o_rasgo ao preço de sublinhar sua presença
c in d ic a r seu lugar. Q u an d o o fan tasm a T ê n T tãn ta su b stâ n cia e
v aidade,guando é o sujeito que agita a bandeira de seu fantasm a em
v ez de ser~um efeito destef^cabe cfesetínfiar. P o is, e o u tra vez
estam os com Freud, jp e é r tS i^ q u e dão o fetiche e seus derivados
não faz senão destacar o lugar do que se^jp m p |a 7 ^ã~cãstxa^ão_da
,m㣻_da iiicom pletude desejante do Outro, d o jje rig o q u e am eaça o
trono e o altar.^~

6. S. Freud (1916). O bras com pletas, v. XIV, p. 188.


A perversão, desm entido do gozo 251

Por tudo isso podem os afirm ar sem rodeios }u; o fantasma


perverso é um fantasma encàbridor. a construção ispcular de um
eu que re£resenta a si mesmo como sujeitQ^upnstn akrgazar.
Seu posto o obriga a pôr à prova a suposição. 0 csejo foi per­
vertido, apenas, j i m pequeno desvio, como vontade e j q z q , colocou
apenas aIgunsjpoatinhos.de costura sobre a..£alta. i prversão põe
deu apenas uns pontinhos de costura sobre a falta, 'oque esta falta
é intolerável; torna-se cabeça de M edusa, m edusansA o desm entir
o desejo, a ele se renuncia; alETe se~cede Posto qiej desejo está
do lado do O utro, desejar é m ostrar um a falta e oercer esta.falta
à falta do O utro, ou seja, reconfiecer a recíp rõ ca:atração com o
contfíçãcTpara atravessá-la.
D aq u i d e riv a m as d ific u l d a d e s j a r a d e fü ir i re la ç ã o dc
p e rv e i^ o jío m _ c la m o r. Se, com L acan , a c e ita n o iq u e o am o r
consiste em dar o que não se tem (pois dar o que seten é caridade),
se o am or é dar o que falta, é dar a castração, a c râ c ia no gozo;
se, novam ente com Lacan, aceitamos que o amor é >ú icqflue-PQde
fazer com que o gozo co n je s cenda ao desejo, eníonão tardam os
em reconhecer a difícil relação entre am or e pcrvesõ.
Uma relação difícil não significa ausência nerrir.possibilidade.
D esde sem pre se soube, ainda que desde sem p r tn h a-se posto
m uito em penho em negá-lo, que a pajav ra “am o ^ m diferentes
significados quando em pregada por um hom em ou ma mulher. Não
c u s ta n ad a e s te n d e r e s ta iUéia e a c e ita r q ue a g ja y ra “ am o r”
significa algo diferente conforme a posição subjetiv dquele gue fala
fnenfótirn psjrrifirn “norm al” ou jDerverso). N ãcsetrata, pois, de
decid ir se os perversos “ta.mhém” am am, mas d o m p reen d er o
específico de um ,am (ir-que d esm ente a,.falta--emvx* dc basear-se
jiela^Isto é o que coloco por enquanto, seguindo adcitrina clássica,
ainda que no final do capítulo proponha que o j j e e desmente na
pprversão seja algo que sinjMá-ç não uma ausênci.
F re u d p ô d e d e fin ir o a m o T :o m o a (im )io sib ilid a d e da
confluência de duas tendências opostas na vida eótca, a tgrnurg e
a sengjjalidade. N eurose e perversão apresentan-s aqui tam bém
c o m o n e g a tiv o e p o sitiv o . Q jje u r p tic o d iv id c am or porquÊ
renuncia à se n su alid ad ejrep rim id a) em nome d; tenura, inibe_as
metas pulsionais gozadeiras. Resigna o gozo em alare de um desejo
252 G ozo

equívoco e equivocado porque o substituiu pela dem anda do Outro


que veio ocupar o lugar do objeto em seu fantasm a. Q ueixa-se do
esvaziam ento do gozo que ele m esm o provocou e se conform a, a
co n trag o sto , com as m ocões-rc.freadas da ternura. Seu cam inho é
<de im potência, subm issão, insatisfação, justificação. O perverso, em
contrapartida, renega ta n to ju in p otcncia quanto a impossibilidade:
so n h a e a firm a a p o ssib ilid ad e dq_gozo. E visto desd en hando ^
ternura em nom TdèlTm a sensualidade que se pretende desenfreada
e.s£rtiJei. Que prom ulga outra lei, a da desconsideração e do abuso
do outro além de seu consentimento, uma lei categórica e apática que
é o rd e n a d a p elo g ozo çj&mo Suprem o_B efn. N ão sem o o u tro ,
certam ente, pois é requerida sua “violentação” para aceder ao gozo
do próprio corpo, já que não_se. pixle_gozar,-daaihcio.
E ste é o valor com um que unifica a variedade fenom enológi-
ca do cam po perverso: y io la ç ã a ^ e d o filia , oecrofilia^voycmLsrn o ,
e x ib icio n ism o , sadism o, m asoqu ism o, m odalidades-oerversas^da
H om ossexualidade .nos-eefttatos fugazes e anônim os. (D iga-se de
p assag em , 4 . estg^o traço de dissociação e degradação da vida am o­
rosa que perm ite distinguir entre a TioruQssexúálidade comojperver-,
são e a hom ossexualidade como modo da eleição de objeto amoroso.
O ato hom ossexual é, em si,.uma.conduta;_CcmiQ_tal, pode ser pra-
ticado_por sujeitos que se incluam em qualque> das e struturas clí­
n ic a s ,) A e s s ê n c ia da v id a a m o ro sa do p e rv e rso ra d ic a n essa
desintricação que consiste em oferecer o gozo sem passar pelo de­
sejo (do O utro), abohndo as_sim a c o r r e n t e H;i t e r n u r a O consenti­
m ento e a convergência com o desejo do partenaire restringem a
satisfação perversa. Por isso é que não há com plem entaridade das
perversões. O sádico não é o par do m asoquista e o exibicionista não
o é do voyeutu. Sg há coincidência j t o gozo não se produz a cisão
subjetiva do partenaire. m eta preferencia]_do_alQ _ p ery £ rso _ £ o m o t^l.
Por isso o neurótico é o com panheiro ideal e predestinado do per-
vêtso; E tam b ém ^u em inform a o analista sobre o que acontece ep-
tre os dois (‘‘A bela e a fera”).
N ovam ente encontram os a difícil relação entre a perversão e
o amor. O desejo foi convertido em vontade de gozo; o Eros fez-
se d o u to , d o u trin a (“d o c to rin a ” ) e é agora erotism o: p e rícia do.
corpo, sa b e rjja z e r com ele. exploração das jazid as enterradas do
A perversão, desm entido do gozo 253

gozo, repú d io das can a liz aç õ e s m on ó to n as do e n c on tro sexual,


invenção e prova, explorarão, viojação e extensão dos limites. “E por
que não?” Também aqui o discurso perverso cumpre e tem cumprido
um a função c iv iliz a d o ra ao in d e p e n d e n tiz ar a sex u alid ad e dos
utilitarism os da reprodução e a satisfação, ao denunciar a suposta
“n e c e ssid a d e ” sexual, ao d e sa ta r a -^ n z n das am arras do prazer
m ostrando outros horizontes, denunciando os curto-circuitos e as
convenções unificadoras das ordenações do amor. Sem pre correndo
o risco e incorrendo (am iúde) no pecado de m udar o senhor por
outro, criando novos evangelhos do hem gozar. O erotism o foi por
m uito tem po patrim ônio do d iscu rso co nsiderado perverso, essa
form a do vínculo social que afirm a o fundam ental direito ao gozo
e que co m ete um eq u ív o co , d eterm in ad o pelo que já vim os do
fantasm a, ao pretender ser possível gozar do corpo do outro que é
alheio e do qual não recebemos nada além de sinais, dados equívocos
a interpretar, elem entos significantes cuja significação sem pre nos
éscaga. Esse erotism o, dizíam os, teve um valor form ativo quando. ^
c o n v e rg iu c om a p s ic a n á lis e ao a c a b a r a fjn n a n d o _ g u e não-h.á_ ’
universais do gozo. Foi descentralizado o m onopólio do gozo fálico
e se estabeleceu a p ergunta pelo p articular do gozo de cada u m,
expulsando da recâm ara o olho deste Deus e o olhar da polícia.
Ao deslocar-se do am or para o erotism o, o perverso “apenas
acentua a função do deseio no hom em ".7 O “apenas” nos rem ete a
um a diferença estrutural de im portância capital. Pois o fantasm a que
responde ao deseio inclui a c a stração, Q_-(p que acom panha com o
som bra ojihjelaJâLçau&a-dQ desejo, enquanto o perverso se ostenta
com o o dono d&-t«n_faQtasma de autonom ia que o perm itiria fazer
o curto-circuito do cam inho que obriga a passar pelo O utro e por
seu desejo, pela recíproca castração dos partenaires do amor.
O “apenas” em excesso coloca o perverso além do desejo, des­
tinado ao exercício de um a vontade que atua com o im perativo uni­
versal, que irm ana Sade a Kant. De um a vontade que não é nem o
livre arbítrio nem o capricho, m as justam ente o contrário da.liber­
dade, a subm issão acrítica. enervada e apática a urna norm a abso-

7. J. L acan (1960). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 823. Em esp an h o l, E scritos


2. M éxico: Siglo XX I, 1984. p. 803.
254 G ozo

luta que impede transitar >or am inhos alternativos e que legisla com
ferocidade. D e uma vonade iue faz do gozo o p rincípio racional e
ineludível da acão. colocdo m um a dialética de oposição e de sub­
tração recíproca do gozeentr, os participantes no ato perverso. De
uma vontade que não nase d decisão elaborada de um querer, mas
de u m a ^ o a ç ã o que exig^esonar da lei do Edipo e da castração e
da divisão entre o s gozoipel seção, pela bissexão. De um a vonta­
de que le v a j) pcrverso.avivr para o gozo, para apoderar-se dele,
para organizá-lo, adm inhrá-o, antecipá-lo e adiá-lo, para regular
suas ascensões e quedas razo pela qual a análise pode agradecer
à perversão (com o, por a tro ado e por razões diferentes, à psicose
e à histeria, à obsessão e i “sáde m ental”) o que traz ao cam po dis­
cursivo, mas isso não a fcva. idealizarjL pervsrsão (ou a qualquer
outra das estruturas c lín :a s)N o final da análise o sujeito não se
encontrará com a pervesão.m as com a ljberdade para o ato per­
verso, terá cabim ento o sijeite da ética analítica, o do bem dizer que
deve decidir em cada menenu se quer o que deseja .8
Este pouquinho de :xagro de que nos fala o “apenas” revela
que se desmeiU&-a^faUa-Jo-€rtro (castração m aterna, dizia Freud;
S (A), escrevia Lacan) e :olo-a no lugar dessa ausência o objeto @
co n v ertid o em fetich ejg Ê in am gão, um objeto que não inclui e
afirm a a castração com o conece quando falta o “apenas”, mas que
a renega.
A c a s tra ç ã o . T ra ti-se d e la . “ E p r e c is o q u e o g o z o seja
j e c u s a d o ... ” , c a s o se recusa s s e . a re c u s a , a f ir m a r - s e -ia a
p o ssib ilid ad e, p o d er-seia soihar com um gòzo que não estaria
proibido, que alguém pderiaagenciá-lo. M as é assim justam ente
com o se o falh a, porqu: j£ir.dej>eiL_reçusado "... para que seia
alcançado na e sc ala in v etid aia Lei do jlesg jo ” .9 O que acabo de
citar e H U cfinição lacanana a castração que, com o vem os, jjpõe
castração ao gozo (tal cimo £visto no desenho do vetor superior
do gráfico do desejo). Vdtare a este ponto no capítulo sobre ética
e gozo, m as está claro dsde j que a ética da análise £$tá centrada
na c o n ç jlia ç ão d o desejo 'om 3 gozo, no questionam ento e não na

8. J. L acan (1958). É crits, p 6 8 2 E sc rito s 2, p. 662.


9. J. L acan ( 1963). É crits, [ 113'E scritos 2, p. 752.
A perversão, desm entido do gozo 255

c o n tin u ação deste pequeno “m ais-p lu s” que “ap enas” acentua a


função do d esejo (no h o m em e não nas m u lheres). C laro que o
centram ento da ética no desejo com o cam inho para que o gozo seja
alcançado nos leva a m arcar a diferença em relação ao discurso do
direito em H egel que vim os no com eço, no prim eiro capítulo. E
evocar Hegel é aludir ao amo e ao seu discurso.
. A perversão é a recusa, m ediante o desm entido, de converter í\ív
os v a lo re sjia tiu/y em termos da m oeda do desejo. “Fixação”, dizia
Freud, para se referirlT este modo- de se aferrar ao gozo prim ário,
in fa n til, n e g a n d o -se a c o n v e rtê -lo e tra d u z i-lo em p a la v ra s, a
articular o @ por m eio dos instáveis_s.iffnifirantes da dem anda com
seu inexorável saldo de perda. E sta conversão do gozo em desejo
com o condição prévia para reencontrar o gozo é o inconcebível na
estrutura perversa, o objeto de outra Verleugnung. O perverso peid e
por se negar 3 perdeL-pois neste jogo aquele que p e rd e _g<°nha E é
falando, coloc ando em palavras, que se perde. Fatalmente.
D e q u alq u er form a, o desejo não e stá ausente no perverso;
está apenas pervertido. Com o nos dem ais falantes é o desejo que
anim a o fantasm a e, neste caso em particular, a renúncia ao gozo
de qualquer form a já se produzi u jp o r i s s p n a o é psicótico) e todos
os desm entidos e todos os hom ens e os cavalos do rei não poderão
devolver Humpty Dumpty a seu lugar anterior, bem acima de seu alto
m uro. E le bem sabe que ao gozo se deve renunciar, “m as ainda
a ssim ” , m orre de vontade de alcançá-lo. O desejo tam bém a ele
d iv id e , to rn a n d o -o su jeito (S ) 10 e, p o r m ais que esge d e se jo_se
converta em. vontade -de-^o zo. nem por isso deixa de ser, tam bém
com o em qualquer outro, o m eio de defesa que coloca um fusível,
“uma proibição de ultrapassar um limite no gozo ” .11
O d e se jo n ã o afirm a em seu caso a falta, mas a nega e a nega
justam ente aí onde aparece a proibição de gozar: no Outro. O Outro
não pode e não deve estar castrado, a p rem issa do falo (e de seu
g o z o , a c r e s c e n te m o s ) d e v e s u s te n ta r - s e c o m o u n iv e r s a l (e
e x c lu d e n te , a d ia n te m o s). S im , de q u a lq u e r fo rm a nãQ_sej>od£
ignorar^m ej 2_Outro está castrado [S (A)] e e stá h a b ita d o por um

10 J. L acan (1960). É crits, p. 773; E scritos 2, p. 752.


1 I. J. L acan (1960). É c r its, p. 825; E scritos 2, p. 805.
256 G ozo

-(p, o p e rv e rso sai do a to le iro rec u p e ran d o o -cp, to rn a n d o -o o


instrum ento do gozo do O u tro , 12 colocando-se no im aginário nor
fora de sua p rópria d iv isão su b jetiva, com o se fosse o O u tro 13 e
com o se tivesse com o encargo assegurar sua, não castracão. Daqui
em diante, viverá em função desta empresa, alienando seus serviços
para assegurar seu gozo, o do O utro, o terceiro da cena, o que está
am eaçado pela já conhecida castração. Seu deseio nerverso q leva
a so tornar utensílio, ferram enta do gozo do Outro. Isto dá sua forma
ao fantasm a sadiano, que recebe de Lacan forma e estrutura em seu
“K ant com Sade ” ,14 sendo figurado com o um vetor quebrado.
N ão e sg o ta re m o s o e sq u e m a nem nos d e te re m o s em sua
m odificação para explicar o fantasm a do marquês de Sade, porque
não vem ao caso (e porque não estou seguro de poder fazê-lo), mas
v alerá a pena assin alar sua aplicação clínica m ais im portante. O
p erv erso que se tom a e que pretende ser visto com o um sujeito
absoluto que porta e aporta o gozo, um ser sem barra, é levado pela
lógica m esm a de sua estrutura e de seu desejo a converter-se em um
objeto, em um instrum ento, em um com plem ento que está a serviço
do O utro. Ele é o fetiche que venera, é o chicote com au e flagela
^sua^vítimíi,JÍ_o_contrato com que escraviza seu flagfilq^lor, é esse
olhar que vai e. vem nas perversões escópicas etc. Em suma, ele é
@, um @ q u e j o s i l h á z a o fa lo , que n eg a que o falo falte., que
assegura que o gozo se falifica no Outro. E isto que m e levará, e
CA<û **M •
já não falta muito, a transform ar a concepção freudiana e lacaniana
do desm entido. Pois esse O utro a que se consagra o perverso não
é - se bem ele não queira sabê-lo - um Outro absoluto que está fora
do gozo; o O utro é a sede de um gozo que lhe é próprio e que o
perverso desconhece, um gozo que é possível precisamente pela falta
do órgão que, para ele, im aginariza o falo. (Vol)ver-se-á.
,Urn sujeito é al^o instável, vacilante,.O lugar do sujeito é o da
in c e r te z a , já q u e e le é o e fe ito do q u e se a rtic u la n a c a d e ia
s ig n ific a n te ; e stá à m e rc ê da p a la v ra que v irá, a q u e te rá de
ressignificá-lo e m ostrar-lhe sua frágil condição. O perverso recusa

12. J. L acan (1960). É c r its, p. 823; E scritos 2, p. 803:


13. J. L acan ( 1960). É crits, p. 825; E scritos 2, p. 805.
14. J. L acan (1960). É c r its, p. 775; E scritos 2, p. 754.
A perversão desm entido do gozo 257

identificar-sc de modo tão precário, tão dependente da resposta que


o Outro dê às suas palavras, às suas dem andas. Ele nega a divisão
que se lhe impõe ao fazer q ue sua de m a n d a jle satisfação pulsionaí
deva~stHflTÍcíílar com o desejo do-Outro. Também nisto é o positivo
da neurose negativa. E nquanto o neurótico vive encarnando uma
pergunta dirigida ao Outro por seu deseio e dem andando que esse
Outro lhe f a ç a um l n p a r o perverso se constitui com o resposta, sua
d e m a n da não é um a p erg u n ta, mas u ma im p o sição ex erc id a de
modo categórico. Ele é a causa pela qual o outro se divide. E é assim
q u e s o fre u m a m e ta m o rfo s e q u e o tra n s f o .r-m a-.e m o b je to e
in ^ u m e n to ; riãojé um sujeito suje ita d o aos vai-e-vens da cadeia
signiücante. Identifica-sê corrTo real que tom a acessível o gozo ao
O u tro .^ o m jjjn a .s de gozo, com a causa do deseio da-Q utroLtam a-
se obieto @. Esta identificação não pode existir no vazio; necessita
de um partenaire, um outro, com m inúscula certam ente, um sujeito
que experim ente, agora sim, este sim, a divisão subjetiva e o fa d in g
como efeito da manipulação perversa. A criança violada ou seduzida,
o h o rro rizad o e sp e ciad o r da e x ib iç ã o, a h isté rica h u m ilhada, o
f la g e la d o r q u e d e v e tr a b a lh a r c o n tra o m ais ín tim o ^dg-_suas
convicções para satisfazer as cláusulas do contrato m asoquista, são
e x e m p lo s d e ste fo rç a m e n to da c is ã o até c h e g a r ao lim ite do
desvanecim ento pela colocação em cena intolerável que transpassa
as fronteiras da consciência, do pudor e do asco. Esse outro que não
4 bom q u ando é com placente, mas quando é violentado^resistente,
suplicante. Q uando o o utro consentc a nerversãjQ-se-dissina.
C onsiderada assim, a perversão é totalmente o contrário do que
o próprio perverso pensa que é e faz. O fantasm a encobridor do eu
que tra ta com o o b jeto o o u tro de sua ação rev ela, além de seu
im aginário, que acontece exatam ente o contrário: é o p erverso aue
é q o b je to e é. sua v ítim a q u e é o s u ie ito . m ais, é q u em , p ela
m a n ip u la ç ã o p e rv e rsa , tra n s c e n d e as b a rre ira s do p ra z e r e se
encontra com o gozo que está além. O paradoxo é que o perverso,
vontade de gozo, aqu£Íe.qu£ vive p ara sabergoxar. acaba por virar
o gozo sobre as duas vertentes contrapostas, a do O utro cuja falta
é desm entida c a do outro cujo gozo é alcançado pelo cam inho do
sofrim ento e da dor. E o perverso, ele mesmo, querendo ser o dono
da situação, im aginando sê-lo,_é o ahieto^de sua paixão. Perde a
258 Gozo

recom pensa que se p rom ete e concede a que queria arrebatar. O


g ozo se lhe esco rre na p ró p ria efetu ação de seu ato deliberado,
co n scien cio so e v o litiv o e essa su bstância gozad eira que se lhe
escap a é a que b ro ta em quem sofre seus rigores. A fórm ula do
fantasm a se inverteu e assim é observada no esquem a lacaniano ao
qual estam os nos referindo:

@o r

O desejo (d) leva-o a identificar-se com o objeto ((s>) e isto o


coloca em relação de corte, de im possível encontro com o sujeito
(S) em sua divisão e em sua possibilidade de gozo.
D iferen tem en te do que se espera no fim de um a análise,_o
perverso não instrum entalizou seu deseio-e não p^de decidir se. qner
o que d eseja; q jje s e io o in s tru m e n ta lizou su b m e ten d o -o a u m
im pêrativcTtanto ou m ais in flexível auè~õ da~Lci a que pretende
c o n te sta r. D eve, então, ch am ar a atenção que quem dem ande a
análise não seja ele, mas o verdadeiro sujeito, sua suposta vítima?
(cf. capítulo V).
Por que não fazer a apologia da perversão e propô-la com o
um a meta desejável? Por inveja, própria de neuróticos distanciados
do gozo? Por militar na defesa de valores convencionais? Esta é uma
pergunta inevitável que com plem enta e redobra o clássico “e por que
n ã o ? ” q u e nos e s p e ta o p e rv e rso . A é tic a da p s ic a n á lis e e stá
com prom etida na resposta.
A contece, conform e vim os, que a vontade de gozo não dá em
nada, senão que com ele falha por desconhecer que a prem issa do
gozo é a castração e a aceitação da Lei do desejo e que o sabergozar
não é senão um fantasm a que, com o todo fantasm a, se interpõe e
levanta um a barreira no cam inho do gozo. O perverso insiste e sua
insistência exibe sua defesa; ele “tam bém ” interpõe seu desejo no
cam inho do gozo em lugar de transitai pelas vias do desejo até uma
m e ta de g o z o ."1 O e u d e s c o n h e c e sua p r ó p ria fu n ç ã o jie

15. J. L acan (1960). É crits, p. 775; E scritos 2, p. 754.


16. J. L acan ( I960), Ecrits, p. 825; E scritos 2, p. 805.
A perversão, desm entido do gozo 259

desconhecim ento quando pretende colocar-se por cim a da barreira


inevitável que há ejitre saber e gozar: no caso da perversão, mais do
que em qualquer outro, o eu está do lado da realidade e do semblante.
Pois “ só há acesso à realidade por ser o sujeito conseqüência do
saber, mas o saber é um fantasm a feito apenas para o gozo. E, além
disso, por ser saber, nece ssariam ente falha ” .17
Por ser saber, por ter que articular os significantes produzindo
constantem ente o real com o um impossível que escapa à apreensão
da verdade, porque b u sca im p o r-se com o v ín cu lo social, com o
d is c u rso , um d isc u rso q u e p ro c u ra n e g a r a fa lta so b re a qual
necessariam ente se funda. E o perverso argumenta: é um pedagogo,
um dem onstrador, um eterno com provante da ju steza de sua tese.
“P rega aí um pouco d em ais ” .18 Seu discu rso, centrado no g o zo,
reforça a falha no gozo. Justam ente por se dizer, por não se ater ao
hoje - tão pronto! - clássico conselho de calar sobre o que não pode
ser dito. E com sua palav ra de certeza, de im posição categórica
disso que ele crê ser verdad eiro , põe-se à d istân cia de qualquer
palavra que poderia questionar ou m odificar sua posição. E claro que
de sua condição não poderia se queixar já que surge de uma eleição
q u e lhe p a re c e ra z o a d a e ra z o á v e l. Seu d e s e jo e su a,v.qntade
dependem de um cálçuLo_ein J o rn o do gozo do corpo. E “um ato
puro do entendim ento que razoa, no silêncio das paixões, sobre o
q u e o hom em p ode e x ig ir de seu sem elh an te e sobre o que seu
sem elhante tem direito de lhe e x ig ir ” .19 V ive para o gozo; é sua
escolha. Mal poderia a psicanálise questioná-la desde fora. E desde
d e n tro é in q u e stio n á v e l p o rq u e a c o lo c a ç ã o com o p ro ib iç ã o é
incom patível com a própria posição que se questionaria. E o atoleiro
da perversão. Para o psicanalista; para o perverso não.
SmLa^qsta consiste em saber, sem pre m ais, mais ainda, sobre
o possível corporal ante o im possível da_£g l a ç ã o sexual. Sonha com

17. J. Jacan. C o m p te -ren d u avec in te rp o latio n s du S é m in a ire de l'É th iq u e .


O rnicar?, v. 28, n. 14, 1984. E m espanhol, R esen a s de enseftanza. B ue­
nos Aires: M anantial, 1984, p. 17.
18. J. L acan ( 1963). É c r its, p. 787; E scritos 2, p. 767.
19. D. D iderot. E ncyclopedic, V, p. 116. Art. “ Droit naturel” , citado por N icola
Abbagnano, D iccionario de filosofia. Mexico: Fondo de C ultura Económ ica,
1974, p. 1196, art. “V oluntad” .
260 G ozo

um tra z e r de v o lta no re a l, p o r sua a tiv id a d e e n c e n a d o ra do


fantasm a, daquilo que a castração lhe obrigou entregar. Desaparece
com o sujeito para ser, desde o lugar do objeto, o senhor do gozo
invulnerável à divisão, essa divisão que translada sobre o outro.
P ro cu ra, in can sáv el, fazer p assar o gozo pelos d esfilad eiro s do
discurso e assim controlá-lo. Tudo isso está muito bem e já foi dito,
inclusive aqui. M as agora é o m om ento de tirar as conseqüências.

3. O p erv erso e o gozo fem inino

Já fiz notar a característica clinica do horror do perverso ao


vazio, à falta no saber. Seu pr o jetg Jie.ijiaterializa fazendo do goza
uma doutrina e do corpo umjçam po.experrmental de onde se opera
esse saber para se apoderar das influências da sexualidade. Chega
assim a ser (pelo menos no imaginário) o jisic o nuclear da libido que
governa e adm inistra sua energia, que decide sobre sua utilização e
sua econom ia. M as o horror ao vazio no saber significa ter todas as
resp o stas e, m uito p artic u la rm en te - ponto de tropeço poder
resp o n d er ao vetusto in terrg g an tg jio b re o que quer um a m ulher,
essa p erg u n ta que foi cau sa dos torm entos de T iré sia s... por ter
p reten d id o saber a resp o sta... e de F reu JT c crta m ente, depois de
tantas tentativas vãs de resporulâ-la,
Agora, sim, com Freud, volta-se à tese (perversa?) de que há
um a ún ica jjb id o , a m ascu lin a, .e-w a-úa ic o g e n ita l,_oj^í-h1 t-xilic
organiza a genitalidade infantil em tomo da.al tem ativa fálico/castrado,
caso se aceite que no nível da teoria, do saber, a pergunta pelo gozo
é respondida fazendo valer a qualidade proem inente do falo como
significante e de sua função privilegiada que é a de conjugará pôr
sob o m esm o jugo, o desejo, caso se adira a ela
- a co n cep ção fre u d ia n a da sexualidade hum ana - não se pode
d em o rar em re c o n h e c er que no coração desta teo ria subjaz um
trem endo agulheiro pelo qual escapa esse fluxo do gozo que não
admite o jugo comum da palavra e do falo. Em suma, que há do lado
das m ulheres um gozo suplem entar ao j^o zo fá lic o . Sobre este já
íalãmüsTKi capiiulòTTC mas c m ister recordá-lo agora para buscar
cm torno deste ponto a essên cia da perversão.
A perversão, desm entido do gozo 261

Para que fosse possível sabergozar, seria necessário que todo


o sexual estivesse sob a égide do significante fálico, que as m ulheres
fossem “todas” em vez d e ^ n ão-todas” , que existisse Ajm ilh sr como
e q u iv alen te sim étrico do hom em ou com o seu co n trário ou sua
negação, que a sexualidade fem inina pudesse ser reduzida por meio
de algum tipo de equação que se re fe risse , a uma hom ogeneidade dos
gozos. Freud chegou a se dar conta de que não podia responder a
pergunta sobre o que quer um a m ulher e que sua resposta: “falo”
(P enisneid) não fechava a. questão, m as abria o espaço de um além. ,
Lacan respondeu dizendo que devia perm anecer aberta para sempre,
p orque as m ulheres não estão ausentes do gozo fálico, m as que,
além d isso , são trib u tix ia s -d e -o u lro gozo, de um gozo O u tro ,
suplementar, sentido mas inefável, enigm ático, não esgotável em um
discurso do saber, louco (o do hom em é cham ado “perverso” ), que
está além do falo .20 Ijjji gozo que não apenas é distinto, mas tam bém
oposto e rival do fálico: “a sexualidade fem inina aparece com o o
esforço de um gozo envolto em sua própria contiguidade... para se
rea liza r à p o rfia (à 1’envi) do d esejo que a ca stra ção libera no
hom em dando-lhe seu significante no falo ” 21 (grifos de Lacan). A
ignorância reconhecida por Freud torna-se em Lacan necessidade
p orque responde a um a falta, na estrutura, a^do sign ificante d ’A
m ulherj^uejp sse contrapartida e eqnivglente. do gozo fálico. H á uma
falta no saber que rem ete a um im possível de saber, a um além do
falo. E esse não-sabível não é um inexistente, não é um a falta, mas,
pelo contrário, um excesso, um gozo a m ais que o saber até agora
p retendeu cercar, lim itar, localizar, extirpar, fazendo-o objeto de
discurso e controlando-o.
A p o siç ã o do p e rv e rs o an te o sa b e r so b re a se x u a lid a d e
fem inina é tão interessante com o a de Freud e a de Lacan, porque
encerra a problem ática que eles abrem e condensa a posição que é
congruente com o discurso do senhor com o avesso do discurso da
psicanálise. O perverso proclam a sabergozar, desm ente as faltas no
saber, desm ente o inconsciente, desm ente que o falo pode faltar no
O u tro , s u tu r a to d a s as fa lh a s . A té ãgoT K s e g u in d o F re u d ,

20. J. L acan. (1972-1973). Le sem inaire. Livre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975.
21, J. L acan ( 1960) É crits, p. 735; E scrito s 2, p. 714.
262 G ozo

sustentam os que a essência da perversão era este desm entido (antes


traduzíam os Verleugnung por “renegação” ou ‘YeçjsaT) da castração
que punha em perigo o falo, o trono e~õ altar e que, com prom etido
nesta recusa de uma parte da realidade, o sujeito destituía a si mesmo
de seu lugar incerto para recuperar a certeza que lhe dava o objeto,
o tornar-se instrum ento do gozo que ele asseguraria com seus atos.
A gora, levad o s pelas fó rm u las lacan ian as da sex u ação e pelas
ex p lo raçõ es recentes no ajitigo d d rk cjw tin ç n tj \ a fp.minjjiHaHp
devem os deslocar nossa concepção da perversão.
A tualm ente, m uitos autores acham que a palavra “perversão”
d ev eria ser elim in ad a do vocabulário porque se presta a fins da
s e g r e g a ç ã o . P e s s o a lm e n te s in to u m a fo rte r e p u ls a p e la s
classificações psiquiátricas e psicopatológicas, mas acredito que a
psicanálise opera uma inversão destas e dem onstra suas pretensões
reacionárias. Por isso é que os criadores do DSM-IV ou V ou outras
c ria ç õ e s do m esm o p a d rã o q u e rem a fa sta r o v o c a b u lá rio e as
c o n c e p ç õ e s d a p s ic a n á lis e de su as ta x o n o m ia s . E le s e s tã o
conseguindo. D everem os segui-los?
Até aqui dissem os, com Freud e com Lacan, que se desm entia
um a falta. Agora sabemos que essa falta não o é; que há aí a presença
de um algo que está ajáro e que não é alcançado pelo que surge da
ordem do d iscu rso que p reten d e co o rd en ar o gozo em torno do
sig n ific a n te e do se m b la n te fálico . A p erv ersã o , o que faz que
c lin ic a m e n te se en co n tre co m u m en te do lado m asculino, o que
f a v o r e c e ta n ta s d is c u s s õ e s em to rn o de se p o d e r fa la r em
propriedade de “perversão fem inina”, o que levou Lacan a dizer que
o sexo m asculino é o sexo frágil e nxj^laeão-à^perversão -22 é e sta
posição que assim ila gozo com falo. As m ulheres, logicam ente, se
ó são, não poderiam ac e ita r esta equação gozo = falo. Som ente
p oderiam ser perversas à m edida que esta seja sua posição com
relação ao saber. Os casos não faltam , mas tam pouco proliferam ;
não é raro descobrir a equação e, com ela, a perversão fem inina
quando, e m um casal hom ossexual. umajfas-iotegFantes é a que se
d irig e ao a n a lista com sua d e m a nda: a o u tra é, no c a so, a q u e
su sten ta« posiçac)-perversa, a~3e que somente o falo permite o gozo.

22. J. L acan (1960). É crits, p. 823; E scrito s 2, p. 803.


A perversão, desm entido do gozo 263

Em tais casos pergunta-se sc cabe falar de “perversão fem inina” uma


vez que o ser hom em ou m ulher nàõ é um dado da anatom ia, mas
p o sição su b jetiva e que a p a rten aire de no ssa pacien te é, assim ( . ' y
colocadas as coisas, aquele que ocuna a posição m asculina. E desde
a jd g n tificacão com o falo que essa, desm entindo o gozo feminino,
dirige-se à outra m ulher e a converte na ohieto (jj> de seu fantasma.
A p e rv e rsã o e stá do lado m a sc u lino, é um a resp o sta que
pretende saber ao preço de desm entir a verdade. A verdade, que é
m ulher (N ietzsche com L acan), a verdade que desm ascara o falo
com o sem blante, com o um deslocam ento do real pela linguagem , a
verdade que na psicanálise se revela com o isso que fala, porém não
diz a verdade, mas a disfarça com as vestim entas do sem blante e do
fantasm a, a verdade, se diz pela metade. Sem pre se soube que havia
um gozo diferente (nem m aior nem menor, outro) e esse insabido
era coberto com circunlóquios tais como “mistério da feminilidade”.
mistério que é e foi tanto para os homens quanto para as mulheres.
A função do saber sem pre foi a de tratar de circunscrever e reduzir
esse m istério, b u scan do localizar o gozo fem inino (in clu sive na
duplicidade freudiana do gozo clitoriano e vaginal), concebendo-o
co m o e q u iv a le n te do m a sc u lin o , su b m e te n d o -o ao m o d elo do
orgasm o, posuilando ciclos im aginário s d e -ejeção e detum escência,
experim entado com eletrodos no cérebro, contando as term inações
n e rv o s a s no a n te r io r e no p o s te rio r de tal m u c o sa , m ed in d o
secreções e um idades, contando os dias do ciclo e retorcendo-os
com cálculos fliessianos. dosando horm ônios e neurotransm issores , 1
recom endando m assagens e técnicas de g in ástica sexual. E m ais
ainda. Mas_a-^©l«çãcuiã_o p assa pelo saber: o discurso do senhor
renova aí suajm p o lên cia.
A resposta perversa à pergunta histérica não é a do psicanalista,
m a s a do s e n h o r e a do u n iv e r s itá r io . S u a rg s p a s tii é de
universalidade, de redução do enigma no sipnificanle (fálico, resta
dizélõTTQ jje sm e n t i d o j ão é a castração, mas o gozo das m ulheres,
d õ D u tro sexo. A postulação perversa é que as m ulheres não gozam
porque são _urna pura disponibilidade para o gozo do falo-pênis ou,
se na verdade gozassem , é porque tam bém estariam incluídas, e
to ta lm e n te , no g o z o fá lic o , com mri gozo-ftue~éü d ê n tic o a o -
magriiiiri^ Em qualquer dos casos, afirma-se que não há outro goz.o
264 G o zo

senão o eo~o fúlic/). As m ulheres são, em sua p articularidade.,ora-


anuladas ora desm entidas. N ovam ente, devem os reconhecer que a .
perversão “a p en as” acen tu a a função do desejo no hom em . Sua
essên cia é o desm en tid o do gozo feminTricTe o substituto de um
enigm a pelo fantasm a: o de sabergozar.
Esse gozo hostil, gozo do O utro, gozo à Venvi do gozo fálico
é o insuportável, a cabeça de M edusa que conduz ao fantasm a. A
.atividade do perverso faz sem blante de ser sexual. N a verdade, o
sexo é aí p re te x to p a ra d e m o n stra r que o gozo do co rp o pode
submeter-se integralmente a uma articulação lintruageira que organiza
as “posiçõ es” . O discurso que o perverso im pinge sobre o gozo é
isso, discurso, suplantação do gozo com experim entos m entais que
rev elam a ca d a p asso seu c a rá te r de a rtifíc io s, de c á lc u lo s da
m odalidade para dom inar e b loquear o gozo do O utro, do O utro
sexo. Parece um a busca..., mas é um disfarce. O teatro da divisão
subjetiva negada e deslocada para o O utro oculta um a fuga frente
ao incontrolável que se m aterializa no fetiche, na vítima, no olhar ou
no contrato. A angústia subjacente se resume nessa falta de engenho,
.no tédio reiterativo das encenações, nos serm ões m onótonos para
a v ítim a e rid ícu lo s p a ra o carrasccT que todos, ta m bém L acan,
lem os em_Sad_e,
O ponto limite do per_yersa não é a castração do O utro como
acreditam os ao aprender a lição freudiana, mas o inconcebível gozo
do O utro, esse gozo que o perverso, ao nretender desm entir, põe
m anifesto no Outro ao m esmo tempo em que fica excluído dele. Não
é seu infortúnio particular, pois ele, corno todos, estava excluído
desde antes. Seii-CHa e ter acreditado que não.
Quer tornar-se dono da Coisa da qual está exilado. É aí que “se
agrega aos fantasm as que governam a realidade, o do capataz ” .23 Aí
a psicanálise pode trabalhar (e não se priva de fazê-lo) com o reforço
d a p erv ersão ao reed itar a idéia de um G á k jn , servil p o m o “E u ,
'autônom o” . A fortaleza do eu que organiza e dirige a vida am orosa
é, p recisam ente, o fantasm a p e rv e rs o ,^ J im ía s m a do jseah ü t-q u e
quer reduzir o desejo_kigQyernável à vontade racioflãTAssenhorear-
se das pulsões, dos “instintos” com o dizem. do~Isso para subm etè-

23. J. L acan (1970). A utres écrits (A .E .). Paris: Seuil, 2001. p. 423.
A perversão, desm entido do gozo 265

!q s a leis e a princípios lógicos. D eve-se ouvir Cícero, falando dois


mil anos an tes de F reu d em um d isc u rso que é seu avesso: “ a.
yontade é um deseio conform e à razão, enquanto o desejo oposto
à razão ou muito violento para ela é a lascívia ou cobiça desenfreada
q ue se encontra em todos os tolos ” .24 A falta no saber (sobre o gozo
do Outro, do gozo da m ulher) é desm entida; no lugar do buraco o
perverso-instala-o exercício de um poder, o do capataz.
Para concluir: a p erversão é. em essência uma tentativa He.
cura da falha da relação sexual e da irremediável heterogeneidade dos
gozos. E um a decisão de suturar que é ^ n tin ô m ic a com o projeto
p ró p rio do d iscu rso e a b u sca da p sican álise, o d esíg n ji u j e não
o c u ltar a fen d a. E c a ra c te rís tic a da p e rv e rsã o a p re ten são de
obturar tudo que provém do não-sabido do sujeito. E ncontrar-se
com o inconsciente revelaria ao perverso a insondável rachadura que
o leva a ceder seu desejo, a substituí-lo pela vontade de um eu forte,
^ rp n n n rn r rr) ]iffl d j «j i a n Hr> a wiHn e ró tic a . S u a Única
possibilidade, na perspectiva da psicanálise, ^U tnTnãperseguição de
seu jiqzçixncQntxe^se com a im potgiicia r c o m o no caso que Freud
relatou a seus colegas em 1914.25 M as então, com o agora ou como
"no caso da jovem hom ossexual, não se pode esperar muiio. E difícil
substituir a vontade de gozo pelo desejo quando “a única” coisa que
se pode propor para curar esta passagem necessária pela im potência
é o reconhecim ento da im possibilidade real no final do cam inho.
E não obstante...

24. M. T. Cícero. Tuscitlanes, citado por N. A bbagnano, D icionário de filosofia.


p. 1 195.
25. H. Nunberg e E. Fedem (eds.). M inutes o f the Vienna P sychoanalytic Society.
v. IV ( 1 9 1 2 -1 9 1 8 ). N o v a Y ork: In te rn a tio n a l U n iv e rsity Press, 1967.
p. 243. (A cta 225: A case o f foot fetishism , relator Prof. S. Freud.)
VII

@-dicção do gozo

1. N ão se eleg e a psicose

A ntes, depois e em vez de. Assim se orientam os gozos em


relação ao com ércio da palavra, à dicção, à regulação das relações
com o O utro.
A n tes da p alav ra, m as não fo ra da lin g u ag e m , o gozo do
psicótico.
D e p o is da p ala v ra . N o fa la n te , aq u ele que não seria nem
neurótico, nem psicótico, nem perverso - é essa condição pensável?
- o gozo passa pelo diafragm a flexível da palavra que o dosifica, o
subm ete à significação fálica, o desvia pela m etoním ia desejante, o
torna correlativo da castração e perm ite atravessar as barreiras do
narcisism o e do princípio de prazer para que a pulsão, historizadora,
inscreva a passagem do sujeito pelo mundo, deixando sua m arca no
O utro, recebendo seu fardo e aportando sua cota ao m al-estar na
cultura.
Em vez de, em vez da p alav ra, avesso da p alavra, é assim
com o vem o gozo coagulado no sintom a neurótico e na encenação
perversa. Sob os em blem as do eu, dizem que forte.
A ssim , há um gozo que insiste, um gozo m aldito, aquém da
palavra, um puro ser no ser, anterior à falha que se produz no ente
por se dizer. D este gozo incom unicável, que prescinde do Outro e
se aloja em um corpo que escapa à sim bolização, nos falam, sem se
268 G ozo

d irig ir a nós, os psicóticos. Eles nos m ostram que a palavra não


funciona com o diafragm a regulador, que o sujeito foi inundado e
deslocado por esse gozo rebelde aos intercâm bios, proliferante, tão
in v a so r q u e não d eix a lu g ar p ara um a p alavra O utra que possa
refreá-lo e limitá-lo.
Se O é o significante do gozo com o proibido para o ser que
fala com o tal, então é o Falo que não se sim bolizou, o gozo não foi
esvaziado do corpo, a falta a ser não se instaurou, o sujeito não é
d esejan te. Sem esta falta fecunda, sem que se cum pra a função
im aginária de -cp, nada fica por buscar no cam po do Outro. Porém,
com o já sabem os, mas é m ister aqui reiterar, o Falo não cum pre sua
fu n ç ã o c o m o s ig n if ic a n te p e r se , s e n ã o p o r m e io de o u tro
significante, o do nom e-do-Pai, que perm ite a instauração de um
tro n c o fu n d a m e n ta l, sig n ific a n te um (S,), ao qual p o d e rã o se
articu lar os significantes dois ( S j do saber inconsciente. O Falo
b a rra a C o is a e p e rm ite a e m e rg ê n c ia do s u je ito ao se fa z e r
re p r e s e n ta r p e lo s ig n ific a n te do n o m e -d o -P a i que p e rm ite a
significação fálica (capítulo II, item 5). Se este tronco que é o nome-
do-Pai falta em seu lugar, os ram os ficam soltos e não pertencem
a á rv o re n e n h u m a . E sta é, n u m a im ag em a p re ssa d a , a n o ção
lacaniana da forclusão, chave das psicoses. Não há lim ite para o
g o z o , n ão há can al p a ra a p a la v ra a rtic u la d a . E ste é, em tais
pacientes, o obstáculo de estrutura que im pede que se unam o saber
e o am o r n esse co ração da p sic a n á lise que é a tran sferên cia. A
interpretação é aqui inútil quando não persecutória e perigosa. E a
questão prelim inar a qualquer tratam ento possível da psicose.
E sta situ a ç ã o , este d estin o do ser que não se diz na inter-
dicção, não está ao alcance de qualquer um. Não é louco aquele que
quer sê-lo. Freud pôde falar da Neurosenwahl, da eleição da neurose.
Mas não, nunca, de uma eleição da psicose. A lição da psicose - creio
- é que ela não é eleita.
E sta afirm ação é categórica, ainda que discutível e discutida.
Não basta recordar que em 1967 Lacan disse que “o louco é o único
hom em livre”. E ra o ano em que Lacan se dirigia para elaborar sua
proposta dos quatro discursos, quando pôde definir em um prodígio
de síntese o discurso como lien social. Lien, ou seja, laço, vínculo,
atadura. N esse sentido não cabe discutir que o louco é livre; ele, o
único que vive fora das cadeias discursivas que fazem com que a
@-dicção do gozo 269

palav ra que se enuncia, tenha de passar pelo tribunal do O utro e


esperar a resposta do Outro. É em sua linguagem, fora das coações
do discurso, que o louco é livre. Entrar no discurso é atar-se, perder
a liberdade. A loucura cria um a exceção e é por essa exceção, por
esse lugar exterior, que os discursos, os quatro de Lacan, constituem
um conjunto.
Lacan reiterou em 1968' o que havia dito há vinte anos, em
suas “O bservações sobre a causalidade psíquica” : “O ser do homem
não apenas é im possível de com preender sem a loucura; não seria
ele ser do homem se não levasse em si a loucura com o o limite de
sua liberdade ” .2 Sua posição é diáfana: a liberdade tem um a fronteira
e o nom e desse limite, do borderline, é loucura, linha onde acaba a
lib erd ad e. A crescen tav a na seg u n d a oportu n idade: “O p sicótico
a p re se n ta -se e sse n c ia lm e n te co m o o signo, signo em im p asse,
daquilo que legitim a a referência à liberdade ” .1 Im passe, o que não
pode se atravessar, o que separa de um e outro lado a liberdade de
sua ausência.
O b serv e-se que não há lug ar p ara m ais um d iscu rso , o do
psicótico, esse no qual a palavra não seria sem blante, mas que sc
colocaria diretam ente no ponto de união da verdade com o real, isso
que Julia Kristeva 4 batizou como “vreal” . Todo discurso é semblante
porque se apresenta com o verdadeiro sem sê-lo. Todo discurso é do
sem b lan te ,5 6 porque fala de entidades que não existem senão por
meio do discurso que lhes dá seu estatuto linguageiro. E, finalmente,
todo discurso é do sem blante porque seu agente (o que se dirige ao
outro e o interpela), é o sem blante, que tom a o lugar da verdade ao
m esm o tem po em que a põe a respeitosa distância, seja ele senhor,
u n iv ersitário , analista ou histérica. E o psicótico não é nem faz

1. J. L acan (1968). A utres écrits (A.E.). Paris: Seuil, 2001. p. 361.


2. J. L acan (1946). Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 176. Em espanhol, E scritos
l. M éxico: Siglo XX I, 1984. p. 166.
3. J. L acan (1968). A. E., p. 363.
4. J. K risteva. Locci verdad. M adrid: F undam entos, 1985.
5. J. L acan (1 9 7 1-1972). Le sém in a ire. L ivre X VIII. D 'u n d isc o u rs qui ne
serait p a s du sem blant. Paris: Seuil, 1984.
6. N. A. Braunstein. El concepto de sem blante en Lacan. M éxico: Siglo XXI.
p. 121-152.
270 G o zo

sem blante. V ive fora dele m esm o quando não lhe esteja vedado
cruzar sua fronteira e dar-se a entender.
Não quer dizer, pois, que o louco seja livre para eleger. De fato,
e, com o psicótico, são os dem ais que elegem por ele. Aquilo de que
o louco está livre é de ter de eleger, isso a que nos obriga o discurso
a to d o s os o u tro s, que sab em o s q u e não é p o ssível e leg e r sem
perder, sem renunciar a um a parcela de gozo.
A psicose “salva” o sujeito de passar pela castração simbólica,
de v e r-se o b rig a d o a d e sa lo ja r o g o zo do co rp o , de ter que se
m a n ife sta r em um d iscu rso em que o o b jeto se co n stitu i com o
perdido, das barreiras (ao gozo) que obstruem a subjetividade na
significação fálica e que tom am impossível a relação sexual. O louco
é o sujeito que está em contato im ediato com o objeto precisam ente
porque não está subm etido a ter de m etaforizar e m etonim izar sua
relação com ele no encadeam ento dos significantes. A alucinação
tom a o lugar que tem o fantasm a para os enlaçados pela palavra.
A ssim a loucura nos m ostra um a im agem da liberdade que é
alheia aos norm ais, os mais ou m enos neuróticos ou perversos, os
que nos defendem os do real por meio do sim bólico, nos agarram os
à n o s s a im a g e m n a rc ís ic a e n o s in s ta la m o s em um a su p o sta
“realidade” que está feita de enlaces arbitrários entre significantes e
s ig n if ic a d o s . Tal “ r e a lid a d e ” n ão é m ais q u e um a fo rm a ç ã o
fan tasm ática com partilhada por m uitos bem -pensantes e que nos
deixa a ilusão de não estar loucos. Vivemos no reino do sentido; não
som os insensatos. Gostem os ou não.
O louco, p articularm ente o esquizofrênico, denuncia sem o
saber a presunção da razão que se confirm a a si mesma, excluindo
o louco dos intercâm bios e subordinando-o, em nossas culturas, à
ordem m édica por m eio da p siq u iatria que encerra e dom ina seu
corpo com a ajuda dos fárm acos. A psicanálise se confronta assim
com um dilem a: idealizar o louco e a loucura com o paradigm as da
liberdade ou objetivá-lo com a noção de “doença” e justificar assim
as m anipulações e a prisão. N ossa opção consiste em denunciar a
falsidade desse dilem a e m ostrar um cam inho diferente, congruente
com o nunca desm entido determ inism o de Freud e Lacan.
O risco é duplo; por um lado o de justificar a redução do louco
a um a co n d ição de anim alidade, por outro, o de um bunuelesco
fantasm a da liberdade em que aqueles que estam os encadeados a
@ -dicção do gozo 271

subsistir à mercê dos ofícios de um significante que nos represente


ante outro acabam os por construir a idéia da “ liberdade do louco”
com o rem endo im aginário à nossa falta dela .7
O problem a é que na loucura o louco não é o dono de seu
c o rp o , m a s o e n tr e g a ao O u tr o , c o m o o fa z e m ta m b é m , e
a seu m odo, o farm acodependente e o suicida para que se ocupe
dele. Sua liberdade tem o âm bito dos muros do m anicôm io ou dos
m iseráveis quartinhos de hotel onde são hoje encerrados depois de
im p reg n á-lo s com prod u to s qu ím ico s. Se o louco fosse o único
hom em livre, o invejaríam os. E assim?
Com o se consegue ser psicótico? É a eleição de uma posição
subjetiva dessas pelas quais se é sem pre responsável, com o diz La­
cans cm “A ciência e a verdade” ? A neurose, a adicção, o suicídio,
a perversão o são. Tam bém o é, à luz do que nos ensina a clínica,
a psicose?
E leger não é escolher um objeto do qual se haverá de gozar.
C aso se to m e esse p o n to de p a rtid a fic a r-s e -ia no m ais tosco
psicologism o da consciência autônom a. E leger é aceitar a perda,
abrir mão do gozo. O paradigm a da eleição, uma eleição forçada, está
dado p o r L acan em seu c é le b re “ a b o lsa ou a v id a ” .9 A eleição
im p o sta ao su jeito ex clu i a c o n ju n ç ã o de am bas. O p sicó tico é
precisam ente aquele que responde o im possível: a bolsa e a vida,
aquele que não aceita, que recusa, a perda de gozo. Eleger é eleger
a perda do objeto e, a partir de aceitar o cerceam ento (écornem ent)
do gozo, ele g e -se o m odo de se re la c io n a r com o o b jeto com o
p e rd id o . E ssa é, ju sta m e n te , a N e u ro se n w a h l. N ão a co n te ce o
m esm o na psicose.
E necessário seguir o pensam ento lacaniano sobre as psicoses
e encontrar em seu ensino o m om ento de inflexão a esse respeito.
E verdade que Lacan pôde falar da psicose com o uma “decisão in­
sondável do ser ” .10 E sta ex p ressão aparece no artigo dedicado à
causalidade psíquica, escrito a pedido de Henry Ey em 1946, no qual

7. Chr. Fierens. C om m ent p e n se r la fo lie . R am onville: Erès, 2005.


8. J. L acan. É crits, p. 858; E scritos 2, p. 838.
9. J. L acan (1964). Le sem inaire. Livre XI. Les quatre concepts fo n d a m e n ta u x
de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. p. 193.
10. J. L acan (1948). É crits, p. 177; E scritos I, p. 167.
272 Gozo

Lacan enfrentava assim as pretensões veterinarizantes d) organodi-


namism o. A “decisão insondável” está im buída do espírio sartreano
que dom inava nesses anos. E, por m ais que se pretend negá-lo, c
abertam ente contestada pela concepção lacaniana que st deduz len­
tam en te d ez anos d ep o is, no p erío d o de e lab o ração ^ue vai do
sem inário III sobre as p sic o se s 11 até a escritura (em 1»58) de “A
questão prelim inar a todo tratam ento possível da psicos ” . 12 Aqui a
questão da psicose aparece centrada em torno do conceto de “for-
clusão” . totalm ente oposto à idéia de um a “decisão insoidável” . A
nova tese estabelece a não intervenção da m etáfora paDrna. O de­
terminismo próprio da psicose deve ser buscado na relaçã> do sujeito
com a linguagem : o significante que seria o eixo de todaarticulação
não tom ou seu lugar na cadeia e todos os dem ais vagamsem rumo.
Bloqueou-se a artéria principal e o sujeito deve errar peloicaminho-
zinhos secu n d ário s onde todos os sinais se põem a falir por sua
conta. Produz-se um desencadeam ento com relação ao Iço discur­
sivo, com relação à cadeia borrom eana e com a cadeia da gerações
e é esse ruído de cadeias rom pidas que ensurdece o psidtico.
Q uando o significante do nom e-do-Pai falta em seu hgar - nos
é e n s in a d o p e la c lín ic a - o q u e fic a n ã o é um sije ito na
indeterm inação e na liberdade absoluta, m as um sujeito ubm etido
ao inefável do gozo, subm etido à arbitrariedade do desej) da Mãe.
Pois a m etáfora paterna é o efeito da operação da ausênca da mãe,
cujo lu g ar o n o m e-d o -P ai vem o cupar. P ara que e stao p eração
fracassad a, p ara que esta f o r c l i t s ã o se p roduza, disse .acan em
1968, n a s J o r n a d a s s o b re a P s ic o s e I n f a n til , 13 é ire c iso o
encadeam ento de três gerações que são as necessárias pan produzir
u m a c ria n ç a p s ic ó tic a . A tese das trê s g e ra ç õ e s se lontrapõe
ev identem ente com a “decisão insondável” de 25 anosm tes e se
so m a à c o m p r e e n s ã o d as p s ic o s e s c o m o um d e e ito não
c o m p e n sa d o na ju n ç ã o da cad e ia b o rro m e a n a (R, S , ) que foi
elaborada nos sem inários de Lacan de 1974 a 1977.

11. J. L acan (1955-1956). Le sem inaire. Livre III. L es psychoses. 'aris: Seuil,
1981.
12. J. L acan (1958). É crits, p 531-585; E scritos 2, p. 513-564.
13. J. L acan (1968). A. E., p. 362.
@ - d ic ç a o d o g o z o 273

O Pai vem dar fim ao pior. Não resta nenhum a dúvida de que
ele é um im p o sto r e que a c o n se q ü ê n c ia de sua im p o stu ra é a
subm issão do sujeito às ataduras do discurso. Pela interferência do
nom e-do-Pai o sujeito é desalojado do gozo, da sarsa ardente da
Coisa. Im postura não é, em contrapartida, o desejo da Mãe; esse sim
é bem real. Sabe-se de seus efeitos quando a im postura fracassa,
q u a n d o o s u je ito n ão e n tra n e s s a s fo rm a ç õ e s de d is c u rs o e
form ações do inconsciente que não são senão sem blante. Sobrevêm
o pior, isso que deve evitar qualquer tratam ento da psicose para não
“se exaurir com os remos quando o bote está na areia ” .14
E n tre a p ro p o sta do sen h o r que fech a e red u z o louco e o
recurso idealista a uma liberdade insondável e fantasmática, o desafio
para os psicanalistas é encontrar um a terceira via. O determ inism o
freudiano e a causalidade estrutural lacaniana indicam a direção a
seguir.

2. P sico se e discurso

P a ra o p s ic ó tic o n ão há e s c a p a tó r ia . N ele não e x is te a


possibilidade de um a entrada e saída m anipulável, operatória, das
transações linguageiras. Sua separação da cadeia significante é um
efeito, a conseqüência de um defeito da cadeia sim bólica do sujeito.
O psicótico se situa e é situado fora do ring do discurso.
U m a dificuldade sem pre se apresenta ao escrever de form a
geral sobre as psicoses: tende-se a fazer delas um m odelo global que
re s u lta sem p re um a a lu sã o ao q u e se e n c o n tra na c lín ic a dos
pacientes diagnosticados com o psicóticos, mas que quase nunca se
c o n firm a p le n a m e n te nos c a so s sin g u la re s . E a ssim co m o “ a
psicose” e “o psicótico” que chegam a ser rótulos esquem áticos que
extraviam o clínico e o leitor que investiga no lugar de orientá-lo com
relação ao processo estudado. F reud bem o sabia no final de sua
vida. quando escrevia em um texto que os lacanianos, com razão,
te n d e m o s a esq u e c e r, q u a n d o n ão nos e sq u e c e m o s de ler. N o
"Esboço de psicanálise ” 15 (1940[ 1938]) o fundador m anifestava que

14. J. L acan (1958). É crits, p. 583; E scrito s 2, p. 564.


15. S. F re u d (1 9 3 8 ). O b ra s c o m p le ta s , v. X X III, p. 241-242.
274 G o zo

O p ro b le m a d a s p s ic o s e s s e rá s im p le s e tra n s p a r e n te se o
d e s a ta m e n to d o e u c o m re la ç ã o à re a lid a d e o b je tiv a p u d e s s e se
c o n s u m a r s e m d e ix a r r a s tr o s . M a s, a o q u e p a r e c e , is s o o c o r re
ra ra m e n te , ta lv e z n u n c a ... P r o v a v e lm e n te te n h a m o s o d ire ito d e
c o n je tu r a r , c o m u n iv e r s a l v a lid a d e , q u e o s o b r e v in d o e m ta is
c a s o s é u m a c is ã o p síq u ic a . F o rm a m -s e d u a s p o s tu ra s p síq u ic a s
e m v e z d e u m a p o s t u r a ú n ic a : a q u e le v a e m c o n s i d e r a ç ã o a
r e a lid a d e o b j e t i v a , a n o rm a l, e o u t r a q u e , so b a i n f lu ê n c ia do
p u lsio n a l, d e s fa z -s e o eu d a re a lid a d e .

D eve-se sem pre ter presente esta Spaltung. Falar ou escrever


sobre “a p sico se” e sobre “o p sicó tico ” é se restringir a um a das
duas “posturas psíquicas” , a que se separou da realidade, ou seja,
do O utro do significante, e ignorar a presença constante da outra
postura, a que continua vinculada ao O utro. Por isso em nenhum
psicótico singular se encontrará plenamente o que este ou outro autor
escreve sobre “a psicose” com o m odelo ideal.
Esta consideração é essencial para justificar a afirm ação feita
linhas acim a de que o psicótico, pelo fracasso da m etáfora paterna
com fo rc lu sã o do n o m e -d o -P a i, fica situ ad o fo ra do d iscu rso .
Possivelm ente não valha absolutam ente para nenhum psicótico e,
não obstante, tem validade clínica geral com relação “à psicose” .
A definição lacaniana do discurso como vínculo social, vínculo
entre corpos habitados pela linguagem , é o recurso essencial para
aceder à concepção psicanalítica das estruturas clínicas em geral e
às psicoses em particular. D esde a definição do significante e sua
concretização na m atriz de todo discurso que é o discurso do senhor.
“Um significante é o que representa a um sujeito ante (ou para) outro
significante ” ,16 é definição incom pleta caso não se acrescente: “...
que deixa com o produção um resto, um real fugidio que escapa
à articulação discursiva do S, e do S2. N a posição da verdade dessa
articulação discu rsiv a está o sujeito S, o que é representado pelo
significante prim eiro ante o segundo.
A d e fin iç ã o do sig n ific a n te e sc re v e -se co m o m a tem a do
discurso do senhor:

16. J. L acan (1960-1964). É crits, p. 860; E scritos 2, p. 840,


@ -dicção do gozo 275

a g en te —> outro S, —> S2


verdade // produção S // @

Entre os lugares da verdade e da produção se inscreve, sob a


form a de um a d u p la b arra de sep aração , um corte que m arca a
disjunção, o desencontro necessário entre os dois elem entos. Ao
serem estes lugares ocupados na fórm ula do discurso do senhor,
toma-se vidente que a relação de corte ou de disjunção é a que existe
entre o sujeito e o objeto e que a escritura assim produzida é a do
fantasm a, em que o corte é indicado pelo losango 0 : S 0 .
C om o esta fórm ula é aplicada na intelecção das psicoses? Já
desde o S em in á rio XI, anos an tes de p ro d u z ir os m aternas dos
quatro discursos, L acan havia estabelecido que devia se buscar a
chave na ligação entre os dois significantes, no intervalo que os
separa, no “ante” (auprès) o “para (pour) o outro significante” da
definição. O S, não representa o sujeito ante o S2, seja porque não
há diferenciação entre ambos significantes, seja porque está rompida
a sintaxe que os articularia. E o efeito da forclusão.
P ela fun ção da p alavra, p elo d iscu rso , o b tém -se um saldo
fugitivo de gozo que é @, um @ que, por definição, é inacessível
para o sujeito. Nas psicoses esta função da palavra e do discurso está
radicalm ente perturbada. A coagulação ou a desarticulação dos dois
significantes, esta é a tese que aqui se sustenta, provoca com o efeito
uma falha estrutural na constituição do fantasm a, um transtorno na
relação e n tre o su jeito $ e o o b je to c a u sa de seu d esejo , @. A
psicose é um processo de afetação do intervalo significante, mas seu
efeito para o sujeito é a falha na constituição do fantasm a no membro
que co rresp o n d e ao intervalo no m atem a do fantasm a, ou seja, o
losango O. A escritura do losango foi dita por Lacan de três formas
diferentes: com o a) corte; b) inconsciente; e c) desejo de. A relação
do sujeito com o objeto do fantasm a pode ser expresso dessas três
form as. Isso é, precisam ente, o que falha na psicose. Poder-se-ia
dizer que está ausente ou rom pido o losango e que por isso não há
fa n ta s m a ou o p ró p rio te rm o fa n ta s m a d e v e ria re c e b e r o u tra
definição se se quisesse co n serv ar o incerto sintagm a “fantasm a
psicótico” .
Bem, a função do fantasma é a de distanciar o sujeito do objeto
causa de d esejo que é, por sua vez, o o bjeto do gozo ou o gozo
27 6 Gozo

como objeto. Graças ao fantasma o sujeito está protegido em relação


ao gozo, m antida a respeitosa distância dele. O losango equivale, na
fórmula, à imagem gráfica do cristal de uma vidraça (ou um espelho)
que separaria o sujeito do objeto desejado e proibido, perigoso. A
p sic o se é a q u e b ra do c rista l, a situ a ç ã o na qual o su jeito fica
exposto ao gozo e é extrapolado por ele.
V o lta n d o ao m a te m a do d is c u rs o do sen h o r, q u e é o da
definição do significante, temos que expor agora a situação anôm ala
que se encontra na psicose: a) S, c S2 coagulados, com o uma m assa
in d is tin ta , h o m o lo g a d o s e n tre si, o q u e L a c a n d e s ig n a ra
prem aturam ente de holofrase.11 Esse grude é o responsável, segundo
disse, não apenas pelas psicoses, mas também por outros processos,
com o a debilidade m ental ou as afecções psicossom áticas, e b) S,
e S, d e s a rtic u la d o s , c a re n te s de sin tá x e , se p a ra d o s de m odo
inelutável entre si. Em ambos os casos deixou de existir o discurso
com o vínculo social. Tom ando com o m atriz o discurso do senhor,
cabe arriscar agora a escritura da relação do psicótico com a palavra,
desta maneira:

S, 0 S,

8 @

E sta escritura pretende m ostrar que a relação de disjunção ou


corte, indicada pelo losango 0 , foi deslocada para a relação entre o
S, e S2 e que esse m esm o corte deixou de existir entre o sujeito e o
g o zo , d e sa p a re ce n d o a b arra que os m an tinha sep arad o s e que
alentava no im aginário a busca de um reencontro posterior. Assim
e ra o fa n ta sm a (8 0 @) co m o re sp o sta ao desejo ilu stra d o no
gráfico de “Subversão do sujeito e dialética do desejo ” .IS D upla
ru p tu ra, p o is, no p sicó tico : de um sig n ifican te com o u tro e do
fa n ta sm a c o m o b a rre ira fre n te ao gozo. D u p lo e feito c lín ico :
interrupção da dialética intersubjetiva e invasão irrefreável do gozo
do O utro, não subm etido à regulação fálica e à lei que ordena o
desejo.

17. J. L acan (1954). É crits, p. 256.


18. J. L acan (1958-1960). É crits, p, 817; E scritos 2, p. 797.
@ - d i c ç ã o do g o z o 277

Ou o gozo ou o discurso. Temos recordado que Lacan quase


nunca falou de um sujeito do gozo. A prim eira vez, já m encionada,
foi no sem inário da angústia (13 de março de 1963) para propor o
m o m en to m ítico de in ício q u e h a v e ria de c u lm in a r n a d iv isão
subjetiva (fórm ula da divisão e a causação subjetiva). A segunda foi
em 1966, ao apresentar a publicação, em francês, das m em órias de
S chreber.1'' Escreveu então sobre a recém -surgida polaridade entre
o sujeito do gozo - por um lado - e o sujeito, a quem o significante
representa para um significante, sem pre outro, por outro lado.
A forclusão opera sobre a relação do significante do nome-do-
Pai com o restante da cadeia. D esam arrado, o falante é lançado à
deriva dos discursos, à dependência da resposta do Outro, a ter que
se significar por meio de sua palavra, à ex-sistência. É por isto que
no psicótico a palavra não é sím bolo, não é convite ou invenção do
intercâm bio, não funciona com o diafragm a do gozo.
O significante representa ao sujeito que não é psicótico. O
sujeito está no lugar do significato, ele é o significado ante outro
significante. N unca do todo, porque fica um resto que é @. Esta
articulação com o segundo significante é o que falta na psicose. Um
significante suplanta com pletam ente o sujeito, não o (re)presenta;
e sse s ig n if ic a n te n ão n e c e s s ita se c o n ju g a r c o m o u tro , há
coalescência do significante e o sujeito (significado). N ão há um
re sto in a ssim ilá v e l, um re síd u o da o p eração . O p sic ó tic o e stá
invadido pelo gozo, esse gozo do qual, de ordinário, cada um fica
excluído pela não coalescência do significante e o significado. A í
p a la v ra s são as coisas do p sicó tico , não um saldo fu g itiv o que
o b rig a a p ro s s e g u ir o e n c a d e a m e n to d is c u rs iv o . N e le há um
s ig n if ic a te S, q u e r e p r e s e n ta o s u je ito de m o d o a b s o lu to ,
confundindo-se com ele, sem rem édio nem perdão, sem que a falta
se simbolize. Por isso falamos do gozo psicótico, mas não do desejo
psicótico. Não há falta em ser que m otorize o discurso.
O psicótico não se sustenta à distância do gozo. habita nele;
está identificado com seu gozo. Ele é gozo. A alucinação ali não é
um a p ercep ção de alguém . N ão há d istin ção en tre p erce p tu m e
percipiens. Faltando o losango que afasta o sujeito do gozo do ob­
jeto a condensação é agora produzida entre os dois term os do

19. J. L a c a n ( 1 96 6). A. E., p. 215.


278 Gozo

fa n ta s m a . D e v e ria se p e n s a r em um v o c á b u lo a n á lo g o ao de
holofrase para designar esta coalescência entre S e @ cujo exem ­
plo m ais notável é a alucinação. N a percepção o sujeito à sua fren­
te um objeto e pode subm etê-lo à “prova de realidade” freudiana; na
alucinação o sujeito está fundido, confundido, com seu objeto. Não
são dois, mas apenas um, não guardam um a relação de exterioridade
recíproca.
N as psicoses o gozo não se localiza em uma região do corpo,
não está reprim ido e limitado pelo significante fálico, representante
de -cp, d a q u ilo que no corp o falta à im agem d esejad a, mas que
invade o corpo inteiro transform ado em quebra-luz onde se projetam
m etam orfoses arrepiantes que deixa o sujeito atônito, um sujeito que
se vê re d u z id o a ser o c e n á rio p a ssiv o de tra n sfo rm a ç õ es que
o b e d ecem a escu ra vontad e de um O utro o n isciente que rege e
regula o acontecer orgânico. Influência, hipocondria, alucinação de
o rd e n s, p e rse c u ç ã o , m ag n e tism o , irra d ia ç õ es, tra n se x u a lism o ,
negação, putrefação, cadaverização de um corpo onde não im pera
s e n ã o a O u tra v o n ta d e , a q u e g o v e rn a a c a rn e do p re s id e n te
Schreber pelos séculos futuros.
Outro efeito dessa ausência de regulação do gozo pelo falo (pela
castração) é que a vertente paterna, freudiana, do supereu, herdeira
do com plexo de Edipo, não se apresenta para incitar a outra mulher,
a prom etida e possível. Subsiste, então, irrefreável e incoercível, a
ordem obscena e feroz do supereu arcaico, materno, kleiniano, que
com anda o Gozo! impossível, gozo! ilimitado da Coisa que está antes
e aquém da castração.
Pela defeituosa integração do sujeito na ordem simbólica é que
ele não chega a se distanciar do real com o impossível. E produzida
su cessiv am en te um a desorg an ização com pleta do im aginário do
corpo. Sobre esse fundo de fragm entação, sobre esse transtorno
radical da existência, im planta-se a função restitutiva do delírio que
p retende voltar a ligar o sujeito em um a cadeia significante e dar
conta da experiência vivida. O conjunto da aventura psicótica resulta
d e s ta d is p e rs ã o dos s ig n ific a n te s q u e fic ara m in v erteb rad o s^
desligados do vínculo social. A metáfora delirante pretende remendar
a fa lh a da m e tá fo ra p a te r n a na su a fu n ç ã o de c o n fe r ir um a
significação à falta no Outro. Pretende devolver o sujeito às redes
@ -dicção do gozo 279

do laço so cial. R estau rar a lig ação , a B in d u n g do go zo com a


palavra.

3. D ro g a-@ -d icção

Não se eleje a psicose. Há, no e n ta n to , um m é to d o de sub­


tração do sujeito ao intercâm bio sim bólico que é, este sim, objeto de
um a d e c is ã o e de uma e le iç ã o . A lg o q u e perm ite um a conexão
quase experim ental com o gozo e que opera um curto-circuito com
relação ao Outro e a seu desejo. U m a senda que perm ite ao sujeito
um certo balizam ento, a produção mais ou menos regulável de uma
separação com relação aos efeitos da operação de alienação signifi-
cante. Uma separação que pode ser com pleta, ou seja, um a recusa
absoluta da a lie n a ç ão sig n ific a n te . N ão d eixa de ser p aradoxal
que e ste m éto d o seja p o sto à d isp o siç ã o do su je ito ju sta m e n te
por esse Outro do qual o sujeito pretende se separar. Com efeito, é
um produto da in d ú stria , algo q u e se trafica, algo que é proposto
e oferecido pelo O utro no c o m é rc io que p o d e satisfazer esta de­
m anda de um a se p a ra ç ão ra d ic a l, de aniquilação do “penso” em
benefício de um “sou” sem atenuantes e além de qualquer cogita­
ção. Estou fa la n d o , co m o já se d e v e te r en ten dido, da droga, das
drogas se preferem , e de seu efeito perm anente no sujeito que é a
drogadição.20
A intenção de separação (do Outro), entendida com o operação
oposta à alienação (no Outro), é, conform e acredito, a chave que nos
p e r m ite in te rn a rm o s na s e lv a d as d ro g a s , q u e é u m a das
c a ra c te rís tic a s e sp e c ífic a s de n o sso m u n d o e de n o ssas vidas
atualm ente. U m a realidade cuja presença irá ganhando im portância
sem que possam os contem plar qualquer lim ite à criação de novas

20. Aníbal L enis B. de Cali publicou um artigo que intitulou “ Interpelar la dro-
g a-d ic ció n ” . O hífen de seu títu lo serviu de estím ulo para estas reflexões,
assim com o sua afirm ação de que “o drogadito é quem ‘c ria ’ ou ‘a dm inis­
tra ’ sem necessidade dos outros, que o dem andam com o sujeito, seu pró­
prio g o z o ” . O texto de L en is foi p u b lic a d o no n úm ero 2 d o B o le tín de
E stúdios P sicoanalíticos de C ali, C olôm bia.
280 G o zo

substâncias que cheguem ao organism o e o m odifiquem sem passar


pelo filtro da subjetividade.
O m odo mais barulhento da separação do Outro é, sem dúvida,
o suicídio de que logo falarem os. A droga oferece uma alternativa
diferente. Com ela ou com elas o clam or é apenas rumor, a batida
tom a-se um mero escorregar, a soberba se torna humildade, a pompa
se torna recôndita, a altivez suicida se faz vergonha. U m a diferença
salta para o prim eiro plano: na intoxicação não há morto, mas um
“d ar-se p o r m o rto ” que não reiv in d ica com orgulhoso desdém o
co rp o q u e se e n tre g a co m o um a e sm o la ao O u tro , m as q u e o
degrada e o m ostra na m iséria de suas servidões orgânicas.
O suicídio destaca o nome, o tom a próprio, o livra da entrega
ao O utro. Em contrapartida, os alcoólicos são anônim os, enquanto
alcoólicos e alcoolizados, claro.
D e q u alq u er form a, deve-se ter cuidado de não falar leve e
superficialm ente dos adictos, toxicôm anos ou fárm acodependentes
conform e se prefira chamá-los. O uso do álcool e das demais drogas
configura um a “conduta” e não um a estrutura clínica. Tal conduta
p o d e se m a n ife sta r em n e u ró tic o s, p e rv erso s ou p sic ó tico s e a
m aneira de encarar psicanaliticam ente os casos não depende do uso
das drogas, m as dos reparos estruturais; são eles que perm itirão
o rien tar a direção do tratam ento. Sem pre será sábio por parte do
a n a lista q u e e n c o n tra o uso de d rogas no lugar m ais visível da
apresentação de um caso, a retroação a este m odo encobridor no
qual o sujeito se m ostra ou é levado a se m ostrar ao psicanalista.
“Sou toxicôm ano” é um dizer comum para fugir à pergunta pelo ser:
o nom e-do-Pai, do pai com o quem nom eia o sujeito, é o da droga
da qual o sujeito está pendente (de-pende). A própria toxicom ania
c o b re e e s c o n d e e s s a q u e s tã o c o n f e r in d o um s e m b la n te de
identidade que não deixa de ser um a m áscara que deve ser tirada
para que as verdadeiras perguntas do sujeito sejam ouvidas.
O in teressan te deste com p o rtam en to está no m odo com o o
sujeito enfrenta este objeto peculiar que é a droga. Supõe-se que sua
adicção lhe perm itiria um a via de acesso privilegiada e direta, em
c u rto -c irc u ito , até o g ozo e que seria um m odo de c o n te sta r a
e x ig ê n c ia do O utro e da cu ltu ra de ren u n ciar ao gozo. A droga
consegue ser o objeto de uma necessidade im periosa que não aceita

I
@ -dicçã'do gozo 281

nem os diam entos nem as d iferenças da satisfação dem andada.


Tem os a um a diferença radical entre o objeto da toxicom ania e o
o b je to a p u lsão ou do fa n ta sm a . A falta a ser não p a re c e ser
provocaia por um objeto inom inado e irrecuperável, mas a de uma
mercadcria que se co m p ra no m ercad o . N este sentido a droga,
objeto d. necessidade, m ascara ou substitui o desejo inconsciente
que fican ais desconhecido do que nunca ao se disfarçar como um a
exigêncii do organism o. T rata-se de uma necessidade colocada em
term os asolutos, de vida ou morte: ou há o gozo quím ico ou há o
nada. 0 ;u je ito fica abolido, reduzido ã condição de desfeito, @. A
droga n ô é um objeto sexual substitutivo, carece de valor fálico; é,
pelo cor.rário, um substituto da sexualidade mesma, um m odo de
afastar-s das coações relacionais im postas pelo falo. E assim que
a dro g a;e assem elha ao auto-erotism o da proibição originária: o
su je ito d m in istra em si m esm o um a su b stân cia que o co n e cta
diretam nte com um gozo que não passa pelo filtro da aquiescência
ou pelo orçam ento do corpo de outro; consegue-se deste m odo a
substituião da sexualidade.
E ecasso o que encontram os no ensino de Lacan acerca deste
tema, m s a escassez não é necessariam ente a pobreza. E preciosa
a indicaão que deixara plantada na única oportunidade em que se
refe riu d ro g a com esse nom e, no final de sua v id a ,21 q u an d o
expressai que a dificuldade para nós, falantes, é tirar da castração
um goze perm itir que a castração e o desejo nos liberem da angústia,
conduzido-nos até o investimento do corpo do Outro que sim boliza
a falta o nosso. Pois a angústia vem para nós, hom enzinhos ou
futuras n u lh erzin h as, de d esco b rir - com o no caso do pequeno
H ans - |ue estam os casados com o apito e que a difícil questão é
com o dssolver esse m atrim ônio funesto, contraindo outro, com o
co rp o d) O u tro ou com o que q u er que seja; d a í que seja bem
recebidctudo que permita escapar dessa união, “de onde vem o êxito
da drogi” . E conclui: “N ão há outra definição da droga: é o que
perm iteo m p er o casam ento com o pipi”. A droga é o com panheiro
que ven depois do divórcio do hom em ou da m ulher com a ordem

21. J. L e a n . S é a n c e d e C la u s u re d e la J o u rn é e d e s C a r te ls de 1’E c o le
Freucenne (18 de abril de 1975), Lettres de iE c o le F reudienne, n. 18, 1976.
282 Gozo

fálica, com a adm issão da falta. É a prom essa de um paraíso où tout


n ’est q u ’ordre, beauté, calme, luxe et volupté,12 no qual o O utro é
substituído por um objeto sem desejos nem caprichos, um objeto
que deixa com o único problem a procurá-lo com o m ercadoria e que
não trai.
O alcoolista, o droga-a-dicto, im pugna a dúvida sim bólica,
d ú v id a etern a e ex tern a que não co n traiu e que não q u er pagar.
Porque, para ele, é im pagável. A língua m exicana diz que contrair
um a dúvida é “endrogarse” . A própria dúvida é cham ada “droga” .
D eve-se insistir nessa relação entre droga e dúvida (sim bólica) com
o Pai, com o O utro, com o credor onipotente que exige renunciar
ao gozo e entrar no com ércio.
Frente à m arca imposta sobre ele por um Ideal, I (A) que aspira
o que procede do sujeito (vector S — I [A]) no gráfico do desejo),
ele entrega sua vontade sob a form a de um corpo privado de reações
vitais, pura m áquina m etabólica sem desejo, negação fantástica e
fantasm ática da castração por meio da negação do falo.
A f e n o m e n o lo g ia m o s tra a d if e r e n ç a a p a re n te e n tre a
im potência que afeta os alcoólicos e os drogaditos do sexo masculino
e a p ro m isc u id a d e sex u al com m u ltip lic a ç ã o das b u sc as e dos
contatos sexuais nas m ulheres de igual condição. A contradição não
é estru tu ra l. A função fálica c u m p rid a pelos hom ens através da
investidura fálica de um a m ulher que alcança assim valor de gozo
(e de sintom a) é algo que o alcoolista, p aradigm a do grupo, não
realiza. Ele se coloca fora, aquém do desejo. A alcoolista, por sua
vez, nega-se a receber essa significação fálica; seu corpo já não é
um objeto de investiduras narcísicas, é algo que se dá, objeto de
ínfimo valor que qualquer um pode pegar ou largar. A promiscuidade
de u m a tem o m esm o sen tid o que a im p o rtân cia do o u tro . Em
ambos a castração passou a ser real porque não funciona com o via
para alcançar o gozo “na escala invertida da Lei do desejo”. O gozo
não foi recusado, a castração não foi sim bolizada, o gozo se fez
inalcançável, a lei do desejo, a que ordena desejar, não opera,
H á o O utro. A i, o O utro! E sse O utro que d em anda que se
deseje seu desejo, que o sujeito se inscreva nele sob as insígnias do

22. Ch. B audelaire. L e s fle u r s du mal.


@ -dicção do gozo 283

tra b a lh o , do a m o r, d a p a te r n id a d e ou da m a te rn id a d e , da
descendência e da condescendência, da decência e da docência, da
produção de objetos com o significantes e de significantes com o
objetos. Eis o Outro que, ainda que barrado e ainda que não exista,
impõe sua Lei e faz o sujeito responsável por sua posição de sujeito.
O O utro que pede que se dê conta da passagem pelo m undo, que
impõe que o sujeito explique e responda pela vida que lhe foi dada
no sim b ó lico q u an d o lhe foi atrib u íd o um nom e p ró p rio que o
representa ante o conjunto dos significantes.
N em sem pre o Outro pede; às vezes é m ais letal quando não
o faz. A adicção não é tão-som ente um a renúnica a pronunciar as
palavras que representariam o sujeito ante o Outro exigente. A vida
no m u n d o c a p ita lis ta ta rd io m o s tra o u tra fo rm a de d is p o r a
capitulação do falante, a derrota da palavra. Isso ocorre quando o
Outro não diz nem pede nem espera, quando o outro cala. Proponho
que em tal caso falemos de A-dicção. “Faça o que quiser. A mim não
im p o rta . N em te falo nem te e s c u to .” A fu n ç ã o d o g m á tic a de
transm itir verticalm ente um a m ensagem que descende das alturas da
te rra , e s s a fu n ç ã o c u m p rid a p o r D e u s, o Im p e ra d o r, o R ei, o
Estado, o Partido, o Pai em todas as suas form as históricas, tem sido
abandonada por todos os seus figurões. A Lei é objeto de desdém ;
não e stá p re se n te no h o rizo n te. A p a re n te m e n te a lib erd ad e foi
entronizada. Para muitos o inconveniente da atualidade pós-m oderna
é que a palavra que se podia dizer carece de efeitos. São contadas
ao sujeito, mas ninguém as leva em consideração. São núm eros em
e s ta tís tic a s e su a p re se n ç a se re d u z a d iz e r “ sim ” e “n ã o ” às
perguntas do pesquisador.
A p a la v ra que se diz co m -p ro m ete, é u m a p ro m essa, um a
in v o c a ç ã o ao e n te n d im e n to e ao d e s e jo do O u tro ; em ú ltim a
instância, a um a falta que teria de habitar nele para que a existência
de alguém tenha sentido. Poderíam os jo g ar com os dois sentidos do
vocábulo “oração” . Sai da boca (oris), mas não é simples exalação
de ar; é dem anda de uma resposta, é expectativa de um sentido que
se dará à o ração no sentido g ram atical e no religioso. O sentido
d ep e n d e da re sp o sta ; n u n ca h a b ita com a u to n o m ia no su jeito .
P ro c e d e se m p re d a q u e le que e s c u ta , tal co m o é d e m o n stra d o
freq ü en tem en te na ex p eriên cia analítica. O gozo do sujeito está
284 G ozo

refreado por essa expectativa de resposta, pelo desejo, na instância


do diálogo. Bem, se o outro nem espera algo nem deixa saber o que
quer, se o Outro não é desejante, para que falar?
O sujeito é aniquilado pela surdez do Outro e eleje o mutismo.
As drogas que em briagam e oferecem um atalho ao gozo sem passar
pelo desejo, que chegam ao cérebro e atuam sem a m ediação do
diafragm a da palavra, perm item desprender-se dos com prom issos
que unem o corpo com a cultura. D a abolição do sujeito fica, como
resto, o corpo feito objeto, @. N este caso perm itim o-nos falar de
@ dicção.
R ecordem os: “ Q ue se d ig a fica esquecido detrás do que se
disse naquilo que se escuta” .23 Tem os com entado que a enunciação
do s u je ito é o q u e se e s q u e c e n o e n u n c ia d o p e la e s c u ta que
corresponde ao que o O utro ouviu. E se o O utro não escuta, qual
é o sentido de dizer? O anulado em tal caso é o sujeito da enunciação.
O gozo fálico, o do blábláblá, o que poderia abrir cam inho para que,
transitando pelo desejo se chegue ao gozo, está obstruído. Sendo
im p e rm e á v e is as vias q u e lev a ria m ao g ozo, que e stá além da
p alav ra, resta apenas o gozo do aquém , o prim itivo gozo do ser,
an terio r à palavra. S entim os a confluência de nossos três term os:
adicção, @ dicção c Adicção, todas m odalidades nas quais o sujeito
deixa de dizer e se separa do K ulturarbeit, desse trabalho da cultura
reclam ado por Freud, e que pode fazer que onde o Isso estava o Eu
p o ssa advir. A in d ife re n ç a em m atéria de p o lítica, a ren ú n cia à
congregação e a aceitação da segregação são as m anifestações mais
visíveis em nosso m undo desta a-@ -A -dicção. A psicanálise e os
psicanalistas têm que se envolver nesta situação sem som ar-se à já
dita indiferença.
O corpo em todas estas formas da sem -dicção é assento de um
g ozo que d esaloja o sujeito, co lo can d o -o fora do discurso com o
e x p re ssã o do v ín cu lo social. Sob o efeito das drogas o co rpo é
o b je to @ e não , co m o n os su ic id a s, S (A ). N eles o co rp o é a
oferenda que se entrega em troca da dívida, uma libra de carne que
é toda a carne que se livra nas m ãos e na vontade do O utro. Assim,

23. J. L acan (1973). A. É„ p. 449.


@ -dicção do gozo 285

m aterializa-se a suspensão de pagam entos, o “disponham de mim ” .


A rre m e s s a n d o seu c o rp o p a ra o a b ism o é c o m o os su ic id a s
respondem à dem anda insaciável de um credor usurário.
Afastar-se do Outro, de sua dem anda (ou de seu silêncio), da
ordenada conciliação dos desejos, é operação que se pode fazer de
modo barulhento por meio da passagem ao ato suicida, a form a mais
radical de fechar a porta que, sob pretexto de “não querer saber mais
nada” dos co n d icio n am en to s da vida, da co m p leta aspiração ao
apagamento do sujeito na cadeia significante, produz paradoxalmente
u m a in s c r iç ã o in d e lé v e l. P o is o a to s u ic id a a u x ilia , c o m o
afastamento, uma contestação feroz e desapiedada do Outro e de seu
gozo. O suicida mata, é um “hom icida tím ido” conform e o definiu
o suicida C esare Pavese. O sujeito da auto-im olação não disse, mas
coloca seu cadáver com o objeto livre da decom posição orgânica.
Sua tácita proposição (sentence): “Aqui tem m eus restos (corpse)”
é um a determ inação que, longe de brindar ao O utro esse objeto @
que é o corpo com o desfeito, m arca esse O utro, inscrevendo nele
uma cicatriz que é recordação perpétua de sua inconsistência. Assim,
a carne p u tre fa tív e l in screv e-se de m odo in d elével com o S(A ),
justam ente quando não é m ais que (the rest is...) silêncio. Ao apagar
por decisão própria a vida do corpo é ao Outro da Lei que se barra.
D aí a fascinação e o espanto, daí a repulsa, a secular condenação
e culpa, eterna se fosse possível, que recai ou que se pretende fazer
recair sobre o suicida e sobre seu ato.
De qualquer form a, há um vínculo essencial entre o suicídio
e a drogadição. Recordem os o Lacan dos prim eiros tem pos (1938)24
quan d o falav a da “ form ação do in d iv íd u o ” e de “os com plexos
familiares”:
E s s a te n d ê n c ia p s íq u ic a p a ra a m o rte ... r e v e la - s e n o s s u i­
c íd io s e s p e c ia lís s im o s q u e se c a ra c te riz a m c o m o “ n ã o v io le n to s ” ,
ao m esm o te m p o e m q u e n e le s se e v id e n c ia a fo rm a o ra l do c o m ­
p le x o : a g re v e d e fo m e d a a n o re x ia n e rv o s a , o e n v e n e n a m e n to
le n to d e c e r t a s to x ic o m a n ia s p e la b o c a , o r e g im e d e fo m e d a s
n e u r o s e s g á s tr ic a s . A a n á lis e d e s s e s c a s o s m o s tra q u e , e m se u
a b a n d o n o à m o rte , o su je ito p ro c u ra re e n c o n tra r a im a g o d a m ãe.

24. J. L acan ( 1938). A. E ., p. 35.


286 G ozo

Se a relação sexual não existe, se o amor não pode supri-la e


cum prir sua prom essa, se o trabalho valoriza e consagra a escravi­
dão em vez de se libertar dela, o que resta senão o desespero, a sede,
a atração pelo m aelstrom de que dão conta em suas obras um Poe,
um Lowry, um personagem de D rieu la Rochelle {El fu e g o fa tu o )
ou um R im baud que se apaga do mundo depois de ter tratado, e não
em vão, de fixar suas vertigens? O que fica senão se em panturrar
com essa com ida que o Outro pede que se “lhe” com a (bulimia) para
depois vom itá-la e se negar a seguir com endo (anorexia)? As desor­
dens da pulsão oral são tam bém form as clínicas da a-@ -A-dicção.
O que pedem - sem palavras - os a-dictos? Ser deixados em
paz, sem querer nada do que o Outro quer deles; gozar sem desejar,
co n testan d o assim o falo e suas pretensões unificadoras; sair do
jo g o com os dados carregados do dar e receber, dos intercâm bios
de p alav ras, o b jeto s, sig n o s, criatu ras, p ara ch eg ar a viver essa
relação perfeita do alcoolista com sua garrafa, m anifestada por Freud
com o m odelo invejável de um am or que não conhece as falhas, as
traições nem os apelos recíprocos. Viver desconhecendo essa dúvida
sim bólica com que são importunados.
Eu disse que a-@ -A -dicção ilustra um apelo da e-dicção, do
ed ic to p ro m u lg ad o p elo O utro. O ad icto o faz por m eio de um
afastam ento experim ental, instrum ental, operatório, com relação ao
O utro, por meio de um m ovim ento de vai-e-vem do qual o sujeito,
pois há, sim, sujeito, sujeito da a-dicção, queria ser o senhor. Todas
as a-d icçõ es com eçam - com o se co n stata d iariam en te - com a
ideia do “controle” das entradas e saídas do gozo. “Sei bem até onde
posso chegar sem m e p erder” . M as “Eu é O utro” , e o O utro, que
pretende atuar por meio de Eu, que pretende “controlar” o vai-e-vem,
term ina sendo arrastado; o gozo sem dicção se apodera e m uitas
vezes consegue destruir o diafragm a da palavra. No período clínico,
desde a perspectiva da psicanálise, a única que aqui considero, o
s u je ito se a p r e s e n ta c o m o um p e s ta n e ja r, um a p is c a d e la
reiteradam ente dada ao O utro, fo r t e da, que é o que põe em ação
esse O utro do qual nada quer saber e que, no mais das vezes, assume
e se torna depositário de seu desespero.
É assim que o álcool e as demais drogas rom pem o diafragm a
da p alav ra e abrem as com portas dos p araísos artificiais. M as a
situação do psicótico não é artificial não.
@ -dicçao do gozo 287

C hegando neste ponto creio que posso assinalar outra form a


da adicção à qual não me deterei a considerar: refiro-m e à escritura,
não a qualquer uma: a de quem a utiliza com o m odo de separação
(contrária à alienação) em relação ao Outro e suas exigências. Penso
em div ersas figuras do século passado: K afka, Joyce e B eckett,
Plath, W oolf y Pizarnik, C am us, C éline e S ebald, R oth, M usil e
Broch. Penso no m agnífico ensaio de Serge A ndré:25 “A escritura
com eça onde term ina a psicanálise”, no qual se analisam a fundo as
relações entre psicanálise e literatura e a presença do gozo e o desejo
do escrito r na o b ra acabada. M as penso ainda que não apenas a
escritura, mas tam bém a m úsica e as artes plásticas são m ostruários
da c ria tiv id a d e q u e se d e s e n c a d e ia em c e rto s c ria d o s que se
separam do laço social e optam pelas dores do gozo à custa dos
prazeres do reconhecim ento.26 Penso, finalm ente, na m ultidão de
criadores anônim os que fazem um a arte bruta (art brut), obras de
tolos e ingênuos fora dos editoriais e das galerias, não dirigidas a
nenhum outro nem Outro. Deixo apenas indicado este cam inho para
a investigação dos gozos adictos.
Em síntese, resum indo o m ovim ento deste capítulo: definiram-
se três fo rm as p o la re s de ru p tu ra dos laço s en tre o su jeito e o
discurso: a psicose, a drogadicção e o suicídio. Em todos os casos
o parentesco se estabelece pela divisão da função do discurso. Nos
três trata-se de um fato de linguagem , no cam po da linguagem . A
saída é escolhida, no sentido freudiano ( Wahl), pelos dois primeiros;
e fo rçad a no terceiro . A relação com o gozo e com o O utro da
dialética subjetiva é radicalmente diferente para cada uma destas três
posições de a-dicção. E o desafio para o analista é, em cada um a
delas, o de restaurar o m ovim ento do desejo que se deteve. Com
p o u c a s p o s s ib ilid a d e s ; a p e n a s c o n ta co m um in s tru m e n to , a
tra n sfe rê n c ia , cu jo fio e stá d e sfe ito p elo p ró p rio p ro ce sso que
a tra v e ssa o su je ito . H á ra z õ e s, sem d ú v id a , para que estas três
a-dicções não sejam o cam po eletivo da psicanálise. M as se não for
a psicanálise, que outra coisa cabe eticam ente tentar?

25. S. A ndré. Flac. M éxico: Siglo XX I, 1999; en francês, M arselha: Que, 2000.
26. G. Steiner. G ram m ars o f creation. N ew H aven e L ondres: Yale 1 1niversity
P ress, 2001. C ap. 1, p. 17-64.
VIII

Gozo e ética na experiência psicanalítica

1. U m a p rática linguageira

M u ito e m uitas vezes falam o s antes deste últim o cap ítu lo


acerca das relações entre o gozo e a palavra. Tanto que pode parecer
um excesso. D eve-se justificar por isso? Direi prim eiro que não se
deve fazê-lo e logo o farei.
A clínica psicanalítica explora o modo de relação do sujeito com
o gozo que passa - é nossa tese - pela m ediação ativa do diafragm a
da palavra. A clínica não tem outra base senão o que se diz em uma
a n á lise e o q u e se faz n u m a a n á lis e é c ria r c o n d iç õ e s p a ra o
desdobram ento do saber inconsciente, condições para a tradução em
p a la v ra s . P o rta n to , a e x p e r iê n c ia p s ic a n a lític a e stá jo g a d a
integralm ente na relação do sujeito com o gozo e está orientada para
um certo bem que é o gozo com o possível, com o aquilo sem o qual
se ria vão o u n iv e rso , m as tam b ém co m o a q u ilo que d ev e ser
recusado para que possa ser alcançado. N a rota até o gozo há que
fazer, forçosam ente, um a escala no porto do desejo.
Esta é a razão que agora encontram os para a organização estrita
e exclusivam ente linguageira dessa experiência da análise. Ela tende
para que a verdade seja dita depois de aceitar que a verdade não se
pode d iz e r senão p o r m eias p alav ras, que deve ser filtrada pelo
sem blante, pelo discurso. As palavras sem pre faltarão para dizê-la
toda. A penas pela linguagem é que estam os no mundo e, do m undo,
290 G o zo

a linguagem não nos dá mais do que um semblante, algo que parece,


que para-é. E a análise está desenhada em relação com esse gozo do
ser que a linguagem m esm a forclui; não pode mais do que prom eter
dele, do gozo, o decifram ento.
Em seu fu n d am en to , há um a p resu nção que a e x p e riên c ia
m esm a revelará com o falsa: que a verdade poderia ser dita - é a
consigna inicial: Diga tudo... etc. Essa injunção da regra fundamental
n ã o tem o u tro o b je tiv o s e n ã o c o n f r o n ta r o s u je ito com a
impossibilidade de dizer tudo e assim tornar manifesta a inconsciente
estratégia discursiva seguida pelo analisante ante a evidência dessa
im possibilidade. O “diga tudo” inicial é seguido de um ainda que
p a r e ç a d e s a g r a d á v e l, q u e é u m a s e g u n d a in ju n ç ã o , a m ais
superegóica que se possa imaginar, porque seria indiferente formulá-
la deste m odo ou sob a form a que esse modo encobre e que é uma
ordem: Goze\ Em outras palavras, a experiência da análise consiste
em co n fro n tar o sujeito do sin to m a com o im possível do gozo e
oferecer para tal impossibilidade o caminho da colocação em palavras
em condições suaves, ideais, artificiais; as do dispositivo analítico,
as da transferência, propícias ao amor.
U m a palavra, sim , isso é o sintom a (ao m enos no prim eiro
L a c a n ), m as p a la v r a a u s e n te , “ ... fa rra p o de d is c u r s o , na
im p o ssib ilid a d e de p ro fe ri-lo p ela g arg an ta, cad a um de nós é
condenado, para traçar sua linha fatal, a se fazer o alfabeto vivo” .1
U m a palavra, sim, mas se essa palavra pode ser lida no sintom a “é
que (o sintom a) já está, em si mesmo, inscrito em um processo de
e s c r i t u r a ” .2 A c r e s c e n te m o s , e s c r itu r a do g o z o , c a p a z de
decifram ento conform e sabem os desde a carta 52 que revisam os no
capítulo IV. Para tal decifram ento é que teve de inventar, como o fez
F re u d , um d is p o s itiv o p s ic a n a lític o d e s tin a d o a fo r m a r o
inconsciente, o inconsciente lacaniano.
“Para que o gozo possa ser alcançado na escala invertida da Lei
do d esejo” .3 Fazer com que o gozo condescenda ao desejo - já o
sabem os - é a função do amor. N a experiência da transferência é

1. J. L acan (1957). Ecrits. Paris: Seuil, 1996. p 446. Em espanhol, E scritos


1. M éxico: Siglo XXI, 1984. p. 427.
2. J. L acan (1957). É crils, p. 445; E scritos !, p. 426.
3. J. L acan (1960). É crits, p. 825; E scritos 2, p. 805.
G ozo e ética na experiência psicanalítica 291

o am or que está em jog o : am a-se o O utro porque supõe-se-lhe o


saber, o saber que falta, o que deverá resultar da leitura do sintoma.
M as a suposição de saber não está som ente do lado do analisante.
O analista, por sua vez, tam bém supõe - e é um ato de caridade - ,
algo que ainda deverá demonstrar: que há saber no O utro, que existe
o inconsciente. D este encontro entre dois saberes supostos, surge
a faísca que perm ite que se fale “de verdade” , que se constitua o
inconsciente e que se goze com seu decifram ento. Não é fácil.
A atividade analítica está orientada para flexibilizar o diafragma
da palavra, para que por ele passe o gozo. Isto na situação originária
(historicam ente) das neuroses. Reconhecendo esta orientação é que
é p o ssív e l se p e n sa r o fu n c io n a m e n to e sp e c ia l q u e a d q u ire o
diafragm a da palavra em casos de perversão e psicose, quando os
sujeitos p ro visoriam ente inscritos em tais estru turas clínicas são
postos sob a prova da análise e de seu dispositivo.
“Do gozo ao desejo” não quer dizer que o desejo tenha de ser
dito. Pois a natureza últim a do desejo é, com o sabem os, a de um a
barreira p o sta ao gozo; é em relação a esta função fundam ental,
escondida pelo disfarce do fantasm a, que há “incom patibilidade do
desejo com a palavra” .4 Não que o desejo deva ser dito, m as que
seja tom ado à letra, “posto que são as redes da letra que determ inam
e sobredeterm inam seu lugar” (idem ). N ão que seja dito, mas que
seja levado ao ponto de impossibilidade, o do gozo recusado, de onde
ele emana.
Deve passar pela palavra, em itida nas condições legisladas pela
regra fundamental, para chegar à letra, aos codicilos originais do gozo
in scrito s no corpo, às form as em que se in screveu a relação do
sujeito com o gozo; essa história é a das m igrações libidinais ou das
renúncias gozosas, avatares da castração que podem ser recordados
ao p e r m itir q u e n a a n á lis e o p e re a c o m p u ls ã o à r e p e tiç ã o .
R ecordação, repetição e perlaboração. D a pulsão à com pulsão e aos
encontros fracassados com que tropeça o desejo. P ara passar de
uma escritura à outra, a do livro que todos levam os dentro (p. 208).
P ois a letra e stá e sc rita e o d esejo , saldo in artic u lá v e l da
dem anda, deve ser tom ado à letra. Terá de ir além da dem anda, até

4. J L acan ( 1958). É crits, p. 641 ; E scritos 2, p. 621


29 2 G ozo

en co n trar isso do desejo que passa para a palavra ainda que seja
incom partilhável com ele. D eve-se reconhecer nestas afirm ações a
teo ria do d isp o sitiv o an alítico e do que se faz com ele. A regra
fundam ental é equivalente ao im perativo de gozar, de transcender a
função trad icio n alm en te aco rd ad a à palavra. O uso “ n orm al” da
p a la v ra te n d e a “ r a tific a r” , a “c o m -p re e n d e r” , a c o n firm a r na
reciprocidade do sentido consentido, as imagens especulares dos que
se “c o m u n ic a m ” . N a a n á lise p re te n d e -se a tra v e ssa r a b a rre ira
narcísica do cuidado do eu ou do self, esse fantasm a organizador
em cada um da relação com o m undo, esse tampão que protege do
real. O sujeito, em purrado pela consigna de associar “livrem ente”,
lo g o se vê d e s a lo ja d o do te rre n o do p ra z e r e é fo rç a d o a se
confrontar com o traum ático e com o inconciliável para o eu, com
“isso” inom inado que é o núcleo de seu ser.
D esde o princípio (cf. p. 21), reconhecem os que a repressão
e s c o n d e , m as ta m b é m c o n s e r v a um g o z o s e q ü e s tra d o , n ão
disponível para o sujeito, vivido dolorosam ente com o sintom a. O
gozo do O utro, do corpo desabitado pela palavra. A neurose é esta
defesa do gozo, defesa de no duplo sentido: uma proteção contra o
a c e s s o a um g o z o d e sm e d id o e um g o zo que está p ro te g id o ,
coagulado, isento do com ércio da palavra. O sujeito da neurose se
defende subtraindo-se ao que percebe com o um perigo na relação
com o O utro do vínculo social: o d esejo do O utro. Tal desejo é
n eg ad o p elas o p e ra ç õ e s de a u to d o m ín io que são e sse n c ia is na
estratégia do obsessivo e que se sustentam na insatisfação pela intriga
histérica. Com esta defesa neurótica ante o desejo como o traço que
defin e a estru tu ra clín ica da n eurose, co m preende-se bem que o
desejo, assim, não condescenda ao gozo e que a relação com o Outro
seja o cam po m inado e alam b rad o das defesas. C o m preende-se
tam bém que o sujeito retroceda espantado ante o suposto gozo de
um O u tro que p e d iria sua c a stra ç ão . D efen d en d o -se do O utro,
justificando-se ante ele, experim entando-se sempre com o culpável,
o neurótico renuncia a fazer valer seu desejo, o dele, confunde-o
com a d em an d a do O u tro , su b m e te -se ou se in su b o rd in a , mas
s e m p re em d e p e n d ê n c ia d e s s a d e m a n d a , re tr o c e d e a n te a
p o ssib ilid a d e de in sc re v e r seu nom e p ró prio, esse nom e que o
im portuna e o estorva e o substitui por um a dem anda dirigida ao
O utro para que o nomeie: “Com o você quiser; isso e assim serei”.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 293

A operação analítica consiste em reanimar este m ovim ento das


d efe sa s an te o O u tro , e sta d e m a n d a de a lie n a ç ã o g u ia d a pelo
fantasm a que protege e faz de barreira ao gozo. U m a vez que seja
rean im ad o , o p eran d o na tran sferên cia, é-lhe p osto um lim ite, é
levado ao seu inevitável atoleiro, a seu ponto de im possibilidade.
C heg ad o a este p onto o su je ito se vê fo rçad o a ir além de seu
fantasma, das satisfações gozosas a que poderia prestar-se a situação
analítica; é levado a se identificar com a causa de seu desejo, com
sua falta. E sta ação lev ad a a cabo Lanto pelo corte o p o rtu n o do
encadeam ento discursivo quanto p ela surpreendente intervenção
interpretativa im plica um forçam ento do narcisism o que se conforta
por hábito com a aquiescência com placente do Outro e que aponta
p ara a sim p atia, p ara a co m p re e n sã o , p ara a re c ip ro c id ad e dos
sentim entos e dos reconhecim entos.
Sim ; é raro, rarefeito, o am biente da análise. P ara que esta
m arch a co n trária aos bons costu m es do diálogo seja p ossível, é
necessário que o discurso do analisante e seu m otor fantasm ático
se encontrem , se choquem , com um desejo que esteja, por sua vez,
além das m iragens do narcisism o, da solidariedade, da confusão dos
eus, da benevolência e dos ideais com partilhados. E necessário que
este discurso e este motor não se encontrem com outro sujeito, mas
com um vazio que os confronte com seu próprio vazio em vez de
lhes oferecer tam pões ilusórios para sua falta a ser.

2. P u lsio n a r e seus d estinos

“Tom ar o desejo à letra” é reconhecer que a letra do desejo é


esta in sc riç ã o do gozo no co rp o e q u e a p a la v ra é, a p a rtir do
inconsciente, um a tentativa de ler esta letra, de traduzi-la em termos
de um discurso que é sempre do semblante. A subjetividade germina,
ex p an d e-se n esta fenda fecu n d a que se abre entre a escritu ra do
go zo e o d iz e r que a c in g e até to p a r com o im p o ssív e l de sua
(e)m issão, com essa zona inacessível e inanim ada que se abre além
do fantasm a e que recebeu de Freud o nom e de “m orte” e de Lacan
o conceito que designa aí esse radical a que a pulsão conduz, o real
im possível.
294 G o zo

O m ovim ento na experiência in:iada p o r;reud está orientado


por esta pretensão de tocar o real con o signiícante, ainda que se
saiba que as palavras não são feitas p ra preencier o vazio da Coisa
(p e lo m en o s na a n á lise q u e re p u d a o m istc ism o ), m as p ara
contornar o vazio, delim itar o oco, r.conhecero im preenchível. É
o O ceano em Solaris e a Zona em Salker, esses filmes definitivos
de Andréi Tarkovsky que ilustram m ravilhosanente a relação dos
exploradores com o inominável da Cosa centrab êxtima e os modos
nos quais o núcleo inacessível de noso ser pod: ser contornado em
um a ventura cujo saldo é o desampaD.
Frente ao cancelado e inabordáel do oriício central do toro,
o que fazer, o que fazer senão dar vetas em tono de sua alma, do
espaço vazio periférico e interior que ircunda oorifício central pelo
q u a l c o rre o ar sem n u n c a n ele p n e tr a r? p. 85). Em o u tra s
palavras, não resta senão “pulsionar’\criando asim um novo verbo
que falta à língua portuguesa para traazir o treien da língua alemã,
sem faltar com sua íntima conexão con o Triebie Freud. Pulsionar
em relação a uma propulsão, com um; força queestimula, indomada
e indom ável, sem pre para frente, satando po cim a das alegrias
(.Erde Freuden) terrenas, dos prazere, caracterstica do espírito de
Fausto no discurso de M efistófeles qie serviu Freud para definir
a p u lsão .3 O que Freud concebeu é otalmente congruente com o
que vimos desenvolvendo. A pulsão é áustica poque o caminho para
a Coisa, “o cam inho para trás, para satisfaça plena, em geral é
ob stru íd o (...) e então não resta mas do q u e iv a n ç a r pela outra
d ireção do d esen v o lv im en to , todava diligene, na verdade sem
perspectivas de enclausurar a marchanem alcaiçar a m eta” (idem).
Do atrás e da frente freudianos é qie passaros à com plexidade
enriquecedora dos dois espaços rod ad o s pelo‘oro, o interno e o
extern o , rodeados pela su p erfície a a e esféri:a do toro. É esse
pulsionar interm inável o que encamiiha a vida em outra clausura
da m archa que a pontuação final da rorte.
Um pulsionar que salta sobre a; valas do jrazer, que de tanto
negar se torna afirm ação e que é rentente a trn sacio n ar com os

5. S. Freud (1921). O bras com pletas. Trac J. L. Etchverry. B uenos Aires:


A m orrortu. 1979. v. X V III, p. 42.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 295

perigos que o extraviam e que se escrevem com o outros tantos


prefixos: com -, im-, re-, ex-... pulsões.
S u rg e a p e rg u n ta : de q u e n a tu re z a p o d e ria se r a fo rç a
pulsionante se não for a de um organism o biológico m ovido pelas
necessidades e por tendências hom eostáticas nem a de um sujeito
psicológico incapaz de distinguir entre o desejo e o capricho? Nem
biológica, nem cultural, nem psicológica; ética é a natureza deste
m ovim ento no cam po do sim bólico por meio do qual um sujeito se
in screv e, d eixa as m arcas m em o ráv eis de seu ato, se h isto riza,
m ediante esta força negativa e criad o ra que é a pulsão de m orte
freudiana, alheia ao m ovim ento energético de abolição das tensões
que se cham ou “p rincípio de N irv an a” nessa vacilação, instante
bárbaro e low da reflexão de Freud.
Pulsionar, ro d ear a Z ona, a C oisa, reco n hecer que ante ela
naufragam as ilusões e chegar ao ponto proposto por Lacan no auge
do sem inário sobre a ética, em que o sujeito afronta a realidade da
co n d ição hum ana, esse fundo de an g ú stia em que se p erfila um
desam paro insondável e irrem issível. É então quando, confrontado
com sua p rópria m orte, é sacudido pela certeza de que não pode
nem tem que esperar o socorro de ninguém . Não há proteção nem
escudo. Assim define Lacan a experiência, didática, do fim da análise.
Colocar-se além da angústia, pois a angústia supõe um perigo, apesar
de in o m e á v e l, esc o n d id o atrás d ela, en q u a n to o d e se sp e ro e o
desam paro aparecem quando a angústia foi atravessada, quando já
não há perigo, nada que tem er e nenhum Outro ao qual dem andar
(tanto no sentido de lhe pedir com o no de abrir-lhe o juízo e imputar-
lhe a responsabilidade). N ada alentador para se propor em virtude
de que “ não há nenhum a razão para que nos façam os avalistas do
sonho burguês” .6
C ertam en te esta ética v in c u la d a à p ersev eran ça no ser, ao
desejo com o cam inho para o gozo, à confrontação sustentada com
a falta, vai contra as idéias difundidas sobre o bem -estar e contra
as propostas tranquilizadoras. P or isso é que a análise não é uma
te ra p ia , m as a c o n te sta ç ã o tá c ita de to d as elas e que não pode

6. J. L acan (1959). Le sem inaire. L ivre VII. L 'é tiq u e dans la p sychanalyse.
P aris: Seuil, 1986. p. 350-351.
296 G ozo

e s p e r a r m a is q u e fra c a s s o s e p o s te r g a ç õ e s , c a so p re te n d a
com parar-se aos ansiolíticos de hoje. Pois sua m eta não aponta para
o prin cíp io de prazer, para o “com pleto b em -estar” da definição
“ m u n d ia l” da sa ú d e , m as p a ra o a lé m , a e sse c o rp o q u e se
experim en ta ainda no sofrim ento e p o r m eio de um a tensão sem
pausa, ao gozo que, se sofre, é pelos im pedim entos e os limites que
o prazer lhe opõe.
Pulsionar, em purrar, reanim ar a busca além do fantasm a em
que os objetos @, com o elem entos im aginários do fantasm a, vêm
e n g a n a r o s u je ito , re c o b rin d o o c o n d e n a d o lu g a r d a C o isa ,
s u ste n ta n d o aí a isca d as re p re s e n ta ç õ e s e dos id e a is .7 N esse
fantasm a, form ação im aginária, ram o da árvore narcísica do eu
quando não é o próprio eu sob a form a de um self, “si m esm o”, o
que é fantasm a, nesse fantasm a, nesse ramo, se sustenta o sintoma.
A í o gozo perm anece estancado, desconhecido, renunciado, des-dito
(versagt), fora da palavra, carregado de um sentido que não se pode
re c o n h e c er. E d esd e e ste re d u to da ig n o râ n c ia p ro d u z -se e se
fundam enta a dem anda dirigida ao saber, ao saber suposto no Outro,
que perm itiria subjetivar o gozo.
A transferência é o prim eiro, é a razão que fundam enta a de­
m anda feita a alguém, a qualquer um (Sq, signifiant quelconque, no
m atem a da transferência que Lacan propôs).8 Ela perm itirá ao su­
jeito se produzir em um discurso significante (S, - S2) do qual ele
m esm o é o significado. O encontro com qualquer um que, sendo
analista, se negará a entrar no cam po das significações, a tam ponar
a dem anda com respostas, a se oferecer com o objeto de identificação
ou com o assento de um saber que estivesse à espera do m om ento
em que se poderia aplicar colm atando o lugar da ignorância e do
erro. Se o sintom a fazia o curto-circuito que afastava o sujeito de
seu desejo, esse desejo do grande e inacabável circuito, o analista
virá no lugar do sintom a, reanim ará o m ovim ento estancado, fará
cinem a a partir da foto fixa e tom ará o lugar indicado topologica-
m ente com o a alm a do toro, ágalm a do desejo. E em torno dele que
girarão as dem andas... e encontrarão seu topo. (p. 85).

7. Idem . p. 1 19.
8. J. L acan (1967). A utres écrits (A. E.). Paris: Seuil, 2001. p. 248.
Gozo e ética na experiênciçsicanalítica 297

Esse é o sentido a e convém dar - creio - ao termo freudiano


“neurose de tran sferêm a” . O psicanalista, fazendo sem blante, no
lugar do sem blante cono agente de seu discurso, ocupará o lugar
do objeto causa do desijo e plu s (já sabemos: minus, falta) de gozo.
O a n a lis ta c o lo c a rá en a n d a m e n to e su ste n ta rá o m o v im en to
pulsional em torno d o jb jeto @, sem pre deixando vazio o espaço
central da Coisa.
A topologia do tco (p. 85) vem novam ente nos ajudar, agora
para ilustrar o lugar d) @ -analista. N a superfície tórica pode-se
definir qual é a colocaão correta e quais as incorretas do analista
em relação à dem andaque recebe. E possível dizer sem rubor que
o analista engana e ilud o analisante ( / ’escroquerie analytique, dizia
L acan),9 pois faz sem binte, para-é, apresenta-se com o sendo o que
não é, o culta o que sin é; deste m odo, o ferecendo-se com o isca
para o desejo, perm ite o sujeito em ergir a partir da inutilidade do
desejar, além da vanidae de um a com pletude qualquer. Ao colocar-
se nessa posição periféica com relação ao centro inarticulado do
desejo, ao tom ar o lu g r de @ e não o do saber obturador ou da
C o isa inacessível, ofence-se com o pasto para o fantasm a e pode
chegar a substituir o sinoma, dissolvê-lo, apaziguar o conflito e até
converter-se em um obtáculo no processo do tratam ento. São os
m om entos, talvez eterms, de estancam ento da análise em torno de
um a certa “tram a de saisfações” 1" que procede da própria análise.
A análise tom a-se resistncia à análise pelo gozo (fálico) que nela se
alcança e ao qual não siquer renunciar ou, por outro lado, fracassa
pela possibilidade de s conform ar com o bom funcionam ento do
su je ito no m undo que p o d e le v a r a um té rm in o p re m a tu ro da
experiência.
Caríbdis e C ila dcgozo dentro e do gozo fora da análise que
b lo q u e ia m o m ovim eito q u e c o n siste em su ste n ta r a p e rg u n ta
dissim ulada ao princípa sob essa aparência de resposta que era o
sin to m a. Pois, se um aan álise p ode com eçar, isto é, caso tenha
acabado a fase das entevistas prelim inares, é porque o sintom a,
resposta inconsciente, tonou-se pergunta ou enigm a e essa incógnita

9. J. L acan ( 1977). Sem inrio XXIV, aula de 26 de fevereiro.


10. J. L acan (1958). É critsp . 602; E scrito s 2, p. 582.
298 G ozo

encarnou em qualquer fatosignificante de todos os dizeres do sujeito.


P roduzido este d eslocarrjnto do sig n ifican te do sintom a para o
significante da translerênáa, desenha-se o risco de que a análise e
o próprio analista sejam Dmados já não com o oportunidade para
m a n te r a b e rta a q u estão m as com o p re te x to p a ra seu d es-v io
(“trans-ferência”) e feche
E por isso que o anaista não se dirige para seu paciente nem
com o $ nem com o S, nen com o S „ mas com o @ —* S, com o um
objeto que sustenta sem pr a abertura, a não coalescência entre dois
discursos com plem entares O analista representa a exigência perm a­
nente de um dizer e de un trabalhar incessante em torno da falha
subjetiva. A história, essacoisa que Lacan tanto elogiou no com e­
ço de seu ensino e tanto dsvalorizou ao final porque não pôde dei­
xar de fazer crer que tem entido, porque está sem pre disposta a se
carregar de sentido, a hisôria - dizíam os - deve voltar a se escre­
ver, claro que atravessano as telas e os disfarces do sentido. Se a
neurose era o bloqueio a-iistórico, o cegam ento-secam ento do de­
sejo (no sentido de cegar im poço, de secar um depósito de água),
a análise deverá ser reabetura das fontes e das vias interrom pidas,
a ocasião oferecida à moblização do gozo sintomático, à simboliza-
ção do corpo que se torneu o reduto de um G ozo Outro, gozo que
já localizam os com o esqisma deÁ terceira (p. 110) na intersecção
do imaginário e do real foa da mediação simbólica.
P enso que isto deveser dito correndo o risco de criar a im ­
pressão da fixação de novis metas ideais para a experiência da aná­
lise, algo que o analista, :om razão, recusa fazer (a ser),* porque
indicar metas causa um a om bra de im aginário, de neofantasmati-
zação, de prescrição do “o m ” cam inho, inclusive a prom essa que
se adianta à dem anda, dealienação em um Bem que, por não pro­
vir do deslinde feito pelo póprio analisante, apareceria com o o fan­
tasma do analista. Além desa interpretação possível, no entanto, deve
se dar conta de por que a aálise existe, por que se inicia e por que
prossegue para que se posa definir também quando e por que aca­
ba. Em outras palavras, dive ser evitado o com entário do sentiflo

E m espanhol são hom ófons: hacer e a ser. (N. da T.)


G ozo e ética na experiência psicanalítica 299

(evitem com preender!) atravessado na intersecção do simbólico e do


im aginário, fora do real, cam po das psicoterapias.

3. O d ev er do d esejo

Wo Es war, so ll Ich w erden, o nde o Isso, o gozo do ser, a


sin cro n ia dos sig n ifican tes, a desordem de todas as bolinhas da
linguagem na im ensa bola da loteria, o conjunto das escrituras do
gozo que jazem indecifradas com o os hieróglifos no deserto, onde
o Isso e s ta v a , d e v e rá h a v e r u m a o rd e n a ç ã o , um a a rtic u la ç ã o
d iscu rsiv a capaz de p ro v o car efeito s in só lito s e reg o zijan tes de
significação, um encadeam ento d iacrônico dos significantes que
revelará o inconsciente com o um saber ordenado pelo nom e-do-Pai
no lu g a r de S,, q u e fa ç a do re sto d o s s ig n ific a n te s (o sa b e r
inconsciente) um S2, a partir do qual um novo S, produto do discurso
do analista poderá representar o sujeito. E ssa é também, e em outra
dim ensão, a m eta da análise, seu d e v e r se r indicado pelo sollen
fre u d ia n o q u e é a a n te c ip a ç ã o do g o z o p e lo b e m -d iz e r e p ela
invenção do saber.
Para p ro d u zir este efeito, é n ecessária a presença física do
analista. Q ue tenha tetas, essas m am elles de Thirésias m encionadas
por Lacan no sem inário de 1964." Q ue seu corpo se preste para a
investidura am orosa tom ando o lugar de causa do desejo; que ponha
suas veias e seu sangue para que opere o am or de transferência c
para que o sujeito possa chegar a reconhecer seu desejo com o falta
a ser. Terá que em prestar não apenas seu ser e suas palavras, mas
ta m b é m su a im a g e m , e n tr e g a r - s e c o m o i (@ ), c o m o o u tro
especular, pois “a imagem especular é o canal que tom a a transfusão
da libido do corpo para o objeto” .12 E a razão pela qual não há análise
sem encontro dos corpos; a transferência requer suporte imaginário,
um suporte que se sublinhe m ais do que se apague quando se adota

11. J. L acan (1964). Le sem inaire. Livre XI. L es qiiatre concepts fo n d a m e n ta u x


de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. p. 238.
12. J. L acan (1960). É crits, p. 822; E scritos 2, p. 802.
300 G ozo

um d isp o sitiv o que subtrai o co rp o do an alista com o objeto no


cam p o visual do an alisan te. N ão se p ode esq uecer de que, se o
sujeito S fala na análise, ele dirige suas palavras, antes de qualquer
o u tra c o isa , à im ag em do o u tro e q u e e ste é o p o nto in ic ia l e
ineludível para chegar às m aiúsculas I (A) que se colocam no outro
ex trem o do gráfico do desejo. E sta d isposição é o b servada com
clareza quando se faz abstração de todos os demais momentos:

No lugar de I(A ) tem os, m ais do que um ponto de chegada,


um pon to de sucção, um a m áquina asp irad o ra das palavras que
arranca quando o sujeito aceita a regra fundam ental da análise e a
coloca no lugar do supereu: gozar pela articulação discursiva dizendo
tudo, enfrentando a dor, o pudor, o asco e a vergonha que resistem
à confissão do fantasm a, tabernáculo do gozo, ligado ao incesto, à
perversão e às satisfações libidinais auto-eróticas. E evidente que o
p razer constitui a principal das resistências que se encontram na
análise, tanto por parte do analisante quanto do analista, e que se
fo sse p o r o b ed ecer ao p rin cíp io de p ra z e r não h averia quem se
analisasse. E óbvio que, se a análise existe, é pelo gozo que está
além das com placências narcisistas, sempre à mão.
N estes parágrafos, definiu-se a tripla função do analista: a)
co m o sem b lan te de @, resto caíd o do real que é im possível de
sim bolizar; b) com o imagem de um sem elhante especular; e c) como
suporte da regra fundam ental que obriga o sujeito a dizer(se), como
orelha-sopapa que aspira os dizeres do analisante em função da lei
da análise que se inscreve com o I (A). Real, imaginário, simbólico.
Esse é o abc da prática da psicanálise.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 301

Se o que há é um dispositivo para uma invenção constante e


não um a “técnica psicanalítica” é porque esta tripla função legisla
não um cód ig o de p ro ced im en to s, m as um a p o sição do analista
fren te ao en tram ad o lin g u a g e iro criad o p o r F reu d , no qual ele
m esm o foi pego. É a “estratégia da aranha” que com prim e em uma
face a tática, a estratégia e a política da análise em função da ética.
D isons que j ’y lie la technique à la fin prem ière. “D igam os que eu
vinculo a técnica com seu fim prim ordial” .13
Aprecia-se, por exemplo, nessa “neutralidade benevolente” que
sem pre parece um ideal im possível a quem ouve falar dela sem ha­
ver passado pela experiência de um a análise verdadeira e, particu­
larm ente, quando essa prescrição de neutralidade se reforça com o
dever lacaniano de “preservar para o outro a dim ensão im aginária do
não-domínio, da necessária im perfeição” 14 que tom a aconselhável em
seu m om ento “a vacilação calculada da neutralidade” , essa que pode
valer (e não apenas) para um a histérica mais do que todas as inter­
pretações. Em todas estas form ulações que podem parecer inclusi­
ve c o n tra d itó ria s, de que se tra ta ? D e a sse g u ra r a p re se n ç a do
analista, sim, e tam bém de fazer dela um a força ativa e atuante em
função de seu desejo para preservar o horizonte do gozo em cada
m om ento do encadeam ento discursivo e, ao mesmo tem po, para pôr
freio a esse gozo, para pontuá-lo, para canalizá-lo para um dizer iné­
dito, para dinam izá-lo desde seu enclausuram ento no sintom a, para
fazê-lo atravessar a barreira da angústia que o separa do desejo.
O gozo é assim convocado e derivado, provocado e expulso
e, ao fim , recuperado, m anifestado e desnaturalizado. A m anobra do
analista sem pre o leva em conta; o tem po e o dinheiro das sessões
se regulam em função destes indicadores ou, em outras palavras, por
esses im perativos de aspecto contraditório.
E aqui que resp lan d ece a d im en são ética da an álise que a
distancia de todo código universal de conselhos e obrigações morais
ou deontológicas e a habilita para a busca sem pre e em todos desse
núcleo particular que é para cada falante a relação articulada do gozo
e do desejo. Em cada caso deverá fazer valer a ignorância renovada

13. J. L acan (1964). É crits, p. 854; E scritos 2, p. 833.


14. J. L acan (1960). É crits, p. 824; E scritos 2, p. 804.
30 2 G ozo

do a n a lis ta s e g u in d o o c o n s e lh o fre u d ia n o de a b o rd á -lo s ,


renunciando ao saber previam ente adquirido; em cada caso haverá
de inventar o inconsciente e a teoria sexual a partir da originalidade
da nova experiência.
A ética a n a lític a é co m an d ad a não pelos m andam entos do
O utro, mas pelo desejo inconsciente, ela faz do desejo um dever,
ordena o d ev er de cad a um p ara com seu desejo in co n scien te e
desconfia, quando não contradiz, as suspeitas regras morais. Essas
regras m orais que, por sua vez, dependem do desejo, pois se fazem
de barreiras interpostas em seu cam inho a serviço de um suposto
bem com um e com unitário, com o unitário, com o se todos fossem
Um, o Um unificador da psicologia das m assas, o ideal uniformante
do senhor com seus códigos e suas censuras legais.
Em psicanálise não se trata das leis, mas da Lei e essa Lei é a
que, ao proibir o gozo (da Coisa) no real, o desloca para o terreno
do semblante, ordena que seja alcançado por vias discursivas, toman­
do o gozo, feito sem blante, o lugar de agente de um novo discur­
so, o discurso analítico, inverso, inversão, avesso, do discurso do
senhor. E a Lei que ordena desejar ao m esm o tempo que torna inal-
cansável o objeto (absoluto) do desejo, a Coisa. O briga, então, a
desejar em vão e é assim, rodeando o objeto @ com o causa de seu
desejo, relacionando-se com ele som ente sob as aparências do sem ­
blante do gozo impossível, elevando esse semblante ao lugar da Coi­
sa, é assim - dizíam os - que os hom ens e as m ulheres se inscrevem
com o seres históricos, se fazem um nom e que é o significado do
nom e que receberam ao nascer com o significante, deixam a cons­
tância de seu cam inho para o gozo que passa por seu desejo.
Essa form ulação perm itiria talvez sonhar com um a superação
da Lei por meio da articulação significante. Implicaria uma dimensão
de prom essa. N ada disto. N ão há com portam ento possível com o
O utro ou por m eio do Outro. É hora de voltar às form ulações sobre
os três gozos que nos am pararam ante a possibilidade de um erro
tão funesto. A palavra e a ordem fálica, induzidas pelo nome-do-Pai,
vêm colocar um fim ao gozo do ser, arrancam da pátria originária
da C oisa e lançam ao exílio linguageiro. M as o O utro m anca. Há
nele (nEle) um significante que falta e esse é o significante da mulher
que p o ssib ilita ria a relação sexual. A ordem fálica não assegura
G ozo e ética na experiência psicanalítica 303

nenhum a com pletude e tam pouco pode fazê-lo em nome próprio, O


que o nom e-do-Pai faz, representante S, do Falo, é abrir uma brecha
de im p o s s ib ilid a d e p a ra o r e g is tro d is c u rs iv o e e ssa b re c h a
corresponde ao significante dA m ulher que falta no Outro e que está
além do Falo. O gozo fálico, sem iótico, tro p eça em seu próprio
limite, com o o inarticulável que com eça além dele que é o gozo do
O utro, o gozo fem inino. A palavra, subm etida à Lei que proíbe o
gozo, produz esse outro gozo com o um mais indizível. Aquilo que
na condição neurótica da existência, a de todos aqueles em que se
produz o corte da castração, aparece com o im potência, com o não
poder nom ear o objeto do desejo, resulta, com o conseqüência da
travessia da experiência analítica, estar não no cam po do poderio
im aginário sobre um objeto subm etido ao dom ínio e ao controle,
mas num a área de im possibilidade que se abre além do significante.
A sexualidade está ligada ao significante fálico, o significante
sem par. Além do que ele cobre e encobre, abre-se o suposto dark
continent da fem inilidade e de seu gozo enigm ático, louco, inefável,
verdadeiro O utro do Outro que se coloca fora da linguagem e que,
assim, justifica reiterar agora que não há m etalinguagem , que não há
possibilidade de uma análise “com pleta”, se é que alguém se agarra
de maneira dogm ática à ordem linguageira. E, nem mais nem menos,
essa rocha viva na qual se m achucou o fundador da psicanálise.
R o ch a v iv a há se o a n a lista se c o n strin g e à função da p alav ra
historizadora com o devendo dizer tudo sobre o gozo, com o devendo
su b su m ir tu d o o que é do su jeito ; isto é, se o an a lista se deixa
aprisionar pelo imperialismo da palavra.
E verdade que a Lei ordena desejar. M as o desejo, no registro
neurótico da experiência, apresenta-se com o transgressão, o desejo
do delito é o delito do desejo no im passe neurótico e “a consciência
nos tom a a todos culpados” . A vida e o gozo se erguem e prosperam
no solo fecundo da culpa, assum indo o risco de ir além do pai...
para o qual há que se servir dele.
Cabe dizer, invertendo a fórm ula freudiana, que o complexo de
Edipo é um herdeiro do supereu, desse supereu prim itivo e feroz
que profere a ordem inaceitável e im possível de gozar. O com plexo
é um alívio, um a atenuação, um deslocam ento para o im aginário da
relação triangular; cum pre com a função de colocar cenário e limites
304 G o zo

à culpa, ao m esm o tem po em que possibilita uma via para o gozo,


um gozo lim itado, floreado, depois de haver tom ado o cam inho
sinuoso da castração: é a via fálica com todas as lim itações que já
apontam os, tanto para os hom ens quanto para as m ulheres. N este
sen tid o , o E dipo é o fu n d am en to da e x istên cia... e o co m plexo
nuclear... das neuroses, da subm issão absoluta ao Falo e ao nome-
do-Pai. C om o se, devendo estar agradecidos a ele por nos haver
tirado do gozo do ser e da psicose concom itante, tivéssemos de ficar
para sem pre subm etidos à ordem de im potência que eles instauram ,
à culpa neurótica.
D enunciar deste m odo o ponto em que se deteve Freud é re­
encontrar a proposta de N ietzsche sobre um a ética em que se aceite
orgulhosam ente que, se m atam os D eus, o Pai, não é para ficarm os
subm etidos à sua palavra, pois Ele está tão castrado quanto qualquer
um; é para explorar a zona que se estende além de seus dom ínios,
além do bem e do mal. E necessário, falantes, um esforço a mais;
é nesse esforço extra que se jo g a o destino ético da psicanálise.

4. O ato e a culp a

Que fique claro: primeiro está a voz tonante do Outro: “G oza!”


ou, q u an d o se ab an d o n a a seg u n d a pesso a, “G o z e!” . F re n te ao
impossível de seu m andam ento enlouquecedor, o sujeito advém à ex-
sistê n c ia p o r m eio da p ala v ra , da co n c e ssão feita ao O u tro da
linguagem , que é a localização fálica do gozo, a desertificação do
gozo do corpo e a subm issão do gozo à Lei do simbólico. Coloca-
se em ação um artefato da identificação m asculina com o pai real
falóforo ou o da dem anda fem inina feita ao pai (père-version). Essa
passagem pela castração que não deve ser confundida com o ponto
de chegada da subjetividade; não é questão de subm eter-se ao pai,
de aceitar suas condições para se fazer querer por ele, mas de aceder
a outras vicissitudes, as do desejo que é parricida e transgressor, que
inscreve outros significantes que aqueles que puderam com prazer
o pai. É o destino do pulsionar, um dever Outro, outro dever.
Em um texto m uito sugestivo, G erard Pom m ier escreve: “O
sentim ento de uma falta não se reduz à culpa edípica, mas é inerente
G ozo e ética na experiência psicanalítica 305

à existência- pois um sujeito deve distinguir-se dos determ inism os


(superegóicos) que o esperavam antes inclusive de seu nascim en­
to”. 15 Ele não pode existir com o desejante, senão desm arcando-se
do desejo do O utro e, portanto, caindo em falta.
Com tudo o que vim os, podem os entender o dever, no sentido
psicanalítico, com o duplo: edipizar-se para transcender o gozo louco
do ser fora da linguagem e, depois, tran sed ip izar-se, ir além do
Edipo, para não ficar preso nas redes do fantasm a, da im potência
e do sintoma.
A ética da análise se afirm a além da culpa, na relação consubs­
tanciai do sujeito e da culpa que ele/ela encontra necessariam ente ao
se afirm ar com o desejante. A m eta não é então de bem -aventurança
e absolvição: cada um afrontará a culpa inerente ao desejo e para isso
não há regras ou m andam entos que indiquem o que e com o fazer.
Neste cam inho, não há “com panheiros de viagem ”, igrejas, partidos
ou mestres iluminados que guiem pelo bom caminho, tampouco cabe
a possibilidade de renunciar à responsabilidade de eleger, dissolvendo-
se nos interesses superiores do g ru p o ou da instituição. C ada um
está só e não pode esperar a ajuda do O utro. O sujeito deve jogar
quando chega a sua vez e não pode “p assar” com o acontece em
certos jogos. Zugszw ang com o é cham ado no xadrez. Fazer a jogada
conform e o desejo e subm eter-se às suas conseqüências, a um a li­
m itação do gozo que lhe abre cam inhos diferentes na escala inver­
tida da Lei do desejo.
A neurose, um mal ético e não um a doença p red estin ad a a
classificações e tratam entos m édicos, é a im potência ou a renúncia
ante a jo g a d a que cad a um d ev eria fazer p ara ch eg ar a ser. É a
re c u sa ao ato a firm a tiv o p a rtic u la r em função da su jeiç ão aos
significanles da dem anda do O utro, seja por critérios norm ativos,
seja pela chantagem do abandono e da perda do amor. Pois o dizer,
a experiên cia d iscursiva o rdenada pela regra analítica, não tem a
finalidade de com preender, de se satisfazer com um novo saber,
com um a “ inteligência” qualquer, m as a de p roduzir um ato que,
com o no conto de Borges sobre Tadeo Isidoro Cruz, faça com que

15. G. Pom m ier. Le dénouem ent d 'u n e analyse. Paris: Point H ors L igne, 1987.
p. 197.
306 Gozo

o sujeito acate o d estin o que leva d en tro , que escrev a seu livro
proustiano, que saiba, por séu ato, quem é (p. 208-210).
A análise com o “tratam ento” da neurose tem um a meta ética
que é a de reabrir este cam po da decisão particular que não se com ­
padece de ordens, ordenações e ordenam entos. Atenção! Não se tra­
ta de encontrar, assim , m ais um a vez essa ideologia da liberdade
solidária da psicologia m ais obscurantista nem de recair nos cantos
laudatórios da individualidade. “O eu é a teologia da livre empresa”.16
Por isso, acabam os de evocar o Z ugszw a n g enxadrístico: deve-se
jo g ar e o saldo da ação é um a perda irreparável; deve equivocar-se.
O obsessivo que posterga sem pre seu ato para não perder, sabe-o
m elhor que ninguém .
“S aber p ara sem pre quem se é ”, efeito retroativo do ato, de
um a jo g a d a que com prom ete o ser e o escreve com o um destino,
de um a aposta cujo saldo é de abandono e de solidão. Poder~se-ia
dizer tam bém de um a identificação com a causa de seu desejo, ou
seja, com um a falta impreenchível que subjaz às decisões e aos atos.
Esse é, psicanaliticam ente, o destino. N ão é um a predestinação real,
mas um a razão que se constitui retroativam ente a partir dos atos. Por
atuar, p o r fa lh a r, p o r in s c re v e r e ssa fa lh a co m o ra stro de sua
passagem pelo m undo, o sujeito “sabe para sem pre quem é ”. O novo
saber é am bíguo: desolado e desolador por um lado, m as tam bém
“gaio saber”, fonte do entusiasm o e de um contato renovado com
o gozo, de um a curiosidade aguçada que desterra a tristeza e o tédio,
esses estad o s da alm a que anulam as d iferen ç as e que tiram do
m undo seu relevo.
Citando novam ente Pom m ier,17 o analisante se equipara nisto
ao herói m oderno, definido não tanto por sua valentia, mas pelo fato
de afro n tar sua an g ú stia e sua culpa. Ele percorre na análise um
trajeto paradoxal: tendo vindo para aprender a gozar, para perder as
travas de seu gozo, fica sabendo que existe apenas a possibilidade
de negociar seu gozo por meio da insistência da falta em ser que nele
habita, seu desejo. A am bigüidade do fim da análise está feita desta
m e s c la de d e s o la ç ã o e e n tu s ia s m o q u e se e x p e r im e n ta

16. J. L acan (1955). É crits, p. 335; E scritos 1, p. 324.


17. G Pom m ier. L e d é n o u em e n t d ’une analyse, p. 215.
G ozo e ética na experiência psicanalítica 307

psicologicam ente com o “estado m aníaco -d epressivo” em term os


retomados pelas crias inglesas da escola húngara de psicanálise. Uma
exaltação desolada que não deixa de se acom panhar de mau hum or
p o rq u e as coisas não vão com o se quer, p orque andam com um
ritm o que não acom panha o desejo, devorador do tempo. O desejo,
o autêntico desejo, não q u er saber de adiam entos, tem pressa de
concluir.
N e sta ética sem ideais, além dos ideais, não se pode saber
gozar, m as pode-se, sim, saber sobre o desejo que aponta o gozo
c o m o seu h o riz o n te s e m p re fu g itiv o , s e m p re e v o c a d o nos
interstícios da cadeia significante e produzido pelo próprio fato de
falar: o significante um representa o sujeito para outro significante,
o s ig n ific a n te d o is; e ste se g u n d o sig n ific a n te re v e rte so b re o
significante um e o tom a representante do sujeito. M as o processo
da significação não se basta, porque o saldo desta operação dos dois
significantes é a produção de @, do objeto mais de gozo que escapa
à articulação significante e que, enquanto causa do desejo, é seu
motor. O @ que foge à frente do buscapé da palavra não pode ser
abarcado por um a expressão “exata” que o recupere e o faça entrar
no discurso. E o elem ento real organizador do discurso da ciência,
sucessora da religião, que em nossos dias pretende dizer a verdade
do real. E o resto indizível que cai pelo fato básico de que não há
discurso que não esteja infiltrado pelo sem blante e que a ciência
aprendeu há m uito tem po a indicar com certos nom es próprios, o
de H eisenberg (incerteza) e o de Godel (incompletitude).
A ilusão da m etalinguagem , do suposto saber, do discurso que
diga o verdadeiro sobre a verdade, de um Outro sem barra, Outro
do O u tro e g aran tia dos e n u n c ia d o s, é fecunda e fun d ad o ra da
situação analítica. O fantasm a da garantia e de um gozo ao alcance
do discurso constitui o O utro da transferência e é a esse Outro que
não existe, que é um a pura suposição, que se dirige o discurso do
inconsciente, transcrição e decifram ento de um gozo do qual não se
pode nem se quer saber. E um saber sem sujeito, um saber que nos
sabe e que fa z o sujeito com o efeito de seu dizer, um saber de onde
o su jeito ocupa o lugar do significado e fica em um a relação de
disjunção com relação ao objeto @, escritura do gozo, que está no
lugar da produção:
1 08 G ozo

;ito acatc o destino que leva d en tro , que escrev a seu livro
tiano, que saiba, por seu ato, quem é (p. 208-210).
A análise com o “tratam ento” da neurose tem um a m eta ética
a de reabrir este cam po da decisão particular que não se com-
íe de ordens, ordenações e ordenam entos. Atenção! Não se tra­
que o encontrar, assim , m ais um a vez essa ideologia da liberdade
corpoíria da psicologia mais obscurantista nem de recair nos cantos
m tervtórios da individualidade. “O eu é a teologia da livre em presa”.16
estofojso, acabam os de evocar o Z u gszw ang enxadrístico: deve-se
respore o saldo da ação é uma perda irreparável; deve equivocar-se.
com o í c s s í v o que posterga sem pre seu ato para não perder, sabe-o
produ^r qUe ninguém .
do sujf'Saber para sem pre quem se é ” , efeito retroativo do ato, de
ogada que com prom ete o ser e o escreve com o um destino,
ia aposta cujo saldo é de abandono e de solidão. Poder-se-ia
tam bém de um a identificação com a causa de seu desejo, ou
:om um a falta im preenchível que subjaz às decisões e aos atos.
B, psicanaliticam ente, o destino. N ão é uma predestinação real,
sab er, ma razão que se constitui retroativam ente a partir dos atos. Por
m aiêu, p o r fa lh a r, p o r in s c re v e r e s s a fa lh a com o ra stro de sua
H ussegem pelo mundo, o sujeito “sabe para sempre quem é” . O novo
renuncé am bíguo: desolado e desolador por um lado, m as tam bém
an terk saber” , fonte do entusiasm o e de um contato renovado com
saber t>, de uma curiosidade aguçada que desterra a tristeza e o tédio,
signifii estad o s da alm a que anulam as d iferen ças e que tiram do
Co seu relevo.
mas nâCitando novam ente Pom m ier,17 o analisante se equipara nisto
d e v e rró i m oderno, definido não tanto por sua valentia, mas pelo fato
(prescirontar sua an g ú stia e sua culpa. Ele percorre na análise um
um a iro paradoxal: tendo vindo para aprender a gozar, para perder as
“E seu; de seu gozo, fica sabendo que existe apenas a possibilidade
relaçãcgociar seu gozo por meio da insistência da falta em ser que nele
único a, seu desejo. A am bigüidade do fim da análise está feita desta
la de d e s o la ç ã o e e n tu s ia s m o q u e se e x p e rim e n ta

18. J. L
d ° lL acan (1955). É crits, p. 335; E scrito s 1, p. 324.
Pe tr Pom m ier. Le d é n o u em e n t d ’une analyse, p. 215.
G ozo e ética na experiência psicanalítica 307

psicologicam ente com o “estado m an íaco -d ep ressivo” em term os


retomados pelas crias inglesas da escola húngara de psicanálise. Uma
exaltação desolada que não deixa de se acom panhar de mau hum or
porque as coisas não vão com o se quer, p orque andam com um
ritm o que não acom panha o desejo, devorador do tempo. O desejo,
o autêntico desejo, não q u er saber de adiam entos, tem pressa de
concluir.
N esta ética sem ideais, além dos ideais, não se pode saber
gozar, m as pode-se, sim, saber sobre o desejo que aponta o gozo
c o m o seu h o riz o n te s e m p re f u g itiv o , s e m p re e v o c a d o nos
interstícios da cadeia significante e produzido pelo próprio fato de
falar: o significante um representa o sujeito para outro significante,
o s ig n ific a n te d o is; e ste se g u n d o sig n ific a n te re v e rte so b re o
significante um e o tom a representante do sujeito. M as o processo
da significação não se basta, porque o saldo desta operação dos dois
significantes é a produção de @, do objeto mais de gozo que escapa
à articu lação significante e que, enquanto causa do desejo, é seu
motor. O @ que foge à frente do buscapé da palavra não pode ser
abarcado por um a expressão “exata” que o recupere e o faça entrar
no discurso. E o elem ento real organizador do discurso da ciência,
sucessora da religião, que em nossos dias pretende dizer a verdade
do real. E o resto indizível que cai pelo fato básico de que não há
d iscurso que não esteja in filtrado pelo sem blante e que a ciência
aprendeu há m uito tem po a indicar com certos nom es próprios, o
de H eisenberg (incerteza) e o de Gõdel (incom pletitude).
A ilusão da m etalinguagem , do suposto saber, do discurso que
diga o verdadeiro sobre a verdade, de um O utro sem barra, Outro
do O u tro e g aran tia dos e n u n c ia d o s, é fecu nda e fu n d ad o ra da
situação analítica. O fantasm a da garantia e de um gozo ao alcance
do discurso constitui o O utro da transferência e é a esse Outro que
não existe, que é um a pura suposição, que se dirige o discurso do
inconsciente, transcrição e decifram ento de um gozo do qual não se
pode nem se quer saber. E um saber sem sujeito, um saber que nos
sabe e que fa z o sujeito com o efeito de seu dizer, um saber de onde
o su jeito ocu p a o lugar do sig n ificad o e fica em um a relação de
disjunção com relação ao objeto @, escritura do gozo, que está no
lugar da produção:
310 G o zo

do analisante a partir do que nele se produziu pelo ato (e m ais ainda


pelo silêncio que trabalha) do analista.
Com efeito, o gozo ordena que a técnica se subordine à ética,
o enunciado à enunciação, o que se diz ao que não se pode dizer.
Em todo caso, com o dizia W ittgenstein...
Que o ser se faça na retroatividade de seu ato é algo que não
concerne som ente ao analisante. E stá im plicado aí, e em prim eiro
lugar, o próprio analista. É ele quem , borgesianam ente, sabe então
e p a ra s e m p re o q u e é e q u e m é. S eu d e s e jo se e q u ip a r a à
interpretação, fórm ula avançada por Lacan desde o sexto de seus
sem inários. E sua interpretação não diz o ser, mas o faz ao modo
de um c o rte em u m a s u p e rfíc ie to p o ló g ic a que m o d ific a suas
propriedades, que faz algo diferente do que havia. N ão se trata de
um a frase, mas de um ato que une o desejo e o gozo passando pela
castração, que é bloqueio do louco gozo do ser, condição do gozo
fálico e barreira significante interposta ao gozo do O utro de acordo
com a concepção já trabalhada sobre os três gozos (capítulo II).
A interpretação abre para o desejo, um a vez que funciona como
significante reordenador do conjunto. E, de fato, um nom e-do-Pai
que abre o cam po de gozo pela via do bem - dizer; deixa o sujeito
em condições de procurar a aventura do gozo desam arrando-o das
cadeias linguageiras que o continham em sua jaula de sintom as; em
outras palavras, o intima tacitam ente, por sua mera presença, a atuar
além da resignação e da culpa.
A interpretação é oracular, é um dizer que se apresenta como
eq u iv alen te do real, além da articu lação significante. N ão é um
discurso que se agrega a outro discurso para confirm á-lo, infirmá-
lo ou d e s v iá -lo . É u m a e v o c a ç ã o do go zo q u e se p ro p õ e ao
decifram ento sem dizer a verdade e sabendo que o gozo não é o que
se cifra, m as o que se decifra. E oracular porque o inconsciente,
discurso do Outro, é um oráculo e a interpretação lhe é hom óloga.
N a in te rp re ta ç ã o , d e fin e m -s e ta n to o ser do a n a lis ta c o m o o
analítico. É um a m anifestação do “ sou” que se co n v alid ará pelo
“penso” que lhe seguirá. Faz-se pela presença simbólica, im aginária
e real de um analista que não se separa de seu dizer para ser re­
p re se n ta d o p o r tal d izer; ele é e e stá em seu dizer. O dito é a
conseqüência do ato e manifesta a posição ética, o desejo do analista.
G ozo e ética na experiência psicanalítica Ml

Não vale pela afirm ação ou pela respost que lhe segue (discurso do
senhor), não é julgado no plano do safer (discurso universitário),
não responde a um a cisão no sujeito (dscurso da histérica). U m a
in te r p r e ta ç ã o , um d iz e r tr a d u z id o :m um d ito q u e não é a
excrescência da subjetividade deste oudaquele analista e que não
surge de nenhum a contratransferência nascarada do desejo.

5. A analogia im unológica

Para que um a en u n ciação interpetativa p ossa ter efeitos, é


condição necessária e prévia a en trad aio sujeito na transferência.
Sobre este ponto, o acordo dos analista é universal, ainda que não
coincidam na significação dos termos iferpretação e transferência.
Em term o s lacan ian o s, que já são lujar-com um , é n ecessária a
constituição do sujeito suposto saber. Chegado a este ponto, sinto
a tentação de recorrer a um a (quase) par bola (de fato, uma alegoria)
para ilustrar o ponto da relação entre axansferência e o gozo. Não
faltam - está claro - os antecedentes feudianos, mas em lugar de
re c o rre r, co m o F reu d , a a n a lo g ia s n ilitares, farei uso de um a
co m p a ra ç ão com a im u n o lo g ia que s tristes c irc u n stâ n c ias do
presente tornaram quase do saber de tidos. D irei, em síntese, que
se tr a ta d e p r o v o c a r c o m a an ilise u m a s ín d ro m e de
imunodeficiência.
O su jeito, ex ceção feita ao p sio tic o , ch eg a arm ado de um
sistem a defensivo de anticorpos. Um aiticorpo, se escutam os isso
que o significante faz ouvir, é o que põi freio e se opõe ao gozo que
é do corpo. Façam os agora, por um mcnento, um a m istura insólita
co m a ig n o r â n c ia p r o v o c a d a , as rts is tê n c ia s e a re p re s s ã o ;
p e n s a r e m o s to d a s e la s c o m o a n tiio rp o s. N o s s o s u je ito do
in c o n sc ie n te , o fa la n te , foi b a n h ad o d esd e an tes de n asce r em
p alav ras e d iscu rso s que, vin d o do Q tro , lev aram -n o a rotular
c o m o in d e v id o s e in c o n c iliá v e is a<ueles s ig n if ic a n te s q u e,
artic u la n d o -se , p o d e ria m fa z e r com iuè a p a la v ra c o n so asse e
ressoasse com o corpo. C om o gozo. b r isso os recusa.
O organism o, diz-nos a imunologi; vulgarizada, aprende desde
o princípio a reconhecer seus próprios om ponentes protéicos como
3 12 G ozo

seus e os tolera sem reagir contra eles. Os linfócitos circulam por


todas as p artes, levan d o a in fo rm ação que perm ite d istin g u ir o
próprio do alheio no indivíduo normal; quando aparece na circulação
um a p ro te ín a e stra n h a , ela fu n c io n a com o um “ a n tíg e n o ” que
provoca um a reação de recusa, um processo defensivo que culm ina
com sua assim ilação ou sua expulsão. Q uando as proteínas estranhas
não entram na circulação - com o norm alm ente acontece - mas no
aparelho digestivo, elas são destruídas cm partículas elementares que
lo g o se u sam p a ra r e c o n s tr u ir o u tra s p r o te ín a s q u e se ja m
com patíveis com as do próprio organism o.
N ã o p e rc a m o s n em p o r um in s ta n te n o s s o p o n to de
co m paração analógica. O sistem a estável de reconhecim ento dos
próprios com ponentes compatíveis no plano do significante é o “eu”,
o velho eu o ficia l indiciado desde os tem pos da correspondência
com Fliess. Os signifícantes vindos de fora (a palavra do Outro), não
entram no sujeito sem passar por um a alfândega “ linfocitária” que
decide se essa palavra é assim ilada às próprias, às que o eu aceita
por julgá-las inofensivas ou se é recusada. O destino com um é que
lhes sejam so lto s seus c o m p o n e n te s e le m en lares e logo sejam
r e s c o n tr u íd o s em c o m p o s to s c o m p le x o s de a c o rd o co m a
organização do Eu. Toda intervenção do saber do Outro que recaia
s o b re o s u je ito a tiv a rá o sis te m a de d e fe sa s im u n o ló g ic a s já
p rep arad o . O radicalm ente incom patível será recusado com o vil
enxerto. São os efeitos do que Freud cham ou “análise selvagem ” .
A palavra estranha é habitualmente assim ilada e neutralizada por um
siste m a “p ro te to r” o n ip resen te. E u m a função do “tim o ” com o
dizem os m édicos e tam bém , porém com um sentido mais vulgar,
os a n a lista s. O su je ito é lu d ib ria d o p a ra não re a g ir fre n te aos
c o m p o n e n te s que sente com o p ró p rio s (eg ó ico s); é in d u zid o a
tolerar suas próprias proteínas, pela armação discursiva e imaginária
que se ch am a “eu” . A palavra estran h a é recebida e integrada ao
aparelho defensivo. E mais; pode atuar como “vacina” que o imuniza
contra um a palavra nova e im previsível, devastadora. D everá para
isso ser sem elhante, mas atenuada com relação aos significantes
“ p e r ig o s o s ” q u e falam de u m a v e rd a d e q u e se ria p re fe rív e l
d esconhecer.
O p ro c e sso an alítico foi co n ceb id o desde o prin cíp io para
desativar esse sistem a de resistências que passa ora pela assimilação
G o /o e ética na experiência psicanalítica 313

ao “e u ” , ora pela recusa desses significantes que, por repressão,


ignorância ou má-fé, não são reconhecidos com o próprios. O sujeito
é levado pelo processo m esm o da análise a se estranhar com relação
à sua própria palavra. O sonho, essa palavra própria que se escuta
com o procedente do Outro é a via régia que conduz a este resultado.
Os lap so s e o que se p ro d u z p elas e sc a n ç õ e s e p o n tu a ç õ e s do
analista não estão atrás.
O “próprio” ao qual não se reage, o sistem a im unológico ar­
mado no seio de cada um é, na realidade, o discurso do Outro que
tom ou posse do corpo do sujeito, de seu gozo, deslocando-o, tor­
nando-o estranho, convertendo-o em zona interior inabordável, cm
Isso, cm um a satisfação irrcdenta e irredim ível pelo discurso. O
gozo, o próprio, é tratado com o alheio. “Eu é O utro” , mas não o
sabe. N em quer saber disso; “D issolver as m iragens im aginárias” ,
tal com o se diz no discurso de R om a, é “outrificar” o Eu, desco­
brir a castração que se encobre sob sua m áscara, revelar a falta a
ser, o desejo que lhe subjaz e denunciar sua im postura, sua falsa
unidade monolítica.
E O utro, mas acredita ser “U m ” . A ignorância em si m esm a
não é seu pecado; no final das contas a ignorância é o único uni­
versal em m atéria de saber. O problem a é a ignorância quando se
acredita saber; não é a ausência do saber, mas a resistência à ver­
dade a partir e em nom e do saber, de um saber referencial que per­
m ite co lo c a r-se na realid ad e e que é ativo d esco n h ecim en to da
verdade e do gozo que ela inscreve. Essa é a ação dos “anticorpos”
de que estou falando.
Retom em os o ponto de partida: trata-se, com a psicanálise, de
provocar um a síndrom e de im unodeficiência, ou seja, de neutralizar
este sistem a supostam ente protetor que é o conjunto de barreiras ao
gozo. N esta analogia que ju lg o ilustrativa (e se não, para quê?), a
neurose, condição universal, aparece com o um a doença auto-imune.
E, em poucas palavras, o eu recusando o sujeito. O sujeito trata o
que lhe é próprio, as pulsões que aspiram ao gozo, com o estranhas,
desconhece os significantes que as representam , as reprim e, erige
um sistem a de defesas para se proteger delas, faz do seu íntimo algo
êxtim o , trata-o com o um corpo (um a proteína) estranho, torna-o
sin to m a , gozo in có g n ito , d isfa rç a d o e vivido com o so frim en to
corporal incom preensível. O sintom a se apresenta com o “o mais
314 G ozo

alheio ao eu que se encontra no interior da alm a”, é, com o todo o


rep rim id o , “terra e stra n g e ira in te rio r” .” T alvez nunca tenha se
definido sintom a m elhor do que com estas três palavras. Poder-se-
ia d iz e r tam b ém q u e é um e n c la v e do d isc u rso do O u tro , um
re m a n e sc e n te da o rd e m su p e re g ó ic a in icial de g o z a r que não
encontra o exutório da travessia da castração e a canalização pela via
do ato que é conseqüência da articulação significante.
O utra vez, Wo Es war soll Ich werden. Onde o inom inado do
sintom a fundia suas raízes, terra estrangeira interior, deverá o eu
advir, significar, dar lugar a um saber que está aí, desconhecido.
Deverá desarm ar as resistências que recusam o autêntico por julgá-
lo ameaçador. Certam ente advertindo que a relação entre o sujeito e
o O utro não é de oposição e exclusão recíproca (em uma polarida­
de m eu/alheio), m as de intersecção de círculos eulerianos, onde o
que falta em um se superpõe e se reúne com o que falta no outro
(ver gráfico na p. 116). O resultado é a dupla barra, a do sujeito e
a do Outro.
O e n g a n o do eu , o c e rn e d a n e u ro se , é ju s ta m e n te e ste
d e s c o n h e c im e n to de q u e e n tre S u je ito e O u tro (A ) não há a
p o ssib ilid a d e da co m p letu d e e o re co b rim en to recíp ro co que o
fantasm a prom ete, que a cisão é irrem issível e que o saldo do duplo
corte é o objeto do gozo (@) que se perde para ambos. N a neurose
é produzida esta plena identificação do sujeito com o eu e com o
desconhecim ento de que esse eu é efeito e aliado do Outro; a serviço
desse eu que é O utro, renuncia-se ao desejo e se subm ete o desejo
à d em an d a do O u tro . T ro c a -se o p u lsio n a r p elo sa tisfa z e r (ao
Outro), com a esperança fantasm ática de assim ser satisfeito.
O tratam ento analítico tende a reconquistar a terra estrangeira
interior, fazendo-a passar pelo diafragm a de um a palavra inédita e
insólita que invente um a saída para o desejo pela via do ato que
declara a p articu larid ad e subjetiva. A í onde Isso estava. D everá
colocar lim ites ao sistem a pseudoprotetor dos anticorpos egóicos,
defesa do Outro encravada no falante, habilitar o corpo para qüe seja
e x p e r im e n ta d o c o m o g o z a n te , d e s m a rc a ra r os a n tic o r p o s ,

23. S. Freud (1932). O bras c o m p leta s, v. X V I, p. 53.


G ozo e é c a na experiência psicanalítica 315

e e n c a n in h a r o g o z o q u e se e x ilo u d e p o is de p a d c e r um a
ran su b ta n c ia çã o e atra v e ssa r p elo s sistem as de colo ação em
Dalavra; o que se sucedem de um a ponta à outra do es|uem a da
;a rta 5! (cf. p. 190). D ep o is de d e c ifra r o g ozo e go.ando do
iecifrarento. A dvindo Eu nesse lugar.
A nterpretação terá de ser um a palavra que burle o istem a de
iefesasissim ilad o ras e/ou recusantes. Por isso não pod ser um a
palavra ilheia que ponha em andam ento o sistem a im undógico de
■ecusa <os enxertos. O erro das intervenções feitas d e se o saber
refererxial) do analista, erro do qual os analistas lacaninos esta-
n o s mas alertas, consiste em recair sobre a significaçã', sobre o
sentido io sintom a ou da transferência tratada com o sinoma. E a
nterpreação lacaniana, surpreendente e equívoca, atuanco sobre o
signo, rio proposicional, burla o sistem a dos anticorpos im vez de
;stimul<-los com o um antígeno ou de se integrar a ele depis de ser
iubmetila a um processo digestivo de assimilação. “Evoc o gozo” .
Iambéri o provoca. Seu enunciado está mais próxim o dcchiste do
que da in fe rê n c ia . É, antes, um a negativa a con-ferir. Colocação
;m ato.
A pnas terá efeito se a “proteção im unológica” for eficiente,
>e for eifraquecido o eu forte da m etapsicologia revisiorista, o do
‘tim o ” A e s tra té g ia c o n siste em fa z e r do eu o u tro , m O utro
iuspeitcde cum plicidade e encobrim ento daquilo de que;e queixa.
D denuiciante é o prim eiro suspeito; isso é algo que nm o m ais
inexper;nte dos detetives pode ignorar. D eve-se fazê-lofalar para
que caiim as m á sc a ra s q u e o c u lta m suas v e rd a d e irs razão e
identidáie. E ssa identidade é a m esm a que a do sintoma, iois com o
um sintoma e s tá e s tru tu ra d o . A in te rp re ta ç ã o c a irá o b re seu
discursojm a vez que se tenham desativado os processos lefensivos
habituai, as b arreiras fantasm áticas. P or isso com ecei :ste item
p rop o m o q u e se in d u z a u m a “ im u n o d e fic iê n c ia ” , una AIDS
analítica que faz o sujeito passar para um a situação de desroteção,
de desanparo, de travessia dos fantasm as da vida para mtrar em
contato o m o real descarnado que se encontra além.
A sanalogias e as parábolas cativam , mas depois deexpô-las
deve-se .dvertir o público sobre sua estrutura de ficção: osssencial
que as onstitui é a diferença entre os dois termos que asintegram
316 G ozo

além do p a re n te s c o im a g in á rio q u e e la s e sta b e le c e m . P o is a


imunologia e a psicanálise dependem de legalidades diferentes.
De qualquer forma, não gostaria de abandonar a com paração
sem relem brar que estes recursos retóricos são convenientes; um
discurso trata sem pre de um a realidade que foi configurada por outro
discurso e que o real pode ser circundado, ainda que não agarrado
pela palavra. A som bra do im aginário cai sobre todo discurso, já que
a verdade tem estrutura de ficção.
L acan co n su m o u um a sin g u la r fa ç an h a ao re v isa r na sua
totalidade os ditos de Freud e integrá-los com o dizer de Freud. Seu
g e sto d e v e se r c o n s ta n te m e n te re n o v a d o . D e v e -se c ria r um a
im unodeficiência com relação ao ensino de Lacan e à proteção que
m uitos encontram em um discurso que se assegura de si m esm o e
que recusa as inovações com o enxertos perigosos. Lacan fez com
q ue a p sican álise “c o n v e n c io n a liza d a ” se to rn asse estran h a a si
m esm a m ed ian te a im p o rtação de outros d iscursos (lin g ü ística,
filosofia, lógica, topologia), autênticos anticorpos que m ostravam
por onde m ancava essa verdade que se desgastava pelo m anuseio
do saber textual do inconsciente que apenas do texto de Freud tira
sua consistência. E assim , difícil, estranho, apetitoso é o objeto da
psicanálise. Desejável.

6. A carta ao pai

O analista se subm ete à exigência ética de realizar com seu


su je ito a tra v e s s ia q u e os le v a rá p e lo s c a m in h o s p e rd id o s do
fan tasm a sem se d eix ar d eslu m b rar pelas m iragens do conforto
físico e anímico. Essa travessia é a que ele mesmo fez e tentará com
quem o procura para fazê-la juntos. No final encontará um últim o
o b stácu lo que não é o da castração p o stu lad a por F reud, mas a
subjetivação da morte.
Uma exigência ética para o analista. Qual? Não a dos universais
e dos preceitos, não um a m oral. Isso é claro. M as tam pouco um a
ética da ind iferen ça ou da apatia, da com placência na m orte, do
desdém . Um a ética anunciada desde o título de uma obra anterior
a Freud, mas que resume todo o program a ético da psicanálise quase

L
G ozo e ética na experiência psicanalítica 317

- poder-se-ia dizer - até a últim a vírgula de su teto: “Além do bem


e do m al” do qual nosso tão citado “Além o pincípio de prazer”
não é som ente um a paráfrase, m as tam bén urr com entário, uma
continuação, a culm inação. O sem inário de lacaisobre a ética pode
e talvez deva ser lido com o a constatação d una linha secreta, de
um fio até agora invisível que une Nietzsch; a Peud como os dois
grandes im oralistas que se perguntam : “M calizir não seria... um a
coisa im o ral?”.24 N ão será o projeto su bjaentea todas as m orais
conhecidas até hoje o de refrear e ordenaro g>zo sujeitando-o a
norm as e p rincípios surdos e refratário s a> aneio dos sujeitos a
quem re g u la m , to d o s e sse s c ó d ig o s pro:edeites de D eu s, da
natureza, da convivência, do prazer, da realilade’ Será por isso que
“toda moral é uma ampla, uma ousada falsifiaçãi, graças à qual um
gozo, ante o espetáculo da alma, é impossív,l” ?;
Em meio ao arsenal das m orais crava-s o ard o psicanalítico:
“A nuncia-se um a ética, convertida ao silêndo pio advento não do
espanto, m as do desejo: e a questão é sa b r c<mo o cam inho da
tagarelice da experiên cia analítica conduza ek” .26 A spirando as
palavras que se exigem do analisando e esvaiam o-as de sentido até
e n c o n tra r o sile n c io so n ú c le o p u ls io n a h m [ue se reb a ix o u a
angústia para encontrar nesse além a falta fe u n a do ser. Não é um
além do bem e do mal, se não na m edida en q e se consegue esse
objetivo indo além da angústia.
A originalidade da psicanálise nesse trreio é a de colocar o
desejo, o desejo inconsciente e não a “inteçãoque não é m ais do
que um signo e um sintom a que tem necessiadeje interpretação” ,27
no lugar central da ética. Um desejo que seapôi à inércia letal, um
desejo que opta, que decide e que atua. O sieitcnão pode se evadir
dizendo que outro decidiu por ele; é um dcejocolocado por cim a
dos d e te rm in is m o s e dos id e a is, no qua nala e stá e sc rito de
antem ão, ainda que, se há decisão, pode esar ecrito para sempre.
Um Wunsch de Freud que em N ietzsche é Ville u r Macht, vontade
de poder, e um M acht de N ietzsche que errL aca é jouissance.

24. F. N ietzsche. M ás allá d ei bien e d ei m al, aforim o 28.


25. Idem , aforism o 291.
26. J. L acan (1960). É crits, p. 684; E scrito s 2, p. 63.
27. F. N ietzsche. M ás allá d ei bien e d ei m al, aforim o 2.
3 I8 Gozo

D eve-se eleger, decidir. É mister. Nem sequer a sexuação está


prefixada. Ainda que queriam cham á-lo de terrorism o, Lacan dizia,
em “A c iê n c ia e a v erd ad e” ,28 que de n o ssa posição de sujeitos
som os sem pre responsáveis, tem os de responder por ela, pelo gozo
que aceitam os, pelo gozo que recusam os, por dizer se querem os ou
não o que desejam os.
Eis um exemplo clínico de validade universal, que tem a estru­
tura discursiva de um a dem anda de análise. Aos 34 anos de idade
um hom em solteiro, que vive na casa do pai e que trabalha no prós­
pero com ércio que seu pai possui e dirige, escreve uma longa car­
ta ao seu progenitor, que é um a violenta recrim inação por todos os
m ales que lhe aconteceram na vida e um a acusação pela incapaci­
dade de gozar que experimenta. A carta de Franz Kafka é am plam en­
te conhecida e interessa tanto em relação ao seu autor quanto pela
m assiva identificação que seu texto provoca nos neuróticos, anali-
santes ou não. Bem , esta assunção especular de um texto alheio di­
rigido a um pai tão abaixo de sua função com o um outro qualquer,
é possível som ente ao preço de ignorar a última página da célebre
carta que, até esse final, é a queixa que qualquer analista escuta todo
dia. E o ponto em que Franz, que já não tem 17 anos no que se re­
fere às suas p o ssib ilid a d e s de d e c id ir e de p ô r em p rática suas
resoluções, interrom pe seu desacato para dizer em poucas linhas o
que o pai poderia lhe dizer (se “o inconsciente é o discurso do O u­
tro” , o que K afka põe na boca de seu pai é esclarecedor):
A f ir m a q u e m e p o n h o e m s i t u a ç ã o c ô m o d a a o e x p l i c a r
m in h a a titu d e e m re la ç ã o a v o c ê s im p le s m e n te p o r su a s c u lp a s ,
m a s c o n s id e r o q u e , e m q u e p e s e m s e u s e s fo r ç o s v is ív e is , v o c ê
se e n c o n tra e m p o siç ão m u ito m ais fa v o rá v e l ou, p e lo m en o s, não
m a is d if íc il. E m p rim e iro lu g a r, ta m b é m r e c u s a to d a a c u lp a e
r e s p o n s a b i l i d a d e s u a s , n o q u e e s t a r í a m o s p r o c e d e n d o ig u a l.
E n q u a n to , c o m a m e sm a fra n q u e z a c o m q u e o p e n so , fa ço re c a ir
s o b r e v o c ê a ú n ic a c u lp a , v o c ê q u e r s e r “ s u p e r i n t e l i g e n t e ” e
“ s u p e r t e r n o ” e a b s o l v e r - m e , p o r s u a v e z , d e to d a a c u lp a .
C o n s e g u e -o , c la ro q u e a p e n a s a p a re n te m e n te (ta m p o u c o o g u ia
o u tra in te n ç ã o ), e ... fic a n a s e n tre lin h a s q u e n a re a lid a d e fui eu

28. J. L acan (1965). É crits, p. 858; E scrito s 2, p. 837,


G ozo e ética na expenencia psicanalítica 31

o a g r e s s o r e q u e tu d o o q u e v o c ê fe z fo i aitolefesa. P o rta n to ,
g ra ç a s à tu a fa lta d e s in c e rid a d e , te ria c o n s g u d o se u o b je tiv o ,
p o is d e m o n s tro u trê s c o is a s : p rim e iro , q u e ( in c e n te ; s e g u n d o ,
q u e e u so u c u lp a d o ; e, te rc e iro , q u e se n d o sb lm e e s tá d is p o s to
n ã o só a m e p e rd o ar, m as ta m b é m , o q u e é rai ou m e n o s ig u al,
a d e m o n s t r a r e q u e r e r c r e r v o c ê m e s m o c u etam b é m e u s o u
in o c e n te ; lo g o , c o n tr a a v e r d a d e . Is to p o d r i; b a s ta r - lh e , m a s
não. M e teu em su a c a b e ç a a in te n ç ã o d e vive tcalm en te à m in h a
c u s ta . R e c o n h e ç o q u e b r ig a m o s u m c o m oo u ro , m a s h á d u a s
c la s s e s d e lu ta . O c o m b a te c a v a lh e ir e s c o , en |ue se m e d e m as
fo rç a s d e a d v e rs á rio s in d e p e n d e n te s ; c a d a un stá só, p e rd e só,
v e n c e só . E a lu ta d o p a r a s i t a , q u e n ã o a p n s p ic a , m a s q u e
ta m b é m s o rv e o sa n g u e d e q u e m o m a n té m A s im é o s o ld a d o
m erc e n á rio e assim é você. É in c a p a z para a id; m as para p o d e r
a rru m á -la s c o m o d a m e n te , se m p r e o c u p ç ê s n em p e so na
c o n s c iê n c ia , d e m o n s tr a q u e lh e tire i to d a ; sia a p tid ã o p a r a a
v id a e q u e a c o lo q u e i n o b o ls o . O q u e lh e in p o rta a g o r a s e é
i n c a p a z p a r a a v i d a ; a r e s p o n s a b i l i d a d e : riin h a , e v o c ê se
d e s e s p e r a c o m tr a n q ü ilid a d e e se d e ix a le\»r>or m im , f ís ic a e
e s p i r i t u a l m e n t e p e la v id a . U m e x e m p l o .h ; p o u c o , q u a n d o
p e n sa v a e m c a sa r-se , q u e ria ao m e sm o tem perío se casar, o q u e
a d m ite e m su a c a rta ; m as p a ra n ã o ter q u e reover v o c ê m e sm o ,
d e s e ja v a q u e o a ju d a s s e a n ã o se c a s a r, proiliido-lhe e s s a b o d a
p e la “ d e s o n ra ” q u e a u n iã o tra ria a m eu nom .V Ias isso n e m m e
o c o rre u . E m p rim e iro lugar, p o rq u e n e ste casi, o m o em to d o s os
o u tro s, não d e se ja v a “ se r u m o b stá c u lo para sí fe lic id a d e ” , e em
s e g u n d o , p o rq u e n ão d e s e jo e s c u ta r ja m a s jm a re p rim e n d a
s e m e lh a n te de m eu filho. S ig n ific o u -m e a lg u i; v a n ta g e m te r-m e
v e n c id o a o d a r-lh e lib e r d a d e p a ra a b o d a ? /b o lu ta m e n te n a d a .
M in h a r e c u s a e m r e la ç ã o à b o d a n ã o a h a d a e v it a d o ; p e lo
c o n t r á r i o , t e r i a s i g n i f i c a d o u m e s t ím u l o p a v o c ê , j á q u e a
“ t e n t a ti v a d e e v a s ã o ” , c o m o s e e x p r e s s a , s - s e - i a f e it o m a is
c o m p l e t a . M e u c o n s e n t i m e n t o p a r a a b o ia n ã o e v i t o u s u a s
r e p r i m e n d a s , p o is d e m o n s tr a , d e t o d a s a s f r m a s , q u e s o u o
c u lp a d o d e q u e se te n h a re a liz a d o . P a ra m in,no e n ta n to , n e ste
e e m to d o s o s o u t r o s c a s o s , n o f u n d o nãc le m o n s tro u o u t r a
c o is a se n ã o q u e m in h a s re p rim e n d a s se ju s tiia v a m e q u e e n tre
e la s f a l t a v a u m a m a is , p a r t i c u l a r m e n t e jis if i c a d a , q u e é a
re p rim e n d a p e la falta d e s in c e rid a d e , d o c ilid d ' e p a ra sitism o . Se
n ã o m e e n g a n o m u ito , ta m b é m c o m su a c a rt tu a c o m o p a ra sita
320 G o zo

s o b r e m im . ( C i t o a t r a d u ç ã o d e H a e b e r l e e n t r e a s v á r i a s
e x is te n te s .)

Essas linhas quase finais são a razão de a carta nunca ter sido
enviada: a carta chegou antes ao seu destino, que era o próprio autor.
O parágrafo final consiste em um certo reconhecim ento das razões
do pai e em uma certa insistência nas razões do filho, mas - term ina
d izendo o escrito r - “conseguiu-se, em m inha opinião, algo tão
próxim o à verdade que pode nos tranqüilizar um pouco a ambos e
nos tom ar mais fácil viver e morrer. Franz”. São as palavras que um
analista espera quando ouve o longo relato do sofrim ento da alma
bela até o ponto em que se produz a inversão dialética da reprimenda,
o p o n to em q u e o a n a lis ta p o d e r e s o lv e r q u e as e n tre v is ta s
prelim inares acabaram e que a análise pode com eçar. A í onde o
sujeito alcança o lim ite de sua auto-expiação acusatória para aceitar
sua responsabilidade no gozo que alcança em direção ao desejo em
sua dupla função de barreira e de cam inho para o gozo e o sujeito
acabará sendo, terá sido, um m odo de conjugação do desejo e do
gozo que se ab rirá, em m eio e p o r m eio da linguagem , de um a
relação diferente com o saber inconsciente. E a ética da psicanálise
se dará em torno do desejo, de sua cessão ou não e do bem -dizer
conform e o gozo que assim se conjuga com o desejo.
Essa é a função atribuída ao nom e-do-Pai. A seu nome, que é
de um morto no aquário do sim bólico onde bóiam as palavras. Não
o pai que aterroriza com seu poder aniquilador, tal com o K afka o
a p re s e n ta , m as o q u e p o d e h a rm o n iz a r a lei com o d e se jo , o
significante com o gozo.
O desejo e o gozo, o Outro e a Coisa. A experiência da análise
se inaugura e se prossegue pela articulação dialética desses dois pares
de conceitos entre os quais se destaca o sujeito S. Razão demais para
que o dizer, o dizer que decifra, seja a articulação e o diafragm a que
os liga.
Podem vir ao caso outros exem plos históricos e clínicos que
n ão g a n h a m cm p e so , n em em c e le b rid a d e , nem em c a rá te r
paradigm ático do de Kafka: os de Freud e Lacan, esses sujeitos que
se c o n stro e m em um d iz e r e em um e s c re v e r seu d e se jo que
convocam em um único ato o desejo e o gozo: isso se cham a estilo,
um estilete que deixa sua m arca no O utro ao realizar a inscrição
G ozo e ética na experiência psicanalítica 321

histórica de um desejo. Um desejo que não é variável psicológica,


mas que se constrói retroativam ente, para nós, a partir do que os
pais da p s ic a n á lis e d e ix a ra m : a n a lis ta s , e s c rito s , d is c íp u lo s ,
instituições, dissoluções...

7. C e d e r o desejo?

Jacques-A lain M iller em seu sem inário cham ou justam ente a


atenção sobre o erro que se com ete quando se lê apressadam ente,
e de m odo v o lu n tario so , o sem in ário de L acan sobre a ética da
psicanálise e se extrai dali, com o consigna, um “não ceder o desejo”
que Lacan nunca disse. D esde essa consigna espúria se avaliza uma
ju s tific a ç ã o da p e rv e rsã o , da b irra , do n e g a tiv ism o ou de um
egoísm o desenfreado que ora passa pelo desconhecim ento, ora pelo
avassalam en to do outro. É um a leitura p erv ersa que confunde o
desejo inconsciente com a intenção de gozar e que faz passar o gozo
p e la a firm a ç ã o so b e ra n a do eu. C o n tra e sta in te rp re ta ç ã o que
favorece advogar por um “eu forte” ergue-se a orientação lacaniana.
Devemos ler com atenção o texto da reunião final do seminário
de L acan sobre a ética em 196029 e ver que seus enunciados são
su m am en te cau telo so s. C om efeito , não se po d eria co m p arar o
Lacan habitualm ente apodítico com o que com eça advertindo: “E a
títu lo e x p erim en tal que p ro firo d ia n te vocês estas p ro p osições.
F o rm u lem o -las p arad o x alm en te. V ejam os o que isto dá para os
o u v id o s de a n a lis ta s ” . Im e d ia ta m e n te d e p o is de to m a r e sta s
precauções, disse: “Proponho que a única coisa de que se pode ser
culpado, pelo menos na experiência analítica, é de haver cedido em
relação a seu desejo” .
A proposta diz que a cessão do desejo engendra culpa; este é
um dado clínico, um a observação irrefutável da qual cabe extrair
conseqüências éticas. O sujeito cede seu desejo e para isso tem boas
razões, “ inclusive a m elhor” (ibid.), ou seja, o bem, a conveniência

29. J. L acan (1960). Le sem inaire. L ivre VII. L 'e liq u e d a n s la psych a n a lyse,
p. 368.
322 G ozo

do Outro e a do próprio sujeito, posto que seu lugar lhe é designado


no Outro pelo Outro. Mas isto implica uma traição e um engano, que
o sujeito realiza em si m esm o ou aos quais se presta, pretendendo
que haja reciprocidade, que o Outro por sua vez faça uma renúncia
equivalente de seu próprio desejo. E isto é o que - uma vez feitas
as contas - não se consegue. Não por egoísm o de um ou outro, mas
po rq u e o gozo de um é in co m en su ráv el em relação ao gozo do
Outro, porque as renúncias não podem se comparar, porque a perda
e o prejuízo são inerentes à renúncia. O gozo clama, reivindica sua
oferta. N ega-se ao conluio. Não se pode trocar. T rocá-lo é trucá-
lo. E traí-lo. A aspiração do desejo se paga com uma cota de gozo,
com u m a m o e d a q u e é a lib ra de c a rn e e x tr a íd a do c o rp o e
reclam ada pelo O utro. E a oposição entre desejo e gozo: os pólos
e n f r e n ta d o s d a q u e le s e m in á rio de 5 de m a io de 1958 que
comentamos no início, e do qual se tira a reflexão de Lacan em tomo
deste insólito e im possível objeto de conhecim ento que é o gozo.
N ão se ced e o d e se jo sem c u lp a p o rq u e c e d e r o d e sejo é
ad o rm ecê-lo , an u lá-lo com o força (p ro )p ulsora, adm itir em seu
lugar a conveniência, o conforto, o prazer, o serviço dos bens, o mal
m enor, o risco c alcu lad o , a subm issão à dem anda m anifesta ou
suposta do O utro, a confo rm id ad e com o fantasm a que realiza o
desejo no im aginário ao m esm o tempo que o resigna, a detenção do
m ovim ento de inscrição do nom e próprio, a obediência à proibição
edípica de não ir além do pai. Bem podia Freud experim entar tristeza
entre as colunas da A crópole, mas m aior e definitiva teria sido sua
culpa se, para não ch eg ar até este ápice, para não rebaixar o pai,
tivesse ficado nos pés da colina.-10 A tristeza e a solidão eram o
corolário da façanha de seu desejo. O Édipo e seus fantasm as de
crim e e castigo operam com o lugares de detenção para o desejo
in c o n s c ie n te , p ro te g e m do g o z o c o n s id e ra d o tra n s g re s s iv o ,
incestuoso, pagável com a cegueira. Por isso que ao fim da marcha
analítica o que advém não é o espanto, mas o desejo de atravessar
o alam b rad o de um a lei que o rd e n a d e te r-se, re tra ir-se ante a
possibilidade de alcançar esse gozo a que o Outro, sujeito também
ele da castração, teve de renunciar.

30. S. Freud (1936). O bras c o m p leta s, v. X X II, p. 209.


G ozo e ética na experiência psicanalítica 323

Freud não podia chegar a Rom a, não podia subir na Acropole,


não podia “ir longe” , porque isto lhe era apresentado com o “algo
injusto, proibido de muito... e é com o se continuasse proibido querer
ultrapassar o pai” . Por isso, ele evoca na carta a Romain Rolland seu
antigo trabalho sobre “os que fracassam ante o êxito”. R econhece
em su a in c r e d u lid a d e e re c u s a p s íq u ic a de a lc a n ç a r a lg o
fervorosam ente desejado “a m otivação universalm ente válida” do
Edipo. A nte o d esejo é m ais seguro recuar, desvanecer-se com o
sujeito, padecer de um a inibição (fa d in g ), refugiar-se no sintom a
n eu ró tico p o r ação dos an tico rp o s q u e recusam o gozo com o o
alheio ou paralisar-se pela angústia erigida como última barreira para
desconectar o desejo do gozo. Inibição, sintom a e angústia.
A neurose, o m al-estar na cultura, deriva da Lei que torna a
cultura possível, o sujeito desejante, o gozo transgressão e crim e,
os afãs do desejante m alditos, incom preensíveis, loucos. A cultura
é o mal-estar. Do gozo contido, esse ao qual não se resigna.
A psicanálise, com o se disse, é uma prática que não se guia por
ideais ou prescrições. Sem dúvida não fica excluída a possibilidade
de julgar. A prom oção freudiana do desejo (em sua relação com o
gozo) ao lugar central da ética perm ite um a revisão crítica de todos
os desvios im postos ao desejo inconsciente. E então cabe um juízo
e até um Juízo Final no tribunal ético, aquele em que não cabe o
perjúrio, do qual sairá uma sentença inapelável conform e a respos­
ta dada pelo sujeito à pergunta: “Você atuou conform e o desejo que
o habita?”.3' A pergunta enfatiza as conseqüências fáticas do desejo
e não o próprio desejo, questiona a ação orientada pelo desejo que
não é, com o se vê, o desejo de alguém , mas aquilo que habita em
alguém. Por este matiz é que este m odo de colocar a pergunta é mais
preciso do que o da fórm ula previam ente citada e proferida por L a­
can nesse m esm o dia sobre “ceder seu d esejo” . Pois o desejo não
é de alguém , com o se poderia entender pelo genitivo; o desejo está
do lado do O utro e “habita” em um. “A m edida da revisão32 da éti­
ca a que nos leva a psicanálise é a relação da ação com o desejo que

31. J. L acan (1960). Le sem inaire. L ivre VII. L ’étique d ans la psych a n a lyse,
p. 362.
32. Idem , p. 361.
324 G ozo

a habita” e tal ação se inscreve em um a dim ensão trágica, tragicô-


m ica, da vida. N orm alm ente em sua pergunta, Lacan insiste em que
ela só pode ser colocada em sua pureza no contexto analítico e que
essa pergunta, apenas ao colocar-se, já é uma oposição à ética tra­
dicional, a de Aristóteles, que preconiza a temperança, o afastamento
dos extrem os e, em últim a instância, a obediência às consignas es-
cravizantes e benevolentes do senhor que impõem a postergação do
desejo. E é neste ponto que a ética da análise se separa e contesta
o poder.
P s ic a n a litic a m e n te n ã o h á a to in o c e n te . O ato im p lic a
conseqüências éticas que tornam o atuante culpado. O ato é um a
irrupção criadora na ordem significante e im plica uma transgressão,
um parricídio. O herói analítico não é um inocente; é quem encara
a culpa. A m eta não é a beatitude, tam pouco a absolvição. Se Deus
(o pai) morreu, e é o fundam ento da ordem inconsciente, é porque
o m atam os. E-se culpado pelo único fato de existir, por se separar
da (de todos os modos im possível) alienação absoluta no desejo do
O u tro . E -se cu lp ad o p o r afirm ar um a p alavra, por atra v e ssa r a
castração para explorar os lim ites do gozo fálico que está filtrado
pelo diafragm a da palavra.
H á assim duas variedades da culpa. U m a que se experim enta
por não haver atuado segundo o desejo, im aginária, expressa em
fantasm as m asoquistas de castigo e redenção; outra, real, encarada
com o preço do desejo, assum ida e reivindicada com o um a façanha
m o v id a p e lo d e se jo . E sta c u lp a é a que p ro c la m a o lo u co de
N ietzsche em A gaia ciência e cujo resultado é a exaltação:33 “A
a le g ria ou , p a ra fa la r m in h a lin g u a g e m , o g aio sab er, é um a
recom pensa: a recom pensa de um esfo rço continuado, atrevido,
tenaz, subterrâneo, que, a bem dizer, não é para todo m undo”.
O gozo, razão e m edida do ato, arrasta a som bra de p arricí­
dio. “A consciência nos torna cu lpados”, sim, mas por um a culpa
que é anterior e inom inada. Edipo, inconsciente, não é m enos cul­
pado do que A ntígona que sabe de seu delito. M ais ainda, porque
Edipo não sabia qual era seu crim e; é que o Outro, o Coro, estaria
disposto a perdoá-lo, mas ele m esm o sabe que não há absolvição

33. F. N ietzsche. G enealogia de la m o r a i aforism o 7.


G ozo e ética na experiência psicanalítica 325

possível e por isso se mutila. A ntígona, sua filha e irmã, assum e a


culpa com orgulho e desce ao sepulcro para que se cum pra a sen­
tença que lhe impõe o O utro da Lei. Ela não se arrepende nem se
castiga; pelo contrário, reivindica seu ato e advoga por outra lei que
o com andou, um a lei superior à de seus carrascos políticos. A he­
roicidade an alítica distingue, com o antes H egel, entre estes dois
m odelos de crim e e castigo. E opta: o que atua conform e seu de­
sejo é o que pode designar-se com o eu a í onde Isso estava e afronta
a responsabilidade de sua posição de sujeito, não aquele que, incons­
ciente, cedendo às armadilhas do am or próprio (narcisismo) provoca
em si m esmo o sofrim ento e a destruição.
“D a única coisa que se pode ser culpado é de ter cedido o seu
desejo.” E o caso de Édipo, não o de A ntígona. E dipo se sacrifica
a se rv iç o dos b en s, do b e m -e s ta r d a c id a d e , a b d ic a , se ex ila.
A n tíg o n a atrav essa a b a rre ira do co n fo rto p ró p rio e alh eio que
personifica sua irmã Ism ênia e refuta com violência o argumento das
conveniências políticas da obediência. Ism ênia lhe fala em nom e da
condição fem inina que im põe a subm issão aos ditados do Outro.
A ntígona responde desde outra concepção da fem inilidade que está
ligada ao que do desejo da M ãe, explicitam ente invocado no texto
de Sófocles, não foi regulam entado pelo nom e-do-Pai. A ntígona
reivindica esta outra concepção; ela fala desde um lugar de não-toda
dentro da função fálica, desde um desejo que aponta não para o falo,
mas além , para o significante que falta no Outro, aquele pelo qual
A m ulher não existe.
Além da culpa e da angústia, aceitando que a castração é inicial
e estrutural, o herói analítico faz sua jogada, arrisca e perde, toca
os lim ites do (im )-possível em função do desejo e do que corre sob
a cadeia significante, inarticulado e inarticulável, que é o gozo, uma
escritura no pergam inho corporal. Põe-se além do bem e do mal,
além da organização judiciária da vida cotidiana, que torna todo ato
criador um delito passível de punição pelo supereu com o carrasco
ou pelo Outro que tom a sobre si a carga de vigiar e punir pelo que
o sujeito pôde ter feito depois de atravessar as travas internas do
supereu, cum prindo seu im perativo fundam ental que é gozar. Trata-
se aqui dessa culpa anterior e refreadora do ato feito conform e o
desejo que se contrapõe à castração, com o ameaça. A análise mostra
326 G ozo

a inutilidade de am eaçar com um a pena que já foi executada e que,


além disso, nem pena é, pois somente passando por ela é que se abre
a possibilidade do gozo.
Por seu desejo , o su jeito afro n ta essa am eaça e revela sua
inocuidade já que, passada a castração prim eira e essencial, havendo
receb id o so b re si a m arca que h a b ilita o gozo fálico, não há a
castração, mas a afânise, o fa d in g do sujeito, seu desaparecim ento
sob a dem anda do O utro, a neurose. O neurótico é o personagem
que cede seu desejo, que se protege dele com o se fosse perigoso.
O cum prim ento do desejo parece-lhe pior que a frustração e por isso
a ele renuncia, “coloca-o cm seu bolso”.34 Q uando poderia realizá-
lo sobrevêm a angústia c a inibição. Quem m elhor ilustra isso é o
fóbico.
O gozo fálico, efeito da passagem do sujeito pela castração,
ev o ca e c o n to rn a o incesto, m as é, p o r sua vez, um a p recária e
sempre incerta garantia de que não há incesto, de que o sujeito é algo
m ais que o o b jeto @, m ais de gozo do O utro, su bm etido à sua
dem anda. As vias de acesso à sex u alid ad e são vias de saída do
incesto, enquanto a castidade (“castigade” dizia alguém em análise)
é em si in c e s tu o s a , p o is m o stra o su je ito e n c a d e ad o ao gozo
incestuoso da M ãe, figurando ele com seu corpo esse gozo materno
q u e é p e rv e rso , q u e é a fo rm a m ais g e n e raliz ad a da p erv ersão
fem inina, que passa por desm entir que haja outro gozo que o gozo
fálico por m eio da posse da sexualidade do filho (ou filha) sujeita a
suas ordens, literalm ente sujeitada, sob seu pé. O fetichism o tem
sanção etimológica.
C abe aqui reco rd ar a sagaz observ ação clínica de Freud: a
o bediência ao Supereu, o sacrifício do gozo fálico para satisfazer
suas e x ig ê n c ia s n ão a c a rre ta a p az in te rio r, m as q u a n to m ais
“virtuoso” se é, mais se encontra o sujeito assediado pelos escrúpulos
e pela culpa. As renúncias pulsionais não fazem senão increm entar
o m al-estar tanto no indivíduo quanto na cultura.

34. J. L acan (1961). Le sem inaire. Livre VIII. Le transferi. Paris: Seuil, 1991.
p. 271.
G ozo e ética na experiência psicanalítica 327

8. P ara três gozos, três su p e re u s15

O s u p e re u f r e u d ia n o c, co rn o se sa b e , um h e rd e iro do
com plexo de Édipo que supõe a substituição da ameaça de castração
com o perigo externo pela regulação interna do sujeito das moções
pulsionais. O supereu é concebido com o um sistem a de habilitações
e proibições do gozo. O bediente à lei e dentro de seus m arcos, o
gozo está perm itido, mas é um gozo limitado, podado pelas tesouras
da castração.
O supereu lacaniano não pode ser confundido com o freudiano.
Seu im p erativ o não é o de obedecer, mas o de gozar e o gozo é
ju s ta m e n te o q u e o s u p e re u f r e u d ia n o p ro íb e . O g o z o é
transgressivo; por isso tem pouco a ver com a obediência. A questão
é, depois de ter distinguido com o fizem os nos prim eiros capítulos,
e n tre trê s fo rm a s do g o z o , d e te r m in a r o q u e q u e r d iz e r o
m a n d a m e n to s u p e re g ó ic o de “ g o z a r ” , p o sto que os g o zo s se
contrapõem e se excluem entre si. T rata-se de gozar antes, em vez
ou depois da castração; inclinar-nos-em os pelo gozo do ser, pelo
gozo fálico ou pelo gozo do O utro? O ptarem os pela concepção de
um supereu aniquilador que ordena um a loucura irresponsável, de
um supereu regulador que por sua vez perm ite e proíbe, mas que
se m p re su b m e te às suas d e m a n d a s n e u ro tiz a n te s , ou p o r um
supereu transgressivo que ordena reconhecer o desejo que habita no
sujeito e fazer dele a Lei que facilite o cam inho do gozo? (Psicose,
neurose e liberdade para o ato perverso, respectivam ente.)
P ro p o n h o que a fo rm u lação la c a n ia n a de que a ordem do
su pereu é a de g o zar pode ser este n d id a em to d a a sua riqueza

35. M. G e rez A m b e rtín . L a s vo ces d e i su p e ry ó . B uenos A ires: M a n a n tial,


1993 e Im p era tivo s d e i superyó. T estim onios clínicos. B uenos A ires: L u ­
gar E ditorial, 1999 (Em português: Im p era tivo s do supereu. T estem unhos
clínicos. São Paulo: E scuta, 2006). E stas duas obras recapitulam e abordam
o essencial que a psicanálise pode d ize r sobre o tem a. D epois delas, já dis­
sem os, “o supereu nunca voltará a ser o que e ra ” . A recom endação irres­
trita de re co rre r a essas obras im p re sc in d ív e is não se co n tra p õ e às teses
diferentes, não estritam ente de Freud nem de Lacan, que se sustentam neste
parágrafo.
328 G ozo

a p e n a s q u a n d o se re s p e ita a a m b ig ü id a d e de seu e n u n c ia d o ,
reconhecendo a polissem ia e a polivalência do gozo. Ao se aceitar
esta proposta, ter-se-á que reconhecer uma triplicidade superegóica
q ue inclui o supereu freu d ian o com o aquele que tropeça com a
inevitável rocha viva da castração e o supereu lacaniano como aquele
que elege não se deter ante a castração simbólica, reconhecê-la como
o acesso possibilitado pela função e pela m etáfora paterna ao campo
da linguagem e do discurso e atravessá-la no cam inho da inscrição
do d e se jo no real p o r m eio de atos que ro m p am as m irag e n s
imaginárias e as perm issões e licenças sim bólicas. Atos que, por sua
própria realização, significam a impugnação da normatividade.
A distinção tripla deveria se realizar entre um supereu primitivo,
este sim obsceno e feroz, que exige um gozo irrefreado, alheio à
linguagem e que não quer saber nada do nom e-do-Pai com o função
m etafórica que lança o desejo, kleiniano, diríam os, para distingui-
lo de um su p ereu fr e u d ia n o que seria c o n se c u tiv o ao an terio r,
pacificante (e não tão confiáv el) que p rom ete recom pensas pela
obediência às diretivas do ideal do eu procedentes, por sua vez, de
iden tificaçõ es com os sig n ifican tes do O utro introjetados, pelas
adm oestações recebidas de “viva voz” ; é um supereu que m aneja
com a arma da culpa, que recom enda deter-se no caminho do desejo,
aceitar “que não se pode” e que deriva a subjetividade por caminhos
de im potência, inibição, sintom a e angústia. E stes dois supereus
devem , por sua vez, distinguir-se de um terceiro, lacaniano, que
im pele a gozar com o os outros dois, mas agora com uma diferença
essencial: nele o gozo terá de passar pelo discurso, ou seja, pelo
sem blante,36 que aspira recuperar o gozo perdido em um cam inho
(recherche) que vai além das prescrições reguladoras e que confronta
o sujeito com o limite, com o nec plus ultra, com o impossível que
é c o n s e q ü ê n c ia da in e x is tê n c ia da re la ç ã o s e x u a l. P o r su as
im plicações clín icas, este terceiro supereu deve se distin g u ir da
perversão que poderia ser seu ponto de desem bocadura, com o são
para os outros dois a psicose e a neurose. A diferença, apesar de
sutil, é importante: é a diferença que há entre um fazer semblante de

36. J. L acan (1971 -1972). Sem inário X V III e N. A. Braunstein. E l concepto de


sem blante en Lacan. M éxico: Siglo XXI.
Gozo e ética na experiência psicanalítica 329

gozar, próprio do perverso e um gozar de fazer sem blante, de uma


gaia ciência dionisíaca que se estende além do fracasso em ordenar
o saber e o viver segundo os objetivos apolíneos da com pletude, da
integ ração e da harm onia entre o hom em e o m undo ou entre o
hom em e a m ulh er. A lém da c u lp a , além dos id e a is, além do
princípio de prazer, além do bem e do mal, do pai e do sentido, mas
não além do sem blante ou da m áscara.37
A relação entre o supereu lacaniano e a obediência do perverso
ao m andam ento de gozar, levando ao Outro o gozo que lhe falta é,
repito, sutil mas substancial. Não é uma relação de exclusão, pois
para o sujeito no fim da análise o desejo tom ou o lugar que era do
supereu norm ativo e freudiano e que condenava à impotência: o ato
perverso não está agora proibido em função de códigos jurídicos.
O sujeito está em condições de tentá-lo, tendo tão-som ente que
decidir se quer o que deseja, se dá seu consentim ento a esse desejo
que descobriu habitando nele. Não há um a condenação a priori, mas
um a possibilidade de decidir. A qui reside um a das diferenças em
relação à perversão: ela obedece a um im perativo que, recordem os,
“ a p e n a s a c e n tu a a fu n ç ã o do d e s e jo no h o m e m ” (p. 2 5 3 ). A
distinção é de estrutura: se o analisado se identifica com sua falta e
em função dela realiza seu ato, na perversão o sujeito se identifica
com a falta do Outro e a desm ente, tornando-se ele o instrum ento
do gozo que falta ou que faltaria à m ulher; procede com o se para
ela não houvesse outro gozo que não fosse o gozo fálico.
O perverso tom a o lugar do objeto @ para assegurar o gozo
do O utro, fazendo ele, por meio de sua encenação, o semblante de
sabergozar. O analista, por sua vez, com o resultado de sua análise,
tom a o lugar de sem blante de lugar da falta no saber e no gozo
e desde aí questiona o sujeito em sua cisão, colocando ao Outro a
pergunta por seu desejo, recusando qualquer pretensão de obliterar
a falta, fazendo atuar a ignorância, reconhecendo o gozo em seu
horizonte de im possibilidade e deixando ao sujeito a consigna de se
venturar pelos caminhos do significante, gozando de fazer semblante,
de inventar o saber, de se exaltar sem se alterar, atuando segundo
o desejo que nele habita.

37, G. Vattim o. El sujeto y la m áscara. M adrid: P enínsula, 1989.


330 G ozo

O supercu que cham am os freudiano, o que ordena subm eter-


se a n te a a m e a ç a da c a s tra ç ã o , re m a n e sc e n te ou h e rd e iro do
com plexo de Édipo, é o fundam ento de um a form a p articular do
gozo que é o gozo do sintom a neurótico e da culpa, de um gozo que
surge do recuar do sujeito ante a castração. E, nesse sentido, um
gozo fálico que não consegue canalizar-se no discurso, retido no
corpo e, por isso, aparentem ente “pré-fálico” ou, com o o cham a a
doutrina estabelecida, pré-genital (caso se aceite que o único genital
é o falo). É gozo do significante, sim, mas subm etido à repressão
secundária. E por isso que seu efeito é recolhido por alíngua como
sendo de m anifestação oral: rem orsos.
A culpa e o fantasm a de castigo (“Bate-se num a criança” ) não
são, todos sabem , alheios ao gozo. Pelo contrário, em torno deles
se te c e um g ozo re to rc id o p o r in v o c a r e se o fe re c e r de fo rm a
p r o p ic ia tó r ia e s a c r if ic ia l ao g o z o do O u tro . E ste g o z o é o
fundamento de uma compulsão à repetição que levou alguns analistas
a c u n h a r a fó rm u la de “n eu ro se de d e stin o ” para d esig n ar este
fan tasm a de perversão que co n siste em acom odar-se ao suposto
fantasm a perverso do Outro e de seu gozo. O autocastigo, a paranóia
de autopunição, os despojos, a recorrência dos acidentes, as prisões,
as desgraças e as operações cirúrgicas não são as indicações de ter
atuado conform e o desejo, mas enquanto este desejo está alienado
no fa n ta sm a do gozo do O utro, esse O utro a que se o fe rta ria a
castração e o fracasso. C ulpa e rem orso estão assim na órbita do
gozo fálico, da fantasm atização m asoquista e edípica, do castigo
im posto pelo retrocesso ante o desejo inconsciente.
O gozo no castigo do supereu existe e o sujeito tem horror a
sa b e r d is s o . A m e la n c o lia e a n e u ro s e o b s e s s iv o -c o m p u ls iv a
aparecem nesta ótica com o cultivos do gozo. Freud falava em tais
casos de desintricação (Entm ischung) das pulsões. Kafka mostrou
em suas n arrações este gozo recôndito, este deserto subjetivo do
gozo, que corresponde à renúncia ao desejo para subm eter-se ao
enigm ático gozo do Outro. A façanha de gozar por não gozar não é
patrim ônio exclusivo da histérica.
P ara nós o supereu é o gozo sem o desejo, fora dele, em vez
dele.
Gozo e ética na experiência psicanalftica 331

9. Do am o r em p sican álise

O amor, som ente ele, dizia Lacan em 13 de m arço de 1963,™


perm ite ao gozo condescender ao desejo. Para que tal m ilagre de
c o n ciliação de opostos seja possível o sujeito deverá m ostrar-se
com o desejante, habitado por um a falta que fecha a via ao gozo do
ser e abre a de um acesso ao gozo do O utro, transcastracional (se
for perm itido neologizar). É m ister que, para um, o Outro se @ize,
se faça @, sofra um a @ ificação, passe a representar a causa desse
desejo que instiga a desafiar os im pedim entos externos, os diques
da presum ida im potência interna. Transitando por esta via m aldita
v er-se-á co n d u zid o ao (d e s)en co n tro @ -m uroso, ao a-m uro, ao
im perm eável m uro que envolve a Coisa.
O encontro do desejo com o gozo só pode ter lugar sob o signo da
castração e supõe d esp ren d er-se da angústia correspondente. Como
já dissemos no final do capítulo II (p. 117-119), entre o desejo e o gozo
há, se não o amor, o grito desaforado e dissolvente da angústia.
A psicanálise tem a mais estreita relação com o amor, pois não
há nada m ais do que o am or com o desfiladeiro para que se produza
essa “condescendência” tão desejada quanto defendida. O bem na
análise - deve-se superar um certo pudor para dizê-lo, para não cair
ou p ara não sustentar um a acusação de ridicularidade pastoral da
qual Lacan estava a par - tem a ver com o desejo conjugado com
o gozo e, portanto, com o amor. N ão se poderia deduzir disto uma
nova idealização do am or rom anesco ou um retorno às exaltações
p ie d o sa s q u e ad o rn a m as p rim e ira s a p o lo g ia s de O b a n q u e te
platônico e que chegam ao ápice no discurso de Fedro. O am or está
consagrado a um “ destino fa ta l” e frente a ele só cabe a forçada
valentia de assumi-lo. N ão se trata do amor-paixão nem do amor dos
avozin h o s fundado na recip ro cid ad e e na co m preensão piedosa;
trata-se do am or com o esse m al-entendido ineludível, esse equívoco
que, bem ou mal, leva à reprodução dos corpos.
Para que possa aflorar esta condescendência é necessário que
o gozo tenha sido recusado, perdido, renunciado, separado do corpo
pelo Outro do significante e da Lei. A condição do amor é a repressão

38. J. L acan (1963). Le sem inaire. L ivre X. L 'a n g o ise. (inédito)


332 G ozo

originária. Seu pano de fundo e seu abrigo é o inconsciente. É um


derivado da Lei de proibição do incesto que faz da M ãe primordial
um objeto proibido para o gozo e que, pela via da marca fálica, induz
ao desejo, esse desejo que encontra apenas objetos evocadores do
perdido e que levam a m arca de um a diferença, objetos particulares
que são e que não são, que são por não serem a Coisa. A Lei faz
deste modo o gozo, proibindo-o. Todo am or tem este pano de fundo
culposo que bordeja a transgressão e a quer e a requer.
Do gozo e do auto-erotism o, passando pela Lei, ao desejo que
a L ei o rd e n a . O g o z o , sim , m as e n c a m in h a d o d e sd e o o u tro
( “e x tro v e rsã o da lib id o ” d iría m o s re c o rre n d o ao ce m ité rio da
psicanálise), não desde dentro. Disso deriva a ligação inconsciente
e n tre m a stu rb a ç ã o e in c e sto e a c u lp a c o n c o m ita n te . O auto-
erotism o conduz por suas vias ao prazer e este prazer é razão de um
gozo paradoxal, o gozo da transgressão, dos rem orsos, do castigo
im posto p elo O utro que lev a a co n tab ilid ad e do gozo, que está
p reocupado pelo que o sujeito ex p erim en ta com seu corpo, que
e sg rim e o c h ic o te , a lo u c u ra ou as c h a m a s do in fe rn o com o
argum entos de sua lei. Ou a sífilis e a AIDS.
O sujeito, neuroticam ente, assegura-se do Outro, imaginando
ser um perverso, um transgressor. O prazer serve assim ao gozo na
m edida em que evoca a culpa. Q uando esta culpa se atenua o gozo
acessível ao neurótico se vê reduzido, a sexualidade passa a ser uma
atividade a mais da qual pode se derivar um maior ou menor desfrute
e, finalm ente, contam ina-se com sensações de saciedade: é o que se
observa atualm ente como conseqüência da tão apregoada “revolução
sexual” que não tocou certam ente em nada a condição neurótica da
repressão que a precedeu. Que, m elhor, nutriu-se da sexualidade,
fazendo dela um a m ercadoria m ultiform e que perm ite abundantes
negócios que já não ofendem ninguém.
A “sabedoria” do judeu-cristianism o consistiu nesta operação
n eu ro tizan te que p erm itiu que o sexual cheg asse a ser reduto e
p a ra d ig m a do g o zo , d e slo c a d o do resto do co rp o , lim ita d o ao
apêndice viril (perverso, segundo nossa definição), submetido a uma
legislação estrita e ligado à noção de pecado. A contrapartida é,
lógico, a localização, restrição e, na medida do possível, a exclusão
do g o zo fe m in in o q u e fic a v a c o n fin a d o à m a te rn id a d e . E ssa
( lozo e ética na experiência psicanalítica 333

legislação condena o gozo a ter de se fazer perdoar depois de prestar


contas ao grande Outro, ao beneficiário final e generoso que concede
ii absolvição ao pecador arrependido que se auto-acusa. O resultado
desta operação, além do aumento constante do m al-estar na cultura,
loi a constituição de uma erótica e deu origem à abundante mitologia
do am or no Ocidente. A instituição jurídica do matrimônio civil e sua
sacram entação serviu para dividir esquem aticam ente a sexualidade
ein cam pos opostos: o obrigado e o proibido. Fazer da sexualidade
um a obrigação, um inciso da deontologia, um dever para com o
p a rten a ire afe ta o n arcisism o e c ria u m a ten são ag re ssiv a que
justifica a m áx im a de L a R o c h e fo u c a u ld , cujo “rig o r” so bre a
incom patibilidade entre m atrim ônio e as delícias39 (Il y a des bons
mariages, m ais il n ’y en a p o in t des délicieux) destaca Lacan.
Já o s a b e m o s : o g o z o se e s ta b e le c e em u m a r e la ç ã o
co n co rren te com o gozo do O utro. “N ão d esejarás a m ulher do
p ró x im o ” é um m a n d a m e n to ao m e sm o te m p o p le o n á s tic o e
impossível. Pleonástico porque toda m ulher é a m ulher do Outro e
im possível porque é ju stam en te por ser a m ulher do O utro que é
desejada. O objeto - vimos dizendo desde o princípio deste texto -
só pode ser possuído sobre a cena im aginária de algum outro que
c despossuído. E m ais, é apenas esta despossessão o que o torna
objeto para o desejo. A ssim é com o seio, assim é com a mulher,
assim é com o falo. A m ulher prim eira é a m ulher do pai, logo a do
irm ão, logo a do rival. D esejá-la é co n su m ar im aginariam ente a
despossessão do Outro que reclam ará seu bem. O gozo som ente é
possível ao preço do pecado. Se o Outro não existe, é mister inventá-
lo, inventar esse ser da caixa registradora que tudo vê e que tudo
cobra, o n ip re se n te , esse D eus do ju d e u -c ristia n ism o m etido na
alcova p ara observar e reprovar, ocupado e preocupado pelo que
cada um faz com seu falo, ou seja, com seu partenaire ou com sua
mão. Neste sentido é mais ou m enos claro que a cham ada revolução
sexual provocou um certo debilitam ento do erotismo e, ultimamente,
até da pornografia. Somente a AIDS veio devolver um certo tempero
picante à sexualidade ao oferecer-se com o um inferno prom etido e
ameaçante que renova os im aginários da castração em um tempo em

39. J. L acan ( 1948). Écrits, p. 119; E scrito s I, p. 111.


33 4 G ozo

que q u ase todo m undo c o m e ç a v a a se e n te d ia r ou a rir-se dos


an teriores. O resto é m an ip u lação dos m ecanism os cibernéticos
sucessores e substitutos das alcoviteiras de outrora.
A neurose, padecer universal que é efeito da primazia do discurso
do senhor, é a pena do desejo que deve tom ar suas m odalidades de
prevenido, insatisfeito ou impossível. Tal desejo, além da castração,
se constitui com o o único regulador da ética da psicanálise; é a “me­
dida incom ensurável e infinita” que está no c e n tro de n o ssa expe­
riência com o analistas e que subjaz à única pergunta válida que po­
demos (nos) fazer: Você atuou conform e o desejo que o habita ?
O desejo - nunca é dem ais dizê-lo - não pode ser confundido
com esse engodo do gozo que é o fantasm a, essa construção im a­
ginária que o tam pona e serve para m anter o sujeito alijado do gozo
(neurose) ou atuando a serviço do gozo do Outro (perversão), fa­
zendo sem blante de não gozar no prim eiro caso e de sim gozar no
segundo. Pelo Falo (O) com o significante universal é que o gozo está
proibido a quem fala com o tal e que o falante passará a vida c o n ­
tornando-o com seus dizeres, vivendo sua castração (-cp). O fantas­
ma é a encenação do gozo com o p o ssív e l, a p re se n ta im aginaria­
m ente a fusão do sujeito e do objeto, do pensam ento e do ser, do
hom em e da m ulher, do fenôm eno e do núm eno, do racional e do
real, do sem blante e da verdade, unidos sem falta nem perda. Está
anim ado pelo desejo, ao qual adormece e suplanta; é resposta subje­
tiva à falta a ser e é, ao m esm o tem po, o que extravia o sujeito apre­
sentando-lhe essa m áscara do real que é a realidade consensual, o
mundo ideológico das significações, o sentido. A diferença fundamen­
tal entre as psicoterapias e a psicanálise passa por essa opção ética
entre reanim ar e corrigir o fantasm a, por um lado, ou atravessá-lo
e colocar-se além de seu ta m p o n am en to do desejo pelo outro.
E com um que a leitura da observação clínica de Lacan sobre
a relação entre o “ceder-o-desejo” e a culpa seja transform ada em
uma consigna tanto insistente quanto inexistente que seria a do “não
cedas teu desejo” . Q uase se confunde, de imediato, este desejo que
não há que ceder com o fantasm a de uma realização im aginária do
desejo supondo algum a confluência entre o sujeito S e o objeto @,
e ignorando que o essencial da fórm ula do fantasm a está dado por
esta punção O que separa os dois termos. Esta leitura do sem inário
G ozo e ética na experiência psicanalítica 335

de Lacan conduz a uma interpretação perversa da psicanálise que


deveria levar à encenação para o sujeito de um cuidado do fantasma
desm entindo assim a castração que ordena o reconhecim ento do real
(a Coisa) com o impossível.
A m eta da análise está, sim, certam ente, no desejo liberado,
m as liberado ju stam en te deste fantasm a de realização e de auto-
suficiência que o ata e o ancora no im aginário ao propor-lhe um a
s a tisfa ç ã o q u e d e sc o n h e c e o sim b ó lic o e q u e e x clu i o real. O
fantasm a é a condenação do gozo que pretende representar.
N o livro já citado, Pom m ier4" assinala o que todo psicanalista
sabe: a m aioria das análises se detém a partir de um certo efeito
terapêutico e de um certo grau de realização do fantasma, efeitos que
podem in clusiv e durar p ara sem pre. D ev e-se lam entar que nem
todas as análises possam ser levadas até seu final lógico? Ou se deve
perguntar o que acontece com a m aioria das análises que se detém
no m eio do cam inho quando o sujeito topa com certas m etas que
coincidem com as do princípio de prazer?
O problem a é de natureza ética e concerne ao bem buscado na
a n á lise . Se a c u ra não c o in c id e com o fim ló g ic o da a n á lise
concebido com o a construção e a travessia do fantasma fundamental
e se há liappy endings sem lógica e finais “ lógicos” sem cura, então,
com o escolher? O analista fará bem em prosseguir com sua meta
de flexibilizar o diafragm a da palavra para que o sujeito se confronte
com a verdade de seu ser, verdade lim ítrofe com a m orte e com o
e s p a n to de u m a te rra d e s e r ta c h e ia de c ru z e s q u e , a b e rta s ,
perguntam por quê, mas estará pronto tam bém para reconhecer que
o s u je ito p o d e , c h e g a d o o m o m e n to , m a n ife s ta r q u e e stá em
condições de regulá-las som ente com a dor de existir. Lacan dizia
que quando isso acontecia, ele os deixava ir: “U m a análise não deve
ser levada dem asiado longe. E suficiente quando o analisante pensa
que está feliz de v iv er” .41 A insistência em alcançar aquele ideal
teórico da psicanálise pode se converter na im posição de um novo
ideal, em um a refantasm atização do desejo do analista, que, depois
de haver atravessado a form ação im ag in ária que tam ponava seu

40. G. Pom m ier. Lê d énouem ent d 'u n e a n a lyse , p. 217.


41. J. L acan (1975). C onférences aux E tats-U nis. Scilicet, n. 6-7, p. 15, 1976.
336 G ozo

desejo, volta a erigi-lo com o algo que deve se conseguir do analisante


e no qual seu “eu”, o da análise, não deixaria de estar comprometido.
Toda precaução é pouca quando se trata de fixar critérios de
término da análise, pois quaisquer que sejam implicariam a submissão
a um novo universal. Não pode haver senão critérios para o término
de uma análise, infinitam ente variáveis para cada análise. M elhor
ainda, critério s - com o diz em seu títu lo G erard P om m ier - de
desenlace de uma análise. E que nada permitiria assimilar o desenlace
de u m a a n á lise ao de o u tra . N u n c a se d ev e e s q u e c e r q u e, de
qualquer forma, o desejo do analista, desejo sem fantasm a, “não é
um desejo puro”, mas é o “desejo de obter a diferença absoluta (...)
na qual pode surgir a significação de um am or sem lim ite, porque
está fora dos limites da lei, em que som ente ele pode viver” .42
Um am or sem lim ites é o am or que, de saída, renuncia a seu
objeto entendendo, com o o faz a análise desde Freud, que o objeto
im põe lim ites ao am or e o (pre)destina à desgraça. E claro que se
tra ta do F re u d in d e v id a m e n te c h a m a d o de p e s s im is ta , o que
tra n sc e n d e u aq u ilo que ta m b é m p o d e ser e n c o n tra d o sob sua
a s s in a tu ra ac e rc a das v irtu d e s u n itiv a s de E ros. A “ d ife re n ç a
a b s o lu ta ” e n c o n tra -se no g o z o , na tra v e s s ia da a n g ú stia e do
fantasm a dos perigos que espreitam no prosseguim ento indefinido
e intransigente do desejo, a transcendência tam bém do am or com o
lugar privilegiado do reforço da im agem narcísica pelo encontro com
um a “alm a gêm ea” . Esta diferença absoluta que coloca se não uma
nova arte de amar, ao menos um a concepção do am or que vai além
das m iragens da identificação, do altruísm o, do “faça o bem sem
olh ar a q u em ” , do “am arás a teu próxim o com o a ti m esm o” , do
“não faças aos outros o que não queres que façam a ti m esm o” , dos
im perativos categóricos kantiano e sadiano, da reciprocidade, da
oblatividade, da generosidade e demais belezas inscritas sob a rubrica
do “am or g en ital” . Sim ; o fim da análise tem a ver com o am or
d escarnado, sem objeto, absoluto, sem lim ites, sem m iragens de
harm onia ou completude, fora da lei, a partir do desejo, ali onde ele,
o amor, pode fazer com que o desejo condescenda ao gozo.

42. J. L acan (1964). Le seminaire. Livre XI. Les quatre concepls fo n d a m e n ta u x


de la p sychanalyse. Paris: Seuil, 1973. p. 249.
LIV RO S PUBLICADOS PELA ED ITO RA ESCUTA

Psicanálise, judaísm o: ressonâncias, Renato Mezan (esg.)


Do gozo criador, Carlos D. Pérez
O manuscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. Mello
O psicanalista e seu ofício, Conrad Stein
Elementos da interpretação, Guy Rosolato
A p u h ã o de morte, André Green et al.
Psicanálise de sintom as sociais, Sergio A. R odriguez/M anoel T. Berlinck (orgs.)
Família e doença mental, Isidoro Berenstein
Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green
As Erínias de uma mãe, Conrad Stein
Notas de psicologia e psiquiatria social, Armando Bauleo
Trauma, am or e fantasia, Franklin Goldgrub
Clínica psicanalítica: estudos, Pierre Fédida
Psicanálise da clínica cotidiana, Manoel Tosta Berlinck
O acalanto e o horror, Ana Lucia C. Jorge
A Representação. Ensaio psicanalítico, Nicos Nicolaídis
O desen vo lvim en to kle in ia n o I. Desenv. clínico de Freud, Donald Meltzer
Edipo africano, M arie-Cécile e Edmond Ortigues
Comunicação e representação, Pierre Fédida (org.)
Ensaios de psicanálise e semiótica, M iriam C h naiderm an
Freud e o problema do poder, León Rozitchner
Melanie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.)
Figurações do feminino, Danièle Brun
14 conferências sobre Jacques Lacan, Fani Hisgail (org.)
Introdução à psicanálise, Luis Hornstein
O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro, Piera Aulagnier
O d esenvolvim ento k le in ia n o II. D es. c lín ic o d e M. Klein, Donald Meltzer
Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Birman ( org.)
A construção do espaço analítico, Serge Viderman
Um intérprete em busca de sentido - /, Piera Aulagnier
Um intérprete em busca de sentido - II, Piera Aulagnier
Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morei
A dialética freudiana I: P rática do m étodo psicanalítico, Claude Le Guen
O inconsciente: várias leituras, Felicia Knobloch (org.)
Psicose. uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.)
História da histeria, Etienne Trillat
A rua como espaço clínico, Equipe de A.T. do Hospital-Dia A CASA (org.)
A clínica freudiana, Isidoro Vegh
O título da letra, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe
Quando a primavera chegar, M. Masud R Khan
O Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanálise e representação do mal, Mareio
Peter de Souza Leite e Jacques Cazotte
As bases do am or m aterno, M argarete Hilferding, Teresa Pinheiro e Helena B.
Vianna
Transferências, Abrão Slavutzky
Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Ficud, Hervé Huot
O sentimento de identidade, Nicole Berry
Gigante pela própria natureza, Emilio Rodrigué
Freud e o homem dos ratos, Patrick J. Mahony
Nome, figura e memória, Pierre Fédida
A supervisão na psicanálise, Conrad Stein et al.
Perturbador m undo novo, SBPSP (org.)
Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-cd.Edunicamp)
Casal e família como paciente, Magdalena Ramos (org.)
M ancar não é pecado, Lucien Israel
Crônicas científicas, Anna Verônica Mautner
Penare, Celia Eid e Maria Lucia Arroyo
A histérica, o sexo e o médico, Lucien Israel
Olho d'água. Arte e loucura em exposição, João Frayze-Pereira
Vida bandida, Voltaire de Souza
Figuras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. Edusp)
Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins
A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok
Ah! A s belas lições!, Radmila Zygouris
Sigmund Freud. O século cia Psicanálise (3 vols.), Emilio Rodrigué
A dialética da falta, Alba Gomes Guerra e Patrícia Simões
A interpretação, Elisabeth Saporiti
Fato em psicanálise, UPA
O corpo de Ulisses. Modernidade e materialismo em Adorno e Horkheimer, Pau­
lo Ghiraldelli Jr. (esg.)
Considerações sobre o p siq u ism o d o fe to , T h erezin h a G. de Souza Dias
Isaías Melsohn. A psicanálise e a vida. B ela S ister e Marilsa Taffarel (orgs.)
Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanálise, Cláudio Bastidas
O sitio de estrangeiro, Pierre Fédida
Psicoterapia breve psicanalitica, Haydée C. Kahtuni
O processo analítico, IJPA
Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalitica, Paulina Oymrot
A linguagem dos bebês, Marie-Claire Busnel
Uma pulsão espetacular, Psicanálise e teatro, Mauro P. Meiches
Freud. Um ciclo de leituras, Silvia L. Alonso e Ana M. S. Leal (orgs.)
Cadernos de Bion I, Júlio C. Conte (org.)
O estrangeiro, Caterina Koltai (org.)
Eu corpando. O ego e o corpo em Freud, L iana A lb e rn az de M. Bastos
Diálogos, Gilles Deleuze e Claire Parnet
O sintoma da criança e a dinâmica do casal, Isabel Cristina Gomes
A escuta, a transferência e o brincar, IJPA
Sexo, Rosely Sayão (Co-ed. Via Lettera)
A pro va p e la fala, R oland G ori (Co-ed.U CG )
O instante de dizer, Marie-Jose Del Volgo (Co-ed.UCG)
O desenv. kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion, Donald Meltzer
Achados chistosos da psicanálise nas crônicas de J.Simão, Janede Almeida (C o -E d u c )
A história de Tobias. Um estudo sobre o aninuis e o pai, Fabíola Luz
Freud e a consciência, Oswaldo França Neto
Putsões de vida, Radmila Zygouris
Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, Luis Cláudio Figueiredo
Transferência, sedução e colonização, IJPA
Febem, fam ília e identidade. O lu g a r do O utro. Isabel Kahn Marin
A criança adotiva na psicoterapia psicanalitica, Gina K. Levinzon
M osaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres
Cadernos de Bion II, Júlio César C onte (org.)
M emórias de um autodidata no Brasil, Mauricio Tragtemberg
Ética e técnica em psicanálise, Luís C láu d io Figueiredo e Nelson Coelho Jr.
A arte do encontro de Vinícius de Moraes, Sonia Alem Marrach
E ducação para o futuro. Psicanálise e e ducação, M, C ristina M. Kupfer
Política e psicanálise. O estrangeiro, Caterina Koltai
Nas encruzilhadas do ódio, M icheline Enriquez
Aids. A nova desrazão da humanidade, Henrique F. Carneiro
O problem a da identificação em F reud, P aulo de C arvalho R ibeiro
Catástrofe erepresentação, A rth u r N e stro v sk i e M á rcio Seligmann-Silva (orgs.)
Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, IJPA
A histérica entre Freud e Lacan, Monique David-Ménard
Como a mente humana produz idéias, J. Vasconcelos
M ulher no Brasil. Nossas marcas e mitos, Marisa Belém
A clínica conta histórias, Lucia B Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
O olhar do engano. A u tis m o e ou tro prim ordial, L.ia Ribeiro Fernandes
Doença ocupacional, Marina Durand
Os avatares da transm issão p síq u ic a geracional, O lga B. R. Correa (org.)
Abertura para uma discoteca, Roland de Candé
A conversa infinita - l. A palavra plural, Maurice Blanchot
A morte de Sócrates. Monólogo filosófico, Zeferino Rocha
Cenários sociais e abordagem clínica, José Newton Garcia de Araújo e Teresa
Cristina Carreteiro (orgs.) (Co-Fumec)
O que é diagnosticar em psiquiatria, Jorge J Saurí
A constituição do inconsciente em práticas clínica na França do século XIX, Sid-
nei José Cazeto
Narcisismo, superego e o sonhar, IJPA
Psicofarmacologia e p sic a n á lise , M. C ristina R ios M agalhães (org.)
A Escola Livre de Socio lo g ia e P olítica. A nos de F orm ação 1933-1953. De­
poimentos, íris K a n to r, D é b o ra A. M a c ie l, Jú lio A ssis Sim ões (orgs.)
Linha de horizonte - por uma poética do ato criador, Edith Derdyk
Diagnóstico compreensivo simbólico. Uma psicossom ática para a prática clíni­
ca, Susana de Albuquerque Lins Serino
O carvalho e o p in h eiro . F reud e o estilo ro m â n tic o , Ines L o u reiro
O c o n c e ito d e r e p e tiç ã o em F reud, L ucia G rossi dos S an to s (c o -F u m e c )
D rib la n d o a perversão. P sic a n á lise , futebol e subjetividade brasileira, Cláu­
dio Bastidas
O cálculo neurótico do gozo, Christian Ingo Lenz Dunker
Psicanálise e educação. Q uestões do cotidiano, R enate Meyer Sanches
Espinosa. Filosofia prática, Gilles Deleuze
Os gregos e o irracional, E. R. Dodds
Vínculos e instituições. Uma escuta p sicanalítica, Olga B. Ruiz C orrea (org.)
Em torno de O m al-estar na cultura de Freud, Jacques Le Rider, Michel Plon,
Gérard Raulet, Henri Rey-Flaud
Personalidade, ideologia e psicopatologia crítica, Virginia Moreira e Tod Sloan
Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan, Perla Klautau
Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo, Silvia Alonso et.al. (orgs.)
Psicopatologia psicanalítica e outros estudos, IJPA
O gozo en-cena. Sobre o masoquismo e a mulher, Eliane Z. Schermann
Anne D ufounnantelle convida Jacques Derrida a falar Da hospitalidade, Anne
Dufourmantelle/Jacques Derrida
Os rumos da psicanálise no Brasil: um estudo sobre a transmissão psicanalítica,
Eliana Araújo Nogueira do Vale
Psicanálise. E lem entos para a clínica contem porânea, Luís Cláudio Figueiredo
Psicologia do desempenho. Corpo pulsional & corpo mocional, José Luis Moraguès
Memória e exílio, Sybil Safdie Douek
Desafios para a psicanálise contemporânea, Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferra?, (orgs.)
Os caminhos do trauma em N. A braham e Maria Torok, Suzana P. Antunes
Universidade e governo. Professores da Unicamp no período FHC. Mônica Tei­
xeira (org.)
Envelhecer com desenvolvimento pessoal, Ana Maria S. R. Varella
Mudanças no relacionam ento a fetivo -sex u a l, Tânia da G. Nogueira (co-Fumec)
Falar em público. Experiência de mal-estar na trajetória profissional contempo­
rânea, Nazildes Lôbo
TPM - Tensão, paixão e mal-estar. A subjetivação de uma m ulher em tensão
pré-menstrual. Juçara Rocha Soares Mapurunga
Melanie Klein. Estilo e pensamento, M. Elisa de Ulhoa Cintra e Luis Cláudio Fi­
gueiredo
Ética e finitude, Zeljko Loparic
Transferência, contratransferência e outros estudos, IJPA
A form ação do psicólogo, João L. Ferreira Neto (Co-Fumec)
A dominação do corpo no mundo administrado, Conrado Ramos
O analista trabalhando, IJPA
Prostituição: o eterno feminino, Eliana dos Reis Calligaris
Cruzamentos 2. Pensando a violência, Fernando Kunzler e Bárbara Conte (orgs.)
A violência no coração da cidade. Um estudo psicanalítico, Paulo Cesar Endo
Winnicott na clínica e na instituição, Renate Meyer Sanches (org.)
Perversão em cena, Eliane Chermann Kogut
Autoritarismo afetivo. A Prússia como sentimento, Gisálio Cerqueira Filho
Dialética da vertigem. Adorno e a filosofia moral, Douglas Garcia Alves Junior
(co-Fumec)
A festa tecnológica, Glaucia Dunley (Co-Fiocruz)
História da psicanálise. São Paulo 1920-1969, Carmen Lucia M. V. de Oliveira
Memória da língua. Imigração e nacionalidade, Maria Onice Paye
Sobre arte e psicanálise, Tania Rivera e Vladimir Safatle (orgs.)
O sintoma e suas faces, Lucia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)
Controvérsias psicanalíticas, IJPA
T ornar-se herdeiro. A transm issão p síquica entre gerações, T atiana Inglez-
Mazzarella
COLEÇÃO
BIB L IO T EC A DE PSIC O PA T O L O G IA FU NDA M ENTAL
Melancolia, Urania Tourinho Peres (org.)
Histeria, Manoel Tosta Berlinck (org.)
Autismos, Paulina S. Rocha (org.)
Depressão, Pierre Fédida
Pânico e desamparo, Mario Eduardo Costa Pereira
Anorexia e bulimia, Rodolfo Urribarri (org.)
Dor, Manoel Tosta Berlinck (org.)
Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho
Diferenças sexuais, Paulo Roberto Ceccarelli
Os destinos da angústia na psicanálise freudiana, Zeferino Rocha
Hysteria, Christopher Bollas
Psicopatologia fundamental, Manoel Tosta Berlinck
Culpa, Urania T. Peres (org.)
A paixão silenciosa, Maria Helena de Barros e Silva
Clínica da melancolia, Ana Cleide G. M oreira (C o -E d u fp a )
D e p r e s s ã o , e s ta ç ã o psiq u e. Refúgio, espera, encontro, Daniel Delouya
Hipocondria, M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.)
Dos benefícios da depressão. E logio da psicoterapia, Pierre Fédida
Superego, Marta Rezende Cardoso
Angústia, Vera Lopes Besset
Doenças do corpo e doenças da alma, Lazslo A. Ávila.
Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Edilene Freire de Queiroz e Antonio
Ricardo Rodrigues da Silva (orgs.)
Violências, Isabel da Silva Kahn Marin
Psicopatologia dos ataques de pânico, Mário Eduardo Costa Pereira
M asoquismo mortífero e masoquismo guardião da vida, Benno Rosenberg
A bulimia, B. Brusset, C. Couvreur, A. Fine (orgs.)
A neurose obsessiva, Bernard Brusset e Catherine Couvreur (orgs.)
Limites, Marta Rezende Cardoso (org.)
O eu e o corpo, Lazslo A. Ávila
A clínica da perversão, Edilene Freire Queiroz
Psicopatologia e disfunção erétil, Maria Virgínia Filomena Cremasco Grassi
Obsessiva neurose, Manoel T. Berlinck (org.)
Adolescentes, Marta Rezende Cardoso (org.)
Imperativos do supereu, Marta Gerez Ambertín
Traumas, Ana Maria Rudge (org.)
A fenom enologia das psicoses, Arthur Tatossian
C O L E Ç Ã O — IN FÂ N C IA E PSIC A N Á L ISE
Rum o à palavra. Três crianças a u tista s em psicanálise, M.-Christine Laznik-Penot
Sublimação da sexualidade infantil, Paulo A. Buchvitz
A criança e o infantil em psicanálise, Silvia Abu-Jamra Zornig
A história da p sic a n á lise de crianças no B rasil, Jorge Luís Ferreira Abrão
O lugar dos pais na psicanálise de crianças, Ana Maria Sigal de Rosemberg
0 que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição, Leda
Mariza F. Bernardino (org.)
Cata-ventos. Invenções na clínica p sic a n a litic a institucional, Paulina S. Rocha
(org.)
C O L E Ç Ã O — O SE X T O LOBO
Hello Brasil!, Contardo Calligaris
Clínica cio social. Ensaios, Luiz Tarlei de Aragão (org.)
Exílio e tortura, Maren e Marcelo Vinar
Extrasexo. Ensaio sobre o iransexualismo, Catherine Millot
Alcoolismo, delinqüência, toxicomania. Charles Melman
Im igrantes. Incidências s u b je tiv a s das m u d a n ça s de língua e país, Charles
Melman
Fantasia de Brasil, Octavio Souza
Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos, Luis C láudio Figueiredo (Co-
Educ)
A face e o verso. Estudos sobre o hom oerotism o - II, Ju ra n d ir Freire Costa
O que é ser brasileiro? Carmen Backes
C O L E Ç Ã O — EN SA IO S

Merleau-Pontv. Filosofia como corpo e existência, Nelson Coelho Jr. e Paulo Sér­
gio do Carmo
O inconsciente como potência Subversiva, Alfredo Naffah Neto
O pensam ento japonês, Hiroshi Oshima
Comunicação e psicanálise, Jeanne Marie Machado de Freitas
Clarice Lispector. A paixão segundo C.L., Berta Waldmann
A pulsão anarquista, Nathalie Zaltzman
Escutar, recordar, dizer, Luís Cláudio Figueiredo (Co-Educ)
S in to m a so cia l dom inante e m oralização in fa n til, H eloísa F e rn a n d e z (Co-
Edusp)
Na sombra da cidade, Maria Cristina Rios M agalhães (org.)
Estados-da-alma da psicanálise, Jacques Derrida
O vínculo inédito, Radmila Zygouris
Nem todos os caminhos levam a Roma. Radmila Zygouris
CO LEÇÃ O — TÉLOS
Ensaios de clínica psicanalítica, François Perrier
A formação do psicanalista, François Perrier
Afeto e linguagem nos p rim e iro s e sc rito s de Freud, M onique Schneider
Como a interpretação vem ao psicanalista, René Major (org.)
C O L E Ç Ã O — L IN H A S DE FUGA
A invenção do psicológico, Luís Cláudio Mendonça Figueiredo (Co-Educ)
Limiares do contemporâneo, Rogério da Costa (org.)
A psicoterapia em busca de Dioniso, Alfredo Naffah Neto (Co-Educ)
As árvores de conhecimentos, Pierre Lévy e Michel Authier
As pulsões, Arthur Hyppólito de Moura (org.) (Co-Educ)
C O L E Ç Ã O — TRANSVESSAS
O corpo erógeno. Uma introdução a teoria do complexo'e Edipo Serge Ixclaire
C O L E Ç Ã O _ PLETH O !
A palavra in sensata. Poesia c psicanálise, Eliane For.eca
Contratransferência, Suzana Alves Viana
Poética do erótico, Samira Chalhub
A Escola. Um enfoque fenomenológico. Vitória Helen Cunha Espósito
Psicanálise, política, lógica, Célio Garcia
A eternidade da maçã. Freud e a ética, Flávio Carvalb Ferraz
A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia, Ana Mari Loffredo (esg.)
Pacto Re-Velado. Psicanálise e clandestinidade politic, Maria Auxiliadora de Al­
meida Cunha Arantes
A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius, Guaraciah Micheletti
Psiquismo humano, Marco Aurélio Baggio
Semiótica da canção. Melodia e letra, Luiz Tatit
A cientificidade da psicanálise. Popper e. Peirce, Elisabth Saporiti
A força da realidade na clínica freudiana, Nelson Codio Junior
Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia AM uylaert
Crianças na rua. Ana Carmen Martin del Collado
Um olhar no meio do caminho, Sônia Wolf
Os dizeres nas esqiiizofrenias. Uma cartola sem fundoM ariluci Novaes
C O L E Ç Ã O - FIL O S O F IA NO R A S IL
Freud na filosofia brasileira, Leopoldo Fulgencio e Rioard T. Simankc (orgs.)
Kant no Brasil. Daniel Omar Peres (org.)

Título Gozo
Projeto Gráfico Diogo Angelo/.i Rossao
D iagram ação Diogo Angelozi Rossao
Revisão Tereza Cristina P. T eieira
F orm ato 1 4 x 2 1 cm
Tipologia Times New Roman (1,5/12,5)
P apel Cartão Royal 25()g (caa)
Off set 75g (miolo)
Número de páginas 344
Tiragem 1 000
Im pressão Gráfica e Editora Vida: Consciência
Os sucessivos desenvolvimentos
e seus efeitos sobre a teoria do
inconsciente, a sexualidade e
a ética perm item vincular o
gozo a questões tão urgentes
como a drogadiçào, as psicoses,
as form as da angústia
contem porânea e o debate
sobre as perversões.

N é sto r B ra u n s te in é m édico e
psicanalista. Antes de seu exílio
da A rgentina foi professor na
Universidad Nacional de
Córdoba, e atualm ente é
professor na pós-gradução da
Facultad de Psicologia de la
Universidad Nacional
A utónom a de México e
encarregado de um a cadeira
extraordinária na Facultad de
Filosofia y Letra de la UNAM .
É p erm anentem ente convidado
a dar cursos e sem inários sobre
a teoria e a clínica lacaniana
em universidades e instituições
psicanalíticas da América do
Norte, América do Sul, Europa
e Ásia. De sua recente produção
destacam os os livros Ficcionario
de psicoanálisis e Por el caminho
de Freud, ambos publicados
pela Siglo XXI.
Em 1990 foi publicada pela
Siglo XXI a prim eira versão
deste livro. Desde então, ele se
to rn o u a obra de consulta m ais
citada e recom endada para
elucidar as dificuldades do
célebre conceito de Jacques
Lacan, que coroa e dá sentido
ao conjunto do pensam ento
psicanalítico tal como aparece
desde os prim eiros trabalhos
de Sigm und Freud.
Anos m ais tardes, após a
tradução para o francês, o
percurso internacional da obra
fez com que se acrescentassem
com entários, tendo sido
necessárias atualizações
bibliográficas e correções,
além de um a consideração de
novos tem as que não faziam
parte da versão original.
O autor efetuou um a revisão
com pleta do texto e, em seu
conjunto, esta edição
au m entad a pode ser
considerada definitiva.
Entre a satisfação profunda e
a p lenitude sexual, intelectual
ou espiritual, entre o prazer
próprio e o do outro, entre a
proibição e o desejo, as noções
apresentadas em Gozo persistem
na tradição renovadora da
teoria e da clínica psicanalítica.
mÊm
A “diferença ab so lu ta” encontra-se no gozo, na
travessia da angústia e do fantasm a dos perigos
que espreitam no prosseguim ento indefinido e
intransigente do desejo, a transcendência
tam bém do am or com o lugar privilegiado do
reforço da im agem narcísica pelo encontro com
um a “alm a gêm ea”.

0 auto-erotism o conduz por suas vias ao prazer e


este prazer é razão de u m gozo paradoxal, o gozo da
transgressão, dos rem orsos, do castigo im posto pelo
O utro que leva a contabilidade do gozo, que está
preocupado pelo que o sujeito experim enta com
seu corpo, que esgrim e o chicote, a loucura ou as
cham as do inferno como argum entos de sua lei.

... o inconsciente é decifram ento do gozo e seus


produtos são suscetíveis de interpretação. A práxis
da análise consiste em intervir sobre o discurso
desarm ando a tram a de significações para que
aflore esse gozo do decifram ento de u m saber que
não é saber de n inguém do qual alguém , o sujeito,
é o efeito, o filho. Regozijo.

%
escuta

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