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TEXTOS A regressao a dependéncia e o uso terapéutico da falha do analista Elsa Oliveira Dios A “falha do analista” é uma oportunidade terapéutica especialmente proficua da relacao analitica, no setting sugerido por Winnicott para o tratamento de pacientes que necessitam regredir 4 dependéncia. Em meméria de Amazonas Alves Lima to Tatino-americano sobre 0 pensimento que ilustra o item “A Busca do Self, no quarto de D. W. Winnicott: aspectos técnicos de capitulo de O Brincar e a Realidade (1971/1975). sua obra (outubro de 1993, Montevidéu). © encontro destacou, para discussio, dois casos dinicos de Winnicott: 1. 0 paciente cuja andlise € Q presente artigo foi apresentado no Il Encon- _relatada em Holding € Interpretacao (1991) € 2. 0 caso a ercurso n” 13-2994 TEXTOS SUE 1. A falha do analista ‘Um dos aspectos técnicos mais fecundlos do pensamento de Winnicott consiste no uso do que chamaremos, com ele, a “falha” do analista; estd referido, sobretu- do, as fases de regressto a depen- déncia, no tratamento de pacien- tes fronteirigos. Extremamente rovocante, esse ponto requer ex- plicitacao te6rica complexa, so- bbretudo acerca de dois conceitos intimamente imbricados entre sie ccentfais na sua obra: 1. 0 carter specific do adoecer psicético (que gerou uma nova classifica- ‘Glo das patologias), seja qual for a organizacio patoldgica em que le se manifeste ¢ 2. 2 qualidade peculiar do desenvolvimento ‘emocional, durante 0 periodo de no-integracio. Para a compreensio do pri- meiro conceito, é importante atentar para o modo como Winn coit configura a “natureza” da ferenga entre neurose e psicose. Diz ele: “Afora o estudo de pes- soas sadias, € talvez apenas na psiconeurose € na depressio rea- tiva, que € possfvel se aproximar a doenca verdadeiramente inter- na, a doenga que fiz parte do intolerével conflito que é inerente a vida e ao viver de pessoas intei- ras (wbole persons).” (APM, 124) “Verdadeiramente interna” refere- se a um territ6rio j4 constituido (embora jamais estével a ponto de no poder voltara ser perdido) de ‘onde se pode perceber 0 nao-eu © até desejiclo, ou invefi-lo ou querer destruflo. As neurases, or- ‘ganizadas em solo pulsional, repre~ Sentam um estigio sofisticido do desenvolvimento chegar & fase cedipica com a possibilidade de pa- decer dos afetos e suas sintomato- logias defensivas, em meio a rela- ‘90es interpessouis, significa ter algaco a uma vida’ emocional. na linha da satide, da possivel e pre- ria satide humana. Esse € 0 tesri- 16rio que temsido tradicionalmente campo de interesse analitico: toda a imensa gama de conflitos e for- mages fantasmiticas geradas na uta entre amor € dio, “conflito que 6 inerente 2 vida e ao viver das ‘pessoas inteiras.” (ibidem) Mas, se as categorias analti- cas dlassicas, por se basearem nas neuroses, dio por suposto 0 ter- fit6rio (pulsdes, objetos, desejos), ou seja, uma integracio (mesmo que preciria ou primitiva) num self, 0 que interessa a Winnicott, alento & vacuidade borderline, € (© que acontece antes, ou melhor, (© que no acontece, a ponto de impedir que a integracao seja le- vada a termo. SA0 os buracos des- se nido acontecido que, de forma patol6gica, subjazem muitas ve- zes A organiza¢io neurética que funciona, entao, como coberura defensiva de um vazio radical Segundo Winnicott, esse € 0 ‘aso das psicoses fronteiricas. Eo caso dos dois pacientes cuja and- lise ora destacamos. Foi a expe- ri@ncia analitica com pacientes borderline que the possibilitou aproximar-se do cariter propria- mente psicético das psicoses; ele afirma ter encontrado ai “a opor- n tunidade de observar os delicados fenémenos que apontam para a ‘compreensio dos estados verda- deiramente esquizofrénicos.” (BR, 121) Tratando-se de fronteirigos, sabemos que Winnicott nao iri supor a existéncia (integragao) de um self, que ficou a meio cami- ho, ¢, portanto, nfo tentard en- ‘contrat 0 paciente que ainda no est ld para ser encontrado. Ele também no esperar deparar-se com 0 sofrimento tipico dos con- flitos pulsionais, pertinentes aos afetos. O fronteitigo ficou aguém do que se possa chamar vida psi- quica. Tais pacientes, e 6 essa a caracterfstica da parologia frontei- rica, vivem no modo de uma ndo- existéncia. Uma auséncia pecu- tar, um vazio afetivo permeia sua presenca. Daf a estranheza e per- plexidade que invade o analista ‘ou interlocutor eventual. O indivi duo ‘io apresenta tracos aberta- mente patol6gicos ¢ seus relatés, pertinentes, exibem contatos apa- rentemente bem estabelecidos ou coloridos por conflitos neuréticos triviais. Perpassa-os, contudo, ‘uma inconsisténcia basica, como se nada pudesse ser propriamente real. O mundo est4 fora, como um. filme que mio lhe diz, respeito. Os vineulos, frouxos, externos, du- ram o tempo da presenga concre- ta. Quando muito, server de es- timulo a um fantasiar auténomo, ido € destacado da experién- cia (BR, cap. I). O que parece faltar-ihes € a matéria-prima mes- mo do viver: a possibilidade de deixarem-se afetar pelos aconteci- mentos ¢ de af vincular-se. A que- bra € anterior ao estabelecimento de vinaulos; é relativa 4 propria possibilidade de formé-los. E uma quebra na ordem do ser. paciente cuja andlise € re- Jatada por Winnicott, em Holding ¢ Interpretagao, vive nesse fanta- siar que evita ¢ substioui a realida- de interna; usa a mente, hipertro- fiada e dissociada da experiéncia, Ambito que ele desconhece, A ‘outta (BR, 83) transita entre flashes esparsos e nas citagdes de poetas; twechos soltos de uma vida desco- sida e sem sentido. Ambos prote- ‘gem-se da ameaca, vaga para cles mas que, sabemos, € de vinculos reais, a ameaca de existi. Subme- tem:se, eno, para terem um, 1o- teino, ao que eles recortam como ‘expectativas do ambiente externo € deslancham suas performances para garantie a sobrevivéncia da casca, a partir da qual apresen- tam-se a si mesmos e aos outros. Seguindo Winnicott, € possivel supot a propésito de ambos que, na etapa mais precoce, antes de alcancar 0 lugar (@ reuniio, 0 self desde onde poderiam. sentir-se concemidos, tomnaram-se_pura- ‘mente reativos, controlando 0 pe- rigo das invasbes e dos sobressal- tos. Prematuramente atentos, a mente substituindo o papel do ambiente protetor, eles nao fize- ram a experiéncia de deixar-se estar, de residir, e perderam a aventura de viver. Nao acharam 6 caminho do brincar. 2. O estado de nao-integracao ea psicose A tese que d suporte a essa fenomenologia consiste em que, para Winnicott, as psicoses est0 referidas a um momento de nao- integragio, anterior a reuniio num seff a uma fase de depen- déncia absoluta onde ocorreram falhas de adaptagio no amago da unidade beb@-mie. A gravidade dessas falhas est relacionada a0 fato de que, nese momento, em que 0 bebé ainda ‘nao existe” 36 “existe” na unidade coma mae, estio sendo gestados os funda- mentos, as condigoes de possibi- lidade de ingresso na vida, vida que serd, entio, atravessada de conflitos pulsionais. "Apenas sob certas condigdes, 0 individu pode comecar a existir ¢, a0 fazé-lo, ter experiéncias do id. (PP, 366) A afirmacao de que 0 bebé “no existe” nao é ret6rica nem simbélica. Para Winnicott, 0 exis- tir nfo € dado e nao coincide com © nascimento biol6gico. Na nao- imegracao, 0 beb@ nao tem cu nem nio-cu; nao ha intencionali- dade, objetos ou interesses. Trata- se de um momento préobjetal, pré-pulsional e pré faa a Quando tudo come bem, antes de deparar-se com objetos, valoré- os e usé-los, ele habitaré num. “meio”, numa “ambiéncia’, estard envolvido por uma “certa atmos- fera” € nos “modos de ser" com que € cuidado. Nesse momento, ‘0 que o bebé tem, sim, sto possi- bilidades virtuais (bebé possivel) que requerem. ser atualizadas, “tealizadas”, isto é, ganharem configuraclo € expresso (bebé real): 86 assim ele poder chegar, como diz Heidegger, a ser-no- ‘mundo, isto 6, a existir nas estru- turas fundamentals de tempo espaco, langado no mundo como ser situado € datado, Notemos: abrir-se para o mundo e abrir-se B Para si mesmo, self slo um tinico € mesmo acontecimento. Para tanto, o bebé precisa fazer, com a ajuda da mae, a experiéncia de habitar (presenca, permanéncia, protegio contra invasées, regula” fidade, etc) de modo a vir a ter 0 sentimento de ‘estar em casa’:’ ‘num lugar - mundo e sel/-a partir do qual acolher e deixar-se afetar pelos acontecimentos, lugar onde reunir e guardar as coisas que ‘encontra (BR, 138) na duragio de um tempo continuo (continuida- de, previsibilidade, monotonia, etc) em que uma existencia se desdobra em passado, presente e faturo. Existir (ex-sistere), portanto, $6 se inicia quando 0 bebé, che- gando integracio, que implica no reconhecimento da existéncia separada do ndo-eu e correlativa- mente do eu, alcanga o sentimen- to de ser real de habitar num mundo real. Mas muita coisa tem, que acontecer para o bebé chegar af, “A integragao € uma conquis- ta”, diz Winnicott. Antes. disso, pode-se falar em no-existéncia “Trata-se, portanto, de um momen- to delicadissimo que requer cui- dados especificos. Para fazer essa primeirissima cexperiéncia de habitar ¢ levar a termo a tendéneia virtual 2 inte- ‘grago, esse momento deve po- der ser vivido nas condigoes mes- mas de imaturidade que Ihe sio inerentes, no relaxamento pr6- prio de quem se sente bem sus- tentado e sem nenhuma conscién- cia das condigdes que the propiciam viver nesse estado. Isto 6 € possfvel na presenca de um ambiente facilitador que reconhe- ce, aceita, retine ¢ di suporte a esse estado de nac-integracio, ‘sem apressar-Ihe o-andamento. O processo deve seguir seu préprio ‘curso, tendo garantida e protegida a “continuidade de ser’. “A base para o estabelecimento do ego é ‘um suficiente ‘continuara ser’ que ‘do foi intemompido por reagdes TEXTOS Aiinvasio.” (PP, 496) Isto vale para 0 bebé ¢ vale também para o Paciente fronteirigo que, quando tudo corre bem, e he so ofereci- das as condigdes altamente espe- Gializadas do holding analitico, al- cangara regredir a dependéncia. Cabe & mie “suficientemente boa” propiciar a0 bebé os cuida- dos de sustentag20, de presenca continua e previsivel e de prote- Go contra invasdes. Na satide, isso se di em virtude de que, iddentificada com 0 bebé, a mie é capaz, de uma adaptacio sensivel, ativa e completa as suas necessi- dades. Em seguida, ela prové uma desadapuicio gradual, onde pe- ‘quenas falhas ocorrem na medica mesma da capacidade maturacio- nal crescente do bebé, 0 que sig- nifica que essas falas pertencem a pauta da adaptacio. Mas € preciso notar: a adap- taglo completa nao visa precipua- mente a satisfagio instintiva. “Uma fonte de equivocos é a idéia (que alguns analistas tém) de que (0 termo adaptacio as necessida- des, no tratamento de pacientes fronteirigos € no cuidado do lac- ‘ante, significa satisfazer os impul- s0s do id. Nesta situagio, nto ha a questo de satisfazer ou frustrar 6s impulsos do id. Hé coisas mais importantes acontecendo € estas Slo prover apoio aos processos do ego. E somente sob condigdes de adequacao do ego que os im- pulsos do id, quer satisfeitos ou frustrados, se tornam experiéncias do individuo.” (APM, 217, grifo meu) Antes de haver experiencia satisfat6ria ou frustrante ha que haver experiéncia e, para tanto, algo mais basico esté acontecen- do, A adaptagao absoluta da mae as necessidades do bebé 6 um encontro € esse encontro é funda- mental: € a matriz dos encontros possiveis, o paradigma existencial dos vinculos de que o existir se constitui. Observemos que 0 bebé mesmo nfo se encontra com a mae uma vez que, nesse momen- 10, a mie no existe e nem o bebe existe. Mas o encontrar esti se dando no completar 0 gesto es- Pontneo e no atender 3 sua ne- cessidade “no ponto” (mie sufi- cientemente boa). Sem que o bebé de por isso, estd se criando © sentimento de que 0 nao-eu ‘encontravel, pode ser-Ihe concer- nente ¢ fazer sentido; de que € ossivel um fio de sintonia sobre © fundo da insuperiivel solid’io essencial (NH, 154). Eso sendo plantadas as ratzes da mutualida- de e da possibilidade de comuni- cagio. Nao se deve depreender daf, no entanto, que a mile faz 0 bebé mus, sim, que o bebé depen- de inteiramente da me para che- gar a ser aquilo que ja € enquanto possibilidade. As possibilidades virtuais si0 do bebé mas precisa set atualizadas ¢ isso 86 acontece ‘no encontro com 0 mundo. Isto é, ou a mae, na medida € no ritmo do bebé, tem éxito na tarefa de introduzélo na presenca das coi- 528, no espaco e no tempo do mundo, cuidando de protegé-lo a das invasbes e precocidades, ou 0 bebé fica, por assim dizer, desa- contecido. Ao invés de nascer, enctua. E no vazio do nao acon- tecido que o fronteitigo orbita, sem tempo € sem lugar. Pode, portanto, haver desen- contro. Pode ser que a mile no seja capaz de sintonizar, desde o fntimo, a necessidade existencial do bebé. Talvez. ela niio consiga criar 0 “entre”, a botha de intimi- dade ¢ protecdo onde se gesta, na ilusdo da onipoténcta, 0 senti- mento de que é possivel encon- tar ¢ significar 0 mundo que vai servirlhe de morada. Ela talvez no possa suportar a amorfia da nao-integragao que a relembra do seu proprio desamparo escondi- do e recoberto pelas tarefas adul- tas. E, assim, ndo ha encontro. Essa mae, mais zelosa do seu pa- pel de mae do que de seu bebé, pode enfiarthe alimento emundo ‘oela abaixo. Se pudesse abrir 0 “entre” e ensaiar 2 possibilidade do encontro, ela saberia que 0 bebé necesita que o mundo Ihe seja apresentado a conta-gotas, na sua medida e ritmo e, sobretudo, tera oportunidade de criar omun- do que encontras habitar no para- doxo, Precisa também de cuida- dos referidos a ele, € nao 20 género bebé. Necessita que ela suporte e dé sustentacio para os avan¢os e para os recuos, Recuar significa que o bebé, as vezes, sente necessidade de momer um pouquinho e defxar-se estar num lugar ao qual a mae nfo tem aacesso: "No centro de cada pessoa bd um elemento nao comunicivel € isto € sagrado € merece ser preservado.” (APM, 170) Pela ilusao da onipoténcia, 0 bebé € introduzido, impercepti- velmente, no ambito aberto. do mundo. E-the permitido um tem- po em que ele esta desincumbido a tarefa de separartu do nao-eu, protegido da consciéncia prema- tura da externalidade do mundo. Uma exposigio precoce & exter- nalidade invade e aniquila e, nes- Se5 casos, 0 no-eu pode ficar definitivamente indspito, etemna- mente estrangeiro e incridvel porque jé pronto na sua bruta externalidade. No inicio, fora do ambito da ilusio origindtia, o que se dt invasdo e desencontro. A invasio quebra a continuidade de ser: algo extravaza da possibilidade do bebé ou simplesmente nao acontece. © bebé faz: 0 gesto que Ihe vem do impulso momentineo endo acha nada, nada Ihe vem ao encontro. Ou ele € cuidado por uma mae que faz (que produz quidados) € nao por uma que € cuidadosa. Ou ainda, tudo Ihe é dado em demasia, para fora de sua real preciso. Aprende, entio, a ter aquelas necessidades que do a mie a sensacio de estar viva € atuante, Nesses casos, € 0 bebé que se encarrega de manter a mie "viva", Se isso se torna o padrao de conduta ambiental, pode haver recuo dramatico ‘como no autismo ou recuo defen- sive com formagio de couraga externa de submissio, (fako self patol6gico) que simula vinculos, como nos fronteirigos. Imimeros Sio 0s matizes de falhas dessa relagio primeira que constrangem © bebé a porse alera antes do tempo, desviado de si, interrom- pido na sua continuidade de ser © ocupado no controle do am- biente, precocemente exposto exterioridade do mundo e & ta- refa de existir. Hé, assim, aqueles que nao chegam a nascer e permanecem ‘num tempo anterior ao tempo do mundo. Um tempo onde 0 ho- ‘mem “privado do dom de residir, hhabita na eternidade de um pre- sente vazio e sem movimento, ‘onde no ha mais acontecimen- tos."" Nessa situacio, diz Winni- cot, “esttio todos os pacientes cuja andlise deve lidar com os estigios primitivos do desenvolvi- mento emocional, antes ¢ até o estabelecimento da personalida- de como entidade e antes da aqui- sicdo do status de unidade espa- go-tempo.” (PP, 460) ‘A falha em fornecer a matriz dos vinculos ¢ do habitar pode fazer um buraco no tecido da continuidade de ser € 0 bebé cai fora do caminho que o levaria 2 integragio. Ele no cai no mundo; cai fora. Perambula num deserto sem referéncias, sem familiarida- de possivel. Tenta abrigar-se numa estreiteza qualquer que lhe parega aconchego, ou numa rede de nexos mentais, teéricos, num atropelo de pensamentos; vive, no entanto, extraviado do viver, exilado de simesmo e do mundo, permanentemente estrangeiro. Nao sabe habitar. Enem ao menos pode siber 0 que houve, ou nao houve, porque, nao-nascido, ele nto estava Id para que algo acon- tecesse. A fala que o habita, como um vazio sem forma, esti, surpreendentemente, fora do psi- quismo. Assim descreve Pontalis, pelo negativo, o paradoxo central da falha no experenciada: algo teve lugar sem encontrar seu lu- ‘gar psiquico; nao esta depositado 6 em parte alguma. Nao € um trau- matismo entetrado na meméria, qualquer que seja a profundidade com que se © postule. Nao € igualmente, o reprimido no senti- do de um trago que estaria inscrito num sistema relativamente auto- * nomo do aparelho psiquico. Falar mesmo de dlivagem, com aquilo que a nocao implica de um ele- mento interno irredutivel seria, a meu ver, errneo.”? Essa € a ago- nia impensivel de “cair para sem- Pre” que subjaz as organizagdes Psicéticas: cair fora da casa do mundo, exilado do lugar onde se pode habitar na presenca e na familiaridade das coisas, na repe- cotidiana e asseguradora tradigio, concemnido e atingido pelos acontecimentos; lugar onde se vai urdindo 0 destino em his- t6rias, vida que pode ser contada, sentida © projetada. Apatrida, 0 cexilado da vida diria como o semi- heterdnimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares: "Sou os arredo- res de uma vila que nao ha, o comentador prolixo a um livro que se nao escreveu. N4o sou ninguém, ninguém. Nao sei sentir, no sei pensar, ndo sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, € des- feita sem ter sido, entre os sonhos de quem me nao soube comple- tar.” Diz Winnicott: “Os psicéticos sio portadores de distirbios deri- vados de um estigio ainda mais precoce € basico. Suas dificulda- des e problemas sio especialmen- te aflitivos. Por no serem inere: tes, ndo fazem parte da vida, e sim a luta para aleancar a vida. O tratamento bem sucedido de um psicético permite que o paciente ‘comece a viver € comece a expe- rimentar as dificuldades inerentes a vida.” (NH, 100, grifo meu). Para alguns, no entanto, resi- dir no mundo, acreditando na sua realidade, ¢ deixar-se ser, tornou- se demasiadamente longinquo. ‘Assim com 0 paciente de Holding TEXTOS € Interpretagiio. Ele era capaz, as vezes, de deixar-se cuidar por Winnicott © entregar-se 2 depen- déncia, mas isso rapidamente se desvanecia, Para ele, que 56 podia viver na rota do script ambiental, © estado de mio-orientagio e amorfia da nio-integracio eram terrorificos. Seu principal recurso defensivo era o retraimento no sono. No excelente preficio a0 livro, diz Masud Khan: “Desde o inicio, Winnicott tinha conscién- cia de que toda forma de falar € relatar do paciente encerrava uma reago terapéutica negativa. O pa- ciente da seu proprio diagnéstico: ‘Nunca me tornei humano. Perdi essa experigncia\(HI, 107) ¢, ‘re- sumindo, meu problema é como encontrar uma luta que nunca houve. CHI, 185). Winnicott nao se deixou intimidar. Muito menos tentou a cura.” (HI, 16) Nao tentar a cura €a sabedo- tia clinica de Winnicott. Talvez exatamente af residisse a falha original e insuperivel: uma mie que impelia o filho a manter-se vivo, sempre, a qualquer preco. Mas isso nao significa que Winni- Cott no usasse 0s recursos de que dispunha. Ele estende, disponi- vel, 0 chao sobre o qual um nas- cimento pudesse, porventura, vir @ acontecer, ou para ao menos ‘manter © paciente vivendo na es- treita abertura que the era possi- vel. Winnicott fornece holding para que 0 paciente dele faa uso quando e como possa. ‘Com relacao ao fornecimento de holding, no setting analitico, hhdum detalhe que merece exame: © holding € continuidade de cui- dados, suporte, sustentaclo. Mas hf as falhas, porque sempre ha falhas. Winnicott notou que pa- cientes regredidos aproveitavam exatamente as falhas para avan- {G08 no proceso de maturacao. Essas falhas repetiam, sim, a inva- so inicial. Mas agora, revividas, configuradas e sustentadas na re- lagio analitica, podiam propria ‘mente acontecer € passar a fazer parte do psiquismo, 3. Suporte para a nio- integraco ¢ aproveitamento da falha do analista Em virtude do acima exposto, e tratando-se de pacientes frontei- erhe a pee a ait cries ‘2 eee a aH a: rigos em regresstio a dependén- cia, temos uma questio para a fungio da andlise: no ha como retragar ou re-significar uma his- t6ria que mio se deu nem como analisar a qualidade libidinal de vinaulos que nao existem a no ser como amemedos de vinculos, extemnos, artificiais, capas produ- zidas para encobrir um campo interno vazio. Dessa perspectiva, aa relaglo analitica teri que priv legiar uma outra fungao do que aquela para a qual foi original- ‘mente concebida (a interpretagio de conflitos pulsionais). O analis- ta terd que estar atento uma vez que o fundo de estranhamento € vacuidade esta recoberto por uma 76 organizagao psiconeurética ou ‘um distirbio psicossomitico. “Em tais casos, o psicanalista pode ser conivente, durante anos, com a necessidade do paciente de ser psiconeurético (em oposicao a Jouco) € de ser tratado como tal. A andlise vai bem ¢ todos mani- festam satisfaco. O Gnico incon- veniente esti em que a andlise jamais termina. Pode ser conclui- dae 0 paciente pode mesmo mo- bilizar um falso eu (sel) psiconeu- r6tico para finalizar o tratamento expressar gratidao. De fato, po- rém, ele sabe que no houve al- teracao no estado (psicstico) sub- jacente e que analista ¢ paciente tiveram éxito em conluiar-se para Pprovocar um fracasso.” (BR, 122) Com pacientes borderline, portanto, se quer chegar ao fundo, a regressio € necesséria. (APM, 149) E nao € verdade que os clini- camente regredidos sejam os mais doentes. Talvez: seja mais dificil a tarefa de lidar com pacientes psicé- ticos em estado de fuga para a sanidade (PP, 471), comoera o.caso do paciente anteriormente mencio- ‘nado. Contudo, em geral, seo ana- lista fornece as condigdes requeri- das, 0 paciente fronteirigo “atravessa gradativamente as bar- reiras que denominei técnica do analista e atitude profissional e for a um relacionamento direto de tipo primitivo chegando até o limite da fusito.” (APM, 150) A regresstio 2. dependéncia “representa a esperanca do indivi- duo psicstico de que certos as- pectos do ambiente, que fatharam originalmente, possam ser revivi- dos, com 0 ambiente desta vez tendo éxito ao invés de falhar na sua fungio de favorecer a tendén- cia herdada do individuo de se desenvolver ¢ amadurecer.” (APM, 117) Mas, o que é que o paciente busca repetir,reviver, re- cordar? Nao € possivel resgatar algo que ainda nao aconteceu e “essa coisa do passado ainda nao aconteceu porque o paciente nto estava ali para que acontecesse.” (Ex, I, 117) A fatha, 0 colapso, deu-se fora do psiquismo, num ‘sem lugar’, ‘sem tempo’, 'sem for- mua’ ¢ no pode pertencer ao pas- sado a menos que possa ser ex- perenciada pela primeira vez no presente. “Para entender isto é preciso pensar, no em um trau- ma, mas em que nada aconteceu quando algo deveria ter aconteci- do.” Ex, I, 119, grifo meu) F esta a razio de o que se deu no perfo- do de nao-integracio nao ter como ser resgatado, ao modo de uma lembranga esquecida ou des- figurada nos viezes do incons- Gente, nas formas cléssicas da transferéncia. Nessas situagdes de regres- Slo, quase tudo o que esté ocor- rendo de importante se di no pré-verbal e ha af um desafio para © analista: ele precisa saber tudo © que se refere 2 interpretagdes relativas ao material apresentado, mas “deve ser capaz de se conter para no ser desviado para essa funcao, que seria inapropriada, porque a necessidade principal é a de apoio simples 20 ego, ou de holding. Esse holding, como a tarefa da mae no cuidado do bebé, reconhece tacitamente a tendéncia do paciente a se desin- tegrar, a cessar de exist, a cair para sempre.” (APM, 217) De extrema importncia, a refa analitica 6 por-via da manu- tengo cuidadosa da continuida- de previsfvel e regular do setting, Griar as condigdes para que uma falha do analista seja sentida ‘como tal, como falha do ambien- te, Note-se que “falha", aqui, deve ser entendida estritamente com relagio a necessidade do paciente ‘que se permite estar, sem dar por isso, dependente e fundido com © analista: qualquer movimento deste para fora da Grbita de oni- poténcia do individuo e que reve- Je a sua (do analista) existéncia separada podera ser sentido como falha. E seri essa a ocasiao ta sates aoe: para aquela falha, sofrida mas nao experimentada no periodo de nao-integracao, ganhar um con- texto, uma configuracio, aconte- cer enfim, ¢, reconhecida pelo aanalista, tornarse uma experién- cia do individuo. A esse respeito, relata Winnicott referindo-se a ‘uma paciente: Ela “sempre sentiu horror (awful) mas durante um quanto de hora sentiu horror por algo.” CEx, I, 165). Quando. as falhas do analista sio eventuais © nao tém um padrio fixo proprio, © paciente sofrera aquela que cor- responde @ pauta segundo a qual © proprio ambiente do paciente falhou a este, numa etapa signifi- cativa. (Bx, T, 200) Mas, para que o paciente ouse aproximar-se do vazio amor- fo que o habita sem lugar proprio, ha que se tecer, antes, a casa: uma base muito firme de confiabilida- de feita dos cuidados basicos de permanéncia, regularidade, sim- plicidade, monotonia, isto é, esta- belecer a ilusto da onipoténcia sobre cujo chio, bem assentado, a falha, a desilusio configurada, possa Ser experimentada, sofrida € suportada. A partir dai, ¢ bem 7 amparado, o paciente pode iniciar © processo de repudiar (destruir) © analista camo objeto subjetivo, lancando-o fora de sua zona de onipoténcia; pode comecar a ter senlimentos © nao apenas estar mergulhado em sensagbes; 4° pode sentir falta de algo,:€ no, apenas, 0 vazio de tido; jé pode softer frustracao e édio e nao mais aniquilamento. Diz, Winnicott, re- ferindo-se a outra paciente: "Mi- nha tarefa consistia, em primeiro lugar, em cooperar com seu pro- e550 de idealizaco a meu respei- ‘0 ¢ depois compantlhar o peso da responsabilidade pela quebra dessa idealizacao, na raiz de seu 6dio.” (Ex, I, 165). Nas condigoes altamente especializadas do. set- tinganalitico, e apés haver-se es- tabelecido firmemente a confiabi- lidade, a falha pode acontecer € dar cidadania a0 6dio. “Na recu- peragao da situagio original de fracasso, quando a situago con- gelada de fracasso descongela, o individuo pode, pela primeira vez, sentir-se fiustrado e desen- volver defesas mais complexas, assim como experimentar firia ou ira, exatamente contra o fracasso.” (GE, 54) E ainda: "... essas falhas produzem raiva, © que € valioso, Porque essa raiva traz 0 passado para o presente. No momento da falha (ou falha relativa) inicial, a organizagio egéica do bebé nao estava suficientemente preparada para uma coisa tio complexa como a de sentir raiva acerca de uma quesizio concreta.” (EX, I, 306, grifo meu). apenas na regressao a de- pendéncia que a necessidade do paciente de experienciar 0 vazio, © no-acontecido, a decepeio, pode emergir ¢ ter lugar. E 36 dentro do suporte do analista que a falha ter essa funcio € essa importancia. Winnicott relata como seria, se fosse verbal, a de- manda de um paciente que se vé prestes a entrar em. regressio 3 dependéncia: “Ja € hora de voce EMS se decidir; ou vai até o final ou se retira. No me importa que me diga agora que niio esti em condigbes de fazé-lo, mas se continua avan- gando eu Ihe entregarei algo que € ‘muito meu e me tomarei perigosa- ‘mente dependente de vocé ¢ seus erres terdo uma enorme impontan- cia” (Ex, 1,124, grifo meu). O destaque a essa questo nao nos deve levar a pensar que, no rato do fronteirigo, Winnicott aconselha, 20 analista, programar falhas, Tanto na adaptagio como na desadaptagio, no ert ou no acerto, qualquer mecanicismo ma- Jogra na tarefa de introduzir bebe ‘ou paciente no mundo humano. Do mesmo modo que a mie ‘sufl- entemente boa”, 0 analista falhara pelo simples fato de ser humano de as necessidaces do paciente, assim como as do bebé, serem, por assim dizer, “inumanas’. ‘Trata-se de estar atento e usar analiticamen- tea situagio. Uma das ocasiées mais fre- glientes de falha, refere-se a sem- _po: em virtude do préprio cansago decomrente do cariter absorvente da adaptaglo completa e sentin- dose chamados por outros inte- esses, mie ou analista superesti- ‘mam os progressos do bebé ou do paciente e antecipam possibilida des ainda mio estabelecidas. © paciente sente-se sobrecarregado, lo visto e, de novo, seu “ali estar” constiti-se num peso do qual ele mesino e quem o cuida quer se livrar. O recuo € ineviti- vel. Temos muita sorte quando © paciente pode avangar do retrai- mento para a regressio € entre- ‘garse, em dependéncia, aos nos- 0s cuidados. (PP, 427) Na regressio 3 dependénci pisamos num terreno extrema- mente frdgil: h4 grandes riscos envolvidos mas eles tém que ser corridos. "Nos casos graves, tudo © que importa e € real, pessoal, original ¢ criativo, permanece oaulto ¢ nio manifesta qualquer sinal de existéncia, Nesse caso fextremo, 0 individuo nao se im- portatia de viver ou morrer.” (BR, 99) Circunléquios infindaveis, compulsto de analisar tudo, re- taimentos, ¢, sobretudo, aquilo ‘que Freud denominou resisténcia terapéutica negativa so, em ge- ral, entendidos como resisténcia a prOptia relagio e/ou aun contet- do pulsional indesefivel. Freud surpreendeu-se ao darse conta de que 0 paciente lutava contra a ‘cura, € s6 entao pode configurar © mecanismo de resisténcia. Se Jevarmos isto até o final, veremos que a resisténcia pode estar sedia- da numa recusa ainda mais basi- ‘a, esem contetido, recusa a qual- quer possibilidade de ser, de existir.-*Nao me faga querer Ser.’ dizia uma paciente de Winnicott, citando 0 poeta Hopkins. Um ouco antes, na sessio, ela disse- a: - “Tenho as vezes a sensacio de que nasci... Se no tivesse acontecido! Isso me vem; nto é ‘comoa depressio.” Winnicott diz: = "Se voct tivesse podido nao existir de modo algum teria sido bom.” Ela: - ‘Mas o que € tio hortivel € a existéncia negadal Nunca houve uma época em que eu pensasse: que coisa boa ter nascido! Tenho sempre presente que teria sido melhor se eu nao tivesse nascido, mas quem sabe? Poderia ser, no sei. E uma ques- Go: quando nao se nasce nada existe também, ou ha uma alma- zinha esperando para aparecer num compo?” (BR, 89). £ apenas com a permissio co supoite para ndo-ser que o exis- tirpode comecara ser possivel. “f apenas da nao-existéncia que a existéncia pode comecar.”, diz Winnicott. (Ex, I, 120). Tal como na aceitagao ¢ suporte da mile a0 estado de nao-integrado do bebé. Talvez, a falha maior do analista, esses casos, seja uma incapaci- dade de suportar (@ até de atinar com) a negatividade que desfaz toda realidade e uma impaciéncia para introduzir o paciente na exis- B (éncia, na positividade da vida onde as coisas acontecem. A con- fiabilidade do seating pode ajudar © paciente a querer ser, mas ele precisa confiar em que pode re- ‘quar e, de vez em quando, deixar de existir; ele necessita saber que © analista suporta esse retorno 2 naio-existéncia, ao estado nao-in- tegrado, amorfo, da completa de- pendéncia. “O sentimento do eu (self surge na base de um estado nao-integrado que, contudo, por definigio, nao é observado e re- cordado pelo individuo e que se perde, a menos que seja observa- do e espelhado de volta por al- guém em quem se confia, que justifica a confianga e atende 4 dependéncia.” BR, 88). NoTAs 1 Asis ants do ule ds brad Wraicot (Gd abt form i pce re ined dos ctugdes, no corpo do tx, Squads timeros lapis Ape ats ‘edo lies, nique 9 ano spb ‘Seo origina Serpe que po, compe {= unducoos brsberas com os args ‘fando neceso,proell a coreyies Qe to foram exlctamerar dss 1S WNNIGOTT, Deel W (PP) Da Peder a ‘Prcanalo Tar slactatoe Rod hor Fanasco ates, 17/1858 AN Abmy 0 Ambiente €or Procesor de Max SF Arce Medien, 5 IR) 0 Brncar wa Rada, St, Palo Tago, 1979/1971 4 SNE Hatt © imerrtag, to, Pais Martins Fonte, 191/197, UGE) 0 Ges gon, So Pls Manis Fonte, 990/987 6 Gu) tree Hamana, R de janet, Tes, 1951588 7 — the AploracionesPcoonalicr Boenos ‘Arc Pais, 1991/1989 en Paclous Pro: Fa 2. PASANHA, J. 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