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XXVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Manaus - 2018

Ritmos zoofônicos: a composição como método

Rodolfo Caesar

Resumo: Em uma pesquisa em que se cruzam questões sobre a escuta, a sonoridade animal e o
papel das tecnologias na música, a composição se propõe como ferramenta de trabalho e método
de pesquisa, como lugar de ensaio e reflexão. Autores como Hercule Florence, Pierre Schaeffer,
McLuhan, José Augusto Mannis e outros, serão mencionados em apoio ou como referências para a
elaboração da pesquisa.

Palavras-chave: Sonologia. Zoophonie. Escuta. Composição. Modulação de frequência.

1. Centrífuga

O propósito dessa palestra é uma exposição sobre o meu trabalho


atual, bem como o esclarecimento de suas motivações iniciais e ainda hoje subjacentes. Desde
1973 - bem antes de entrar para a universidade - concentrei-me no estudo e na composição de
música eletroacústica. Sendo atualmente professor no departamento de Composição da UFRJ
e pesquisador do CNPq, atuo no mesmo âmbito de interesses, e - cada vez mais - o foco cen-
tral me convoca para uma dispersão, pois se trata de um assunto que se espalha, centrífugo,
em diversas e variadas direções disciplinares. Mais recentemente, junto a outros colegas da
Universidade, promovemos a sub-área chamada Sonologia, entendendo esse campo investiga-
tivo como um território ampliado para a reflexão, localizando os anseios de pesquisadores e
criadores anteriormente abrigados na Música Eletroacústica e na ‘Computer-music’. Buscáva-
mos desenvolvimentos para além dos temas já contemplados por essas sub-áreas. Por conta de
sua relativa novidade e plasticidade, a Sonologia pode se apresentar enfocando diversos inter-
esses concentrados na escuta, sendo, na minha acepção particular, o lugar em que sou capaz
de estudar as diversas manifestações do som, consideradas artísticas ou não, ocupando, a
música, um dentre seus variados e interligados compartimentos.

O espectro da Sonologia que me abriga, favorece o desenvolvimento de pesquisas


relacionadas a 1) a escuta musical em sua relação com 2) os utensílios tecnológicos e - de
uma forma talvez enviesada, como tentarei explicar - eventualmente tangencia a 3) bioacús-

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tica. Essas três vertentes: a escuta, as materialidades tecnológicas e os sons de animais, como
veremos, estão em dinâmico relacionamento na minha pesquisa.

Devido à amplitude dessa faixa de interesses, o trabalho da composição, como


parte da pesquisa, tornou-se um meio de conhecimento. De objetivo, passou a método. Nessa
pesquisa a composição opera na experimentação dos conhecimentos adquiridos ao longo dela,
ou para lançar novos problemas. A escuta, o registro, a catalogação de sons e as leituras vari-
adas misturam-se à composição, sem ordem de importância.

Apoiada pelo CNPq, minha pesquisa atual intitula-se ‘Música, som e ritmo:
atualizando a Zoophonie de Hercule Florence’. A motivação principal é traduzir para a
contemporaneidade - e com suas ferramentas - o estudo de vocalizações de animais através de
recursos musicais, tal como, no início do século XIX, o explorador francês propôs(Vieilliard,
1993). Antes dele, também no Brasil, o príncipe alemão Maximilian Alexander Philipp zu
Wied-Neuwied havia fixado, em notas musicais, cantos de pássaros das florestas do Sudeste
brasileiro. Florence, no entanto, deixou registros formulando a sistematização de uma prática
sob denominação própria, que é de especial interesse para essa pesquisa. Com ela procuro
conhecimentos que podem parecer, à primeira impressão, estranhos ao domínio da Música.
Sair dessa Arte, no entanto, não é o propósito. A despeito da proximidade com a Bioacústica,
o projeto não se identifica com os métodos e finalidades desse ramo da Biologia, e nem tem
como objetivo levar, para esta Ciência, qualquer avanço que lhe beneficie. Espero que o con-
hecimento da Música saia enriquecido, quando menos pelo fato de ser mantida - como exercí-
cio fundamental para a pesquisa - uma escuta generalizada, uma atitude de atenção aberta a
todos os sons.

Florence lapidou o termo que serve perfeitamente aos desígnios dessa pesquisa,
apontando para uma rota de desvio relativamente à Biologia. Em vez da bioacústica, trata da
zoofonia: em lugar da análise de comportamento e conhecimento da fisiologia animal através
de suas vocalizações, propõe o estudo dos sons animais por meios musicais. Se, para Flo-
rence, a música instrumentalizou um conhecimento científico, aqui a direção se inverte: é o
conhecimento musical que, no fim das contas, procura estender-se em mais um de seus inu-
meráveis desdobramentos. Isto não significa que aportes dessa pesquisa não possam ser, even-
tualmente, aproveitáveis para a Biologia. E vice-versa.

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2. Zoofonia e marcas tecnográficas

A Zoophonie não é o único testemunho do interesse que Florence dedicou ao reg-


istro de imagens sonoras e visuais. É vasta a lista de problemas relacionados com a efemeri-
dade das imagens que buscou solucionar. Além de gravar notacionalmente os cantos de aves
na Zoophonie, ocupou-se, pelo desenho, de registros visuais da avifauna. Mais tarde, foi pio-
neiro na invenção de outras tecnologias de retenção de imagens em suporte, dentre as quais a
fotografiai. Exerceu, ainda, habilidades pictóricas com o registro de nuvens em aquarelas. O
alento renovado nessa zoofonia que o revisita, não pretende reconstruir historicamente seu tra-
jeto, mas prolongar a dedicação à escuta de sons de animais, guardadas as proporções devidas
à diferença entre seu tempo e o nosso. É imprescindível realçar que essa diferença, por si só, é
o que mais justifica o desdobramento para outro núcleo da pesquisa: as tecnologias de
suporte.

Uma pesquisa contemporânea não pode ignorar as diferenças entre o suporte nota-
cional de Florence e os equipamentos eletroacústicos de gravação, por exemplo: a análise e a
síntese atualmente disponíveis. Cada tecnologia interfere, à sua maneira, na própria escuta.
Por força da materialidade do suporte notacional na época de Florence, a captura para
memória do campo sonoro limitava-se a sons “musicais" - ou que pelo menos a eles se
assemelhassem. Contava, Florence, com os meios da notação de ritmos e alturas de notas mu-
sicais, bastando-lhe, para tanto, papel e lápis.

Não por acaso, os registros da Zoophonie detiveram-se mais em cantos de aves


marcadamente 'melodiosos', sendo isso reflexo de uma 'influência' da notação. Por sorte conto
com um contra-exemplo na Fig. X, demostrando os esforços de Florence na busca de uma no-
tação 'estendida', rompendo a barra de compasso e grafando cortes verticais em sons menos
prestativos à percepção de alturas. Esse conflito revela um esforço de ir contra o que, em
outros textos e artigos, designei como 'marca tecnográfica' (Caesar, 2013, 2016, 2018).
Através dessa expressão, procuro salientar as marcas deixadas pelas diferentes tecnologias em
suas diversas manifestações, desde a mera percepção individual até a cultura em geral.
Comecei a pensar sobre essa manifestação de uma 'subjetivação das tecnologias’, ao me
defrontar com a necessidade de exercer uma atenção crítica, especificamente no âmbito da
música eletroacústica, quando importantes créditos autorais dos programas computacionais
empregados nas músicas não eram devidamente atribuídos.

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Ainda no século XIX, um campo infinito abriu-se ao registro do sonoro, graças às


invenções em torno da gravação e da sua reprodução em aparelhos como o fonógrafo e o
gramofone (Chion, 1997; Iazzetta, 2009). A extensão da Zoophonie que proponho, procura
manter-se especialmente atenta às marcas tecnográficas, porventura impregnadas em nosso
conhecimento atual, atentando para as tecnologias de suporte para o sonoro: estudo a influên-
cia dos meios em nossa escuta e em nossas construções culturais, conforme têm-se ocupados
inúmeros pensadores (Flusser, 1983; Havelock, 1986; Kittler, 1986; McLuhan, 1964; Stiegler,
1994; Winthrop-Young, 2013) a partir dos anos 1960. As tecnologias atuais nos permitem
perceber a limitação de Florence, determinada pelas de seu tempo. Porém, em que medida
podemos nos manter sempre, ou mesmo efemeramente, conscientes das limitações determi-
nadas pelas tecnologias do nosso tempo?

Ao se lançar a campo para escutar as sonoridades, o pesquisador contemporâneo


não encontrará o mesmo ambiente que Florence e Wied-Neuwied. Não somente porque
mudanças temporais e espaciais o colocaram em outro universo, mas sua própria escuta
mudou. Processos de auto-análise, disparados pelas tecnologias contemporâneas, propiciam
ao pesquisador o dar-se conta do inter-relacionamento entre, as diferentes épocas e suas par-
ticulares materialidades de registro da escuta, pois cada uma delas tende a apontar para
diferentes objetos de interesse. Em outros textos narrei como minha própria escuta, em exercí-
cio no campo, voltou-se progressivamente para um pássaro que até então eu desconhecia. A
escuta foi favorecida por um processo ‘sob a influência' dos registros e de microfones dire-
cionais (Caesar, 2018). Se eu não tivesse podido exercer uma escuta aberta pela captação mi-
crofônica, prolongada pelo registro e reprodução da gravação, afetada portanto por essa marca
tecnológica, minha atenção talvez permanecesse, até hoje, voltada aos pássaros da nobre es-
tirpe canora que me ocupavam inicialmente, tais como sabiás, trinca-ferros, curiós, e demais
estereótipos do bel canto aviário. Estaria, ainda, surdo ao clamor da coletividade formada pe-
los fim-fins, irrés, almas-de-gato, bicos-de-lacre, insetos, anuros e tantos outros inúmeros vo-
calizadores - musicalmente interessantes quando isolados ou quando agrupados em grande
quantidade, que normalmente passam ‘invisíveis'. Por ter sido submetido a uma tecnografia,
aquela intermediada por gravação e reproduções, aprendi que, em nosso senso comum,
exercemos uma escuta ornitológica herdeira da mesma atitude musical que privilegiava o
solista e seus talentos geniais. Revivia o Romantismo nos cerrados e matas. Em resumo: a
Zoophonie de Florence era um método apropriado para o seu tempo, por ter empregado as fer-
ramentas que lhe foram, mais do que adequadas, existentes. Cabe à escuta contemporânea

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uma outra e re-dobrada atenção. Não basta escutar, registrar e reproduzir: é preciso manter-se
atento para o papel influente da tecnologia nas escolhas da nossa escuta.

3. O campo zoofônico

Por que escolhi os sons de animais para colocar o terceiro pé dessa pesquisa?
Porque encontrei neles uma disponibilidade musical bem mais difícil de se encontrar em sons
de ‘natureza cultural’, tais como os das cidades, os sons industriais, de causalidades local-
izadas no trabalho ou em outras atividades humanas. Em geral possuem pouco interesse do
ponto de vista rítmico, pois a métrica preside a mecânica. Para que se mostrem musicalmente
interessantes, pelo menos para os meus ouvidos, os sons de origem ‘humana' invariavelmente
requerem sobreposições, misturas, situações beirando o caótico, etc. Ou precisam expressar
alguma estranheza ou singularidade narrativa. Isoladamente, em si próprios, raramente os
sons ‘humanos' não nos chegam transportados por uma métrica musicalmente quadrada e por-
tanto incomparável com modelos como, por exemplo, o desse dueto de rãs, capturado micro-
fonicamente:

Fig. 1 Rãs saem e voltam ao ponto de coincidência.

Aud. 1 Áudio das rãs.

As aves que encontraram refúgio nas obras de diversos compositores, deveram


isso principalmente às suas vocalizações no campo das alturas, com bons ou piores resultados
musicais dependendo de sua complexidade. Poderia mencionar casos reveladores de uma in-
adequação entre o instrumental disponível na orquestra e tentativas de reprodução de cantos
de aves micro-afinados, constrangidas a se eternizarem através do sistema de afinação temper-

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ada. Entretanto, para contestar a inadequação entre grafia em notas de ritmos e/ou alturas
‘não-canoras’, devo recorrer a outro contra-exemplo, um ato inaugural na partitura de José
Augusto Mannis, repercutindo, nos salões, as marteladas de arapongas, em obra homônima,
para grupo de percussão, de 1997.ii Graças a uma notação criteriosa e à disponibilidade
mimética dos instrumentos de percussão, a complexidade rítmica desses habitantes silvestres
pode ser devidamente encomendada aos instrumentistas. Não se trata da única aventura de
Mannis nessa difícil passagem de 'sons escutados' para a partitura. Em 2010 ele transcreveu
uma obra eletroacústica inteira, desafiando, ainda mais radicalmente, a subjetivação tecnológ-
ica da notação.iii Na partitura de ARAPONGAS, a grade em compassos ternários na verdade
não tem outra função senão a de proporcionar uma delimitação visual na linha do tempo, para
maior clareza e memorização da leitura. Assim como em PERSEPHASSA, 1971, Iannis Xe-
nakis quase sempre opta por compassos quaternários. Tanto na peça de Mannis quanto na de
Xenakis esse recurso, específico da escrita notacional, felizmente não ultrapassa o limite entre
o notado e o escutado, tornando-se, assim, menos presente, a tecnografia do suporte em que se
inscrevem. Justamente o que mascara a subjetivação da tecnologia, permitindo-me falar da re-
gra por suas exceções, é o fato que o ternário e o quaternário não se revelam à escuta.

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Fig. 2 ARAPONGAS, 1997, para grupo de percussão, extrato p.22.

Áud. 2 ARAPONGAS.

Nas seções a seguir, descreverei a produção de sons que, se tivessem que passar
pela escrita notacional, exigiriam alta complexidade do ponto de vista temporal, porém - as-
sim como as rãs já escutadas acima - cuja síntese é relativamente simples para os recursos
computacionais. (Lembrando que, no universo computacional da música, é mais comum que a
'escrita' e a síntese estejam fundidas em uma só produção: sem a abstração da partitura, a
composição está no próprio som.)

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4. Modulação de Frequência

O modelo de síntese que sigo é propiciado pela Modulação de Frequência. E seus


resultados fazem parte de uma prática composicional, entendida como produção de exercícios,
etapas do projeto de pesquisa da Zoofonia, visando mais a reflexão do que a criação de uma
obra. Graças à feitura desses esboços dei-me conta de adentrar no terreno da crítica musical
ou da musicologia histórica, conforme relato a seguir, a propósito de uma peça de Pierre
Henry. Antes, porém, devemos passar pelo tema da Modulação de Frequência.

Em 1973, o compositor norte-americano John Chowning publicou um artigo de


grande impacto para a computer-music (Chowning, 1973), para a música eletroacústica e tam-
bém para a indústria de instrumentos eletrônicos. Esta foi sacudida pelas novas possibilidades
de síntese sonora com os teclados da linha DX, da Yamaha, que, a partir de 1983, tornou-se
uma constante na música popular, marcando-a com seus trinta e dois timbres peculiares. Ao
substituir os timbres eletrônicos de síntese subtrativa (da linha Moog) pelos de Modulação de
Frequência, o DX7 agenciou - para lembrar os termos dessa pesquisa - uma troca de marcas
tecnográficas que pouco trouxe para a música além de seus timbres presetados. A dificuldade
de programação nesse sistema era superada pela qualidade dos presets. No plano da música
experimental a síntese FM significou bem mais. Uma dentre as obras de computer-music do
compositor francês Jean-Claude Risset, MUTATIONS I, 1969, teve importância fundamental
para a escola francesa de música instrumental chamada musique spectrale. O que essa peça
inicia é a exploração, importante para o spectralisme, de fusões perceptuais no intervalo ente
o timbre e a harmonia. Por exemplo: um som sintético de gongo, em MUTATIONS I, é pre-
cedido, melodicamente, por uma sequência com ‘notas’, que nada mais são que as frequências
parciais que compõem o espectro (do gongo).

O modelo de síntese FM de Chowning foi concebido por meio de um desvio de


uso original. A teoria envolvida na FM sonora é um desvio de uso daquela que dá suporte à
transmissão radiofônica, o procedimento possibilitando a transmissão dos programas de
música, noticiários, etc. Nesse modelo efetua-se a deformação de uma frequência, chamada
de portadora - aquela que sintonizamos no dial - pela força do sinal que ao fim escutamos.
Não sendo mecânica e sim de rádio, e da ordem de megaHerz - portanto muito acima do lim-
ite da audibilidade se fosse mecânica - esta portadora não nos afeta perceptualmente. Ela é a
via por onde os programas são transmitidos. O que John Chowning fez, foi reduzir a veloci -

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dade da portadora e trazer ambas as frequências para o domínio das ondas mecânicas. Na es-
cuta da ‘vida real’ não-eletroacústica conhecemos uma variedade desse procedimento, sendo
o exemplo mais conhecido delas, o vibrato. Entretanto, nesse fenômeno as duas ou mais fre-
quências não estão todas no âmbito da escuta, pois a que faz ’vibrar' está abaixo do espectro
audível. Quando ouvimos um vibrato, o movimento percebido é efeito da modulação de uma
frequência sub-áudio sobre outra, audível. A altura se desloca de um centro - a frequência
portadora, aumentando e diminuindo conforme a atuação da moduladora.

Fig. 3 A linha superior modula a amplitude da central (AM), e a frequência da inferior (FM).

Assim como as rãs, muitos outros eventos - principalmente envolvendo coletivi-


dades animais - apresentariam ao trabalho de notação gráfica extrema dificuldade. São, no en-
tanto, relativamente fáceis de serem 'reproduzidos' por meios eletrônicos. (As aspas para ‘re-
produção’ compartilham do mesmo senso de cautela de José Augusto Mannis, falando da
mímesis em ARAPONGAS: “… não como cópia, nem simulação, nem imitação, mas como
representação do seu original e mais ainda como uma ficção a partir do original.” iv)

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Fig. 4 A moduladora é responsável pelo aumento e diminuição da quantidade de ‘notas’, grãos, ou pulsos, etc.

Há anos venho desenvolvendo modelos em que ambas as frequências da síntese


FM acontecem em sub-áudio (Caesar, 1996). Considerando que os pontos assinalados na
figura 4 sejam grãos sonoros, e tendo controle fino sobre as curvas das moduladoras - que, por
sua vez, também podem ser moduladas - um vasto campo de pesquisa rítmica abre-se à exper-
imentação. Um dos fenômenos de escuta musical propiciados pelas tecnologias de áudio mais
conhecidos, porém pouco comentados na literatura, é a exploração do terreno intermediário
entre a percepção de duração e o de altura.

A peça de musique concrète VARIATIONS POUR UNE PORTE ET UN


SOUPIR, 1963, de Pierre Henryv, propõe a exploração desse intervalo perceptual, embora sem
que Henry pudesse, então, desfrutar das ferramentas computacionais que atualmente per-
mitem maior controle e portanto melhor definição de projeto composicional. Tampouco des-
frutou - e aqui se encaixa minha visada crítica - de legitimações teóricas equivalentes às da
musique spectrale. A razão é simples e dupla. Em primeiro lugar Henry não dependia delas.
Em vez de legitimação filosoficamente desenvolvida, suas obras tiveram público, sendo exe-
cutadas em teatros lotados, na companhia de Maurice Béjart e seu Ballet ou de Michel
Colombier, a banda Spooky Tooth, etc. E assim abriu, aos compositores de sua época e poste-
riores, sem cobrança de créditos, uma vastidão territorial, mais tarde explorada pela síntese
granular, de quem é igualmente devedora a própria continuidade desta pesquisa. Em segundo
lugar, seus recursos técnicos giravam basicamente em torno da fita magnética, uma tecnologia

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menos ‘intencionada' - em termos de projeto industrial e comercial - do que a computação,


propulsora da musique spectrale.

Áud. 3 VARIATIONS POUR UNE PORTE ET UN SOUPIR, 1963, Pierre Henry.

Conforme tem sido possível experimentar em programas computacionais para sín-


tese de sons, não é difícil organizar microscopicamente as durações entre os grãos, favore-
cendo, assim, a exploração de regiões perceptuais intermediárias entre a quantificação e a
qualificação, entre o que pertence ao domínio do tempo e o que é do espaço, já presente nos
rangidos de portas. Propulsionados por frequências moduladoras, os grãos convidam para um
trabalho extensivo sobre a) os espaçamentos temporais, b) a formação de alturas, decorrentes
da quantidade de grãos por segundo (lembrando que a partir de determinadas frequências
obtém-se alturas), e c) as diferentes massas granulares, mais ou menos densas, obtidas entre
esses dois pólos. Em suma: a síntese granular, operando no campo aberto por Henry, abre o
campo perceptual ambíguo comparável ao da fusão timbre/harmonia do spectralisme, com a
diferença que - pelo menos no que diz respeito a esta pesquisa - limita-se, aqui, ao emprego
em escutas zoofônicas.

5. Exercícios

Três esboços de composição explorando essa rítmica intermediária servem para


exemplificar a diferença entre os meios gráficos notacionais e a codificação computacional.

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Fig. 5 Dispositivo criado e compilado em Csound para gerar o primeiro esboço.

Na coluna à direita vemos as quatro formas de onda utilizadas para o esboço. De


cima para baixo: a forma serrilhada produz um espectro harmônico de três senóides,
preenchendo o conteúdo de cada grão. A segunda é responsável pelo envelope de amplitude
dos grãos: o ataque e, quando invertida, a extinção do grão. A terceira e a quarta são duas var-
iedades de moduladoras, controlando, nas quatro ‘vozes’, as quantidades de grãos por se-
gundo, assim como seus desvios no campo da altura e as durações individuais dos grãos. O re-
sultado final pode ser avaliado na visualização espectral da figura abaixo:

Fig. 6 Imagem fixa do resultado da compilação do primeiro esboço em Csound.

Víd. 1 Animação do primeiro esboço.

A seguir apresentarei mais dois exercícios, ambos produzidos com a mesma in-
terferência da modulação de duas frequências em sub-áudio, porém agora afetando espectros
diferentes. Esse segundo esboço recebeu modulações mais abruptas e em linhas mais retas,
sustentadas no tempo, implicando na geração de grãos em alturas fixas e quantidades mais ho-
mogêneas no tempo.

Víd. 2 Animação do segundo esboço.

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O terceiro exercício leva as características ‘rítmicas' para além do limite do recon-


hecível, porque desta vez a mesma modulação se aplica a grãos significativamente maiores,
contendo não mais as simples formas de onda resultantes de senóides na série harmônica dos
exemplos anteriores, mas pedaços ‘reais' de sons gravados de sinos tibetanos.

Fig. 7 Dispositivo para o terceiro esboço gerando grãos em cujo interior vão
fragmentos de sons captados de sinos tibetanos.

Víd. 3 Animação do terceiro esboço, dos sinos tibetanos.

6. Conclusão (ou Errata?)

“O observador que não presta atenção à vocalização dos animais, se queixa da po-
breza de aves no nosso país, até na Amazônia.” Esta é uma frase do ornitólogo Helmut Sick,
em sua ‘Ornitologia Brasileira’, publicada em 1982. Ele sempre reforça, em diversas ano-
tações, a importância da escuta para a identificação dos seres vivos. Esta apresentação termina
apontando para a relevância da mesma operação de escuta voltada aos seres vivos humanos.
Mas temos alguns problemas, sendo um deles de natureza estética. Classificamos o mundo es-
cutado muitas vezes fundamentados em preconceitos. Em um congresso internacional de

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bioacústica, viu-se uma pesquisadora classificar os sons de altura definida de uma ave como
‘canto’, enquanto que os sons percutidos com o bico caíram na lata de lixo do ‘ruído’, per-
dendo qualquer sentido etológico. Por conta de um pobre entendimento musical, todo um es-
forço de taxonomia biológica foi comprometido. Movimento simétrico pode ser observado no
campo da antropologia. A pesquisadora Rosângela de Tugny (Tugny, 2011) relata um diálogo
durante o qual, diz ela: “…perguntei aos pajés sobre algum ensinamento do uso do chocalho,
…” “… disseram que o toque não pode ser simultâneo. Quando muitos homens tocam, e que
existe alguma tendência à sincronicidade dos gestos e toques, um dos homens o suspende,
buscando sair da sincronia. Abominam a uniformidade dos gestos e a sincronia.” Segundo
Rosângela, “O chocalho parece então mais destinado a intensificar o timbre e a textura sonora
junto com os cantos. Ao criar disparidades nos toques, essa textura se torna mais rica, mais in-
teressante.” O que interessava ao grupo não era a batida coincidente, mas a massa (granular).
Com essa escolha, os maxakali precedem Pierre Henry. Há uma analogia possível entre essa
massa granulosa e o som da trovoada, que nada mais é do que o fracionamento do estalo, sub-
dividido em minúsculas partes, devidas aos inúmeros obstáculos atmosféricos posicionados
entre o momento súbito do raio e nossa escuta. O ‘som' do estalo nos chega aos ouvidos trans-
portado por milhões de partículas, muitas delas no estado líquido da chuva, em diferentes
temperaturas e densidades, sendo ainda mediado pela complexidade do meio geográfico. Am-
bos imprimem, tão efêmeras quanto indeléveis, suas 'marcas tecnográficas’.

A partir do trovão, dos chocalhos e do programa Csound, entendo que minha pro-
posta conceitual deve se encaminhar para uma reflexão mais filosófica. Pensar numa analogia
entre o fenômeno meteorológico, os chocalhos e a granulação por síntese computacional, re-
une elementos implicando numa crítica à noção de ‘marca tecnográfica'. Se o conceito queria
significar os efeitos da imposição dos suportes de registro sobre a cultura ou a percepção indi-
vidual - e se ela pode ser verificada tanto no âmbito dos artifícios técnicos quanto no das
condições naturais - então a palavra ‘tecnologia' se torna inadequada. O peso de ‘artificiali-
dade' embutido no conceito de ‘tecnografia’ inexiste em nuvens e terrenos que moldam as tro-
voadas. Em um livro apropriadamente - para esta palestra - intitulado ‘As Nuvens Maravil-
hosas’ (sem referência às pinturas de Hercule Florence) de John Durham Peters, encontro esse
apoio: “A ideia de que media sejam instituições portadoras de mensagens tais como jornais,
rádio, televisão e internet é relativamente recente na história intelectual. Diz [o teórico das mí-
dias] Jochen Hörisch: ‘Até o século dezenove, quando se falava em media, pensava-se tipica-
mente nos elementos naturais tais como água, terra, fogo e ar’. O legado elemental do con-

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ceito de media é plenamente relevante em um tempo no qual o que há de mais presente em


nosso ambiente é tecnológico, e a natureza - das abelhas e cães até a manipulação genética do
milho - está saturada de interferência humana. Em um tempo no qual é impossível dizer se -
para a manutenção do planeta - o ciclo de nitrogênio é mais importante do que a internet,
acredito que poderemos aprender muito com uma síntese sensata, por difícil que seja, das me-
dia como sendo tão naturais quanto culturais. Se as media são veículos portadores e comuni-
cadores de sentido, então sua teoria precisa seriamente levar em conta a importância da na-
tureza, o background para todos os sentidos possíveis.” (Peters, 2015).

BIBLIOGRAFIA
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i Cuja patente deixou de obter por não ter descoberto o produto químico necessário para a fixação da imagem
no suporte.
ii https://soundcloud.com/user-889742445/arapongas-1997-de-j-a-mannis-11-perc-dedicada-ao-grupo-piap e
vídeo em https://youtu.be/1c6X7taBqWc
iii A Symphonie Pour un Homme Seul, de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, de 1951.
iv "A peça é produto de uma mimese da natureza no seu processo criativo, e se caracteriza pour uma acepção
do termo mimese não como copia, nem simulação, nem imitação, mas como REPRESENTAÇÃO do seu original e
mais ainda como uma FICÇÃO a partir do original. A natureza como modelo a partir do qual a imaginação pode
desenvolver e criar novas coisas. Isso significa que a TRANSFORMAÇÂO aplicada a um modelo e desenvolvida pode
ser também uma das acepções de mimese.”
v https://youtu.be/aHgKZgNtsEk

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