como parceiro a genialidade do Gil, fizeram uma grande obra. A análise é extensa por conta
de que todos os versos vêm imbuídos de metáforas usadas para contar o drama da tortura
no Brasil no período da ditadura militar.
(Pai, afasta de mim esse cálice)
Sintetiza uma súplica por algo que se deseja ver à distância. Boa parte da música faz uma
analogia entre a Paixão de Cristo e o sofrimento vivido pela população aterrorizada com o
regime autoritário. O refrão faz uma alusão à agonia de Jesus no calvário, mas a
ambigüidade da palavra “cálice” em relação ao imperativo “cale-se”, remete à atuação da
censura.
(De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra)
Não fugindo à temática da religião, Chico e Gil usam de metáforas para mostrar suas
descrenças naquele regime político e rebaixam a figura da “pátria mãe” à condição inferior
a de uma “puta”, termo que fica subentendido na palavra “outra”.
(Talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado)
A partir deste verso o eu-lírico sugere a possibilidade de a realidade vir a ser diferente,
renovando suas esperanças.
(Quero inventar o meu próprio pecado)
Expressa a vontade de libertar-se da imposição do erro por outros para recriar suas
próprias regras e definir por si só, quais são seus erros, sem que outros o apontem. Tem o
significado de estar fora da lei. O verbo aproxima-se do desejo urgente e real de
liberdade.
(Quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder teu juízo)
Traz a idéia de que o eu-lírico deseja ter seu próprio juízo e não o do poder repressor.
Quer decapitar a cabeça da ditadura e libertar-se do juízo imposto por ela, para ser dono
de suas próprias idéias.
(Quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém em esqueça)
Para encerrar, Chico e Gil usaram uma imagem forte das táticas de tortura. Para fazer com
que os subjugados perdessem a noção da realidade, dentro da sala os repressores
queimavam óleo diesel, cuja fumaça deixava-os embriagados. Entretanto, os subjugados
também possuíam táticas antitortura, e uma das artimanhas era justamente fingir-se
desmaiado, pois, enquanto nesta condição, não eram molestados pelos torturadores.
TRAGAR: Beber de um só gole, engolir de uma vez só. Comer avidamente; DEVORAR. 72
LABUTA: Ação ou resultado de labutar; LABOR; LIDA; TRABALHO. 73 BRUTA: Que está
no seu estado natural ou primitivo, inalterado; não manipulado, não trabalhado, não lapidado
etc. Que é malformado ou mal-acabado, tosco. Sem refinamento, grosseiro (acabamento
bruto). Que não tem bons modos, sem educação; RUDE. 74 DANO: Modificação ou
alteração (por processo natural, por acidente, ou por ação intencional), que torna algo
defeituoso; perda de certas boas qualidades, da boa condição, do valor, da beleza, utilidade
etc.; DETERIORAÇÃO; ESTRAGO. Qualquer mal, afronta ou humilhação pessoal causados a
alguém.
ATORDOA: Causar (pancada, queda, abalo emocional, bebida, muito barulho etc.) a, ou
sofrer (alguém) perturbação dos sentidos, confusão mental, tontura etc.; ATURDIR(-SE).
Fig. Causar a ousentir (alguém) assombro, admiração. 76 EMERGIR: Fazer vir ou vir à tona
(o que estava submerso). Fig. Aparecer, manifestar-se. Aparecer, elevando-se, como se
estivesse saindo da água. 77 PILEQUE: Estado de quem se embriagou; BEBEDEIRA;
PIFÃO. 78 HOMÉRICO: Referente ao poeta grego Homero ou a sua obra e seu estilo. Fig.
Que é excessivo, extraordinário, grandioso. 79 CUCA: Cabeça. Intelecto, mente.
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes
A música "Cálice" foi escrita em 1973 por Chico Buarque e Gilberto Gil, sendo
lançada apenas em 1978. Devido ao seu conteúdo de denúncia e crítica social, foi censurada
pela ditadura, sendo liberada cinco anos depois. Apesar do desfazamento temporal, Chico
gravou a canção com Milton Nascimento no lugar de Gil (que tinha mudado de gravadora) e
decidiu incluir no seu álbum homônimo.
"Cálice" se tornou num dos mais famosos hinos de resistência ao regime militar. Trata-se
de uma canção de protesto que ilustra, através de metáforas e duplos sentidos, a
repressão e a violência do governo autoritário.
Música e letra
Cálice
Análise da letra
Refrão
Usada como forma de pedir que algo ou alguém permaneça longe de nós, a frase ganha um
significado ainda mais forte quando reparamos na semelhança de sonoridade entre "cálice"
e "cale-se". Como se suplicasse "Pai, afasta de mim esse cale-se", o sujeito lírico pede o fim
da censura, essa mordaça que o silencia.
Assim, o tema usa a paixão de Cristo como analogia do tormento do povo brasileiro nas
mãos de um regime repressor e violento. Se, na Bíblia, o cálice estava repleto do sangue de
Jesus, nesta realidade, o sangue que transborda é o das vítimas torturadas e mortas pela
ditadura.
Primeira estrofe
Refere também que tem que "engolir a labuta", o trabalho pesado e mal remunerado, a
exaustão que é obrigado a aceitar calado, a opressão que já se tornou rotina.
No entanto, "mesmo calada a boca, resta o peito" e tudo o que ele continua sentido, ainda
que não possa se expressar livremente.
Mantendo o imaginário religioso, o eu lírico se diz "filho da santa" o que, neste contexto,
podemos entender como a pátria, retratada pelo regime como intocável, inquestionável,
quase sagrada. Ainda assim, e numa atitude desafiadora, afirma que preferia ser "filho da
outra".
Pela ausência de rima, podemos concluir que os autores queriam incluir um palavrão mas foi
necessário alterar a letra para não chamar a atenção dos censores. A escolha de uma outra
palavra que não rima deixa implícito o sentido original.
Segunda estrofe
Nestes versos, vemos a luta interior do sujeito poético para acordar em silêncio a cada dia,
sabendo das violências que aconteciam durante a noite. Sabendo que, mais cedo ou mais
tarde, também se tornaria vítima.
Chico faz alusão a um método bastante usado pela polícia militar brasileira. Invadindo casas
durante a noite, arrastava "suspeitos" das suas camas, prendendo uns, matando outros, e
fazendo sumir os restantes.
Perante todo esse cenário de horror, confessa o desejo de "lançar um grito desumano",
resistir, combater, manifestar sua raiva, na tentativa de "ser escutado".
Apesar de "atordoado", declara que permanece "atento", em estado de alerta, pronto para
participar da reação coletiva.
"Monstro da lagoa" também era uma expressão usada para referir os corpos que apareciam
boiando nas águas do mar ou de um rio.
Terceira estrofe
A brutalidade da polícia, transformada em "faca", perde seu propósito pois está gasta de
tanto ferir e "já não corta", sua força vai desaparecendo, o poder vai enfraquecendo.
Novamente, o sujeito narra sua luta quotidiana em sair de casa, "abrir a porta", estar no
mundo silenciado, com "essa palavra presa na garganta". Além disso, podemos entender
"abrir a porta" como sinônimo de se libertar, nesse caso, através da queda do regime. Numa
leitura bíblica, é também símbolo de um novo tempo.
Mantendo o tema religioso, o eu lírico questiona para que adianta "ter boa vontade",
fazendo outra referência à Bíblia. Convoca a passagem "Paz na terra aos homens de boa
vontade", lembrando que não tem paz nunca.
Quarta estrofe
Contrastando com as anteriores, a última estrofe traz um laivo de esperança nos versos
iniciais, com a possibilidade do mundo não se limitar apenas àquilo que o sujeito conhece.
Percebendo que sua vida não é "fato consumado", que está em aberto e pode seguir
diversas direções, o eu lírico reclama seu direito sobre si mesmo.
Para isso, tem que derrubar o sistema opressor, a que se dirige, no desejo de cortar o mal
pela raiz: "Quero perder de vez tua cabeça".
im, sem dúvida. Ele descreve a situação de um preso político nos porões da ditadura.
“Quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado”. Fala-se talvez que é
melhor lutar contra o regime do que ficar inerte, mesmo que isso implique em ser torturado
(lançar um grito desumano). No verso “Quero cheirar fumaça de óleo diesel, me embriagar
até que alguém me esqueça”, ele faz alusão à morte de Stewart Angel, filho de Zuzu Angel.
Que morreu com a boca em um cano de descarga, sendo obrigado a inalar aquela fumaça
tóxica.
"Cálice" foi escrita para ser apresentada no show Phono 73 que reunia, em duplas, os
maiores artistas da gravadora Phonogram. Quando submetido ao crivo da censura, o
tema foi reprovado.
Gilberto Gil partilhou com o público, muitos anos depois, algumas informações sobre o
contexto de criação da música, suas metáforas e simbologias.
Chico e Gil se juntaram no Rio de Janeiro para escrever a canção que deveriam apresentar,
em dupla, no show. Músicos ligados à contracultura e à resistência, partilhavam a mesma
angústia perante um Brasil imobilizado pelo poder militar.
Gil levou os versos iniciais da letra, que tinha escrito na véspera, uma sexta-feira da
Paixão. Partindo desta analogia para descrever o suplício do povo brasileiro na ditadura,
Chico continuou escrevendo, povoando a música com referências da sua vida cotidiana.
O cantor esclarece que a "bebida amarga" que a letra menciona é Fernet, uma bebida
alcoólica italiana que Chico costumava beber naquelas noites. A casa de Buarque ficava na
Lagoa Rodrigues de Freitas e os artistas ficavam na varanda, olhando as águas.
Esperavam ver emergir "o monstro da lagoa": o poder repressivo que estava escondido mas
pronto para atacar a qualquer momento.
Conscientes do perigo que corriam e do clima sufocante vivido no Brasil, Chico e Gil
escreveram um hino panfletário sustentando no jogo de palavras "cálice" / "cale-se".
Enquanto artistas e intelectuais de esquerda, usaram suas vozes para denunciar a barbárie
do autoritarismo.
Assim, no próprio título, a música faz alusão aos dois meios de opressão da ditadura. Por
um lado, a agressão física, a tortura e a morte. Por outro, a ameaça psicológica, o medo, o
controle do discurso e, por conseguinte, das vidas do povo brasileiro.
Chico Buarque