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Gil Vicente - nota biografica Embora muito se tenha investigado, pouco se conhece, de concreto, sobre a vida de Gil Vicente. Nasceu, provavelmente, entre 1460 e 1470 e morreu, pensa-se, em 1536 ou posteriormente. Aidentificacao do poeta e dramaturgo Gil Vicente com um importante ourives da época, autor da Custédia de Belém, obra de elevado valor artistico, tem levantado controvérsia. Numa carta datada de 4 de fevereiro de 1513, D. Manuel | nomeia Gil Vicente, ourives da rainha sua irm&, D. Leonor, vitiva de D. Joo II, para o cargo de emestre da balanca da moeda da cidade de Lisboa» e, nesse mesmo documento, escrita a mao, consta a se~ guinte anotacao: «Gil Vicente trovador mestre da balanca». Esse € 0 Unico testemunho escrito em que Gil Vi- cente é designado simultaneamente como trovador (poeta) e ourives (mestre da balanca). Os criticos man- tém, no entanto, muitas diividas sobre esta identidade comum. ‘Como dramaturgo, a primeira obra conhecida do autor Gil Vicente, 0 Monélogo do Vaqueiro ou Auto da Vi sitacao, foi representada no dia 7 de junho de 1502, para assinalar 0 nascimento do futuro D. Joao Il, flho do rei D. Manuel | e da rainha D. Maria. Gil Vicente encontrava-se ao servico da «Rainha Velha», D. Leonor, para quem foram escritos muitos outros autos, como o Auto dos Reis Magos, 0 Auto da India (representado em Al- ‘mada em 1509, na sua presenca), 0 Auto da Sibila Cassandra, o Auto da Barca do Inferno (representado em 1517 por contemplacao da serenissima e muito catélica rainha Dona Lianor»), 0 Auto da Alma ou o Auto da Barca do Purgatério (representado no Natal de 1518). Posteriormente, Gil Vicente passou a estar diretamente ao servico de D. Manuel |, com a funcao de organi- zar festas palacianas, como as que se realizaram em janeiro de 1521, para rececao em Lisboa da terceira mu- Iher do rei. Muitas das pecas que escreveu foram encomendadas para celebrar acontecimentos importantes ou em ocasiao de festas religiosas. O teatro de Gil Vicente era um teatro de corte, sujeito as regras da vida cortess, D. Joao lil, que assumiu 0 trono ainda em 1521, concedeu-the tencas' e outras benesses financeiras duran- te 0 seu reinado, Gil Vivente auferia, no contexto social da época, de uma certa importancia e autoridade, o que the permitiu tomar algumas posigées criticas, como proferir um discurso em que censurou os sermoes dos frades de Santarém que explicavam um terramoto como resultado da ira divina ou uma carta escrita a0 rel nna qual se pronunciava contra a persegui¢éo aos judeus. A obra teatral de Gil Vicente, composta ao longo de trinta e cinco anos, abrange mais de quarenta pegas de teatro, de varios géneros®: pecas de tema religioso ou de devocao, onde se incluem os mistérios (Auto de Mo- fina Mendes, Auto da Cananeia, Auto dos Reis Magos, ...) € as moralidades (Auto da Alma, Auto da Barca do In- ferno, Auto da Barca do Purgatério, Auto da Barca da Gléria, Auto da Feira, ...j pecas de tema profano, onde se integram as farsas (Auto da India, Farsa de Inés Pereira, Quem tem Farelos?, Velho da Horta, ...) ¢ as'tomédias (Comédia de Rubena, Comédia do Vitivo, ...), entre outros géneros. ‘Altima peca de Gil Vicente, Floresta de Enganos, foi representada em Evora em 1536. Trata-se uma comé- dia, com algumas cenas proprias da farsa, em que o mundo é considerado uma «floresta de enganos». Nesse mesmo ano, a Inquisicao foi introduzida em Portugal. 7 renga pono pecnlara conceal alguam paraasseguariheo sstenta 1 Gilclne nuns crtpecucioem aur feredes pega Dom Dverdes 30, JoHo I, 1522, dasa as suas pegs rn comets, frasymoraidodes Gil Vicente foi, na sua obra, um critico dos modos de viver e de pensar do seu tempo, procurando mora- lizar e corrigir 0 que havia de negativo na sociedade. Como dramaturgo da corte, a sua critica era tolerada e até considerada uma necessidade, desde que poupasse o Monarca e os seus parentes mais préximos e no subvertesse as instituigdes. Farsa de Inés Pereira A farsa designa uma pequena pega comica, com um numero reduzido de personagens, em que predomi- nam situagées ridiculas que caricaturam a vida quotidiana, com o propésito evidente de critica social. A farsa tem, portanto, uma intengao satirica. A Farsa de Inés Pereira é uma farsa com intriga, uma histéria completa, com principio, meio e fim: uma jo- vem mulher, Inés Pereira, embora da classe popular, sabe ler e escrever e rejeita a vida de enclausuramento doméstico a que estavam sujeitas, na época, as mulheres solteiras da sua classe. Deseja casar com um homem savisador e «discreton, isto ¢, inteligente e de espirito brilhante. A alcoviteira Lianor Vaz propée-Ihe um cam- Ponés rico, mas antiquado e estipido. Contra a vontade da mae, Inés rejeita-o e, perante a proposta para nolvo de um escudeito pobre, mas habil no falar e no tanger da viola, que dois judeus casamenteiros Ihe apre- sentam, Inés ndo pensa duas vezes. Casa com o escudeiro, que em breve se revela um marido tiranico, que parte para a guerra em Marrocos, deixando a mulher fechada em casa e vigiada por um criado. Por sorte do destino, 0 escudeiro morre em Africa e Inés fica de novo livre para voltar a casar. Escolhe entao o primeiro pretendente, o camponés Pero Marques, que seré um marido. complacente e que lhe dara liberdade, inclusi- vamente para o adultério. A Farsa de Inés Pereira foi representada no convento de Tomar, no ano de 1523, perante o rei D. Joao Il. ‘Conforme consta na didascalia inicial, Gil Vicente aceitou o desafio de escrever uma pea para ilustrar um pro- vérbio ~ «Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube.» ~ e, se havia duvidas sobre a originalida- de das suas pecas, ficou demonstrada a capacidade genial do dramaturgo. Trata-se da melhor farsa vicentina. Lé-se na didascalia: «A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e ‘mui poderoso rei dom Jodo, 0 terceiro do nome em Portugal, no seu convento de Tomar. Era do Senhor de 1523. O seu argumento é que por quanto dovidavam certos ‘homens de bom saber se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, Ihe deram este tema sobre que fizesse um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. [...]9°, No inicio da Farsa de Inés Pereira sao enumeradas as seguintes Personagens: Inés Pereira, Mae, Lianor Vaz, Pero Marques, Judeus: Lato e Vidal, Escudeiro, Moco, Ermitao, Luzia e Fernando, designadas no seu Conjunto por «figuras». Na verdade, as personagens, embora vivam situacdes e tenham comportamentos € aspeto humanos, sdo ficcionais. 3 TodasastansricSes de Farad ns Pera foram retradas des Obras de Gi Viz, vol feria de los Combes Lsbonnprenva Naconalcara ds Meda 202 ESTRUTURA EXTERNA Ainda que o texto da farsa seja ininterrupto’, é possivel detetar varias etapas na sua construcéo que se pode fazer corresponder a atos e cenas, do seguinte modo: ‘Cena 1 - Situagéo inicial de Inés Pereira (inconformada coma sua vida recatada e domeéstica) Cena 2 — Dislogo entre Inés e a Me; queixas de Inés pelo seu enfadonho trabalho de ATO1 costura e conselhos da Mae sobre os predicados necessérios para arranjar casamento. Pacer yr) Cena 3 ~ Chegada de Lianor Vaz e proposta de casamento com Pero Marques, campo- oor 1iés rico, mas antiquado. POSE Termmm Cena 4 Entrada e apresentacdo de Pero Marques que declara os seus bens e anuncia ‘seu interesse por Inés, revelando-se ristico e imbecil. Cena 5 - Saida de Pero Marques e chegada da Mae; reptidio do casamento com Pero ‘Marques devido a aspiragées a um consorte com outros atributos. ena 1 ~ Chegada dos Judeus casamenteiros e elogio do Escudeiro. (Cena 2 ~ Entrada do Escudeiro e revelacdo das suas capacidades de dissimulacéo em dislogo com o Moco, Cena 3 - Seducao de Inés pelo Escudeiro, concordancia com este pretendente e ce- riménia de casamento. Cena 4 ~ Festa de celebracao do casamento, Gena 5 ~ Condicio de recluséo e de repressdo das liberdades imposta pelo Escudeiro a Inés, sua mulher, e partida deste para Africa, ena 6 — Arrependimento de Inés pelo casamento realizado. ATO2 fers) Cour) Cet rie) ena 1 ~ Carta do irmao de Inés anunciando a morte do Escudeiro no norte de Aftica. Cena 2 - Reaparecimento de Lianor Vaz e nova proposta de casamento com Pero. Marques. Lh Set ena 3 ~ Casamento de Inés com Pero Marques e obtencao da desejada condicéo de CEN erode, ead eed Cena 4 ~Chegada de um Ermitso a pedir esmola, Cena 5 ~ Reconhecimento do Ermitéo como antigo pretendente e promessa de reen- contro. Cena 6 ~ Preparacio da romaria ao ermitério e insinuacao de adultério, CARACTERIZACAO DAS PERSONAGENS Nas pecas vicentinas, as personagens sao normalmente tipos sociais, isto é, personagens-tipo. Os tipos encarnam caracteristicas de um coletivo, de um grupo, aparecendo, embora, como figuras individuais, Podem representar uma classe, uma profissdo ou uma mentalidade e apresentam sinais exteriores daquilo que repre- sentam, através da linguagem, do vestuério, de objetos que transportam consigo, de gestos, etc. Gil Vicente, de acordo com o pensamento medieval, pretende apresentar e criticar situacées gerais e, por- tanto, abrangentes, em vez de situacGes individuais e particulares. Assim, os tipos sociais criticam um coletivo ea sua fungao moralizadora dos costumes da sociedade torna-se mais eficaz. Na Farsa de Inés Pereira, pode considerar-se todas as personagens como tipos sociais, a excecdo da prota- gonista Inés Pereira e das figurantes Mocas e Mancebos, de que faz parte Luzia, que acorrem para dancar e ballar na festa de casamento de Inés com o Escudeiro. Inés Pereira apresenta caracteristicas nitidamente indi- vidvalizadas 1 pace aparece na Gomploam de todlas obras eG Viens pobliada por ls Viento de Gl Vicente 16, comme Aiden Ferra Inés Pereira é apresentada na didascalia inicial, através do proceso de caracterizacio direta, como sendo «filha de uma mulher de balxa sorte», «muito fantesiosa» e que cesta lavrando em sua casa», Trata-se, portanto, de uma rapariga com poucos recursos econémicos, mas sonhadora e imaginativa, a quem est destinado 0 trabalho doméstico, «lavrars, isto €, costurar, No entanto, logo no seu primeiro monélogo (caracterizacao indi- reta), ficamos a saber que nao aceita a sua condi¢ao. Deduzimos que se trata de uma personagem ambiciosa, que vive inconformada e recusa a vida de dedicacao aos trabalhos domésticos e de enclausuramento na sua prépria casa («Inés ~ Renego deste lavrar / e do primeiro que o usou / 6 diabo que o eu dou, / que tam mau é dlaturar.).Inés deseja divertir-se e viver em liberdade («Todas folgam e eu nao, / todas vem e todas vao / onde querem, senam eu»). € inteligente e sabe ler e escrever, o que era raro naquele tempo. A personagem Inés Pereira vai crescendo & medida que os acontecimentos vao acorrendo: aprende com um primeiro casamento desastroso que a vida, por vezes, ¢ diferente do sonho e, através dessa aprendizagem, transforma o seu proje- to de vida. Acaba por aceitar um casamento que Ihe dard estabilidade social, mas em que ela dominard e, usando manhas e enganos, terd a vida que deseja. «Marido cuco me levades / e mais duas lousas», canta Inés no final da farsa, sugerindo 0 marido enganado e o seu comportamento de mulher infiel. Pero Marques corresponde ao Vil&o, como tipo social. eViste to parvo vilao?», diz Inés ao ler a carta em ‘que Pero Marques se declara seu pretendente. A alcoviteira Lianor Vaz diz a Inés: «Eu vos trago um bom mari- do, / rico, honrado, conhecido; / diz que em camisa vos quer». Para além desta heterocaracterizagao, esta personagem revela as suas caracteristicas sempre através das suas atitudes e das suas falas, isto 6, de forma indireta, Trata-se de um camponés rico e honrado, que ndo esta interessado em mulher com dotes, mas rude e esttipido. € 0 «asno» que leva Inés, na encenagio do provérbio. Antiquado e desconhecedor dos habitos da vida urbana, nao sabe usar uma cadeira («Mae - Tomai aquela cadeira. / Pero ~ E que val aqui uma destas?»). Nao vé nem percebe nada e, portanto, no final da peca, carrega a mulher &s costas para que esta se vd encon- trar com 0 Ermitdo e também as duas «lousas» que a mulher transporta. A sua caracteristica dominante é uma simplicidade néscia. Brés da Mata, o Escudeiro, é também um tipo social. Comeca por ser descrito pelo Judeu Vidal: «; «Nao, que elas vie ‘nham chentadas / cé em fundo no mais quente.»; «Ficai-vos ora com Deos / catrai a porta sobre vés / com vossa candeazinha, /e sicais sereis vos minha, / entonces veremos nés.». As Alcoviteiras usam outro tipo de arcaismos, como a conservacdo das formas em d na segunda pessoa do plural dos verbos: «Nesta carta que aqul vem / pera vés filha, d'amores / veredes vos minhas flores / a discricdo que ele tem.». Os Judeus apresen- tam outras caracteristicas particulares, o ditongo oi, em vez de ou: «Ora oivie oiviteis 'Na Farsa de Inés Pereira predomina o registo de lingua popular. A personagem que melhor fala 60 Escudei- +o, que corresponde ao homem

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