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Rodolfo Caesar
Resumo: Em uma pesquisa em que se cruzam questões sobre a escuta, a sonoridade animal e o
papel das tecnologias na música, a composição se propõe como ferramenta de trabalho e método
de pesquisa, como lugar de ensaio e reflexão. Autores como Hercule Florence, Pierre Schaeffer,
McLuhan, José Augusto Mannis e outros, serão mencionados em apoio ou como referências para a
elaboração da pesquisa.
1. Centrífuga
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tica. Essas três vertentes: a escuta, as materialidades tecnológicas e os sons de animais, como
veremos, estão em dinâmico relacionamento na minha pesquisa.
Apoiada pelo CNPq, minha pesquisa atual intitula-se ‘Música, som e ritmo:
atualizando a Zoophonie de Hercule Florence’. A motivação principal é traduzir para a
contemporaneidade - e com suas ferramentas - o estudo de vocalizações de animais através de
recursos musicais, tal como, no início do século XIX, o explorador francês propôs(Vieilliard,
1993). Antes dele, também no Brasil, o príncipe alemão Maximilian Alexander Philipp zu
Wied-Neuwied havia fixado, em notas musicais, cantos de pássaros das florestas do Sudeste
brasileiro. Florence, no entanto, deixou registros formulando a sistematização de uma prática
sob denominação própria, que é de especial interesse para essa pesquisa. Com ela procuro
conhecimentos que podem parecer, à primeira impressão, estranhos ao domínio da Música.
Sair dessa Arte, no entanto, não é o propósito. A despeito da proximidade com a Bioacústica,
o projeto não se identifica com os métodos e finalidades desse ramo da Biologia, e nem tem
como objetivo levar, para esta Ciência, qualquer avanço que lhe beneficie. Espero que o con-
hecimento da Música saia enriquecido, quando menos pelo fato de ser mantida - como exercí-
cio fundamental para a pesquisa - uma escuta generalizada, uma atitude de atenção aberta a
todos os sons.
Florence lapidou o termo que serve perfeitamente aos desígnios dessa pesquisa,
apontando para uma rota de desvio relativamente à Biologia. Em vez da bioacústica, trata da
zoofonia: em lugar da análise de comportamento e conhecimento da fisiologia animal através
de suas vocalizações, propõe o estudo dos sons animais por meios musicais. Se, para Flo-
rence, a música instrumentalizou um conhecimento científico, aqui a direção se inverte: é o
conhecimento musical que, no fim das contas, procura estender-se em mais um de seus inu-
meráveis desdobramentos. Isto não significa que aportes dessa pesquisa não possam ser, even-
tualmente, aproveitáveis para a Biologia. E vice-versa.
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Uma pesquisa contemporânea não pode ignorar as diferenças entre o suporte nota-
cional de Florence e os equipamentos eletroacústicos de gravação, por exemplo: a análise e a
síntese atualmente disponíveis. Cada tecnologia interfere, à sua maneira, na própria escuta.
Por força da materialidade do suporte notacional na época de Florence, a captura para
memória do campo sonoro limitava-se a sons “musicais" - ou que pelo menos a eles se
assemelhassem. Contava, Florence, com os meios da notação de ritmos e alturas de notas mu-
sicais, bastando-lhe, para tanto, papel e lápis.
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uma outra e re-dobrada atenção. Não basta escutar, registrar e reproduzir: é preciso manter-se
atento para o papel influente da tecnologia nas escolhas da nossa escuta.
3. O campo zoofônico
Por que escolhi os sons de animais para colocar o terceiro pé dessa pesquisa?
Porque encontrei neles uma disponibilidade musical bem mais difícil de se encontrar em sons
de ‘natureza cultural’, tais como os das cidades, os sons industriais, de causalidades local-
izadas no trabalho ou em outras atividades humanas. Em geral possuem pouco interesse do
ponto de vista rítmico, pois a métrica preside a mecânica. Para que se mostrem musicalmente
interessantes, pelo menos para os meus ouvidos, os sons de origem ‘humana' invariavelmente
requerem sobreposições, misturas, situações beirando o caótico, etc. Ou precisam expressar
alguma estranheza ou singularidade narrativa. Isoladamente, em si próprios, raramente os
sons ‘humanos' não nos chegam transportados por uma métrica musicalmente quadrada e por-
tanto incomparável com modelos como, por exemplo, o desse dueto de rãs, capturado micro-
fonicamente:
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ada. Entretanto, para contestar a inadequação entre grafia em notas de ritmos e/ou alturas
‘não-canoras’, devo recorrer a outro contra-exemplo, um ato inaugural na partitura de José
Augusto Mannis, repercutindo, nos salões, as marteladas de arapongas, em obra homônima,
para grupo de percussão, de 1997.ii Graças a uma notação criteriosa e à disponibilidade
mimética dos instrumentos de percussão, a complexidade rítmica desses habitantes silvestres
pode ser devidamente encomendada aos instrumentistas. Não se trata da única aventura de
Mannis nessa difícil passagem de 'sons escutados' para a partitura. Em 2010 ele transcreveu
uma obra eletroacústica inteira, desafiando, ainda mais radicalmente, a subjetivação tecnológ-
ica da notação.iii Na partitura de ARAPONGAS, a grade em compassos ternários na verdade
não tem outra função senão a de proporcionar uma delimitação visual na linha do tempo, para
maior clareza e memorização da leitura. Assim como em PERSEPHASSA, 1971, Iannis Xe-
nakis quase sempre opta por compassos quaternários. Tanto na peça de Mannis quanto na de
Xenakis esse recurso, específico da escrita notacional, felizmente não ultrapassa o limite entre
o notado e o escutado, tornando-se, assim, menos presente, a tecnografia do suporte em que se
inscrevem. Justamente o que mascara a subjetivação da tecnologia, permitindo-me falar da re-
gra por suas exceções, é o fato que o ternário e o quaternário não se revelam à escuta.
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Áud. 2 ARAPONGAS.
Nas seções a seguir, descreverei a produção de sons que, se tivessem que passar
pela escrita notacional, exigiriam alta complexidade do ponto de vista temporal, porém - as-
sim como as rãs já escutadas acima - cuja síntese é relativamente simples para os recursos
computacionais. (Lembrando que, no universo computacional da música, é mais comum que a
'escrita' e a síntese estejam fundidas em uma só produção: sem a abstração da partitura, a
composição está no próprio som.)
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4. Modulação de Frequência
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dade da portadora e trazer ambas as frequências para o domínio das ondas mecânicas. Na es-
cuta da ‘vida real’ não-eletroacústica conhecemos uma variedade desse procedimento, sendo
o exemplo mais conhecido delas, o vibrato. Entretanto, nesse fenômeno as duas ou mais fre-
quências não estão todas no âmbito da escuta, pois a que faz ’vibrar' está abaixo do espectro
audível. Quando ouvimos um vibrato, o movimento percebido é efeito da modulação de uma
frequência sub-áudio sobre outra, audível. A altura se desloca de um centro - a frequência
portadora, aumentando e diminuindo conforme a atuação da moduladora.
Fig. 3 A linha superior modula a amplitude da central (AM), e a frequência da inferior (FM).
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Fig. 4 A moduladora é responsável pelo aumento e diminuição da quantidade de ‘notas’, grãos, ou pulsos, etc.
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5. Exercícios
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A seguir apresentarei mais dois exercícios, ambos produzidos com a mesma in-
terferência da modulação de duas frequências em sub-áudio, porém agora afetando espectros
diferentes. Esse segundo esboço recebeu modulações mais abruptas e em linhas mais retas,
sustentadas no tempo, implicando na geração de grãos em alturas fixas e quantidades mais ho-
mogêneas no tempo.
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Fig. 7 Dispositivo para o terceiro esboço gerando grãos em cujo interior vão
fragmentos de sons captados de sinos tibetanos.
“O observador que não presta atenção à vocalização dos animais, se queixa da po-
breza de aves no nosso país, até na Amazônia.” Esta é uma frase do ornitólogo Helmut Sick,
em sua ‘Ornitologia Brasileira’, publicada em 1982. Ele sempre reforça, em diversas ano-
tações, a importância da escuta para a identificação dos seres vivos. Esta apresentação termina
apontando para a relevância da mesma operação de escuta voltada aos seres vivos humanos.
Mas temos alguns problemas, sendo um deles de natureza estética. Classificamos o mundo es-
cutado muitas vezes fundamentados em preconceitos. Em um congresso internacional de
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bioacústica, viu-se uma pesquisadora classificar os sons de altura definida de uma ave como
‘canto’, enquanto que os sons percutidos com o bico caíram na lata de lixo do ‘ruído’, per-
dendo qualquer sentido etológico. Por conta de um pobre entendimento musical, todo um es-
forço de taxonomia biológica foi comprometido. Movimento simétrico pode ser observado no
campo da antropologia. A pesquisadora Rosângela de Tugny (Tugny, 2011) relata um diálogo
durante o qual, diz ela: “…perguntei aos pajés sobre algum ensinamento do uso do chocalho,
…” “… disseram que o toque não pode ser simultâneo. Quando muitos homens tocam, e que
existe alguma tendência à sincronicidade dos gestos e toques, um dos homens o suspende,
buscando sair da sincronia. Abominam a uniformidade dos gestos e a sincronia.” Segundo
Rosângela, “O chocalho parece então mais destinado a intensificar o timbre e a textura sonora
junto com os cantos. Ao criar disparidades nos toques, essa textura se torna mais rica, mais in-
teressante.” O que interessava ao grupo não era a batida coincidente, mas a massa (granular).
Com essa escolha, os maxakali precedem Pierre Henry. Há uma analogia possível entre essa
massa granulosa e o som da trovoada, que nada mais é do que o fracionamento do estalo, sub-
dividido em minúsculas partes, devidas aos inúmeros obstáculos atmosféricos posicionados
entre o momento súbito do raio e nossa escuta. O ‘som' do estalo nos chega aos ouvidos trans-
portado por milhões de partículas, muitas delas no estado líquido da chuva, em diferentes
temperaturas e densidades, sendo ainda mediado pela complexidade do meio geográfico. Am-
bos imprimem, tão efêmeras quanto indeléveis, suas 'marcas tecnográficas’.
A partir do trovão, dos chocalhos e do programa Csound, entendo que minha pro-
posta conceitual deve se encaminhar para uma reflexão mais filosófica. Pensar numa analogia
entre o fenômeno meteorológico, os chocalhos e a granulação por síntese computacional, re-
une elementos implicando numa crítica à noção de ‘marca tecnográfica'. Se o conceito queria
significar os efeitos da imposição dos suportes de registro sobre a cultura ou a percepção indi-
vidual - e se ela pode ser verificada tanto no âmbito dos artifícios técnicos quanto no das
condições naturais - então a palavra ‘tecnologia' se torna inadequada. O peso de ‘artificiali-
dade' embutido no conceito de ‘tecnografia’ inexiste em nuvens e terrenos que moldam as tro-
voadas. Em um livro apropriadamente - para esta palestra - intitulado ‘As Nuvens Maravil-
hosas’ (sem referência às pinturas de Hercule Florence) de John Durham Peters, encontro esse
apoio: “A ideia de que media sejam instituições portadoras de mensagens tais como jornais,
rádio, televisão e internet é relativamente recente na história intelectual. Diz [o teórico das mí-
dias] Jochen Hörisch: ‘Até o século dezenove, quando se falava em media, pensava-se tipica-
mente nos elementos naturais tais como água, terra, fogo e ar’. O legado elemental do con-
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BIBLIOGRAFIA
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i Cuja patente deixou de obter por não ter descoberto o produto químico necessário para a fixação da imagem
no suporte.
ii https://soundcloud.com/user-889742445/arapongas-1997-de-j-a-mannis-11-perc-dedicada-ao-grupo-piap e
vídeo em https://youtu.be/1c6X7taBqWc
iii A Symphonie Pour un Homme Seul, de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, de 1951.
iv "A peça é produto de uma mimese da natureza no seu processo criativo, e se caracteriza pour uma acepção
do termo mimese não como copia, nem simulação, nem imitação, mas como REPRESENTAÇÃO do seu original e
mais ainda como uma FICÇÃO a partir do original. A natureza como modelo a partir do qual a imaginação pode
desenvolver e criar novas coisas. Isso significa que a TRANSFORMAÇÂO aplicada a um modelo e desenvolvida pode
ser também uma das acepções de mimese.”
v https://youtu.be/aHgKZgNtsEk
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