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“Cálice” uma das músicas mais panfletárias do Chico Buarque, somando-se o fato dele ter

como parceiro a genialidade do Gil, fizeram uma grande obra. A análise é extensa por conta
de que todos os versos vêm imbuídos de metáforas usadas para contar o drama da tortura
no Brasil no período da ditadura militar.
(Pai, afasta de mim esse cálice)
Sintetiza uma súplica por algo que se deseja ver à distância. Boa parte da música faz uma
analogia entre a Paixão de Cristo e o sofrimento vivido pela população aterrorizada com o
regime autoritário. O refrão faz uma alusão à agonia de Jesus no calvário, mas a
ambigüidade da palavra “cálice” em relação ao imperativo “cale-se”, remete à atuação da
censura.

(De vinho tinto de sangue)


O “cálice” é um objeto que contém algo em seu interior. Na Bíblia esse conteúdo é o sangue
de Cristo, na música é o sangue derramado pelas vítimas da repressão e torturas.

(Como beber dessa bebida amarga)


A metáfora do verso remete à dificuldade de aceitar um quadro social em que as pessoas
eram subjugadas de forma desumana.

(Tragar a dor, engolir a labuta)


Significa a imposição de ter que agüentar a dor e aceitá-la como algo banal e corriqueiro.
“Engolir a labuta” significa ter que aceitar uma condição de trabalho subumana de forma
natural e passiva.

(Mesmo calada a boca, resta o peito)


Os poetas afirmam que mesmo a pessoa tendo a sua liberdade de pronunciar-se cerceada,
ainda lhe resta o seu desejo, escondido e inviolável dentro do seu peito.

(Silêncio na cidade não se escuta)


O silêncio está metaforicamente relacionado à censura, que, desta forma, é entendida como
uma quimera, um absurdo inexistente, porque, na medida em que o silêncio não se escuta, o
silêncio não existe.

(De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra)
Não fugindo à temática da religião, Chico e Gil usam de metáforas para mostrar suas
descrenças naquele regime político e rebaixam a figura da “pátria mãe” à condição inferior
a de uma “puta”, termo que fica subentendido na palavra “outra”.

(Outra realidade menos morta)


Seria uma outra realidade, na qual os homens não tivessem sua individualidade e seus
direitos anulados.

(Tanta mentira, tanta força bruta)


O regime militar propagandeava que o país vivia um “milagre econômico” e todos eram
obrigados a aceitar essa realidade como uma verdade absoluta.

(Como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano)


O eu-lírico admite a dificuldade de aceitar passivamente as imposições do regime,
principalmente diante das torturas e pressões que eram realizadas à noite. Tudo era tão
reprimido que necessitava ser feito às escondidas, de forma clandestina.
(Quero lançar um grito desumano / que é uma maneira de ser escutado)
Talvez porque ninguém escutasse as mensagens lançadas por vias pacíficas e ordeiras, uma
das possibilidades, por conta de tanto desespero, seria partir para o confronto.

(Esse silêncio todo me atordoa)


Esse verso denuncia os métodos de torturas e repressão, utilizados para conseguir o
silêncio das vítimas, fazendo-as perderem os sentidos.

(Atordoado, eu permaneço atento)


Mesmo atordoado o eu-lírico permanece atento, em estado de alerta para o fim dessa
conjuntura, como se estivesse esperando um espetáculo que estaria por vir.

(Na arquibancada, pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa)


Entretanto, o espetáculo pode ser, ironicamente, somente o surgimento de mais um
mecanismo de imposição de poder do regime, representado pelo monstro da lagoa.

(De muito gorda a porca já não anda)


Essa “porca” refere-se ao sistema ditatorial, que, de tão corrupto e ineficiente, já não
funcionava. O porco também é um símbolo da gula, que está entre os sete pecados capitais,
retomando a temática de religiosidade e elementos católicos.

(De muito usada a faca já não corta)


Demonstra inoperância, ou seja, mostra o desgaste de uma ferramenta política utilizada à
exaustão.

(Como é difícil, pai, abrir a porta)


É expresso o apelo para que sejam diminuídas as dificuldades, mas ao mesmo tempo
apresenta a tarefa como sendo muito difícil. A porta representa a saída de um contexto
violento. Biblicamente, sinaliza um novo tempo.

(Essa palavra presa na garganta)


É a dificuldade para encontrar a liberdade, a livre expressão. É o desejo de falar, contar e
descrever a todos a repressão que está sendo imposta.

(Esse pileque homérico no mundo)


Refere-se ao desejo de liberdade contido no peito de cada cidadão dos países vivendo sob
os vários regimes autoritários existentes no mundo.

(De que adianta ter boa vontade)


É um autoquestionamento sobre a ânsia de lutar pela liberdade, uma vez que o mundo estava
ao avesso. Refere-se a uma frase bíblica: “paz na terra aos homens de boa vontade”.

(Mesmo calado o peito resta a cuca dos bêbados do centro da cidade)


Mesmo sem liberdade o homem não perde a mente e pode continuar pensando.

(Talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado)
A partir deste verso o eu-lírico sugere a possibilidade de a realidade vir a ser diferente,
renovando suas esperanças.
(Quero inventar o meu próprio pecado)
Expressa a vontade de libertar-se da imposição do erro por outros para recriar suas
próprias regras e definir por si só, quais são seus erros, sem que outros o apontem. Tem o
significado de estar fora da lei. O verbo aproxima-se do desejo urgente e real de
liberdade.

(Quero morrer do meu próprio veneno)


Neste verso está implícito que ele deseja ser punido pelos erros que ele vier a praticar
seguindo o seu livre-arbítrio, e não, tendo seu desejo cerceado, punido por erros que o
sistema acha que ele poderá vir a cometer.

(Quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder teu juízo)
Traz a idéia de que o eu-lírico deseja ter seu próprio juízo e não o do poder repressor.
Quer decapitar a cabeça da ditadura e libertar-se do juízo imposto por ela, para ser dono
de suas próprias idéias.

(Quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém em esqueça)
Para encerrar, Chico e Gil usaram uma imagem forte das táticas de tortura. Para fazer com
que os subjugados perdessem a noção da realidade, dentro da sala os repressores
queimavam óleo diesel, cuja fumaça deixava-os embriagados. Entretanto, os subjugados
também possuíam táticas antitortura, e uma das artimanhas era justamente fingir-se
desmaiado, pois, enquanto nesta condição, não eram molestados pelos torturadores.

TRAGAR: Beber de um só gole, engolir de uma vez só. Comer avidamente; DEVORAR. 72
LABUTA: Ação ou resultado de labutar; LABOR; LIDA; TRABALHO. 73 BRUTA: Que está
no seu estado natural ou primitivo, inalterado; não manipulado, não trabalhado, não lapidado
etc. Que é malformado ou mal-acabado, tosco. Sem refinamento, grosseiro (acabamento
bruto). Que não tem bons modos, sem educação; RUDE. 74 DANO: Modificação ou
alteração (por processo natural, por acidente, ou por ação intencional), que torna algo
defeituoso; perda de certas boas qualidades, da boa condição, do valor, da beleza, utilidade
etc.; DETERIORAÇÃO; ESTRAGO. Qualquer mal, afronta ou humilhação pessoal causados a
alguém.

ATORDOA: Causar (pancada, queda, abalo emocional, bebida, muito barulho etc.) a, ou
sofrer (alguém) perturbação dos sentidos, confusão mental, tontura etc.; ATURDIR(-SE).
Fig. Causar a ousentir (alguém) assombro, admiração. 76 EMERGIR: Fazer vir ou vir à tona
(o que estava submerso). Fig. Aparecer, manifestar-se. Aparecer, elevando-se, como se
estivesse saindo da água. 77 PILEQUE: Estado de quem se embriagou; BEBEDEIRA;
PIFÃO. 78 HOMÉRICO: Referente ao poeta grego Homero ou a sua obra e seu estilo. Fig.
Que é excessivo, extraordinário, grandioso. 79 CUCA: Cabeça. Intelecto, mente.

CONSUMADO: Que se consumou, que se realizou inteiramente, que se completou;


TERMINADO. Que não pode ser desfeito ou alterado; irremediável, irrevogável. 81
EMBRIAGAR: Fazer ficar ou ficar embriagado, bêbado; EMBEBEDAR.
1.

Música Cálice de Chico Buarque

Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes

A música "Cálice" foi escrita em 1973 por Chico Buarque e Gilberto Gil, sendo
lançada apenas em 1978. Devido ao seu conteúdo de denúncia e crítica social, foi censurada
pela ditadura, sendo liberada cinco anos depois. Apesar do desfazamento temporal, Chico
gravou a canção com Milton Nascimento no lugar de Gil (que tinha mudado de gravadora) e
decidiu incluir no seu álbum homônimo. 

Capa do disco "Chico Buarque" de 1978. 

"Cálice" se tornou num dos mais famosos hinos de resistência ao regime militar. Trata-se
de uma canção de protesto que ilustra, através de metáforas e duplos sentidos, a
repressão e a violência do governo autoritário. 

Conheça também a análise da música Construção de Chico Buarque.

Música e letra

Cálice

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga


Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda


De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Análise da letra

Refrão

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
A música começa com a referência de uma passagem bíblica: "Pai, se queres, afasta de mim
este cálice" (Marcos 14:36). Lembrando Jesus antes do calvário, a citação convoca também
as ideias de perseguição, sofrimento e traição. 

Usada como forma de pedir que algo ou alguém permaneça longe de nós, a frase ganha um
significado ainda mais forte quando reparamos na semelhança de sonoridade entre "cálice"
e "cale-se". Como se suplicasse "Pai, afasta de mim esse cale-se", o sujeito lírico pede o fim
da censura, essa mordaça que o silencia. 

Assim, o tema usa a paixão de Cristo como analogia do tormento do povo brasileiro nas
mãos de um regime repressor e violento. Se, na Bíblia, o cálice estava repleto do sangue de
Jesus, nesta realidade, o sangue que transborda é o das vítimas torturadas e mortas pela
ditadura. 

Primeira estrofe

Como beber dessa bebida amarga


Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Infiltrada em todos os aspectos da vida, a repressão se fazia sentir, pairando no ar e


atemorizando os indivíduos. O sujeito expressa a sua dificuldade em beber essa "bebida
amarga" que lhe oferecem, "tragar a dor", ou seja, banalizar o seu martírio, aceitá-lo como
se fosse natural. 

Refere também que tem que "engolir a labuta", o trabalho pesado e mal remunerado, a
exaustão que é obrigado a aceitar calado, a opressão que já se tornou rotina.

No entanto, "mesmo calada a boca, resta o peito" e tudo o que ele continua sentido, ainda
que não possa se expressar livremente.

Propaganda do regime militar. 

Mantendo o imaginário religioso, o eu lírico se diz "filho da santa" o que, neste contexto,
podemos entender como a pátria, retratada pelo regime como intocável, inquestionável,
quase sagrada. Ainda assim, e numa atitude desafiadora, afirma que preferia ser "filho da
outra". 

Pela ausência de rima, podemos concluir que os autores queriam incluir um palavrão mas foi
necessário alterar a letra para não chamar a atenção dos censores. A escolha de uma outra
palavra que não rima deixa implícito o sentido original. 

Se demarcando totalmente do pensamento condicionado pelo regime, o sujeito lírico


declara sua vontade de ter nascido em "outra realidade menos morta".
Queria viver sem ditadura, sem "mentira" (como o suposto milagre econômico que o governo
aclamava) e "força bruta" (autoritarismo, violência policial, tortura).

Segunda estrofe

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Nestes versos, vemos a luta interior do sujeito poético para acordar em silêncio a cada dia,
sabendo das violências que aconteciam durante a noite. Sabendo que, mais cedo ou mais
tarde, também se tornaria vítima.

Chico faz alusão a um método bastante usado pela polícia militar brasileira. Invadindo casas
durante a noite, arrastava "suspeitos" das suas camas, prendendo uns, matando outros, e
fazendo sumir os restantes.

Perante todo esse cenário de horror, confessa o desejo de "lançar um grito desumano",
resistir, combater, manifestar sua raiva, na tentativa de "ser escutado".

Protesto pelo final da censura.

Apesar de "atordoado", declara que permanece "atento", em estado de alerta, pronto para
participar da reação coletiva.

Sem poder fazer outra coisa, assiste passivamente na "arquibancada", esperando,


temendo ,"o monstro da lagoa".  A figura, própria do imaginário das histórias infantis,
representa aquilo que nos foi ensinado que devemos temer, servindo de metáfora para a
ditadura.

"Monstro da lagoa" também era uma expressão usada para referir os corpos que apareciam
boiando nas águas do mar ou de um rio. 

Terceira estrofe

De muito gorda a porca já não anda


De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Aqui, ganância é simbolizada pelo pecado capital da gula, com a da porca gorda e inerte
como metáfora de um governo corrupto e incompetente que não consegue mais operar.

A brutalidade da polícia, transformada em "faca", perde seu propósito pois está gasta de
tanto ferir e "já não corta", sua força vai desaparecendo, o poder vai enfraquecendo. 

Homem pichando muro com mensagem contra a ditadura.

Novamente, o sujeito narra sua luta quotidiana em sair de casa, "abrir a porta", estar no
mundo silenciado, com "essa palavra presa na garganta". Além disso, podemos entender
"abrir a porta" como sinônimo de se libertar, nesse caso, através da queda do regime. Numa
leitura bíblica, é também símbolo de um novo tempo.

Mantendo o tema religioso, o eu lírico questiona para que adianta "ter boa vontade",
fazendo outra referência à Bíblia. Convoca a passagem "Paz na terra aos homens de boa
vontade", lembrando que não tem paz nunca.

Apesar de ser forçado a reprimir palavras e sentimentos, continua mantendo


o pensamento crítico, "resta a cuca". Mesmo quando deixamos de sentir, existem sempre
as mentes dos desajustados, os "bêbados do centro da cidade" que continuam sonhando
com uma vida melhor. 

Quarta estrofe

Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Contrastando com as anteriores, a última estrofe traz um laivo de esperança nos versos
iniciais, com a possibilidade do mundo não se limitar apenas àquilo que o sujeito conhece.

Percebendo que sua vida não é "fato consumado", que está em aberto e pode seguir
diversas direções, o eu lírico reclama seu direito sobre si mesmo. 

Querendo inventar seu "próprio pecado" e morrer do "próprio veneno", afirma a vontade


de viver sempre segundo as próprias regras, sem ter que acatar ordens ou moralismos de
ninguém.

Para isso, tem que derrubar o sistema opressor, a que se dirige, no desejo de cortar o mal
pela raiz: "Quero perder de vez tua cabeça". 

Sonhando com a liberdade, demonstra a extrema necessidade de pensar e se expressar


livremente. Quer se reprogramar de tudo o que a sociedade conservadora lhe ensinou e
deixar de estar subjugado a ela ("perder teu juízo").
Os dois versos finais fazem alusão direta a um dos métodos de tortura usados pela
ditadura militar (a inalação de óleo diesel). Ilustram também a uma tática de resistência
(fingir perder os sentidos para que interrompessem essa tortura). 

im, sem dúvida. Ele descreve a situação de um preso político nos porões da ditadura.
“Quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado”. Fala-se talvez que é
melhor lutar contra o regime do que ficar inerte, mesmo que isso implique em ser torturado
(lançar um grito desumano). No verso “Quero cheirar fumaça de óleo diesel, me embriagar
até que alguém me esqueça”, ele faz alusão à morte de Stewart Angel, filho de Zuzu Angel.
Que morreu com a boca em um cano de descarga, sendo obrigado a inalar aquela fumaça
tóxica.

História e significado da música

"Cálice" foi escrita para ser apresentada no show Phono 73 que reunia, em duplas, os
maiores artistas da gravadora Phonogram. Quando submetido ao crivo da censura, o
tema foi reprovado.

Os artistas decidiram cantá-la, mesmo assim, murmurando a melodia e repetindo apenas a


palavra "cálice". Acabaram sendo impedidos de cantar e o som dos seus microfones foi
cortado. 

Gilberto Gil partilhou com o público, muitos anos depois, algumas informações sobre o
contexto de criação da música, suas metáforas e simbologias. 

Chico e Gil se juntaram no Rio de Janeiro para escrever a canção que deveriam apresentar,
em dupla, no show. Músicos ligados à contracultura e à resistência, partilhavam a mesma
angústia perante um Brasil imobilizado pelo poder militar. 

Gil levou os versos iniciais da letra, que tinha escrito na véspera, uma sexta-feira da
Paixão. Partindo desta analogia para descrever o suplício do povo brasileiro na ditadura,
Chico continuou escrevendo, povoando a música com referências da sua vida cotidiana. 

O cantor esclarece que a "bebida amarga" que a letra menciona é Fernet, uma bebida
alcoólica italiana que Chico costumava beber naquelas noites. A casa de Buarque ficava na
Lagoa Rodrigues de Freitas e os artistas ficavam na varanda, olhando as águas.

Esperavam ver emergir "o monstro da lagoa":  o poder repressivo que estava escondido mas
pronto para atacar a qualquer momento. 

Conscientes do perigo que corriam e do clima sufocante vivido no Brasil, Chico e Gil
escreveram um hino panfletário sustentando no jogo de palavras "cálice" / "cale-se".
Enquanto artistas e intelectuais de esquerda, usaram suas vozes para denunciar a barbárie
do autoritarismo. 

Assim, no próprio título, a música faz alusão aos dois meios de opressão da ditadura. Por
um lado,  a agressão física, a tortura e a morte. Por outro, a ameaça psicológica, o medo, o
controle do discurso e, por conseguinte, das vidas do povo brasileiro. 
Chico Buarque

Francisco Buarque de Hollanda (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1944) é um músico,


compositor, dramaturgo e escritor, apontado como um dos grandes nomes da MPB (música
popular brasileira). Autor de canções que se opunham ao regime autoritário vigente (como a
famosa "Apesar de Você"), foi perseguido pela censura e pela polícia militar, acabando por
se exilar em Itália em 1969. 

Quando regressou ao Brasil, continuou denunciando o impacto social, econômico e cultural


do totalitarismo, em músicas como "Construção" (1971) e "Cálice" (1973). 

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