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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Letras
Coordenação do Curso de Graduação em Letras
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (GLC)
Língua Portuguesa VII (Turma N1)
Período Letivo Remoto – 2020.2
Resolução nº 197/2020 do Conselho de Ensino, Pesquisa e
Extensão (CEPEx)

Esta compilação foi produzida e gentilmente cedida pela professora Dra. Lygia Maria
Gonçalves Trouche, docente de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da UFF que se aposentou em 2017.

CARACTERÍSTICAS DO PORTUGUÊS ARCAICO


(com base em Sousa da Silveira)

Vimos que a língua portuguesa pode ser dividida, para o seu estudo, em duas grandes fases: a arcaica, desde as
origens até o fim da primeira metade do século XVI, e a moderna, de lá aos nossos dias.
Cabe-nos agora examinar o português arcaico, mostrando as suas características principais e pondo em relevo o
que o distingue do português moderno.

1- Havia a terminação -om correspondente ao latim –one, -on e –unt (verbos): cajom, aqueijom < *accasione,
oqueijom < occasione; nom <non , amárom < amarunt ; e –am resultante de –ane: pam < pane, cam < cane [ “Irmão,
que farias tu ao cam vindo contra ti pera te morder?” Crônica da Ordem dos Frades Menores.]; terminações estas que no
português moderno se converteram em –ão, escrito –am quando desinência átona de verbo: ocasião, não, cão, amarão,
mas amaram, disseram, etc.

2- Subsistia claro o hiato conseqüente a queda de consoante intervocálica, e que mais tarde se fundiu numa só
vogal ou recebeu um fonema de transição: poboo (<populu), hoje povo; caente (< calente), hoje quente; seer (< sedere),
atualmente ser; creo (< credo) depois e agora creio; vio, depois vinho; fiees, adj (< *fees <lat. fideles), depois fieis (fiéis).

3- Ainda soava a nasalidade comunicada por um “n” intervocálico à vogal anterior, e que no português moderno
literário desapareceu, desenvolvendo ou não um som de transição: pessõa ( < persona); area (< arena), depois area,
hoje areia; lua (<luna), atualmente lua etc.

4- Havia as terminações –vil ou –bil, que parecem latinismos, e que foram suplantadas por –vel. Formas
atualmente em uso, como débil, flébil1, núbil,2 são eruditas: basta ver a conservação do “b” intervocálico e o “i” breve
latino representado por “i” em português.

FATOS MORFOLÓGICOS

a) a terminação verbal –om, a que já nos referimos;

1
flébil:
1
◼ adjetivo de dois gêneros
1 que chora ou que é semelhante a um choro; choroso, lacrimoso, plangente
2 Derivação: por extensão de sentido.
sem força ou vigor; débil, enfraquecido, frágil
2
núbil: passível de contrair casamento
b) –des e –de na 2ª pessoa do plural: amades, fazedes, partides, sodes (= sois), amávades (= amáveis),
déssedes (= désseis), dade (= daí);

c) –udo em particípios passados da 2ª conjugação, como perdudo, recebudo;

d) formas verbais foneticamente regulares, como estê (< stem), arço (<ardeoa), som e são
(< sum ), sol (<solet), conhosca (< cognoscat), e outras, substituídas depois por formas analógicas (esteja,
ardo, sou, sói, conheça, etc.);

e) particípio presente em –nte: temente o dia de mia morte )= temendo o dia de minha morte);

f) pretérito perifrástico, formado com o pretérito do verbo ir e o infinitivo do verbo principal: fostes vencer (=
vencestes);

g) certos pronomes que já se não usam, como todo (=tudo), aqueste (=este), aquesse (=esse), ello (êlo), aquello
(aquelo), esto, esso, en, medês, senho (= cada um seu);

h) nomes uniformes em –nte, -or, -ol e –ês como infante (m.f.), senhor (m.f), português (m.f);

i) pronomes átonos como mia escrito (mha), a par de tônicos como minha;

j) plurais como ourívezes, alférezes;

k) em no(s), em na(s), eno(s), expressões resultantes da combinação da preposição em com o artigo definido na
sua forma antiga lo.

Um fato interessante do português arcaico é o subentender-se o verbo auxiliar do futuro ou condicional [ hoje,
futuro do pretérito]: “viver hei se de mim pensar, ou morrer, se mim nom amar”, isto é, “viver hei (=viverei), se em mim
pensar, ou morrer hei (morrerei), se me não amar.”

ARCAISMOS SINTÁTICOS

a) Emprego de pronomes pessoais átonos enclíticos ao futuro e condicional [futuro do pretérito]:


“e direi-vos, fremosa mha senhor,
destes meus olhos a coita que han.” (Guilhade, Cantigas, 32).
“Eu te daria un capon e ua regeuifa e faria-te todo comeer e dar-te-ia en cima ua copa cheia de vinho que
bevesses.”(Crestom. Arcaiaca, 68, apud Nunes).

b) Variabilidade do particípio auxiliado pelo verbo ter ou haver:


“Mui maa cousa avedes feita !”
Ainda em Camões:
“depois de ter pisada ... a areia ardente.”

c) Pleonasmo da negação pré-verbal : “Ora fazede o milhor que poderdes, ca iamais nõ seyredes d’aqui se nõ
mortos!”

Características da sintaxe do português arcaico


(com base em Ismael de Lima Coutinho)

1- Variação do particípio passado junto ao verbo ter e haver: “averás passadas as atribulações”.

2- A preposição “sem” podia reger gerúndio: “sem levando-a”.

3- Usava-se o caso- complemento do pronome pessoal pelo caso-sujeito, e vice-versa: “o coraçom pode mais ca mim”;
“E o senhor disse ... que enforcariam ell”.

4- O artigo precedia a expressão “um e outro”: “a ua ouve nome dona Maria Soarez, a outra ouve nome dona ...”
5- Os verbos de movimento podiam ser seguidos da preposição “em”: “veerom da Gallya Gotica em Espanha”.
6- Empregava-se “home” como sujeito indefinido, com o valor do “on” francês: “home nõ poderia mostrar”.

7- Com o sujeito coletivo do plural, o verbo poderia conservar-se no singular: “hi morreo grandes gentes.”

8- Usava-se “cujo” como interrogativo: “Cuja é esta gloria?”

9- “Se” ou “si” encabeçava frases optativas com valor de “assim”: “si Deus mi perdon.”

10- Empregavam-se duas negativas pré-verbais: “nem nenhum princepe non foi tan poderoso.”

11- Eram freqüentes os pleonasmos: “oje em este dia” ; “boas bondades”.

12- Eram freqüentes os anacolutos: “E o porteiro dei-lhe uma escudella de terra”.

13- “De” aparecia como segundo termo de comparação: “Desej’ eu mui mais doutra rem.”

São ainda características da sintaxe arcaica: o período muito extenso, ligado por conectivos ou particípios; a pontuação
escassa; a colocação das palavras na frase mais livre, predominando a ordem inversa

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