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A SOCIOLOGIA
I. OBSERVAÇÕES EPISTEMOLOGICAS
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A F I L O S O F IA J)AH ClPlNÜIAH m U lA lX a m a iO L o a i A
A reposta a semelhante questão — e reconhecer-se-á que não Manipulações relativamente eficazes de um lado, discurso ideo
é unia questão sem importância, pois que dela depende o esta lógico do outro, tem-se''assim dois opostos abstractos, que
tuto a conceder à ciência social — exige um regresso às origens relevam de uma mesma origem, de uma mesma finalidade,
da sociologia e à sua história. E é esta uma tarefa à qual um portanto de uma mesma avaliação. /
sociólogo raramente recusa entregar-se. Como qualquer disci
plina incerta de si mesma (quanto mais não seja em virtude
da sua juventude), a sociologia necessita de legitimidade e de
antepassados. Quer provar — de uma maneira que se pode As origens
julgar contraditória — que aborda problemas que já em Platão
ou nos sofistas ocupavam o campo de pensamento e, simulta A sociologia nasce com a industrialização. A genealogia
neamente, que rompe com esse passado filosófico eonstituindo- «prestigiosa» que a faz remontar a Platão ou a Aristóteles, ou
-se como ciência, isto é, tratando segundo a racionalidade expe mesmo, aos pensadores políticos da Renascença, como Maquiavel,
rimental aquilo que relevava apenas da razão especulativa nos está errada, na medida em que encobre a originalidade do novo
seus? predecessores. Desta «ruptura», pela qual uma disciplina modo de pensamento e de prática. A sociologia está ligada aos
se toma ciência, deram-se conta os primeiros sociólogos (os do acontecimentos da época e às modificações profundas que a
século XIX) pelo privilégio que era — segundo eles— o da paisagem social conhece: o acontecimento principal é a Revo
socièdade industrial: ser a sociedade na qual a história encon lução Francesa que, na imagem que os homens fazem da sua
trava a sua verdade e na qual o homem podia tomar-se integral história, simbolizaria a grande ruptura e permitiria vincular
mente senhor das significações do seu mundo social. a um hic et nunc a morte dos tempos passados e o nascimento
|Este tipo de explicação é, em geral, hoje remetido para os dos novos tempos. A mudança social é fundamentalmente o
infehios da filosofia da história. Releva desses tempos em que fenômeno de massificação com a perturbação que provoca em
o sociólogo tinha a ainbição ingênua de dar conta do todo todas as antigas mediações (famílias, corporações, paróquias,
social e de profetizar quanto ao seu devir. Substitui-se-lhe etc.) e o fim da crença na perenidade de um mundo social.
outra análise: a verdadeira ruptura (e ela é posterior aos pri Os primeiros sociólogos aderem à nova sociedade e aos
meiros tempos da sociologia) provém da introdução do aparelho seus valores. Interrogam-se sobre as reformas a introduzir para
matèmático e da limitação dos campos de investigação. Assim, que realize da melhor forma o seu próprio fim : a racionalidade
Paul Lazarsfeld pôde escrever, na sua contribuição à obra — tanto econômica como social e política — que identificam
publicada pela Unesco, Tendances Principales de la Recherche sem restrição nem inquietude com a satisfação.
danè les Sciences Sociales eí Humaines (l) : «Não há grande Confrontados com a destruição dos antigos equilíbrios,
coisa em comum entre o qixe a sociologia era há cinqüenta anos com a simultânea transformação das condições de trabalho, da
e o que é hoje», significando com isto menos um progresso nó técnica, das relações sociais; confrontados também com o
conhecimento do que uma mudança de campo e de técnicas desenraizamento que os homens conhecem pela perda dos seus
ligada à utilização da linguagem matemática e à definição de quadros de vida e das legitimações espirituais que acalenta
objectos em função de processos de inquérito e de verificação vam o seu viver quotidiano, os novos pensadores sociais pro
que' autorizam. > põem-se responder às questões do tempo num duplo plano:
.'Posto aBBim, o problema p:irece-no3 mal posto. Com efeito, fornecer os instrumentos necessários à organização racional
a ideia de um corte que separaria, na história da sociologia, um da economia; construir o sistema de representações e de valores
«ant^s» que seria pré-científico e um «depois» que seria cien de que a nova sociedade — desprovida da antiga dimensão
tífico e matematicizado, não está verificada. O que se vê é uma sagrada— tem necessidade para organizar a prática dos seus
linha, muitas vezes mal desenhada, que atravessa longitudinal agentes sociais e alimentar o seu imaginário. Era preciso criar
mente a história da sociologia e que diferencia uma abordagem um novo sentido comunitário, tomar compreensíveis novas
técnica em que domina a preocupação da eficácia e a minúcia estratificações, responder às formas de miséria e de alienação
no registo dos fenômenos e uma abordagem filosófica mais de que sofrem as massas operárias.
ampla, em que domina a preocupação das grandes sínteses. É importante acentuar que a sociologia nasce, e apenas
pode nascer, numa sociedade que se interroga sobre si própria,
que põe em questão as suas normas, que faz da sua exis
; (') Mouton, 1970. tência e do seu funcionamento um problema; uma sociedade
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A FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS A SOCIOLOGIA
que já não se imagina escorada numa ordem exterior e que já fundidades, e como que enriquecido por este empobrecimento,
nãq pensa as suas instituições como factos da Natureza. ergue-se o «sujeito» que' detém o discurso da ciência. Que o
s A cidade grega encontrava a sua' norma numa ordem detém, mas que lhe escapa, pois ele é aquele de quem as ciências
ontológica que a ultrapassava por todos os ladoa: o cosmos. náo poderiam falar validamente; de algum modo o Outro da
As cidades reais, reconhecidas como violentas e infelizes, eram ciência, o seu fundamento exterior. Este sujeito não pode
repôrtadas pelo pensamento filosófico ao modelo elaborado pela — nem em Descartes nem em Kant— ser identificado ao
razão: o da «Cidade Justa», ao mesmo tempo conforme à homem nas suas determinações concretas. Mas, por uma espécie
Natureza e à sua natureza. Uma ordem inteligível fundava a de necessidade interna, ver-se-á o cogito cartesiano, o «su
realidade social — concebida como parte integrante do Ser — jeito transcendental» kantiano, ampliar-se e enraizar-se no real
e tomava-a transparente ao homem do saber, o filósofo. Que até se tomar esse homem, que irá inscrever o seu ser na História
na Idade Média esta sacralidade assuma uma dimensão religiosa e na Política. Assim, está constituído um indivíduo definido
(a Cidade de Deus) e que o discurso filosófico se submeta a pela separação que faz entre a sociedade e o sentimento que
umà finalidade ética e, em última análise, teológica, eis o que tem de ser o proprietário privado de si próprio (aquilo que
debta intactas as estruturas da problemática. chama a sua liberdade e que a sua lei definirá — tal como um
10 século xvi inicia a ruptura. Com Maquiavel, com Hobbes, campo — como tendo os limites na liberdade de outrém): o
o pjensamento profano triunfa. A separação enunciada entre indivíduo burguês, orgulhoso do seu reduto metafísico e que
moral e política — quer dizer, entre teologia e política— faz vê no mundo social um lugar onde vontades livres se entre-
coni que a sociedade devolva a si mesma a sua própria norma. cruzrm e se combinam (aquilo a que Hegel, em Princípios da
A Natureza, caída na categoria de «física», não poderá, já Filosofia do Direito, chamava «o ateísmo do mundo moral»),
ser Afundamento axiológico e Deus afasta-se dos homens, dei Na sociologia vão-se conjugar estes dois efeitos aparente
xando o temporal à sua própria lógica. Em conseqüência, que mente contraditórios — o homem definido como elemento, de
outro fundamento pode ter a sociedade e que outra legitimidade uma estatística e o homem definido como sujeito produtor da
pode ter o poder que não seja o da vontade dos homens ? A via sua história— numa síntese ecléctica onde se irão apoiar, e
est4 aberta à «antropologia», esse campo de pensamento onde opor, a perspectiva empírica, que imitará o rigor dos trabalhos
lev^derá a massa das «ciências humanas». científicos, e a especulação ideológica, com a sua vontade de
: Insistamos no duplò efeito que estas mutações geram construir uma axiologia da acção política e social.
ouafito ao estatuto do indivíduo: A sociologia aparece assim nesse campo de pensamento
; O mundo da qualidade, que era o dos tempos pró-industriais, ?m que o homem, tomado ponto de referência, fundamento e
foi Jsubstituído por um mundo da quantidade. Com a física fulcro do discurso, se quer ao mesmo tempo tomar passível,
matfemática, a Natureza empobrece-se metafisicamente e toma- de direito, dos processos da cientificidade. A topologia contra
-se üma res extensa, um universo homogêneo, unido pelà iden ditória que daí resulta aspira a referir as diferentes ordens
tidade das leis que o regem e dos elementos simples que o do saber (as diferentes linguagens) e as diferentes ordens da
compõem. O mesmo eteito produz-se no «homem». Os indivíduos, prática a um ponto focal, um emissor, que é, simultaneamente,
porjdetrás da sua aparente diversidade — a dos seus ofícios, senhor e origem dessas diferentes ordens e presa destas ordens.
das *suas actividades, mas também a das suas origens e da A geografia dos saberes é tal que desenha por exclusão o lugar
sua; história «pessoal»— são termos idênticos, as suas dife deste rei impossível: o homem.
renças reduzem-se apenas a diferenças de salários (isto é, a As ciências «do homem» conhecerão uma desarticulação
diferenças no interiór de um campo aplanado, uniformizado particular. Ao tornarem-se «ciências» — e isto segundo o
pelo dinheiro, instrumento universal de medida J. Por este facto, modelo das ciências já existentes: as ciências da Natureza—,
tonía-se possível um conjunto de técnicas e de meios de onde tomarão à sua conta um edifício teórico que não pode deixar de
sairão disciplinas como a economia política e a demografia. dissolver o objecto que elas se atribuem e anular-lhe a especi
:Mas ao mesmo tempo que o indivíduo se anula, como indi ficidade. Com efeito, as ciências da Natureza tinham-se atribuído
víduo diferenciado, nüm conjunto de séries às quais a estatística um domínio (a Natureza) de onde o homem, como tal, estava
impõe a sua lei, recupera por outra via um estatuto filosófico ausente, no qual o único modo de existir era o da necessidade
par&çular, que resulta das transformações no interior do antigo exterior e cega, uma necessidade de tipo mecanicista. Ora, o
discurso metafísico, Face a uma Natureza doravante sem pro homem, aquele acerca de quem discursam o filósofo e o mora-
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A FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS A SOCIOLOGIA
listra, parece escapar a esse modo de existir, já que aparece esclarecer a significação, sendo esta a relação que, através do
coipo determinado por uma história dç que, por outro lado, cientista, uma sociedade inantém consigo própria e com o seu
se define como produtor. Inversamente, querer ser fiel à espe passado. Deste modo, com efeito, para Durkheim, a sociologia
cificidade do objecto (o homem) obriga a renunciar aos cânones parece dever ser uma «física social», enquanto para Weber
estabelecidos da cientificidade, apresentando embora este aban é o modo de consciência que uma sociedade tem de si própria,
dono como provisório. da sua história e das outras sociedades. Mas por outro lado,
j Esta desarticulação, que acabamos de resumir, não é para atrás da sua metodologia científica, Durkheim define a socie
seii tomada pela oposição entre uma verdadeira, ciência social dade como uma consciência colectiva, quer dizer, como uma
e ujma retórica social justificadora (ou contestadora, o que vem realidade psíquica que transcende o psiquismo individual, e
a dar no mesmo). Ê a oposição entre um empirismo que identi reivindica a sociologia para o estudo dos remédios da doença
fica a ciência apenas à sua metodologia e um humanismo que das sociedades modernas (a anomia). Quanto a Weber, nenhum
se «limita a retomar o antigo discurso filosófico. Foi contudo sociólogo melhor que ele esteve animado de semelhante escrú
esta falsa oposição qüe toda uma tradição epistemológica quis pulo epistemológico a respeito da nova disciplina (e, evidente
consagrar sob a forma da angustiante alternativa «explicar- mente, há em Weber a mesma preocupação de rigor na recolha
-cojmpreender». Notemos que esta maneira de pôr a questão e no tratamento dos factos que há em Durkheim).
eqüivale a iludi-la, pois redu-la a um debate entre métodos Do itinerário incerto que seguimos e através de todos
e não a um debate sobre o objecto, isto é, sobre a teoria, estes preliminares epistemológicos, que primeiras conclusões
i se podem tirar? A relação que existe entre a sociologia e o
j tipo de sociedade que a engendrou não obrigará a pensar que
Explicar-compreender a sociologia, na medida em que reivindica a ambição de dar
I conta do todo social, não é senão uma das formas da consciência
\ É a Dilthey que se deve esta distinção entre a vocação que as sociedades modernas têm de si próprias? Ora, esta
da£ ciências da Natureza e a vocação das ciências do homem. consciência não pode ser neutra. A sua função é dar conta
Eríquanto as primeiras procuram estabelecer relações confitan- da vida dos grupos e legitimitá-la. Acontece com a consciência
tea entre os fenômenos, isto 6 , expllcá-loa, us segundas, que ae que uma sociedade tom do si própria o mesmo que com a
referem a factos qufe criàtalizam projectos humanos col.êctivos consciência que os indivíduos têm de si mesmos. Responde
e que tiram a sua principal característica do lugar que ocupam a uma necessidade, não é a verdade. Enredados numa multi
no5eixo do tempo, terão áe os compreender. Nas ciências huma plicidade de papéis, os agentes soçiais têm o sentimento de que
nas não se poderia dissoíver o facto na rede de causas .que se as múltiplas determinações colectivas, que se entrecruzam, são
supõe produzi-lo. Trata-se sempre de pôr a questão caracte apenas os diferentes aspectos de uma totalidade real de onde
rística do novo campo: «Qual é o significado do fenômeno, que derivam, uma totalidade que é o próprio lugar da sua existência
quer ele dizer?» humana: a sociedade. O sociólogo, ao discorrer sobre a sociedade
j Neste debate exprimè-se a desarticulação que é, dessèmo-lo, numa linguagem que tem as aparências do rigor, pois que se
característica da soèiologia, presa entre uma definição do indi apoia numa recolha «objectiva»; de factos, não prolongará
víduo como. elemento submetido às leis da estatística e do ingenuamente a vivência do homem vulgar, dando, em última
indivíduo como sujeito-sóberano, produtor dc seu discurso e da análise, apenas uma coesão simbólica às práticas dos homens
sua história. Um dèbate enganoso, na forma exigida pela época: a da grande indústria? Responder
i Para encenar e dramatizar o debate quis-se personalizá-lo a estas questões obriga a perguntar: Qual é o objecto da socio
e tomá-lo uma espécie dè «pugna» entre Max Weber (a «com logia, e, há um objecto da sociologia? Qual é o seu percurso?
preensão») e Emilé Durkheim (a «explicação»); porqíie não Em que ponto está a sua «revolução copemiciana» ?
entre a sociologia alemã e a sociologia francesa?... No seu livro Dix-huit Leçorn sur la Soeiété IndustrieTle,
; É certo que Durkheim afirma que «devemos tratar os Raymond Aron, ao assinalar a dificuldade que a sociologia tem
façtos sociais como coisas» e considera que o sociólogo deve em precisar a diferença que a separa das ciências sociais parti
em primeiro lugar procurar as causas dos fenômenos que culares, escreve: «A sociologia parece caracterizar-se por uma
estuda, isto é, os fenômenos antecedentes e produtores. Ê certo perpétua procura de si própria. Num ponto, e talvez num
que Weber lembrou que as ciências da cultura têm por objectivo apenas, todos os sociólogos estão de acordo: a dificuldade de
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A FILOSOFIA DAS ClüNGIAB SOCIAIS A SOCIOLOGIA
definir a sociologia.» Esta dificuldade é a da definição do seu romana, a religião romana, é de cada vez descobrir que o seu
objecto. significado oculto, a sua vèrdade, é o «princípio da individuali
j No livro que citámos acima, Lazarsfèld faz uma constatação dade jurídica abstracta».
an’áloga quando considera que a sociologia não se desenvolveu No princípio desta concepção da totalidade encontra-se a
a partir de uma determinada disciplina, mas que é o resultado afirmação de um tempo contínuo, único, pulsando ao mesmo
de» uma actividade residual, cujo papel é preencher os espaços ritmo a todos os níveis, de modo que cada um destes está
vazios do quadro intelectual. Bempre na mesma hora histórica que os outros. A autonomia
\ Poder-se-á iludir a dificuldade em atribuir um objecto à dos níveis é fictícia; estes nunca são mais que as manifestações
sociologia definindo-a como um lugar vazio, onde se enredam de um princípio unitário, um sujeito histórico e colectivo.
disciplinas autônomas, e escapar assim ao risco de reduzir o Este princípio de totalização é o mesmo que utiliza o
discurso sociológico, na sua maior ambição, ao estatuto de sociólogo, ainda quando sublinha os desfasamentos que os
unia filosofia que hierarquiza e organiza conhecimentos empí diferentes níveis estabelecem uns em relação aos outros. Com
ricos a partir de uma ideia daquilo que é a totalidade social efeito, estes desfasamentos são referidos aos desvios que é
e o seu devir? E a questão não diz respeito apenas à sociologia, preciso aceitar entre a realidade empírica (que conhece obstá
más também a todas as disciplinas sociais na medida em que culos, atrasos, fenômenos de sobrevivências) e o modelo pelo
pretendem ser outra coisa do que instrumentos técnicos de qual aquela se torna inteligível, modelo descrito por Foucault
manipulação. Com efeito, o estudo das determinações parti ( Árchéólogie du Savoir) ao falar da história global:
culares não pode fazer-se sem que se seja levado a perguntar «O projecto de uma história global é o que procura res
se *a compartimentação de onde provém nada deve a esta ideia tituir a forma de conjunto de uma civilização. (...) Supõe-se
das totalidade à qual — implícita ou explicitamente, conscien- que entre todos os acontecimentos de uma área espácio-temporal
teihente ou não — são referidas. Trata-se portanto de construir bem definida (...) se deve poder estabelecer um sistema de
ui4 lugar que permita dar conta do tipo de causalidade, dos relações homogêneas: rede de causalidades que permita a deri
efeitos e contra-efeítos das instâncias umas sobre as òutras. vação de cada um deles, relações de analogia que mostrem
Más tratar-se-á assim de instituir um campo teórico e não como se simbolizam uns aos outros, ou como todos exprimem
filosófico, isto é, uín campo no qual as formulações sito tais um único núcleo central: supõe-se, por outro lado, que uma
que haja meios de ás refutar por processos que, na esiaência, mesma forma do historicidade domina as estruturas econômicas,
não diferem dos de todas as ciências: o «regresso ao real». as estabilidades sociais, a inércia das mentalidades, os hábitos
f Esta «revolução copemiciana» (e é bem o caso, pois que técnicos, os comportamentos políticos, e submete todos ao
põe em questão o fundamento antropológico das dênciás mesmo tipo de transformação; finalmente, supõe-se que a
sociais) inscreve-se talvéz nas mutações que hoje as ciências própria história pode ser articulada em grandes unidades — es
sociais conhecem, mutações inseparáveis das que se prõduzein tádios ou frases — que detêm em si o seu princípio de coesão.»
nas matemáticas e na rèlação que se institui entre elas e a Acontece que a sociologia teria;de explicar como os agentes
sociologia. A caractèrística mais significativa deste novo hori sociais produtos e produtores destas séries as combinam na
zonte parece-nos ser o duvidar da noção de totalidade— noção unidade vivida da sua sociedade.
que se encontra desde os começos da sociologia e que ê como Para melhor dar conta das rupturas que julgamos discernir
que a ponte entre o discurso da filosofia da história e o discurso nas tentativas contemporâneas, parece-nos oportuno tentar um
da sociologia. Esta noção de totalidade encontra-se na filosofia panorama esquematizado da história da sociologia e uma pes
hegeliana e com um uso. que é análogo ao que dele fárão ós quisa, das problemáticas actuais.
pensadores sociais do século XIX e seus sucessores. Sensível
à especificidade de cada figura histórica e à sua diferença das
outras, Hegel tinha descrito o «mundo grego», o <mundo ro II. A SOCIOLOGIA DE ANTEONTEM
mano», o «inundo moderno», etc., como totalidades históricas
coerentes em si próprias. 0 seu modo de totalizaçáo é tal que 0 termo «sociologia» foi forjado por Auguste Comte para
a análise de cada um dos níveis do todo revela que se tenha, designar aquela de entre as ciências que ele colocava no mais
na] sua «linguagem», o mesmo Espirito, a mesma essência, o alto da hierarquia dos saberes, pelo duplo facto de o seu objecto
espírito e a essência do tòdo. Analisar o direito romano, a arte ser o mais complexo e de o seu progresso depender do desen-
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A FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
A BOOJOfiOaiA
í
nação do mal histórico, e qué, ao mesmo tempo, nele se encontra
voívimento do conjunto dos outros saberes. Ao meamo tempo, o esforço mais conseqüente para livrar a ciência social do
Adguste Comte concede à sociologia — precisamente porque empirismo e dar-lhe a dimensão de uma teoria. Marx tinha o
$ à mais sintética das ciências— a tarefa de esclarecer a projecto, como resume R. Aron 0 ), de elaborar uma teoria do
humanidade acerca do seu destino histórico.^ Assim, com o funcionamento do sistema econômico capitalista, do funciona
fundador — se nãó da disciplina, pelo menos da sua designa mento e do devir da sociedade capitalista e, enfim, uma teoria
ção — três dimensões se combinam que definem este primeiro da história das sociedades nas suas variedades e suas variações.
momento da sociologia, o das ilusões e das grandes ambições: Do seu fracasso, não cremos que reste apenas um edifício cons
dar conta do todo social na multiplicidade das suas determina- truído sobre as nuvens e propriamente inútil para a sociologia.
çõés e na unidade que o seu entrelaçamento constitui; explicitar Assinalemos de maneira breve alguns dos elementos que o
o sentido do devir colectivo; ditar a prática política e social sociólogo não poderá desconhecer sem trair o significado da
doé homens de modo que seja completa a racionalidade inscrita sua pesquisa. O primeiro destes elementos não é certamente
nas possibilidades da sociedade industrial. original: Marx lembra — depois de Montesquieu entre outros —
j Quer Comte, quer Tocqueville, quer Spencer, quer também que as sociedades estão submetidas a determinismos de que os
'Marx — e outros que não citamos—, todos quiseram tomar-se actores sociais não têm conhecimento nem consciência e que as
simultaneamente cientistas e profetas' da sua modernidade, manifestações psicossociais destes determinismos são sempre
sendo esta definida segundo um diferente critério dominante: efeitos indirectos. O capitalista, o proletário, nem bons nem
Tobqueville opta pelo critério político e sublinha a importância maus, não decidem das suas respectivas condutas; actuam
,da noção de proximidade e de vizinhança numa democracia’ geralmente em função do seu lugar na produção e, cóhjuntural-
liberal privada de hierarquias tradicionais; Comte, Saint-Simon, mente, «por causa» das circunstâncias.
Spenoer, põem o acento no critério tecnológico (a indústria,); Isto significa — é o segundo elemento — que não é interro
Márx e Proudhon no critério socioeconómico (a organizaçãò gando os indivíduos que se poderá construir uma ciência das
da? produção e as relações de propriedade). fi privilégio do sociedades e das suas transformações. Tal interrogação é so
séòulo xix, esse tempo em que nasce a sociedade industrial mente indicativa: revela apenas as maneiras diversas de como,
nulna agitação rica e confusa de ideias e de sonhos, ver aparecer a partir da ideologia dominante, se exprime o imaginário social.
todas as formas de pensamento possíveis explicativas d<5 fenô Mas Marx forja também uma bateria de noções simulta
meno nascente. Por ifcso, não há uma utopia, uma doutrina, nem neamente mais originais e mais preciosas. Por exemplo, o con
mejsmo uma teoria que não possa, um dia ou outro, e coiísoante ceito de «modo de produção». Quis-se ver nele o sinal de uma
as *metamorfoses da história e os aspectos da eonjünturá, abordagem puramente econômica.— mesmo eponomicista — do
revelar a sua actuaíidadé ou a sua riqueza; nem há pensador social: a explicação do conjimto do edifício a partir da análise
dos começos do século xix que não tenha a sorte de se ver dos meios de que uma sociedade dispõe para assegurar a sua
eleito pensador do nosso mundo. E, certamente, é unfta das própria sobrevivência. E é verdade que em Marx muitos textos
taiiefas da sociologia actüal reler a obra dos «grandes antepas permitem a confusão. Mas, sendo assim, como compreender que
sados» e procurar fãzer à triagem entre as afirmações .cientí Marx, enunciando o princípio explicativo que o econômico é
ficas — os fragmentas dé sociologia — e as convicções ftiorais determinante «em última instância», se defenda de certos crí
ou j messiânicas. Mas como não ter na memória o aviso de ticos (que lhe opõem que este princípio, válido segundo eles
Raymond Aron: «Acjuele mesmo que quer distinguir estes dois na conjuntura industrial, não o é nem na Grécia clássica, onde
elementos — a parte das convicções e a parte das afirrhações a cena histórica parece ocupada unicamente pelas lutas polí
científicas— distingue-oà em função das suas próprias con ticas, nem na Idade Média, em que o aspecto religioso domina),
vicções» (Les Etapes de ia Pensée Sooiologique). Mas a reava mantendo o valor do seu princípio e escrevendo: «nem a pri
liação das obras é indispensável e releva do acto pelo qual a meira (a Idade Média) podia viver do catolicismo, nem a
sociologia assegura á sua própria renovação e a eua ruptura. segunda (a Grécia clássica) da política, As condições econô
? Tomemoá como exemplo Marx, pois pensamos que é signi- micas de então explicam pelo contrário porquê naquela o cato
ficktivo, uma vez qué nele se encontra a origem de um discurso licismo e nesta a política desempenhavam o papel principal»
ideológico que não deixem de fazer sentir os seus efeitos, já
que milhões de hoinens pretendem ver nele o guia das suas
pritlc&s e que outros milhões de homens fazem dele a incar- (*) Op. cit.
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A FILOSOFIA DAS 0 ISN0 IA8 SOCIAIS A SOCIOLOGIA
(Capital, livro I, cap. IV, nota). Compreenáe-se assim porque No entanto é difícil não ver que esta sociologia de inqué
é que, nas suas análises concretas (A Luta de Classes em ritos, na medida em que'permanece fiel ao seu projecto, não
França, O 18 de Brumário, etc.), Marx parece experimentar é senão uma técnica de informação administrativa. Quando
um malévolo prazer em mostrar a ausência de determinação ultrapassa este nível puramente utilitário, transforma-se em
econômica directa. O econômico não é uma instância real e discurso moralizador, ou contenta-se com proceder a generali
produtora dos outros níveis bem como da história da sociedade zações «cegas». Tomemos o exemplo que Quételet. Lazarsfeld,
global. Ele não tem a dimensão do actu&l, mas permanece um nas suas «Notas sobre a história da quantificação: as fontes,
princípio teórico que constrói o campo característico de uma as tendências, os problemas» (x), ao sublinhar que «o pensa
nova ciência. De resto, nenhuma instância «real» pode legiti- mento de Quételet, os seus processos de análise dos dados,
mandente ser apresentada na sua pureza. Não existe, por fazem doravante parte integrante da pesquisa social empírica»,
exemplo, práxis muda que possa ser apreendida empiricamente vê-se na obrigação de acrescentar: «Há um ponto em relação
fora de qualquer ligação ao simbólico. O econômico «determi ao qual ele não pôde ultrapassar os limites do clima intelectual
nante em última instância» não é a instância econômica con próprio da sua época. Ainda que tenha constantemente insistido
creta, mas aquilo que permite a definição de instâncias e da na ideia segundo a qual se podiam recolher dados precisos a
sua mteracção. fim de proporcionar um fundamento empírico a um novo
conceito, nunca forneceu disso qualquer exemplo concreto: con-
O conceito de modo de produção tem uma função de inteli tentou-se com reinterpretar os materiais recolhidos pelas ope
gibilidade, mas o seu interesse está talvez menos nas respostas rações de recenseamento social provindas da sociedade con
que fornece, que nos problemas que obriga a pôr. Exige, em temporânea.»
particular, que seja pensado um novo tipo de causalidade que Aquilo que poderia efectivamente ser lançado na conta
não seja nem a causalidade mecânica de um nível sobre oe de um esforço de teorização da parte de Quételet nunca foi
outròs, nem a «causalidade recíproca» em que todos os níveis senão a manifestação de um empirismo selvagem. De diferentes
têm idêntico estatuto e que é a «noite em que todos os gatos estatísticas coligidas a propósito de características físicas (o
são pardos»; chamemos a isto a causalidade estrutural, embora peso e a altura, entre outras) e de manifestações de caracterís
saibàmos que baptizar uma dificuldade não é o mesmo que ticas morais (sobretudo, criminalidade) relacionadas com a
resolvê-la. E se Man| soube recusar as simplificações que o idade ou outras propriedades de ordem demográfica, ele deduziu
remétiam para uma filosofia de tipo hegeliano, não é certo que as noções de «homem médio» e de «manifestação média» das
tenhja- logrado conferir uni eBtatuto claro à sua ideia dé um diversas actividades do homem. Ora, é forçoso constatar que,
referente pelo qual seria preenchida a exigência de unificar se Quételet habituou os espíritos a uma quantificação (e por
■> cainpo social. Aquilo em que queremos assentar é na inipor- tanto a uma submissão a leis matemáticas) de domínios que
tância da releitura, dé uma releitura em que a vigilância èpis- relevam da «vontade», os seus conceitos foram totalmente aban
temológica domine. donados porque são o produto mecânico de uma estatística, que
Poder-se-ia objectar a esta imagem abreviada que dêmos não é interrogada, nem quanto ao seu objecto, nem quanto à
dos "começos da sociòlogia, que lhe faltam essas formas de natureza dos parâmetros que define.
pesquisa que já existiàm e que são talvez as mais importantes, O exemplo de Le Play é interessante por outro motivo.
levaiido em conta aquilo que é actualmente a ciência social: os Encontra-se nele assumida a ligação que une as técnicas de
inquéritos. Seria longa a lista dos que, mesmo antes dé ser inquérito (na ocorrência, as suas monografias sobre as famílias
imposta a sociedade industrial, e desde o século xvn, acumu- operárias) e a intenção política e social. Pretendendo-se fun
taram dados quantitativos sobre os fenômenos sociais, dados dador de uma ciência social objectiva de que toma o modelo
predominantemente demográficos, pois que a complexidade metodológico das ciências naturais, escreve: «Para reencontrar
administrativa doe grandes estados europeus obrigava a que o Begredo dos governos que proporcionam aos homens a felici
se poesuíese um conhècimento preciso do número e da répar- dade fundada na paz, apliquei à observação das sociedades
tiçãô dos seus indivíduos. Mas é apenas no século xix' que humanas regras análogas às que tinham guiado o meu espírito
surgem as fontes estatísticas indispensáveis a uma ciência das
populações (em 1801 foi efectuado em França o primeiro recen- (*) Ver Lazarsfeld: Philosophie des Sciences Sociales, colect&nea
seamento sério)* organizada por R. Boudon, Gallimard, 1970.
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A 2»jrL08ÔFIA DA3 CIÊNCIAS SOCIAIS A SOCIOLOGIA
í
no estudo dos minerais e das plantas.» Lazarsfèld resume assim vem numa análoga constatação da crise que a sociedade mo
o projecto de Le Play: «Le Play atribuía^ às suas monografias derna conhece." A divisão social do trabalho, escreve Durkheim,
um papel muito preciso. Via nelas o instrumento de uma análise toma objectivamente o indivíduo mais dependente de outrém
comparativa, que permitia revelar ias condições' da felicidade em virtude do caracter parcelar do seu trabalho e, simultanea
ou da infelicidade dos povos. O conhecimento destas condições mente, faz-lhe tomar consciência da sua «diferença», isto é, da
deve ser transmitido à elite do país respectivo, fi a esta que sua própria individualidade. «À medida que todas as outras
cabé em seguida tomar as medidas apropriadas...» Assim, nasce crenças e todas as outras práticas adquirem um carácter cada
um çliscurso híbrido — cujos excessos talvez esclareçam a natu vez menos religioso, o indivíduo toma-se o objecto de uma
reza da disciplina que pretende servir. Encontra-se aí uma espécie de religião.» Vê-se o paradoxo (e a possível patologia)
massa de informações ao serviço de dois princípios definidos de tal sociedade: -enquanto a efectiva interdependência entre
comb as condições da felicidade social: o respeito do Decálogo, os membros da comunidade deveria implicar uma maior depen
o reforço da autoridade paterna. Separado do edifício ideológico dência relativamente aos valores comuns e uma harmonia entre
no qual se insere, este" trabalho monográfico mais não fornece os fins que cada um se propõe e as regras da consciência
que um conjunto de dados a reinterpretar. Ciência, é que nada. colectiva, é o efeito inverso que se produz. Cada indivíduo fixa
valores «privados» que o opõem ao sistema dos valores comuns.
O tecido social — o consenso— ameaça desfiar-se, e o papel
do médico-sociólogo é dar-lhe remédio e dizer quais são os
III. A SOCIOLOGIA DE ONTEM meios de restabelecer a solidariedade social e de limitar a
anomia. Com Durkheim, a sociologia francesa encontra ao
O tempo dos entusiasmos — o do triunfante, século XIX — mesmo tempo o* mestre que lhe dita as regras do seu método
dá rapidamente lugar, no acabar de um século e no dealbar — as que deve respeitar para ser uma ciência como as outras,
de o,utro, a uma sociologia que se insere nas instituições oficiais quor dizer, uma pesquisa rigorosa das «causas» — e o homem
e que se reveste da dignidade, da pompa e da insipidez do de fé, que vê na sociedade uma realidade psíquica superior. «Não
discurso universitário. A sociedade industrial instalou-se. Ex há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso pára
portou — impôs, mesmo— a sua racionalidade no mundo.; acordar nos espíritos, apenas pela acção que exercer sobre eles,
descobriu também que a& suas próprias irracionalidade»^ têm a sensação do divino, pois que ela é, para os seus membros,
uma resistência maior do que se supunha, mas não se inquietou aquilo que um Deus é para os seus fiéis... Se cedemos às suas
desmedidamente com isso, visto que aprendeu que podia sobre ordens, não é simplesmente porque ela se encontra armada
viver às agitações rèvolucionárias que durante um terripo a de forma a triunfar das nossas resistências; é, antes de mais,
sacudiram. Estas tomaram-se objectos de reflexão. A sociologia porque ela é o objecto de um verdadeiro respeito». (Les Formes
quei entra na fase do seii establishment e sonha cada" vez Êlémentaires de la Vie -Réligieuse).
iqais ocupar o lugai* de conselheiro do vei afina os-. seus O diagnóstico de Weber sobre o mal do tempo é semelhante.
métjpdos, guarda-se dás intrusões possíveis da ideologia e afirma A análise que faz das razões e das causas assim como as res
com força aumentada o seu desejo de cientificidade. Mas ássis- postas que propõe são muito diferentes. Ao sublinhar o carácter
tir-se-á a uma ruptura autêntica com a época das ilusões e dos desencantado de um mundo que perdeu toda a crença em valores
messianismos? A coisà não é certa, as mutações que o disòurso espirituais, escreve, em Le Sawant et le Politique: «Abraão ou
sociológico conhece não vâo até ao ponto de pôr ein questão os camponeses de outrora morreram ‘velhos e cumulados pela
o horizonte que tem sido o seu. Mais que de mutações seria vida* porque estavam instalados no ciclo orgânico da vida,
preèiso falar de retomada, parecendo os sociólogos darém-se
porque esta lhes tinha trazido, no declínio dos seus dias, todo
como tarefa essencial tomar a pôr — mas «a frio», num espírito
de neutralidade axioíógicá — os problemas que tinham sido o sentido que podia ofereccr-lhes e porque não subsistia qual
quer enigma que tivessem querido ainda resolver. Podiam assim
>s dos fundadores. Assini se explica que domine sempre o
dizer-se satisfeitos da vida. Pelo contrário, o homem civilizado,
objéctivo das 'grandes' síntèses e a procura de uma inteligibili
situado no movimento de uma civilização que continuamente
dade do todo social. s e 1enriquece de pensamentos, de sabedoria e de problemas pode
iNão parece útil voltar, mesmo a traços largos, aos traba sentif-se enfastiado da vida e não por ela cumulado. Com efeito,
lhos de Durkheim ou aos de Wpber. Contentemo-nos com notar
queí o projecto durkheimiaíio e o projecto weberiano se inscre- nunca pode agarrar senão uma ínfima parte de tudo o que a
m m
A- FILOSOFIA DAS CISNCIAS SOCIAIS A SOCIOLOGIA
vida do espírito incessantemente produz de novo, não pode quisas empíricas, uma multiplicação de óbjectos restritos e de
apoderar-se senão do provisório e jamais do definitivo, Ê por sociologias parcelares, mas um recuo da tradição especulativa
isláo que a morte aos seus olhos é um acontecimento que não e teórica. A preocupação da produtividade e da eficácia pre
teái sentido. E porque a morte não tem sentido* a vida do civi valece sobre o ideológico explícito. Todavia, a ambição de cons
lizado como tal também não tem, visto que, pelo facto da sua tituir um campo que permita a unificação e a generalização
progressividade despida de significação, faz igualmente da vida não desapareceu totalmente. No entanto, talvez seja preciso
um acontecimento sem .significação». notar que esta ambição tem a. sua sede primeiramente na
\ A racionalização — que não é o triunfo da razão em todas etnologia. Tal é o caso do funcionalismo, do estruturalismo ou
así esferas, mas o modo de organização da vida em busca do das pesquisas de dinâmica social.
rendimento e da eficácia — faunos perder o sentido do sagrado. Seria pouco correcto subestimar a importância da» pes
O íempo dos profetas é substituído pelo tempo dos charlatães. quisas parciais e a riqueza dos materiais que acumulam. Haveria
; A originalidade de Weber é que ele assume a ruptura entre que citar — para não ficar senão no interior da sociologia fran
a imagem do que é desejável e a realidade e faz desta ruptura cesa— os trabalhos referentes à «sociologia das instituições
un^a dimensão do mundo moderno sem procurar nem «remédios» pedagógicas» de Alain Girard (inquéritos demográficos), P.
nem ilusões. Esta mesma ruptura encontra-se no estatuto que Bourdieu e J.-C. Passeron (Les Héritiers); os trabalhos de
confere ao homem de ciência e ao universitário e na recusa de sociologia da informação e dos mass-media de J. Cazeneuve
qujalquer possibilidade de os ver tomarem-se «guias espirituais». (La Bodété de Vubiqxàté; Les Pouvoira de la télévision); a
Nenhuma ciência pode promulgar regras de conduta, nem no sociologia das organizações e das burocracias de Michel Crozier
plano do indivíduo, nem no plano da, colectividade. O saber é (Le Phénomène Bureaucratique; La sociéié bloquée); a socio
sempre parcial: «Uma ciência empírica não pode ensinar a logia industrial de G. Friedmann e de P. NaviÜe, etc.
quem quer que seja aquilo que deve fazer, mas aomente aquilo Mas cremos mais conforme com o projecto do nosso estudo
que pode e, se for caso disso, aquilo que quer fazer.» A socio acantonarmo-nos no quadro geral do percurso sociológico e não
logia torna-se,' nesta perspectiva, o esforço de inteligibilidade na sua efectividade concreta.
qué um espírito e, através dele, uma época, impõem à história A preocupação da teoria (ou antes, a pesquisa de grandes
passada e presente e às acções daqueles que & têm de viver. princípios que permitem a síntese) parece assim tirar a sua
Elá não é já uma ciência, mas um conjimto de processos cien força da etnologia. Não será o sinal da sua ilusão? A sociedade
tíficos ao serviço de uma «consciência». que a etnologia estuda tem as aparências da simplicidade e a
Outra anotação deve ser feita relativamente tanto a Dur- realidade de uma dimensão restrita. Pode-se assim acreditar
kheim como a Weber: é a inquietude epistemológica que per- que uma abordagem totalizante é possível e que o social pode
paòsa no seu esforço teórico; uma inquietude que lhes faz, a ser çaptado na unidade do todo.
ambos, desconfiar dá ilusão da transparência, aquela qüe faz
confundir discurso sociológico e discurso do agente social e que,
subentendendo que «nada que é humano pode ser estranho ao O funcionalismo
homem», conclui que basta ao sujeito social reflectir sobre a
suá própria condição para descobrir a verdade do seu mundo. Tem a sua origem nos trabalhos de Malinowski, que enun
Não se e sociólogo unicamente pela análise das suas idéias nem ciara o princípio seguinte: «explicar oe factos etnológicos a
pela descrição (fenoinenológica?) minuciosa e escrupulosa do todos os níveis do seu desenvolvimento pela sua função, pelo
viVido. papel que desempenham no sistema cultural global, pela maneira
como se inter-relacionam neste sistema» (l). O funcionalismo
postula a unidade funcional da sociedade definida como consti
IV. A SOCIOLOGIA. DE HOJE tuindo um sistema. Este sistema social tende a perpetuar-se tal
como é, pois a harmoniosa cooperação entre os seus elementos
^ Com Durkheim e com Weber estamos no momento da sepa- afasta os conflitos persistentes. As mudanças não podem provir
r a ^ das á ^ a s, nor dia Tseguinte às grandes construções do
sécíulo XIX e na véspera da fragm entação que aetualm ente a <*) Une Théorie Bcientifique de 1a Cvlture et autres eeac&e; traduç&o
sotíiologia conhece. Que vemos hoje? Uma acumulação de pes- francesa, Maspero, 1968.
!
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A FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS A SOCIOLOGIA
senão de causas exteriores (o que fez com que Roger Bastide a sua utensilagem, tende a identificar o corpo social a um
escrevesse: .«o funcionalismo explica bem porque é que as organismo.
coisas subsistem, mas não explica porquê é que elas mudam»).
Ao passar do estudo das sociedades chamadas >arcaicas» para
o das sociedades modernas, o funcionalismo, embora mantivesse X dinâmica social
o eôsencial da sua armadura, foi no entanto inflectido. Deve-se
esta «adaptação» a Robert K. Merton, que introduz a noção Aquilo que obsta a esta importação de modelos tomados
de «disfunção»; «as funções são, entre as conseqüências obser da antropologia é a história. As sociedades industriais são
vadas, aquelas que contribuem para a adaptação ou para o sociedades em permanente perturbação e é difícil traduzi-las
ajustamento de um dado sistema, e as disfunções aquelas que por noções que expressam um «equilíbrio», uma dinâmica pró
perturbam a adaptação ou o ajustamento do sistema... Em xima do ponto zero. A uma sociologia fascinada pela combinação
qualquer caso, um elemento pode ter simultaneamente conse de instituições no seio da totalidade social e pela harmonia do
qüências funcionais e disfuncionais, o que dá origem ao pro seu funcionamento opõe-se uma sociologia que põe o acento
blema crucial e difícil de estabelecer o saldo líquido do feixe na dinâmica interna (as rupturas de equilíbrio que engendram
das* conseqüências» (Sléments de Théorie et de Méthode Socio- as mutações) e na dinâmica externa (relações e contactos entre
logiquet Plon, 1965). sociedades de onde provém a sua modificação recíproca). Em
■O funcionalismo foi a reacção — necessária ao desenvol França, é este o campo de reflexão aberto pelos trabalhos de
vimento da etnologia— contra as primeiras especulações his- Georges Balandier. Como não notar que também neste caso
toricistas ou psicologista3, e a favor da observação dos factos a «luz» vem da etnologia? Mas desta vez trata-se da experiência
no terreno, da sua classificação e da sua sistematização. do etnólogo confrontado com sociedades não industriais, que,
longe de sucumbir ao contacto da nossa modernidade, se trans
formam e conhecem uma história original. A dificuldade (e o
mérito) de tais pesquisas é que querem evitar a hipoteca das
O estroturalismo filosofias da história e dos esquemas evolucionistas.
Acontece que estes ensaios, para instituir um campo global
• Quis-se ver no éstruturalismo — que provém tamblm dá do social, radicam na afirmação de que a «sociedade» existe, não
etnologia (Lévi-Strauss) i - um prolongamento do funciona como sistema de representação do actor social, isto é, como
lismo. 0 próprio Lêví-Slrauss, ao criticar o funcionalismo produção imaginária, mas como realidade, como totalidade cuja
(«afirmar que uma sociédade funciona é um truísmo; maá unidade é sempre em última instância uma unidade de signifi
afirmar que tudo numa èociedade funciona é um absurdo»); cação. A sociologia não sai do empirismo senão abandonando-se
não o qualifica (em 1949) de «estruturalismo primário»? Dois ao hegelianismo.
pontos fundamentai», polõ monas, separam-nos: o estrutura- Entretanto, o aparecimento de mutações epistemológicas
lismo defino a estrutura como uma construção do pensamento parcco incontestável. 0 eetruturalismo, que dissemos estar do
racional e critica no funcionalismo o «realismo» da função; o certo modo ligado à evolução das matemáticas, não deu verda
estruturalismo põe ém questão o postulado fimcionalisia dá deiras obras em sociologia, mas abriu um campo de reflexão
sociedade como totalidade sistemática, o que lhe torna difícií epistemológica e de pesquisa de que nos parece haver muito
qualquer ideia de hiktoriòidade. Assim, Lévi-Strauss escreve: a esperar.
«o t[ue tentamos peàquisár é quais são, no interior de uma Para situar o novo horizonte apresentá-lo-emos a partir
sociedade reduzida à certo número de arranjos estruturais da evolução que conheceu a relação sociologia-matemática (rela
acujnulados uns sobrè os outros, ou imbricados uns nos outros, ção que em França é o objecto das pesquisas de Raymond
os meios de restabelecer espécies de desequilíbrios que expliquem Boudon).
porque é que uma sociedade, mesmo que Be encontre ao àbrigó
de influências exteriores, 'mexe' de qualquer maneira». (Anthro- Sociologia e matemáticas
pólhgie Structurale). De facto, o estruturalismo é uma abor
dagem do social que está ligada ao desenvolvimento da lógica Nos seus princípios, as ciências sociais contentam-se com
matemática, enquantò o funcionalismo, que da cibernética tira importar técnicas matemáticas desenvolvidas independente*
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A \ FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS A BOOIOLOOIA
mente delas e em proveito das ciências exactas. Entre essas A noção de estrutura
técnicas as estatísticas ocupam o primeiro lugar. A razão disso
é que os investigadores das ciências humanas não podem pro A noção de estrutura é muito mais antiga que a apropriação
ceder a uma experimentação directa e devem contentasse com que dela fizeram as ciências sociais, pois que o seu primeiro
as observações que fazem sobre um elevado número de casos. campo de aplicação parece ter sido, no século xviii, o da com
Np entanto, uma segunda razão, mais cheia de um fundo ideo binação das partes num todo (por extensão, o de organização)
lógico, pode ser suposta. As estatísticas permitem estabelecer e é com este sentido que a encontramos importada para a
le|s sem que seja posto em questão o estatuto do sujeito humano, sociologia por A. Comte e H. Spencer.
«o seu reduto metafísico». No meio da confusão, a estatística No século xx, utilizada em fisiologia e em psicologia, o
permite às ciências reconciliar a metafísica e a cientificidade. sentido é inflectido e torna-se sinônimo de «forma» ( gestait),
Acrescentemos incidentalmente que uma exploração estatística com acento posto nas redes de relações entre os elementos e de
de dados obtidos por inquéritos supõe certo número de condi- ande surgem novos jogos de significações.
çoes, que nem sempre são respeitadas. Neste mesmo século xx, num campo bem diferente do da
Após um entusiasmo extremo que culmina nos anos qua ciência dos organismos — o da lingüística e da fonologia —,
renta, vem o tempo da insatisfação. Mesmo com refinamentos a noção de estrutura adquire um significado que a afasta do
extraordinários, as estatísticas não permitem a elaboração de conceito de combinação ou de organização para a aproximar
teorias. Não facultam o acesso ao nível das relações ocultas, do conceito de combinatória e de sistema e a toma passível de
mas apenas a uma descrição do mundo das aparências. Sobre* operacionalização matemática. A noção de estrutura, neste
tudo, a estatística, de certa maneira, não atinge o social que caso, não é muito diferente da que o matemático utiliza e que
tem por objecto e redu-lo a uma interindividualidade, isto é, Marc Barbut define deste modo (Les Temps Modemes, n.° 246,
a uma dialéctica das atitudes, dos comportamentos, das opiniões, Novembro de 1966): «Uma estrutura algébrica é um conjunto
fi assim que se tem podido dizer, a propósito do grande inquérito de quaisquer elementos, mas entre os quais estão definidos
feito durante a segimda guerra mundial sobre os G. I. ameri uma ou várias leis de composição ou operações... 0 conjunto
canos, conhecido sob o título do American Soldier, que ele das condições que as operações satisfazem constitui o que se
nunca chega a ser úm estudo sobre o American Arjny. designa frequentemente por axiomas da estrutura.»
Pode-oe fazer dutra advertência: em geral, o inquérito é A sociologia utilizará o termo de estrutura — e é aí que
uma pesquisa de opiniões, feita, portanto, para recolher junto residem numerosos mal-entendidos— ora no sentido de orga
dos actores sociais à imagem que eles fazem da sua sociedade nização de uma totalidade, ora no sentido de modelo de tipo
e o papel que se atribuem, ou que recusam, Ora, poderá a matemático. Acontece que a noção de estrutura, manipulada
interpretação deste material fazer-se à margem de umá teoria com rigor e à margem das facilidades da analogia, abre à
que defina o lugar e a função dos discursos que os Homens sociologia uma via entre a filosofia social e as descrições etno
de uma sociedade mantêm para assegurarem o seu referencial gráficas ou os recenseamentos estatísticos; entre a ideologia
simbólico e tornar familiar a si próprios o seu campo social? e o empirismo. Todavia, a noção de estrutura levanta problemas.
i O final dos anos cinqüenta conheceu uma mutação impor Tomada como o modelo racional formal cujos elementos são,
tante na relação das ciências sociais com as matemáticas, de algum modo, a manifestação, depara-se à estrutura a
mutação ligada ao desenvolvimento que a procura de investi objecção de que dissolve a realidade concreta numa espécie de
gadores de ciências sociais impôs às matemáticsB. De ora em «sócio-lógica». Definida como o resultado das correlações múl
diante as matemáticas deixam de ser sobretudo um instru tiplas estabelecidas entre os factos, corre o risco de perder
mento de quantificação do real social, para ser um aparelho a sua especificidade e não dar azo senão a uma descrição.
lógico, que faculta a construção de mtxlelos e de estruturas
e permite a formalização de domínios empíricos muito diversos.
Tudo isto não se faz sem confusões. Acabamos de evocar Uma sócio-lógica
a noção de estrutura. Nesta noção, mais que em nenhuma outra,
os equívocos abundam. Mas, por detrás destas dificuldades metodológicas, outro
debate se impõe que as alternativas do tipo «objectividade-
-subjectividade», «explicação-compreensão» simultaneamente
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A FILOSOFIA DAB OISNOIA8 SOCIAIS A SOCIOLOGIA
BIBLIOGRAFIA
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