Artigo - O inimigo da mídia brasileira agora é outro
A relação entre meios de comunicação de massa no Brasil e disputas
políticas pelo poder é bastante explorada pela literatura existente. Sabe-se, por exemplo, que a hegemonia política e econômica da Rede Globo se deu a partir da sua relação com o governo ditatorial de 1964, sendo de conhecimento público o apoio da emissora ao regime (motivo de pedidos de desculpas recentes, que convenceu alguns e outros não). Tendo início com a criação do jornal O Globo em 1925, com força ainda inexpressiva, o conglomerado da Globo tem sua história de sucesso iniciada após a obtenção da concessão para operar a emissora de televisão, garantida em 1957 (apenas em 1965 foram iniciadas as primeiras transmissões). Contudo, o avanço do seu poder econômico e sua primazia como maior conglomerado de mídia do país foi possível devido a investimentos que burlavam a legislação brasileira. No início, as operações da TV Globo receberam apoio técnico e econômico do grupo estadunidense Time Life, ultrapassando a permissão de participação de capital estrangeiro em grupos de mídia do país. O acordo foi encerrado em 1969, mas foi decisivo para que a emissora se destacasse tecnicamente das outras concorrentes brasileiras. Depois disso, sucessivos acontecimentos marcam historicamente a relação estreita entre televisão e política. Entre os episódios mais conhecidos está o de janeiro de 1984, quando no dia 25 o Jornal Nacional enganou o telespectador dizendo que as pessoas estavam nas ruas da Praça da Sé, em São Paulo, comemorando o aniversário da cidade. Na verdade, os cidadãos estavam lá para exigir eleições diretas para a presidência da república. Cinco anos depois, nas eleições para presidente de 1989, a Globo entra novamente em cena apoiando a candidatura de Collor e fazendo uma campanha desfavorável a Lula. Apoio esse que foi admitido pelo próprio dono Roberto Marinho, numa entrevista com Hélio Contreiras no Jornal da Tarde em 1993. E como não falar do que aconteceu entre 2013 e 2016, período em que começaram as primeiras manifestações contrária ao governo Dilma que culminou no impeachment? Também foi evidente a atuação que o Jornal Nacional teve na construção de uma agenda anti-petista e pró lava jato (que influenciou o levante do discurso contra a corrupção e a favor dos cidadãos de bem). Tudo isso levou, inclusive, ao fortalecimento da extrema-direita bolsonarista e fascista. Não podemos ignorar a “culpa” que a grande mídia teve nesse processo. O que vemos agora desde a campanha e eleição de Jair Bolsonaro para presidente é a transparente troca de farpas entre a emissora e o político alinhado com posições conservadoras e fascistas (que fogem do padrão “liberal” da Rede Globo). O Jornal Nacional tem sido emblemático nas coberturas que podem desfavorecer o presidente (como ocorreu no caso Queiroz: uma cobertura intensa da descoberta de onde estava um dos protagonistas do escândalo da rachadinha, em comparação à ínfima atenção que a Record deu ao caso). Também têm sido consideráveis os comentários e expressões visuais de indignação dos âncoras em relação às polêmicas insanas nas quais o presidente se envolve. Apesar de parecer uma postura de boa intenção em relação à democracia, o posicionamento da Rede Globo sobre o governo Bolsonaro envolve disputas mais complexas. Podemos citar, por exemplo, a “campanha” difamatória que o presidente e seus apoiadores movem contra a emissora, seus jornais e jornalistas. Uma campanha que faz parte, obviamente, da estratégia da extrema direita de minar e descredibilizar qualquer voz e posição contrárias a suas opiniões e intenções políticas (absurdas, diga-se de passagem). Essa aversão à rede Globo por parte dos bolsonaristas, portanto, pode justificar o posicionamento contrário do grupo ao presidente. Como parte disso, há a questão da concessão pública da emissora, que foi diversas vezes citada por Bolsonaro em tom de ameaça a sua não renovação. A concessão pública das televisões no Brasil é uma moeda política e isso é atestado pela história. Fato, aliás, que impede uma regulamentação democrática dos meios de comunicação, tema que quando pautado pelos governos petistas sofreu forte distorção dos próprios meios de comunicação, entre eles a Rede Globo. A grande questão é: o que vemos no país não é apenas uma simples tomada de posição ética por parte da Globo, mas implica diversas relações políticas que se dão por conta do modelo de comunicação instituído no Brasil. Devemos ter em mente que enquanto prevalecer o modelo comercial de mídia no país, sem uma regulamentação que dê mais poder ao cidadão de interferir naquele conteúdo e menos poder aos políticos e anunciantes (os primeiros, em relação às concessões e subornos; os segundos, que interferem em muitos aspectos editoriais devido à dependência dos veículos da receita publicitária), a mídia estará sujeita a atender a interesses privados (políticos ou econômicos). A consequência direta disso é que a democracia do país fica à mercê dos grupos políticos que, mesmo com posicionamentos um pouco divergentes entre si, são unânimes em não se unirem para promover uma regulamentação democrática da mídia. Quando olhamos para o novo contexto da Internet, vemos um outro impasse: a desinformação online é possível porque as redes sociais funcionam com base em algoritmos e não filtram conteúdos; robôs são utilizados para criar falsos engajamentos em postagens não verdadeiras que chegam até o internauta de carne e osso; o impacto é imediato, porque as pessoas compartilham aquilo que reforça suas crenças, suas ideias, suas paixões e ódios. Como tudo é muito novo, lentamente algumas regras vão sendo juridicamente estabelecidas para frear a utilização dessas plataformas por políticos populistas oportunistas, como ocorreu a partir de 2019 no Brasil, após as primeiras denúncias sobre o uso do Whatsapp para disseminação de fake news e o favorecimento de candidatos nas eleições presidenciais (indicamos aqui a leitura do livro A Máquina do Ódio (2020), de Patrícia Campos Mello). Mas como será feito esse controle? Essa é ainda uma incógnita. Portanto, vivemos, no caso específico brasileiro, um cenário em que ambos os espaços públicos (os meios de comunicação tradicionais e o novo espaço online) sofrem com a interferência política daqueles que, no fundo, não defendem a democracia. Claro que num contexto de governo fascista com uma iminente possibilidade de golpe antidemocrático, ficamos do lado dos meios de comunicação que defendem a liberdade de imprensa, de expressão e o livre exercício do jornalismo. Reconhecemos a importância que o telejornalismo do Jornal Nacional, por exemplo, tem exercido no sentido de dar voz à ciência, à defesa da vacina, à defesa dos protocolos de cuidados com a Covid-19, de proteção, inclusive, das vítimas da pandemia que são desrespeitadas pelo presidente. Tendo em vista que a televisão ainda é um dos veículos preferidos dos brasileiros (presente na vida de 95% dos brasileiros entrevistados pela Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016) e trabalha com o componente visual, essa atuação é extremamente importante para combater informações não verdadeiras. O telejornalismo pode, de fato, ser aliado no combate às fake news, ou seu inimigo, já que um mau telejornalismo pressupõe a falta de checagem, a prioridade do ao vivo, a superficialidade nos assuntos abordados, a preferência à sensacionalização das imagens e a inclinação às polêmicas ao invés do debate sério. É necessário, portanto, defender o bom jornalismo, feito com responsabilidade, ética e critérios verdadeiramente democráticos. A liberdade de imprensa é, portanto, a defesa da democracia, tão ameaçada em tempos de pós- verdades. Mas não podemos esquecer também de criticar o cinismo que muitas vezes acomete o discurso da liberdade de imprensa e de expressão, quando ele é levantado apenas quando convém aos interesses dos veículos. Existe, portanto, um paradoxo no contexto em que vivemos, que levanta aquela necessidade já conhecida por estudiosos da área da comunicação de discutirmos novos modelos de jornalismo. Diante do desafio de ser a principal ferramenta capaz de frear o avanço do negacionismo, das fake news, pós-verdades e desinformação, o jornalismo se vê diante da necessidade de repensar a si mesmo. Por isso, a mobilização deve ser conjunta: profissionais da mídia, obviamente, mas também acadêmicos, estudiosos, pesquisadores, ou mesmo políticos que defendam o jornalismo democrático. Não precisamos nem nos esforçar muito para identificarmos quem é o novo inimigo da democracia brasileira (e da mídia). E vemos que os nossos meios de comunicação tiveram um papel também central no fortalecimento desse inimigo, que ocupa o cargo de presidente da república. O que a Rede Globo faz, agora, é tentar reverter esse processo que ajudou a iniciar. Um processo de enfraquecimento da democracia, das instituições e mesmo do bom-senso. Isso se faz, claro, com a defesa dos princípios tradicionais da deontologia jornalística. Mas também com a autocrítica em relação à postura que os meios de comunicação têm tomado na história política do país. É mais do que urgente a defesa de uma comunicação e um jornalismo democráticos e, para isso, é necessário, também, defender o caráter público dessa comunicação. Ensaio - Precisamos salvar a comunicação
O sociólogo francês Dominique Wolton inspirou o título desse ensaio. É
preciso salvar a comunicação (2006) é uma das suas obras que mostra como a ideologia tecnicista - a defesa indiscriminada no poder da tecnologia e sua autossuficiência - é prejudicial para a comunicação e o conhecimento. Escolhi esse gancho porque acredito que nada ilustra tão bem a situação que vivemos hoje no mundo: a tecnologia mostra que é falha e precisa de controle e seres humanos com boas intenções para operá-la. Líderes populistas e fascistas do mundo todo já mostraram como ela pode ser usada para defender ideias insanas e antidemocráticas. De que adianta, portanto, tanta facilidade de informação, se ela é cada vez mais superficial, inconsistente e não filtrada? Trazendo para nossa realidade brasileira, se antes nosso grande desafio como defensores de uma boa comunicação era a falta de regulamentação democrática dos meios de massa (televisão, rádio, jornais), hoje temos que nos preocupar com a epidemia da desinformação online. Apesar dos novos problemas, os protagonistas são antigos. Antigos e nada compatíveis com aquele discurso de “nova política”, que levou ao poder um fascista nos moldes tropicais. São principalmente esses novos fascistas os que se apropriam do poder por meio de fake news. Sugam a sanidade de brasileiros que, muitos ingênuos e desinformados (sim, existem aqueles que têm pouco acesso à informação), acreditam em notícias irreais, negacionistas e difamatórias. Claro que existem também os que vestem a capa do cinismo, mesmo tendo acesso à educação e conhecimento, e contribuem com esse sistema de ódio e aniquilação da verdade. São esses - os verdes e amarelos que vão às ruas nos bairros nobres em defesa do autocrata presidente - que fazem de tudo para defender seus interesses de classe, até tapar os olhos para as evidências. Digo que são cínicos para não dizer que são burros. O fenômeno bolsonarista levanta pelo menos duas questões: uma diz respeito ao egoísmo que toma conta dos que não entendem política como troca coletiva, alteridades, respeito às diferenças e igualdade (que achávamos estarem extintos, mas deram as caras com o levante da extrema-direita); e outra diz respeito à comunicação, que já estava prejudicada estando nas mãos de grupos jornalísticos controlados por famílias, políticos e pessoas de elite, e agora está sendo minada pelo avanço desenfreado da tecnologia e seu uso por fascistas. É extremamente urgente, portanto, pensarmos a comunicação e a necessidade de seres humanos conscientes nesse processo. Uma opinião bastante recorrente nos dias de hoje é que com a Internet a comunicação é mais livre, mais aberta, as pessoas possuem mais poder de expressão e interferência nas questões públicas. Mas será que é mesmo assim? O que vejo é que essa liberdade dá sinais de sua limitação. O ambiente online é dominado pelos algoritmos e são eles que colocam por terra a ideia de que a internet é por excelência um instrumento a favor da democracia. Há, claro, avanços consideráveis quando pensamos que ela permitiu que mais pessoas pudessem se tornar produtoras de conteúdo, pautando o debate público, mas, por si só, ela não garante o pleno funcionamento democrático. Fake news, pós-verdades, desinformação: tudo isso é consequência dessa falta de controle que temos sobre essa ferramenta tecnológica. Temos muita facilidade técnica, rapidez no fluxo da informação, acesso rápido a qualquer tipo de conteúdo. Mas a compreensão, o diálogo, a alteridade, o conhecimento aprofundado e sistemático estão perdidos no meio dessa desordem informacional. E se as pessoas se mobilizam em prol do jornalismo profissional é porque ele mesmo é a solução. São nossos jornais e emissoras que podem salvar a comunicação, se funcionarem segundo os princípios éticos da profissão, defendendo o exercício cidadão e democrático, a busca por uma informação credível e a abertura a debates construtivos. Mas como o povo brasileiro, que já sofre com as consequências da falta de políticas públicas, pode confiar em uma mídia que já deu sinais que age com base na antiética quando convém? Se o discurso que descredibiliza a imprensa - tão compartilhado pelo presidente fascista quando destila ódio contra a rede Globo e a Folha de S. Paulo - é tão forte, em parte isso se deve à falta de autocrítica dos próprios profissionais de comunicação, que usam concessões públicas (no caso das rádios e TV’s) e seus jornais para defender interesses privados. Precisamos, mais do que nunca, salvar a comunicação. Salvar a comunicação dos algoritmos, dos falsos engajamentos promovidos por robôs, da disseminação de inverdades em massa. Precisamos salvar a comunicação, também, do domínio de grandes grupos oligopolistas. Como iremos colocar em prática, nesse cenário, os códigos deontológicos que dizem que o jornalismo, como profissão que nasce no seio da democracia, deve servir ao povo, ao coletivo, à cidadania, à defesa da igualdade e da liberdade? Precisamos salvar a comunicação dos tecnocratas, dos mal intencionados, dos imorais e antiéticos e, principalmente, do que ocupa agora a presidência da república.