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3 SINAIS E CAUSAS Segundo o evangelho, o principio dos caminhos de Deus esta na sua obra, de modo que a raca humana aprenda por ele a seguir os caminhos do Senhor e a realizar as obras de Deus. = AmpROSIO DE MILAO, Hexamerdo! Por meio do que é material e temporario podemos apreender 0 que é espiritual e eterno. AGOSTINHO, A Doutrina Crista’ Tampouco é estranho que fildsofos, mediante toda sua filosofia especulativa, tenham disseminado principios éticos, pois sabiam que estes se relacionavam a salvacao do homem. ~ ROGER BACON, Opus Majus’ EM COLETANEA RECENTE DE ENSAIOS, em parte voltada para as relagdes entre ciéncia e religiao, o filésofo Thomas Nagel observa que filsofos analiticos contemporaneos muitas vezes sao incapazes de reco- nhecer “o elemento significativo da ansia por reconciliagao césmica que tem sido parte do impulso filosofico desde o principio’. O exemplo que Nagel escolhe para ilustrar seu argumento é Platao, que exibia aquilo que ele chama de “profundo temperamento religioso”. O filosofo grego antigo “mostrava-se claramente preocupado nao apenas com a sua alma, tas também com a sua relacao com o universo no nivel mais profundo © “esperava por algum tipo de redengao a partir da filosofia’.* A sugestéo de Nagel segundo a qual Platao havia embarcado numa busca “religiosa’ € Digitalizado com CamScanner 70 OS TERRITORIOS DA et NCIA E DA RELIGIAO imento do universo era parte integral da busca € company ento dos objetivos da filosofia antiga expostos no apituly 0, a filosofia natural - 0 que para nds em muito Sepa. rcida como parte de uma tentativa abrangente q no mundo e viver corretamente dentro dele ensadores cristaos partilhavam desse tem. que oconhec com oentendim: anterior. Nesse cas‘ rece com ciéncia ~ € exe! entender seu proprio lugar Como vimos, os primeiros p* peramento religioso, mas 0 entendi no cosmo era embasado numa ideia de criag4o que estava em certa tensio com os modelos classicos predominantes. A ideia de que 0 mundo fora criado a partir do nada (ex nihilo) por uma deidade benévola contrasta outrina aristotélica da eternidade do mundo, com os ensinamentos se gnésticos sobre a inferioridade do mundo material e com atonica do mundo como emana¢ao do divino. Os cristaos, m o recurso adicional da Escritura para amparar sua versio edengio, Para eles, as qualidades normativas do cosmo - a vida realizada - nao apenas eram entendidas 4 luz da jimento que eles tinham do nosso lugar coma di platénico: a ideia neopl: ademais, tinhat da busca por r. isto , viver um: ideia da criaco divina, mas também deveriam estar em conformidade com 0 conteiido dos textos canénicos do cristianismo. Por essa razao, 0s Pais da igreja viriam a falar de dois modos vinculados de comunicarie divina - um no livro da Escritura e outro no livro da natureza. Enquanto o mundo natural era distinto de Deus e, portanto, nao divino, de diversos modos era entendido que as criaturas davam testemunho silencioso dt sua origem divina. Em certo sentido, o mundo era o portador da imagem divina, embora, em razao da condigdo caida do cosmo e seus ocupantes humanos, essa imagem fosse fraca e dificil de discernir. Coma orientagi0 fornecida pela Escritura, no entanto, a linguagem do livro da natureZa poderia ser entendida. Ler a Escritura e a natureza em conjunto tornou-se parte integral da pratica contemplativa medieval. A inteligibilidade da natureza estava, porém, nao somente na esfer@ 4° significado, Enquanto artefato divino, a mundo também estava causalment tion whan enna se Dee lo. limento cristo dessa rela¢ao, Deus e#™" nae eee Fo ~ @ causa original que as rouse ee es ‘como a fonte da matéria e da forma 0” pe za a ou causa final paraa qual todas as coisas eramat?" ure » segundo essa visdo, apontava para Deus como? causal que, em tltima an coisas. ise, sustentava a existéncia de todas as ad Digitalizado com CamScanner SINAISECAUSAS 71. Para os pensadores medievais, essas duas concep¢ées da relaco divina com o mundo forneciam modos de ascender das coisas visiveis, mutaveis e materiais para um dominio espiritual inteligivel que ficava além. Como exercicios na contempla¢ao da natureza, serviam também para moldar a pessoa € preparar a mente para o encontro com verdades teolégicas mais elevadas. Do século 13 em diante, a ordem causal passaré a preva- lecer 4 medida que a filosofia natural ira predominar nas universidades medievais. Tanto interpretagdes simbélicas quanto causais da ordem da natureza operarao em conjunto até serem ofuscadas pelas novas ciéncias da natureza do século 17. A ORDEM DOS SIGNIFICADOS ‘As premissas da metéfora do livro da natureza podem ser encontradas na propria Escritura. De acordo com o livro de Génesis, Deus colocou luminares nos céus para servir “de sinais [...] para marcar estades” (Gn 1.14). Os luminares celestes serviriam, portanto, nao apenas a um propésito pratico, mas, para intérpretes posteriores, atuavam como “sinais” de verdades eternas. O Salmo 19 vai além, sugerindo que os céus informam por meio de discurso silencioso, sem palavras: “Os céus declaram a gléria de Deus, e 0 firmamento proclama as obras das suas maos. Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite” (S119.1-2). No Novo Testamento, a passagem central é Romanos 1.18-20, que, como vimos, alude ao fato de que as coisas invisiveis de Deus podem ser conhecidas mediante a criagao visivel. Essa passagem forneceu um elo crucial com as divis6es gregas das ciéncias especulativas, nas quais 0 inquiridor passa dos objetos mutaveis e temporais deste mundo para os objetos invisiveis da metafisica € da teologia. A passagem também deu escopo consideravel para que escritores patristicos e medievais elaborassem acerca do modo como a contemplacao das criaturas deveria levar corretamente 4 contemplagao do préprio Criador.® Origenes apropria-se desses temas no seu comentario sobre o Cantico dos CAnticos - a obra associada mais de perto por pensadores patristicos e medievais 4 ascensao da mente para além do dominio do mundo material. No caso, ele sugere que “todas as coisas na categoria visivel podem ser relacionadas a invisivel; as corpéreas, as incorpéreas; € as manifestas, as ocultas”)Para Origenes, ha significados teol6gicos morais ocultos em todas as coisas criadas, porque, ele argumenta, de modo Digitalizado com CamScanner 1GIAO 72__ 0s TERRITORIOS DA CIENCIA EDA RELI oo homem porta a imagem e semelhanca de p sim também todas as coisas criadas tém similitude e semelhanga Comas aereas celestiais. Origenes defende que er mais profundas 4, cado devem ser discernidas nas camadas al epéricase morais maig profundas que nos introduzem as profundezas ocultas. Ainda Qe nen todos os exegetas patristicos concordassem Sine Pontos &specificos dessa abordagem e embora encontremos miltiplas estratégias de leitura entre os Pais da igreja, Origenes € caracteristico na medida em que todo © seu projeto interpretativo moldado pela narrativa crista da redencio que se estende da origem do cosmo & consumagao de todas as coisas! Anarrativa nao é somente relatada nas palavras da Escritura, mas integrada na propria estrutura do cosmo e inscrita em toda criatura. A natureza, assim como a Escritura, é um livro que podemos contemplar. Intimeros Pais da igreja, seguindo essa légica, consideravam que a natureza era outro livro canénico. Atandsio (c. 296-373) falou do modo como a criagao, “como que em letras escritas’, declara por meio de sua ordem e harmonia o Senhor e Criador. Joao Crisdstomo (c. 349-407) descreveu a esfera das coisas visiveis como um livro a partir do qual os analfabetos poderiam ser instruidos nas coisas de Deus. Agostinho muito semelhante com‘ signifi condenou Fausto, o maniqueu, por nao atentar para o “livro da natureza” como a criagéo de Deus.’ Por vezes, a imagem poderia ser estendida até seu limite metaférico, Evagrio Péntico (345-399), um dos escritores monasticos mais influentes do periodo patristico, sugeriu que, ao lermos 0 livro da natureza, nossa propria mente se torna um livro no qual Deus inscreve palavras de sabedoria e providéncia.* Embora essa concepgao da oem da natureza seja diferente daquilo que encontramos nos escritores a ainda te ® partir da ideia de transformagio pessoal vimento com a natureza. A propria mente ico, Digitalizado com CamScanner SINAIS ECAUSAS 73 poderia ser posto em pratica. O sentido anagégico referia-se as promessas da Escritura e ao prentincio do céu - em que se deveria ter esperanga. Por ultimo, o sentido alegérico coloca Cristo no centro da Histéria. Joao Cassiano, um dos primeiros a empregar o esquema, prope um exemplo do modo como isso funcionaria na pratica, explicando os diferentes sentidos de “Jerusalém”. A referéncia biblica ao lugar indicaria, no seu sentido literal, a cidade dos judeus; no seu sentido tropoldgico, a alma humana; no seu sentido anagégico, a cidade celestial de Deus; e, no seu sentido alegérico, a igreja de Cristo." Para nosso propdsito, é significativo que todos esses esquemas exegéti- cos, qualquer que seja sua terminologia, postulam uma divisao basica entre o sentido literal e os sentidos superiores. Esses sentidos superiores eram conhecidos conjuntamente como “o sentido espiritual” ou apenas, simplifi- cadamente, “alegoria’."' Agostinho, nas secGes iniciais de A Doutrina Crista, propés a justificativa definitiva para a interpretacao alegérica da Escritura. Encontramos ai uma teoria influente dos signos naturais em que a inter- pretacao de palavras est vinculada ao significado dos objetos. Agostinho explica que alegoria nao é simplesmente uma técnica para ler textos escritos, mas tem a ver com 0 discernimento dos significados morais e teoldgicos das coisas naturais. O sentido literal da Escritura pode ser determinado ligando as palavras as coisas as quais se referem. Os sentidos alegéricos, porém, esto nos significados dos objetos. Como parte da sua obra de criagao, portanto, Deus dotou as criaturas de significados teolégicos que podem ser “lidos” pelo leitor perspicaz. Referéncias medievais posteriores ao livro da natureza tendem a supor essa estrutura agostiniana. Hugo de Sao Vitor (c. 1096-1141) explica assim a metéfora: Pois o mundo sensivel inteiro é como uma espécie de livro escrito pelo dedo de Deus ~ ou seja, criado pelo poder divino - e cada criatura em particular é de algum modo semelhante a uma figura, nao inventada pela decisio humana, mas instituida pela vontade divina para manifestar as coisas invisiveis da sabedoria de Deus. Cada criatura, segundo esse entendimento, foi projetada para manifes- tar alguma verdade divina. Hugo invoca explicitamente a teoria de signos agostiniana, insistindo que “no enunciado divino nao apenas palavras, mas até as coisas tem um significado”. Nosso conhecimento dessa ordem Digitalizado com CamScanner \0 74 OS TERRITORIOS DA CIENCIA E DA RELIGIA bélica nao é meramente tedrico, pois ele muda a mente por meio de simbélica m4 tes im de habituagao. “E [...] grande fonte de virtude paraa ace Hugo, “aprender, Pouco a pouco, Primeiramene etransitdrio, de modo que, posteriormente, ej, "12 © filésofo e tedlogo franciscano Boaventur, um proce: exercitada’, informa-nos amudar pelo que ¢ visivel deixe tudo isso para tras. (1221-1274) viria em segui essencialmente uma certa ima; da a concordar que “todas as criaturas sig em € semelhanga da Sabedoria Eterna’, Elas partindo do signo para a coisa significada, objetos sensiveis que ela percebe para g nos sao oferecidas “para que, nossa mente seja guiada pel 5 parcehe?!3 mundo inteligivel que ela nao percebe’. A teoria de signos encontrada em A Doutrina Crista também se repete jana primeira questao da monumental Suma Teolégica de Tomas de Aquino, Tomas considera os varios esquemas de interpreta¢ao alegorica antes de explicar que todos repousam no pressuposto de que coisas no mundo natural, assim como palavras, sio capazes de ser significado: “O autor da Escritura Sagrada é Deus, em cujo poder esté significar seu significado, nao por palavras somente (como 0 homem pode fazer também), mas também pelas coisas em si”. Ele prossegue, dizendo que os sentidos da Escritura “nao sao multiplicados porque uma palavra significa diversas coisas, mas porque as coisas significadas pelas palavras podem ser, em si mesmas, tipos de outras coisas”.'* Necessariamente, entao, qualquer explicacao plena da autorrevelacao divina implicard referéncia tanto 4 Escritura quanto a natureza. Para o periodo inicial da Idade Média, a in- teligibilidade da natureza estava primariamente nos seus sentidos morais € teoldgicos, e nao em conjuntos de relagées causais.'° deduinlif farcuf fun petlicanio folecetun fag “aie ut cpa brant infotmudae itt armel ‘nomen Tumptes am canopot eqypruf dé. mam Figura 2. Ilustracéo do pelicano no Bestiario de Ashmole. Digitalizado com CamScanner SINAIS E CAUSAS A aplicagao especifica dessa teoria dos signos ao mundo natural deu-se nos bestidrios medievais, eles prdprios elaboracdes a partir de uma obraan- terior conhecida como Physiologus [Fisiélogo]. Nos bestidrios, encontramos animais, plantas e pedras dotados de significados teolégicos e morais, de tal modo que o leitor, ao deparar com os objetos naturais, tenha em mente sua verdadeira significacao. A descricéo do pelicano exposta nessas obras talvez seja um dos exemplos mais claros do modo como as criaturas eram interpretadas (ver figura 2). O elemento central da descricao no Physiologus, telatado em todos os bestidrios, é a seguinte: Davi diz no Salmo 102: “Sou como o pelicano no deserto” [...]. Se o peli- cano gera filhotes ¢ estes crescem, eles aprendem a bofetear seus pais na cara. Os pais, porém, revidando, matam seus filhotes e, entao, movidos de compaixao, choram por eles por trés dias, lamentando por aqueles que mataram. No terceiro dia, a mie deles fere seu lado e derrama seu prdprio sangue sobre os seus cadaveres [.] eo proprio sangue os desperta da morte.'* A descricdo seguem-se comentirios sobre os diversos significados da criatura, O Bestidrio de Aberdeen (c. 1200) explica que 0 pelicano significa Cristo, o Egito e o mundo. Simboliza Cristo porque “mata seus filhotes com seu bico assim como a pregacao da palavra de Deus converte os descrentes. Chora incessantemente pelos seus filhotes, assim como Cristo chorou com piedade quando ressuscitou Lazaro. Entdo, apés trés dias, revivifica seus filhos com seu sangue, como Cristo nos salva, aos quais ele redimiu com seu préprio sangue”"” Outras explicagées s4o propostas quanto a razio pela qual o pelicano significa também 0 Egito e o mundo. Por causa dessa descri¢ao, 0 pelicano tornou-se emblema permanente da morte expiatéria de Cristo e mostrou-se onipresente na arte, na arquitetura ena literatura medievais. Em Oxford, pode ainda ser visto empoleirado de modo precario no pulpito da Catedral Igreja de Cristo e no topo do famoso relégio solar no patio da faculdade Corpus Christi. Adorna o leitoril da Catedral de Norwich e pode ser visto no vitral da Catedral de Bourges € sobre o altar da igreja de Saint Giles-in-the-Fields, em Londres. No seu famoso hino eucaristico, Adoro te devote, Tomas de Aquino menciona o pelicano; Dante refere-se a Cristo como “nostro pelicano” e, com menos Animo, o rei Lear de Shakespeare refere-se com pesar a Regar e Goneril como “aquelas filhas de pelicano”! 75 Digitalizado com CamScanner AO 6 OS TERRITORIOS DA CIENCIA E DA RELIG 1 - ficativas, criaturas poderia / jessas fungoes significativa P poe morais. Era 0 modo “tropolégico” de et mundo, com os animais e plantas provendo padrées de comportamen, mitar ou evitar.” O exemplo classico era a diligéncia dos insetog arn foi louvada na Escritura como boa trabalhadora, Tessaltoy ‘Ambrésio de Milo (337-397) € por isso HOw ordenado “seguir o exemp), da mimiscula abelha € imitar seu trabalho”. O Hexamerao de Ambrésig esta repleto de casos de tais criaturas exemplares: os passaros eram “exem. plos do nosso modo de vida”; os peixes ‘constituem-nos um padrao dos vicios”; o exemplo da videira serve “para a instrugao de nossas vidas» 10 Magno (330-379) e Moralia in Job, de Gregério os multiplos modos nos quais a Alem 4 diretamente como tutore: O Hexamerao de Basili Magno (540-604), também enumeram uras pode render importantes ligGes morais. O mundo observagio das criat “6 verdadeiramente um local de formagio para inteiro, concluiu Basilio, almas racionais””" Num periodo muito anterior a teoria da evolucao propor uma expli- cagio para a grande quantidade e diversidade de seres vivos, fazia sentido pensar que Deus tivesse fornecido diversas criaturas como alimento, vestimenta, medicina e outros empregos da vida — incluindo, no caso das criaturas menos bem-vindas, como punigio pelo pecado. A ampla variedade de seres vivos, porém, excedia por margem significativa tudo © que poderia ser abrangido dentro dessas categorias. A pergunta, “por que o pelicano e, de fato, por que tal quantidade de seres vivos?”, poderia ser entao respondida referindo-se a sua significagao morale simbélica.” Alguns deveriam ser entendidos literalmente, por assim dizer; outtos do ponto de vista das verdades que representavam ou da li¢4o moral que ensinavam. Conforme explica Ricardo de Sao Vitor (m. 1173), as “obras ares acreage foram on e dispostas para isto, a saber, para a —— la presente quanto demonstrar uma ae coisas de maneira simples ee een ele, que “devemos entender a oe 5 a buscar nelas segundo o sentido ae a sentido mistico” Trata-se 2 sao capazes de tepresentar algo ee : que habitamos atualmente, send mundo natural bem diferent a tigos. Entendido do ponte da lo também Ce do mun ne eu mundo que em sua esstnete < vista moral e simbélico, ee “e! explorado materialmente, mac leveria ser explicado causal ai , lo e servir como objeto de mea Digitalizado com CamScanner SINAIS ECAUSAS 7 OS USOS DAS CRIATURAS O fato de que o mundo era entendido como Provedor das necessidades materiais, morais e espirituais dos seus habitantes humanos significava que os Pais da igreja adotavam o que, em alguns aspectos, tratava-se de abordagem “utilitarista” 4 natureza, Ambrésio afirmou que “nao hé nada sem um propdsito. [...] O que consideras inutil tem alguma utilidade para outros’.** Basilio escreveu que tudo no mundo havia sido criado para “con- tribuir para algum fim util e para o grande proveito de todos os seres”?? Esses tipos de sentimentos nao eram de modo algum sem precedentes. Aristoteles fez a famosa declaracao na Politica de que “a natureza fez todos os animais para 0 homem’,¢ os estoicos que o sucederam endossaram essa posicdo com entusiasmo. Atitudes antropocéntricas diante da natureza nao devem ser exclusivamente atribuidas a tradicao judeu-crista nem tampouco sao singulares ao Ocidente.* Ha, contudo, algo muito distinto nos diferentes tipos de usos das coisas naturais atestados nas fontes patristicas e medievais. Os usos das coisas, como vimos, estendiam-se & esfera moral e espiritual. Além disso, eram também entendidas dentro do contexto da narrativa crista de quedae redengao. Em A Doutrina Crista, Agostinho nao apenas forneceu a teoria semié- tica que susteve a leitura alegérica posterior dos “dois livros”, mas também vinculou sua teoria de signos com a distin¢ao importante entre uso (uti) desfruto (frui).”’ Imediatamente depois da sua discussao sobre signos e coisas, ele prossegue, sugerindo que as coisas feitas por Deus devem ser usadas, e situando esse uso num entendimento especifico da condigao terrena. A vida presente é comparada aquela do viajante que atravessa uma terra estranha e bela rumo ao seu verdadeiro lar: Perambulamos distantes de Deus. Se desejamos retornar a casa de nosso Pai, este mundo deve ser usado, ¢ nao desfrutado, para que, assim, as coisas invisiveis de Deus sejam vistas claramente, sendo entendidas pelas coisas que sao criadas — isto é, por meio do que é material e temporario podemos aprender o que é espiritual e eterno.” Como parte da criagdo de Deus, as coisas materiais sao, em sentido importante, boas - como Agostinho sustenta contra os’ maniqueus mas 0 sao em sentido relativo. Como peregrinos, devemos usar as coisas temporais e materiais do mundo presente para direcionar nossa mente as Coisas eternas e imateriais do vindouro. A distingao entre uso e desfruto Digitalizado com CamScanner AO 1g OS TERRITORIOS DA CIENCIA E DA RELIGIA 7 ; ho da ordem do amor. Em esséng; é revista na nogao de Agostin! 4p haver uma hierarquia de bens, direcionados conformemente. ‘Tomas de Aquino posteriormente ad nas, explicita a tensdo entre a bondade das criaturas como criacao de Dey, ea necessidade de usa-las como meio de descobrir Deus. Em discussig 2 do papel do conhecimento na felicidade humana, ele airma que', bem-aventuranga do homem consiste nao em considerar as criaturas, mas em contemplar a Deus”, Disso nao se segue, porém, que nao deverfamos ter absolutamente nenhum interesse pelas criaturas. Antes, “a bem. aventuranga do homem consiste de algum modo no uso correto das criaturas e no amor bem-ordenado delas: e digo isso em relagao 4 bem- aventuranca do viajante””” Adiante, Tomas invoca a referéncia paulina as “coisas invisiveis deste mundo” para explicar que, uma vez que “os efeitos de Deus nos mostram a via para a contempla¢ao do proprio Deus [...], segue-se que a contemplacao dos efeitos divinos também pertence a vida contemplativa, na medida em que o homem é assim guiado a0 hossos amores devem ser ordenadg ‘ e adotard esses temas, deixandy acerci conhecimento de Deus”. A condi¢ao caida do mundo e dos seus habitantes humanos tem implicacao importante em tudo isso. Segundo a historia dos primeiros seres humanos estabelecida nos capitulos iniciais de Génesis, Adao e Eva foram criados com todas as perfeices necessdrias a vida feliz, tendo sido colocados num paraiso que atenderia a todas suas necessidades. Nao obstante tudo isso, desobedeceram a Deus e foram expulsos do Eden. Consequentemente, nossos primeiros pais e sua prole passaram a softer totes as De aa a marilidade incluindo a propensio 20 male na rebelido de Ado e Eva, ton a o mundo natural se viu env ; tendéncia a identificar —— ee eee Pa ser desfrutado, 0 desordenamentedon a deve ser used ¢ 7 Sr ‘© dos nossos amores e nossa dificuldade Para discernir os verdadei deitos significados das cri em todos ‘ados das criaturas advém to! do pecado. No seu estado va Digitalizado com CamScanner SINAISECAUSAS 79 “possufa conhecimento das coisas criadas e, mediante sua representacao, era elevado a Deus e ao seu louvor, Teveréncia e amor”. Em decorréncia da queda, esse conhecimento se perdeu e os poderes da mente - sentido, imaginacao, razao, entendimento, inteligéncia e discernimento moral - “foram distorcidos pelo pecado”, A reconquista desse dominio perdido poderia ser alcancada somente se as poténcias que originalmente o tinham feito possivel fossem “purificadas pela justiga, formadas pela instrucio e aperfeigoadas pela sabedoria’.” Tudo isso poderia também se vincular a metifora dos “dois livros” Boaventura faz a conexio da seguinte maneira: © mundo inteiro é uma sombra, uma via e um rastro; um livro escrito por dentro e por fora (Ez. 2.9). De fato, em cada criatura ha um fulgor do exemplar divino, misturado, porém, com trevas. [...] Quando a alma vé sas coisas, parece-Ihe que deveria atravessa-las da sombra para a luz, da via para o fim e do rastro para a verdade, do livro para o conhecimento verdadeiro que esta em Deus.” A instrugao formal - incluindo 0 conhecimento do mundo natural - tinha, portanto, um papel a desempenhar ao restaurar 4 mente parte das suas poténcias e perfeigdes originais. Nessa mesma linha, Hugo de Sao Vitor j4 havia argumentado que as artes liberais devem ser exercidas a fim de restaurar a semelhanga divina na mente humana — novamente, uma semelhanga que foi perdida em consequéncia da queda.™ A imposigao cognitiva da ordem sobre as cria- turas, em que chegamos a entender sua significacio moral e alegérica, é, na verdade, um modo de restabelecer sobre elas 0 dominio que foi perdido em decorréncia da queda. Assim, as artes e as ciéncias fornecem um meio para a restauracao parcial da perfeicao pré-lapsariana do mundo. Hugo defendia que o objetivo das artes é “restaurar a integridade da Nossa natureza ou mitigar aquelas fraquezas 4s quais nossa vida presente esta sujeita”. A filosofia, enfatiza ele, reverberando tanto Cicero quanto Agostinho, é uma “cura” ou “remédio”.* Motivos parecidos podem ser encontrados em Joao Escoto Erigena, Miguel Escoto (c. 1175-1253) e Vicente de Beauvais (m. 1264).°° Olhando adiante para o século 17, intimeras caracteristicas dessas abordagens medievais natureza reaparecerao, ainda que em registro diferente, A compreensao interiorizada do dominio das criaturas serd Voltada para fora, para 0 mundo visivel, e 0 exercicio redentor sera Digitalizado com CamScanner 80 (0S TERRITORIOS DA CIENCIA E DA RELIGIAO endido como controle € manipulagao das coisas materiais no se. ent : abelecimento do dominio sobre a natureza, POrE my se »Serg mais literal. O rest : atu 10 como um dos objetivos principals da nova ciéncia. A narratiyg i queda também ocupara posigao central, motivando a investigacio cient e moldando seus métodos, Por iiltimo, ideias sobre a utilidade das coisa, naturais ganharao uma roupagem completamente nova, quando homens como Joao Calvino e Francis Bacon reconfigurarem a ideia de uti dade ¢ a prioridade tradicional dada a vida contemplativa.” retid desafiarem A ORDEM DAS CAUSAS Com 0 colapso do Império Romano Ocidental no quarto € no quinto séculos, os vestigios textuais da instrugao classica foram preservados em grande medida em compilagdes enciclopédicas, com a consequéncia de que 0 inicio da Idade Média foi herdeiro de uma versao bem “delgada’ da instrugao grega tradicional. O século 12 testemunhou a redescoberta de uma versao “espessa” da tradigdo cléssica - em grande parte repre- sentada nas obras de Aristételes - que fora preservada e elaborada no mundo arabe e no império oriental. A redescoberta foi acompanhada por urbanizacdo renovada e pelo surgimento das universidades medievais - Bolonha (1150), Paris (c. 1200) e Oxford (1220). Simplificando bastante © assunto, podemos dizer que agora temos um novo local de atividade intelectual, a universidade medieval, e um novo parceiro de didlogo filos6fico na pessoa de Aristdteles. Esses novos locais de instrugao, com sua abordagem geralmente positiva ao pensamento aristotélico, nao substituem 0 monasticismo ou o agostinismo platénico, mas propoem um modelo revisado da natureza e do propésito da filosofia natural e sua relagéo com a teologia e, portanto, uma concepgao diferente do que cada uma delas implica.* Parte do impacto do pens mento aristotélico foi trazer uma revalori- za¢ao do mundo material pelos seus proprios méritos ea reconsideraga° do modo como o conhecimento do mundo se relacionava com as cois#s divinas. Um principio central era a insisténcia de Aristételes na prior dade do conhecimento sensorial. Enquanto 0 tropo da relagdo do visivel com 0 invisivel fora tradicionalmente lido como se endossasse idel# de ascensio da esfera material para a inteligivel, ele poderia também s** interpretado mais ao modo aristotélico. Tomas de Aquino, por exemp!> busca preservar a ideia de ascensio do material ao inteligivel, mas iss° Digitalizado com CamScanner SINAISECAUSAS 81, agora é expresso do ponto de vista do principio aristotélico de que néo hi nada no intelecto que nao estivesse primeiramente nos sentidos.” ‘A partir desse principio, ‘Tomés chega a seguinte conclusao: “Tudo que se diz de Deus e das criaturas é dito como se houvesse alguma relacao da criatura com Deus como seu principio e causa, em que todas as perfeicdes das coisas preexistem em exceléncia’ Também por essa razio, diz ele, podemos afirmar as metdforas e alegorias da Escritura, que buscam apontar para Deus referindo-se a realidades materiais. O ponto principal, porém, é que uma das maneiras primeiras pelas quais conhecemos a Deus écomo a causa ultima das criaturas.*! Além das suas capacidades simbélicas, portanto, as criaturas proveem uma maneira de entender Deus como a fonte causal do ser delas, visto gue, até certo nivel, efeitos se assemelham as suas causas. Trata-se de pressuposto da famosa “analogia do ser” de Tomas de Aquino. Essa suposigéo pode justificar o estudo mais formal do mundo natural conforme representado nos escritos de Aristételes sobre ciéncia natural ~ os libri naturales - que vieram a ocupar lugar importante no curriculo de artes das universidades medievais. Tomando um tinico exemplo, 0 mestre de Tomas na Universidade de Paris, Alberto Magno (m. 1280), ao comentar sobre Partes dos Animais, de Aristételes, observa que “do conhecimento desses vis animais podemos ascender ao conhecimento da causa primeira, assim como ascendemos do efeito para a causa’. E importante entender que Deus nao era entendido simplesmente como o primeiro numa série de causas eficientes. Antes, para cada efeito natural, tanto Deus quanto o agente natural estariam envolvidos.O papel de Deus na causacao natural era entendido do ponto de vista tanto da sua conservagao continua do ser de coisas naturais quanto da sua comu- nicagao a elas da semelhanca de sua propria capacidade causal. Quando acontecimentos tém lugar na natureza, nao é que Deus tenha algum pa- pel causal remoto simplesmente em virtude de ter iniciado uma cadeia de causas no passado que, em dado momento, traz 4 tona um resultado €specifico. Tampouco a atividade causal presente deve ser entendida como parcialmente atribuida a Deus e parcialmente 4 natureza. Pelo 0 “completamente feitos pelos "4 atividade causal Contrario, os acontecimentos naturais sa dois, cada qual de acordo com um modo diferente’ divina é andloga a causacao natural, mas nao pode ser inequivocamente identificada com ela. Digitalizado com CamScanner 82 OS TERRITORIOS D/ A CIENCIA E DA RELIGIAO ‘As vezes, leitores atuais veem esta Se oO Papel de Deys causa primeira como se retratasse um tipo oer de Telagio te teologiae filosofia natural aristotélica (ou, se prel ferir, “religiao” ¢ “inci 0 estudo sistematico da natureza, exemplificado na filosofia Datura aristotélica, executa 0 papel da ciéncia e, como tal, fornece Premissas para uma teologia natural - isto é indicios da existéncia e Natureza de Deus derivados somente do mundo natural -, 0 que representaria tom. pimento significativo com a abordagem simbélica. Embora essa leitur, nao seja completamente descabida, é apenas parte da historia, e talvey nao a parte mais importante. Minha sugestao € que os apropriadores de Aristételes esto menos interessados em usar sua “ciéncia” para amparar proposigbes teolégicas do que em ver todo o exercicio como se promo. vesse tipos particulares de virtudes, entendidas de modo amplo. O que temos aqui é uma espécie de exercicio mental que prepara a mente para o reconhecimento de certas verdades. Guilherme da Aquitania (m. 1249), um dos primeiros tedlogos parisienses alidar com as obras recentemente traduzidas dos filésofos gregos, argumen- tou que o estudo do universo leva “a exaltagdo do criador e & perfeigio da nossa alma’*® Alberto Magno, posteriormente, escreveu sobre os beneficios genéricos do estudo, observando que 0 exercicio (exercitium) “desperta uma capacidade nao apenas relacionada ao seu objeto, mas a outro objeto também. A pessoa capaz de ver a verdade em uma coisa esta dispostaavé- em outra’** Como jé estabelecemos, “ciéncia’, segundo esse entendimento,é habito mental, em vez de um conjunto de conhecimento que prové premissas aargumentos. Esse entendimento de ciéncia, alias, aplica-se a todos os domi- nios ~a ciéncia da natureza (filosofia natural) ¢ ciéncia de Deus (teologia) ‘Tomas de Aquino fard argumento parecido ao insistir que entender Deus Partir das criaturas nao se trata de exercicio no que chamariamos de “filo- sofia da religido’, mas ¢ parte da vida de contemplagao: “Uma vez, contud®, que os efeitos de Deus nos mostram a via para a contemplagao do propri? Deus, de acordo com Romanos 1.20 aeeen _], segue-se que a contemplagao 49s efeitos divinos também pertence a vida contemplativa, na medida em que ° homem € assim guiado ao conhecimento de Deus”.” Eimportante, entao, néo reduzir nema filosofia natural (“ciéncia’) 92 sacra doctrina (“teologia”) a um conjunto organizado de doutrinas:” 4° Propor que sacra doctrina é ciéncia, ‘Tomas de Aquino defende que 饙 Prdtica que leva a um estado de mente especifico, em consequénci® do Digitalizado com CamScanner SINAISECAUSAS 83 qual pode-se habitualmente raciocinar da causa para o efeito. Na primeira Gquestio da Suma Teologica, ele afirma, entao, que a unidade da ciéncia teologica advém do fato de que ela é uma tinica “faculdade ou habito”.” rata-se de titil lembrete de que scientia nao é apenas um conjunto de proposigoes ordenadas, mas também disposigao mental, Conforme John Jenkins, estudioso de Tomas de Aquino, escreveu, 0 propésito da ciéncia da doutrina sagrada é “induzir habitos de pensamento, habitos intelectuai em virtude dos quais 0 conhecimento pessoal da causa se torna a caus do efeito, o fundamento epistémico para ele e 0 conhecimento dele. Seu proposito, portanto, € fazer com que 0 pensamento da pessoa acerca de uma area especifica reflita a ordem de causalidade” Como podemos emelha a nogao de Alberto de exercicio mental. De fato, para inumeros pensadores medievais, os “habitos” associados a doutrina sagrada nao eram fundamentalmente intelectuais, mas priticos.” Novamente devemos nos lembrar de que a busca de sabedoria filosofica nao se ocupava exclusivamente do actimulo de conhecimento do tema particular das diversas ciéncias. Envolvia igualmente tornar-se um tipo 1 de pessoa. A obtencao de sabedoria, conforme observou Tomas espec bem no comeco da Suma Contra os Gentios, esta vinculada a um oficio especifico, em que “oficio” se relaciona & posse de determinadas virtudes. Tomas explica, mais uma vez na autoridade de Aristoteles, que cumprir seu oficio pessoal é simplesmente agir de maneira virtuosa.* Ademais, para Tomés, o processo de conhecer exige que a mente do conhecedor conforme-se ao que é conhecido. O conhecimento da verdade, em tltima instancia identificado com a contemplagio do proprio Deus, implica, assim, crescer em conformidade com a natureza divina. “A criatura racional’, como expressa Tomas, “€ feita deiforme””’ (Recorde tambem > é a atividade de Deus, ¢ a vida que, pata Aristoteles, contempla contemplativa era possivel “na medida em que algo divino esta presente [no homem|""*) A proporgao que se progride no conhecimento da causa ‘certa retiddo”.® O que realmente primeira, por necessidade se adquire acontece no exercicio da filosofia natural e da teologia é um processo de formagao e aprendizado que leva a habituagao intelectual para aleangar a Festruturagao cognitiva.” Esse entendimento do oficio do filosoto como oal mudara de modo bastante filosofica sera voltada para alguém que passa por transformagao pes Significativo no século 17, quando a tare fora, para a transformagao da natureza. Digitalizado com CamScanner IGIAO (0S TERRITORIOS DA CIENCIA E DA REL 84 1m adotada por Tomés de Aquino nos fornece ai A ae os objetos da filosofia natural podem ter Signific modo de on r familiarizado com relagées causais, 9 conheces teoldgico. a capacidade genérica transferivel a outros objetgs ae vm a concepsao de “ciéncia’, a semelhanca das préticas Mondsign a (exercicio de leitura, meditacao, ora¢ao e contemplacs, bibicas) e das leituras simbolices da natureza de Hugo e Bosventuy compativel com a jdeia geral de filosofia como uma forma de €X€rCicigg nda ou, espirituais, A “ciéncia” & uma criada, nao tanto por fornecer premisa, uma teologia proposicional, mas por subentender a atuacao de €Xercicios mentais promotores da transformagao pessoal que é 0 objetivo da teologia, Verdades tltimas sobre coisas divinas podem ser conhecidas apenas pel mente preparada adequadamente, e o estudo da natureza era visto como que contribuindo para esse processo preparatério.” TEOLOGIA NATURAL MEDIEVAL? E normalmente entendido que a teologia natural forneceu 0 Principal ponto de contato entre as ciéncias naturais e a teolo gia a0 longo da His- toria. Val le a pena questionar a esta altura, entéo, como as abordagens a0 mundo natural que estamos considerando se relacionam com 0 Projeto de teologia natural, Come¢amos este capitulo com uma referéncia a pro- posta de Thomas Nagel de que alguns fildsofos analiticos contemporaneos interpretam incorretamente a busca filo: s6fica tradicional, entendendo-a essencialmente a luz das suas teolégica do mundo natural. Siderar qualquer interesse teologicamente motivado no estudo da natureza comumente aceita de teolo, religiosas parting lo de pre religiosa’: a * O leitor atento de cada um dos termos naj 80 aplicé-los anacronica missas que nao sio nem pressupoem ren? sem duvida recordaré a natureza problems? jungao “crenga religiosa” e os perigos poten io mente. Também vale observar desde 0 im Digitalizado com CamScanner SINAIS ECAUSAS 85 quea expressao “teologia natural” é quase completamente inexistente na jiteratura patristica ¢ medieval.” Quando atentamos para os primeiros livros em inglés, deparamos com situacdo parecida, com aumento continuo no uso a partir somente de meados do século 17. A escassez de referencias a “teologia natural” na Idade Média deve-se parcialmente a0 fato de que o proprio termo ancestral “teologia” nao estava muito em uso. Nas ocasides em que a expressao “teologia natural” ocorre, em Agostinho ¢ Tomas de Aquino, por exemplo, é usada de modo negativo. Tomas segue, entao, Varrao e Agostinho ao distinguir trés tipos de teologia: “teologia natural” (physicum theologiae), “teologia mitica” (essencialmente evemerismo, 0 culto de herdis mortos) e “teologia civil” (culto de imagens patrocinado pelo Estado), todas elas consideradas por ele como tipos de “idolatria supersticiosa’® Essa associagao de “teologia natural” com pensamento pagio persistiu até o século 17, quando topamos com Francis Bacon afirmando que os platonistas corromperam a filosofia natural ao mistura-la com a teologia natural.*! E claro que a atividade correspondente poderia ser conduzida na auséncia do rétulo moderno, mas, por motivos que agora espero ser Sbvios, devemos resistir a tentagao de aplicar “teologia natural” as abordagens patristica e medieval do mundo natural que venho descrevendo. Para comecar, entende-se que o envolvimento com a filosofia natural no peri- odo pré-moderno oferece um tipo especifico de treinamento mental que facilitara tanto 0 comportamento moral quanto a perspicacia teolgica. O processo trata-se realmente de formagao cognitiva - um preparo para um modo de conhecer que permanece inacessivel a quem nao passou pelo treinamento exigido. Esse modo de conhecer ¢ mais como a experiéncia direta ~ provar e ver - do que a dedugio logica ou a inferéncia a partir de premissas. Crucial é que aquilo que alguém “conhece” nao se restringe 4 gama bastante limitada de verdades associadas a teologia natural ~ Deus, alguns dos seus atributos, imortalidade e talvez recompensas € punigoes p0s-morte. Antes, a natureza fornece uma revelagao paralela que da tes- temunho da natureza trina de Deus, da morte redentora e ressurreigao de Cristo, enquanto simultaneamente reforga um conjunto bem especifico de prescrigées morais, Para dar alguns exemplos, Hugo de Sdo Vitor in- siste em que a natureza trinitaria de Deus pode ser conhecida mediante meditacao na magnitude, beleza e utilidade da criagao.” Boaventura \ambém viria a defender que a natureza trina de Deus estd em certo sentido Digitalizado com CamScanner .RRITORIOS DA CIENCIA E DA RELIGIAO “ criatura do mundo & como um livto em gy 86 STE riaturas: a é refletida, representada e escrita’.®? Posteriormente de (fl. 1434), tedlogo espanhol do século 15, virig, Naturalis seu Liber Creaturarum [Teologia Natural 1434-1436], em que argumenta que o livro dy de Deus, era suficiente para salvacao e co. a de Deus.“ Claramente, nao se trataya da palavra, e referéncias a0 “livry inscrita nas suas C a trindade criador: Raimundo de Sabun redigir sua Theologia ow o livro das criaturas, natureza, como 0 outro livro municava algo da natureza trin de teologia natural no nosso sentido da natureza” nessa época nao remetem a um exercicio em que se buscam premissas para argumentos de design. Dito isso, um candidato muito mais promissor para nossa versio contemporanea de teologia natural pode ser achado em Tomis de Aquino, Mesmo assim, a questdo nao é tao simples.® A reputagao de Tomés como 0 tedlogo natural medieval por exceléncia repousa em parte na atengo desproporcional direcionada as “cinco vias” - os chamados cinco argumentos para a existéncia de Deus que aparecem no terceiro artigo da segunda questao da Suma Teoldgica. Esse breve artigo é recurso muito explorado pelos fildsofos da religiao, embora represente uma proporsa0 miniscula da contribuicao de Tomas. Ainda que opinides sobre a posigao das “cinco vias” variem, intmeros comentaristas argumentam que sua finalidade nao € propor uma base para toda a empreitada teoldgica ao estabelecer, logo no inicio, a existéncia de Deus mediante a razio.* Antes, dado que ja estamos certos da existéncia de Deus por intermédio da revelagao, tudo passa a ser uma questao de esclarecer 0 significado da existéncia divina em relacao a finitude das criaturas. O fildsofo Leo Elders fez até a sugestdo intrigante de que as cinco vias exponham um process? meditativo e representem estagios da ascensao da mente até niveis mals profundos de entendimento acerca do ser de Deus.” toned arta eC a Principal obra em que ele deseavole wn envolvido em atividade intelect Sovamente que ele nao esta real eel verdade crista. Trata-se de algo be com om as verdades Gaps ais” comuns com os quais ‘Tomas comes “rente, Os fundamentos nis mo, 0 islamismo eafilosofia gre a Portanto, ja sao teistas. ese a mesma coisa ~ na expressdo a ve Sniendicios como se ja alm ji aa mas: “quase toda filosofia ¢ ¥® Digitalizado com CamScanner SINAISECAUSAS 87 parao conhecimento de Deas O propésito apologético do argumento de Summa Contra os Gentios é convencer os leitores de que 0 cristianismo. tem éxito em atingir esses objetivos (religiosos) de um modo que os demais nao o fazem. E por isso que Tomas comega a obra investigando “o oficio do filésofo” e a busca da sabedoria, pois ele pretende mostrar que a busca filosdfica, conforme entendida pelos gregos antigos e arabes, tem uma promessa realista de éxito somente dentro do cristianismo. Segue-se que, quando Tomas fala de “verdades divinas que a investigacao da razio pode alcangar”, néo ha equivaléncia com “premissas que nem sao nem pressupoem crenga religiosa’,® conforme Alston. © ponto de partida de ‘Tomés pressupde uma versao do teismo, uma crenca em algum tipo de alma, uma concep¢ao teleoldgica da filosofia entendida como a busca por sabedoria e perfeicao espiritual. Em suma, a distingao de Tomas entre modos de verdade que ultrapassam a capacidade da razio e aqueles que nao, nao se encaixa nem na dicotomia medieval do livro da Escritura e do livro da natureza nem na separac¢ao moderna entre a tematica da teologia revelada e da teologia natural. Acontece que o projeto de elaborar argumentos a favor da existéncia de Deus baseados em premissas supostamente neutras avanga a todo vapor nos séculos 17 18, quando a concepgao secular de razao comecaa emergir. Ela aparece em conjunto com um novo entendimento de religiao em que crengas proposicionais passam a desempenhar papel significativo € com a reconsideragéo dos objetivos e propésitos da filosofia natural. Em resumo, relacionando esses desenvolvimentos com um de nossos fios condutores, podemos dizer que o nascimento da teologia natural acom- panha a objetificagao das virtudes de religio e da scientia, que deixam de ser qualidades da pessoa e passam a referir-se exclusivamente aatividades © conjuntos de conhecimento. AIMAGEM DESCARTADA Um motivo pelo qual a iniciativa da teologia natural ganha impeto no inicio do periodo moderno é que os modos teolégicos de entender a natureza Fepresentados pelas ordens simbélicas e causais descritas acima comecam 4 se desintegrar. A saida delas abre espago para o desenvolvimento de “ma nova filosofia natural “experimental” - envolvendo um vinculo | diferente e, em certo sentido, mais estreito com a teologia. A derrocada | Stadual dos entendimentos simbélicos da natureza pode ser explicada Digitalizado com CamScanner (05 TERRITORIOS DA CIENCIA DA RELIGIAO 88 fator foi o ceticismo crescente quanto ag Mod atureza. Para seus defensores Patri como jé observamos, de varios modos, mas um alegérico de ler a Escritura ea nat isto medievais, a interpretagao alegorica, , Fa NAO apenas uma questao de ler multiplos significados ee lavras, MAS; COMO Vero, em Agostinho, supunha uma visao do mundo em que objetos Naturais tinham significados espirituais. Consequentemente, qualquer ataque 4 interpretacao alegdrica da Escritura teria necessariamente implicagie, paraamaneira como 0 mundo era interpretado, uma vez quea Significagig de palavras e de coisas estava estreitamente conectada numa Tica rede de significados simbilicos. Ressalvas quanto aos abusos da leitura alegsrica comecam jem Nicolau de Lira (1270-1349), que, embora nao dispensass os sentidos espirituais da Escritura, insistia em que o sentido literal erg fundamental. Mas foram a Renascenga e a Reforma que sinalizaram o come¢o do fim da alegoria como atitude interpretativa geral que poderig ser aplicada Escritura e a natureza.”° Martinho Lutero afirmou sem rodeios que a alegoria era para “mentes fracas” e “homens ociosos”. Para ele, era o sentido literal que continha “toda a substancia, natureza e fundamento da Escritura sagrada’” Joio Calvino também priorizava o sentido “histérico” ou “literal” do texto, Sticos condenando quem praticasse a alegoria.” Essa censura da alegoria foi motivada pela atribuicao de autoridade religiosa que os reformadores conferiram a Escritura somente. O principio de Sola Scriptura, por sua vez, pressupunha que, quando valesse, o significado da Escritura era claro € sem ambiguidade. Os reformadores também buscaram libertar 0 texto da Escritura tanto da autoridade interpretativa do magistério catélico quanto da longa historia exegética que, na visao deles, havia obscurecido os verdadeiros significados do texto. A critica da alegoria foi acompanhade de suspeita geral de representacdes simbélicas e, assim, o programa dos reformadores esteve associado, em graus variados, & contragao do mundo Sacramental, a iconoclastia por vezes virulenta ea correspondente énfase Positiva na palavra escrita nua e crua. Fil6sofos naturais no século 17 deram expressio clara a0 10¥? entendimento nao simbélico da natureza que andava de maos dadasco™ Be oss leituras do livro da Escritura, Comentando a ideia medie™! do livro da natureza no seu manifesto de 1605 4 favor de um 10" a ancis Bacon observou que, “como todas as Ob habilidade do artesao, e nao sua imagem #9" de ciéncia natural, Fr; demonstram 0 poder Digitalizado com CamScanner SINAIS ECAUSAS 89 também 0 € com as obras de Deus que mostram a onipoténciae sabedoria do criador, mas nao sua imagem”” A ideia de que o mundo mostra a imagem de Deus, prossegue Bacon, é “opiniéo paga”. Até certo ponto isso era verdadeiro, pois, afinal, foi Platéo quem afirmou que o mundo “¢ um Deus sensivel que é a imagem do intelectual”* Como vimos, porém, a visao também se embasava no entendimento cristao do livro da natureza. A posicao de Bacon contrasta diretamente com a de Origenes, para quem “todas as coisas criadas tém similitude e semelhanca com as. coisas celestiais’, e com Boaventura, para quem “a criatura do mundo como um livro em que a trindade criadora é refletida, representada e rita.” Ela estava também em oposicao a expressdes contemporaneas da cosmovisao emblematica inspirada pelo hermetismo platénico.”* A negacao da transparéncia simbélica do mundo natural é acompanhada pela sua recomendagao de um novo método para revelar “as verdadeiras assinaturas e marcas colocadas nas obras da cria¢ao”, em oposicao ao que ele chama de “idolos da mente” e “dogmas vazios” da filosofia natural tradicional.” es E importante entender que Bacon, como muitos defensores da “nova filosofia’, nao se imaginava como se estivesse despindo o universo de sua significagao religiosa. Antes, ele se apresenta como se estivesse propondo uma abordagem verdadeiramente crista 4 natureza, em comparacao com abordagens anteriores que, segundo era entendido, tinham sido contami- nadas pela filosofia pag (dai a caracterizacao que Bacon faz delas como “pagas”). Tratou-se de uma reforma das ciéncias paralela a reforma da religiao que, da perspectiva protestante, teve igualmente a ver com a Purificago do catolicismo paganizado. Bacon propée um novo modo nao alegérico de ler o livro da natureza, 0 que foi caracteristico de outros Pioneiros das novas ciéncias. Kepler e Galileu, por exemplo, retiveram 4 nogio do livro da natureza, mas defenderam que a linguagem em que fora escrito era matematica.” Em vez de uma vasta tela de simbolos teolé- gicos, o cosmo continha inscrigées escritas na parca e precisa linguagem da geometria e da matematica. Conforme a famosa expressdo de Galileu: A filosofia esta escrita neste livro grandioso, 0 universo, que esta continuamente aberto diante dos nossos olhos. O livro, porém, nao pode ser entendido a menos que primeiramente se aprenda a compreender a linguagem e ler as letras nas quais ele é composto. Ele esta escrito na lin- guagem da matemitica e seus caracteres sao triangulos, circulos ¢ outras Digitalizado com CamScanner (OS TERRITORIOS DA CIENCIA E DA RELIGIAO métricas sem os quais é humanamente impossivel entender figuras geometric uma tinica palavra dele Nao era inteligibilidade oculta do cosmo, a pratica contemplativa € hermenéutica que desnudaria a mas sim a habilidade matemitica, 4 natureza, segundo esse modelo, consiste de entidades geométricas ideal. nao de simbolos divinamente instituidos. Conquanto tal ponto de ‘om frequéncia entendido como platénico, um elemento central} 10 platénica do cosmo ~ sua importancia moral intrinseca - zadas, vista sejac da concepea ; it estava ausente. © pressuposto de Platéo das qualidades edificantes do raciocinio matematico também esta cada vez mais ausente. A forma especifica que essa ordem matematica toma sera nova - a ideia de que ha leis naturais, capazes de formulagao matematica e impostas a materia diretamente por Deus. René Descartes (1596-1650) 0 expressou assim: “Deus incutiu diversos movimentos as partes da matéria quando as criou inicialmente e agora preserva toda essa matéria do mesmo modo € pelo mesmo processo pelo qual a criou originalmente”.” O movimento, portanto, nao é caracteristica da matéria em si, mas depende da vontade divina, Essa concep¢ao da natureza como que obedecendo a leis arbi- trarias outorgadas por Deus ajudaria a motivar a investigacao empirica das operacoes da natureza. Conforme explicou Descartes: “Visto que ha incontaveis configura¢ées diferentes que Deus poderia ter instituido aqui, somente a experiéncia deve nos ensinar quais configuracdes ele realmente selecionou de preferéncia as restantes”*! Se partirmos do mundo fisico para coisas vivas, vemos outra nova versio da metafora do livro da natureza. Robert Boyle (1627-1691), um dos prin- Cipais luminares da recentemente estabelecida Sociedade Real, cria que lero livro da natureza exigia procedimentos que pudessem penetrar ob a superficie visivel das coisas, nao Para apurar seus referentes transcen- dentais, mas para revelar seu extraordinario design tisico. Boyle falou das a a é necesséria” Seus significados, se ainda podemos chamé-los assim, achavam.-se dentro dele €ndo além deles mesmos. O discernimento dos seu ignificados deveria ser facilitado mediante experimento, dissecagdoe ampliagao artificial. N8 sua prosa tipicamente elaborada, Boyle ex; “textos” cuj criaturas como “textos, para cuja exposigao a fisiologi plicou que os seres vivos era” interpretacao exigia “indagacoes penetrantes” voltadas pa a descoberta das suas “propriedades inevidentes” Em alusao as priticas 4 Digitalizado com CamScanner SINAISECAUSAS 91 taquigrafia, muito em voga a época, Boyle também se rferiu aos objetos da natureza como “a estenografia da Onisciente mao d le Deus.” Até mesmo indicios mais diretos da derrocada do mundo simbélico obras de historia mada da natureza ‘quanto historias naturais tradicionais, como The Historie of Foure-Footed Beastes [A historia dos animais quadruipedes] (1607), do clérigo Edward Topsell (c. 1572- 1625), ainda enumeravam os significados simbélicos das criaturas, essa posigao emblematica foi evitada pelos defensores da “nova filosofia’" Nehemiah Grew (1641-1712), pioneiro da fisiologia vegetal e um dos primeiros membros ativos da Sociedade Real, fez questao de excluir “material mistico, mi- tologico ou hieroglifico” do seu catdlogo da colecao de historia natural da Sociedade Real. Em vez disso, de que dependia a metafora mais antiga advém de natural que se identificavam com a abordagem refori caracteristica da nova ciéncia experimental, ele se concentraria nos “usos e razées das coisas.“ Em sua Ornithology [Ornitologia] (1678), em coautoria de Francis Willoughby, John Ray igualmente anunciou que nao trataria de “hieroglifos, emblemas, licdes morais, fabulas, pressagios ou tudo o mais que pertencesse a teologia, ética, gramatica ou qualquer tipo de saber humano’. Estas nao eram consideradas como se tivessem lugar adequado numa legitima historia natural.®> Essas evolucées assinalam a morte de uma estrutura hermenéutica universal em que os livros da Escritura e da natureza eram interpretados €m conjunto. Agora, até mesmo o livro da natureza estaria sujeito a uma pluralidade de praticas hermenéuticas - matemiatica, anatémica, taxonémica. Porém, o colapso do sistema unificado de interpretagao e a separagao entre 0 estudo de textos e o mundo natural de modo algum implicavam que o estudo da natureza deveria ser praticado independentemente de consideracoes teolégicas. Antes, desenvolveu-se uma nova parceria entre @ teologia € as novas ciéncias. CAUSAS PERDIDAS Acompanhando o esvaziamento do significado dos objetos naturais veloa liminagao das suas poténcias causais intrinsecas." A posigao escolistica Predominante acerca da ordem causal era um entendimento “de baixo Para cima” que explicava a mudanga no mundo do ponto de vista das Poténcias ¢ virtudes inerentes dos seus constituintes. A visio ae €M Ultima instancia, de Aristételes, para quem as poténcias das coisas Digitalizado com CamScanner CIA EDA RELIGIAO 92 0S -TeRRITORIOS DA ciéNt . | A essa concepgao aristotélica bésica, 4 crescentaram a ideia de um Deus criador, envolvido Por sey cia daqueles objetos. Assim, cada acontecimeny (Deus) e uma causa secundaria (as Poténcias dg dos tltimos escolasticos jé tinham expressady Descartes acerca das leis da natureza que sinalizou 0 mae lo fi das poténcias e qualidades intrinsecas.” Para Descartes, como ja vimos, sig as leis da aatureza, € nao as propriedades intrinsecas, que oferecem a melhor perspectiva para explicar as operagGes do mundo natural. Essas leis da natureza nao descreviam relagées entre as propriedades de objetos, mas de volices divinas.” Nesse entendimento “de cima para baixo” as regularidades da natureza eram diretamente impostas a ela por Deus. Esse ponto de vista ndo apenas retirou o papel causal das formas aristotélicas, mas, em ultima andlise, levantou duvidas sobre a possibilidade de haver quaisquer causas secundarias verdadeiras na natureza. Essa tendéncia ao ocasionalismo ~ a ideia de que Deus é a tinica causa verdadeira dos acon- tecimentos naturais - culminou na sugestao de David Hume (1711-1776) de que a causa¢ao era essencialmente psicolégica, em vez de ontol6dgica, s. derivam das suas forma’ escolistic ta responsavel pela existén tem uma causa priméria Alguns agente individual). € que ocorria nas mentes humanas, nao no mundo.’! O ocasionalismo também se encaixava bem na ideia de Deus promovida pelos reformadores Protestantes, que enfatizavam a primazia da vontade divina e destacavam @ onipoténcia e a transcendéncia de Deus. Deum Ao, a idei, modo um tanto paradoxal, entao, a ideia piedosa de que Deus cra a Unica causa verdadeira no cosmo e¢ de que objetos naturais néo tinham nenhum poder causal causalidade divina com destaque no sécul natureza eram m. Proprio levou a equiparacao direta da # natural. Para intimeros filésofos naturais 4¢ lo 7, €m particular os newtonianos, as regularidades da ° flésofo tedlogonecn nn da atividade permanente e direta de Deus.” havia nada como “o poder i Samuel Clarke sustentava, assim, que no em ve disso “nada ee iatUeRA” ou“ curso da nature” Ha “Vontade de Deus produzindo certos efeito® de maneira conti, continuada, regu distinca » regular, constante e uni, a sod stincdo entre causacio natural e sob, uniforme”.® Nesse colap: ‘obre Digitalizado com CamScanner SINAISECAUSAS 93 jo as duas ao mesmo tempo. A explicagio causal tornou-se um jogo de soma zero, € a disjungao “Deus ou natureza” seria cada vez mais vrucionada para 0 lado da dltima, Ha comentaristas que sugeriram que j tendéncia de colocar a causagao divina em paridade com a causacio + atribufda a influéncia de Jodo Duns Escoto. Qualquer queseja a origem, porém, ela é certamente caracteristica de entendimentos da causagao entre diversos fildsofos naturais do perfodo inicial da moder- nidade, Assim como significados simbélicos da natureza e da Escritura acabaram em um tnico sentido literal, as diversas camadas causais da escolastica aristotéli mas 0 natural deva s a vieram a ser niveladas em uma tinica camada de causas eficientes univocas. Havia uma ordem de significado - 0 sentido literal - € um nivel de causagio - causagao eficiente. Esses dois avangos foram promovidos por pensadores religiosos e por motivos religiosos. Eram precondigao para a emergencia da ciéncia moderna, Todavia, o efeito ultimo desse nivelamento do escopo de significado e causagao foi que a ciéncia ea teologia modernas viriam a ocupar 0 mesmo territério explanatério, o que estabeleceu as condigdes para a competigao entre as duas. A crescente decadéncia do entendimento aristotélico de ordem causal estendia-se nao apenas as poténcias de objetos inanimados, mas também a poténcias e virtudes humanas. Como vimos no primeiro capitulo, virtudes cram entendidas como habitos que aperfeigoam as poténcias naturais. As poténcias naturais, por sua vez, movem as entidades as quais elas sio inerentes - no caso, as pessoas humanas ~ rumo aos seus fins naturais. m se pensava que as “causas finais” aristotélicas operavam. Os refor- madores protestantes objetaram a elementos centrais dessa concep¢ao de habitos e fins humanos. Para comegar, adotaram uma linha muito mais severa do que seus predecessores escolasticos no tocante & incapacidade moral e cognitiva que resultou do pecado original. Uma consequéncia dessa posigio intransigente foi o ceticismo quanto a possibilidade de que 4 razao humana, sem ajuda, pudesse penetrar as esséncias das coisas ou conhecer seus verdadeiros fins ou ainda discernir as intengdes que Deus Pode ter tido ao criar coisas naturais. Essas ditvidas, por sua vez, foram ator motivador na nova filosofia natural experimental, mais critica nos Seus métodos e mais modesta nas suas ambig6es do que a filosofia na- ‘ural aristotélica que ela se destinava a substituir. Os reformadores, em Particular Lutero, eram também criticos ferrenhos da noga0 aristotélica de habitus, por causa da sua visivel cumplicidade com uma visio errada Digitalizado com CamScanner 94 OS TERRITORIOS DA CIENCIA E DA RELIGIAO de justificacao, a doutrina que explicava como seres humanos Pecadore podem ser reconciliados com Deus. Nao somente os falhos seres hum, ‘eram incapazes de discernir seu verdadeiro fim, mas, mesmo Que 0 conse. guissem, suas poténcias intelectuais e morais debilitadas seriam totalmente inadequadas para conduzi-los na dire¢ao certa. Esses ataques Criticos, considerados mais detalhadamente no préximo capitulo, requererian, uma reconsideragao dos fundamentos da filosofia moral aristotélica e dg papel e operagoes das virtudes morais e intelectuais. Consequentemente, scientia e religio passarao a assumir a forma das categorias modernas de “cigncia” e “religiao”. Digitalizado com CamScanner

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