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Um

século
de
Favela
Alba Zaluar
Marcos Alvito
organizadores

5ª edição

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS


(OITO R A.
ISBN - 85-225-0253-6 Sumário
Copyright © Alba Zaluar e Marcos Alvito
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Introdução 7
Os conceitos emitidos neste livro s,.o de inteira responsabilidade dos autores. Alba Zaluar e Marcos Alvito
11 edição - 1998
21 edição - 1999
31 edição - 2003 Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas
41 edição - 2004 nas favelas do Rio de Janeiro 25
51 edir:ão - 2006
Marcelo Baumann Burgos
REVISÃO DE ORIGINAIS E TRADUÇÃO DO TEXTO Cocaine and parallel politics in the
Brazilian urban periphery: constraints on local levei democratization, de Elizabeth
Leeds: Luiz Alberto Monjardim
"A palavra é: favela" 61
REVISÃO: Aleidis de Beltran e Fatima Caroni Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense Marcier
CAPA: Inventum Design e Soluções Gráficas
Foro DA CAPA: Ricardo Azouri
Mangueira e Império: a carnavalização do poder pelas escolas
de samba 115
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mt; rian Sepúlveda dos Santos
Mario Henrique Simonsen/FGV
Um século de favela / Alba Zaluar e Marcos Alvito (orgs.).
Sil ed. - Rio de Janeiro : Editora FGV, 2006. �aleras funk cariocas: os bailes e a constituição do ethos guerreiro 145
Fátima Regina Cecchetto
372p.
Inclui bibliografia.
Capoeira e alteridade: sobre mediações, trânsitos e fronteiras 167
1. Favelas - Aspectos sociais - Rio de Janeiro (RJ). 2. Rio
Sonia Duarte Travassos
de Janeiro (RJ) - Condições sociais. I. Zaluar, Alba. II. Alvito,
Marcos. III. Fundação Getulio Vargas.

Um bicho-de-sete-cabeças 181
CDD-301.363098153
Marcos Alvito
Crime, medo e política 209 Introdução*
Alba Zaluar

Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira:


ameaças à democratização em nível local 233 Alvito
Elizabeth Leeds

Drogas e símbolos: redes de solidariedade em contextos


de violência 277
Clara Mafra

Marginais, delinqüentes e vítimas: um estudo sobre a FALAR DE FAVELA é falar da história do Brasil desde a virada
representação da categoria favelado no tribunal do do século passado. É falar particularmente da cidade do Rio de Janeiro
júri da cidade do Rio de Janeiro 299 na República, entrecortada por interesses e conflitos regionais profun­
Alessandra de Andrade Rinaldi dos. Pode-se dizer que as favelas tornaram-se uma marca da capital fe­
deral, em decorrência (não intencional) das tentativas dos republicanos
radicais e dos teóricos do embranquecimento - incluindo-se aí os mem­
Os universitários da favela 323 bros de várias oligarquias regionais - para torná-la uma cidade euro­
Cecília L. Mariz, Sílvia Regina Alves Fernandes e Roberto Batista péia. Cidade desde o início marcada pelo paradoxo, a derrubada dos cor­
tiços resultou no crescimento da população pobre nos morros, charcos e
demais áreas vazias em torno da capital. Mas isso também se deveu à
Poemas 339 criatividade cultural e política, à capacidade de luta e de organização de­
Delev de Acarv monstradas pelos favelados nos 100 anos de sua história. E a capital fe­
deral nunca se tornou européia, graças à força que continuaram a ter
nela a capoeira (ou pernada ou batucada), as festas populares que ainda
Cidade de Deus 349 reuniam pessoas de diferentes classes sociais e raças, as diversas formas
e gêneros musicais que uniam o erudito e o popular, especialmente o
Pablo das Oliveiras
samba.
Mas a favela ficou também registrada oficialmente como a área de
habitações irregularmente construídas, sem arruamentos, sem plano urba­
no, sem esgotos, sem água, sem luz. Dessa precariedade urbana, resultado
da pobreza de seus habitantes e do descaso do poder público, surgiram as
imagens que fizeram da favela o lugar da carência, da falta, do vazio a ser

• Gostaríamos de agradecer ao prof. Zairo Cheibub, que nos ajudou a pensar este livro quan­
do ele era apenas um projeto. Infelizmente, outros compromissos profissionais não permiti­
ram que ele continuasse a organizar conosco este volume, cuja existência também se deve a
ele.
8 Um Século de Favela Introdução 9

preenchido pelos sentimentos humanitários, do perigo a ser erradicado Parece, entretanto, que o meio mais prático de ficar completamen­
pelas estratégias políticas que fizeram do favelado um bode expiatório te limpo o aludido morro é ser pela Diretoria de Saúde Pública or­
dos problemas da cidade, o "outro", distinto do morador civilizado da pri­ denada a demolição de todos os pardieiros que em tal sítio se en­
meira metrópole que o Brasil teve. Lugar do lodo e da flor que nele nasce, contram, pois são edificados sem a respectiva licença municipal e
lugar das mais belas vistas e do maior acúmulo de sujeira, lugar da finura não têm as devidas condições higiênicas.
e elegância de tantos sambistas, desde sempre, e da violência dos mais fa­ Saúde e fraternidade,
mosos bandidos que a cidade conheceu ultimamente, a favela sempre ins­
o delegado
pirou e continua a inspirar tanto o imaginário preconceituoso dos que
dela querem se distinguir quanto os tantos poetas e escritores que canta­
ram suas várias formas de marcar a vida urbana no Rio de Janeiro. A carta do delegado foi encaminhada a um assessor do chefe de
Do du�lismo que persiste em muitas das atuais interpretações das polícia, acompanhada do seguinte parecer, datado de 8 de novembro de
favelas, o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, guarda um interessante 1900:
documento datado de 4 de novembro de 1900. Trata-se de uma carta do
delegado da 10ª circunscrição ao chefe de polícia, dr. Enéas Galvão. Nela
podemos ler: Parece-me que ao sr. prefeito devem ser pedidas, a bem da or­
dem e moralidade públicas, as providências que julgar necessá­
rias para a extinção dos casebres e pardieiros a que alude o dele­
Obedecendo ao pedido de informações que V. Excia., em ofício
gado.
sob nº 7.071, ontem me dirigiu relativamente a um local do Jornal
dó Brasil, que diz estar o morro da Providência infestado de vaga­
bundos e criminosos que são o sobressalto das famílias no local de­ Dois dias depois, com um lacônico "sim", o dr. Enéas Galvão,
signado, se bem que não haja famílias no local designado, é ali im­ chefe de polícia do Distrito Federal, endossava o parecer de seu assessor.
possível ser feito o policiamento porquanto nesse local, foco de Aqui perdemos o fio da meada histórica e não sabemos se jamais o prefei­
desertores, ladrões e praças do Exército, não há ruas, os casebres to veio a receber tal correspondência. De qualquer forma, os dois docu­
são construídos de madeira e cobertos de zinco, e não existe em mentos existentes no Arquivo Nacional são importantes por dois moti­
todo o morro um só bico de gás, de modo que para a completa ex­ vos. Em primeiro lugar, mostram que o "morro da Favela", apenas três
tinção dos malfeitores apontados se torna necessário um grande anos depois de o Ministério da Guerra permitir que ali viessem a se alo­
cerco, que para produzir resultado, precisa pelo menos de um au­ jar os veteranos da campanha de Canudos (terminada em 1º de outubro
xílio de 80 praças completamente armadas. de 1897), já era percebido pelas autoridades policiais como um "foco de
desertores, ladrões e praças do Exército". E mais, a carta do delegado da
A proposta do cerco, prossegue o delegado, nem ao menos era iné- 10ª circunscrição parece conter a primeira menção à favela como um
duplo problema: sanitário e policial (aos quais o assessor de Enéas Gal­
dita:
vão acrescentou a "moralidade pública"), que poderia, por isso mesmo,
ser resolvido de um só golpe. A idéia da favela como um "foco", a men­
Dos livros desta delegacia consta ter ali sido .feita uma diligência ção à "limpeza", isto é, a retórica centrada nas concepções de uma "pato­
pelo meu antecessor que teve êxito, sendo, com um contingente logia sbcial" e da "poluição" estava destinada a uma longa permanência
de 50 praças, capturados, numa só noite, cerca de 92 indivíduos na cena institucional carioca do século XX. Porém, a proposta de cercar
perigosos. um morro habitado pelas "classes perigosas" não era nova (como ates­
tam os registros da 10ª delegacia) nem parecia ser fruto único e exclusivo
da mente das autoridades policiais. Assim podemos depreender de uma
A solução ideal, porém, era outra, sugere o delegado ao chefe de notícia publicada também no Jornal do Brasil, na famosa coluna "Queixas
polícia: do Povo", ainda no mês de novembro de 1900:
10 Um Século de Favela Introdução 11

Diversos caixeiros de lojas de fazendas da rua da Carioca vieram em breve providências serão dadas de acordo com as leis munici­
pedir que reclamássemos do sr. delegado da 6ª circunscrição urba­ pais, para acabar com esses casebres.
na as providências contra uma quadrilha de menores gatunos que
se acouta no morro de Santo Antônio, perto da passagem dos
bonds elétricos. O ativíssimo Pereira Passos, entretanto, nada fez de concreto em
relação à "Favela", que continuou a existir e a crescer. Mas o morro da
Anteontem à noite, um desses larápios, auxiliado por um grupo Providência mantinha desperta a atenção das autoridades, como denota
de companheiros, furtou da casa n2 39 daquela rua um par de cal­ uma interessante caricatura - com o título "O governo e as favelas" -
ças que estava à mostra. publicada na revista O Malho em 1908. O dr. Osvaldo Cruz, ostentando
uma braçadeira com o símbolo da saúde no braço esquerdo, expulsa a
população da "Favela", penteando os cabelos, cobertos de gente, de um
A relativa insignificância do objeto furtado, entretanto, não parece
monstro mal-encarado. A legenda informava: "A Higiene vai limpar o
ter impedido uma reação imediata e coletiva dos comerciantes daquela
morro da Favela, do lado da estrada de ferro Central. Para isso, intimou
rua, denotando, talvez, a freqüência do problema:
os moradores a mudarem-se em 10 dias". Mais uma vez, não deu em
nada. No mesmo ano, Olavo Bilac3 escreve uma crônica cujo título, "Fora
Perseguidos pelos reclamantes referidos, evadiram-se por aquele da vida", parece dizer que a única existência que merece ser chamada
morro, sendo presos somente dois, por um guarda noturno; os ou­ como tal é a que transcorria nas avenidas e bulevares da cidade reforma­
tros, antes de fugirem à polícia, juraram aos seus perseguidores da. Comentando o fato de ter conhecido uma lavadeira no morro da Con­
ceição (perto do que hoje é a praça Mauá) que não descia ao centro da ci­
vingarem-se deles.
dade há 34 anos, afirma em tom épico:

A providência solicitada pelos comerciantes à autoridade policial Fizemos cá embaixo a Abolição e a República, criamos e destruí­
é a seguinte: "Um cerco bem dado, estudando o sr. delegado antecipada­ mos governos (... ) mergulhamos de cabeça para baixo no sorve­
mente o terreno do morro, teria bom resultado". douro do "Encilhamento", andamos beirando o despenhadeiro da
Moral da(s) história(s): já no início deste século os morros da cida­ bancarrota, rasgamos em avenidas o velho seio urbano, trabalha­
de eram vistos pela polícia e alguns setores da população como locais pe­ mos, penamos, gozamos, deliramos, sofremos - vivemos. E, tão
rigosos e refúgios de criminosos. Examinando as estatísticas criminais, perto materialmente de nós, no seu morro, essa criatura está lá 33
um especialista em história da polícia desmente essa idéia, afiançando anos tão moralmente afastada de nós, tão separada de fato da
que, nas diversas regiões da capital federal de então, "a distribuição dos nossa vida, como se, recuada no espaço e no tempo, estivesse vi­
tipos de crimes e contravenções é semelhante".1 O ponto que gostaría­ vendo no século atrasado, e no fundo da China (...) essas criaturas
mos de enfatizar é o seguinte: apesar do que se afirma com freqüência na apagadas e tristes, apáticas e inexpressivas, que vivem fora da
literatura sobre a favela, esta já começa a ser percebida como um "proble­ vida, se não têm a glória de ter praticado algum bem, podendo ao
ma" praticamente no momento em que surge, muito embora, a despeito menos ter o consolo de não ter praticado mal nenhum, consciente
dessa clara oposição à sua presença na cidade, tenha continuado a cres­ ou inconscientemente...
cer sem interrupção. Senão vejamos: cinco anos depois das matérias pu­
blicadas no Jornal do Brasil de 1900, Everardo Backheuser, num artigo da
revista Renascença sugestivamente intitulado "Onde moram os pobres", Talvez a crônica de Bilac seja uma chave para entender o porquê
afirmava que a "Favela", embora contasse com apenas 100 casebres, já dos planos de "limpeza" das favelas não irem adiante: simplesmente
era motivo de preocupação para Pereira Passos: 2 não "valia a pena". Será preciso esperar até 1927 para que a favela cons­
te efetivamente de um plano oficial - embora não implementado - de
"remodelação, extensão e embelezamento" da capital da República pre-
\

O ilustre dr. Passos, ativo e inteligente prefeito da cidade, já tem parado por um urbanista francês, Alfred Agache. No capítulo referente
as suas vistas de arguto administrador voltadas para a "Favela" e às favelas, ele propõe a transferência da população ali residente, até
12 Um Século de Favela Introdução 13

então desfrutando de uma "liberdade individual ilimitada" que criava Norte, essa dualidade foi usada em diferentes contextos e com diferentes
sérios problemas "sob o ponto de vista da ordem social e da segurança, conotações para expressar a superioridade de uma região, estado, cidade
como sob o ponto de vista da higiene geral da cidade, sem falar da esté­ ou parte da cidade sobre outras regiões, estados, cidades ou partes da ci­
tica".4 dade. No Rio de Janeiro, essa reflexão sobre a dualidade brasileira encon­
Não há o que negar no bom senso de apontar para a liberdade na trou na oposição favela x asfalto uma de suas encarnações. Pela sua impor­
construção que passou a ameaçar as encostas e as matas da cidade, mas a tância política e cultural, capital do país durante 250 anos, o Rio de Janeiro
composição dos habitantes (em termos étnicos, culturais, econômicos), as sempre representou a "ponta estratégica do processo de modernização".6
formas de moradia e as condições de vida das favelas variaram muito Arriscamo-nos a dizer que, ainda hoje, a despeito do seu enfraquecimento
em um século de existência, completado em 1997, mantendo seu poten­ econômico e da maior variedade de centros políticos e culturais importan­
cial de alteridade sempre alto. Por isso a utilização da favela como um es­
tes, o Rio de Janeiro representa metonimicamente o Brasil justamente por­
pelho invertil:lo na construção de uma identidade urbana civilizada que mantém essa tensão entre o pessoal e o impessoal, entre o moderno e
tomou várias formas. o antigo, entre a ordem e a desordem, tensão para a qual a presença da fa­
Bilac, na crônica referida, chama a favela de "uma cidade à parte" vela tem oferecido modelos, desafios e contestações, além dos estilos de
e "a mais original de nossas subcidades". "Encravada no Rio de Janeiro,
dança e gêneros musicais, dada a grande criatividade cultural nela desen­
a Favela é uma cidade dentro da cidade" escreve o jornalista Benjamin
volvida. Aqui ainda são buscados os símbolos (positivos e negativos) da
Costallat, enquanto o sambista Orestes Barbosa afirma, categórico: "Há,
nacionalidade a partir dessa tensão e para expressá-la.
sem dúvida, duas cidades no Rio". Sempre crítico, Lima Barreto não per­
doa: "Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Talvez por isso o Rio de Janeiro tenha sido palco de diversas tenta­
Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será européia e a outra tivas épicas de resolução do assim chamado "problema das favelas". Fa­
indígená". Entre o parnasiano Bilac, que nega a contemporaneidade da çamos uma "viagem" até 1948. Naquele ano, pela primeira vez foi realiza­
favela e de seus moradores, e Lima Barreto, o mais acerbo inimigo da do um censo das favelas do Rio de Janeiro, por iniciativa da prefeitura do
"Belle Époque Tropical", há, decerto, muitas diferenças. então Distrito Federal. O texto que precede as tabelas estatísticas surpre­
De qualquer forma, em todos esses autores que escreveram entre ende, ainda mais por se tratar de documento oficial e público, decerto dis­
1908 e 1923, o conceito de dualidade está presente no discurso sobre a fa­ tribuído às diversas instâncias governamentais e de larga circulação. Se­
vela carioca. As origens desse pensamento, na verdade, devem ser busca­ gundo o texto, os "pretos e pardos" prevaleciam nas favelas por serem
das no século passado, referindo-se a oposições englobadoras de cada "hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às
lado da sociedade brasileira. Como ensina Eunice Durham,5 a própria exigências sociais modernas"; e mais:
idéia da existência de dois Brasis remonta aos relatos dos viajantes es­
trangeiros que estiveram por aqui no século XIX:
O preto, por exemplo, via de regra não soube ou não poude [sic]
aproveitar a liberdade adquirida e a melhoria econômica que lhe
Afirmava-se a existência de uma dualidade fundamental, através proporcionou o novo ambiente para conquistar bens de consumo
da qual se costumava opor, de um lado, a tecnologia rudimentar e capazes de lhe garantirem nível decente de vida. Renasceu-lhe a
a organização patrimonial do sistema tradicional, retrógrado e preguiça atávica, retornou a estagnação que estiola (...) como ele
pobre, baseado nas relações pessoais de dominação, lealdade e todos os indivíduos de necessidades primitivas, sem amor próprio
obrigações mútuas; de outro, um sistema capitalista industrial em e sem respeito à própria dignidade - priva-se do essencial à ma­
expansão, progressista e rico, fundado na concepção do lucro, na nutenção de um nível de vida decente mas investe somas relativa­
racionalização do processo produtivo, na burocratização das insti­ mente elevadas em indumentária exótica, na gafieira e nos cordões
tuições, na impessoalidade das relações interpessoais. camavalescós...

Pensada para exprimir o abismo entre o mundo urbano brasileiro, No mesmo ano em que foi realizado o censo, o então jornalista
localizado no Sul e Sudeste, e o mundo tradicional do Nordeste e do Carlos Lacerda publicou uma série de artigos dramáticos propugnando a
14 Um Século de Favela Introdução 15

"Batalha do Rio de Janeiro" ou a "Batalha das favelas". O tema toma Com a chegada de levas de nordestinos, que traziam outra bagagem cul­
conta das redações: Correio da Manhã, O Globo, Diário da Noite, Tribuna da tural, a favela também passou a ser vista como reduto anacrônico de mi­
Imprensa, em todos esses órgãos jornalísticos o destaque absoluto é a grantes de origem rural mal adaptados às excelências da vida urbana, ig­
questão das favelas e a "Batalha do Rio de Janeiro". Afinal, as favelas norando-se os conflitos que advieram da convivência forçada num
eram "reservatórios de germes" (potencialmente mais perigosos do que espaço cada vez menor entre negros cariocas ("de raiz") e migrantes nor­
uma bomba atômica), "trampolins da morte", devido aos desabamentos. destinos.
Até mesmo a imprensa paulista não deixou de prestar a sua solidarieda­ Na década de 70, quando o esquema dualista de conceber a cidade
de: "Copacabana, por exemplo, está cercada por um cinto de favelas que era tão criticado, o lugar da favela, segundo o discurso sociológico, sur­
vêm descendo as encostas (...) e ameaçam invadir o arrebalde catita e al­ preenderia alguns desmemoriados observadores de hoje. Não faz tanto
tamente valqrizado". No ano em que o Partido Comunista Brasileiro foi tempo assim, em pleno regime militar, dizia-se que a favela era "um com­
o terceiro mais votado, Lacerda alertava: plexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação
voluntária e vizinhança" (Boschi, 1970). Aprofundando o pensamento
desse autor, Perlman (1976:136) chega a afirmar que os favelados, além
aqueles que não quiserem fazer um esforço sincero e profundo de estarem dotados de forte sentimento de otimismo, teriam uma "vida
para atender ao problema das favelas, assim como aqueles que pre­ (...) rica de experiências associativas, imbuídas de amizade e espírito coo­
ferirem encará-lo como caso de polícia, têm uma alternativa diante perativo e relativamente livre de crimes e violência". Os autores citados
de si: a solução revolucionária [pois os] comunistas (...) oferecem a não estavam delirando. Assim era o et/10s predominante entre os favela­
expropriação dos grandes edifícios e a ocupação de todo o edifício dos, assim concretizavam-se em práticas os jogos sociais nos quais se en­
como solução imediata, redutora e fogueira a quem vive numa gajavam, assim se justificavam sociologicamente as demandas para a sua
t�mpa de lata olhando o crescimento dos arranha-céus. inclusão no campo da política e da economia nacionais. Mas havia uma
atividade subterrânea que na década seguinte transformou a vida dos fa­
velados e que veio a mudar o discurso sociológico sobre a favela, trazen­
Ao fim do mês de maio, o Correio da Noite já anunciava: "400 mi­
do de volta as metáforas dualistas. Com a chegada do tráfico de cocaína
lhões de cruzeiros serão empregados na construção de habitações higiêni­
em toda a cidade, a favela - onde as quadrilhas se armaram para ven­
cas em centros residenciais devidamente urbanizados". Menos de dois
der no mesmo comércio que movimenta o resto da cidade e do país -
meses depois, em 8 de julho de 1948, o prefeito Mendes de Moraes, insta­
passou a ser representada como covil de bandidos, zona franca do crime,
do pelo presidente da República, o marechal Dutra, cria sete comissões
hábitat natural das "classes perigosas". Por extensão, assim o Rio de Ja­
encarregadas de trabalhar na solução do problema das favelas e na elabo­
neiro passou a ser visto na mídia e no imaginário das pessoas no vasto
ração do plano da "Batalha do Rio". Curiosamente, já em dezembro, um
território nacional.
mês após as eleições, a Folha Carioca assinalava: "Profundo silêncio na
Assim, a despeito de diferentes roupagens, sempre de acordo com
campanha das favelas - um programa grandioso que ficou apenas no
um contexto histórico específico, o favelado foi um fantasma, um outro
papel".
construído de acordo com o tipo de identidade de cidadão urbano que es­
A favela, vista pelos olhos das instituições e dos governos, é o tava sendo elaborada, presidida pelo higienismo, pelo desenvolvimentis­
lugar por excelência da desordem. Vista pelos olhos de outras regiões, es­ mo ou, mais recentemente, pelas relações auto-reguláveis do mercado e
tados e metrópoles que concorrem com o Rio de Jan_eiro pela importância pela globalização.
cultural e política do país, especialmente São Paulo, ela é também, por ex­ A ironia do que se vive hoje nas cidades brasileiras, incluindo o
tensão, a própria imagem da cidade. Os estereótipos que se formam da Rio de Janeiro, é que a polis, a cidade inventada pelos gregos, como
cidade são os mesmos desenvolvidos pela favela. Ao longo deste século, forma política, criação do espaço público e da convivência democrática, é
a favela foi representada como um dos fantasmas prediletos do imaginá­ o locus da bu'sca da imortalidade, da permanência de uma pessoa na me­
rio urbano: como foco de doenças, gerador de mortais epidemias; como mória dos homens pela atividade pública, pela ação política na condução
sítio por excelência de malandros e ociosos, negros inimigos do trabalho das "ações que se fazem por meio de palavras", pelo "ato de encontrar as
duro e honesto; como amontoado promíscuo de populações sem moral. palavras adequadas no momento certo, independentemente da informa-
Um Sécu lo de Fave la
I ntrodu ção 17
16
temas e pr oblem�s �em sempre claramente diferenciados, nem semp re ri­
.7 É o discu� so, como �eio de p e�­
ção ou comunicação que transmitem" g or os�mente defu:iidos. M as, nas metáforas utilizadas p ar a rep resent ar
s u asão, qu e dav a o sign
ificado e a imagem domrnante_da vi�
a na pol�s
espa cia lmente a cid a de, a man eira de fraturá-la n ão mudou, apes ar do
atrav es
alavras e p ersu asao, e n ao
gre ga : "tudo era decidido mediante p apelo p ar a a teoria da glob alização, como se existissem cidades duais, ou
da f orça e d a violên cia". seja , cidades divididas em duas partes hermeticamente separadas, mui­
o as soci ado à cidade mo-
Muitas mud anças ocor rem n o imagin ári aç o
tas vezes usadas c omo sinônimos de cidades globais.1 0
tânci a da ação p olítica no esp
dern a, entre as quais a per da de imp or t_ c de O p oder do modelo dicotômico para descr ever a cidade dividida já
nci do surgim�n
público. E st a p rovavelmente é conseqüê �
so ieda
estav a presente na obra de João do Rio, dândi identificado com os valores
o da
p ,
de mas sas ou da convivên
cia, na mesma cidade, de m ühoes de
as
arist ocráticos de uma elite vanguardista e que percorreu antros da b oe­
esso

urb ana d a G ré ci a ant i g a . P


r s ,
fato totalmente estr anho à experiência
o i so

h o dos h omens , n os temp os clá ­ �ia, descreveu religiões não-oficiais e visitou morros cariocas. João do
n os t emp os modernos, perde força o son
s
fosse Rio, fal ando da favela, sente-se "na roça , no sertão, longe da cidade ". Se
sicos , de ing ressar na esfera
pública "por desejarem que alg� seu
trn d es ­ �em que sua atividade jornalística fosse um desmentido da divisão bipar­
mais p erm anente que su as
vidas terrenas", escap � ,� o os
tida, a representação sintética e econômica segundo os e ixos alto / baixo,
a do do d e

iam sem deix r v tig lg


cr av os que viviam obscur os e "morrer
10 a um de
re� amento / �e lva geria, av anço tecn ológico / atraso, centro /perifer ia do­
a es

8 l característica, a liá , scr vi


terem existido". Er a essa a principa
e a dão
mrna as suas imagens da cidade como microcosmo da sociedade moder­
s da
tant� , à
ã tinh a direito à pa lavra e , por
n os temp os antigos: o escr avo n a.1 1 N o entanto, livr os recentes sobre a história musica l do Rio de Janei­
. Teriam os homens (e as mulher es), �ida­
n o

superação da ob scuridade
nas
ro falam � os encontros entre os músicos e liter atos eruditos com os p oe ta s
lado a busca, mesmo que v a, da
des mo dern as, deixado inteir amente de e compositores populares, da mistura de gêneros e e stilos musicais que
chamavam d� "imorta�idade",
fama, da glória ou daquilo que os gregos 2
semp re marcou a p rodução cultural do Rio de Janeiro. 1 Onde se dariam,
d úvida de que iss o contrn
teriam se tornad o escrav os? Não resta
uou a

tivid p pois, a segregação e a construção de barreiras, e onde se construiriam as


ocorrer num esp aço púb
lico não mais definido pela a ade olítica
9
. A s artes, _ p :' pontes e os caminhos dos fluxos constantes entre seus pedaços ? Duas his­
ações no mundo privado
s tricto s ensu, op ost a às rel
o es orte
bsti ­ tórias da virada do século podem nos ajudar a esclarecer o enigma.
em alguns moment os , a
atividade guerr eira na defesa d as naç
oes su
t im i d � Um livro de A luísio de Azevedo, recentemen te repu blica do, narr a ,
ot almente ao mundo da in
tuíram essa pr ocur a, sem se op or em t
de

uitos modos pelos qu i i d �mumca­ chei o de humor e ironia, uma macab ra his tória real p ass a da n o fina l do
ou à esfera privada. Os m
me os e c

, às vezes p erversamente , nao mere­


a s os
ano de 1884, qu ando a n o tícia da prisão de um su posto des ordeiro, se gu i­
ção de massas a cab ar am p or afe tá-la da dias dep ois pelo anúncio do enterro de uma pessoa com o mesmo
ceram ainda a devida aten
ção p ar a serem desvelados.
es tão presentes no p ensa
­ nome, deu en sejo a um acirrado debate na imprensa da época. Os deta­
V oltemos ao dualismo de representaçõ çõ lhes da história são de uma terrível atualidade, deixando cl ar o que, em
outro es tr angeiro , d i st a
nte e ��o�t�, op er _
mento e que criam um
a e s

r. O rt f � d � s di­ mais de 100 anos de h istóri a republican a, os prob lemas do s istema de ju s­


e conserv
tão car as ao p ensament o totalitário
a i icia ism o
­ tiça no Brasil p ermaneceram os mesmos, embor a multipl icados várias
foi antes o resultad� da ideo�ogi� da
ado

visões esp aciais du ai s uit v z


v c rn . vezes. A m ídia carioca já exercia então uma vigilância crítica perm anente
e es
uma realidade
as

m

queles que as concebiam do que


na ida os itad os

plano d as práticas i q d o que acontecia nas esferas jurídico-policiais e na política governamen­


Torn ou-se um equívoco tan to no
soci a s uan to das

urba no , a p h�­ tal, acomp anhada pelos liter atos. N esse caso de mistério e de flagrante
mai s n seja p orque , n o mundo
idéias e v al ores . Qu anto
as de comuni­ desrespe it? aos direit os mínimos de cidadania , não há favelados nem ne­
a num a áre a com sistem
ão

r alidade de cultur as em coexistênci s se


sões impede que �ada uma dela gros. Há apenas p essoas exiladas de um sistema ver dadeiramente l ibe­
cações freqüentes entre suas divi se m anteve e ral, de um Esta do que exerça minimamente suas funções de p roteção e
eira de pensa r a ci_d ade
fech e p ara as ou tras . Mas ess a man an �, � ornan­
_
garantia. Nas p a lavras de Plínio Doyle, que apresenta o livro:
de f �z er a p e squ1S a u�b
foi confirma da pe la pr ópria maneir a _
ur a�
,
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s divi p i d i s mer as descnçoes de cult
do
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reificad a p or u ma identidade, uma


sas es ac ais ua

t rast an do -as entre si, cad a uma delas


a
Mas quem seria esse Castro M alta ou Castro M attos, personagem
sa visão teórica. Assim, no mundo
re ferência a si mesma decorre n te des da mais impressionante novela de mistério, qu e teve por cenário o
iu- se o enfoque da desorganização
urbano desse fin al de milênio, substitu Rio de Janeiro imperial?
en glob ado r de uma série
social pelo enfoque da exclusão, conceit o
de
18 Um Séc u l o d e Favela Introdução 19

Era um ilustre desconhecido? Seria um operário, encadernador, em­ gueira e de grande importância na vida de Geraldo Pereira. Alfre­
pregado da Casa Laemmert, como queriam os jornais? Vagabundo, do Português era carpinteiro, pedreiro, pintor e sambista fundador
eterno desempregado, desordeiro, bêbado habitual, capoeira conhe­ da Escola de Samba Unidos da Mangueira (escola que nasceu para
cido, segundo a Polícia? Ladrão, como disse uma testemunha? ... fazer oposição à Estação Primeira de Mangueira, mas acabou jun­
Tudo começou, depois do obituário, com um post scriptum de O tando-se a ela) . Era "um lusitano não de Trás-os-Montes, mas de
Paiz, na primeira página, onde o jornalista indagava sobre o desti­ cima do monte" - como gostava de afirmar - e pai adotivo do
no que teria sido dado a João Alves Castro Malta, preso pela Polí­ compositor Nélson Sargento.
cia no dia 17 e desaparecido desde então; os amigos, que procura­ Geraldo já andava bem enturmado com o pessoal do samba no
vam Castro Malta, suspeitavam que o falecido e enterrado como morro quando conheceu o major Couto, policial amigo e protetor
Castto Mattos fosse o mesmo Castro Malta, cujo nome fora troca­ de vários sambistas, que o levou para a Prefeitura . Tinha 18 anos
do; por mero engano, disse a Polícia mais tarde; propositadamen­ de idade quando tirou sua carteira de motorista e foi trabalhar no
te, para encobrir um crime monstruoso, dizia sempre O Paiz, di­ volante do caminhão da Limpeza Urbana, emprego que preservou
ziam os amigos do verdadeiro Castro Malta, dizia a imprensa to­ até a morte. Por ser apadrinhado do "major" Couto, Geraldo Perei­
da. E o post scriptum terminava pedindo a abertura de um inquéri­ ra desfrutava de muitas regalias. Faltava constantemente ao traba­
to para apurar esse caso "tão estranho, tão confuso, tão emaranha­ lho, sempre que tinha uma batucada ou uma roda de samba no
do de circunstâncias contraditórias", e ainda, para honra das pró­ morro da Mangueira. Depois que se tornou um compositor conhe­
prias autoridades, indispensável se tomava a exumação do corpo cido continuou faltando, mas aí já para fazer seus ensaios, grava­
para verificação de sua identidade e para o conhecimento de sua ções e apresentações. Numa dessas noitadas de samba no Santo
.verdadeira causa mortis... Antônio, Geraldo ajudou a fundar o bloco Depois das Sete, título
inspirado em portaria da Secretaria de Polícia, que proibia a venda
de cachaça depois das sete horas da noite . Como o mote já estava
A outra história, nada incomum entre sambistas na década de 30,
dado, os seus alegres sambistas jogaram o bloco nas ruas com uma
é a dos empregos e atividades de Geraldo Pereira, narrada em sua bio­
alegoria bastante interessante e oportuna: um boneco preto sam­
grafia.13 Nessa história, os encontros, as convivências e as trocas entre
bando em cima de barril de aguardente . . .
brancos e negros, morro e cidade, e até mesmo sambistas e policiais não
podem permanecer ocultos por quaisquer impedimentos ideológicos.
Nela, nem os favores do policial impediram o espírito crítico do sambista A s duas histórias, narradas por diferentes autores em épocas diver­
de se manifestar, mesmo quando era uma portaria da polícia que estava sas, falam de fatos reais, acontecimentos que remetem a verdades históri­
em questão. E apesar de criar o Bloco das Sete, Geraldo Pereira não per­ cas de uma mesma cidade que comporta tamanha diversidade nas rela­
deu o emprego arrumado pelo policial amigo dos sambistas: ções entre diferentes raças, diferentes classes sociais, entre funcionários
do Estado e pessoas comuns, na impossibilidade de chamá-los de cida­
dãos. Qual então o caráter ou o espírito dessa cidade, ultimamente usada
Ficou pouco tempo como ajudante do irmão na tendinha do Bura­ para decantar o que há de pior no país e na República fundada pelos co­
co Quente. Insatisfeito, queixou-se aos amigos, que logo trataram ronéis e oligarquias das províncias que apoiaram o golpe de Estado des­
de conseguir um emprego para ele: foi ser _soprador de vidro na fechado pelos militares e que passou à história como a "proclamação da
Fábrica de Vidro J. S. ( ...) Não permaneceu muito tempo nessa in­ República"? Qual o lugar que nela ocupa a favela e que relaçôes seus mo­
sólita profissão. O próprio Manoel Araújo (seu irmão, dono de radores, do asfalto e do morro, mantêm entre si?
tenda no morro e camareiro da EFCB) arranjou, meses depois, A classificação bipolar surge de uma ordem social imaginada de
uma colocação para ele como auxiliar de apontador na Central do tal modo que qualquer ambigüidade, fronteira sombreada e experiência
Brasil. Passava o dia fora, mas à noite, quando voltava para o contínua oferecem poucos instrumentos para pensar esses problemas .
morro, reunia-se com os amigos para improvisar sambas e batuca­ Essa classificação é devedora de uma ordem social que se estriba na clare­
das na casa de Alfredo Português, figura muito querida na Man- za de quem são os amigos e os inimigos, ou seja, uma ordem pré-moder-
Um Século de Fave la 21
20 I n trodução

na, das sociedades de pequena escala, das províncias, mas dificilmente Não s e pode deixar d e sublinhar também a capacidade d e luta dos
aplicável às metrópoles. Nestas aparecem os estranhos não convidados, favelados na defesa de seu local e estilo de moradia. Após 100 anos de
os que carregam as marcas do ambíguo e do misturado, os que parti­ luta, empregando diferentes formas de organização e demanda política,
lham ao mesmo tempo da proximidade das relações morais e da distân­ inclusive o carnaval, a favela venceu. Há menos de duas décadas
cia do que não se conhece, firmando um terceiro elemento entre amigos e mudou a legislação, e hoje a favela é feita de habitações em alvenaria. O�
inimigos. 14 Ora, a classificação bipolar não poderia representar a pecu­ frágeis barracos, facilmente destrutíveis, desapareceram. Desde o final
liar mistura de ordem e desordem que sempre caracterizou o Rio de Ja­ dos anos 70, a favela tem luz em cada casa. Durante os anos 80 ela adqui­
neiro. Mesmo assim, é possível identificar, na mesma cidade, diferentes riu serviços, mais ou menos precários, de água e esgoto. Ninguém fala
maneiras de se relacionar com o estranho, com o que não é amigo nem mais de remoção. Mais recentemente, os projetos de urbanização e sanea­
inimigo, as�i.J;n como diversos modos de criar as pontes entre amigos e mento, fruto de pequenas vitórias acumuladas do movimento de favela­
inimigos. Eis o que se apreende a respeito do Rio de Janeiro, a partir da dos, fazem surgir ruas e praças, mais ou menos planejadas, mais ou
história dos gêneros musicais aí criados, especialmente o samba. A cida­ menos discutidas com a população local. Tudo indica que a favela, garan­
de não é bipartida, muito pelo contrário. tida a continuidade da política pública, independentemente do partido
Entre as organizações vicinais, nos Estados Unidos, logo surgiram político no poder, poderá ter finalmente sua infra-estrutura urbana refei­
nos anos 20 deste século as gangues juvenis nos bairros pobres, habita­ ta e melhorada, transformando-se em bairro da cidade. Entretanto, a luta
dos por imigrantes que ainda não se haviam integrado ou ascendido so­ está longe de terminar. Não só porque os projetos são lentamente imple­
cialmente. Já no Rio de Janeiro, e posteriormente em outras cidades brasi­ mentados, mas porque hoje a favela enfrenta novos e terríveis proble­
leiras, nesse mesmo período surgiram, nas favelas e bairros populares, as mas, em face do terror imposto tanto pela polícia, na repressão ao tráfico,
escolas de samba, os blocos de carnaval e os times de futebol para repre­ quanto pelos próprios traficantes, cada vez mais afastados da população
sentá-los e expressar a rivalidade entre eles. Várias diferenças entre os local. Além disso, novos conflitos surgiram e ameaçam aquilo que fez da
dois países ficam claras desde então: entre as gangues estadunidenses, os favela um espaço propício à organização e à criação cultural, livre dos
conflitos eram manifestamente violentos, apelando para as figuras guer­ constrangimentos da crença incontestada, do maniqueísmo e da intole­
reiras e as armas, tendo desde sempre um caráter étnico e de vizinhança, rância religiosos. Irá a favela desaparecer?
visto que a peculiar segregação étnica das cidades estadunidenses sem­ Estudar uma favela carioca, hoje, é sobretudo combater certo
pre confundiu etnia e bairro, raça e bairro. Nessas organizações desenvol­ senso comum que já possui longa história e um pensamento acadêmico
veu-se um ethos guerreiro, visto que em tais bairros pobres, desde o iní­ que apenas reproduz parte das imagens, idéias e práticas correntes que
cio do século, conquistar a fama, sair da obscuridade da massa era algo lhe dizem respeito. É, até certo ponto, mapear as etapas de elaboração de
que se fazia também através do simbolismo guerreiro no qual se basea­ uma mitologia urbana. É também tentar mostrar, por exemplo, que a fa­
vam as reputações dos homens jovens que lutavam por suas gangues vela não é o mundo da desordem, que a idéia de carência (" comunidades
contra os jovens das outras e que buscavam o enriquecimento pelos carentes"), de falta, é insuficiente para entendê-la. É, sobretudo, mostrar
meios que a gangue, como negócio, possibilitava. 15 que a favela não é periferia, nem está à margem: Acari, por exemplo, é o
No Rio de Janeiro, a rivalidade entre os bairros pobres e as favelas, centro, o nó de uma série de práticas e estratégias de grupos bem especí­
sem excluir totalmente o conflito violento, expressava-se na apoteose dos ficos: a burocracia municipal, estadual e federal, políticos e/ ou candida­
desfiles e concursos carnavalescos, nas competições esportivas entre os tos, jornalistas, policiais, membros de entidades civis laicas e religiosas,
times locais, atestando a importância da festa como forma de conflito e so­ associações de moradores, comerciantes, traficantes, moradores em geral
cialidade que prega a união, a comensalidade, a mistura, o festejar como e, last bu t not least, pesquisadores, atuando de forma perene ou ocasional
antídotos da violência sempre presente mas contida ou transcendida pela e influindo no cotidiano da favela. Cidade de Deus, conjunto habitacio­
festa. A pretensão à glória, apesar do comunitarismo existente nesse ima­ nal construído com o dinheiro da Aliança para o Progresso num projeto
ginário, nunca esteve ausente. A fama de artista ou desportista movia, e de Carlos Lacerda, vinga-se dos defensores da remoção e reproduz, no
continua movendo, as ambições pessoais nesses locais, marginalizados, plano horizontal cheio de ruas e praças, todas as formas de associação e
de muitos modos, na cidade do Rio de Janeiro, mas sem chegarem a ser todos os problemas que existiam nas 23 favelas de onde vieram seus mo­
guetos raciais ou étnicos, tais como os existentes nos Estados Unidos. radores. A favela elege políticos (ou os faz cair em desgraça), proporcio-
22 Um Séc u l o de Favel a Introdução 23

na material para um produto midiático valioso sob a forma de medo ou 9. Habermas (1991).
estranheza, gera financiamentos nacionais e internacionais, tanto para
10. Sassen (1991) e Castels & Mollenkopf (1992).
ações diretas de caráter assistencial e/ ou religioso quanto para pesqui­
sas; a favela é o campo de batalha freqüente pela conquista da opinião 1 1 . Gomes (1996).
pública. É o espaço de práticas de enriquecimento (lícito e ilícito), é o
12. Velloso (1996), Cabral (1996), Vianna (1995), Gardel (1996) e Braga (1997).
palco de ações que se traduzem em promoções na carreira, em prestígio
ou desgraça junto aos pares (do quartel ou da academia, por exemplo). E 13. Vieira, Pimentel & Valença (1995).
sempre foi sobretudo o espaço onde se produziu o que de mais original
14. Bauman (1995).
se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o bloco
de carnaval, a capoeira, o pagode de fundo de quintal, o pagode de 15. Jankowski (1991).
clube. Mas onde também se faz outro tipo de música (como o funk), onde
se escrevem livros, onde se compõem versos belíssimos ainda não musi­
cados, onde se montam peças de teatro, onde se praticam todas as moda­ Referências bibliográficas
lidades esportivas, descobrindo-se novos significados para a capoeira,
misto de dança, esporte e luta ritualizada. Arendt, Hannah. A condiçíio humana. 3 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitá­
Os artigos deste livro cumprem essa função desmistificadora de di­ ria, 1987. 338p.
versas formas, abrindo um leque variado de temas: as políticas públicas, Azevedo, Aluísio de. Mattos, Malta ou Matta. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
os "favelados" diante do tribunal do júri, a representação da favela na mú­ 1985.
sica popular brasileira, os novos conflitos religiosos e familiares que divi­
Bauman, Zygmunt. Modernity and ambivalence. ln: Featherstone, Mike
dem a favela internamente, a guerra de símbolos no "campo religioso", as
(ed.). Global culture. 7 ed. London, Sage, 1995.
escolas de samba, suas tradições e patronos, o tráfico de drogas, a repres­
são policial e as transformações da dinâmica local, as organizações comu­ Braga, Sebastião. O lendário Pixinguin/za. Rio de Janeiro, Muiraquitã, 1997.
nitárias e os desafios ao avanço da cidadania, a rivalidade entre galeras
Bretas, Marcos. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio
funk, as trajetórias individuais de "favelados" que chegam à universida­
de Janeiro, Arquivo Nacional, 1997.
de ... A última palavra fica por conta dos versos de Deley de Acari e Pabli­
to da Cidade de Deus, poetas e moradores de favelas, pois a Ilíada nos en­ Boschi, Renato. População favelada do estado da Guanabara. Rio de Janeiro,
sina que somente os poetas são capazes de enxergar o passado e o futuro. Dados, 1970.
Cabral, Sergio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar,
1996.
Notas
Carvalho, Maria Alice Rezende. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro, Sette Le­
1 . Bretas (1997:74). tras, 1994.
2. Apud Zylberberg (1992:26). Castels, Manuel & Mollenkopf, John (eds.). Dual city: restructuring New York.
3. Apud Zylberberg (1992:110). New York, Russel Sage Foundation, 1992.

4. Apud Zylberberg (1992:33). Durham, Eunice. A caminho da cidade. São Paulo, Perspectiva, 1973.

5. Durham (1973:8-9). Gardel, André. O encontro entre Bandeira e Sinhô. Rio de Janeiro, Biblioteca Ca­
rioca, 1996.
6. Carvalho (1994:16).
Gomes, Renato C. João do Rio. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1996.
7. Arendt (1987).
Habermas, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro, Tempo Brasilei­
8. lbid. ro, 1991.
24 Um Sécul o de Favel a
FAFICH/UFMG - BIBUOTECA
Jankowski, Martin Sanchez. Islands in the street. Berkeley, University of Cali­ Dos parques proletários ao Favela-Bairro
fornia Press, 1991 .
Perlman, Janice. Tlze mytlz of marginality. Berkeley, University of California
as políticas públicas nas favelas
Press, 1976. do Rio de Janeiro*
Sassen, Saskia. The gabai city: New York, London, Tokyo. Princeton, Princeton
University Press, 1991 .
Velloso, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Funda­ l o B a u m a n n B u rg o s
ção Getulio Vargas, 1996.
Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
Vieira, L. F.; Pimentel, L. & Valença, S. Um escurinho direitinho, a vida e obra de
Geraldo Pereira. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995.
A m e u irmão R icardo Tadeu
Zylberberg, Sônia. Morro da Providência: memórias da Favella. Rio de Janeiro,
Secretaria Municipal de Cultura, 1992. (Coleção Biblioteca Carioca.)

MAIS DO QUE uma cronologia das intervenções públicas em fave­


las do Rio de Janeiro, este trabalho pretende caracterizar o nexo existente
entre as representações do "problema favela" e a atuação, frente ao
mesmo, do poder público e de instituições sociais como a Igreja Católica.
Considerando que o início das políticas públicas em favelas do Rio
remonta à década de 40, essa retrospectiva percorre 50 anos de história de
intervenções, dado que já indica a extrema dificuldade de resolução do
problema. E não foi por falta de vontade política que o problema favela
deixou de ser resolvido: o que o exame dessas intervenções públicas em
favela autoriza a concluir é que o obstáculo central à sua solução foi a in­
terrupção, pelo regime militar, da luta democratizante que vinha sendo
desenvolvida por organizações de favelas entre os anos 50 e início dos 60.

MARCELO BAUMANN BURGOS é professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia


Universidade Católica (PUC-Rio).
* Este trabalho teria sido impossível sem as discussões travadas no âmbito do grupo de pes­
quisa do qual participei ao longo de 1996, organizado no contexto da pesquisa "Cultura po­
lítica e cidadania: uma avaliação do Favela-Bairro" . Sou grato, por isso, a Maria Alice Re­
zende de Carvalho, Zairo Cheibub e Marcelo Simas. Agradeço também a Marcos Alvito,
um dos coordenadores deste livro, por suas valiosas críticas a este trabalho .
26 Um S éculo de F avela Dos P a r q ue s P rolet á r i o s ao Fave l a - Ba i r ro 27
.... . ..................................... .. .......... ..

Como é sabido, a modernização conservadora promovida no perío­ pedalmente da música popular, as favelas começam a ser incorporadas à
do militar não dispensou esforços no sentido de abolir a luta por direitos vida social da cidade.
dos excluídos da ordem social e política. 1 Análogo ao que se fez com a es­ Mas, aqui, cultura e política permanecem como dimensões aparta­
trutura sindical e partidária, também as organizações de favelas seriam das, até porque a restrição ao voto do analfabeto inibe qualquer tipo de
desmanteladas nesse período. Contudo, ao contrário do que ocorreu com participação da grande maioria dos moradores das favelas na competi­
as organizações operárias, o mundo dos excluídos não conheceu um pro­ ção eleitoral ao longo da República Velha. Tal situação pouco se altera no
cesso de reorganização capaz de inseri-lo no contexto da transição demo­ período de Vargas, cuja política social, corno se sabe, confere exclusivida­
crática em curso nos anos 80. No Rio de Janeiro, onde a presença dos ex­ de àqueles com ocupação formal no mercado de trabalho e portadores de
cluídos na cena política assumira importância inédita nas décadas de 50 e carteira profissional - a isso que Wanderley G. dos Santos denominou
60, a questão torna-se dramática, uma vez que a tiranização das favelas e "cidadania regulada" .5 Não por acaso, a única política habitacional então
conjuntos habitacionais pelo tráfico inibe a retomada da comunicação de existente para a população de baixa renda, organizada em 1933, benefi­
seus interesses com a nova institucionalidade construída com a redemo­ ciava exclusivamente empregados de ramos de atividades cobertas pelos
cratização do país. Assim, mais do que o déficit de direitos sociais, são os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs). A restrição ao direito de
déficits de direitos civis e políticos que permanecem como principais obs­ voto dos analfabetos e aos direitos sociais dos que estavam fora do mer­
táculos à integração da cidade, e são eles que ainda fazem do Rio de Janei­ cado de trabalho formal explica a invisibilidade política das favelas até
ro uma "cidade escassa", na arguta metáfora utilizada por Maria Alice Re­ então.
zende de Carvalho.2 O Código de Obras da cidade, de 1937, registra com precisão a si­
tuação marginal das favelas: por serem consideradas uma "aberração",
não podem constar do mapa oficial da cidade; por isso, o código propõe
A descoberta do problema favela: a alternativa sua eliminação, pelo que também tornava proibida a construção de
parques proletários novas moradias, assim como a melhoria das existentes. E para solucionar
o problema sugere a construção de habitações proletárias "para serem
A distância social que separa o mundo popular carioca da elite da
vendidas a pessoas reconhecidamente pobres" (Silva, 1981:6). Da orienta­
cidade, sobretudo no Rio de Janeiro da República Velha (Carvalho,
ção do Código de Obras surgirá a experiência dos parques proletários,
1987), retarda o ingresso das favelas na agenda das políticas públicas. A
efetivada no início dos anos 40.
essa invisibilidade política correspondem barreiras no plano societal, le­
Assim é que a "descoberta" do problema favela pelo poder públi­
gados da herança escravocrata, ainda muito viva na memória da cidade.
co não surge de uma postulação de seus moradores, mas sim do incômo­
Sintoma disso é a interdição dos negros nas equipes de futebol dos clu­
do que causava à urbanidade da cidade, o que explica o sentido d � pro­
bes da cidade, situação que somente começa a ser superada a partir de _
grama de construção dos parques proletários, que tem por fmahda�e,
1923, com o campeonato levantado pelo time de negros e mulatos monta­
acima de tudo, resolver o problema das condições insalubres das franps
do pelo Vasco da Gama. 3
do Centro da cidade, além de permitir a conquista de novas áreas para a
Porém, como já observou José Murilo de Carvalho (1987:41), o expansão urbana. Essa abordagem sanitarista do problema está bem ca­
mundo subterrâneo da cultura popular carioca "engoliu aos poucos o racterizada pelo fato de o primeiro plano oficial voltado para as favelas
mundo sobreterrâneo da cultura das elites", sendo exemplo disso, segun­ da cidade ser organizado pelo então diretor do Albergue da Boa Vonta­
do aquele autor, a festa portuguesa da Penha, "aos poucos tomada por de, Vítor T. Moura, a pedido da Secretaria Geral da Saúde do Distrito Fe­
negros e por toda a população dos subúrbios, fazendo-se ouvir o samba deral. Entre outras medidas, Moura sugere: a) o controle da entrada, no
ao lado dos fados e das modinhas". Emblema dessa aproximação é o laço Rio de Janeiro, de indivíduos de baixa condição social; b) o retorno de in­
de amizade que, nos anos 30, une o sambista do "asfalto", Noel Rosa, ao divíduos de tal condição para os seus estados de origem; c) a fiscalização
poeta do "morro", Cartola (Silva & Oliveira Filho, 1989). Aliás, também é severa das leis que proíbem a construção e reforma de casebres; d) a fis­
nesse período, mais precisamente em 1935, que as escolas de samba pas­ calização dos indivíduos acolhidos pelas instituições de amparo; e e) a
sam a fazer parte do programa oficial do carnaval da cidade, por iniciati­ promoção de forte campanha de reeducação social entre os moradores
va do prefeito Pedro Ernesto.4 Em suma, através da cultura, e muito es- das favelas, de modo a corrigir hábitos pessoais e incentivar a escolha de
Um Sécul o de Favela Dos P ar q ue s P r o l e t ór i o s ao F avela - B a i rro 29
28

melhor moradia (Valla, 1984:3). O caráter autoritário e excludente das Como se vê, despertados pela intervenção do poder público e ante
propostas de Moura é evidente, mas não deve surpreender. Afinal, em a ameaça de perderem su as casas e suas redes sociais pelo deslocamento
um contexto dominado pela cidad ania regulada, o p roblema favela não f?:çad �, os moradores d as favelas começaram a constituir-se em a tor po­
podia ser lido pelo ângulo dos direitos sociais. P ré-cida dãos, os habitan­ hhco. E verda de que a preservação, pela Constituição de 1946, d a restri­
tes d as favelas não são vistos como possuidores de direitos, m as como ção ao voto de analfabetos ainda mantinha fora d a competição política a
a lma s necessitad as de uma ped agogi a civiliza tó ri a - eis a rep resentação grande maioria de seus moradores, inibindo sua par ticip ação a té mesmo
que emoldura a experiência dos parques p roletários. A esse respeito, é em engrenagens de tipo clientelista.
b astante conhecida a descrição feita pelos Leeds dos mecanismos de con­ De todo modo, o impulso organizativo dos excluídos foi suficiente
trole utiliza dos nos parques: além de atesta do de bons antecedentes, seus para desper tar nos setores conservadores da cidade o velho temor da se­
moradores tinham que se submeter a sessões de lições de moral.6 E dição, mais t arde traduzidiJ no slogan "é necessário subir o morro antes
como, no início dos anos 40, V arg as buscava estreitar seus vínculos com que os comunistas desçam" (Lima, 1989:73 e segs.). Foi instrumentalizan­
as camad as populares, os p arques também seriam p a lco de festas e even­ do esse fantasma que a Arquidiocese do Rio de Janeiro e a prefeitura d a
tos políticos, através dos quais os seus moradores deveriam exp ressar cidade negociaram a criação de uma instituição dedicada à " assistência
sua gra tidão ao presidente da República; consta que Varg as chegou a re­ ma terial e moral dos h abitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro".
ceber as chaves de uma casa no P arque Proletário da Gávea p ara seu uso Daí surgiu, aind a em 1946, a Fundação Leão XIII, que tinh a por finalid a­
pessoal (Parisse, 1969:64). de principa l oferecer uma a lternativa à pedagogia populista esta do-no­
Entre 1941 e 1943, foram construídos três p arques p roletários (na vista . No lugar d a idéia de Estado-nação e do apelo a lideranç as carismá­
Gávea, no Leblon e no C aju), p ara onde se transferiram cerca de 4 mil pes­ ticas, a Igrej a oferece a cristianização d as massas; no lugar d a coerção,
soas, com a promessa de que poderiam retornar p ara áreas próximas da­ oferece a persuasão, motivo pelo qual não se exime de incentiv ar a vida
associa tiv a n a s favela s, "dentro de um espírito democrático e de respon­
quelas em que viviam, assim que estivessem u rb anizad as (Valla, 1984:4).
sabilidade pessoal de c ada um de seus membros, sendo totalmente bani­
M as, ao contrário do prometido, os moradores acabaram permanecendo
do desse movimento qualquer idéia p aternalista ou de p rotecionismo
muito tempo nesses parques (Valladares, 1978:23), deles saindo somente
ma l compreendido e p rejudicial à recuperação moral do homem" (Valla,
bem mais tarde, expulsos, quando d a valorização imobiliária dos respecti­
1984:7). Ao invés do conflito político, promete o diálogo e a compreen­
vos b airros, particularmente os dois primeiros.
são; ao invés da luta pelo acesso a bens públicos, o assistencialismo; no
lugar da crítica, a resignação; em vez do intelectu al orgânico, a formação
de lideranças tradicionais?
A favela como um problema moral Entre 1947 e 1954, a Leão XIII estendeu sua atuação a 34 favelas,
Um efeito não esperado da experiência dos p arques proletários foi implantando em algumas delas serviços básicos como água, esgoto, luz e
pôr em conta to o Estado e os excluídos, dando ensejo a um processo em­ redes viárias, e mantendo centros sociais em oito d as maiores favelas do
brionário de organização dos moradores das favelas, preocup ados com a Rio, entre as quais Jacarezinho, Rocinha, Telégrafos, B arreira do Vasco,
generalização d a alternativa dos p arques. E ra evidente que o autoritaris­ São C arlos, Salgueiro, Praia do Pinto e Cantagalo (Leeds & Leeds,
mo da pedagogia civiliza tória ensaia da e a p recariedade d as instal ações 1978:199). Porém, a o que tudo indica, a escala e o modelo do trab alho rea­
(concebidas como p rovisórias) não faziam dos p arques uma idéia atraen­ lizado pela Fundação não foram capazes de inibir uma articulação maior
te para os moradores das favelas, razão pela qual criaram, ainda em entre os moradores das favelas e outros segmentos d a sociedade c arioca .
1945 as comissões de mora dores, inicialmente no morro do Pavão/Pa­ Especialmente a partir dos anos 50, nota-se o estabelecimento de li­
vão;inho e pouco depois nos morros do C anta galo e da B abilônia , como gações mais consistentes entre a favela e a política, inclusive com o surgi­
forma de opor resistência a um suposto plano d a p refeitura de remover mento de liderança s que estabelecem. vínculos orgânicos com os parti­
todos os moradores p ara os p arques (Fortuna & Fortuna, 1974:103). dos. Concomitantemente, o capital cultural d as favelas também começa a
Pouco depois, favorecidas pela restauração da ordem democrática, essas ser v a lorizado, fato que contribui para aproximar os moradores das fave­
comissões formulariam, pela primeira vez, uma p auta de direitos sociais l as de segmentos intelectuais da classe média d a cidade. São estudantes,
refe rente a p roblemas de infra-estrutu ra de su as loc a lid a des. profissionais d a imp rens a, litera tos e artistas, que começam a freqüentar
30 Um Sécu l o de Favela Do s Parques Prole t ó r i o s ao Favela- Ba i rro
31

as favelas a fim de partilhar, entender e revelar seu estoque de cultura. prestava uma identidade coletiva aos excluídos, dando-lhes maior possi­
Segundo Maria Alice Rezende de Carvalho (1994:102), constituem uma bilidade de lutar por direitos sociais.
"intelligentsia sem lugar", que havia permanecido "apartada do grande A demonstração de capacidade autônoma de organização denun­
movimento de incorporação da intelectualidade carioca às agências cul­ ciava, por outro lado, que a pedagogia cristã não assegurava o controle
turais do Estado, em curso desde Vargas". Pelas mãos desses intelec­ esperado. A chegada dos próprios moradores das favelas à arena política
tuais, as favelas ganham uma identidade positiva e estabelecem contatos exigia uma reformulação do Estado; vai ficando claro que o véu do dis­
mais largos com a cidade, fora do controle do Estado e da Igreja. 8 curso religioso devia ser retirado para que a negociação pudesse ocorrer
A politização do problema favela exige da Igreja e do poder públi­ no terreno próprio da política moderna, com sua crua linguagem dos inte­
co um aprofundamento do seu trabalho junto às favelas. Para tanto, em resses. De fato, já no final dos anos 50, a Igreja começa a ser criticada por
1955, a Igreja cria a Cruzada São Sebastião. Por seu turno, em 1956, o go­ segmentos da burocracia pública, que a acusam de assistencialista e pater­
verno municipal cria o Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Ha­ nalistil, especialmente por sua atuação contra a remoção de algumas fave­
bitações Anti-higiênicas (Serfha). Em ambos os casos, estão em jogo inicia­ las. Significativo, nesse caso, é o depoimento de Geraldo Moreira, então
tivas que procuram articular o controle político a uma pauta mínima de secretário municipal da Agricultura, à Sociedade de Análises Gráficas e
direitos sociais referente a problemas de infra-estrutura. O Serfha teria Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (Sagmacs), por ocasião
atuação modesta até 1960, limitando-se a apoiar as duas instituições da do estudo sobre as favelas cariocas realizado em 1958 sob encomenda do
Igreja. Quanto à Cruzada São Sebastião, à diferença da Fundação Leão XIII, jornal O Estado de S. Paulo. Entre outras coisas, Moreira afirma: "o papel
buscaria reunir de forma mais concreta urbanização e pedagogia cristã, das autoridades [públicas] é esse: dar apoio moral a essa gente, dar-lhes
vendo nisso "a condição mínima de vivência humana e elevação moral, responsabilidade moral. Tanto a Fundação Leão XIII como a Cruzada São
intelectual, social e econômica" (Valia, 1984:8).9 Sebastião contribuem para o aumento da 'miserabilidade deliberada' e
Entre 1956 e 1960, a Cruzada realiza melhorias de serviços básicos desperdiçam dinheiros públicos sem dar soluções ao problema. Mas, a
em 12 favelas, executando 51 projetos de redes de luz, urbanizando par­ grande maioria da população favelada é auto-suficiente, carecendo tão­
cialmente uma favela (Morro Azul) e completamente a favela Parque Ale­ somente de orientação, apoio e boa vontade das autoridades".1 º
gria. Também constrói, no Leblon, o conjunto habitacional que ficaria co­
nhecido como Cruzada, primeira experiência de alojamento de moradores
nas proximidades da própria favela que habitavam (Valladares, 1978:23).
A favela como um problema político
É interessante notar que; se a Leão XIII trabalhava com a perspecti­
va de influir nas associações de moradores e na formação de lideranças, A resposta do poder público foi, a princípio, apostar na revitaliza­
a Cruzada atuaria de forma mais direta, posicionando-se, em alguns mo­ ção do Serfha, que, a partir de 1960, com a criação do estado da Guanaba­
mentos, como interlocutor dos moradores das favelas junto ao Estado, tal ra, passou a fazer parte da Coordenação de Serviços Sociais do Estado.
como ocorreu em 1958 e 1959, quando negociou com a administração pú­ Sob o comando de José Arthur Rios, o Serfha procurou, entre 1961 e
blica a não remoção de três favelas então ameaçadas, Borel, Esqueleto e 1962, a aproximação com as favelas, estimulando inclusive a formação de
Dona Marta (Valladares, 1978:23). associações de moradores onde estas não existiam - até maio de 1962,
O que não impediu que, em 1957, os moradores das favelas crias­ criaram-se 75 associações. Conforme salientou Rios, em entrevista conce­
sem uma entidade autônoma para negociar seus interesses: a Coligação dida aos Leeds, o primeiro objetivo do trabalho do Serfha era "capacitar
dos Trabalhadores Favelados do Distrito Federal, fundada com o objetivo o morador como tal a ganhar certa independência para tratar com as au­
de lutar por melhores condições de vida para os moradores das favelas, toridades estatais em vez de ter de depender de favores políticos" (Leeds
"através do desenvolvimento de um trabalho comunitário" (Fortuna & & Leeds, 1978:212). Todavia, examinando bem, e em que pese ao seu
Fortuna, 1974:104). A presença desse novo interlocutor indica que a cate­ ideal democratizador, o que prevaleceu foi a tendência a subordinar poli­
goria favelado, originariamente forjada para identificar negativamente os ticamente os moradores das favelas. Assim, na prática, a ação do poder
excluídos e justificar ações civilizatórias arbitrárias do Estado e da Igreja, público apenas acenava com a substituição da Igreja pelo Estado. Revela­
estava sendo requalificada. Com presença informal no mercado de traba­ dor disso é o acordo que cada uma das novas associações é obrigada a as­
lho e, portanto, desconectada da luta operária, a categoria favelado em- sinar com o Serfha, pelo qual assumem um caráter híbrido, que confunde
--
32 Um Século de Favela Do s P a r q ue s Prole t á r i o s ao Favela - Ba i r ro 33

sua identidade de representante dos moradores com a de interlocutor do por iniciar seu trabalho em favelas que ainda não estavam politicamente
Estado junto aos mesmos. São compromissos das associações: organizadas. Em suma, no lugar da estratégia católica de formar lideran­
ças tradicionais, o Estado oferece uma alternativa com resultados mais
imediatos - a cooptação de lideranças.
• cooperar com a Coordenação de Serviços Sociais na realização de pro­ É claro que esse arranjo ainda poderia trazer algum benefício aos
gramas educacionais e de bem-estar; moradores das favelas, na medida em que lhes propiciaria um canal de
• cooperar na urbanização da favela, recolhendo quaisquer contribuições acesso ao poder público e, com isso, algum poder de barganha. Porém,
dos residentes para a melhoria local, responsabilizando-se pela utilização essa experiência do Serfha não duraria mais do que um ano e meio,
de tais contribuições e submetendo-as à supervisão da coordenação; sendo interrompida com a demissão de Rios pelo governador Carlos La­
cerda. O motivo era evidente: o Serfha trazia a marca do governo ante­
• contribuir ·para a substituição progressiva dos barracos por constru­ rior, tendo sido criado durante a gestão de Negrão de Lima, em sua rápi­
ções mais adequadas e cooperar através da mobilização do trabalho para da passagem, entre 1956 e 1957, pela prefeitura da então capital federal,
a realização de outras obras de emergência na favela; nomeado por Kubitschek. O esvaziamento do Serfha coincide com a cria­
ção da Companhia de Habitação Popular (Cohab), empresa que deveria
• solicitar a autorização da Coordenação para a melhoria de casas, espe­ realizar uma nova política habitacional, baseada na construção de unida­
cificando as necessidades de reparo e manutenção; des para famílias de baixa renda. 1 1
• impedir a construção de novos barracos, vindo, quando necessário, a Enquanto o Estado procurava a melhor forma de negociação com
esta coordenação para apoio policial; os excluídos, as lideranças dos moradores de favelas continuavam avan­
çando em sua estrutura organizativa, tendo fundado, em 1963, a Federa­
• contribuir para a manutenção da ordem e o respeito à lei nas favelas, ção da Associação de Favelas do Estado da Guanabara - Fafeg (Fortuna
garantindo, ainda, o cumprimento das determinações da coordenação e & Fortuna, 1974:104). Criava-se, assim, por meio de uma identidade basea­
do governo. da tão-somente nas condições de habitação, uma possibilidade de incor­
poração política dos moradores das favelas à vida da cidade. A destina­
ção, pela Assembléia Legislativa, em 1963, de 3'1<, da arrecadação estadual
Em contrapartida, o Estado compromete-se, entre outras coisas, a: para obras de melhoramento em favelas denotava a capacidade de articu­
lação política já alcançada por esse segmento. 12
• fortalecer a associação da favela e nada fazer nas favelas ou vilas ope­ Logo viria a resposta do Estado. Preocupado com o amadureci­
rárias sem anúncio ou acordo prévio; mento organizacional das favelas, prevê, além da Cohab, a criação de me­
canismos mais acertados para o controle político. A alternativa veio com
• supervisionar a utilização dos recursos recolhidos pela associação e a reforma da Fundação Leão XIII, que em 1963 passou de órgão vincula­
aplicados em melhorias na favela; do à Igreja a autarquia do Estado. A experiência acumulada em favelas
pela Leão XIII seria de grande valia para que se pudesse exercer uma vi­
• substituir progressivamente os barracos por construções mais adequa­
gilância mais estreita da vida política das favelas. Também à Igreja isso
das, com a ajuda dos próprios favelados;
interessava, pois dava destinação a uma instituição a essa altura inteira­
• autorizar a melhoria dos barracos existentes, tendo sido os reparos mente esvaziada . Atribuiu-se então à fundação, entre outras coisas, a res­
aprovados pela associação (Leeds & Leeds, 1978:248-9). ponsabilidade pelo reconhecimento oficial da existência das associações,
além da função de designar uma comissão para coordenar e fiscalizar as
eleições de suas diretorias.
Os termos do acordo não deixam dúvidas: a moeda de troca da A princípio, sem se definir entre a remoção e a urbanização, o go­
promessa de urbanização é o controle político das associações pelo Esta­ verno estadual trabalhou simultaneamente com as duas perspectivas. De
do, arranjo que deveria criar urna cumplicidade entre as lideranças locais um lado, construiu, entre 1962 e 1965, com financiamento norte-america­
e o poder público, situação favorecida pelo fato de que o Estado optara no (do Usaid), a Cidade de Deus e as vilas Kennedy, Aliança e Esperan-
Um Sécul o de Favela
34 Dos Par q ues P r oletá r i o s ao f ovel o - B o i rro 35

ça; de outro lado, "urbaniza algumas poucas favelas" (Leeds & Leeds, uma entidade federativa, a Fafeg. A polarização entre o mundo da ordem
1978:220). A construção dos conjuntos habitacionais tinha por objetivo, e o lugar da desordem devolve a representação da favela aos termos da
contudo, a remoção de algumas favelas da cidade, fator que iria produzir década de 40, da favela como o hábitat de indivíduos pré-civilizados, e,
grande tensão, em face da resistência de seus moradores. O deslocamen­ por isso, não cabe mais o diálogo com suas entidades políticas: a discus­
to para áreas distantes dos locais de trabalho, a deficiente oferta de trans­ são sobre o que fazer com as favelas torna-se impermeável à participação
portes, a ruptura dos laços de sociabilidade desenvolvidos na favela de de seus moradores.
origem e a péssima qualidade das casas oferecidas seriam, segundo Perl­ Informado por essa representação do problema favela, o governo do
man (1977), as principais razões da reação dos moradores das favelas às estado assina em 1967 o Decreto nº 870, que coloca as associações de mora­
remoções.
dores sob controle da Secretaria de Serviços Sociais. Em 1968, já no contexto
Não obstante, com o golpe de 1964, criam-se as condições necessá­ do AI-5, assina o Decreto E, nº 3.330, que, revogando o Decreto nº 870, esta­
rias à aventura "remocionista". Agora, para furar a resistência dos mora­ belece como "finalidade específica das associações de moradores a repre­
dores das favelas, a essa altura representados pela Fafeg, o Estado coloca­ sentação dos interesses comunitários perante o governo do estado". Além
ria soldados armados, como no traumático caso da favela do Pasmado, disso, reconhece a existência de apenas uma associação em cada comunida­
ocorrido ainda em 1964. Diante do que estava por vir, pode-se dizer que de, condicionando tal reconhecimento ao cumprimento de uma série de exi­
a escala das remoções realizadas até 1965 foi modesta, embora tenha atin­ gências.15 Ao fixar a competência das associações, esse novo decreto com­
gido cerca de 30 mil pessoas. De toda maneira, seriam julgadas pelas pleta a obra iniciada em 1961 pelo Serfha, subvertendo o papel das
urnas, na eleição para governador realizada em abril de 1965. A derrota associações, que de representante dos moradores passam a fazer as vezes
de Flexa Ribeiro, candidato da situação, para Negrão de Lima, da coali­ do poder público na favela, cabendo-lhes, entre outras atribuições, contro­
zão PTB-PSD, teria sido fortemente determinada pelos votos dos pobres, lar, autorizando-as ou não ("consultados os órgãos do Estado"), as refor­
chamando a atenção a esmagadora vitória de Negrão nas urnas onde vo­ mas e consertos nas habitações, bem como reprimir novas construções. 1 6
taram moradores dos novos conjuntos habitacionais. 1 3 Mas, se no plano político o governo do estado já optara pelo con­
trole dos excluídos, com isso fazendo eco ao curso tomado pelo regime
militar, ainda não se definira quanto ao tipo de programa executivo a ser
"Remocionismo" autoritário: a erradicação realizado junto às favelas, hiato que é explorado por um grupo de intelec­
do problema favela tuais interessados em viabilizar uma proposta de urbanização democráti­
ca. Assim, possivelmente pelos compromissos assumidos em campanha,
Com Negrão de Lima no governo, a tendência era retomar a trilha
Negrão de Lima autorizou um grupo de jovens arquitetos, planejadores,
deixada pelo Serfha, criado durante sua passagem pela prefeitura, em
economistas e sociólogos a formar a Companhia de Desenvolvimento de
1956, fazendo supor que a via urbanizadora das favelas voltaria a ser pri­
Comunidades - Codesco (Perlman, 1977:276-7), que tinha por filosofia
vilegiada e que, no lugar do controle duro e direto, tentar-se-ia restabele­
enfatizar a "importância da posse legal de terra, a necessidade de deixar
cer a estratégia de cooptação. De fato, a princípio a Cohab foi deixada de
que os favelados permanecessem próximos aos lugares de trabalho, e a
lado, atribuindo-se maior ênfase ao trabalho da Fundação Leão XIII junto
valorização da participação dos favelados na melhoria dos serviços públi­
às associações de moradores. No entanto, distante da pedagogia cristã
cos comunitários e nos desenhos e construção das próprias casas". Três
dos anos 50, baseada na percepção dos habitantes de favelas como "ir­
favelas foram selecionadas pela Codesco como projeto piloto: Brás de
mãos cristãos", agora a Leão XIII pautaria sua ação por uma leitura que
Pina, Morro União e Mata Machado, tendo o plano se concretizado nas
via a favela como o lugar do vício e da promiscuidade, "refúgio de crimi­
duas primeiras.1 7
nosos". 1 4
Contudo, a alternativa Codesco seria atropelada pela retomada,
Diante dessa reelaboração da identidade do favelado, nem mesmo a
logo em seguida, da via "remocionista". É que, pouco depois da organi­
lógica de negociação baseada na cooptação de lideranças, experimentada zação da Codesco, o governo federal criou, ainda em 1968, a Coordena­
no início dos anos 60 pelo Serfha, poderia ser implantada; afinal, ela fora ção da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande
desenvolvida tendo em vista uma outra identidade do favelado, aquela
Rio (Chisam), com o objetivo de ditar uma política única de favela para
que vinha sendo politicamente construída e que, inclusive, dera lugar a os estados da Guanabara e do Rio.
Um Sécu l o de F avela Dos P a r ques Pro l e t ár i o s ao F o vela - B a i rro 37
36

Ao contrário da Codesco, que apostava na capacidade organizati­ moção, não (Santos, 1984:36). A magnitude desses eventos teria criado a
va e participativa dos moradores das favelas, a Chisam definia as favelas oc �sião propícia para a cassação da diretoria da Fafeg, "cujo presidente
como um "espaço urbano deformado", habitado por uma "população alie­ sena preso, morrendo logo depois", após o que houve eleição, sendo os
nada da sociedade por causa dá habitação; que não tem os benefícios de nomes das chapas submetidos ao exame da Secretaria de Segurança. 19
serviços porque não paga impostos". Razão pela qual entendia que "a fa­ Feito o expurgo, a Fafeg ganharia o status de "assessora" do governo do
mília favelada necessitaria de uma reabilitação social, moral, econômica estado, tendo poderes para, entre outras coisas, "indicar as associações
e sanitária; sendo necessária a integração dos moradores à comunidade, que possuem condições para receber auxílio financeiro do governo".
não somente no modo de habitar, mas também no modo de pensar e O sumiço de muitas lideranças de moradores das favelas, o atrela­
viver" (Valla, 1984:17). Diante de tal diagnóstico, a solução do problema mento das associações ao Estado e a sensação de impotência causada
favela deverié\ conhecer uma resposta parecida com a que se tentou dar pelo terror imposto nas favelas já removidas fizeram com que muitas as­
nos anos 40: a sua erradicação. De fato, a missão declarada da Chisam sociações passassem a trabalhar pela remoção; já não representavam os
era "exterminar as favelas do Rio de Janeiro". E para essa missão subor­ moradores e sim o Estado, como fica claro no caso da favela da Catacum­
dinou a Cohab, que desde 1965 encontrava-se politicamente controlada ba, descrito por Janice Perlman (1977:59), onde a "associação foi coagida
pelo BNH - embora o governador continuasse responsável pela nomea­ a transformar-se num comitê de guardas uniformizados de 31 homens
ção de seu presidente. A propósito, não é difícil entender que, naquelas para impedir qualquer tipo de melhorias nas casas, a entrada ou saída da
circunstâncias, politicamente isolado no plano nacional (era o único go­ favela sem autorização e a mudança de novas famílias para lá".20
verno de oposição restante no país), Negrão de Lima não tenha sequer es­ Apesar de tudo, um dado impressionante na experiência "remocio­
boçado reação à determinação federal sobre o rumo da política de habita­ nista" é a capacidade de resistência dos moradores das favelas. Em meio
ção no estado. Então, com recursos do BNH, a Cohab deu início a um à repressão do início dos anos 70, e em que pese ao expurgo a que fora
programa maciço de construção de conjuntos habitacionais, a serem ocu­ submetida, a Fafeg organizou, em 1972, o III Congresso de Favelados do
pados por moradores de favelas (consta que o objetivo da Chisam era re­ Estado da Guanabara, com a participação de 79 associações, que mais
mover 100 famílias por dia) (Perlman, 1977:242). uma vez defendem a necessidade de urbanização das favelas.2 1 Tal resis­
Ocorre que o plano de erradicação de favelas enfrentaria uma tência tornou o programa de remoções bastante custoso politicamente, e
forte reação dos moradores das favelas da cidade, já esboçada nas primei­ se não foi essa a razão determinante para o seu esvaziamento a partir de
ras experiências - ainda no governo Lacerda -, cujo custo político fica­ 1975, é preciso levá-la em conta se se quer entender como foi possível a
ra bem registrado no resultado das eleições de 1965. Organizados politi­ permanência de 52 favelas em bairros tipicamente ocupados pelos seto­
camente e representados por uma Fafeg que congregava cerca de 100 res médio e alto da sociedade carioca, como Copacabana e Tijuca, entre
associações de moradores, os habitantes das favelas lutariam de forma outros.
desesperada para não serem removidos, entrincheirados na identidade Nos casos em que a remoção foi consumada, o sentimento de resis­
politicamente construída de favelado. A história dessas remoções, ocorri­ tência deu lugar a estratégias alternativas de recusa às imposições decor­
das sobretudo entre 1968 e 1975, representa um dos capítulos mais vio­ rentes da nova condição de morador de conjunto habitacional. Em seu
lentos da longa história de repressão e exclusão do Estado brasileiro. Na Passa-se uma casa, Lícia Valladares (1978) descreve em detalhe algumas
verdade, sabe-se muito pouco a seu respeito, mas o que se sabe permite dessas estratégias que, no geral, revelam a fraca adesão dos removidos à
supor a extensão da sua dramaticidade.18 alternativa conjunto habitacional, fato que, inclusive, fez com que muitos
A já comentada estrutura institucional montada pelo governo do deles optassem pela venda da nova casa e pela volta a uma outra favela.
estado, através da Fundação Leão XIII, e que previa um forte controle da Dado interessante é que a resistência às remoções interferiu na con­
vida associativa das favelas, embora não estivesse diretamente articulada tabilidade dos técnicos do BNH, que esperavam poder recuperar parte
à Chisam, era consoante com as suas exigências e foi posta a seu serviço. do investimento através das mensalidades que seriam pagas pelos novos
De grande importância, nesse sentido, foi o expurgo da Fafeg, logo após moradores dos conjuntos habitacionais. A forma forçada da remoção e a
os "memoráveis congressos de favelados por ela organizados em 1967 e péssima qualidade das casas que lhes foi imposta acabaram fazendo com
1968, nos quais se fizeram representar mais da metade das favelas cario­ que a inadimplência se convertesse em forma de reação.22 Como respos­
cas", tornando explícito o desejo de seus moradores: urbanização, sim; re- ta ao não pagamento, o governo deu "uma espécie de castigo pela pobre-
38 Um S é culo de Favela
Dos P a r q ues P role t á r i o s ao Favela - B a i r ro
39

za ", expulsando os ina dimplentes p ara casas de triagem, construída s em


regiões a fast a das do Centro da cidade, como as de P aciência, em Santa Qu anto ao saldo político d a operação, aind a hoje est amos compu­
tando, sendo difícil subes tima r a profundid ade do t rau ma por el a cri ado,
Cruz. 23
a lém das conseqüênci as produzid a s pelo aborto do proc e sso de organiz a ­
Um dos fatores decisivos p ara esvaziar o "remocionismo" teria sido
ção e p articipação dos excluídos na vid a política da cid ade.
o deslocamento do público-alvo dos investimentos do BNH. Apesar de
sustenta do por recurso s extr aídos dos tr ab alha dores - FGTS -, o BNH
passou a utilizar p arte dos US$350 milhões a princípio disponíveis p ara a
Clientelismo e ressentimento
remoção das favelas no financiamento de projetos habita cionais para as
classes média e alta. Com isso, de acordo com Perlman (1977:245), apenas A desarticulação da es trutura política dos excluídos, decorrente do
US$100 milhões seriam efetiv amente gastos com o progr ama de remoção. "remocionismo", destrói os vínculos horizontai s que vinham sendo ela­
M as há t ambém que considerar uma hipótese complementar p ar a borados desde a década de 50 e, a o subverter a n aturez a representativa
explicar o esvaziamento do programa de remoções: como o "�emo�i�n�s­ das associações de moradores, tornando- as porta-vozes do Esta do junto
,
mo" objetivava não apenas desocupar áreas de grande valor imobihano, às favelas, a caba impedindo também a democr atização das r elações infra ­
mas t ambém desmantelar a organização política dos excluídos, é p lausível loca is, que, como já identificara Mach ado da Silva em texto de 1967, ten­
a firmar que, em 1975, esta última miss ão já pu desse ser da da como cum­ dia m a reproduzir n a favela o sistema de dominação mais geral. 25
prida. De modo análogo ao que se fez com as organizações p artidári� s e A des figur ação do favelado como ator políti co er a , c omo se viu, um
s indicais, também as liderança s de fave las foram tortur adas e assass ma­
dos obje tivos presente s no "remocionismo", e seu relativo sucess o deixa
d as. Além disso, a própria identidade coletiva dos excluídos, baseada na um vazio político. Nesse vazio, duas lógicas distint as porém complemen­
condição de favelado, parecia ter sido fragmentada pela presença de uma tares se vão impondo: de um lado, o ressentimento ger ado pelo "remo­
nova categoria de excluídos: o mor ador de conjunto habitacion al. Nesse cionismo" terroris ta tende a dist anciar a vid a soci al d as f a vel as e dos con­
caso, entretanto, logo fica evidente que a condição de habitante de uma juntos habita cion ais da vida política da cid ade, tornando carente de
casa equipada com infr a-estrutura oficial e cuja propried� de é formalm�n­ legitimida de o poder público e su as instituições , aí incluídas a s a ssocia­
te reconhecida pelo poder público não basta p ara conferir um status dife­ ções de mora dores, em muitos lugares confundid as com o Estado; de
renciado, ao menos no que se refere à sua cultura política . Até porque, aos ou tro lado, desenvolve-se uma dinâmica clientelista, result ant e de um a
poucos, esse novo esp aço, ocupado por homens e mulheres oriundo s de acomodação pr a gmática dos excluídos à s oportunida d es exis tentes n um
diferentes favelas,24 vai sendo simbolicamente reapropriado, da ndo lugar contexto constrangi do pelo autoritarismo.
a novas identidades, herdando das favelas n ão apen as a su a sociabilidade,
Entre 1975 e 1982, é essa dialética entre clientelismo e ressentimento
m as também a mesma distância em relação ao Esta do e à institucionali-
que v ai caracterizar a relação dos moradores de favelas e conjuntos habita­
dade política. cionais com o poder público e a restrita vid a política exi stente. O ressenti­
Não são nada modestos os números da operação remoção: em torno
mento pode p roduzir revolta, mas sob retudo tende a gerar afastamento e
de 100 mil p essoas foram removidas no espaço de sete anos (1968-75),
apatia em relação à política; e o clienteli smo dos anos 70 reflete esse
tendo sido destruídas cerca de 60 favelas. Não obstante, os dados reve la m momento, substituindo a lut a por direitos pela disputa por pequenos favo­
que foi quase insignificante o impacto sobre a participação relativa dos mo­ res. E ssa dialética é reforçada pela quase complet a ausência , nesse perío­
ra dores das favelas no conjunto da população da cida de , o que se explica, do, de políticas públicas mais amplas, voltadas p ara a s favelas .
em p arte, pelos efeitos imprevistos do programa, que , como salien�ou
Prevalece, então, o cálculo maximizador das lider anças locais, as
Valladares (1978:80), retroalimentou o crescimento das favelas, n a medida
quais, como já nos mostrou Eli Diniz (1982:157), mesmo cientes do alcan­
em que muitos dos removidos retornam às favelas após venderem suas
ce limita do dessa dinâmi ca p ara a col et ivid ade, entendia m ser po ss ível
casas nos conjuntos habitacionais. M as o impacto também foi atenuado
" aproveit ar as brech as existentes, atr avés de rel açõ es p essoa is de lealda ­
pelas taxas de migração, ainda altas na década de 70, e pela igualmente ele­
vada tax a de crescimento vegetativo. Se em 1970 os moradores de favelas de, ou atr avés de contatos informais com um determinado polític o, para
obter uma pequena me lhoria p ara o grupo, ou mesmo uma ajuda indivi­
represent avam 13,2'1., da popu lação da cidade, na déca da seguinte ainda
dual". Nesse contexto, a tendênci a à olig arquização, id entificada por M a­
representavam 12,3% (Valla dares & Ribeiro, 1995:62).
chado da Silva, deixa de sGfrer a concorrênci a de um a lógica democr ati-
40 Um Século de F a ve l a Dos P a r q ues P r o le t á r i o s ao Fa vela - B a i r r o
41

zadora baseada em uma identidade coletiva mais ampla e, por isso, apenas como legítima mas necessária". Ela aposta n a autonomia e "rejeita
capaz de se sobrepor às diferenças econômicas e socioculturais internas a tutela do Estado", conclui Diniz. A conformação de uma Faferj dissiden­
às favelas. Mais que isso, porém, aquela tendência passa a ser legitimada te denota que estava preservada uma alternativa à dialética da apatia. Mas
em nome do cálculo maximizador. a eleição de Brizola, em 1982, de algum modo demonstrava que esse ainda
O próprio espectro da remoção contribuía para reforçar essa lógica não era o seu momento.
maximizadora, pois, a essa altura, cada "migalha" conquistada junto ao Do ponto de vista dos excluídos do Rio de Janeiro, as eleições de
poder público, por intermédio do político "amigo da comunidade", tam­ 1982 dão ensejo à tradução política do ressentimento. Era a primeira
bém tinha como função latente a própria consolidação da favela: a ilumi­ oportunidade, desde a eleição de Negrão de Lima em 1965, que teriam os
nação de uma praça, o arruamento de uma via, a instalação de tanques excluídos de se manifestar diante do Executivo. Nessa hora, ao se darem
públicos, enfim, qualquer benefício, por pequeno que fosse, adquiria conta de que havia u ma alternativa desvinculada da ditadura e da lógica
essa função latente de consolidação da favela. clientelista constru ída pela máquina chaguista, despejam nela os seus
No entanto, com a distensão relativa do regime militar a partir de votos. Os candidatos Miro Teixeira e Sandra Cavalcanti, de um modo ou
1975, o "remocionismo" parecia uma hipótese afastada, inclusive porqu e de outro, tinham seu s nomes ligados àquela história. Moreira Franco era
a revalorização da moeda voto tendia a tornar todo o sistema um pou co do partido do governo militar; já o candidato do PT, Lisâneas Maciel, fa­
mais sensível aos interesses dos excluídos. Uma demonstração de que o lava mais para o operariado, não exatamente para os excluídos; então,
trauma do "remocionismo" fora bem compreendido pelas autoridades é coube a Leonel Brizola capturar esse voto, o voto " super-revoltado",
que, ao voltar ao problema favela através do Promorar, o governo fede­ para usar a expressão flagrada por Alba Zaluar (1985:255), à época fazen­
ral optaria por u m programa de u rbanização.26 Tendo sido o último do pesqu isa de campo na Cidade de Deus.
grande programa integrado executado pelo governo militar em relação
Apesar de surpreendente, a vitória de Brizola não pode ser lida
às favelas, o Promorar basearia suas ações "na preservação do acervo po­
como uma ruptura completa com os anos 70. Ao menos no que se refere
pular local, dando prioridade para o saneamento básico, erradicação das
aos excluídos, apenas revela a outra face da moeda, cunhada no ressenti­
palafitas e transferência de título de propriedade aos moradores" (Silva,
mento. No entanto, constitui clara indicação de que a nova democracia
1984:69).
teria de comportar a presença dos excluídos numa escala impensável no
A experiência "remocionista" encontrava-se estigmatizada, e o que
período democrático de 1946 a 1964.
a moldu ra institu cional do Promorar estava a indicar é que a polarização
entre remoção e urbanização deixava de presidir o debate em torno das
favelas; na década seguinte, o eixo da discussão seria outro: como inte-
A solução Brizola
grar as favelas à cidade.
A partir de 1979, refletindo a abertura do regime, ocorre uma reto- Fiel ao perfil do voto que o elegeu, o governo Brizola desenvolve­
mada do dinamismo da vida associativa no país, e nesse momento as asso­ ria uma agenda social especialmente voltada para as favelas do Rio de Ja­
ciações de moradores adquirem especial relevância. No caso das favelas neiro, onde a situação de infra-estrutura era muito precária. Segundo le­
do Rio de Janeiro, é de se notar o su rgimento de uma dissidência da Faferj, vantamento realizado pela prefeitura no início dos anos 80, apenas l'X,
sendo os termos do debate estabelecido com a Faferj oficial bastante eluci­ das 364 favelas cadastradas era servido por rede oficial de esgoto sanitá­
dativos da tensão que começa a se estabelecer entre a lógica clientelista rio completa (6% dispunham parcialmente do serviço); 6% possuíam
conformada nos anos 70 e as alternativas que começam a ser vislumbradas rede de água total, e 13%, rede parcial com caráter oficial; e em 92% das
com o processo de abertura. Como observa Eli Diniz (198�:156), a � aferj ofi­ localidades, a única forma de esgotamento pluvial era a drenagem natu­
cial "não vê como legítimo utilizar a entidade representativa dos interesses ral pelo terreno. A coleta de lixo só foi considerada suficiente em cerca
de um dado grupo como instrumento de pressão junto ao governo", caben­ de 17% das áreas faveladas.
do-lhe somente "solicitar ao Estado, que deve conceder, de acordo com o Através do Programa de Favelas da Cedae (Proface), desenvolvi­
princípio de reciprocidade que deve nortear as relações entre a instância do entre 1983 e 1985, o governo levaria sistemas de águ a e esgoto a cerca
dos interesses e a instância do poder". Diversamente, a dissidência "valori­ de 60 favelas, incorporando-as à rede dos seus bairros; a Comlurb com­
za os processos de organização e conscientização, encarando a pressão não prou microtratores adaptados às condições das favelas, viabilizando assim
42 Um Século de Fave l a Dos Parques Pro l e tó r i o s ao Fav e l a - B a i r ro 43

a coleta de lixo nas mesmas; um programa de iluminação pública foi ini­ à s associações d e moradores que, em algumas favelas, chegou a firmar
ciado em julho de 1985 pela Comissão Municipal de Energia, visando a su­ um convênio pelo qual a "Cedae fornece os projetos e assistência técnica
perar o déficit então existente, já que apenas 47 das 364 favelas cadastra­ para a realização das obras e repassa à associação a importância necessá­
das dispunham de sistemas de iluminação pública; igualmente importante ria ao pagamento da mão-de-obra, encargos sociais, além de uma taxa de
é o programa Cada Família um Lote, a cargo da Secretaria de Estado do administração de 5'Yc,, que é aplicada dentro da própria comunidade" (Pro­
Trabalho e da Habitação, que incluía a regularização da propriedade em face, 1984:12).
áreas faveladas: "o programa repassa a preços simbólicos os lotes a seus
moradores, que se tornarão seus proprietários definitivos com todos os d i ­
reitos legais decorrentes deste fato" (Cavallieri, 1986:23-5, 28-30). Anos 80 e 90: violência e cultura política
Outra _dimensão muito importante da política desenvolvida para
as favelas pelo governo Brizola é a sua política de direitos humanos, com Nos anos 80, o problema favela iria conhecer uma nova complexi­
a qual, em contraste com o governo anterior, esperava definir uma nova dade, com a maior presença de grupos paraestatais no mundo dos excluí­
conduta para as polícias civil e militar perante os excluídos, baseada no dos: de um lado, os banqueiros do jogo do bicho, que, embora presentes
respeito a seus direitos civis. desde o início dos anos 70 na vida das favelas e conjuntos habitacionais,
De fato, muitas foram as frentes de trabalho mobilizadas a partir ganham maior evidência a partir dos anos 80; de outro lado, grupos dedi­
de 1983, mas o problema da distância e do ressentimento em relação à cados ao tráfico de entorpecentes.
institucionalidade política não foi atacado nem sequer percebido. Ao con­ É certo que, ao não tocar na cultura do ressentimento mas, ao con­
trário, durante o governo Brizola, anima-se uma antinomia entre ricos e trário, procurar nela uma base ideológica, o governo Brizola não encon­
pobres que decerto não favoreceria a democratização política da cidade; trou parâmetros para se posicionar diante do avanço dos grupos paraes­
pode ter ajudado a criar laços de lealdade com a figura do governador, tatais no mundo dos excluídos. Daí a acusação de que seu governo teria
mas não trouxe nenhum benefício concreto à retomada da organização e estimulado o desenvolvimento desses grupos, a qual, mesmo não deven­
da participação autônoma dos excluídos, nem estimulou a sua incorpora­ do ser levada a sério, acabou tendo papel importante na disputa eleitoral
ção à institucionalidade democrática que estava sendo construída. de 1986 e servindo à tentativa de ressuscitar a polícia repressiva dos tem­
Outro problema é que, sem uma estrutura política mais consistente, pos da ditadura, tal como seria ensaiado pelo governador eleito, Moreira
Brizola optou por canibalizar a máquina chaguista, comprometendo sua Franco.
agenda social e seus programas com os nomes e as práticas dos anos 70. São notórios e profundos os vínculos existentes entre o fenômeno
Além disso, inibiu a alternativa possível representada pela dissidência da da violência no Rio de Janeiro e o aborto do processo de integração políti­
Faferj, cooptando suas lideranças e dando continuidade à ambígua rela­ ca dos excluídos praticado durante a ditadura militar. Sua distância rela­
ção existente com as associações de moradores, como ficou claro, por tivamente à política e ao poder público, a mesma que se fez notar na elei­
exemplo, na moldura institucional do Proface. Em sua definição oficial, ção de Brizola, impede uma adesão à institucionalidade democrática na
esse programa pretende "dar prioridade às áreas faveladas, sem clientelis­ hora da transição, e o resultado é a formação de redes clientelistas "com
mos, buscando transformar essas comunidades em bairros dignos do povo independência de sua procedência, legal ou ilegal" (Carvalho, 1994:130).
trabalhador" (Proface, 1984; o grifo é meu). E como alternativa à estrutura Nesse contexto, as identidades locais, fundadas na intensa vida social
clientelista tradicional, procura estabelecer uma relação direta com as as­ das favelas e conjuntos habitacionais, acabam servindo como veículo
sociações de moradores, sem os intermediários típicos dos anos 70, parla­ para a invasão das relações sociais por novas redes de clientelas (Zaluar,
mentares mais conhecidos como "políticos da bica d'água" . Nesse caso, é 1985:183); os campeonatos de blocos ou de escolas de samba, por exem­
interessante notar que as associações de moradores de favelas estavam plo, cuja origem reside na competição saudável entre as identidades lo­
tão identificadas com o exercício das funções do poder público - resulta­ cais, têm servido à negociação com patrocinadores, sem que importe em
do da política de controle a que foram submetidas - que agora até muitas das vezes a sua procedência, bastando que estejam dispostos a
mesmo num programa organizado com vontade democrática parecia na­ bancar o sonho da conquista do carnaval. O mesmo se dá, embora em
tural atribuir-lhes funções que a princípio deveriam caber ao Estado. A tal menor escala, com os times de futebol, e quem sabe já está ocorrendo
ponto a Cedae levou a sério a idéia de atribuir responsabilidades públicas com grupos de baile funk e os concursos de quadrilhas caipiras.
44 Um Século de Favela Dos Parques Proletár i o s ao Fovel o - B o i rro 45

Como não estabelece relação com a institucionalidade democrática, De fato, ao extravasar os limites da favela, a violência produzida
o processo de democratização societal em curso nos anos 70 e 80, bem pelos braços armados do tráfico tem forçado um debate mais amplo acer­
como o desejo de mobilidade social que suscita, tende a não reconhecer li­ ca do modelo de cidade que se quer para o Rio de Janeiro. Nessa hora,
mites claros entre a norma e o crime. Não quer isto dizer, como assinala Za­ faz-se necessário redefinir o problema favela, e o repertório produzido
luar (1985:164), que não haja fronteiras definidas entre o trabalhador e o ao longo da história - a favela como um problema de saúde pública,
bandido, mas é sintomático que a forma de estigmatização do segundo não como um quilombo cultural ou como um cancro moral, representações
esteja subordinada ao reconhecimento das normas vigentes para toda a so­ correntes nos anos 40 e 50 - parece não fazer mais sentido; por outro
ciedade, mas a códigos referentes à justiça ou à injustiça de cada ato isola­ lado, tratá-la como questão de segurança nacional, como ocorre no perío­
do.27 Portanto pode-se dizer que, sem encontrar tradução no quadro políti­ do militar, não parece compatível com o momento democrático. Por isso,
co-instih1cional, a democratização societal acaba produzindo efeitos per­ o problema favela está a exigir uma nova resposta, que supõe o enfrenta­
versos, que ·se fazem manifestos na forma específica da violência carioca. menta do "dilema de democratizar a cidade", como já notava, em texto
É evidente que nada disso explica a presença na cidade do tráfico de 1988, Maria Alice Rezende de Carvalho (1994:1 45). A alternativa a
de entorpecentes, afinal um fenômeno mundial, mas ajuda a entender essa opção é a reprodução dos padrões de exclusão, a aposta na ruptura
sua arquitetura social no Rio de Janeiro. E como se vem propondo neste do tecido social. Por óbvia que seja a escolha a ser feita, é preciso não es­
trabalho, o descompasso entre a ordem política e a ordem social, no caso quecer que toda essa história de exclusão deliberada das favelas não se
dos excluídos, não foi inventado pelo regime militar, mas foi aprofunda­ fez no vazio, e a grande aventura que foi a Operação Rio, montada du­
do nesse período que, aliás, interrompeu um movimento em direção con­ rante o processo eleitoral de 1994, com tanques voltados para as favelas e
trária. O resultado é que hoje muitas favelas constituem territórios privati­ a suspensão dos direitos civis de seus moradores (Soares, 1996:270), deve
zados por grupos paraestatais, e a questão não é a legitimidade que esses nos fazer pensar que a agenda de integração política dos excluídos ainda
grupos venham a adquirir, pois nada indica que possam dominar, a não conta com poderosos adversários.28
ser pelo uso da força (Zaluar, 1985:166); a questão é que ela "se nutre do
Embora seja a única que contenha a promessa de uma cidade me­
retraimento do Estado" (Carvalho, 1995:59), do seu déficit de legitimida­
lhor para todos, a tarefa de democratização da cidade é, a essa altura, um
de, cujas razões são remotas na nossa história, mas que só resistem quan­
enorme desafio; não apenas pela interveniência do tráfico de drogas, mas
do são renovadas, como o foram durante os anos 60 e 70.
também pela escala demográfica dos excluídos. Dados de 1991 indicam
A coincidência entre a transição democrática e a privatização das
que 962.793 habitantes vivem em favelas na cidade do Rio de Janeiro,
favelas por esses poderes paralelos é particularmente dramática porque
944.200 em conjuntos habitacionais, e mais 381.345 em loteamentos irre­
estabelece uma linha de continuidade com a tragédia carioca vivenciada gulares de baixa renda; portanto, um total de 2.288.338 h abitantes, o que
durante o regime militar. Os constrangimentos que esses poderes parale­ corresponde a cerca de 40'X, da população da cidade (Iplanrio, 1993:125,
los impõem às organizações políticas locais, inclusive com o assassinato 269, 312-3).29
de muitas de suas lideranças, dão prosseguimento ao terror policialesco
antes imposto pelo Estado. Inibe-se, com isso, a adesão dos excluídos à
institucionalidade democrática, o que representa um desafio à própria
O programa Favela-Bairro
democracia.
Como as liberdades de organização, de expressão e de ir e vir, con­ É nesse contexto de extrema complexidade que se insere a experi­
sagradas na Constituição de 1988, não têm sido asseguradas aos excluí­ ência do programa Favela-Bairro, ora em execução pela prefeitura. Con­
dos, também estão comprometidos os seus direitos políticos, fato que ex­ forme procurarei demonstrar, embora voltado diretamente para o déficit
plica a ausência de uma demanda organizada dos excluídos por direitos. de direitos sociais existente nas favelas, o Favela-Bairro vem sendo desa­
E não é por acaso que a revalorização do problema favela pelo poder pú­ fiado por outros problemas que podem pô-lo diante do problema dos dé­
blico vem sendo imposta muito mais pelo transbordamento das conse­ ficits dos direitos civis e políticos dos excluídos.
qüências da violência, que hoje atinge a cidade como um todo - se bem Apesar dos investimentos feitos na década de 80, o déficit de direi­
que de forma desigual (Soares, 1996) -, do que pela presença de um ator tos sociais referentes à infra-estrutura continua elevadíssimo. Dados de
político, defensor dos interesses dos excluídos.
1990 indicavam que, dos domicílios em favela, menos de 20% eram aten-
46 Um Século de Fave l a Dos P a rques Prole t ó r i o s ao Favela - Ba i rro 47

didos por sistema de esgoto, e cerca de 60'X, por água encanada (sendo o externa em p roblemas brasileiros. De toda maneira, entre 1981 e 1985, a
melhor índice o de energia elétrica, que chega a 85%) (Moura, 1993:46). SMDS dispôs de pouquíssimos recu rsos para ampliar o programa. Nesse
Porém, como se p rocura sustentar neste trabalho, tão ou mais g rave que período, o orçamento da secretaria variou entre 1 e 1,5% do total da des­
esse déficit são os déficits de direitos civis e políticos. Quanto aos direitos pesa realizada no município (Rodrigues, 1988:21).
civis, a situação majoritariamente informal da prop riedade ainda é um O quadr o se modificou, um pouco em 1985, com as eleições para
problema: apenas 3,7% dos domicílios em favelas tinham títulos de pro­ prefeito das capitais do país. E que desde então os p refeitos das grandes
p riedade em 1990; bem mais importante, contudo, são os constrangimen­ cidades passaram a encarnar os anseios mais imediatos da população. A
tos à liberdade impostos pelo tráfico.30 maior proximidade com os problemas e a maior capacidade para dar res­
A realização de políticas sociais desconectadas da atenção aos di­ postas rápidas e adequadas passam a ser consideradas vantagens indis­
reitos civis. tem sido marca característica da ação do poder público no cutíveis relativamente ao modelo centralizador de recursos e responsabi­
Rio de Janeiro. Por isso, inclusive, pode-se afirmar que hoje uma das lidades vigente durante o regime militar (Burgos, 1992). Essa leitura é
questões centrais a ser enfrentada pelo desafio de integrar a cidade é a consagrada pela Constituição de 1988, que dota de autonomia financeira
deficiente articulação política e administrativa entre o governo do esta­ os municípios, ao mesmo tempo em que lhes atribui uma ampla gama de
do, a quem cabe a política de segurança, e o governo municipal, que vem responsabilidades.
assumindo a responsabilidade quase exclusiva pelas políticas sociais. O No caso do Rio de Janeiro, a eleição para p refeito cor tava o cordão
p rog rama Favela-Bairro surge no âmbito desse processo de redefinição umbilical que até então mantinha unidos p refeitu ra e governo do estado.
das atribuições da prefeitura. Com isso, também, em pouco tempo o problema favela se tornou quase
Note-se que, até recentemente, a ação da prefeitura da cidade no exclusivo da prefeitura, o que se mostrou problemático no período da
que se refere aos excluídos vinha sendo muito tímida. De fato, até 1986, gestão de Saturnino Braga, entre 1986 e 1988, a qual, apesar de imbuída
apenas duas medidas pa recem dignas de destaque, ambas tomadas na de ideais distributivistas, pouco pôde fazer de concreto, amesquinhada
gestão de Israel Klabin, p refeito nomeado pelo governador Chagas F rei­ que estava pela estrutura orçamentária do município e sobretudo pelo
tas. A primeira é a criação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento modelo tributário centralizador então vigente (Burgos, 1992). Com isso,
Social, em 1979, com a missão específica de desenvolver serviços assisten­ embora tenha procurado dar maior ênfase às questões sociais, o orçamen­
ciais nas favelas da cidade; a segunda, a organização de um Cadastro das to da SMDS não chegou a ultrapassar os 2% do total da despesa realiza­
Favelas da Cidade do Rio de Janeiro, que deveria dar supor te às ações da da nesses anos.
SMDS. 31 A criação da SMDS foi conseqüência de uma negociação entre a Não obstante, de acordo com Paulo Henrique Rodrigues (1988:10),
p refeitura e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que re­ até 1987, cerca de 25 mil crianças de zero a seis anos passaram a ter aten­
sultou no documento "Propostas para ação nas favelas cariocas", o qual dimento p ré-escolar; 200 mil metros de redes de esgoto foram instalados,
prevê a intervenção nas á reas de educação, saneamento, saúde e legaliza­ atingindo cerca de 280 mil pessoas em 263 favelas; e o prog rama de
ção da p rop riedade (Rodrigues, 1988:34). Em 1981, a SMDS realizou uma saúde comunitária alcançava 31 favelas.
experiência piloto na Rocinha, baseada em três subp rogramas: educação Longe de entusiasmar os membros da SMDS, os resultados alcan­
comunitária, saneamento básico e ações preventivas de saúde. Sua filoso­ çados por esses p rogramas teriam, segundo Rod rigues, fortalecido a per­
fia dá ênfase à participação da comunidade na definição de prioridades e cepção da necessidade de substituir as intervenções pontuais que vi­
na sua execução, com o que também p retende propiciar alguma renda nham sendo realizadas por soluções mais globais, sobretudo para os
aos seus moradores.32 Animada com o resultado da experiência, a SMDS problemas de u rbanização e saneamento das favelas. Assim é que, para
criou, em 1981, com o apoio do Unicef, o P rojeto Mutirão, pelo qual 15 fa­ além de seus resultados concretos, a experiência acumulada nos quad ros
velas seriam atendidas no ano seguinte, incluindo obras de acesso, pavi- da p refeitu ra com esses programas se mostrou fundamental para a poste­
mentação, contenção d e encostas e serviços. d e agua
' e esgo t o.33 rior formulação do Favela-Bairro, pois nela trabalharam intelectuais trei­
Com a eleição de B rizola, e com a estrutura administrativa munici­ nados na organização e execução de programas em favelas.
pal atrelada ao estado, o p rograma tocado pela SMDS ficaria comprome­ A percepção de que seria necessário um programa de intervenção
tido pela difícil relação entre o novo governo e o Unicef, cuja proposta global nas favelas já estava presente na formulação do Programa Qüinqüe­
foi considerada tecnocrática, além de ser tomada como uma ingerência nal de Urbanização das Favelas e Loteamentos Irregulares do Município
48 Um S é culo de Favela Dos Parq ues P role t á r i o s ao Favela - Ba i rro 49

do Rio de Janeiro, durante a gestão de Saturnino Braga, o qual também ticipação dos moradores no processo de urbanização; a recomendação
enfatizava a necessidade de integrar as favelas à cidade, traduzida no para "preservar a tipicidade da ocupação local"; e o esforço para "inte­
lema "transformar as favelas em bairros populares" (Rodrigues, 1988:48). grar as favelas aos bairros".
Mas é no Plano Diretor da Cidade - sancionado em 1992 pelo prefeito Em suma, o Plano Diretor define o problema favela como uma
Marcello Alencar - que se consolida a idéia de um programa global de in­ questão municipal, fundamental para o futuro da cidade. Todavia, devi­
tegração das favelas à cidade.34 No plano, o problema favela seria objeto do à ausência de uma demanda organizada por parte dos excluídos, não
de uma ampla discussão, e a solução nele contida não apenas privilegia a seria a princípio incorporada como tal à agenda política da administra­
via urbanizadora, mas também prescreve para as favelas uma nova identi­ ção municipal. Como se disse, é pelo ângulo da política de segurança
dade: a de bairros populares. que o problema favela volta à cena política, e como esse problema não é
Se lembrarmos do Código de Obras de 1937 - que entendia as fa­ da alçada imediata da prefeitura, esta não o vinha encarando, pelo
velas como uma forma de habitação ilegal que, por isso mesmo, não menos até recentemente, como uma prioridade sua; fato que explica,
devia constar do mapa da cidade - ou da justificativa e da missão que aliás, o discreto surgimento do Favela-Bairro e a pouca ênfase que inicial­
presidem a criação da Chisam em 1968, poderemos dar o devido valor ao mente lhe foi atribuída - relativamente a outras políticas públicas -
Plano Diretor, ainda mais se considerarmos a natureza democrática do pela gestão de César Maia.
processo de elaboração desse documento: na primeira fase, foi realizado De todo modo, a representação da favela inscrita no Plano Diretor
pela prefeitura, sobretudo no âmbito da SMDS e da Secretaria de Urba­ e os princípios democráticos nele consagrados é que iriam nortear a polí­
nismo e Meio Ambiente, que procuraram incorporar às suas propostas tica habitacional proposta pelo Grupo Executivo de Assentamentos Po­
estudos técnicos setoriais anteriormente realizados, especialmente nas pulares (Geap), criado pelo prefeito César Maia em 1993. O Geap propôs
áreas de habitação, transportes, expansão urbana e meio ambiente; na se­ seis programas habitacionais, e o Favela-Bairro foi um deles.35 Para a exe­
gunda fase, em 1991, foi enviado à Câmara de Vereadores, sob a forma cução desses programas, o Geap sugeriu a criação de uma secretaria es­
de Projeto de Lei, sendo amplamente discutido por vereadores e repre­ pecífica para a área, no que foi acatado pelo prefeito, tendo-se criado, em
sentantes de entidades e associações, sofrendo mais de mil emendas. dezembro de 1993, a Secretaria de Habitação, ainda em caráter extraordi­
O art. 138 do Plano Diretor, que define a política habitacional a ser nário.
adotada no município, além de prescrever a necessidade de implantação Segundo a definição proposta pelo Geap, o Favela-Bairro teria por
de lotes urbanizados e de moradias populares, também prevê a urbaniza­ objetivo: "construir ou complementar a estrutura urbana principal (sanea­
ção e regularização fundiária de favelas e loteamentos de baixa renda mento e democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais
(Plano Diretor, 1992:19). No art. 147, o plano define o que se deve enten­ de leitura da favela como bairro da cidade". Seus pressupostos deveriam
der por favela: "é a área predominantemente habitacional, caracterizada ser o "aproveitamento do esforço coletivo já despendido" (prevendo por­
por ocupação da terra por população de baixa renda, precariedade da tanto um reassentamento mínimo); a "adesão dos moradores"; e a "intro­
infra-estrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de alinha­ dução de valores urbanísticos da cidade formal como signo da sua identi­
mento irregular, lotes de forma e tamanho irregulares e construções não ficação como bairro" (Geap, 1993). Portanto nota-se que, ao contrário de
licenciadas, em desconformidade com os padrões legais" (Plano Diretor, outros programas de urbanização de favelas realizados na cidade, como
1992:20). Note-se que, ao contrário das definições que temos visto ao por exemplo a experiência inovadora implementada pela Codesco, o Fa­
longo deste trabalho, nesta não se atribuem quaisquer características mo­ vela-Bairro tem por princípio intervir o mínimo possível nos domicílios,
rais ou mesmo culturais aos moradores da favela, sendo a mesma defini­ definindo-se como um programa eminentemente voltado para a recupe­
da por uma leitura puramente espacial e por suas carências de infra-es­ ração das áreas e equipamentos públicos.
trutura. Assim, despida de preconceitos, tal representação da favela Em janeiro de 1994, a recém-criada Secretaria Extraordinária de
mostra-se compatível com sua efetiva integração à vida social e política Habitação começou a tomar iniciativas com vistas à realização do Favela­
da cidade. Bairro. Uma primeira medida foi a seleção das favelas que deveriam ser
Em seus arts. 148 a 151, o plano estabelece um conjunto de parâme­ objeto do programa. Nesse caso, um parâmetro utilizado foi trabalhar
tros importantes para o poder público, como a inclusão das favelas nos com favelas de porte médio, com 500 a 2.500 domicílios, ou seja, favelas
mapas e cadastros da cidade; a ênfase na necessidade de assegurar a par- com população entre 2 mil e 10 mil moradores. As razões alegadas são o
Um Século de F ave l a
-
50 Dos P a r q ues Pro l e t á r i o s ao F avel a - B a i rro 51

alto custo que acarretariam favelas maiores (apenas 1 5 se incluem nessa sar a definição formal que prevaleceu quando da assinatura do contrato
categoria) e a dispersão em favelas menores (situação de 350 favelas). As com o BID:
favelas de porte médio correspondem a cerca de um terço do universo
de favelas e a algo em torno de 40'Yc, do total de moradores de favelas da
cidade (PMRJ, 1 995:2-3). Delimitado esse universo, constrói-se um índice Consiste na realização de obras de urbanização e na prestação de
pelo qual se posicionam as favelas quanto ao maior ou menor grau de di­ serviços sociais, assim como de iniciativas preliminares de regula­
ficuldade "para fechar a sua urbanização", partindo do pressuposto de rização urbanística e fundiária . ( ... ) Para cada favela, será elabora­
que "quanto menor o grau de dificuldade, ou seja, quanto mais amplo o do um projeto de urbanização, o qual será amplamente discutido
escopo das ações ali já executadas, mais seria possível maximizar as in­ com os membros da comunidade. Em seguida, serão realizadas
tervenções públicas feitas na favela" (Metodologia de classificação das fa­ obras de infra-estrutura básica e implantados serviços públicos re­
velas, 1994:3)'. Portanto, o objetivo é privilegiar áreas em que se possa queridos para a transformação das favelas em bairros. Em cada fa­
"completar um quadro de introdução de melhorias, fechando-se um pro­ vela beneficiária deverá ser implantada pelo menos uma creche,
cesso de urbanização". Com base nesses critérios, 40 favelas são selecio­ para atender crianças na faixa etária de O a 6 anos de idade. As ini­
nadas. A partir daqui, os critérios técnicos de seleção cedem lugar ao po­ ciativas de regularização incluem a pesquisa fundiária, a elabora­
lítico, cabendo ao prefeito, que mobiliza a participação dos seus subpre­ ção de projetos de alinhamento e o reconhecimento de logradou­
feitos, o poder de decidir quais as primeiras 16 favelas a serem objeto de ros públicos. (Decreto n9 14.332, 7-1 1-1995:8.)
intervenção.36
Outra iniciativa tomada pela SEH foi a abertura, em março de
1994, de um concurso público para a seleção de propostas urbanísticas a Uma das características do Favela-Bairro é que, talvez por ter sido
serem realizadas pelos escritórios interessados em participar do progra­ elaborado com pouca exposição aos atores políticos, sem partidos e sem
ma. A atribuição de autonomia aos escritórios de arquitetura para a ela­ organizações sociais, o programa saiu quase que em linha reta das pran­
boração dos projetos constitui uma das novidades do desenho institucio­ chetas dos técnicos da prefeitura e dos escritórios de arquitetura para as
nal do Favela-Bairro.37 favelas, abrindo-se apenas, como se viu, à mediação política do prefeito e
Em dezembro de 1 995, a prefeitura assinou contrato com o Banco de seus subprefeitos, e mesmo assim na parte final da seleção das favelas
Interamericano de Desenvolvimento (BID), no valor de US$300 milhões contempladas em sua primera etapa. Talvez por isso, ao longo da sua
(incluindo a contrapartida local de US$120 milhões), para financiamento execução, o Favela-Bairro tenha de sofrer adaptações, sendo de especial
do Programa de Urbanização e Assentamentos Populares (Proap), cuja importância a ampliação de seus objetivos, inicialmente circunscritos à
gestão ficou a cargo da Secretaria de Habitação (desde dezembro de 1994 urbanização e ao suprimento de bens de infra-estrutura.
como secretaria ordinária), mas que, através do Geap, prevê a ampla par­ Como este trabalho se baseia em material levantado até o final de
ticipação dos demais órgãos da prefeitura. E como forma de corrigir o 1996, pode-se afirmar que, pelo menos até então, algumas dimensões ti­
crôniqJ problema de relacionamento entre o município e o estado, o BID nham sido incorporadas ao programa, como a questão do desemprego, a
exigiu a assinatura de um convênio com a Cedae, firmado em setembro necessidade de estímulo à geração de renda, além de lazer, esporte e cul­
de 1 995. tura. Essa nova agenda revela que o programa vem sendo api;oveitado
O Proap terá três componentes básicos: urbanização de favelas, re­ por seus beneficiários para a ampliação de sua pauta de direitos. Assim,
gularização de loteamentos e um programa, complementar a ambos, de pode-se dizer que, na falta de canais mais apropriados, a luta por direi­
monitoramento, educação sanitária e ambiental e desenvolvimento insti­ tos vem encontrando no Favela-Bairro um importante aliado; através
tucional.38 O programa de urbanização de favelas, isto é, o Favela-Bair­ dele, o poder público aproxima-se dos excluídos e pode ver e ouvir de
ro, fica com a maior parte dos recursos, US$192 milhões, para serem apli­ perto aquilo que já não se consegue expressar na arena política. A se acre­
cados em cerca de 60 favelas, beneficiando aproximadamente 220 mil ditar na animadora perspectiva, recentemente anunciada pela prefeitura,
pessoas.39 de que o Favela-Bairro será levado a todas as favelas da cidade, pode-se
Uma vez que o Favela-Bairro vem sendo mais bem delimitado em mesmo esperar que venha a favorecer uma revitalização da capacidade
seus contornos desde a sua primeira formulação em 1993, vale a pena fri- de organização política das favelas, o que teria impacto positivo sobre
..
'!

52 Um Sécu l o de Favela Dos P a r ques P ro l etá r i o s ao Fave l a - B a i rro 53

uma das principais questões políticas da cidade: o déficit de direitos 6. Segundo os Leeds (1978:196 e segs.), como requisito para morar nos par­
civis e políticos dos excluídos e sua fraca adesão à institucionalidade de- ques proletá rios, os ex-habitantes das favelas "tinham que ser registrados no
mocrática. posto da polícia". Além disso, todos os moradores tinham carteiras de identi­
Essa potencialidade do programa conhecerá maior desenvolvimen­ ficação "que apresentavam à noite nos portões guardados, e que eram fecha­
to se seus gestores dela tiverem consciência e se, de outro lado, os atores dos às 22 horas". Diariamente, às 21h, o administrador do parque, fazendo
políticos, inclusive a oposição, entenderem �ue a mold� r� polí�ica e in�t�­ uso de um microfone, "comenta os acontecimentos do dia e aproveita para
tucional do Favela-Bairro não é obra exclusiva da admimstraçao munici­ dar as lições morais que julgava necessárias".
pal que o concebeu, mas reflexo de uma vontade política mais ampla,
7. Disposta a atuar no plano da consciência dos habitantes de favelas, a fun­
que expressa uma mudança de orientação de parcela significativa da socie­
dação entende que "para enfrentar o problema de cuidar da melhoria huma­
dade carioca em relação aos excluídos.
na de nossos irmãos favelados, temos que nos armar de um espírito profun­
Para en�errar, uma recomendação: se é verdade que no terreno da damente cristão, muito diferente daquele horror burguês que se apossa de
cultura política os conjuntos habitacionais não se distinguem das favelas, certas pessoas (... ) que julgam serem as favelas apenas 'centros de malandra­
cabe pensar que políticas públicas voltadas para esse segmento dos excluí­ gem'. Por outro lado, não adiantam soluções simplistas daqueles que julgam
dos também sejam imprescindíveis para a concretização da promessa de que só podem acabar com as favelas do Rio de Janeiro enviando-se todos os
uma cidade verdadeiramente democrática. favelados para o campo, nem tampouco podem ser levadas em consideração
as opiniões dos que se referem às famílias que a desgraça levou para a vida
miserável (...), subestimando o seu valor humano e sua condição cristã de
Notas nossos irmãos que devemos amar de modo especial (...). Antes de tudo, é pre­
ciso ganhar-lhes a confiança, prestar-lhes serviço, desinteressadamente (...),
1. Da perspectiva adotada neste trabalho, a fronteira analítica entre as favelas
tornar-se amigo deles lhes apontando caminhos novos para a sua vida atri­
e os conjuntos habitacionais e entre estes e os loteamentos irregulares perde
sua razão de ser, já que seus habitantes estão inseridos em uma mesma cultu­ bulada" (Como trabalha a Fundação Leão XIII - relatórios de 1947 a 1954.
ra política. De fato, desse ângulo, a exclusão é a mesma, e a presença do tráfi­
ln: Valla, 1984:5).
co, indistintamente, em ambos os ambientes habitacionais está a demonstrar 8. Curiosamente, esses intelectuais invertem o sinal negativo da leitura cor­
que a existência de infra-estrutura urbana e do título �e pro� riedade, tal rente das favelas. Não criticam tanto a sua representação como pré-cidadãos,
como nos conjuntos habitacionais, não é suficiente para diferenciar a cultura apenas passam a ver nessa mesma representação as razões de suas virtudes,
política de seus moradores. Por isso, neste trabalho, a categoria exclusão será desenvolvendo uma "visão idealizada dos pobres e uma difusa utopia narod­
utilizada referentemen�e aos mor�do�\s t�nto de favelas quanto de loteamen­ nick, de ultrapassagem do mundo burguês".
tos irregulares e de con1untos habitac10na1s.
9. De acordo com o art. 2Q do Estatuto da Cruzada, caberia a ela "promover,
2. Diz Rezende de Carvalho (1995:59): "uma cidade é pequena, do ponto de
coordenar e executar medidas e providências destinadas a dar solução racio­
vista político, quando não consegue prover de cidadania as grandes massas,
isto é, não consegue contê-las sob a sua lei e guarda". nal, humana e cristã ao problema das favelas do Rio de Janeiro; proporcio­
nar, por todos os meios ao seu alcance, a assistência material e espiritual às
3. Em seu O negro no futebol brasileiro, Mario Filho (Rodrigues, 1994) defende a famílias que residem nas favelas cariocas; mobilizar os recursos financeiros
tese de que a longa trajetória percorrida pelos negros para legitirr:arem sua pr�­ necessários para assegurar, em condições satisfatórias de higiene, conforto e
sença nos campos de futebol somente seria concluída com o surgrmento do pri­ segurança, moradia estável para as famílias faveladas; colaborar com o
meiro grande herói negro, Pelé, consagrado com a conquista da Copa de 1958. poder público na integração dos ex-favelados na vida normal do bairro da ci­
dade; colaborar com o poder público e com as entidades privadas em tudo
4. Sobre a administração Pedro Ernesto, ver Gawryzewski (1988).
aquilo que interessar à realização dos objetivos acima enunciados; colaborar
5. Santos observa que, com essa associação entre cidadania e ocupação, tor­ em providências para o retorno ao campo de imigrantes de áreas subdesen­
nam-se pré-cidadãos todos os trabalhadores da área rural, além dos desem­ volvidas, atraídos pelas luzes da cidade e aqui transformados em favelados"
pregados, subempregados e empregados instáveis, estes últimos característi­ (Estatutos da Cruzada São Sebastião, Rio de Janeiro, set. 1955. ln: Valla,
cos da situação ocupacional dos moradores de favelas. 1984:8-9).
54 Um Século de Fave l a Do s P a rques Pro l e t ár i o s ao F avel a - B a i rro 55

10. Sagmacs. "Aspectos humanos d a favela carioca". ln: Valla (1984:11). daçã o Leão XIII, caberá ao presidente da fundação designar a comissão,
send o o representante do Serviço Social Regional substituído p or um repre­
11. De acordo com os Leeds (1978:215), a criação da Cohab seria a resposta sentante da Fundação Leão XIII (For tuna & For tuna, 1974:106-7).
dada p or Lacerda ao C onselho Fe deral de Habitação, criado po uco antes
pe lo presidente João G oular t, co m o obje tivo de coordenar uma política habi­ 17. De acordo com Nélson Ferreira dos Santos (1980:19-21), o programa de ur­
tacional para a população de baixa renda. banização de Brás de Pina atua diretamente nas casas, e cerca de 60 a 70% das
casas teriam sido reconstruídas. O me smo autor chama a atenção para a novi­
12. De acordo com For tuna & Fortuna (1974:112), as verbas "jamais atingiram dade do trabalho realizado : os moradores desenham as plantas de suas casas,
os 3'X, p revistos", sendo, ademais, "distribuídas através do Serfha, regiões ad­ e a partir daí os a rquite tos fazem os modelos d e casas, que ficam exp ostos em
ministrativas e departamentos estaduais, que as aplicavam se gundo seu inte­ um stand onde os moradores podem escolher aquele preferido . Aspecto inte­
resse ". Essa lei foi revo gada em 1968. ressante é que 40% das escolhas re caíram sobre um mod el o de planta cuj o pa­

13. Dos cerca de 5 mil votos computados nas urnas onde vo taram os morado­ drão se assemelha ao dos apar tamentos da classe média d o Rio . Para Santos,
re sdos conjunto s habitacionais recém-criados, não mais que 400 teriam sido isso ocorre porque tais apar tamentos são construídos p or homens habitantes
para Flexa Ribeiro (Perlman, 1977:246). da favela e mantidos pelas suas mulheres. Mas isso também revela, segundo
ele, que os habi tantes da favela "não têm nenhuma cultura iso lada". Outro as­
14. Em relatór io o ficial de 1968, a favela é de scrita como uma "aglomeração pecto interessante do mo de lo de casa privilegiado pe los moradores é a opção
irregular de subprole tários sem capacitação profissional, baixos padrõe s de por varandas, cuja função, a julgar pelo exíguo tamanho a ela reservado, seria
v ida, analfabe tismo , me ssianismo, p romiscui dade, alc oolismo, o hábito de antes conferir status à casa. Muito popular também foi a preocupação com um
andar de scalço, superstição e esp iritismo, falta de recreação sadia, re fúgio espaço reservado a um anexo à casa, para fins comercia i s. Igualmente salienta­
par a elementos criminosos e marginais, foco de parasitas e doenças contagio­ da por Santos é a grande resistência à construção de casas com parede em
sas" (Perlman, 1977:125). comum, "considerada fonte potencial de conflito" .
15. As ex igências são as seguintes: a) congregar à associação um mínimo de só­ 18. Um dos momentos de triste memória foi o processo d e remoção do s mo­
cios; b) inscrever os estatutos na Secretaria de Serviços Sociais; c) apresentar radore s da favela da Praia do Pinto. Diante da resistência dos moradore s, a
seus programas de ação aos órgãos do estado; d) manter �a dastro dos �orado­ favela foi incendiada, sem que os bombeiros, insistente mente chamad os,
.
res, encaminhando cópia à Secretaria de Serviços Sociais; e ) depositar em acorressem ao local. As famílias perderam seus havere s, e os líderes da resis­
agência do Banco do Estado da Guanabara a sua arrecadação; f) apresentar ba­ tência passiva desapareceram. No lugar da fave la construiu-se um conjunto
lance tes semestra is ao Serviço Soc ial Regional (Fortuna & F ortuna, 1974:106). de prédios - hoje conhecido como Selva de Pedra - com apartamentos fi­
16. O Decre to n2 870 é regulame ntado p ela Portaria "E" SSS, nº 12 (12-11-
nanciado s para militares (Perlman, 1977:247).
1969), que fixa normas para a orgaJlização das associações de moradores, es­ 19. Tal p rocedime nto também seria utilizado para as associações, devendo os
tabelecendo o conte údo de seus estatutos e regimentos internos e tc. Entre ou­ candidatos a cargos apresentar ao Serviço Social das Regiõe s Administrati­
tras co isas, define que as associações de fave las do estado "não terão car� ter vas ou à Fundação Leão XIII ate stad o d e bons anteced ente s (Fortuna & F ortu­
político-partidário ( ... )"; quanto às suas finalidades, "quase to do� os ar hgo� na, 1974:107).
,
11

falam de 'co laborar', 'contribuir ', 'c ooperar ' com os p oderes publicos ; preve
ainda que a "assoc iação p o derá ser dissolvida quando deixar de cumprir d e­ 20. Emb ora admitisse que ninguém desejava sair da Catacumba, o sr . So uza,
terminações do Estado" (Silv a, 1967:43). fundador da associação de moradores local, revela a Perlman (1977:260) que
Quanto à sua o rganização, devem ser compostas dos seguintes ór­ "acabou sendo coagido a ajudar o governo a promover a transferência".
gãos: Assembléia G e ral, Dire toria e Conselho Fiscal. Acerca d o p ro_ce sso elei­ 21 . Ver For tuna & For tuna (1974:107). Pesquisa realizada p or Perlman
_
toral, estabe lece normas bastante rígidas. Os trabalhos para a reahzaçao das (1977:238), e m 1968, indica que nas três favelas por ela e studada, cerca de
e le ições devem s e r dir igido s por uma c omissã o e sp ecialmente de signada
75% dos moradores consideravam indesejável a remoção .
p elo secretário de Estado de Serviço Social, composta de um rep resentante
do Serviço Social Re gional, quatro sócios escolhidos pe la Asse mbléia G eral 22. Machado da Silva (1981:12) observa que em muitos conjuntos sur gem as­
da Associação, um rep resentante da Fafe g (caso a associação seja a ela filia­ sociações para lutar contra a expulsão dos conjuntos daque les sem condiçõe s
da), um rep rese ntante da R. A. Quando a associação for orientada pela Fun- de paga r .
Um Século de Favel a Dos Parques Pro l e tár i o s ao Fave l a- B a i rro
56 57

23. Janice Perlman (1977:258) observa que essas construções "lembram aloja­ 30. Dados da pesquisa por nós realizada em três favelas de porte médio da ci­
mentos de solda dos, com um quarto para cada família". da de indicam que, para 21,4% de seus mora dores, a segurança é o principal
direito que deve ser assegurado pela sociedade (só superado pelos direitos
24 . O caso da Cidade de Deus, estud ado por Alb a Zaluar (1985:71), ilustra
sociais, citados por 29,8%); por outro l ado, quando indagados sobre o signifi­
bem isso: "Lá vieram a se reunir ex-moradores de 63 favelas localiza das nos
c ado d a democracia, entre os que responderam, o maior índice (37,7%) asso­
mais diferentes pontos d a cidade" . ciou democracia às liberdades civis, tendo sido muito citada a liberda de de ir
25. Segundo Machado da Silva (1967:37, 39), há nas favelas uma burguesia fa­ e vir (Carvalho et alii, 1997).
velada que "monopoliza o acesso, controle e manipulação dos recursos eco­ 31. Como nota Santos (1984:28), havia a expectativa de que o cadastro subsi­
nômicos e as decisões política s". Em outra p assagem, afirma que " as cama­
diasse a organização de "políticas globa is de desenvolvimento social e a me­
da s inferiores das favelas não exercem qualquer controle sobre os acordos lhoria da qualidade de vida da s comunidades carentes".
q ue as cama das superiores fazem com os grupos políticos supralocais, fato
que contribui de maneira decisiva para a dominação da própria camad a so­ 32. De acordo com Rodrigues (1988:18), às comunidades cabia a mobilização
cial superior da favela pelos grupos e políticos supralocais". dos moradores para as obras, que seriam tocadas em regime de mutirão,
sendo o trabalho remunera do nos dias úteis e gratuito nos fins de semana.
26. O Promorar, organizado em 1979 pelo BNH, tinha por objetivo recuperar
as faixas alagadas h abita das, pretendendo, com a v alorização das áreas 33 . Rodrigues (1988:34) nota que o Projeto Mutirão foi o que mais cresceu,
a ssim conquista das, recuperar os investimentos feitos com a vend a dos terre­ sendo incorporado pelo Proface a partir de 1983, ficando a SMDS responsá­
nos remanescentes. O esta do do Rio de Janeiro foi escolhido p ara ser p alco vel pela insta lação da rede de esgoto e a Cedae pela de água .
do primeiro progra ma a ser executado pelo Promorar: o Projeto Rio, que
seria desenvolvido em área próxima ao aeroporto internacional, alcançando 34. A elaboração do Plano Diretor é uma exigência da Constituição Federa l
seis favelas na área da Maré: Parque União, Rubem Vaz, Nova Holanda, de 1988 para cida des com mais de 20 mil habitantes. Seu objetivo declarado é,
Baixa do Sapateiro, Timba u e Maré (Silva, 1984). a través de um tratamento integrado de diversos setores d a política públic a,
estabelecer um conjunto de diretrizes, normas e procedimentos que deverão
27. "Apesar de todas as rela tivizações e aproximações que os trab alhadores pautar o desenvolvimento urbano e social das cidades nos próximos 10 anos.
fazem entre eles e os bandidos, trabalhar ainda é uma opção moralmente su­
perior", opção que, segundo Zaluar (1985:159), tem a ver com a ética de pro­ 35. Os demais são: Regularização de Loteamentos (regularização urbanística
vedor, mas é sobretudo um cálculo de autopreservação, já que a liberdade e complemento ou construção de infra-estrutura); Regularização Fundiária e
dos bandidos é vista como ilusão. Titulação; Novas Alterna tivas (voltado para a ocupação das áreas livres exis­
tentes na cidade, mas já dota das de infra-estrutura ); Morar Carioca (volta do
28. A malfadada Operação Rio resultou de um convênio imposto ao então go­ para a ampliação de terrenos em áreas infra-estruturadas e de interesse da
vernador em exercício do estado, Ni!9 Batista. Sobre seu impacto, Luiz Eduardo classe média, além de estímulo à participação de pequenos e médios empre­
Soares (1996:270, 275) observa que, concentra da no cerco às favelas, a título de sários na produção de moradias e formação de coopera tivas habitacionais); e
a sfixiar o tráfico, a Operação produz diversas violações a os direitos civis e hu­ Morar Sem Risco (reassentamento de famílias que estejam ocupando área s
manos: "prisões com mandados expedidos n posteriori e sem abertura ade�uada de risco).
de inquéritos, incomunicabilidades temporárias, revistas acintosas e humilhan­
tes, toques de recolher, embargos à passagem de trabalhadores p ara suas casas 36. Um critério a mais a dota do na seleção foi a dispersão regiona l das fave­
ou para seus locais de trabalho, torturas já confirmadas etc.". Esse autor tam­ las, de modo que o progra ma contemplasse as cinco áreas de planejamento
_ em que está dividida a cidade. Outra advertência a ser feita é que as favelas
bém assinala, em sua pesquisa sobre os homicídios dolosos praticados n� esta:
do do Rio de Janeiro, que "a presença do Exército nas ruas e favelas do Rio esta "conurbadas" foram tra tada s como um conjunto único e nunca isola damen­
a ssociada a um a umento espetacula r nos níveis da criminalidade letal". te, já que se considerou que tais favelas "formam uma única rea lida de geo­
a mbienta l, não obsta nte ma ntenham identid a des socioculturais próprias"
29. Das 545 favelas, 85 (ou seja, quase 20'X, do total) surgiram entre 1981 e (PMRJ, 1995:5). Em alguns casos, como se pode observa r na lista de 16 fave­
1990; 198 (ou 36,3%) se densificaram durante a década de 80; 69 (12,7%) se ex­ las seleciona das, duas ou mais são consideradas parte de um único comple­
pandiram; e 167 (30,6%) se expandiram e densificaram (Valla dares & Ribei­ xo. Eis a lista : Parque Royal; Cana l das Tachas/Vila Amiza de; Grotão; Serri­
ro, 1995:66). nha; Ladeira dos Funcionários/Parque São Sebastião; C aminho do Job;
58 Um S é cu l o de Favel a Dos Parques P ro le t 6 r i o s ao Fave l a - Ba i r ro 59

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uma avaliação do Favela-Bairro . Iuperj, 1997. mimeog. (Relatório de Pes­
37. No edital do concurso, o programa é apresentado como um esforço volta­ quisa.)
do para a "implantação de melhorias físico-ambientais que integram as fave­
las aos bairros onde se localizam, preservando suas especificidades, através Cavallieri, Paulo Fernando. Favelas cariocas: mudanças na infra-estrutura.
da complementação da estrutura urbana em cada uma das favelas, da intro­ ln: 4 estudos. Iplanrio, 1986.
dução de valores urbanísticos presentes no restante da cidade, tais como con­
Diniz, Eli. Voto e máquina política: patr01zagem e cliente/ismo Rio de Janeiro.
dições básicas de acesso e circulação viários, infra-estrutura urbanística es­
110
Paz e Terra, 1982.
sencial, equi.pamentos urbanos, contando com a adesão e a participação da
população residente durante o processo de implantação das melhorias físico­ Fortuna, A. P. & Fortuna, J. P. P. Associativismo na favela. Revista de Adminis­
ambientais (Concurso Favela-Bairro, 1994). tração Pública, 8 (4):103-52, out./dez. 1974.
38. O programa de monitoramento e avaliação consiste em um subcompo­ Gawryzewski, Alberto. A administração Pedro Ernesto: Rio de Janeiro (D.F.)
nente voltado para a avaliação da "satisfação da comunidade"; o programa - 1932-1936. ICHF; UFF, 1988. (Tese de Mestrado.)
de educação sanitária e ambiental visa a "assegurar o uso adequado dos
equipamentos sanitários à população beneficiada pelo programa". E o pro­ Geap. Bases da política habitacional da cidade do Rio de Janeiro. 1993.
grama de desenvolvimento institucional refere-se ao treinamento e à capaci­
Iplanrio. Anuário estatístico. 1993.
tação de profissionais da SMH e da SMDS (Decreto nº 14.332, 7-11-1995).
Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janei­
39. Prevê, ainda, que o custo dos investimentos por domicílio não deverá ex­
ro, Zahar, 1978.
ceder a US$4 mil e que exceções a esses valores deverão ter aprovação prévia
por parte do BID. Além disso, estabelece que o número de domicílios a Lima, Nísia Verônica Trindade. O movimento de favelados do Rio de Janeiro
serem relocalizados não poderá ultrapassar 5'X, do total, exceto sob aprova­ - políticas do estado e lutas sociais (1954-1973). Iuperj, 1989. (Disserta­
ção do BID. Estabelece também que as novas casas deverão ter um mínimo ção de Mestrado.)
de 36m2 e que, no caso dos imóveis alugados, os inquilinos atuais deverão re­
ceber uma compensação durante três meses, sendo o seu proprietário indeni­ Moura, P. L. da Silva. Um movimento em busca do poder: as associações de
zado pelas benfeitorias. Do ponto de vista de sua execução, é importante moradores do Rio de Janeiro e a sua relação com o Estado - 1970-1990.
notar, ainda, que o Proap estabelece a necessidade de uma primeira etapa de­ Departamento de História da UFF, 1993. (Tese de Mestrado.)
dicada à difusão do programa com o "propósito de informar a comunidade e
Parisse, Luciano. Favelas do Rio de Janeiro. Cadernos Cenplza (5), 1969.
estabelecer vínculos formais para a adequada comunicação, participação e
programação das diversas atividades que será necessário executar" (Decre­ Perlman, Janice. O mito da marginalidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
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--- & Ribeiro, Rosa. The return of the favela: recent changes in intra met­ ta pelo Plano Agache para a cidade do Rio de Janeiro. Desde sua origem,
ropolitan Rio. Revista Dei Instituto de Urbanismo. Universidad Central de portanto, a tematização da favela no cancioneiro popular, para além da
Venezuela. 1995. afirmação dos laços de pertencimento ao lugar, reflete a especificidade
de uma história marcada por conflitos, preconceitos e estigmas, resistên­
Zaluar, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da cia e vitalidade.
pobreza. São Paulo, Brasiliense, 1985. É dessas múltiplas representações da favela que trata o presente ar­
tigo. Nele se cruzam e se combinam essencialmente dois impulsos: o pri­
meiro, de caráter mais teórico, é a retomada de uma preocupação intelec­
tual que teve início ainda nos anos 70, quando, pela primeira vez, nos
aproximamos do tema e da realidade das favelas, desenvolvendo, no
IBGE, uma linha de estudos voltada especificamente para a pobreza ur­
bana no país.2 O convite para participarmos de uma coletânea de textos,

JANE SOUTO DE ÜLIVEIRA é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e


MARIA HORTENSE MARCIER é da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
• O título do trabalho evoca um programa da antiga TV Record de São Paulo, conduzido
pelo apresentador Blota Júnior e que obteve grande repercussão no final dos anos 60. Nele,
diversos artistas se confrontavam, testando seu conhecimento de música popular brasileira.
O vencedor de cada programa era aquele que conseguia cantar o maior número de músicas
que incluíssem as palavras selecionadas pelo apresentador. Dada sua audiência, o progra­
ma serviu não apenas para difundir a MPB, mas também para tornar conhecidos alguns
compositores e intérpretes que então começavam a despontar e entre os quais se incluíam
Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo.
62 Um Século de Fave l a
"' A P a l avra é: Favela" 63

marcando o centenário das favelas, era uma ocasião privilegiada para re­ de consulta diár_ia se li11:i �a a um máximo de 1 0 partituras por pessoa -,
visitarmos aqueles e outros trabalhos, confrontando-os com a produção qualquer pesqmsa temat1ea, a partir de composições musicais, se torna
extremamente difícil e arriscada. Não dispondo de uma "classificação
mais recente e, ao mesmo tempo, estabelecendo suas pontes com o con­
por assunto", nossa saída foi investir nos títulos. No mais puro estilo "a
teúdo trazido pelas composições musicais.
palavra é", corremos atrás de tudo que havia sobre favela, morro, barra­
· Se o desafio intelectual era grande, o impulso afetivo não era
co, barracão etc. Desde cedo, no entanto, duas músicas do maior interes­
menor. A nos unir, também, mais do que um gosto, estava a paixão per­
se para nosso estudo, mas que jamais se revelariam por seu título, Recen­
manente e sempre renovada pela música popular brasileira. O prazer de
seamento (Assis Valente, 1940) e Encanto da paisagem (Nélson Sargento,
ouvi-la, de brincar com seus temas e letras, de perceber suas palavras­
1:86), mo�traram os limites desse tipo de investigação. Para complemen­
chave e seus silêncios acabou, assim, por impregnar todo o trabalho e
ta-la, partimos para os livros sobre autores (Sinhô, Noel Rosa, Assis Va­
convertê-lo em lazer.
lente, Pixinguinha, Chico Buarque e Gilberto Gil) que reconstituíam sua
A pesquisa começou em casa, vasculhando as estantes esquecidas
discografia e para os songbooks de que dispúnhamos. E, finalmente, recor­
do "vinil"; contagiou amigos, solícitos em fornecer dicas e fitas; 3 prosse­
re�os a um dos grandes mestres da pesquisa musical no Brasil, Jairo Se­
guiu nos sebos, em busca de livros que, embora recorrentemente citados,
venano,4 com quem discutimos o repertório selecionado e de quem rece­
insistiam em permanecer como "tesouros escondidos".
bemos muitas e importantes lições de MPB. Seu aval foi também de­
Depois, foi a vez da consulta aos arquivos oficiais - o Museu da
cisivo pa�a minimizar o risco de termos deixado de incluir alguma músi­
Imagem e do Som (MIS) e a Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Bi­
ca essencial sobre a favela. Mesmo minimizada, porém, a "síndrome do
blioteca Nacional -, que nos reservavam algumas surpresas. A primeira
esquecimento" continua sendo nossa fiel companheira.
resultaria do "paradoxo da cobertura", mais ampla e exaustiva para as
A última surpresa nos chegaria com a entrega das primeiras parti­
primeira:, décadas do período de gravação sonora do que para as mais re­
turas, tanto na Divisão de Música da Biblioteca, quanto no MIS: eram
centes. Um paradoxo que se explica, entre outros motivos, pelo não cum­
elas originais, algumas datadas do início do século! A emoção de folhear­
primento da lei que determina que, de toda a documentação escrita e so­
mos partituras tão antigas não deixou de ser contrabalançada pela preo­
nora produzida no país, seja encaminhada uma cópia à Biblioteca Na­
cupação com a preservação desses documentos, muitos dos quais já tra­
cional, e pelo fato de os acervos oficiais só poderem ser ampliados por
zendo as marcas do tempo e do manuseio. Daí a pergunta: quantos deles
via de depósito legal ou doações. Com isso, cresce a importância das cole­
resistirão às próximas consultas?
ções particulares, como as que foram doadas por Brício de Abreu e
Abraão de Carvalho à Biblioteca Nacional, e, sobretudo, do notável esfor­ Caberiam ainda alguns comentários sobre o processo de pesquisa.
ço de pesquisa e documentação histórica empreendido por Henrique Fo­ O primeiro é que trabalhamos somente com composições musicais grava­
réis Domingues - mais conhecido como Almirante -, que, ainda nos das. Na classificação do repertório por ordem cronológica, adotamos,
anos 60, transferiu para o MIS seu acervo composto de aproximadamen­ sempre que possível, a data da gravação original. Algumas vezes tive­
te 50 mil partituras. Assim, se nos arquivos da cidade se pode ter acesso mos que nos contentar com uma data aproximada (a indicação, por
à parcela mais expressiva da obra de Sinhô, Pixinguinha, Noel Rosa, Ari e_xemplo, da década); outras vezes, nem isso foi possível. No caso especí­
f1eo das composições produzidas ou interpretadas por Bezerra da Silva,
Barroso, Assis Valente, Wilson Batista, Cartola, Nélson Cavaquinho e tan­
tos outros integrantes da "velha guarda", compositores como Tom consideramos a data de gravação de seus CDs (anos 90). É bastante pro­
Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, vável que algumas sejam anteriores, de vez que, já em 1980, o composi­
tor havia obtido, discos de platina, em vinil, aos quais, entretanto, não ti­
Martinho da Vila e Milton Nascimento têm sua produção musical repre­
sentada por um número bem mais restrito de títulos. Isso sem falar, é vemos acesso. E preciso lembrar, ainda, que no caso de outros com­
claro, dos compositores menos famosos ou da "jovem guarda". positores, como Cartola, Nélson Cavaquinho e Adoniran Barbosa, "redes­
Outra surpresa diria respeito à forma de organização dos arqui­ cobertos" pelo mercado fonográfico nos anos 70 e 80, existe a possibilida­
vos. Na era da computação e da Internet, os arquivos não estão informati­ de de uma defasagem entre o momento de criação da música e o de sua
gravação.
zados, e os fichários classificam as composições apenas por título e auto­
ria. Mesmo com a boa vontade e o jeitinho dos funcionários, que acabam O segundo comentário diz respeito à abrangência do levantamen­
por driblar certas regras burocráticas - no MIS, por exemplo, o pedido to: a maioria das composições se refere à cidade do Rio de Janeiro, mas
64 Um Século de Favela "A Palavra é: Fave la" 65

esta não representa a única referência espacial. Com outros nomes - ma­ Terminara a luta na Bahia. Regressavam as tropas (... ). Muitos solda­
locas, vilas, mocambos -, a realidade da favela se espraiou praticamente dos vieram acompanhados de suas "cabrochas". Eles tiveram que
por todas as regiões do país e nesse percurso deu ensejo a alguns "clássi­ arranjar moradas. (... ) As cabrochas eram naturais de uma serra cha­
cos" do cancioneiro popular. Dessa forma, não haveria por que circuns­ mada Favela, no município de Monte Santo, naquele estado. Fala­
crever a análise apenas à produção musical feita no e sobre o Rio de Ja­ vam muito, sempre da sua Bahia, do seu morro. E ficou a Favela nos
neiro e deixar de fora preciosidades como Despejo na favela ou Saudosa morros cariocas. Primeiro, na aba da Providência, morro em que já
maloca, de Adoniran Barbosa. morava uma numerosa população; depois foi subindo, virou para o
A terceira observação se refere ao recorte analítico por nós adota­ outro lado, para o Livramento. Nascera a Favela, 1897.5
do. De início, pensamos estudar as representações da favela na MPB a
partir de um corte cronológico, observando as mudanças operadas ao
longo das sucessivas décadas. O exame das letras nos levou, contudo, a Antes, portanto, de se substantivar, o termo favela serviu para nome­
redefinir a proposta original. A recorrência com que a favela era associa­ ar um morro específico do Rio de Janeiro. E é nessa acepção que se inscreve
da a determinadas situações e personagens, a ênfase em sua configura­ peia primeira vez na MPB, por meio da polca Morro da Favella,6 de Passos,
ção sócio-espacial, bem como o recurso a certos pares de oposição para Boméo e Barnabé, cuja partitura original, ilustrada a bico de pena e dedica­
marcar sua especificidade no quadro urbano, ao mesmo tempo em que da pelos autores a Lauro Muller Filho, data de 1916. Seu registro sonoro foi
se mostravam muito fortes, mostravam-se, também, transversais no tem­ feito em 1917, ano em que outra composição, coincidentemente com o
po. Daí termos reestruturado o artigo, procedendo a uma análise mais mesmo nome, foi também gravada por Pixinguinha e seu grupo.7
propriamente temática do que cronológica. Sendo ampas instrumentais, a entrada da favela no cancioneiro po­
pular se fez, no entanto, apenas pela melodia. Na verdade, seria preciso
O comentário final está relacionado ao material de pesquisa. Quan­
esperar mais de uma década para que a favela passasse a permear tam­
do decidimos dar por encerrado o levantamento, tínhamos em mãos cerca
de 230 referências musicais. Destas não nos foi possível obter a letra de bém as letras musicais, o que só ocorreu ao final dos anos 20, mais preci­
aproximadamente 50, e para outras três não nos foi possível identificar a samente em 1928, quando o tema serviu de base para três composições.
época de gravação. Muitas, ainda, foram descartadas, de vez que, paro­
diando Drummond de Andrade, a favela aí entrava mais como uma rima Anos 20
do que como uma representação. Com isso, o material em que nos basea­
mos para redigir o presente texto inclui 163 composições musicais, cobrin­
do um período que se estende desde o final dos anos 20 até os dias atuais. A FAVELA VAI ABAIXO ( 1 9 2 8 )

É com esse repertório que dialogamos, a seguir, procurando mos­


f. B . da Silva (Sinhô)
trar de que maneira o enredo sobre a favela e seus personagens foi cons­ Seresteiro/ Minha cabocla, a Favela vai abaixo! / Quanta saudade tu terás
truído e disseminado por compositores de música popular brasileira. deste torrão/ Da casinha pequenina de madeira/ Que nos enche de cari­
nho o coração! (... )
Mulata/ No Estácio, Querosene ou no Salgueiro/ Meu mulato não te es­
A reconstituição de um percurso: de morro da
pero na janela/ Vou morar na cidade nova/ Pra voltar meu coração para
o morro da Favela! ( ... )
Favela/Favela a favela

É fato conhecido que o termo favela evoca em suas origens o local


do sertão baiano onde se concentravam os seguidores de Antônio Conse­ NÃO Q U ERO SABER MAIS DELA ( 1 9 2 8 )
lheiro, tendo-se difundido no Rio a partir da ocupação do morro da Pro­ J. B. da Silva (Sinhô)
vidência por soldados que voltavam da campanha de Canudos e começa­
ram a chamá-lo de morro da Favela . Reconstituindo o processo no livro Colônia/ Porque foi que tu deixaste/ Nossa casa na Favela? / Mulata/
Os morros cariocas no novo regime, publicado em 1941, Dias da Cruz (apud Não quero saber mais dela/ Não quero saber mais dela/ Colônia/ A
Cabral, 1996:30) assim o descreveria: casa que eu te dei/ Tem uma porta e uma janela
66 Um Sécu l o de F a ve l a
"A P a l avra é: Fav e l a " 67

Mulata/ Não quero saber mais dela/ Não quero saber mais dela/ Portu­
coincidência do período de gravação da música com a notícia d a remo­
guês não me invoca/ Me arrespeita eu sou donzela/ Não vou nas tuas
ção do morro da Favela permitem pensar que aqui, mais uma vez, preva­
potoca/ nem vou morar na Favela ( ... )
lece o sentido estrito do termo.
Mais importante, porém, do que especular sobre o sentido que os
FORAM-SE OS MALANDROS ( 1 9 2 8 ) autores estariam atribuindo a favela é marcar a ambivalência no uso do
Casquinha e Donga termo - servindo ora como designação genérica, ora como qualificação
específica - que se faz sentir nas composições musicais nos anos 20 e
( . . . ) Os malandros da favela/ Não têm mais onde morar/ Foram uns pra que, longe de se circunscrever apenas a esse período, atravessaria as dé­
Cascadura/ Outros pra Circular/ Coitadinhos dos malandros/ Em que cadas subseqüentes, como procuramos mostrar, a seguir, por meio de al­
aperto vão ficar / Com saudades da favela/ Todos eles vão chorar./ Os guns exemplos.
malandros da Mangueira/ Que vivem da jogatina/ São metidos a va­
lentões/ Mas vão ter a mesma sina/ Mas eu hei de me rir muito/ Quan­
do a justiça for lá/ Hei de ver muitos malandros/ Às carreiras se Anos 30
mudar.

NEM É BOM FALAR ( 1 9 3 0 )


Já à primeira leitura, fica claro que o uso do termo favela e sua gra­
fia nessas composições podem prestar-se a uma dupla .Íllterpretação. Via
Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves
de regra, assume-se que o F maiúsculo estaria indicando o uso do termo ( ... ) Até que enfim/ Eu agora estou descansado/ Ela deu o fora/ Foi
para identificar um morro da cidade - a exemplo de Salgueiro ou de morar lá na Favela/ Oh! E eu não quero saber mais dela
Mangueira -, enquanto o f minúsculo serviria para designar as favelas
de modo genérico.8 Na MPB, contudo, essa não pode ser tomada como
regra absoluta, como ilustram as composições dos anos 20. ENCURTA A SAIA ( 1 9 3 1 )
As duas primeiras são de J. B. da Silva, popularmente conhecido f. Casado, Almirante e João de Barro
como Sinhô, o Rei do Samba. Não quero saber mais dela apareceu no início
de 1927 em revistas teatrais encenadas no Rio de Janeiro e foi gravada ( ... ) Tira esta saia/ Amostra as tua canela/ Que vale um milhão de con­
cerca de um ano depois. Na partitura, a categoria favela está grafada tos/ Nos batuque da Favela ( ... )
com maiúscula, sugerindo tratar-se de uma designação particular (Fave­
la = morro da Favela), mas o conteúdo da letra, considerado por alguns É FEIO, MAS É BOM ( 1 9 3 9 )
pesquisadores como um retrato de época,9 bem como a classificação da Assis Valente
música como "samba de favela", na partitura original, parecem indicar,
ao contrário, que aí já se estaria empregando o termo numa acepção mais O batuque da favela/ Terminou em tiroteio/ Todo samba do barulho/ Eu
genérica. O que não é o caso de A Favela vai abaixo, também gravada por acho bom, mas acho feio ( ... )
Sinhô, em janeiro de 1928, em protesto contra a destruição do morro da
Favela e a remoção de seus moradores, previstas pelo Plano Agache.
Nela, "Favela" e "morro da Favela" se alternam e são usados claramente Anos 40
como sinônimos.
O mesmo tema (remoção) daria ensejo à composição Foram-se os
malandros, de Casquinha e Donga, gravada em 1928, onde também o uso FAVELA QUERIDA ( 1 9 4 0 )
do termo favela é ambíguo. Embora os dois compositores se refiram Cristóvão d e Alencar e Sílvio Pinto
sempre à favela (com f minúsculo), o contraponto que estabelecem entre
Minha Favela querida/ Se eu for para outro lugar/ Na hora da despedi­
os "malandros da favela" e os "malandros da Mangueira" e sobretudo a
da/ Eu bem sei/ Que vou chorar ( ... )/ Favela dos sonhos meus,/ Não sei
68 Um S é c u l o de Favela "A Palavra é: Fave l a " 69

te dizer adeus, / Pois foi na favela que eu conheci,/ Sambando na riban­ A leitura das composições musicais dos anos 50 indica, todavia,
ceira/ Uma cabrocha faceira,/ Que nunca mais esqueci ( ... ) que o uso genérico do termo favela já começava então a se consolidar. A
partir dos anos 60, a grafia de favela com F maiúsculo e seu emprego
como topônimo praticamente desaparecem da MPB. 1 0 Decididamente,
ONDE É QUE V AIS MORAR? ( 1 943) a favela se substantivara na canção popular. Nessa direção apontam
Kid Pepe e Téo Magalhães tanto os títulos de algumas composições musicais - Favela do Sete Coroas
(1960), de Geraldo Queiroz e Waldir Firotti; Favela do Vergueiro (1964), de
Onde é que vais morar/ Se a favela se acabar/ Se a favela se acabar/ Onde
Cachimbinho e Laércio Flores; e Favela do Pasmado (1965), de Edith Serra
é que vais morar/ Eu tenho um "bungalow" / A tua disposição/ Que
- quanto o conteúdo de outras. Assim, é bastante significativo que, na
tem ar refrigerado/ Para os dias de verão/ ( ... ) Tenha paciência/ E não
composição Favelas do Brasil (1961), seus autores, J. Piedade, O. Gazza­
se canse de esperar/ Tudo pode acontecer/ Se a favela se acabar
neo e J. Mascarenhas, registrem a presença delas em todo o território na­
cional. Como é significativo também que temas como o do surgimento e
BOOGIE-WOOGIE NA FAVELA ( 1 94 5 ) o da remoção de favelas passem a permear as letras musicais do perío­
Denis Brean do, dando conta não apenas de uma situação específica, mas também
plural.
(... ) E lá na Favela/ Toda batucada já tem boogie-woogie/ Até as cabrochas/ Até mesmo a questão da mudança social nas favelas se incorpora
Já dançam, já falam/ No tal boogie-woogie/ E o nosso samba foi por isso às composições dos anos 60. E, a esse propósito, é interessante confrontar
que aderiu/ Do Amazonas, Rio Grande, São Paulo e Rio/ Ao boogie-woo­ as versões antagônicas apresentadas nas músicas Favela diferente (1962) e
gie, boogie-woogie, boogie-woogie/ A nova dança que surgiu Minha favela (1968) . A primeira, de autoria do padre Ralfy Mendes, pare­
ce refletir os esforços de algumas alas da Igreja Católica, então preocupa­
das em deter "o perigo vermelho": é "preciso subir o morro antes que os
Anos 50 comunistas desçam", e o caminho musical foi uma das vias de acesso,
como sugere Favela diferente. Mas enquanto nesta se elabora uma versão
PATINETE NO MORRO ( 1 9 5 4) positiva da mudança que teria ocorrido com o "fim da malandragem" e
Luís Antônio dos "batuques" e com a melhoria nos níveis de vida dos moradores da fa­
vela, a partir de símbolos de status como era, à época, possuir televisão e
Papai Noel/ não sobe na favela/ O morro também tem garotada/ Eu geladeira, radicalmente oposta é a visão trazida por Minha favela. Nesta,
botei o meu tamanco na janela/ E de manhã não tinha nada. ( ... ) os compositores Clodoaldo Brito (Codó) e Francisco Dias Pinto negam
qualquer transformação e traçam um quadro bastante adverso das condi­
ções de vida na favela.
FALA MANGUEIRA ( 1 956)
Mirabeau e Mílton d e Oliveira
Fala Mangueira, fala! / Mostra a força da tua tradição/ Com licença da Anos 60
Portela, Favela/ Mangueira mora no meu coração! ( ...)
FAVELAS DO BRASIL ( 1 9 6 1 )
FAVELA AMARELA ( 1 9 5 9 ) ]. Piedade, O. Gazzaneo e ]. Mascarenhas
Jota Jr. e O . Magalhães
( ... ) Cada favela tem seu bamba/ Sua rodinha de umbanda/ Que todos
Favela amarela! / Ironia da vida! / Pintem a favela/ Façam aquarela/ Da vão saravá, Ogum, e Oxalá/ As favelas sejam dez ou sejam mil/ São fa­
miséria colorida/ Favela amarela (... ) velas do Brasil
70 Um Séc u l o de Favela "A Palavra é: Favela " 71

FAV ELA D I FERENTE ( 1 9 6 2 ) justificativas poderiam ser aqui avançadas: a primeira, e sem dúvida
Pe. RalfiJ Mendes principal, guarda relação com a origem e a forma de expansão das fave­
las do Rio de Janeiro, que, como já mencionamos, representam referên­
Na favela antigamente/ Só dava malandro/ Batuque a noite inteira/ cia espacial básica de nossa pesquisa. Nesse sentido, caberia lembrar
Mas agora é diferente/ O barraco tem televisão e geladeira ( . . .) que, mesmo antes de ser "favela", a favela foi morro no Rio, e que sua
Malandro foi ser playboy em Copacabana/ E a favela foi ficando mais ba­ expansão na malha urbana foi fundamentalmente impulsionada pela
cana ocupação de novos morros e/ ou pelo adensamento dos antigos.1 1 Não
é de estranhar, portanto, que no conjunto das 163 músicas levantadas,
93 estabeleçam uma sinonímia entre morro e favela.
M INHA FAVELA ( 1 9 6 8) A par dessa identificação, as composições de MPB recorrem tam­
Clodoaldo Brito (Codó) e Francisco Dias Pinto bém a um uso metonímico de barraco/barracão para remeter à favela,
Eu não voltei mais na favela/ Mas sei que nada melhorou (...)/ Só quem sendo bastante comum, ainda, a adoção dos nomes próprios das favelas
conhece a favela/ É que entende bem que ela/ Não é igual ao carnaval/ - Mangueira, Salgueiro, Borel etc. -, sobretudo quando se trata de exal­
Pois quem vê o povo tão contente/ Pensa que o morro é diferente/ Não tar cada uma delas.
sabe o que é viver tão mal Por trás do morro, de designações específicas e dos "barracos da ci­
dade", a favela se oculta e se revela, o que não só não elimina como pode
até mesmo corroborar a possibilidade de que o uso menos freqüente do
A tabela a seguir compara o modo pelo qual a grafia de favela foi­ termo nas composições musicais se deva, ao menos em parte, ao estigma
se modificando, ao longo do tempo, nas composições musicais por nós le­ que historicamente o acompanha.
vantadas. Mesmo com as ressalvas feitas anteriormente, a tendência que Na tabela da página 72, indicamos a freqüência com que essas dife­
aí se observa não deixa de ser ilustrativa do processo de substantivação rentes formas de designação12 aparecem no levantamento por nós realizado.
por que passou o termo. Nesse percurso de sete décadas, a música acompanharia de perto
o crescimento e a difusão espacial das favelas. Nos anos 20, cantava-se
apenas o morro da Favela; nos anos 90, Bezerra da Silva, autor de uma
modalidade de samba definida como "de protesto", 1 3 mencionaria o
TOTAL FAVELA FAVELA FAVELA/FAVELA
DÉCADAS nome de nada menos que 54 favelas na composição Aqueles morros. E
tendo percebido que se esquecera de muitas outras, a estas dedicaria
uma nova: As favelas que não exaltei. Isso para falar apenas no Rio...
20 3 2 1

30 11 8 2 1

40 6 2 2 2
A favela como o espaço do pobre
2 4
No Novo dicionário da língua portuguesa, Aurélio Buarque de Holan­
50 6

da (1986:234, 762) assim define favela e barraco:


60 12 1 10 1

70-90 8 7 1

S / especificação 1 1

FAVELA BARRACO
Total 47 16 26 5

"Conjunto de habitações populares "[De barraca]. Habitação tosca, improvisa­


toscamente construídas (por via da, construída geralmente em morros,
Por outro lado, a tabela revela também um aparente paradoxo: de regra em morros) e desprovidas com materiais de origem diversa e adapta­

no conjunto das 163 composições com que trabalhamos, o termo favela


de recursos higiênicos. dos, coberta com palha, zinco ou telha,
onde vivem os favelados; barracão." 14
se explicita em apenas 47, ou seja, em menos de 1/3 do total. Algumas
[Sin .: 111orro (RJ)] ."
,.
U m Século de F avel a

1 "A P alavra é: F avela 73


"
72

Tendo estabelecido a estreita ligação entre um termo e outro e


entre estes e os morros, o dicionarista recorre, em seguida, a uma famosa
composição musical para ilustrar o uso de barraco:
li)
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u
li) -

a:
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cz:1- ,ffi '"""' N e'"> 'SI' e'"> e'">
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o:i U.ILI.U.I A porta do barraco era sem trinco.


e::
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Mas a lua, p isando nosso zinco,
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U.I
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Salpicava de estrelas nosso chão...
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(Chão de estrelas, de Orestes Barbosa)


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a: e<
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o O recurso não é gratuito. Desde os anos 20 até os dias atuais, a
MPB vem se constituindo como um dos maiores e mais importantes acer-
vos documentais sobre a favela. Aí a favela se afirma, antes de mais
:i;:

z
U.I

..1
< nada, a partir de suas características físicas, de seus aspectos visíveis,
emergindo como o espaço da habitação precária e improvisada, do pre-
00 te-.. te-.. l!) '>D
'SI'
o1-
l!) e'">

domínio do rústico sobre o durável, da ausência de arruamento, da escas-


1-

sez de serviços públicos - em poucas palavras, o espaço do não.

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a: > '"""' '"""' N e'"> 'SI' N


'"""'
e'">
AVE MARIA NO MORRO ( 1 9 4 2 )

::;: u..
o < Herivelto Martins

Barracão de zinco/ Sem telhado, sem pintura/ Lá no morro/ Barracão é


o bungalow/ Lá não existe felicidade de arranha-céu/ Pois quem mora lá no
·O � '"""' '"""'
'"""'
'"""' N N o morro/ Já vive pertinho do céu ( ... )
::;:
N 'SI'
te-..
'"""' N N 00
C/l o

V I D A NO MORRO ( 1 9 4 2 )
Aníbal Cruz
'CJ)º >
<
Lá no morro/ Todo caixote é cadeira/ Todo colchão é esteira/ Vela é ilu-
U.I N o 'SI' e'"> e'"> '"""' N '"""' 'SI'
e'">

u.. minação/ Terra batida é assoalho pra dança/ Tamanco é sapato que dá
<

elegância/ Piteira é cachimbo com fumo de rolo/ Água é refresco bebido


com bolo/ Rico é visita no meio de gente/ Pedra animada é fogão bem
decente (... )
..1
< e'"> N e'"> e'"> '"""' te-.. '>D e'"> e'">
'"""'
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N N e'"> 'SI' N
o
1-

Eu N A S C I NO MORRO ( 1 9 4 5 )
Ari Barroso
Cl
li)
<
( ... ) Eu nasc i no morro, num pobre barracão/ De caixão/ Vida de ca-
til
u
Q
< o o o o o o o °'o -..... õ
charro, pé no chão/ Sem tostão/ E depois segui o meu caminho/ Eu so-
N e'"> 'SI' l!) '>D te-.. 00
f-<

Q
C1)

'U.I

zinho (... )
74 Um Século de Favela "A Pal avra é: Favela"

MEU BARRACO ( 1 9 4 6 ) MORRO D O BARRACO SEM ÁGUA ( 1 9 7 0 )


Duque e Dilu Mello Roberto Correa, Jon Lemos
(...) O meu barraco é claro que faz gosto/ L á não tem gás, nem eletricida­ (... ) No barraquinho sem água/ A gente vive a amar/ Eu e a nega/ Mais
de/ Não pago a luz, não pago imposto/ Não pago a luz, que felicidade (... ) um neguinho bonito/ Já está pra chegar/ Da minha nega/ Mais uma lati­
nha de água/ Vou ter que arrumar/ Ó minha nega/ Mais uns trocados
ESCURINHA ( 1 9 5 0 ) pro leite/ Vou ter que arrumar / Pro neguinho criar/ Ei!
Geraldo Pereira e Arnaldo Passos
(... ) Quatro paredes de barro / Telhado de zinco / Assoalho de chão!/ Só ARQUITETU RA DE POBRE ( 1 9 8 0 )
tu escurinha( É quem está faltando/ No meu barracão (...) Edgar Barbosa e Joacy Santana
Arquitetura de pobre/ É barraco espetado na beira de barranco/ Ele vai
ÁGUA DE POTE ( 1 9 5 2 ) levando a vida ao solavanco/ E o doutor com dinheiro no banco (. . . )
A . Barbosa, O. França e A. Lopes
Rico bebe água de garrafa/ Pobre bebe água de pote/ Cadeira de rico é
poltrona/ Cadeira de pobre é caixote./ Residência de rico é bangalô/ Re­
ENCANTO DA PAISAGEM ( 1 9 8 6 )
Nélson Sargento
sidência de pobre é barracão (... )
Morro (... )/ A topografia da cidade/ Com toda simplicidade/ És chama­
do de elevação/ Vielas, becos e buracos/ Choupanas, tendinhas, barra­
cos/ Sem discriminação ( . . . )
MUNDO DE ZINCO ( 1 9 5 2 )
Nássara e Wilson Batista
Aquele mundo de zinco, que é Mangueira/ Desperta com o apito do
trem/ Uma cabrocha, uma esteira/ Um barracão de madeira/ Qualquer As referências musicais à favela secundam a definição de Buarque
malandro em Mangueira tem (... ) de Holanda, seja no que diz respeito à estreita relação entre morro e fave­
la, seja na ênfase dada às características visíveis para descrevê-la. É im­
portante observar, no entanto, que algumas destas, sobretudo o uso de
materiais rústicos ou improvisados na construção da moradia (barro,
MORRO ( 1 9 5 3 )
Luís Antônio
zinco, restos de madeira) e a falta de água e luz, bastante recorrentes na
(... ) ó morro! / Aonde mora a lua/ Aonde não há rua/ Nem água, nem canção popular dos anos 40, 50 e 60, já a partir dos anos 70 se tornam
luz!/ Morro! ( ...) menos freqüentes, vindo praticamente a desaparecer na dos anos 80 e 90.
A pergunta em suspenso, portanto, é: em que medida esse silêncio esta­
ACENDER AS VELAS ( 1 9 6 5 ) ria respondendo ao intenso processo de auto-urbanização que ocorreu
Zé Kéti nas favelas nas últimas décadas e alterou sensivelmente seu perfil? 15
(... ) Deus me perdoe/ Mas vou dizer/ O doutor chegou tarde demais/ Por­ Embora não mencionada pelo dicionário, uma outra característica
que no morro/ Não tem automóvel pra subir/ Não tem telefone pra cha­ da favela - a que a identifica como área de invasão e, conseqüentemen­
mar/ E não tem beleza pra se ver/ E a gente morre sem querer morrer. te, coloca a questão da não-propriedade dos terrenos 1 6 - se faz presente
na MPB através de Favela (1966), Aqueles morros (1994) e Barraco de tábua
(1952). De uma maneira poética, as três composições apontam para o sur­
SANTUÁRI O NO MORRO ( 1 9 6 6 )
gimento da favela, mediante a ocupação de áreas devolutas ou abando­
nadas ("antes aqueles morros não tinham nomes"; "o morro era um pre­
Adílson Godoy
(...) Barraco grudado no morro/ É mais forte d'água até/ Barraco na sente de Deus"), mas é somente na última - Barraco de tábua - que se
hora do aperto/ É santuário de José/ Por isso minha nega/ Não chora insinua o conflito entre a posse e a propriedade do terreno ("agora o
mais em vão/ Barraco é santuário/ Deus não vai jogar no chão./ morro tem dono").
76 Um Século de Favela
" A P a l avra é : Fave l a "
77
FAVELA ( 1 9 6 6 )
Jorginho e Padeirinho Como vou me arrumar/ Pra me mudar/ Seu dotô me compreende/ O
progresso é necessário/ Mas seu dotô/ Pense um pouco no operário/
Numa vasta extensão/ Onde não há plantação/ Nem ninguém morando Meu barracão é todo meu patrimônio/ Por favor não bote abaixo/ O
lá/ Cada um pobre que passa por ali/ Só pensa em construir seu lar/ E morro de Santo Antônio
quando o primeiro começa/ Os outros depressa/ Procuram marcar/ Seu
pedacinho de terra pra morar ( ...)
SAUDOSA MALOCA ( 1 9 5 5 )
É ali que o lugar, então,/ Passa a se chamar favela. Adoniran Barbosa

AQ UELES Mo�rnos ( 1 9 9 4 )
( ... ) Mais um dia nóis nem pode se alembrá/ Veio os homes c'as ferramen­
Bezerra d a Silva e Pedro Butina ta/ O dono mandô derrubá/ Peguemo tudas nossas coisas/ E fumos pro
meio da rua/ Preciá a demolição/ Que tristeza que nos sentia/ Cada táu­
Antes aqueles morros não tinham nomes/ Foi pra lá o elemento home/ bua que caía/ Doía no coração/ Mato Grosso quis gritá/ Mais em cima eu
Fazendo barraco, batuque e festinha/ Nasceu Mangueira, Salgueiro,/ falei/ Os homes tá c'oa razão/ Nóis arranja outro lugá/ Só se conforme­
São Carlos e Cachoeirinha/ Andaraí, Caixa d ' Água, Congonha,/ Alemão mo/ Quando o Zeca falô/ Deus dá o frio/ Conforme o cobertô ( ...)
e Borel/ Morro do Macaco e Vila Isabel
OPINIÃO ( 1 96 3 )
BARRACO DE TÁBUA ( 1 9 5 2 ) Zé Keti
Herivelto Martins e Vítor Simon
Podem me prender/ podem me bater/ podem até/ deixar-me sem
O morro era um presente de Deus/ Vivia no abandono/ Agora morro comer/ que eu não mudo de opinião/ daqui do morro/ eu não saio
tem dono/ Adeus, Salgueiro, adeus/ Desço a ladeira chorando/ Sem ter não./ Se não tem água/ eu furo um poço/ Se não tem carne/ eu pego
a quem reclamar/ Se o morro é um presente do céu/ Deus não tem im­ um osso/ e ponho na sopa/ e deixa andar/ fale de mim/ quem quiser
posto a cobrar/ Invés de barracos destruídos/ Roupa nova para os mor- falar/ aqui eu não pago aluguel/ se eu morrer amanhã, seu doutor/
ros mal vestidos ... estou pertinho do céu

A centralidade da característica de ocupação ilegal na definição de FAVELA DO PASMADO ( 1 9 6 5 )


favela vai se explicitar, porém, na MPB, a partir de uma situação limite: a Edith Serra
remoção. Reiteradas vezes presentes na história das favelas brasileiras,
como um todo, e das cariocas, em particular, a ameaça de remoção ou a O fogo no morro alastrou/ Entrou no barraco e nada deixou/ As labare­
concretização desta também se inscrevem na canção popular, como das cresciam, cresciam/ E o inferno de fogo a favela baixou/ Que é da
exemplificam A Favela vai abaixo e Foram-se os malandros, já mencionadas casa do João, brasa virou/ João não tem mais lugar pra sonhar como so­
antes. Além dessas, outras composições, produzidas sobretudo nos anos nhou/ E lá no Pasmado, triste, abandonado/ Nem aquela palmeira o
50-70, retomam a mesma temática, registrando, inclusive, as demonstra­ fogo deixou
ções de uso da força policial e os incêndios praticados (anos 60) para erra­
dicar a favela do cenário urbano.
DESPEJO NA FAVELA ( 1 97 5 )
Adoniran Barbosa
MORRO DE SANTO ANTÔNIO ( 1 9 5 0 )
Benedito Lacerda e Herivelto Martins Quando o oficial de justiça chegou/ Lá na favela/ E contra seu desejo/
Entregou pra seu Narciso/ Um aviso, uma ordem de despejo/ Assinada
Seu dotô não bote abaixo/ Tem pena do meu barracão/ Quem é rico se
seu doutor/ Assim dizia a petição:/ Dentro de dez dias/ Quero a favela
atrapalha/ Pra arranjar onde morar/ Quanto mais eu que sou pobre/
. vazia/ E os barracos todos no chão/ É uma ordem superior,/ ô, ô, ô, ô ,
78 Um Sé c u l o de Favela "A P a lavra é: Fave la"
79

meu senhor/ É uma ordem superior,/ Não tem n ada não, seu dout or/ EXALTAÇÃO À M A N G U E IRA ( 1 956)
Não tem n ada não,/ Amanhã mesmo vou deixar/ Meu barracão / Não Enéas B. Silva e Aloísio A. Costa
tem nada não, seu doutor/ Amanhã mesmo vou sair daqui/ Pr a não
1

ouvir o r onco do tra tor/ P ar a mim não tem pr oblema / Em qu alquer Mangueira, teu cenário é uma beleza / Que a natureza criou/ o morro
canto me arrumo / De qualquer jeito me ajeito / Depois o que eu tenho é com seus barracões de zinco / Quando amanhece/ Que esplendor! ( ...)
tão p ouco / Minha mudança é tão pequena / Que cabe n o b olso de trás/
M as essa gente aí, hein? / Como é que faz? / Ô, ô, ô, ô , meu senhor/ Ess a SEI LÁ M A N G U E I RA ( 1970)
gente aí, como é que faz? Paulinho da Viola e Hermínio Bel/o de Carvalho

Vist_a assim, d o alto/ M ais p arece um céu no chão / Sei lá ... / Em Man­
A refe;ência tempora l é aqui nov amente import ante. A exemplo gue1ra a poesia/ Feito um mar se al astrou/ E a beleza do lugar / Pra se
do que já foi observa do com relação às c aracterísticas de construção das entender/ _Tem que se achar/ Que a vida não é só isso que se vê/ É um
mor adias nas favelas, também as menções à ocupação ilega l da terra e à pouco mais/ Que os olhos não conseguem perceber/ E as mãos não
ameaça de remoção da í decorrente surgem n a MPB co mo historicamente ousam t o car/ E os pés recusam pisar
datadas. Nesse sentido, va le ressaltar que, n o rol das 163 composições
musicais por nós pesquisa das, o tema da remoção não foi tr atado uma
ALVORADA ( 1 976)
única vez, a partir dos an os 80, refletindo certa mente o quadro político
mais amplo, que passou a privilegiar a urb anização das f avelas, ao invés
Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello d e Carvalho
de sua err adicação. 17 Alvorada lá no morr o que beleza / Ninguém chora, não há tristeza / Nin­
Até aqui procur amos mostrar que as car acterísticas "nega tiv as", guém sente dissab or / O sol colorido é tão lindo, é tão lindo / E a na ture­
usua lmente empregadas n as definições sociológicas de favela, também za sorrindo/ Tingindo, tingindo a alvor ada
estão presentes na MPB, embor a aqui se recorra a uma linguagem multi­
forme, onde se cruza m o la mento, o protesto, a ironia , o deboche e, sobre­
E NC A NTO DA P A I S A G EM ( 1 98 6 )
tudo, muit a poesia para descrevê-las.
Nélson Sargento
Se, n a voz de Ger a ldo Queiroz e Nélson Cav aquinho, mesmo os
b arra cos de zinco adquirem belez a própria e pass am a ser "c astelos M orr o/ És o encanto da paisagem/ Suntuos o personagem/ De rudimen­
em n oss a ima gin ação ", c om ma is r azão a inda se poderia pens ar que a tar beleza / M orro / Progresso lento e primário / És imponente n o cená­
p a rticula r situ ação geo gráfica das favelas, sobretudo no c as o do Rio de rio / Inspir ação da n a tureza ( . . .)
Ja neir o - sua loc a liz ação em morr os de onde se desc ortin a um a vist a
privilegia da da cida de -, dificilmente deix aria de ser capt a da e enalte­
cid a pela lente dos compo sitores. De fa to, esse é um traço b a st a nte ex­ A o mesmo tempo em que, p or uma visão idealizada , as letr as de
, .
plor a do n a s letras music a is que remetem à proximid ade com o céu, à musica en_a �tecem o �ugar, enaltecem também os laç os de vizinh ança ,
imp onência dos morros e à belez a da pa isa gem c omo forma de ex a lt a ­ companhemsmo e umão existentes entre os moradores da f avela. Em ní­
ção do lugar. tida oposi �ão à "cid ade", onde predominariam as relações impessoais, a
favela sena o locus, p or excelência, das relações person aliza das: nela,
todo� s� �onhece�, t od os se ajud am, "t odo vizinho é amigo da gente".
MORRO ( 1 944) As h1stonas que sao narradas - e a narra tiva é um recurso bastante ins­
Waldemar de Abreu (Dunga) e Mário Rossi trumentalizad? nas letras que tratam da favela - têm quase sempre
nome ou apelido: c�or a -se a morte de M aria da Penha, que pôs fogo às
M orro... és o primeiro a da r bom dia / Ao sol, que n asce no h orizonte/ vestes; f az-se uma hsta p ar a a Nega Luzia, que exorbitou da bebid a e foi
Depois da lua cheia a desma iar/ M orr o . .. és o primeir o que recebe/ O parar no xadrez; lamenta-se a sorte de Chico Brito; criticam-se os exces-
boa noite das estrelas/ Que gost am tanto de te ouvir cant ar. . sos do Escurinho, que agor a está com a mania de brigão. Nessa perspecti-
80 Um Sé c u l o de F avela "A Pa lavra é: Fave l a " 81

va, o morro tende a aparecer como um espaço social homogêneo que se NEGA LUZIA ( 1 9 56)
move pelos mesmos sentimentos: "o morro sorri", "nós vivemos alegres Wilson Batista e J. de Castro
a cantar", "o morro está triste", "o morro está de luto" . Em particular, a
música e a dança - que desde sempre encontraram na favela um terreno Lá vem a nega Luzia/ No meio da cavalaria/ Vai correr lista lá na vizi­
fértil de afirmação, como demonstram a própria história do samba e de nhança/ Pra pagar mais uma fiança/ Foi canjebrina demais/ Lá no xa­
outros ritmos musicais - atuariam em reforço dos laços de pertencimen­ drez/ Ninguém vai dormir em paz / Vou contar pra vocês / O que a
to ao lugar e das relações de solidariedade e amizade entre os moradores. nega fez/ Era de madrugada/ Todos dormiam/ O silêncio foi quebra­
do/ Por um grito de socorro/ A nega recebeu o Nero/ Queria botar fogo
no morro
VIDA NO MORRO ( 1 9 4 2 )
Aníbal Cruz
ZELÃO ( 1 9 6 0 )
( ...) Tudo no morro é tão diferente/ Todo vizinho é amigo da gente/ Até Sérgio Ricardo
o batuque nossa maravilha/ Toda cabrocha é decente e família/ Tudo no
morro é melhor que na cidade/ Tanto na dor como na felicidade ( ...) Todo morro entendeu quando Zelão chorou/ Ninguém riu, nem brincou /
E era carnaval./ No fogo de um barracão/ Só se cozinha ilusão/ Restos
que a feira deixou/ E ainda é pouco./ Mas assim mesmo Zelão/ Dizia
C H I C O BRITO ( 1 9 5 0 ) sempre a sorrir/ Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar ( ... )
Wilson Batista e Afonso Teixeira

Lá vem o Chico Brito/ Descendo o morro nas mãos do Peçanha/ É mais PRAZER DA SERRINHA ( 1 9 7 8 )
um processo, é mais uma façanha/ Chico Brito fez do baralho/ Seu Hélio dos Santos e R . Silva
maior esporte/ É valente no morro/ Dizem que fuma uma erva do
norte/ Quando menino teve na escola/ Era aplicado, tinha religião/ Melodia mora lá/ No prazer da Serrinha/ Nós vivemos alegres a can­
Quando jogava bola/ Era escolhido para capitão/ Mas a vida tem os tar/ A nossa escola/ Nos dá emoção/ Porque ninguém jamais/ Poderá
seus reveses / Diz Chico Brito, sempre defendendo teses / Se o homem desmoronar/ A nossa união ( ... )
nasceu bom/ E bom não se conservou / A culpa é da sociedade/ Que o
transformou
RAP DO BOREL ( 1 9 9 4 )
William e Duda
ESCURINHO ( 1 9 5 4 )
Geraldo Pereira ( ...) É o morro mais bonito do bairro Tijucão/ Porque meus amigos nós
somos todos irmãos/ Lá é como uma família é gente de montão/ No
O escurinho era um escuro direitinho,/ Agora tá com a mania de bri­ morro e na favela só tem gente sangue bom/ Porque meus amigos lá na
gão/ Parece praga de madrinha/ Ou macumba de alguma escurinha/ comunidade/ Nós fazemos as festas em troca de amizade ( ... )
Que ele faz ingratidão
Seja pela descrição de suas características negativas, seja pela exal­
MÃE S OLTEIRA ( 1 9 5 4 ) tação de seus aspectos positivos, as letras da canção popular configuram
Wilson Batista e J. de Castro claramente a favela como território da pobreza. Ser favelado é, antes de
tudo, sinônimo de ser pobre. Tal sinonímia, desde sempre incorpora da
Hoje não tem ensaio/ Na escola de samba/ O morro está triste/ E o pan­ ao senso comum, encontra também respaldo na literatura sociológica
deiro calado/ Maria da Penha, a porta-bandeira/ Ateou fogo às vestes/ que, invertendo os termos da relação, tenderia, sobretudo ao longo dos
Por causa do namorado ( ...) anos 50 e 60, a eleger a favela como forma espacial típica de inserção dos
82 Um Sécul o de Fave la "A Pa l avra é: Fave l a " 83

pobres no tecido urbano brasileiro, a exemplo do que fora o cortiço na vi­ A FAVELA V A I A B AI XO ( 1 9 2 8 )
rada do século (Valladares, 1991). 18 f. B. da Silva (Sinhá)
( ... ) Isso deve ser despeito dessa gente/ Porque o samba não se passa
para ela/ Porque lá o luar é diferente/ Não é como o luar que se vê desta
A favela como espaço do samba Favela! ( ... )
Paralelamente à sua configuração como o espaço do pobre, a fave­
la viria a se consagrar também como o espaço do samba. NEM E u , N E M ELA ( 1 9 3 1 )
Tal associação que na verdade se faz entre samba e morro, de tão G . Iteperê
forte e recorrente na produção musical, tende a ser tomada como elemen­
to constituinte da própria definição de favela. No imaginário da música Nem eu, nem ela/ Vamos deixar de divertir/ Pra pandegar./ Cada um
brasileira, o samba é acionado para representar simultaneamente meio no seu lugar/ Eu vou sambar/ Lá no morro da Favela/ Pois eu quero es­
de identificação e de valorização do lugar: por seu intermédio, o morro quecer dela/ Quando chega o carnaval ( ... )
se afirma positivamente, como ilustra Zé Kéti ao cantar: "eu sou o
samba, a voz do morro sou eu mesmo sim senhor, quero mostrar ao
SAMBA Nosso ( R EZA D E M ALANDRO) ( 1 9 3 2 )
mundo que tenho valor ... " (A voz do morro, 1955).
Benoit Certain e E. Souto
É interessante observar, no entanto, que a estreita vinculação entre
ambos esconde, em seu desenvolvimento, as origens verdadeiras do Samba nosso, muito amado/ Que desceste lá do morro/ de cavaco, de
samba, favorecendo a criação de uma versão mitológica que elege a fave­ cuíca/ repicando no pandeiro/ sejas sempre respeitado/ se isso for do
la como lugar de nascimento do samba. teu desejo./ Na Favela, na Pavuna/ Na Gamboa, no Salgueiro./ O batu­
Estabelecendo um contraponto, se é correto afirmar que, hoje em que de cada dia/ Dá-nos hoje por favor ( ...)
dia, o samba desce do morro, não menos exato é dizer que, em seus pri­
mórdios, o samba subiu o morro. Já por volta de 1905-10, a Cidade Nova,
pela multiplicidade de seus bares e gafieiras, tornara-se o espaço privile­ FEITIO DE O RAÇÃO ( 1 9 3 3 )

giado para as manifestações musicais, que podiam ali se desenvolver, li­ Noel Rosa
vres da rigidez moral dos salões da elite. A animação noturna, a que se ( . . . ) O samba na realidade/ Não vem do morro nem de lá da cidade/ E
associavam condições acessíveis de moradia, propiciava uma grande con­ quem suportar uma paixão/ Saberá que o samba então nasce no cora­
centração de músicos residentes na Cidade Nova. Não é de estranhar, ção ( . . .)
portanto, que nela tenham surgido as transformações rítmicas que deram
origem ao samba. Mais precisamente, a história da música popular brasi­
leira registra a casa da "tia" Ciata (doceira baiana, pioneira de vários ran­ M INHA EMBAI XADA C HEGOU ( 1 9 3 4 )
chos de carnaval), ponto de encontro preferido de vários músicos, como Assis Valente
o lugar de onde teria saído a composição Pelo telefone, o primeiro samba
gravado a fazer sucesso, ainda em 1917. ( ... ) O violão deixou o morro/ E ficou pela cidade/ Onde o samba não
As primeiras referências musicais a favela de que tivemos registro se faz
foram gravadas coincidentemente no mesmo ano. Poderíamos dizer que
o desenvolvimento do samba ocorre paralelamente à diversificação e ao S A M B I STA DA C I NELÂNDIA ( 1 9 36)
crescimento das favelas, e, nesse processo, a importância da Cidade Custódio Mesquita e Mário Lago
Nova como espaço do samba foi sendo suplantada pela dos morros. Ao
final dos anos 20, Sinhô já apontava para a preponderância do morro na Sambista/ Desce o morro/ Vem pra Cinelândia/ Vem sambar/ A cidade
produção de samba, e na década seguinte era nítida a primazia que lhe já aceita o samba ( ... )/ O morro já foi aclamado/ Com um sucesso colos­
era atribuída, 19 como atestam as letras musicais a seguir. sal/ E o samba foi proclamado/ Sinfonia nacional
84 Um Sécul o de Fave l a "R P a l avra é : Favel a " 85

Desde então, a equivalência entre samba e morro s e consolida, re­ FAVELA MORENA ( 1 9 4 3 )
produzindo-se de forma longitudinal nos períodos subseqüentes. Para Estanislau Silva e João Peres
seu reforço contribuiriam de modo decisivo o surgimento das escolas de
sambas e os desfiles carnavalescos que começam a ser realizados ao final Minha favela morena/ Das noites de batucada (... ) / Favela das serena­
dos anos 20.20 A competição resultante desse processo repercute na pro­ tas/ Berço do samba dolente/ Da melodia morena/ Que fere a alma da
dução musical, através da crescente especificação das favelas. Ao mesmo gente/ Lá no morro da Favela tem/Muito amor e batucada tem (... )
tempo em que se intensifica a designação genérica de favela corno espa­
ço do samba, amplia-se também o número de referências musicais que es­
tabelecem a fusão entre as favelas e suas respectivas escolas de samba. O
G OSTO MAIS DO SALGUEIRO ( 1 9 4 3 )

recurso aos nomes próprios passa a ter um duplo sentido, recobrindo as


Wilson Batista e Germano Augusto
relações de pertencimento tanto ao lugar, quanto à escola de samba. (... ) Eu sou lá do morro/ A porta-estandarte/ Já ganhei medalha/ Sam­
Dessa forma, embora se mantenha, nas letras musicais, a diferenciação bar é urna arte/ Já me batizaram/ O samba em pessoa/ E não deixo o
entre o espaço da "cidade" e o espaço do "morro", esta se vê acrescida Salgueiro assim à toa.
por urna diferenciação interfavelas, que é também, simultaneamente,
urna diferenciação interescolas de sarnba.21
SALGUEIRO MANDOU ME C HAMAR ( 1 9 5 3 )
Manezinho Araújo e Dosinho
MANGUEIRA ( 1 9 3 5 )
Assis Valente e Zequinha de Abreu ( ... ) Salgueiro é lar feliz de gente bamba/ Na batucada é o primeiro/
Não há nem pode haver / Corno Mangueira não há/ O samba vem de lá Salve o Salgueiro/ Quartel-general do samba/ (eu vou pra lá)

ENQUANTO HOUVER MANGUEIRA ( 1 9 5 9 )


ACORDA ESCOLA DE SAMBA ( 1 9 3 7 )
Benedito Lacerda e Herivelto Martins Roberto Roberti e Arlindo Marques Jr.

Acorda escola de samba, acorda / Acorda que vem rompendo o dia/ Pode a Favela calar/ Pode o Salgueiro emudecer/ Enquanto houver um
Acorda escola de samba, acorda/ Salve as pastoras e a bateria/ No morro igual a Mangueira,/ O meu samba não vai morrer! / Até a chuva
morro quando vem rompendo o dia/ Na escola também vem raiando o nos telhados da Mangueira / Parece a voz dos tamborins / E pro gingado
samba/ A pastora amanhece cantando/ E a turma desperta entoando/ da cabocla quando anda/ A gente olha e vê o samba
Um hino de harmonia
EXALTAÇÃO À FAVELA ( 1 9 6 4 )
MANGUEIRA ( 1 9 3 7 ) Walter Amaral e Anacleto Rosas Jr.
Kid Pepe e Alcebíades Barcellos (Bide)
(...) Favela você hoje está em festa/ Escola do Estácio de Sá/ Abrace a fa­
( ...) Mangueira de encantos mil/ És filha deste Brasil/ Que tem nome na vela/ Que eu volto a cantar/ Laurinda sobe o morro gritando/ Escola
história (...)/ Namoradas do "Cruzeiro"/ Tu no samba brasileiro/ Tens a atenção, / A favela está chamando/ Favela o seu samba não morreu/ No
fama e tens a glória seu barraco de zinco/ Foi que o samba nasceu

PRAÇA 1 1 ( 1 9 4 1 ) DESPERTA FAVELA ( 1 9 7 4 )


Herivelto Martins e Grande Otelo Zé Pretinho e Geraldo Gomes
(...) Chora o morro inteiro/ Favela, Salgueiro/ · Mangueira, Estação Primei­ Hoje só se fala em Salgueiro/ Portela e Mangueira/ Esqueceram lá do
ra/ Guardai os vossos pandeiros, guardai/ Porque a escola de samba não sai alto/ E de urna escola de samba de bamba
86 Um Século de Fave l a "A P a l avra é: Favela" 87

É FAVELA ( 1 9 7 9 ) MARIA LAVADE I RA ( 1 9 6 0 )


Candeia e Jaime Black Silva e José Domingos

Ê ê ê ê favela/ Teu nome n a vida do samba não pode morrer/ ( ...) Te de­ Maria lava lava/ Maria esfrega esfrega / Depois do passa passa/ Ela vai
dico meu apreço / Nestes versos que te fiz/ Pois favela és o berço/ Do fazer entrega/ É assim o ano inteiro/ Trabalhando noite e dia/ Ela leva
samba que te ofereço/ Deste samba és a raiz. o seu dinheiro/ Pra fazer a fantasia/ Quando chega o carnaval/ Lá no
morro do Salgueiro/ Com o seu corpo escultural/ Ela samba no terreiro

DA ÁFRICA À SAPUCAÍ ( 1 9 8 6 )
LÁ VEM MANGUEIRA ( 1 9 6 2 )
João Basco e Aldir Blanc Paquito, Romeu Gentil e Paulo Gracinda
(...) Samba é a voz que me guarda / Enquanto eu aguardo/ A procissão Mangueira querida/ Vem descendo o morro/ Evoluindo as cabrochas/
se espraiar/ Do Santo Cristo a Osvaldo Cruz/ Esperando a vez do Sua escola vale ouro / Ô, ô, ô, ô/ Mangueira rainha do samba chegou/
Morro/ Se unir pra arrebentar. Mangueira/ Estação Primeira/ Vem pra disputar/ No asfalto o primeiro
lugar/ Ô, ô, ô, ô/ Mangueira rainha do samba chegou.
Por sua vez, o carnaval surge como o momento privilegiado de visi­
bilidade das favelas; defendendo as cores de sua escola, músicos, ritmistas, MORR9 ( 1 9 6 9 )
passistas, mestres-salas e porta-bandeiras encontrariam nele o ponto alto Niltinho e Luís Henrique
de expressão e reconhecimento social de sua arte. Passados os meses de sa­ É madrugada, fim de noite/ O dia já vai amanhecer/ O morro hoje vai
crifício para fazer a fantasia e o ritmo febril dos trabalhos no barracão, 22 en­ desabafar/ As cuícas em gemidos vão dizer/ Que o morro está triste/ E
volvendo costureiras, bordadeiras, marceneiros, pintores e escultores, é quer cantar/ Morro... / Só tens três dias / Pra viver tua ilusão/ Então tua
chegada a hora de "mostrar o valor". No rito mágico de inversão, um enre­ gente/ Vê uma chance de alegria/ E faz dessa tristeza uma canção/ La,
do de sonho converte trabalhadores anônimos e desempregados em reis e la, la, la, la, la/ É Carnaval!
rainhas, príncipes e princesas. Vestidos com roupas de cetim ou seminus,
exibindo suas formas esculturais, vêm eles reinar nos desfiles, e, por três
dias, instaura-se o reinado do morro na cidade. Não sem razão de ser, por­
O LHA O LEITE DAS C R IANÇAS ( 1 9 6 9 )

tanto, nas composições musicais a associação entre a favela e o carnaval é


Pedro Caetano e Luís Reis
quase que imediata, servindo muitas vezes o brilho e o lúdico da festa É madrugada/ O morro está descansando/ E o sambista vai bolando/
como contraponto às dificuldades e tristezas que perpassam o cotidiano. Uma idéia genial/ De ter um samba/ Que se considere forte/ E que
possa dar a sorte/ De ganhar o carnaval. / O morro é sonho e alegria /
Em volta do barracão/ Mas o pão de cada dia/ Acaba a inspiração/
FAVELA ( 1 9 3 3 )
Com a cabeça pesada/ Vai pra casa descansar/ A nega tá acordada/ E
Joraci Camargo e Hekel Tavares começa a reclamar / Não se come poesia/ Não se vive de esperança/
No Carnaval, me lembro tanto da favela, oi! / Onde ela, oi! / Morava! ( ... ) Acorda nego que é dia/ Olha o leite das crianças

MORRO, PAISAGEM COLORIDA ( 1 9 7 6 )


0 MORRO CANTA ASSIM ( 1 9 5 6 ) Adelino Moreira
Norival Reis e José Batista Rival
O morro assim todo enfeitado/ Dá impressão de feriado/ Que na folhi­
Morro de gente modesta/ Que vibra em dia de festa/ E vem pra cidade/ nha não é / Roupas na corda tremulando/ Coloridas, se agitando/ E
Com todos seus bambas/ Trazendo no corpo/ A ginga da raça/ Tradu­ ainda cheirando a samba (...) / Paisagem colorida/ Lá no alto/ Visão que
zindo nos pés/ A linguagem do samba ( ...) lida com o asfalto/ Só tem se é carnaval (... )
88 Um Sécul o de Favela
l "A Pa lavra é: Fave l a " 89

Mas se é no carnaval e nos desfiles das escolas que a associação 0 MORRO C ANTA ASSIM ( 1 9 5 6 )
entre samba e favela se explicita mais claramente, não se pode, porém, es­ Norival Reis e José Batista Rival
quecer o significado do samba na vida cotidiana, tampouco o papel socia­
lizador que ele aí desempenha. Todo um conjunto de músicas chama a ( ... ) Samba que é bom/ Sambado assim/ Sob a lua de prata/ No chão do
atenção para a presença do samba nos momentos marcantes do ciclo de terreiro/ O morro canta assim/ Meu samba o ano inteiro
vida dos moradores da favela, sugerindo ser quase impensável uma exis­
tência à margem dele. Repetidas alusões à capacidade musical nata permi­
tem perceber a concepção aí subjacente de que o estatuto de nascido no PRANTO DO POETA ( 1 9 5 7 )
morro tende a se confundir com o de sambista, assim como cada barraco Nélson Cavaquinho e Guilherme de Brito
se confunde com uma escola de samba. Em múltiplas composições, a cele­
bração de nascimento na favela adquire, pelo samba, uma lógica específi­ Em Mangueira quando morre/ Um poeta todos choram/ Vivo tranqüilo
ca, que volta a distinguir o morador do "morro", valorizando-o em rela­ em Mangueira/ Porque sei que alguém há de chorar quando eu morrer/
ção ao da "cidade": quem nasce no morro, "já nasce bamba". A mesma Mas o pranto em Mangueira/ É tão diferente/ É um pranto sem lenço
influência se faz sentir por ocasião da morte, quando o samba comandaria que alegra a gente/ Hei de ter alguém pra chorar por mim/ Através de
o funeral através da comemoração particular do gurufim.23 Entre um mo­ um pandeiro e de um tamborim
mento e outro, a presença sempre constante do samba a pontuar, numa
visão idealizada, a trajetória existencial do morador do morro.
C HAMINÉ DE BARRACÃO ( 1 9 5 8 )
Monsueto Menezes e João Batista
ESCURINHA ( 1 9 5 0 )
Geraldo Pereira e Arnaldo Passos Sambista é aquele/ Que a cegonha deixou/ Na chaminé do barracão/ E
( ... ) Lá no morro eu te ponho/ No samba/ Te ensino a ser bamba/ Te brincou com o tamborim ( ... )
faço a maior!
LINGUAGEM DO MORRO ( 1 9 6 1 )
G ENTE DO MORRO ( 1 9 5 3 ) Padeirinho e Ferreira dos Santos
Manoel Santana, Getúlio Macedo e Bené Alexandre
Tudo lá no morro é diferente/ Daquela gente/ Não se pode duvidar/
Vai, vai lá no morro ver/ A diferença do samba do morro para o da cida­
Começando pelo samba quente/ Que até um inocente/ Sabe o que é sam­
de/ Vai depois venha me dizer/ Se não é lá no morro que se faz um
samba de verdade. / A criança lá no morro/ Nasce com pinta de bamba/ bar ( ... )
Tem um ritmo na alma, meu Deus/ Como tem a cadência do samba./ Se
você não acredita/ Vai lá em cima apreciar/ Veja que coisa bonita/ A MEU REFRÃO ( 1 9 6 5 )
gente do morro sambar. Chico Buarque de Holanda

MAN G U E I RA ( 1 9 5 5 ) ( . . .) Eu nasci sem sorte/ Moro num barraco/ Mas meu santo é forte/ O
A . Marques, R . Roberti e N . Cavaquinho samba é meu fraco/ No meu samba eu digo/ O que é de coração/ Mas
quem canta comigo/ Canta o meu refrão
( ... ) Cada barraco da Mangueira/ É uma escola de samba

MORRO ( 1 9 5 5 ) PRAZER DA SERRINHA ( 1 9 7 8 )


Billy Bianca e Antônio Carlos Jobim Hélio dos Santos e Rubens Silva
( . . .) O morro/ Onde o dono de todo o barraco/ É forte no samba/ O Qualquer criança/ Bate um pandeiro/ E toca um cavaquinho/ Acompa­
samba é seu fraco/ O samba é tão bom nha o canto de um passarinho/ Sem errar o compasso

l

90 Um Sécu l o d e Fav e l a "A Palavra é : Fav e la··


91

V ELÓRIO NO MORRO ( S . D . ) FAC E I RA (1931)


Raul Marques Ari Barroso
L á no morro quando morre u m sambista/ É um dia d e festa/ E ninguém Foi num samba/ De gente bamba/ Que eu te conheci, faceira/ Fazendo
protesta/ As águas rolam a noite inteira/ Pois sem brincadeira o velório visagem/ Passando rasteira/ E desceste lá do morro/ Pra viver aqui na ci­
não presta/ Tem também um gurufim/ Que no fim acaba sempre em su­ dade/ Deixando os companheiros/ Tristes, loucos de saudade/ Linda cri­
ruru/ Mas é gozado pra chuchu/ Tudo em homenagem ao espírito do ança, tenho fé, tenho esperança/ Que um dia hás de voltar/ Direitinho
sambista/ Que parte alegremente pro Caju ao teu lugar

Na verdade, a marca que o samba, ao longo de quase 80 anos, vem SAUDADES DO MEU BARRACÃO ( 1935)
imprimindo â favela é tão forte que acaba por obscurecer outros ritmos e
Ataulfo Alves
correntes musicais que ali também encontram grande expressão, como o
choro, o pagode e mais recentemente o funk. Nenhum deles, entretanto, ( ... ) Hoje mora na cidade/ essa morena bonita/ Toda cheia de vaidade/
foi capaz como o samba de produzir uma identidade espaço-música. não usa mais chita/ Procura tudo esquecer/ Volta pro teu barracão/ E
ouve o que vou te dizer: / Tudo isso é ilusão! ( ...)
A favela como a não-cidade
Tal como inscrita na MPB, a representação da favela tende a orientar­ MENOS Eu ( 1936)
se por dois enfoques que, longe de serem excludentes, freqüentemente se Roberto Martins e Jorge Faraj
superpõem e se complementam. Assim, se por um lado, nas letras das com­
Eras do morro a mais formosa flor/ Todo mundo cantava em teu louvor/
posições, o retrato da favela é feito com base em suas características intrínse­
Todo mundo menos eu/ eu ( ... )/ Tu fugiste depois pra cidade/ A alegria
cas, por outro, essa mesma imagem se constrói de forma relacional, sendo
do morro morreu/ Todo mundo chorou de saudade/ Todo mundo
os elementos definidores traçados a partir da e com referência à cidade.
menos eu/ Entre as luzes fatais da cidade/ A orgia cruel te envolveu/
Quando isso ocorre, o que chama a atenção, num primeiro plano,
Todo mundo chorou de piedade/ Todo mundo menos eu ( ...)
é a rígida demarcação que se estabelece entre ambas, fazendo com que a
cidade seja vista como uma coisa e a favela como outra. Inúmeras são as
referências musicais que tratam a favela como algo alheio, algo que não 0 MORRO ESTÁ DE LUTO ( 1 953)
faz parte, algo, enfim, que é distinto da cidade, não importa a situação, Lupicínio Rodrigues
os personagens ou os sentimentos que aí estejam envolvidos.
Essa demarcação se mostra, desde o início, nas composições, já por O morro está de luto/ Por causa de um rapaz/ Que depois de beber
nós analisadas, que estabelecem o confronto entre o samba do "morro" e muito/ Foi a um samba na cidade/ E não voltou mais/ Entre o morro e
o da "cidade". a cidade/ A batida é diferente/ O morro é pra tirar samba/ A cidade é
Ela permeia também o tratamento de um tema explorado princi­ pro batente/ Eu há muito minha gente/ Avisava esse rapaz:/ Quem
palmente nas letras musicais dos anos 30 e 50: a trajetória de indivíduos sobe ao morro não desce/ Quem desce não sobe mais
que deixam a favela e buscam se afirmar na cidade.24 Tais tentativas,
como que fadadas ao insucesso, se revestem quase sempre de um caráter C ONCEIÇÃO ( 1 9 5 6 )
dramático: o afastamento de suas raízes, de seu local de criação e de seu Jair Amorim e Dunga
grupo de referência levaria o indivíduo a se "perder" na cidade. Em opo­
sição ao senso comum que faz da favela o local do perigo, é a cidade que, Conceição, eu me lembro muito bem/ Vivia no morro a sonhar/ Com
significativamente, passa aqui a exercer esse papel. A ênfase, contudo, se coisas que o morro não tem ... / Foi então que lá em cima apareceu/ Al­
centra na inviabilidade do deslocamento favela-cidade, 25 como se mura­ guém que lhe disse a sorrir/ Que, descendo à cidade, ela iria subir ... / Se
lhas intransponíveis estivessem a separar uma da outra. subiu/ Ninguém sabe, ninguém viu/ Pois hoje o seu nome mudou/ E es-
92 Um Século de Favel a "A Pa lavra é: F ave l a " 93

tranhos caminhos pisou... / Só eu sei que, tentando a subida, desceu/ E BARRACÃO ( 1 9 5 3 )


agora daria um milhão/ Para ser outra vez/ Conceição. Luís Antônio

Ai barracão,/ pendurado no morro/ e pedindo socorro/ à cidade a teus pés.


G E NTE DO MORRO ( 1 9 7 4)
Carlos Lyra e Vinicius de Moraes
LINGUAGEM DO M O R R O (1961)
Gente que nasce no morro/ Só desce do morro (... )/ Quando a ilusão de Padeirinho e Ferreira dos Santos
vencer/ Faz até esquecer/ Do chão onde nasceu a dor/ De esperar a
vinda de um grande amor/ Quem desceu para a cidade nessa ilusão/ Tudo lá no morro é diferente (...)/ Baile, lá no morro, é fandango/ Nome
Não vai ter felicidade, não vai ter não do carro é carango/ Discussão é bafafá/ Briga de uns e outros/ Dizem
que é borborim/ Velório, no morro, gurufim/ Erro, lá no morro,/ Cha­
mam de vacilação/ Grupo de cachorro,/ Em dinheiro, é um cão/ Papa­
Se, tanto na polêmica em torno do samba quanto no relato das tra­ gaio é rádio/ Grinfa é mulher/ Nome de otário é Zé Mané
jetórias individuais, a relação quase que de alteridade entre favela e cida­
de pode ser vista como um recurso historicamente datado, inúmeras ou­
MENINO DAS LARANJAS ( 1 965)
tras composições musicais vêm no entanto atestar que ela é, de fato,
transversal no tempo.
Téo de Barros

(...) Lá no morro a gente acorda cedo/ E é só trabalhar/ Comida é pouca/


A FAVELA VAI ABA IXO ( 1928) Muita roupa que a cidade manda pra lavar
J. B . da Silva (Sinhá)
(... ) Vê agora a ingratidão da humanidade/ O poder da flor sumítica M I NHA FAVELA ( 1 9 68 )
amarela/ Que sem brilho vive lá pela cidade/ Impondo o desabrigo ao Clodoaldo Brito (Codó) e Francisco Dias Pinto
nosso povo da Favela! (... )
Eu não voltei mais na favela/ Mas sei que nada melhorou/ Só tem beleza na
paisagem/ Que Noel Rosa já cantou/ E da cidade de aqui embaixo/ Quem
V I D A NO MORRO ( 1 942) olha para o barracão/ É como diz bem o ditado/ Vê cara não vê coração
Aníbal Cruz
(...) E lá no morro isto tudo é verdade/ Não há fingimento como há na ci­ 0 MORRO É C OMPLETO ( 1 9 7 6 )
dade (...) Antenor Gargalhada

Não é preciso ir à cidade/ Lá no morro temos/ Tudo que o homem quer/


0 MORRO C OM EÇ A ALI ( 1 943) Tem cabrochas bonitas/ Tem cassino e cabaré
Custódio Mesquita e Heber Boscoli
(...) O morro só principia/ onde acaba a hipocrisia/. Que domina nos sa­ REFAVELA ( 1 9 7 7 )
lões. Gilberto Gil

A refavela revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambien­


LATA D 'ÁGUA ( 1952) te efervescente/ De uma cidade a cintilar/ A refavela revela o salto que
Luís Antônio e Jota Júnior preto pobre tenta dar/ Quando se arranca/ Do seu buraco/ Pr'um
(...) Maria lava roupa lá no alto/ Lutando pelo pão de cada dia/ Sonhando bloco do BNH/ A refavela, a refavela, oh! / Como é tão bela, como é
com a vida do asfalto/ Que acaba onde o morro principia tão bela, oh! (...)
94 Um Século de Favela "A P a l avra é: Favela"
95

A favela como o locus da marginalidade urbana M E U ROMANCE ( 1 9 3 8 )


J. Cascata
Em que medida as letras da canção popular sustentam ou ne­
gam a visão que faz da favela o coração ecológico da marginalidade? ( ...) Quem é que diz/ Que o nosso amor nasceu/ Na tarde daquele me­
Em resposta a essa questão, cumpre assinalar que duas visões, diame­ morável samba/ Eu me lembro, tu estavas de sandália/ Com teu vestido
tralmente opostas, aí se apresentam, ao longo do tempo. A primeira, de malha/ No meio daqueles bambas/ Nossos olhos cruzaram/ E eu pra
associando a favela ao samba, à música, ao botequim e ao j ogo e inte­ te fazer a vontade/ Tirei fora o colarinho/ Passei a ser malandrinho/
grando todos esses elementos a uma ética da malandragem, viria em Nunca mais fui à cidade/ Pra gozar do teu carinho / Na tranqüilidade /
reforço da noção de marginalidade. No universo social que assim se E hoje faço parte da turma/ No braço trago sempre o paletó/ Um lenço
delineia, os tipos humanos da favela se reduziriam, basicamente, às fi­ amarrado no pescoço/ Já me sinto outro moço/ Com meu chinelo char­
guras masculinas do bamba, do malandro e do sambista, que teriam seu ló/ E até faço valentia/ E tiro samba de harmonia.
correspondente feminino na mulata, na cabrocha e na morena faceira que
sabem gingar e têm o samba no pé. O malandro, por sua vez, se con­ NA SUBIDA DO MORRO ( 1 9 5 2 )
funde com o brigão ou o valentão. As relações de tensão e de conflito Moreira da Silva
geralmente decorrentes da disputa amorosa envolvendo esses persona­
gens seriam resolvidas por meio do confronto direto e do uso da vio­ ( ...) Hoje venho resolvido/ Vou lhe mandar para a cidade/ De pé junto./
lência física. Dentro dessa lógica interna, haveria regras próprias: "ma­ Vou lhe tornar em um defunto. / ( ... ) Você mesmo sabe/ Que eu já fui
landro não denuncia malandro, espera a vingança", a delação sendo um malandro malvado/ Somente estou regenerado/ Cheio de malícia/
vista sempre de forma negativa, sobretudo quando a polícia entra em Dei trabalho à polícia/ Pra cachorro/ Dei até no dono do morro/ Mas
j ogo. nunca abusei de uma mulher/ Que fosse de um amigo / Agora me zan­
guei consigo/ Hoje venho animado/ A lhe deixar todo cortado/ Vou
dar-lhe um castigo/ Meto-lhe o aço no abdômen/ Tiro o seu umbigo
FORAM-SE OS MALANDROS ( 1 9 2 8 )
Casquinha e Donga
SAUDOSA MANG UEIRA ( 1 9 5 4 )
( ...) Os malandros da Mangueira/ Que vivem da jogatina/ São metidos a Herivelto Martins
valentões/ Mas vão ter a mesma sina ( ... )
( ...) Tenho saudade do terreiro e da escola/ Sou do tempo do Cartola,/
Velha guarda, o que que há? / Eu sou do tempo que o malandro não des­
QUANDO O SAMBA ACABOU ( 1 9 3 3 ) cia/ Mas a polícia no morro também não subia. ( ... )
Noel Rosa
MORRO DO MALANDRO ( 1 9 6 4 )
Lá no morro da Mangueira / Bem em frente à ribanceira / Uma cruz a
Dalton Araújo e Nino Garcia
gente vê/ Quem fincô foi a Rosinha/ Que é cabrocha de alta linha/
Que nos olhos tem um não sei quê/ Uma linda madrugada/ Ao voltar Morro do malandro e da navalha/ Morro do jogo de ronda/ Morro do
da batucada/ Pra dois malandros olhou a sorrir/ Ela foi-se embora/ E chapéu de palha/ Morro da mulata fascinante/ Tu és muito insinuante/
os dois ficaram/ Dias depois se encontraram/ Pra conversar e discu­ Pra turista que vai lá/ (breque) Que vai lá devagar
tir/ ( ... ) Na segunda batucada / Disputando a namorada / Foram os
dois improvisar/ E como em toda façanha/ Sempre um perde e outro
MALANDRO QUANDO MORRE ( 1 9 6 5 )
ganha/ Um dos dois parou de versejar / E perdendo a doce amada /
Chico Buarque
Foi fumar n a encruzilhada/ Ficando horas em meditação/ Quando o
sol raiou foi encontrado/ Na ribanceira esticado/ Com um punhal no Cai no chão/ Um corpo maltrapilho/ Velho chorando/ Malandro do
coração morro era seu filho ( ... )/ Menino quando morre vira anjo/ Mulher vira
96 Um Século de Favela "A Palavra é: Fave l a "
97

uma flor no céu/ Pinhos chorando/ Malandro quando morre/ Vira M I NHA EMBAIXADA C HEGOU ( 1 9 3 4 )
samba Assis Valente

( ... ) Eu ,vi o nome da Favela/ Na luxuosa Academia/ Mas a Favela para


MULATO CALADO ( 1 9 6 7 ) dotô/ E morada de malandro/ E não tem nenhum valor/ Não tem dota­
Wilson Batista e Benjamim Batista Coelho res na Favela/ Mas na Favela tem dotares/ O professor se chama
bamba/ Medicina na macumba/ Cirurgia, lá, é samba
Vocês estão vendo aquele mulato calado/ Com um violão do lado/ Já
matou um, já matou um. / Numa noite de sexta-feira/ Defendendo a sua
companheira/ A polícia procura o matador/ Mas em Mangueira/ Não RECENSEAM ENTO ( l 9 4 0 )
existe delatm (...) Assis Valente

Em 1940, lá no morro, / Começaram um recenseamento/ E o agente re­


MALANDRANDO ( 1 9 8 7 ) censeador/ Esmiuçou a minha vida/ Que foi um horror/ E quando viu a
Sílvio Lana, Luís Melodia e Perinho Santana minha mão/ Sem aliança/ Encarou para a criança/ Que no chão dor­
mia/ E perguntou/ Se o meu moreno era decente/ Se era do batente/
Dum coro de gato/ Nasci um surdo, repicado / A repicar no ouvido do
Ou era da folia/ Obediente sou a tudo que é da lei/ Fiquei logo sossega­
mundo / Sou brasileiro, bem mulato/ Bamba e valentão/ Sou o cupido
da/ E lhe falei então/ - O meu moreno é brasileiro/ É fuzileiro/ E é
do amor/ De minha raça/ Tocando um samba/ Nas cordas de um vio­
quem sai com a bandeira/ Do seu batalhão/ A nossa casa/ Não tem
lão/ De um violão/ Se a vida é um jogo de esperteza/ Aprendi a ser co­
nada de grandeza/ Nós vivemos na pobreza/ Sem dever tostão
ringa com firmeza/ Jogo de pernas, capoeira/ É ginga pra pular/ É po­
pular/ Se a verdade do bacana/ De muitas falas, pouco engana/ A
minha não tem não/ É só o fio da navalha/ Que trago firme na mão/ Eu VIDA NO MORRO ( 1 9 4 2 )
sou malandro e ele otário/ E o tempo dirá quem tem razão Aníbal Cruz
Tudo no morro é tão diferente/ Todo vizinho é amigo da gente/ Até o
Mas se o conjunto dessas letras, produzindo uma visão mítica da batuque nossa maravilha/ Toda cabrocha é decente e família
marginalidade, tende por isso mesmo a reforçar o estigma que historica­
mente foi lançado sobre a favela como uma espécie de território sem lei e
sobre seus moradores como "classes perigosas", em outras tantas letras a
PROTESTO ( 1 9 60 )

imagem se dá exatamente na direção contrária. Como que respondendo


Antônio Domingues eAntônio Ferreira de Souza
àquele estigma, as letras das canções são formuladas como uma reação e O morro pra uns e outros, não é mais de sambas/ É o local onde se escon­
uma valorização positivas dos moradores da favela, as quais se cons­ dem os bambas/ Que põem gente pacata em sobressalto/ Mentira. / E
troem sobretudo pela noção do trabalho: ao estigma da malandragem se neste samba lanço meu protesto! / Quem vive lá trabalha e é honesto
contrapõe a representação de um trabalho duro e mal remunerado; ao da (bis) / Só se é crime não poder morar no asfalto/ Melhores dias hão de
criminalidade, a caracterização de uma gente decente e honesta, que socia­ vir/ Ser pobre não é delinqüir
liza seus filhos por meio de uma ética que enaltece o trabalho e recusa a
delinqüência. "Ser pobre não é delinqüir".
É PRECISO ( 1 9 7 4 )
Gonzaguinha
NÃO Q U ERO SABER MAIS DELA ( 1 9 2 8 )
J. B. da Silva (Sinhá) Minha mãe no tanque lavando roupa/ Minha mãe no tanque lavando
louça/ Lavando roupa/ Lavando louça/ Levando a luta cantando um
( ...) Eu bem sei que és donzela/ Mas isto é uma coisa à toa/ Mulata, lá na fado/ Alegrando a labuta/ Labutar é preciso, menino/ Lutar é preciso,
Favela/ Mora muita gente boa ( . ..) menino/ Lutar é preciso/ ( ... ) Mas mãe não se zangue/ Que as mãos eu
98 Um Século de Favela "A P a l avra é: Favela" 99

não sujo/ Apenas eu quis conhecer a cidade/ Saber da alegria e da felici­ movimentos culturais. Engajamento e militância política se tornam pala­
dade/ Que vendem barato/ Em qualquer quitanda. / Mas volto arrasa­ vras-chave do período; e no cinema, no teatro e na música, as questões li­
do/ Tá tudo fechado/ Talvez haja falta/ Não há no mercado gadas à terra, às desigualdades e às condições de vida do "povo" são de­
batidas e incorporadas ao projeto de transformação que se pretendia
V ÍTIMAS DA SOCIEDADE ( 1 9 9 2 ) imprimir à sociedade.26 Com o regime autoritário e a repressão política
Crioulo Doido e Bezerra d a Silva que se instalam no país em 1964, cresce a importância da cultura, em es­
pecial da música, como veículo de contestação política. Aliás, é nesse pe­
Se vocês estão a fim de prender o ladrão/ Podem voltar pelo mesmo ca­ ríodo que se cunha a expressão música de protesto.
minho/ O ladrão está escondido lá embaixo/ Atrás da gravata e do cola­ Por seu crescimento e visibilidade social, a favela, sobretudo no
rinho/ Só porque moro no morro/ A minha miséria a vocês despertou/ Rio, passaria a ser um objeto privilegiado pela produção musical, embo­
A verdade é que vivo com fome/ Nunca roubei ninguém/ Sou um traba­ ra do ponto de vista formal a categoria utilizada fosse basicamente morro.
lhador/ Se há um assalto a banco/ Como não podem prender/ O pode­ As músicas desse período enfatizam a temática da carência e da fome, la­
roso chefão/ Aí os jornais vêm logo dizendo/ Que aqui no morro só mentam a sorte do morro e de seus moradores e insinuam que esse qua­
mora ladrão/ Falar a verdade é crime/ Porém eu assumo o que vou dro deve ser mudado. O tom de lamento e de denúncia, a que se asso­
dizer/ Como posso ser ladrão/ Se eu não tenho nem o que comer/ Não ciam quase que invariavelmente dor e tristeza, contagia o próprio samba,
tenho curso superior/ Nem o meu nome eu sei assinar/ Aonde foi que que se transforma, ele também, num "canto triste".
se viu um pobre favelado/ Com passaporte pra poder roubar/ No
morro ninguém tem mansão/ Nem casa de campo pra veranear/ Nem
iate pra passeios marítimos/ E nem avião particular/ Somos vítimas de FEIO NÃO É BON ITO ( 1 9 6 3 )
uma sociedade/ Famigerada e cheia de malícia/ No morro ninguém tem Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri
milhões de dólares/ Depositados nos bancos da Suíça
( . . . ) Feio não é bonito/ O morro existe mas pede pra se acabar/ Canta
mas canta triste/ Porque tristeza é só o que se tem pra contar/ Chora
A resposta ao estigma, que de início se esboça tímida e é formula­ mas chora rindo/ Porque é valente e nunca se deixa quebrar/ Ama/ O
da sobretudo de forma irônica, ganha ao longo do tempo uma conotação morro ama/ O amor aflito, o amor bonito/ Que pede outra história
de protesto que culmina com o modo pelo qual a dupla de compositores
Crioulo Doido e Bezerra da Silva reinterpreta o fenômeno da criminalida­
de urbana. Uma vez mais, a oposição favela (= morro = acima)/ cidade 0 MORRO NÃO TEM VEZ ( 1 9 6 3 )
("embaixo") se faz presente, mas agora para denunciar que os verdadei­ A. C . Jobim e Vinicius de Moraes
ros criminosos são os do colarinho branco e para elaborar a imagem dos
favelados (= pobres) como vítimas da sociedade. Nesse sentido, ela já an­ O morro não tem vez/ E o que ele fez/ Já foi demais./ Mas olhem bem
tecipa a representação que será tratada a seguir - a da favela como ques­ vocês/ Quando derem vez ao morro/ Toda a cidade vai cantar/ Morro
tão e responsabilidade social. pede passagem/ Morro quer se mostrar/ Abram alas pro morro/ Tam­
borim vai falar/ É um, é dois, é três/ É cem, é mil a batucar/ O morro
não tem vez/ Mas se derem vez ao morro/ Toda a cidade vai cantar
A favela como questão social
OPINIÃO ( 1 96 3 )
Pano de fundo quase sempre presente nas diversas composições
musicais, a noção da favela como questão social só começa, no entanto, a Zé Kéti
ganhar contornos mais nítidos a partir dos anos 60. A efervescência polí­ Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até/ deixar-me sem
tica que marca essa década e que adquire, na verdade, uma característica comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro/ Eu não saio
de simultaneidade internacional não deixaria também de se refletir nos não ( ... )
100 Um Sécul o de Favel a "A Pal avra é : Favel a " 101

0 FAVELADO ( 1 9 6 5 )
recente. Ao chamar a atenção para o fenômeno, as letras evidenciam sobre­
Zé Kéti
tudo a violência policial e a violência do crime organizado, que se abatem
( ... ) O morro sorri/ Mas chora por dentro/ Quem vê o morro sorrindo/ sobre a favela e fazem de jovens moradores suas vítimas principais. O que
Pensa que ele é feliz, coitado/ O morro tem sede/ O morro tem fome/ O apenas estava implícito ou era pontuado em composições dos anos 60,
morro sou eu, o favelado como Garoto do morro Oacobina e Latini, 1965), Fecharam mais um (Amoldo,
1967) e Charles Anjo 45 Oorge Benjor, 1969), toma-se uma referência genera­
lizada e quase que obrigatória nas duas últimas décadas.
F I CA ( 1 9 6 5 )
Chico Buarque
TIRO DE MISERICÓRDIA ( 1 9 7 7 )
Diz que eu não sou de respeito/ Diz que não dá jeito/ De jeito nenhum/ João Basco e Aldir Blanc
Diz que sou subversivo/ Um elemento ativo/ Feroz e nocivo/ Ao bem­
estar comum/ Fale do nosso barraco/ Diga que é um buraco/ Que nem O menino cresceu entre a ronda e a cana/ Correndo nos becos que nem
queiram ver ( ... )/ Mas fica/ Mas fica ao lado meu ( ... ) ratazana/ Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha/ Subindo em
pedreira que nem lagartixa/ Borel, Juramento, Urubu, Catacumba/ Nas
rodas de samba, no eró da macumba/ Matriz, Querosene, Salgueiro, Tu­
GAROTO DO MORRO ( 1 9 6 5 )
rano/ Mangueira, São Carlos, menino mandando ( ...) / Grampearam o
Jacobina e Murilo Latini
menino de corpo fechado/ E barbarizaram com mais de cem tiros. /
Garoto que furta ao comando da fome/ Que atende por Zé, por Tião Treze anos d e vida sem misericórdia/ E a misericórdia n o último tiro./
qualquer nome/ Garoto promessa de bamba no duro/ Garoto manchete Morreu como um cachorro e gritou feito um porco/ Depois de pular
de crime futuro/ Bem outro seria seu negro destino/ Se o morro em que igual a macaco/ Vou jogar nesses três que nem ele morreu:/ Num jogo
vive tivesse outro norte/ Enquanto és criança, garoto, menino/ Enquan­ cercado pelos sete lados.
to é possível mudar tua sorte.
0 INVOCADO ( 1 9 7 8 )
Tomando de empréstimo as palavras de Vinicius de Moraes e atri­
Casquinha
buindo-lhes um outro sentido, afirmava-se, então, que: "Mais que nunca O crioulo no morro está invocado/ O crioulo no morro está no miserê/
é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar a cidade/ A tristeza que a Desce o morro não encontra trabalho/ Nem encontra o feijão pra comer/
gente tem/ Qualquer dia vai se acabar ... " Assim, tudo se passava como O crioulo no morro está muito invocado ( ... )
se o simples enunciado das palavras - que nas entrelinhas deixava
transparecer a denúncia do presente e a esperança de mudança futura -
já estivesse investindo o canto dos anos 60 de uma função social transfor­ 0 MEU G U R I ( 1 9 8 1 )
madora. Chico Buarque
Vista com um intervalo de mais de 30 anos, essa música de protes­ Quando, seu moço, nasceu meu rebento/ Não era o momento dele reben­
to chega a parecer ingênua, quando confrontada com as composições tar/ Já foi nascendo com cara de fome/ E eu não tinha nem nome pra lhe
que surgem entre o final dos anos 70 e os dias atuais. Nestas, a lingua­ dar/ Como fui levando, não sei lhe explicar/ Fui assim levando ele a me
gem é mais direta e contundente, e o tratamento da favela como questão levar/ E na sua meninice ele um dia me disse/ Que chegava lá/ Olha aí,
social se faz de inúmeros ângulos que se complementam: o da inseguran­ olha aí, olha aí,/ Olha aí, ai é o meu guri/ Chega no morro com carrega­
ça econômica trazida pelo desemprego, pela precariedade do trabalho e mento/ Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador/ Rezo até ele chegar
pela insuficiência de salários; o do descaso das autoridades políticas e da cá no alto/ Essa onda de assalto tá um horror/ Eu consolo ele, ele me
falta de uma assistência pública efetiva; e o da discriminação social. consola/ Boto ele no colo pra ele me ninar/ De repente acordo, olho pro
É, porém, pela violência constitutiva do cotidiano das favelas que a lado/ E o danado já foi trabalhar,/Olha aí/ Olha aí, olha aí, olha aí,/
questão social emerge, clara e dramaticamente, na produção musical mais Olha aí, ai é o meu guri/ E ele chega / Chega estampado, manchete, retra-
102 Um Século de Favela "A Palavra é : Favela " 103

to/ Com venda nos olhos, legenda e as iniciais/ Eu não entendo essa Pois moro numa favela e sou muito desrespeitado/ A tristeza e a alegria
gente, seu moço/ Fazendo alvoroço demais/ O guri no mato, acho q�e aqui caminham lado a lado. / Eu faço uma oração para uma santa proteto­
tá rindo/ Acho que tá lindo, de papo pro ar/ Desde o começo eu nao ra/ Mas sou interrompido a tiros de metralhadora ( ...) / Pessoas inocentes
disse, seu moço/ Ele disse que chegava lá/ Olha aí, olha aí, olha aí,/ que não têm nada a ver/ Estão perdendo hoje o seu direito de viver
Olha aí, ai é o meu guri.

RAP DO BOREL ( 1 9 9 4 )
ALAGADOS ( 1 9 8 6 ) William e Duda
Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone
( ... ) Foram muitos amigos que foram para o céu/ Por isso William e
( ... ) Palafitas, tristes farrapos/ Filhos da mesma agonia/ E a cidade de Duda pedem a paz pro Morro do Borel/ Viemos cantar para poder lem­
braços abertos num cartão postal/ Com os punhos fechados da vida brar/ Um pouco dos amigos que se foram/ pra nunca mais voltar
real/ Lhes nega a oportunidade/ Mostra a face dura do mal/ Alagados,
trench town, favela da Maré/ A esperança não vem do mar, nem das ante­
nas de TV/ A arte é de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê Na abordagem da favela como questão social, as letras apontam,
ainda, para um impasse. Assim, se por um lado há o reconhecimento de
que a resolução dos conflitos e contradições inerentes à questão passa ne­
S E NÃO AVISAR, O B I C H O PEGA ( 1 9 9 2 ) cessariamente pelo campo político, por outro são marcantes a crítica às
Jorge Carioca, Marquinho e P. Q . D. Marcinho instituições públicas, o descrédito em relação aos políticos e a impaciên­
cia com a falta de iniciativas.
( ...) O sangue bom falou/ Se der mole aos "home", / O bicho pega/ Pois
lá na favela o olheiro é maneiro, esperto chinfreiro/ E não fica na cega/
Até mulher que tá barriguda/ Na hora da dura segura e nega/ E se tem Nos BARRACOS DA C I DADE ( 1 9 8 5 )
um parceiro na lista/ O malandro despista e não escorrega/ Se entra em Liminha e Gilberto Gil
cana ele é cadeado/ Morre no pau-de-arara, Ninguém entrega ( ... )
Nos barracos da cidade/ Ninguém mais tem ilusão/ No poder da auto­
ridade/ De tomar a decisão/ E o poder da autoridade/ Se pode, não
Eu Sou FAVELA ( 1 9 9 4 ) faz questão/ Se faz questão, não consegue/ Enfrentar o tubarão. / Ô, ô, ô,
Noca da Portela e Sérgio Mosca ô ô/ Gente estúpida/ Ô, ô, ô, ô ô/ Gente hipócrita
Sim, mas a favela nunca foi reduto de marginal, eu falei/ A favela nunca
foi reduto de marginal/ Só tem gente humilde, marginalizada/ E essa CANDI DATO CAô CAô ( 1 9 9 2 )
verdade não sai no jornal. / A favela é um problema social/ A favela é Walter Meninão e Pedro Butina
um problema social/ É mas eu sou favela/ E posso falar de cadeira/
Aí meu irmão, vocês não tomam vergonha. Ainda não aprenderam a
Minha gente é trabalhadeira/ E nunca teve assistência social/ Sim mas
votar/ Só pára na podre, malandro/ Ele subiu o morro sem gravata/ Di­
só vive lá/ Porque para o pobre não tem outro jeito/ Apenas só tem o di­
zendo que gostava da raça/ Foi lá na tendinha bebeu cachaça/ Até bagu­
reito/ A um salário de fome/ E uma vida normal/ A favela é um proble­
lho fumou/ Jantou no meu barraco/ E lá usou lata de goiabada como
ma social./ A favela é um problema social.
prato/ Eu logo percebi, é mais um candidato/ Para a próxima eleição/
Ele fez questão/ De beber água da chuva/ Foi lá no terreiro pedir ajuda/
RAP DA FELICIDADE ( 1 9 9 4 ) E bateu cabeça no gongá/ Mas ele não se deu bem/ Porque o guia que
Julinho Rasta e Katia estava incorporado/ Disse esse político é safado/ Cuidado na hora de
votar/ Também disse, meu irmão/ Se liga no que eu vou lhe dizer/ Hoje
Eu só quero é ser feliz/ Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é/ ele pede seu voto/ Amanhã manda a polícia lhe bater/ Amanhã manda
E poder me orgulhar/ E ter a consciência que o pobre tem seu lugar ( ... ) / os homens lhe prender
104 Um Século de F ave l a "A P alavra é: Favela " 105

RAP DA FELICIDADE ( 1 99 4 ) sa musical e intermediando nosso encontro com os compositores Nelson Sar­
Julinho Rasta e Katia gento e Walter Alfaiate.

( ... ) Já n ã o agüento mais essa onda de violência/ S ó peço à autoridade 4. Autor de inúmeros e relevantes livros sobre MPB, o mais recente em parce­
um pouco mais de competência ( ... )/ Trocada a presidência, uma nova ria com Zuza Homem de Mello (A ca11ção 110 tempo: 85 aizos de músicas brasilei­
esperança/ Sofri na tempestade, agora quero a bonança/ O povo tem a ras - 1 901-1 985), ainda no prelo, Jairo Severiano divide com Alcino Santos,
força só precisa descobrir/ Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui Gracio Barbalho e M. A. de Azevedo a autoria de uma referência obrigatória
para a pesquisa musical no Brasil: o levantamento de toda a discografia em
78 rpm produzida no período de 1902 a 1964, com indicação de título, auto­
Concluindo, gostaríamos de reafirmar a riqueza da canção popu­ res, intérpretes, data das diversas gravações e nome da gravadora. Nela nos
lar como fonte documental para um estudo das representações da favela. baseamos, em grande medida, para proceder a nosso próprio levantamento.
Longe de se reduzir a meras referências descritivas, a abordagem do 5. A citação é duplamente interessante: por um lado, por introduzir a presença
tema na MPB torna possível evidenciar, de um lado, a extensa e intrinca­ das "cabrochas" e mostrar seu papel na disseminação do termo favela; por
da rede de relações sociais que se atualizam na favela e, de outro, a dinâ­ outro, por indicar que o fenômeno da ocupação dos morros teria precedido a
mica de sua própria transformação. Por meio de uma linguagem multifa­ chegada das tropas de Canudos. Convém, no entanto, compará-la com os re­
cetada, em que se combinam a idealização e o realismo cortante, o sultados de pesquisas recentes que igualmente tratam da origem das favelas
protesto e a ironia, as músicas sobre a favela, como fragmentos de um cariocas. Num primeiro plano, a citação vem ao encontro do argumento de
quebra-cabeça, articulam-se em seu conjunto para reconstruir, poetica­ Vaz de que, antes da chegada dos ex-combatentes de Canudos, o morro da
mente, aquele espaço social. Providência já começara a ser ocupado por antigos moradores da área central
da cidade, principalmente pelos que dali haviam sido expulsos quando da des­
truição do maior cortiço do Rio, o Cabeça de Porco, em 1893 (Vaz, 1986:35). A
segunda observação está relacionada ao local específico onde teriam surgido
as favelas. Dias da Cruz (apud Silva et alii, 1980:18-9) aponta para o morro da
Notas

1. Como veremos adiante, duas músicas com o mesmo nome, Morro da Fave­ Providência/Favela como tendo tido a primazia absoluta, o que é relativizado
la, gravadas em 1917, teriam precedido, no tempo, a composição de Sinhô. pelos trabalhos de Abreu (1986, 1993). Indica este autor que entre 1893 e 1894,
Ambas, porém, eram instrumentais, o que faz de A Favela vai abaixo e Não por ocasião da Revolta da Armada e com o intuito de resolver o problema de
quero saber mais dela, gravadas em janeiro de 1928, as duas primeiras músicas alojamento dos soldados, o governo teria autorizado alguns deles a construir
a introduzirem a temática da favela em suas letras. barracões numa das encostas do morro de Santo Antônio, e que a essa ocupa­
ção legal de terras se seguiu uma outra, denunciada em documento da própria
2. Referimo-nos, aqui, aos estudos desenvolvidos no Departamento de Estu­
dos e Indicadores Sociais do IBGE sobre condições de vida das populações prefeitura, em decorrência da qual já se contabilizavam, em 1897, "43 barra­
de baixa renda nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Porto Alegre e cões de madeira, cobertos de zinco, construídos ilegalmente em terrenos do go­
Recife, bem como à investigação sobre favelas do Rio de Janeiro. Ver Souto verno". Com o que, conclui o autor, tanto o morro da Providência quanto o de
de Oliveira (1977, 1978 e 1980). Santo Antônio deveriam ter seus nomes igualmente inscritos na origem das fa­
velas cariocas (Abreu, 1993:188-9). A terceira observação remete à "data de
3. Ainda que a lista seja bem mais ampla, gostaríamos de deixar registrado nascimento": 1897. Tratando-se de um processo e, mais do que isso, de um pro­
um agradecimento muito especial a dois amigos: o primeiro é João Baptista cesso sobre cujas origens é bastante difícil obter informações precisas, qual­
Ferreira de Mello, professor e pesquisador de geografia, cuja tese de mestra­ quer corte é necessariamente arbitrário. Não obstante, o ano de 1897 é, sem dú­
do "O Rio de Janeiro dos compositores da MPB: uma introdução à geografia vida, uma referência central, seja quando se considera o morro da Providência
humanística" serviu de inspiração e fonte para este trabalho e de quem rece­ (pela chegada das tropas), seja o de Santo Antônio (pelo registro documental
bemos, ainda, valiosos subsídios sob a forma de fitas, vídeos e indicações bi­ da ocupação dos terrenos). A última observação diz respeito à expressiva pre­
bliográficas. O segundo é André Weller, músico, pesquisador e integrante do sença de soldados nas primeiras levas de ocupação dos morros e ao caráter
conjunto de samba Família Roitman, que desde o início partilhou de nosso legal de que se revestiu essa ocupação, fenômeno já apontado por Abreu
trabalho, revelando-nos composições que eram fruto de sua própria pesqui- (1986:57) no caso dos morros da Providência e de Santo Antônio e que também
106 Um Sé c u l o de Favel a º' A Palavra é: Favel a " 107

se reproduziria no caso da Mangueira, quando soldados do 9º Regimento de dos, seja qual for o pretexto de que se lance mão para obtenção de licença,
Cavalaria, ainda nos anos 1900, teriam sido autorizados pelo comandante a salvo nos morros que ainda não tiveram habitações e mediante licença" -,
aproveitar o material proveniente da demolição de casas na Quinta da Boa indaga se não haveria aí uma certa legitimação da ocupação dos morros.
Vista para construir suas próprias moradias no morro da Mangueira.
12. É importante ressaltar que o quadro subestima o número de composições
6. Apenas aqui reproduzimos o título da composição com sua grafia origi­ que usam nomes próprios de favelas, de vez que estas só aparecem contabili­
nal; em todas as demais referências musicais, adaptamos título e letra à gra­ zadas na ausência dos termos favela ou morro.
fia atual.
13. Qualificação que é recusada pelo compositor que afirma que "nesse país,
7. Na discografia em 78 rpm, a primeira composição é definida como maxi­ quando se fala a realidade dizem que é protesto" - (Jornal do Brasil, 5-8-1997).
xe, e nela aparecem como autores apenas os nomes de Passos e Barnabé. Não
14. A etimologia do termo viria, assim, reforçar a importância da presença de
há indicação da data de gravação, embora conste que foi feita pela Banda do
soldados na formação das favelas. Ainda de acordo com o mesmo dicionário,
Batalhão Naval. Na segunda composição, também com o nome de Morro da
a primeira definição de barraca seria "abrigo de lona, náilon etc. usado por
Favela e sob o selo Odeon, os créditos de autoria e interpretação são de Pixin­
soldados em campanha" (Buarque de Holanda, 1986:234).
guinha. Consultando Jairo Severiano sobre a possibilidade de se tratar da
mesma música ou de músicas diferentes, concluímos com ele que ambas as 15. Um processo que não parece ter sido captado pelo dicionário nem pelos re­
hipóteses eram plausíveis. A dúvida só poderia ser eliminada mediante o censeamentos demográficos, que desde 1950 adotam praticamente os mesmos
confronto das partituras, o que, entretanto, não nos foi possível fazer. Foi, critérios - predominância de casebres ou barracões de aspecto rústico; cons­
ainda, Jairo Severiano quem nos forneceu a data da gravação de ambas truções sem licenciamentos e sem fiscalização em terrenos de terceiros ou em
(1917) e confirmou ser freqüente, à época, a confusão entre ritmos musicais, propriedade desconhecida; ausência no todo ou em parte de rede sanitária,
tratados ora como maxixe, ora como samba ou choro. luz, telefone e água encanada; falta de arruamento, numeração ou emplaca­
mento - para definir as favelas. Tabulações especiais do recenseamento de
8. Assim, por exemplo, observa Abreu (1993:189) que, na imprensa, "fave­
1970 demonstravam, contudo, que, já naquele ano, 57,4'X, dos domicílios nas fa­
la, durante toda a década de 1910, era nome próprio, escrito sempre com F
velas do Rio de Janeiro eram duráveis, 35,3% eram ligados à rede geral de
maiúsculo, e caracterizava apenas o morro da Favela. A partir dos anos 20,
água e 80% tinham iluminação elétrica. O que aponta claramente para a inade­
entretanto, e acompanhando sua difusão espacial, o termo se substantivou e
quação daqueles critérios. Sobre esse assunto, ver Souto de Oliveira (1980:3-5).
passou a se aplicar a todos os outros aglomerados de barracos existentes na
cidade". O que, se vale para a imprensa, certamente não se aplica à música 16. Não obstante, a ocupação ilegal do terreno - na visão de inúmeros cien­
popular na qual a ambigüidade no uso do termo e sua dupla grafia permane­ tistas sociais como Anthony e Elisabeth Leeds, Boaventura de Souza Santos e
ceriam ainda por várias décadas. Janice Perlman, entre outros - é o critério básico, quando não o único, de de­
finição para a favela. Ver Souto de Oliveira (1980:5-8).
9. Segundo a pesquisadora Cleonice Lima, Não quero saber mais dela repre­
sentava um "verdadeiro espelho da época; mostrava um 'português' e uma 17. O que vem ao encontro das observações de Anthony e Elizabeth Leeds,
crioula, naquelas tentativas de mancebia comuns na época, quando jovens lu­ que, examinando as relações entre a ação do Estado em termos de planeja­
sitanos chegados ao Brasil buscavam uma companheira para cuidar de suas mento urbano e a questão específica das favelas no Rio, afirmam que, desde
coisas no barracão que construíam no morro". Ver Nova história da música po­ os anos 30, a natureza da solução política varia diretamente com relação à
pular brasileira: Sinhô (1977). ideologia nacional e à ordem política, prevalecendo o princípio de urbaniza­
ção em regimes de maior abertura política e, inversamente, o de remoção em
10. Duas únicas exceções aí se apresentam: a palavra favela aparece com regimes autoritários (Leeds & Leeds, 1978:188).
maiúscula na música de Zé Kéti, Nega Dina (1964), e na de Bezerra da Silva e
Pedro Butina, Aqueles morros (1994); em ambos os casos uma referência explí­ 18. No artigo "Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil", Valladares
cita ao morro da Favela. examina a trajetória histórica da noção de pobreza como construção social e
objeto de política pública, com base em três momentos distintos: a virada do
11. A esse propósito é interessante o registro feito por Larry Benchimol século, os anos de 50/60 e os anos 70/80. Na abordagem desses três perío­
(apud Cabral, 1996:31), que, citando um trecho do decreto de urbanização, as­ dos, mostra a autora como a noção da pobreza urbana se faz acompanhar
sinado por Pereira Passos em 1903 - "Os barracões toscos não serão permiti- também de uma determinada noção de territorialidade. Assim, se no começo
108 Um S é cu Io de

do século o locus por excelência dos pobres corresponde ao cortiço, nos anos
50/60 tal papel se desloca para a favela e, nos anos 70/80, para a periferia das
Favela "A P a l avra é: Favela "

Referências bibliográficas
109
-1
. . .. ..... .. .. ..... . . ........ .............

grandes metrópoles. Abreu, Maurício de Almeida. Da habitação ao hábitat: a questão da habita­


ção popular no Rio de Janeiro e sua evolução. Revista do Rio de Janeiro,
19. E este seria um dos motivos que alimentariam, nos anos 30, a célebre po­ 1 (2), jan./abr. 1986.
lêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista.
---. A favela está fazendo 100 anos. ln: 3º Simpósio Nacional de Geografia
20. Ver Silva et alii (1980:40-3) e Cabral (1996:44-7). Urbana. Anais. Rio de Janeiro, 1993.

21. Convém ressaltar que, se os desfiles funcionam como um vigoroso estí­ Buarque de Holanda, Aurélio. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Ja­
mulo à competição, eles não são o fator preponderante para a produção mu­ neiro, Nova Fronteira, 1986.
sical. Os espaços no interior das favelas dedicados ao samba, bem como a Buarque de Holanda, Chico. Chico Buarque: letra e músicn. São Paulo, Compa­
concentração de compositores aí residentes, são elementos essenciais a essa nhia das Letras, 1989.
produção. Sem o que não se compreenderia a quantidade de músicas sobre a
Buarque de Holanda, Heloísa. Impressões de viagem - CPC, v11ngu11rd11 e des-
Mangueira - mais de 120 composições registradas -, em muito superior à bunde: 1 960/1 970. São Paulo, Brasiliense, 1980.
de qualquer outra favela.
Cabral, Sérgio. As escolas de s111nb11 do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar, 1996.
22. Numa segunda acepção, o termo serviria para designar o local, geralmen­
te um amplo galpão, onde seriam construídos os carros alegóricos, instru­ ---. Pixingu i11/z11 vida e obra. Rio de Janeiro, Lumiar, 1997.
mentos, fantasias e adereços a serem utilizados pelas escolas de samba nos Gil, Gilberto. Gilberto Gil: todas 11s letras. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
desfiles. É assim, por exemplo, que barracão é empregado na letra de 01/lll o
Gomes, Bruno Ferreira. Wilson Batista e sua épocn. Rio de Janeiro, Funarte, 1985.
leite das ch1111ç11s, aqui reproduzida.
Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janei-
23. Segundo Silva et alii (1980:80), "o gurufim é uma forma de cerimônia bas­ ro, Zahar, 1978.
tante diferente do velório e calcada nos funerais africanos. Enquanto se vela
o defunto, fazem-se brincadeiras, adivinhações, bebe-se cachaça, comem-se Máximo, João & Didier, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília. Linha Gráfi­
iguarias..." ca/ UnB, 1990.
Mello, João Baptista Ferreira de. O Rio de Janeiro dos compositores da MPB:
24. Um tema que seria retomado, nos anos 70, por Carlos Lyra e Vinicius de
uma introdução à geografia humanística. Rio de Janeiro, UFRJ, 1991.
Moraes na música Gente do morro, aqui reproduzida, bem como por Paulo
(Tese de Mestrado.)
Pontes e Chico Buarque de Holanda na peça Gota d'águn.
Moura, Roberto. Tia Ci11t11 e 11 peque1111 Áfricn 110 Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
25. Uma única composição - Meu rom1111ce (1938), de J. Cascata - trata do Funarte, 1983.
percurso inverso, cidade-favela, contando a história bem-sucedida de um
homem que, por amor a uma morena, se fixa na Mangueira e adere ao estilo Nov11 lzistóri11 da música popular brasileira. São Paulo, Abril Cultural, 1977.
de vida da "malandragem". Pimentel, Luís & Vieira, Luís Fernando. Wilson Batista: 1111 corda b11mb11 do
s111nb11. Rio de Janeiro, Relume-Dumará; Prefeitura do Rio de Janeiro, 1996.
26. Um espetáculo musical realizado no Rio de Janeiro em dezembro de
1964, o mitológico Opinião, seria emblemático nesse aspecto, ao trazer para a Santos, Alcino; Barbalho, Gracio; Severiano, Jairo & Azevedo, M. A. Discogra­
cena Nara Leão, a voz da artista de classe média engajada, o cantor nordesti­ fia brasileira 78 rpm: 1 902-1964. Rio de Janeiro, Funarte, 1982.
no João do Valle, a voz da pobreza no campo, e o músico e compositor Zé Silva, Marília T. Barbosa da; Cachaça, Carlos & Oliveira Filho, Arthur L. Fnln
Kéti, a voz da pobreza urbana. O espetáculo, que permaneceu por longo Mangueira! Rio de Janeiro, José Olympio, 1980.
tempo em cartaz, viria a se converter numa espécie de rito cívico, de celebra­
ção coletiva, em que "a platéia fechava com o palco, todos em casa, sintoniza­ Souto de Oliveira, Jane (org.). Condições de vida da populnção de baixa re11d11 1111
dos secretamente no fracasso de 1964, vivido como um incidente passageiro, região metropolitmw do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IBGE, 1977.
um erro corrigível, uma falha ocasional cuja consciência o rito superava" --- (org.). Co11dições de vida da população de b11ix11 renda 1111 região 111etropolit11-
(Buarque de Holanda, 1980:35). n11 de Porto Alegre. Rio de Janeiro, IBGE, 1978.
"A P a l avra é: Fave la" 111
Um Século de Fave l a
1 10

-- (org.). Favelas do Rio de Janeiro. Rio d e Janeiro, IBGE, 1980.


20. Desperta favela Zé Pretinho e Geraldo Gomes
Tinhorão, José Ramos. Pequena história da música popular; da modinha à lamba- 21. É favela
da. São Paulo, Art, 1991. Candeia e Jaime 1979
22. É feio, mas é bom Assis Valente 1939
Valladares, Licia do Prado. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Bra-
sil. ln: Boschi, Renato R. Corporativismo e desigualdade - a construção do es- 23. É preciso Gonzaguinha 1974
paço público no Brasil. Rio de Janeiro, Rio Fundo; Iuperj, 1991. 24. Encanto da paisagem Nélson Sargento 1986
Vaz, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. Revista do Rio de Janeiro, 1 25. Encurta a saia Casado, Almirante e João de 1931
(2), jan./ abr ., 1986. Barro
26. Enqua11to houver Mangueira Roberto Roberti e Arlindo 1959
Marques Jr.
27. Escurinha Geraldo Pereira e Arnaldo Passos 1950
RELAÇÃO DE MÚSI CAS CITADAS 28. Escurinlw Geraldo Pereira 1954
29. Eu nasci 110 111orro Ari Barroso 1945
1. Ace11der as velas Zé Kéti 1965
30. Eu sou favela Noca da Portela e Sérgio Mosca 1994
2. Acorda escola de sa111ba Benedito Lacerda e Herivelto 1937
Martins 31 . Exaltação à favela Walter Amaral e Anacleto 1964
Rosas Jr.
3. Água de pote A. Barbosa, O. França e A. Lopes 1952
32. Exaltação à Ma11gueira Enéas de Brito e Aloísio A . da 1956
4. Alagados Herbert Vianna, Bi Ribeiro e 1986
Costa
João Barone
33. Faceira Ari Barroso 1931

\
5. Alvorada Cartola 1976
34. Fala Mangueira Mirabeau e Milton de Oliveira 1956
Bezerra da Silva 1994
6. Aqueles morros
35. Favela Hekel Tavares e Joraci Camargo 1933
7. Arquitetura d e pobre Edgar Barbosa e Joacy Santana 1980
36. Favela Roberto Martins e Valdemar 1936
Herivelto Martins 1942
8. Ave Maria llO 111orro Silva
Luís Antônio e Teixeira 1952 37. Favela Padeirinho e Jorginho 1966
9. Barracão
Barraco de tábua Herivelto Martins e Vítor Simon 1952 38. Favela a mareia Jota Júnior e O. Magalhães 1959
10.
Denis Brean 1945 39. Favela difere11 te Pe. Ralfy Mendes 1962
11. Boogie-woogie !la favela
Walter Meninão e Pedro Butina 1992 40. Favela do Pas111ado Edith Serra 1965
12. Calldidato caô caô
Cha111i11é de barracão Monsueto Menezes e José Batista 1958 41 . Favela do Sete Coroas Geraldo Queiroz e Waldir Firotti 1960
13.
Orestes Barbosa e Sílvio Caldas 1937 42. Favela do Vergueiro Cachimbinho e Laércio Flores 1964
14. Chão de estrelas
Jorge Benjor 1969 43. Favela more11a Estanislau Silva e João Peres 1943
15. Charles A11jo 45
W ilson Batista e Afonso Teixeira 1950 44. Favela querida Cristóvão de Alencar e Sílvio 1941
16. Chico Brito
Pinto
17. Conceição Jair Amorin e Dunga 1956
45. A Favela vai abaixo J. B. da Silva (Sinhô) 1928
18. Da África à Sapucaí João Basco e Aldir Blanc 1986
46. O favelado Zé Kéti
19. Adoniran Barbosa 197-_:i
Despejo na favela /
1 12

47.

48.
Favelas do Brasil

Feio 11ão é bonito


Um

J. Mascarenhas
Sécu lo

J. Piedade, O. Gazzaneo e

Carlos Lyra e Gianfrancesco


de Fave l a

1961

1963
í "A P alavra

72.
73.
74.
é:

Meu refrão
Meu ro111a11ce
Favela "

Mi11ila e111baixada c/1egou


Chico Buarque
J. Cascata
Assis Valente
1965
1938
1934
1 13

Guarnieri
75. Mi11ila favela Clodoaldo Brito (Codó) e
1933 1968
Noel Rosa Francisco D. Pinto
49 . Feitio de oração
1965 76.
Chico Buarque Morro Waldemar de Abreu (Dunga) e 1944
50 . Fica
1958 M. Rossi
Monsueto, A . Louro e
51. Fogo na 11wr1 11ita
Amado Régis 77. Morro Luís Antônio 1953
1928 78. Morro
Fora Ili-se os malandros Casquinha e Donga Billy Bianca e Antônio Carlos 1955
52.
1965 Jobim
Garoto do 11,orro Jacobina e Murilo Latini
53. 79. Morro
1953 Niltinho e Luís Henrique 1969
Manoel Santana, G . Macedo e
54. Gwte do morro 80. O 111orro canta assi111
B. Alexandre Lourival Reis e José Batista Rival 1956
1974 81. O 111orro co111eça ali
Carlos Lyra e Vinicius de Moraes Custódio Mesquita e Heber Bos- 1943
55 . Gente do 111orro
1943 coli
Wilson Batista e Germano
56. Gosto nwis do Salgueiro 82. Morro de Santo Antônio
Augusto Herivelto Martins e Benedito 1950
1978 Lacerda
Casquinha
57. O invocado 83. Morro do barraco se111 água
1962 Roberto Correa e Jon Lemos 1970
Lá vem Mangueira Paquito, Romeu Gentil e
58. 84. Morro do 111ala11dro
Paulo Gracindo Dalton Araújo e Nino Garcia 1964
1952 85. O 111orro é co111pleto
Luís Antônio e Jota Júnior Antenor Gargalhada 1976
59 . Lata d'ág11a
1961 86. O 111orro está de luto
Padeirinho e Ferreira dos Santos Lupicínio Rodrigues 1953
60. Li11g 11age 111 do li/OITO
1954 87. O 111orro não te111 vez
Wilson Batista e Jorge de Castro Antônio Carlos Jobim e Vinicius 1963
61 . Mãe solteira de Moraes
1987
Sílvio Lana, Luís M elodia e 88.
62. Mala11dra11do Morro, paisage111 colorida Adelino Moreira 1976
Perinho Santana
1965 89. Mulato calado
Chico Buarque Wilson Batista e Benjamin B . 1967
63. Mala ndro qua ndo 11101-re Coelho
1935
Assis Valente e Zequinha de 90.
64. Mangueira Mundo de zinco Nássara e Wilson Batista 1952
Abreu
1937 91. Na subida do 111orro Moreira da Silva 1952
Kid Pepe e Akebíades Barcellos
65. Mangueira 92. Não quero saber 111ais dela
1955 J. B. da Silva (Sinhô) 1928
A. Marques, R . Roberti e Nélson
66 . Mangueira 93. Nega Di11a
Cavaquinho Zé Kéti 1964
1960 94.
Maria Lavadeira Black Silva e José Domingos Nega Luzia Wilson Batista e Jorge de Castro 1956
67.
1965 95. Nem é bom falar
Men ino das lara njas
Téo de Barros Ismael Silva, N. Bastos e F. Alves 1930
68.
1936 96. Ne111 eu, ne111 ela G. Iteperê 1931
Roberto M artins
69. Mwos eu
1946 97. Nos barracos da cidade Liminha e Gilberto Gil 1985
Duque e Dilu Mello
70. Me1t barraco
1981 98. Olila o leite das crianças Pedro Caetano e Luís Reis 1969
Chico Buarque
71. O 111eu guri
r--
1 14 U m Sécu l o de Favela

99. 011de é que vais 111orar Kid Pepe e Téo Magalhães 1943
Mangueira e Império
100. Opi11ião Zé Kéti 1963 a carnavalização do poder pelas escolas
101. Patine te no morro Luís Antônio 1954 de samba
102. Praça 1 1 Herivelto Martins e Grande 1941
Otelo
103. Pra11to de poeta Nélson Cavaquinho e Guilher- 1957
me de Brito rian Sepú lveda dos Santos
104. Prazer da Serrinha Hélio dos Santos e Rubens Silva 1978
105. Protesto Antônio Domingues e Ferreira 1960
de Souza
106. Q11a11do o sa111ba acabou Noel Rosa 1933 O chefe de polícia
107. Rap da felicidade Julinho Rasta e Katia 1994 Pelo telefone,
108. Rap do Borel William e Duda 1994 Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
109. Rece11sea111ento Assis Valente 1940
1 10. Refavela Gilberto Gil 1977 Para se jogar. ..
111. Salgueiro 111a11dou 111e clia111ar Manezinho Araújo e Dosinho 1953 (Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida)
112. Sa111ba nosso Eduardo Souto e Benoit Certain 1932
113. Sa111bista da Ci11elâ11dia Custódio Mesquita e Mário 1936
Lago
1 14. Santuário 110 111orro Adílson Godoy 1966
115. Saudades do meu barracão Ataulfo Alves 1935
116. Saudosa 111aloca Adoniran Barbosa 1955 O CARNAVAL carioca existe desde os tempos da Colônia. Pode­
1 17. Saudosa Mangueira Herivelto Martins 1954 mos compreender o clima de alegria que retoma periodicamente como
1 18. Se não avisar o bicho pega Jorge Carioca, Marquinho e 1992
inversão de valores e suspensão de hábitos e costumes da sociedade bra­
P. Q. D. Marcinho sileira. Mas será que ainda convivemos com aqueles três dias de folia e
brincadeira, em que repressões e sentimentos conturbados explodiam
1 19. 1970
em fantasias e utopias? Será que as escolas de samba - que surgiram em
Sei lá Mangueira Paulinho da Viola e H. Bello de 1

Carvalho
morros, subúrbios e regiões pobres do Rio - têm ainda o potencial de in­
1 20. Tiro de misericórdia João Basco e Aldir Blanc 1977 verter valores e colocar em suspenso normas da vida cotidiana? Ou será
121. Velório 110 111orro Raul Marques s.d. que o carnaval que temos diante de nós representa apenas uma paródia
122. Vida 110 111orro Aníbal Cruz 1942 grotesca do que foi o passado? Hierarquias sociais, compromissos e inte­
resses permeiam de tal forma as práticas carnavalescas atuais que pare­
cem ter retirado delas toda a capacidade de ironizar, brincar, quebrar re­
1 23. Vítimas da sociedade Crioulo Doido e Bezerra da 1992
Silva
gras e desafiar autoridades.
1 24. A voz do morro Zé Kéti 1955
125. Zelão Sérgio Ricardo 1960
MYRIAN SEPÚLVEDA DOS SANTOS é da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Um Século de F avel a
1 16 M a n gue i r a e Impér i o
1 17
Entre 1994 e 1997, de senvolvi um proje to de pesquis a sobre o car­
Consid erando todos esse s aspectos, resta sab er s e espaços de con­
naval carioca, tendo como b as e a investigação sistemática em arquivos
graç amento e solidaried ad e, tão importantes no passado, podem ainda
do Rio de Janeiro e entre vistas real izadas com participantes d e duas esco­
existir entre os foliõe s mod e rn os que vão ao S ambód r omo nos dias d e
las de s amb a d a cictade, a M an gueira e o Império Serrano. 1 Estas são es­
carnaval. Ou s :rá que contamos apenas com produ tos cu ltu rais homogê­
colas que ainda clamam p ara si a manu tenção do "samb a d e raiz", e eu
n eos e p adronizados, volt ados p ara cons umidores p assivos, inca p a ze s d e
tinha interesse em inve stigar formas, imagens, modos de inte ração, hábi­
um pens amento crítico e d a audácia d e uma nov a exp er iênci a ? Afina l,
tos e costumes que aind a pu dessem nos fazer refletir sobre o significado
qu e fe sta é e ssa, e quem faz a festa, nessa festa?
dessa festa . Mais do que isso, interessav a-me compreende r a especificid a­
de de de terminados setores d e noss a sociedade, que no p ass ado foram
cap azes de contribu ir de forma tão significa tiv a p ara o que é hoje u m dos
maiore s le gados do p aís: a música popu lar b rasile ira . Tradição e modernidade no carnaval carioca
O desfile das escolas d e samba faz p arte de p ráticas culturais que Embora ao longo d estes últimos anos eu tenh a entrevistado e visi­
s e reprodu zem e se transformam dentro de de terminado proce sso históri­ tad_o várias vezes antigos participantes d as escolas de s amba, foi a pri­
co. Os conflitos inerentes às práticas e aos significados atinente s aos desfi­ meira delas qu e me causou maior impressão. Q uando p el a primeira vez
le s e concu rsos de escolas de s amba envolvem a consciência que s eus ato­ entrei na quadra da Escola d e Samb a Estação Primeira d a Mangueira, em
re s têm desses conflitos, b em como aspectos históricos e e stru tu rais qu e 1994, encontrei "tio" Jair na s ecretaria . Na ocasião, o dire tor d a escola era
estão além de seu domínio. As escolas de s amba, ao su rgirem, expressa­ Ivo Meirelles, e tod a a imprensa já h avi a anunci ado o grande racha de
ram a associação entre a exp ressão music al extremamente criativa de sua gestão com os membros d a Velha G uarda d a M angueira .2 M ui tos
parte da popu lação carioc a, as políticas governamentais, o merca do de apontav am o c re scimento dos bai les funk e da i nfl uênci a do tráfico n ess e
b ens cu ltu rais e os inte resse s da própria mídia . As tu telas foram várias período. Fiquei su rpre sa, por tanto, com a figu ra d e "tio" J air. Ignoro sua
a o longo dos anos, s endo o p a trocín io inicial do gov erno logo substi tu í­ id a de ; ele não está entre os fund adore s d a escol a o u me smo entre os p a ­
do por investimentos diversos, quer do próp rio gove rno, quer de indús­ rentes dos fundadores, mas sem dúvid a é um s enhor b ast ante idoso e ,
trias e de chefes d a contrav enção. p elo que pu de depreender d e sua entrevista, tem um profundo envolvi­
As e scol as d e s amb a são hoje empres as milion á rias, qu ase tod as men to com a Mangueira . Começamos a conversar sobre o carnaval do
controla das por don os do jogo do bicho ou do tráfico de drogas, que p assado, e "tio" Jair me trouxe, numa voz muito b aixa, paus ad a e cheia
vêm exe rcendo j unto às comunid ad es as funções do Estado e do me rc a­ de sentimento, as imagens vivíssimas d e uma festa em que s eus partici­
do. Os moradore s de fave las e bairros pop u lares, distancia dos en tre si pantes b rincavam com imens a alegria, v alentia e irreverência .
por d iferentes cre dos, prátic as religiosas e interesses particu l aristas, en­ - E hoje , tio Jair? - perguntei, ansiosa . - O carnav al e stá melhor
contram-se c a da v ez mais fragmentados culturalmente e afastados do ou pior?
s amba . Raras são as associaçõe s possíveis entre os prime iros morros, fa­ Ne sse primeiro encontro, comecei a me d ar conta d as inúmeras di­
ve las, bare s e botequ ins em que se ouv iam b a t:1cad a, samba, choro e ficu ld ades de um trab alho d e campo no qual as l ingu agens envolvidas
cu íca e os atua is mora do res d as fav el as c arioc as . A v id a do mal andro de são múltiplas. Evidentemente, esperav a um discurso que a pontasse
ou trora impõe-se uma nova realid ade, que permeia a v id a dos que h ab i­ todos os male s qu e estão acostumados a ouvir os estu diosos do assunto.3
tam os morros d a cida de : o e stabelecimento do comércio d e drog as, que
Afinal, sabemos que o de sfil e d as e scol as d e s amb a tornou-se uma gigan­
se associa a u ma lógica individua lista e mercantil cad a v e z mais triun­ tesca indústria cultural cujo produ to é mercantilizado, cuj as estruturas hie­
fante. Os s e tores d a contr av e nção, por sua v ez, transformam antig as me­
rárquicas perdu ram e cujos componentes continuam s endo espoliados.
diaçõe s políticas e sociais, con trib uindo aind a mais p ara a c arn av aliza­ Além disso, eu le ra nos jornais d a época diversas críticas de membros da
ção do poder, em que p e s e ao sistema democrático instal a do. Esse Velha Guard a da Mangueira ao carnaval "mod erno" . M as a re sposta que
conluio entre a ordem e a d e sordem, lon ge de caracte rizar nossa "mo­ obtive foi muito s eca e curta :
d e rnidade ", aparece como u ma marca que já e ra jocos amente c antad a - Hoje é dife rente.
nos carnav ais c ariocas, como bem mostra o nosso p rime iro s amb a gra­ Mais não consegu i de "tio" Jair. Marcamos ou tra entrevista , pois,
v a do. sem dúvid a, o clima dentro da qua dra não era de tota
l lib e rd ade . As esco-
Um Séc ulo de Favela Man g u e i ra e Impér i o
1 18
1 19
las de samb a são hoj e objeto d e grande dispu ta, env olvend o, ��lo men�� , u ma tentativ a d e for mar um a ass o ci a çã o n a qu al o s sóc io s m and a ss em,
os memb ro s d a Velh a G uard a , bicheiros, rep re sent antes d o tra fico, P?hti­
n a qual h ou vesse u m qua d ro soci al legaliz ad o em substituição à anti­
cos e comerciantes. Nós, vind os d e fora, muito raramente consegmmos
g a ob ediênc ia pre stada ao "d ono" d o P razer d a Ser rinh a, seu Alfred o

n:­
d ados precisos sobre o andamento dessas negociaçõe s, :'11ªs p e rceb�mos C osta . 4
facilmente as inúmeras p roibiçõe s presentes nos dep oimentos obtidos, É interessante observ ar, no entanto, que, segundo os registros d a
qu e são entrecortados por dicas, menções a re speito do " la do de lá" e é �oca e a bibl!ografia corrente, em 1946 foi realizado um desfile, p romo­
diretas sobre os diversos "inimigos" do s amba . Fora d a q uad ra, o dep oi­ vido p or um J ornal do Partid o Comunista (Tribuna Popular), que contou
mento de "tio " Jair não mu dou: com o a p oio da União Geral d as Escolas de Samba (Uges). Nesse c on cu r­
- Hoj e é diferente. so, o prime iro lugar coube à "perdedora" Prazer da Serrinha . O governo,
.
E eu lev ei algu m temp o, p recisei ouvir vários outros d ep� imentos, em represália, deixou de apoiar a Uges e financiou a criação de u ma n ov a
não só de " tio" Jair, mas t ambém de "tia" Eulália, mestre Fu leuo, dona ass ociaçã o de escola s d e s amb a, a Fed eraçã o Brasi leir a d as Es col as de
Zica e t antos outros, p ara compreender n:ielhor e ssa resp ost� A i��r�n­ Samb a (FBES).5 O Império surgiu apoiado por e ssa nov a entidad e, que
_ ;
sa tem mostrado reiterad amente o conflito existente entre tradiç ao e tinha como uma de suas figuras forte s Irênio Delgado, liderança entre os
"modernid ade " nas escolas de samba, conflito que também e stá p resente trab alhadores d o C ais d o Porto, amigo de mestre Fuleiro, mas também
n os deb ates, b astante p assionais, entre p articip antes das escolas. De amig o p ess oal d o pre feito d o Dist rito F edera l, h omem ligad o ao presi­
modo geral, associa-se a tr adição à manu tenção de p a drões do p assa do, dente Dutra . Irênio p articipou da comissão julgad ora de 1948, que deu o
ao sa mb a de raiz, à fidelida de à escola e aos membros d a V elh a G uar d a .
primeiro lugar ao Impé rio, liderança que foi mantida nos três carn avais
Em contrap osição, os mo dernos argumentam que as e s� ola� d� vem adap­ seguintes promovidos pela FBES. Ne sse período, havia mais de um desfi­
tar-se aos n ov os tempos, atualizando ritmos, temas e ntuais, imp ortando le, pois eram três as associações de escolas de samba, e a Uges continua­
técnicas e contratando p rofissionais cap azes de t om ar a linguagem das va a congre gar escolas tradicionais como Mangueira e Portela . Com o
e scolas ab er ta às n o v as tendênci as e a os n ovos merc a d o s. Ess e d e� ate
ap oio , p or tanto , d e I rêni o D elg ado, d a FBES, e d e trab a lh ad ores d o Ca is
entre tra dição e mo d ernid a d e tem múltiplos significad o s, e, p ara mmt os
do Porto, tidos como elite entre seus pares, surgiu o Império Serrano, es­
d os que p articip am d os de sfiles das escolas, a op osição _:" alor� tiva entre cola responsáv el p or um a sé rie de in o v ações em relaçã o ao s desfiles tra­
_
esses d ois term os simp le smente não existe . As escolas e st ao h oJ e m ais bo ­
_ dicion ais, campeã em quatro concursos consecu tivos e cuj a "modernid a­
nitas e mais ricas, e O p assad o é p assado . Se há alguma n ostalgia de ou­ de " a grad ou a seus participantes, que ainda hoje enaltecem tanto o
tros carnav ais, há t ambém muita a dmiração pelos a tuais. brilho das novid ades d emonstrado n as ruas, quanto a possibilidade de
Ao procu rar "tia " Eu lália, funda dora do Impé�io Serran o, eu que­ instituírem uma "diretoria sem donos". Seu Alfre do C osta, n o entanto,
r ia comp reende r a criaçã o d a escol a, em 1947, a p ar tir d e ':1m rach a co
1;1 não deve ter ficado muito contente .
suas origens e tradições, a Escola de Samba Prazer d a Serrinha . O Imp e­ Entre as dua s damas d a Mangueira, não houv e, como ainda não
rio Serrano, quand o surgiu, t rouxe in ov ações, sej � n o sa�b a-enred o e n a há, uma p osiçã o consensua l quanto às nov as mudanças no carnav al.
_
divisão de alas, b em m arcad a, sej a por certas obng aç oes imp ostas a seus Dona Zica mostrou -se a favor d o progresso d as a tuais e scolas de sainba,
p articip antes _ pela primeira v ez, por exemplo, t o d_os tiveram q':1e se se comparad as com as d o p assad o, e aceitou o trab alho de Ivo Meirelles
fantasiar _ e pelo rompime nto com p arte d a comunid ade da Serrmha . com o p ar te de ssa s mu d anç as. D ona Neu ma, à mesma ép oc a , d e fendia vi­
"Tia" Eulália não entrou no mérito dess as mudanç as. P ara ela, a n ov a es­ gorosamente a manu t ençã o da t radição contra as "mo dernida des" im­
col a fo i imp or tante p or que entrou n a av enida be líssi�a, c o:1qu istando
? plantadas pelo n ov o diretor . Entre as críticas p rincip ais àquela gestão es­
título naquele ano e nos três seguintes. Prazer da Sernnha n ao era a tradi­ tav am o de scaso pelos antigos integrantes das escolas, a abertura d a
ção, mas uma per de dora . Quando uma e scola b rilha n o concurs� , � u a quadra para os gru p os de funk e a maior cordialid ade e m relação ao tráfi­
comunid a de é a v en ce d ora e, n a qu ele mom ento s a gra d o, n a d a m�is im­ 6
co de d ro ga s. S em n enhu ma p assivid a de nesse j o g o de fo rç as, d on a
p ort a. Para me stre Fuleiro, ou tro fund ad or do Império Serrano, as i��v a­ Neuma e outros membros d a Ve lha G uarda conseguiram arregimentar
ções que chegaram com o Império também tinham u m aspec to p ositivo : um número d e a ss ocia d o s sup erior ao d a op o siçã o e eleg er com o seu re­
el as é que significa v am t radiçã o . Ele não via n as mu d an� as qu alqu� r p ro
_ . � presentante Elmo d os Santos, atual diretor e de fensor da " tradição " . O
blema com relação à tradição e explicou-nos que a cnaçao d o Imp eno foi vínculo de Elmo c om os fund ad ores da escola é fortíssimo . Se gundo ele,
Man g ue i ra e
122 Um S é c u l o de Fave la Im p é r io
123

ção à modern idade, associando a primeira às escolas de samba dos anos cativos". A "arte" dos profissiona is - que s
ubstituíram os m b dª
60.8 Esse período, na verdade, é considerado por mu itos a época de ouro comun dade na el aboração de temas e fantasi
� as e no próprio d:::ii1 .
mento as escolas - é criticada tanto qu anto v 1-
das escolas, dada a posição de destaque que assumir am n o carn av al ca­ seu poder:
rioca.9 N a década de 50, os sambas tinham temas n acion alistas, obe­
decen do à s diretrizes formalizadas pelo D ep artamento de Imprensa e
Atualmente até os carnavalescos estão j udian
Propaganda (DIP) n o Estado Novo, e as escolas viviam dos sub sídios do das escolas de
samba. Eu recebo até muitas cartas de outros p aíses,
econ ômicos que vinh am atr avés do E stado e dos livros de ouro. Aind a _ eles dizendo
que estao desconhecendo a escola. Porque cada
as sim, as escolas desse período são lembrad as por mu itos pelos seus u ma t1· nh a s ua cor
tra di· c1o
· na 1. Hoje os carnavalescos botam
gr andes sambas-enredo, pel a simplicidade de suas fantasias, p el as alego­ a gente de preto rox
amarelo. Só n ão botam de verde '
rias de mão e a ausência de carros alegóricos. Na déca da de 60, houve e rosa. Eu a cho um a cor lin d�'.
Verde, esper ança; ros a, amor. (... ) Todo mundo q
u m a virada completa : o des file das es colas de samba torn ou -se u m gr an­ uer s a ir de v erde
e rosa, �u er que você, lá de cima,
de espetáculo, e suas arquibancadas passar am a ser comercializa das, ge­ . _ id en tifique a es cola. M as n ão. A
gente J ª sai com a fan tasia sem von tade ( ) Os
rando lu cro. Esse foi o período em que camadas médias entr ar am nas es­ . . · ··· carn ava1escos
comem O dinh eiro que a es cola recebe.
colas de samba, havendo uma mudança significativ a de temas, enre dos e
estética. A tradição a que P aulinho da Viola se re fere corre spon de a esse
con junto de mudanç as. Outros integrantes do samba também lembr am Se , com a entr ada dos bicheiros, parte dos antigo
s componentes
com emoção dos desfiles da Presidente Vargas, onde c a da u m se sentia o das escolas perdeu esp aço, iss· o - o c h go r pr t r uma novidade.
centro das atenções, a es trel a da fest a. N as palavr as de D elegado, antigo .
�imo� qu� os va, no .
na e u a e esen
s depoimentos s obre "tr adição" e
a

mestre-sala da M angueir a, o maior carnaval do p assado também for a o _ "modernidade"


te� s1gmf�c�dos diferentes, e que não há uma tradição
da Pr esidente Vargas, qu ando "todos" aplaudiam e jogav am con fetes . , como não há um
c�n1 un �� umco �e mudanças que possa ser car acteriz
ado como "moder­
Nessa época, havia arqu ibancadas mais estruturadas de um l ado da ave­ n ida de Em muitos caso s, o s sambi
· s tas definem "tr ad1·ça - o" ou "moderm-
n ida, enqu anto do outro as p essoas assistiam aos d es files de pé o dade " em funç a- o do lug ar que ocupam ou que proc
·
u
ur am ocup ar no
mesmo e m cima de caixotes. O Centro ainda r eunia grande número de �undo do samba, de posições tomadas em relação a
foliões, torcidas de escolas e sambist as n os três dias de carnav al. o poder, aqu i enten­
dido de forma bem ampla, como disputa de influênci
a ou legitimidade
Mas as inovações introdu zidas na década de 60, longe de serem travada tanto e�tre os p articipan tes das escolas de
samba , quan to en tr�
con sensuais, for am e são até hoje rejeit adas por mu itos . Causar am resis­ es tes e os dem ais se tores sociais.
tência porque inegavelmente dificultar am a p articipação de alguns dos Há uma _referência comum, no entanto, não à tradição
antigos componentes. São vários os testemunhos de in tolerância com as �as a carn av ais mais :mtigos do que aqueles vivido
das escolas
ueiren ses rea­ s por Paulinho d�
novidade s. H aroldo Co st a (1984:87) relat a que mu ito s salg _
Viola, qu ando nao h avia luxo, artistas plásticos e "don o
giram às imposições d íç M ri Loui e qu to o det alhes de rou­ s " do sa mbª N
fala de dona Neuma, a r ejeição ao carnava l moderno
a su a a e s an a s

p as, com suas golas altas, coletes en vie do , cint r s m b ixo do bu sto. associa -se à iem�
brança de c arnavais da praça Onze:
sa s u a e a

Embor a aceitassem que o tema fosse Debret, m u ito s dizi a m: "O que é
que aquela gringa alta, magra e com sot aqu e estran g e iro tinh a que ver
com a escola?" Havia os m ais toler antes, que só não enten diam por que :'h, que d�ferença. .: N a época da pr aça Onze er a c arnava
l. A gente
iriam sair com u m cesto de p erus n a cabeça ou com u m chapéu che io de ª: ve zes vmh a ª pe da pr aça Onze até em casa . Não tinh
a con du ­
borbolet as multicores. As fantasias mais elabor a das - que iam de encon­ çao, mas era mai. s gostoso. Você vinha brincan do no bo
_ nde, quan ­
tro à s antigas con fecciona dor as, à própria dança e à movimentação do d� tmha os bondes. Agor a, nos ônibus n ão dá pra
gente cantar
sambist a - e o crescimento das escolas nos anos 60 r etir aram da gestão brmcar. Eu adorava.
do n ovo espe táculo vários dos antigos p articip antes da festa.
Tanto dona Zica quanto dona Neuma criticam t ambém a mudança
dos aspe ctos responsáveis pela caracterização das escolas dos anos 30, �as que �arnaval foi esse, o da praça Onze, on de , aparentemente,
quando estas tinh am uma identidade bem definida e trazi am temas "edu - esq uecia-se
da vida nos três dias de folia e brincadeira ?
Um Século de favela
Mangue i ra e I m pério 125
124
dos, e os blocos , g ru pos es pontân eos e temporários, es ta vam em todos os
O samba dos fundos de quintais lug ares. Os que saíam nos blocos tinham gra nde pres tígio e p opularida­
por diversas reformas de nos morros onde mor�vam por desafi arem a ordem vigent e e por re­
No início do sécu lo, o Rio de J aneiro passou eco­ presentarem uma alterna tiva ao trabalh o de es tiva , duro, regular e assal a ­
urb an as, sem qu e h ouvesse
ca na is pa ra uma p a rticipação p olítica e .
m problema s básicos_da
cida ­ n ado, mas eram p erseguidos pela polícia, que os denominava vadios .1 0
nômica equ ilibrada e sem que se resolvesse
dernizad , � p p l ç � c �­ O� �rimeiros sa�?i s tas e ncontravam -se, p ortanto, à margem d o mund o
de , como p obreza e miséria. O Rio foi mo
e o u a o are
oficial. Eram musicas de boa tes e cabarés da p raça Onze ou ainda mora­
o
surgind o ass i c nfrg r ç
te , jogada para fora do centro urbano,
m a o u a ao

nt té h j . O mesmo aconteceu com o c ar­ dore� dos morros e ba irros periféricos do Rio de J ane iro, que nem sem­
bipa rtida que a cidade aprese da pre tmham traba lho ou fonte de renda regu lares, vivendo de bisca tes em
expu lsas do centro � obre
a a o e

nava l, p ois as brincadeiras p opu lares foram g -d e­ me io à violência, identificad os ao mundo d a ma rginalid a de .
sis tiam n as b ol a s d e
cidade. As p ráticas do entrudo, que con
a u a

nte reprimidas por serem c n­ O carnava l de que n os fala dona Neuma quando se refere à tra di­
cheiro, farinhas e tc., vinh am sendo forteme
o
ção não é o carnaval dos desfiles das escolas de samba, mas o ca rn ava l
sideradas uma her ança
p orca e suj a do período colonia l. D
a mesma

de portu g s m dores d� que girava ao red �r d os desfiles, em fundos de quinta is, esquinas, bares
forma, os "zé-pereiras", m anifestações
ora
bores g�­
uese
s t e b o�d�s. Os terreiros de sant o, com o ritmo e a ba tuca d a d a religião afro­
dalhaço com
Centro da cid ade que faziam grande estar
seu am
q lh es a tri­ brasile1ra, exerceram uma influência muito forte sob re esse c arnava l. Car­
vo modus vivendi,
gantes , foram pos tos à marge m pelo no
ue

cas . tola, Carlos Cachaça , Zé Espinguela e todos os outros freqüentavam as


bu ía fa lta de espírito n as e xibiçõe s grotes a­ r �das d as "tias " b ai an as , onde não se fazia a pen as m ú s ica ; lá, c ad a um
o io de J an eiro incentiv
A prefeitu ra , a imprensa e o comé rcio d � q
.
tmh� l g r t�ha que ?1os trar se era va lente, bom na p alavra e ágil das pernas . Re li­
vam o carnava l que segu ia os p adrões d ,
u a
a Bel/ e Epoque e ue

da cidade regene ra da . Al d �iao, musica e dança entrelaçavam-se. O samba era de imp roviso e não
n a nova avenida Central, re fer encial
em os
es soci:­ tmha uma produção individualizada, o que refle tia a forma c omunitária
s tit í o p elo cors� , grand
grandes b ailes, o carnava l oficial era con � � au to 1;10 - qu e os músicos tinha m de diver tir-se. Esse samba começ ou a sair à s ruas
dades e ran chos (Rio tu r, 1991
). O corso consis tia num desfile de
em blocos d e carn av a l e a tra iu a a tençã o ger al não ap en as p orq ue inver­
famílias abas tadas, que possmam
veis ao longo da avenida Central, onde teu valores, mas também p orque trouxe p ara as ru as exuberância va len­
fantasiadas, diver tindo -se e .con­
carros ou podiam alugá-los, desfilavam es e � am º s maiores
tia e sensualidade, experiências e sentimentos que não faziam p�rte do
social. As grandes so ciedad . .
solidand o seu pres tígio . cotidiano do res to da sociedade. A partir dos primeiros c oncursos e reg u­
g nd ca rros alegóricos, intele ctua
is, a trizes e mu­
focos d at nçã . E lament os ordenando essas manifestações p opulares, a criação do samba
ré- republica­
arn av a l. N o p erí od o p
m ra es

lheres da n oite carioca brincavam o c


e e o

vidão e ganhou um novo esp aç o: o da apresentação d o samba . É então que se es­


os d e d enúncia d a escra
no essas sociedades foram c entros a tiv litic amente tabelecem novos limites à s esferas anteriores entre público e privado . O
os an os 20, es tav am p o
d; autoritarismo da monarquia , mas, n vinh n chão, sem samba dos temas livres, d as rod as, bares e botequin s, festas e p agodes
) . Os r anchos , por sua ve z,
esv a zia d as (Pereira , 1994
o
era u m sam ba de p a res, p ro tegido d o olhar extern o. Os blocos d e fund o
am

n as fantasias. d:, ��mp onen­


carros alegóricos, mas com muito luxo d� q�inta l, ao torna rem-se escolas d e samba, não só se ap resentaram ao
seus
elig iosa s n or­
rav am as p roC1ssoe s
t es vestidos como reis e rainha s. L emb publico sem a p ro teção de máscaras, encantand o a todos, como abriram
r

uase tod os n egros d e


p rocedência
de�tinas . Seus c omponentes e ram q seu esp aço à p ar ticip açã o de diversos se tores sociais, que imedia tamente
vínculos de solidariedade e rep re­
baiana que mantinham entre s i fortes passaram a dispu tar sua lidera nça.1 1
socia l e m as cen são. M u
itos deles trab a lhav am n o
sent av am uma camada A criação das esc olas de samba implicou uma sé rie de mudanças
menta díss imos
a p raça On:z;e , movi
Cais do P orto ou n os bares e cabarés d q est ras, cri ado- no esp aço dos bloc os carn ava lescos, esp aço em que se tores da p op ulação
e mú s icos de
na época e resp onsáve is pela formação d
or u
expr�s�av��-se p or meio da brincadeira. O samba nem sempre teve um
res de choros , ma xixes e s a
mbas (Efegê, 1965). convivia fac1l com as n ovas e xigências que os des files das escolas lhe im­
ntecia n a praça Onze, onde
O c arnaval não -oficia l d a cidade aco es , que
puseram. Es tes, ao serem cria d os, necessitaram de músicas com caracte­
os mal andros e v a lent
h avia os blocos e os pontos de encontro d nã o fosse rísticas p róprias, de ritmo a ce le rado, para poder conduzir os comp onen­
o ficia l. Ainda que
não tinham nada em comum c om o c arnava l cid a ­ te� d� rante o desfil e, e de refrões fáce is, p a ra serem repe tidos. N os
as ruas cent rais d a s
permitido a negros, mu la tos e p obres percorrer prune1ros desfiles, ma nteve-se u m pouco da imp rovisa çã o das rodas de
de p opul ares mascara-
des durante o ca rnava l, os cordões, agrupamentos
126 Um Sécu l o de F avela
- Mangue i ra e Im p é r i o
12 7
samba, dos bares e botequins. Após o coro feminino, que iniciava o desfi­ para j u lgar as escolas (Sil
le, vinha o s amba improvisado. No concurso de 1933, havia um quesito va et alii 1 980) . N - so, ª-º
todos os particip antes d p ara Cartola, como
as escol as, ,o J.ura · ser um p ara
chamado "poesia do samba", que julgava j u stamente es sa improvisação. ram o convite a ar tis tas d o n o podia deles. Apoia-
plá , .
s tic os, mus1c os e
a
Mas, já em 1935 o qu esito fora aband onado a pedido dos próprios com­ contexto, foi. de maestros . O J·urad o,
ponente s das escolas, que mostraram a impossibilidade da improvis ação
fund amental �,. ; mp ortAano. a' pms · f01· J·u sta nesse
p rofissional, que l egit mente ele, culto e
imou o samba p erante a
nos desfiles carnavalescos (Silv a & Santos, 1980:831; Au gras, 1993:93). p arte " ric a" d a cid ade.
As escolas rep resentam .
A p artir dos an os 30, os blocos se institucionalizaram e se ordena­ o movimento de mteg raçao- de setores
nos favorecid os d a so . m e-
cied ade e pnv
ram, dando maior prestígio a seus componentes. Antes de 1930, não d ade da " ordem" As 1 a dos de mm· t os
d os b enef1,cios à s ocie-
havia u ma separação clara entre escolas de samba e blocos. As "escolas " , · l"d eranças das escolas in
s imb olos que eles
atribuia corp oraram alguns dos
ou blocos dessa ép oca se apresentavam de maneira mu ito simples, com­ ' m a ess a ordem, co "
cons truindo, a p artir daí m o o tern o e gra
p unham-se de 50 pessoas em média, exibiam pou quíssimas fanta s ias e , uma nova 1"d enh" da de . vata",
dar sua escola, encome , . pau1 o d a portela, ao fun
nd ou aneis de prata -
alegorias, não tinham nenhum carro alegórico, nenhum lux o, n a da qu e linho engomado s a ato e ouro, ternos brancos
s t" de
se assemelhasse à riqueza e ao brilho das escolas atu ais. 1 2 Segund o diver­ Su a exigência er: qur os : � �:::�::: :rav atas e chap éus _ de palha .
sos dep oimentos e livros, as duas primeiras escolas, Deixa Falar e Man­ sa b s s m os tamanco
a rru mas sem, qu s e chinelos e s e
e tive ss em é e
gueira, surgiram em 1928, ainda na República Velha, mas foi n os primei­ sco ç o ocup a dos
1980:44-5). As comissões (Silv a & Santos,
ros anos da década de 30 qu e as escolas de samba s e c onsolid aram. 13 de f�:te, �f� pouco �emp
tas dos diretores d as es c o a tr ás, eram c
o la s, qu e vin a � ompos­
A E scola de Samba Deixa Falar, fundad a no largo do E s tácio, qu e c aric atur a d o ma m abrindo o des file ainda
l nd ro re generado, pres e c om a
era b airro habitado por elementos qu e se dedicav am a biscates, jogo e ex­ , , a
nte no aprumo d a vestr.
So e p os sível entend er as ment a.
ploração de mulheres da zona do Mangue, qu e ficava próxima (Tinho­ es colas de s amb a a p a .
mundo do samba, ma1· on . rtir dess a costura entre o
rão, 1981), transformou -se logo em rancho carnavalesco, s ubstituindo · tanamente negro e pob
outro, o mun d o d re em sua origem, e o
os "branc os ".
flau tas e tamborins pelas l ongas marchas-rancho. A M angu eira su rgiu
Como vimos, se os bloco - nas _orig .
da tentativa de Cartola de mu dar a imagem neg ativ a d o Bloco dos Aren­ s e ta ens das esco l as de
também são aspectos int ; � s amb a,
gueiros, associado à briga e à marginalidade. Ou tros blocos d o morro da ríns ec os e as a mteg ra ção
da sociedade' as relações . c om outro s se tor
Mangueira juntaram-s e à escola bem mais tarde. À medida qu e os con­ diversas com o mercado es
vençao - . O prestígio qu , o Es tad o e a contra-
cursos se suc ediam e eram o ficializados, ou tras esc o las se iam consoli­
e cad a lid ra ça ad quu .
cia-se às compos ições qu � na s � a c o�unidade asso­
dando a p artir do cresc imento de um bloco ou da fusão de muitos. A Por­ e elas c;ns��oem com J orn
g ociantes' p olíticos, b 1"c · a lis tas, ind ustr iai
s, ne-
tela só ganh ou seu nome (Grêmio Recreativo Escola de Samb a da heuos e traf1cantes , E�fim
negociações divers as fazem . · , c onc urs os, n orm
as e
Portela) em 1935, e o bloco Vai como Pode foi, dentre todos os de Osval­ parte dos pnmord10s e d
las de s amb a. É dessa trad a tra dição d as es
ição que nos ocup aremos c a­
do Cruz, o que mais se des tacou nos primeiros concursos da década de 30, a seguir .
tendo surgido das reuniões na cas a de dona Esther, baian a festeira. A
Unidos d a Tijuca, ou tra escola antiga, foi fundad a apenas em 1931, em
virtu de da fusão de qu atro blocos existentes nos morros Casa B ranca, Samba, dinheiro e po
der
F ormiga, Borel e Ilha d os Velhacos. As p rimeiras escola s de
samba se organiz .
Os concursos patrocinados p or j ornais da époc a, de 1932 em dian­ da décad a de 20 após aram nos últimos anos
' o s uces so d o samb .
te, foram fundamentais para a criação das escol as. Por causa d os concur­ mente, apó s a p olítica ext a nas rád10s e, m ai. s especifica-
remamente p opu1i·s ta 1� .
sos, cada bloco passou a se preocupar em constru ir um a identid ade pró­ Ernes to, interventor de plementada p or Pedro
G e túlio Vargas, no cen a, n
pria para apresentar-se ao público . Os c oncu rsos acirraram a diferença de musical d os samb1· s tas . o cario c a . A cria tiv
ida-
entre os blocos, c om o também os hierarquizaram, facilitando a distribui­ in tegrou-se às dive�sa m
sava o p aís, trans forma � udanças p or que pas-
ndo p eque s agremrnçoes
ção de poder entre eles . Os concursos representaram também uma espé­ instituições organizad musicais em grandes
or a s d e 1:: arn7es tações cul�urais e esp aços
cie de c ostu ra entre o mund o d o s ambista e a socied a de c ario c a. A c omis­ Outro fator a ser cons de lazer.
iderado s � os novos padroe
são j u lgadora sempre foi composta por elementos de "fora" do samba. se h aviam anunciad � s de brasilid ade, que já
o na s man11es taçõ
Cartola, desde os primeiros desfiles, exigiu um j u rado de "alto nível" es da Semana de
se c ons olid a - , a Arte Modern a e
ram na dec dª de 3 O. Carlos Guilherme
M o ta (1994), par-
Um S écul o de F ave la Man g u e i ra e I m pé r i o
1 28
1 29
.
tmdo do testemunho de Antônio Cândido, descreve b em a substitu ição A crítica ? e que a s escola s de
. , sa mba a daptam-se às exigên
da histor iogra fia da elite oligárqu ica - empenhada �a , v a1onzaçao
. .
- d�s
, publ.ico consumidor e com iss cias do
heróis da raç a branca e rep resenta da pelo Ins tituto Histonco e Geografi­ o descara cterizam-se não é um
ca da " modernida de a caracterís ti­
"; o grau dess as adaptações é
co B r asileiro - pela de novos autores que de certa form a "redesc?b rem do ao long dos anos. A mús ic que foi se intens ifican­
0 Br asil". P roduções intelectuais como as de Caio P ra do Jr., Gilber to
� a de Dong a teve vá
ria s vers ões, e m u
for am as � 1g as por au toria no itas
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Rober to Simonsen, f�ram to �as �a _ � s primeiros momento
s do s amba gravado.
Com o 1mc10 dos desfiles e a
década de 30 e redesenharam o p aís, dando-lhe caractenshcas nac10nais. formação dos "g rêmios recrea tivo
de ��m� a" - nome com que tod s escolas
as as escol as foram re
Teorias sociais a té então he gemônicas, que ignoravam ou tr a t avam de pe nen�1�s c arnava e�cas de ixara gistra das -, as ex­
_ � m de ser comp ar tilh
forma ne ga tiv a O ne gro, for am substituídas por obras de ampla �opul an­ comumta no,. ad as por um grupo
adq umndo s ignifica
da de como as de Gilberto Freyre, que der am ao ne gro e ao mestiço nov a do próprio, com cer ta indepe
em relação às su as origens, e que ndência
roup�gem, v alorizando su a participação na construção da sociedade br a­ foi tr aduzido par a um território
ma is amplo, a dqui ri muito
ndo divers os ma tizes. De fes tas
sileir a. 1 4 tr ansformara m-se inicialmente populares , as es colas
em símbolos nacion ais. Essa m
Nos anos 20, o "grupo do Estácio" já er a conhecido por cantores realizada por diversos element e di ação foi
os, sendo o poder de alguns de
de rádio e r a dialistas que viam no samb a possibilid ade de l ucro. Sabe-se, caso das lideranças do samba le s vis ível,
e dos políticos, e o
por exemplo, que o cantor Francisco Alves tinha um acordo c�n: Ismael caso dos regulamentos e dos j u de ou tros, invisível,

S1' lv a e Nilton Bastos, ap arecendo como co- au tor de todas as musicas que ízes, que definiam os moldes d
ent re as escola s. Ain da e dispu ta
,, hoje, há muita dis cussão na esco
cantasse da dupla (Cab ral, 1990:81). Mui tos dos sambas dos ,, ma1andros processo que ainda é rea liza do p lha dos j urados,
elas dire tori as d a s esc
foram comprados, e , salvo raras exceções, co�o Cartola , c_om o tempo tro da mesma p erspec tiv a : a pro ol a s de s amba den­

esses compositores foram e squecidos. Ainda a ssim , p ra mmtos �os sa ­


cura de jur ados "sérios", "profis
e "competentes". siona is "
� . _ u:i
bist as, a glória que procuravam concre tizava-se n as r �d1os e n a mdus�na Par alelamente ao desenvolviment
fonográfica n ascente. Em 1929, Zé Espinguel a , sambista da M a_ngueira , o tecnológico e indu s tri al, qu e
não se res tringia ao cres ciment
começou a pro mov er concursos entre o pesso al do sa�� a, a partir de p �­ o da indústria fonográfica, sur gi
, a mpl a cam ad a urbana
qu e procurav a seu espaço numa
u uma
l avras e temas propos tos por eles, p ara selecion ar music as p a� a o radio da por velhas es tru tu r as. O regime s ocieda de m arca ­
(Silv a & Santos, 1980:55). Aind a que pou cos au tores te�h �� obtido su ces­ repub licano tinh a s e est
Br asil moni tor ado por se to res q a be lecido no
so, os sambistas vi am no rádio reconhecimento e poss1b1hda de de ascen­ u e procu rav a m in seri r o
de produção cap i talis ta internac p ís no sis tema
iona l, sem propiciar no nível inte
a
são social. tão propalada democracia burgue rno a
As primeir as emissoras de rádio do país da ta m d� 1923 (Roque tte sa . Gr ande p arte da popul ação en
tr ava-se desorganiza da, à m arge con­
. m dos benefícios do s is tema econô
Pm to) e 1924 (Rádio Clube do Br asil), mas estas func,10n avam apen as qu e vinha sendo imp lantado e sem mico
contar com direitos bás
p ara um grupo pequeno de associado s, uma vez q�e, alem das 1�1· s res tr�· - líticos e s oci ais, a trib icos , civis, po­
. uídos usualmente ao cidadão repub
t1v as a's emissões, os p rogramas tinham fins e duc a tivos e cu lturais espec1- lho, 1987). Em 1930, Getúlio Varg lic ano (C arva ­
as derrotou a s o lig arqu
ficos, e os ap arelhos receptores eram raros e de p reç?s prm' bT i ivos. F�1· so- da P rimeir a República com o co i a s dominantes
. - e is pop la r . Sur gir am mpromi sso de integ rar
frações diversas
mente a p ar tir de 1927 q o ádio to no da sociedade a partir de uma p
. r opost a de inter venção
ue r r u s ma u

dezenas de nov as emissor as com programaç�es ma is Pº ?� la s, a� n:es ­ tado. O governo de V argas pre mais dire ta do Es­
. servou a classe operária e ou tros
re
m o tem po em que O des envolvimento tecnolog1co permiti� ª multip�1c a­ da população de ba ixa renda de se tores
. u ma p auperiz ação drás
ção de aparelhos de rádio, discos e vitrolas a preços acess1,ve1�, e o s1st:: lhes a cesso a uma p articip ação tic o g ntir­
. m aior no pr odu to econ
a a ara
ma e létrico de grav a ções tr a zido pela Ode on tor�a� a a �du stna fonogr a 1982:53-72). Com uma política de ô mico (W effor t,
mass as, Vargas ini ciou
fica compe titiva. As gr avadoras e emissoras de radio s air am :m busc a de tringindo direitos políticos ao me seu governo r es­
músicas popu lare s, consolidando a época de um a nov a ger aça o de canto­
smo tempo em qu e es tendia direitos
_ cia is e trab alhistas. Os operári so­
re s e composito res b rasileiros com o Ary B arroso, L �martme B �b ?, C ar­
os p ass ar am a ter jornada de oito hor
previdência socia l, lei de férias a s,
men Mir anda e q ue incluí a também os novos sambis tas do Est aoo (C a­
e repouso semanal, desde q ue seus
ca tos fossem in scritos no M sindi­
inis tério do Trabalho, Ind
bral, 1990). qu e permitia ao Es ta do c ont ústria e Comércio, o
rolá-los .
130 Um Sécul o de Favela
Mangue i ra e Império
131

Os sambistas da praça Onze integraram-se à era Varg�s. Tiveram


Não como os demais, dizia ele, pois participou até mesmo de asso ciações
seu espaço regu lamentado e oficializado à custa de c?�prom1ssos diver­
sos com O governo. Pedro Ernesto reduziu os empres_hmos extern o_s, ao sindicais. N o carnaval, saía todo ano na ala dos boêmios: levava a fanta­
sia e, qu ando chegava a h ora, trocava de roupa. Acabado o desfile, vestia
mesmo temp o em qu e regu lamentou o j ogo dos cass_m os, conse ?umdo,
a farda de novo. Embora os sambistas não fossem todos malandros nem
com isso, verbas para a prefeitu ra. O rótu lo de vadiagem dos �dos de
estivessem interessados em arruaças nos dias d e carn aval, essa diferença
1920 n ão foi empecilho para a tentativa de cooptação � os sa��1s�as :º
não era respeitada pela p olícia, que reprimia a todos indistintamente,
nov o sistema p olític o que se estru turava. Dois anos apos a oficiali açao
� causassem desordem ou não.
das escolas de samba, a p olícia do Estado Novo fechou os b ordeis da
Lapa e começou a reprimir de forma violenta a prostitu ição e todos os Só a partir de 1932 as escolas começaram a dispu tar concursos, a
fazer parte do programa oficial elaborado pela prefeitura e a receber sub­
qu e ficaram de "fora" de seu controle imediato .
venções do governo, sendo oficializadas em 1935. Embora umas poucas
Essa ordenação da desordem cooptou algu ns e desagradou a ou ­
esc olas de samba tenham sido fundadas an tes de 1930, é inegável que ,
tros. Vagalume, n o livro Na roda do samba, tece c omentários desfavo�á­
, nesse período, e las eram confundidas com bl ocos e consideradas caso de
veis ao g overn o, argumentando qu e o samba não teve s orte na R epublica
polícia. Em 1934, fica claro o in teresse, tanto dos sambistas quanto d o go­
Nova, quando O carnaval, o samba, o choro, o rancho e º bloco, todos
_ verno, pela legalização das escolas: em janeiro, estas h omenagearam
foram oficializados, sendo criada até mesmo uma fede raçao carnavale�c� .
Pedro Ernesto numa festa realizada no campo de Santana, e em setem­
Conclui O au tor ironicamen te, que, embora o chefe do govern o prov1s o­
bro, foi fundada a União das Escolas de Samba (UES).17 Em carta a o pre­
rio fosse gaúch� e apreciasse mais um chu� rasc_? ou chimarrão do que
feito, o represen tan te da UES afirma, logo de início, sua intenção de pro­
um samba choroso batido no terreiro, ou seia, nao gostasse do samba, a
curar imprimir o cu nho da brasilidade na verdadeira música n acional
gente do samba gostava tanto dele (Guimarães, ,1 ?78: 1 1 1-2).
. (Augras, 1993:92). A partir daí, vári os f oram os víncul os entre os dirigen­
E gostavam mesmo. Entre todos os p olihcos do passado, � mais
tes das escolas e o governo . Recebendo verbas de Pedro Ernesto, Flávio
amado pelos fundadores das escolas de samba foi Pedro Er�est�, 5 qu e,
Costa, liderança entre as escolas de samba, assumiu o papel d e arregi­
trilhando O mesmo caminho do presiden te, preocup ou-se nao so cm': o mentar eleitores nas favelas, junto com Paul o da Portela.1 8 Também cons­
samba, mas com a regulamentação de códigos trabalhistas, melh o�1as
ta que Silas de Oliveira, do Império Serrano, mestre dos sambas-enredos
n as áreas de edu caçã o e saúde e con tro le social. D ona Ne uma, dona Zica,
nacionalistas, teve como um de seus ofícios o de cabo eleitoral, atividade
Carlos Cachaça, "tia" E ulália, mestre Fuleiro e vários o� tros compon�n­ considerada comum en tre os sambistas (Silva & Oliveira Filh o, 1981:57).
tes da Velha G uarda foram todos unânimes no reconhecimen to a o antigo Pedro· Ernesto foi afastado de seu cargo em 1936 por G e túlio, mas, nesse
prefeito. Dona Neuma lembra que a Escola Pública H umberto �e Cam­ período, o víncul o en tre as escolas de samba e a máquina p olítica criada
pos, na Mangueira, foi inaugu rada por �le. Carlos Cachaça nos disse qu e pelo Estado já estava concre tizado, tendo aquelas desempenhado papel
pedro Ernesto era amigo íntimo e quendo de todos eles.. Para Cachaça, , marcante na consolidaçã o da identidade nacional.
f01· Pedro Ernesto quem libertou o samba, que era escravizad o na .epoca.
As novas lideranças do samba, que destronaram os antigos "donos",
Ele criara a UES na presença deles, com eles. O velho samb"1sta, h OJe co�
eram pessoas com prestígio não só em suas comunidades, mas também
98 anos' lembra-se até da tristeza dos companheiros que n ão pu deram ir
fora delas. Os antigos donos - lideranças como seu Alfredo C osta, do Pra­
visitá-lo na prisã o p orque tinham medo de ser presos. A1�-d a segund o
16
zer da Serrinha - não tinham mobilidade, conhecimento nem poder para
Carlos Cachaça, Pedro Ernesto p ediu para qu e o carro da Uma_o das Esco­
serem influentes na década de 30; não faziam escolas campeãs. As novas li­
las saísse logo após O seu carro, em cortejo, no �i� de su � liberdade , o
deranças tinham contato com a mídia e com os políticos e eram capazes de
que aconteceu . Importante ressaltar que, ao contrario do mito do malan­
transmitir informações, moldar opiniões e interpre tar notícias. Paulo da Por­
dro mu itos dos fundado res das escolas de samba foram trabalhadores re­
tela, como outros, foi "cidadão-samba", personalidade reconhecida e eleita
gul�res e chegaram mesmo a se aposentar. Carlos Cachaça conciliou p or
através da imprensa, com grande reconhecimento público.
l ongos anos O trabalho regu lar e o samba, acabando por apose� ta� -se
Ainda qu e o governo p opu lista tenha tido grande p oder de contro­
pela Rede Ferroviária Federal; mestre Fu leiro aposentou-se pelo �md1ca­
le através de su bvenções e regu lamentos (Augras, 1993), não houve uma
to dos Arrumadores da G uanabara, do Cais do Porto, com o muitos ou­
tros. Ed Miranda, membro da Velha G uarda da Mangue ira, era p olicial. massificação de ideais, uma vez qu e conflitos e tensões estiveram presen­
tes na manutenção desse pacto. No final do Estado Novo, por exemplo,
132 Um S é cu l o de Favela 133

as negociações entre o Estad o e as escolas de samba entra ram em crise, dem mantinham um vínculo de "camaradagem" com os políticos, pelo
quando a UES ap roximou-se do Partido C omunista Brasileiro, recém-le­ qual se garantiam privilégios em detrimento de quaisquer direitos estabe­
galizado . Mas o pacto foi rea rticulado com sucesso, v oltand o o m�nd o lecid os pela lei. Estabeleceu-se uma política clientelista direta.
do samba às matrizes originais, quando I rênio Delgado, com o apmo de C om o crescimento das escolas de samba nos anos 60, o pacto cli­
mestre Fuleiro, entre outros, organizou a Fede ração Brasileira das Esco­ en telista se des fez, p ois o Estado não tinha mais condições de financiá­
las de Samba (FBES), que acabou p or se imp or e atrair as demais escolas. las. Nessa época, ocorreram várias transformações econômicas e s ociais,
C om a oficialização das escolas de samba pelo Estad o, os sambis­ entre elas o surgimento de novas camadas urbanas com grande p otencial
tas passaram a ter o direito de pular seu carnaval na avenida o direito de consumidor e de n ov os lemas nacion alistas apoiad os na idéia de moder­
ir e v ir nas ruas da c idade, o direito de não serem persegmd os p or sua
'. nização e progresso . O desfile das escolas começou a ser comercializado
cultu ra, chegando mesmo a ver consagrados aspectos de sua cultura mediante a venda de in gresso s e a construção de grandes a rquibancadas.
como símbolo de brasilidade. Além diss o, a esses direitos s omaram-se Em 1957, as escolas de samba deixaram a praça Onze e passaram à aveni­
barganhas com o Estado . Paulo da Po rtela valeu-se de seu prestígio junto da Rio Branco, para logo em seguida, em 1962, exigirem a rquibancadas,
a o g overno para pedir a u rbani zação das favelas. Em 1933, an te a ameaça que acabaram p or ser transferidas em 1965 para a avenida Presidente
de despej o de 7 mil moradores do morro do Salgueiro, o p resi den te d o Va rgas. A ver ticalidade das arqu ibancadas exigiu carros alegóricos, e o
Salgueiro interveio, conseguindo das autoridades a defesa dos morado­ público, um maior espetáculo .
r es. D ona Neuma e dona Zica, da Mangueir a, man têm até hoje seu p restí­ Intelectuais e ar tistas das camadas médias deixaram de fazer parte
gio inalterado, send o p rontamente recebi das pelos p resi dent� s �lei tos e apenas da c omissã o julgadora e torn aram-se produtores culturais, partici­
tendo muitos de seus pedidos atendi dos. Nessa fase de negooaçao entre pando do quad ro da diretoria das escolas, de seus desfiles e da idealiza­
sambistas e p olíticos, p revaleceu a troca de favores p or v otos, típica das ção de nova estética e novos h orizontes para o mund o d o samba. Ar tistas
p ráticàs clientelistas d o nosso país, que refletem um ca ráter mais p rofun­ plásticos de "fora" d o samba revolucionaram a ap resentação dos desfiles
do da n ossa s ociedade - a manu tenção dos "d onos" d o p oder . com nov os temas, técnicas e estéticas. No carnaval de 1959, a Escola de
Samba Acadêmicos do Salgueiro trouxe como enred o Jean-Baptiste De­
b ret, tema elab orad o por intelectuais conhecidos. 19 A partir daí, o Sal­
gueiro contou com a ajuda d o ex-aluno da Escola de Belas-Artes, Fernan­
A carnavalização do poder
d o Pamplona, que, com enredos como "Quilombo de Palmares" e "Chica
Segundo José Mu rilo de Carvalho (1987), a relação entre cidade e da Silva", col ocou defini tivamen te a escola no grupo das campeãs, então
Estado, na República Velha, ca racterizava-se pela op osição, como no formado basicamente p or Mangueira, P ortela e Império Serrano.
cas o de anarquistas e mov imentos operários; pela apati a, através de fes­ Com o prosseguimento da comercialização do desfile, os grandes
tas religiosas e das diversas associações de auxílio mútuo existe� tes n a empresários não eram mais nem os construtores das arquibancadas, nem
época; e pela comp osição com elementos contraventor�s : C om� v1m_os, o o s antigos fundad ores das esc olas. Outro s parceiro s vieram financiar a
carnaval das esco las de samba foi criado através de p raticas chentehstas, nova empresa, introduzind o um nov o elemen to na relação do Estado
trocando-se v otos pelo comp romisso com o direito ao samba. Menos co­ com o mundo do samba: os banqueiros do j ogo do bicho (Chinelli &
nhecidas são as negoc iações do Estad o com atividades ilegais, n� g� ci� ­ Si lva, 1993:45-52). Os banqueiros do j og o do bicho apoiaram as escolas
ções que muito con tribuír am para um controle indireto s ob re as re1vmd1- desde seus primórdios, como é sabidamente o cas o de Natal da Portela,
cações e lutas p opulares de claro conteúdo legal. mas foi a par tir da década de 60 que esse apoio se caracterizou como
Na República Velha, elementos da desordem foram utiliz�dos n o acord o entre organizações. O j ogo do bicho foi uma atividade legal du­
processo eleitoral, quando os "p olíticos" lançavam mão de capoeiras, ca­ rante o períod o inici al de c onstituiçã o das escolas de samba, tornando-se
pangas, malandros e valentes para conseguir v otos e reeleger-se. Durante p roibido s omente em 1946. A partir daí, cresceu como organização ilegal,
o governo de Getúlio , pa rte da desordem torn ou-se orden:1 a o ser c� op tada ind o muito além d o s h oriz on tes das escolas de samba. Nas esc olas que ti­
_ nham suas lideranças formadas, a entrada d os bicheiros como nov os
pelos vínculos corporativistas. Pedro Ernesto utilizou o mter:�nc10msmo
estatal legalizan do e organizan do parte da malandragem, legitimando al­ "d onos" nem sempre foi bem recebida, mas, em outras, eles assumiram
guns antigos donos das escolas, investind o outros. Os malandros da or- natu ralmente a liderança comunitária. São mu itos os comp onentes da

-
Um Século de Favela
134 Mangue i r a e Império
135

Ve lha G uarda que a in da hoje mos tram não es tar de acordo com o p �der ria, s e comparada com a Mangueira . A contrataçã o de carnaval escos,
que os biche iros p as saram a ter nas escolas . D?na �euma sempr� afu�a ad minis trad ores com pod er e dinheiro nas mã os para cri ar novos enre ­
. .
que a Mangueira nunca teve bicheiros, mas e sab id o que eles fmancia­ dos e contro lar s ua implementação, trouxe grand es m uda nç as nessas
ram mu itos dos carn av a is da escola, sem, no entanto, desloc arem os fun- novas escol as, p ossibilitando grand es vô os de imaginaçã o e criatividade
dadores de s uas pos içõe s de p oder . no mundo do samb a, os qu ais , se desa grad avam a antigos participantes,
Nos anos 70, grandes b anqueiros do bicho, inicialmente de fora do des lumbraram público e jurados . Uma n ova estétic a fora ap ro vada, des ­
mundo do samba, ocu param o papel de novos mecenas, transforma11:� º bancando facilmente temas folclóricos anteriores, com a ob serv açã o de
pe quenas escolas , como M ocidade Independente de Padre Miguel e Beii a­ que quem gos ta de miséria e pob reza é intelectual .
F lor de Nilópolis, em gran des campeãs . Para os compo�ente s dessas esco­ Na década de 70, a s escolas ad quiriram dimensã o e prestígi o imen­
l as, que a p�rtir daí tiveram a possibilidade de competir �om as grandes, sos , aumentand o o lu xo dos desfiles e o montante de dinheiro inves tido
como Mangueira, Império Serrano e Portela, os b anqueiros p assara� a na festa . A "pa tron agem" dos bicheiros d eu às escol as uma d imensã o
ocup ar O l ugar do gran de b enfeitor . Esses contra�entores !o �
tambem
econômica e s ocial até então impensável e que, l onge d e se manter fora
ra

patronos de clubes de futeb ol e deram às comunidades . n ao so esp aço o


das ma lh as da p olítica, torn ou- se imp or tante in s trumento el eit ora l . A s es ­
do samba, mas O apoio antes esperado do Es tado em diversas obras . so­ col as recebiam de s uas comunidades reconhecimento, qu e era negociado
ciais . Os bicheiros estabeleceram relações de fidelidade e comp romisso com os p olíticos em troca da permissão d a ilegalidad e e d o d ireito de
para com as populações adotadas . A receita do s.u ce �so p or eles �mp�e ga­ l avar abertamente o dinheiro obtid o no j ogo . Como p res id entes das es co­
da n as escolas de sa mb a foi inv es timento, orgamz aç a o e moderni
zaçao . A
l as de samba, os b anqueiros do j ogo do bicho ganh aram acess o às autori­
p artir do investimento d e grandes quanti a s n� �a p esent a çã o � escol as
as 2
dad es e to ta l lib erdade n o mun do d a legalida de. 1 O go vern o m antinh a
n m de seus
como grande espe táculo, a estética d es ses �esfiles ficou as aos
sua política clientelis ta, mas dess a vez d e forma indi reta, com a interme­
produtores e não mais do públ�co consumi� or, podendo os �o v p atr�
� d ia çã o da c o ntra vençã o . C om a criaçã o da Ri o tu r, em 1972, o Es t ad o dei­
os

nos substituir a versã o n acionalis ta dos desfiles por u ma versao . �ode�i xou definitivamente de lado a política de subvenções, qu e antes fora a
zante qu e agradasse aos nov os componentes d as e�colas , a gora J ª �aoça­ b ase das relações e ntre p oder público e escolas de samb a, e p assou a in­
mente oriundos dos subúrbios da cidade . Os desfile s foram orga�izados ves tir n o carnav al como a tividade tu rís tica . O emp resari ado em que o go­
de modo a cumprirem todos os quesitos da " trad ição" p elos quais _eram verno se apoiava era cons titu ído p el os b anqueiros d o bicho. O desfile
j ulgados, não fican do mais as escolas n a dependência � e t� rem ou ,�ªº em das esc o las de samb a tornou-s e uma ind ústri a cultural d a s mai s p od ero­
deira n o ta 1? :. �om­
sua c omunidade um me stre- sa la ou uma p or ta-b an sas, envolvendo em méd ia 50 milhões de d ólares p or an o e mais d e 500
pendo com a norma de que somente laços familiares e de conhgmdade mil empre gos diretos e ind iretos . O movimento de c apital aumentou, e
au toriza v am os víncu los c om as es co las, p a ssou-se a
contratar elementos
as es colas torn aram- se pro du to d e exp o rt açã o, almej and o expres sã o in­
da "tradição ". . . te rn acional . H oj e, c ada e scola do primeiro g rup o necessita no mínimo de
A modernização acomp anhou a ampliação d as b ase s s ooais das 1 milhão e meio de d ólares p ara fazer seu carnaval, mas só metad e desse
nov as escolas de s amb a . No início dos anos 30, gran de p arte da popula­ d inheiro c orresp on de à ven da d e ar qu ib anc adas . A out ra met ade é fin an­
ção d os morros e favel as cariocas era cons titu ída de n e gros e mulatos, e a ciada p or contraventores, por govern os es tad u ais (nã o só do Rio d e Janei­
influ ência de traços cultu rais africanos mostrav a- se clara no s amba, na ro) interessados em apoio e leitoral ou ainda p or industri ais e comercian­
enc ontrav a : a � o r ta da
umb an da e n o cl im a únic o c o munitário qu e l á se tes, es tes em menor p rop orção .
casa estava sempre ab erta aos que ch e g as s e � . p anel a s empre tmha c�­
, ª
A partir dos anos 80, a imprensa começou a divulgar que o "carna­
mida p ara mais u m, e a cachaça era sempre dividida . �esmo ten do �ur�i­ val" podia au tofinanciar-se. O crescimento das escolas culminou com a
u mch o s n o sub urb10.
do n o C entro, 0 s amb a subiu o s morros e enc ontr o cons trução, no gove rno de Leonel Brizol a, d o Sambódromo, em 1984, e
Nos prime iros temp os de sua história, as escol as de s amba estav2am asso­ com a criação da Liga Independente das Escolas d e Samb a (Li esa), " socie­
0
ciadas ao e lemento ne gro, aos se tores populares e às fav el as . _ Mas, a dade civil s em fin s lucra tiv os " que , ao sep arar-se da Associ açã o das Es co­
partir da década de 60, os subúrbios cresce�am e �is turaram-se as fave­ las de Samba do Rio de Janeiro (AESRJ), assumiu a organizaçã o do d esfile,
las, trazendo nov os elementos p ara as mamfestaçoes p opu lares . l!ma . f�­ sendo representante das 10 maiores escolas do ch amado grup o especi al,
vela imensa como a Rocinh a conta com uma população ne gra mmonta- que são as que mobilizam mais pessoas, dinheiro e prestígio. Esse foi um
Um Século de F ave l a Man g u e i r a
136 e Im pér i o
13 7
importante passo p ara a privatização dos lucros dos �esfiles e_ a conquist legalização, atra vés da Liga, d
� a s atividades dos bich
eiros, além de ter
da independência em relação ao Estado pelos banqueiros � o bi�ho que pa força do o poder destes, apar re ­
entemente modificou o p acto
trocinam as escolas campeãs. Nas palavras de um dos idea�iza dores da qual os bicheiros negociavam a nt e rio p o
sua entra da na legalidade com
r el
Lig a e um dos maiores e m ais poderosos chefes da contravenç ao no Rio de ávidos por votos. Se os contra políticos
ventores adquiriram m aior ind
Janeiro, Capitão Guimarães: do Estado, a recíproca também ependência
foi verdadeira . Em m aio de 199
meira vez na história da cidad 3, p el a p ri­
e, 13 b anqueiros do
cadeia por formação de quadr bich o fo ra m p ara r n a
A nova o rg anização se insere na filosofia global de priva tização ilha e bando arma do.
ram indulto e foram liber tados Em 199 6 eles recebe­
da economia, com o af astamento do Estado da quelas a tivida � es , mas a imprensa tem apon tado
de p restígio de alguns deles. a perda
que tanto o desgastam, em detrimento de outras funções � � 1:1ª_10r
Longe de implicar democratiz
densi dade social e que podem ser desenvolvidas p el a micia hva ação da f esta, a ind
Liesa em relação a o Estado traz ep endência da
p riva da.22 novas preocupações. É notório
to do controle do tráfico de droga o aumen­
s não só sobre favelas e grandes
do Rio, mas também sobre as e regiões
scolas de samba . Se a princípio
não chegou às esco las como or o tráfico
As autorida des governamentais defenderam a tese � e que p rivati­ ganiza ção centralizadora nos mo
jogo do bicho, não foi por causa ld es do
za ção seria sinônimo de democratiz ação, pois a renda obtida pel as esco­ de su a fraqueza. Em p rimeiro lug
os traficantes que também são s ar, há
las com O desfile a s to rnaria independentes tanto do �st a dº quanto da ambista s e, qu erendo
,. aveni da e demonstra ndo
ver s eu s s ambas na
contravenção. Com isso, 0 Rio de Janeiro antecipou-se a pohhca a tual de desconhecer quaisquer regras de
põem pela força seus sambas-enr mocráticas, im­
privatizações por que passa o pa ís. A R iotu r ve� d u a os po�c�s, sob edo. 2 4 Sa be-se qu e nas
� da "tra dição" das escola s, a lidera bate ri as, coração
pressão de conhecidos chefes da contravenção, o direito de a dm1rn tra� e nça é dos traficantes. Mas não é
� Segundo, há o caráter o rg anizativo só isso .
controlar os desfiles, o que e nvolve venda de ingressos, co�e �ci: ahzaça o da própria a tivida de de venda de
dro­
gas, móvel e flexível , basea da numa
e merchandising dos espa ços da av enida , di re�tos � ob re te�evis10namento racionalida de burocrática de imp
soal idade, lógica de eficiência e es­
e r edução do imposto sobre s erviços (ISS). Alem disso, a Lig� fundou su a r ota tivida de de li dera
_ seus agentes, chama dos apropriad nç a s, qu e faz de
própria grava dora , que vende anualmente milhões �e cópias �o disco amente de "so lda dos",
, vida m uito curta e alto poder explo mercenários de
que contém os sambas-enre do das escolas. Seg�ndo Hiram Arau10, a pa� ­ sivo . Dispensa, com isso, os anti
códigos de honra e la ços pessoais gos
sarel a do samba "se pagou" em dois anos. Evidentem e1:_te, a a utonomia hierárqu icos mantidos na estrutura
domina ção dos banque iros de bi de
em rela ção a o Esta do não s ignif icou au tonomia em relaça o a os p a tronos: cho, bem como um a série de enc
"sociais" assumidos pelos antigos argos
a democra tização não ocorreu . capas do bicho . Além disso, sabe-se
que o tráfico é um a a tivida de me
rcantil por exc elência,
Com a funda ção da Liga, em 23 de j ulho de 198�, os contraven��­ merca do consumidor, e m ais atraente que cresce com o
res torn aram-se oficialmente os presidentes de u�a entida de l g al, ratifi­ que foli ões enlouqueci dos só a pos
� sibilida de de exportar a merca doria ­
cando seu contro le sobre as escolas de samba. Foram presidentes da .
Apesar de todo o crescimento das
Liga, entre outros, Castor de Andrade (f aleci do recentemente , a os 71 esco las e das negociaçõ
su as li deranças e os políticos, os m es entre
embros associa dos às esco
anos, de p ar ad a c ardía c a ), p a trono da Moc id ade Indepen�ente de P ad re las pou co ou
na da ganharam de 1930 p ara cá.
Miguel com pontos de jogo do bicho em B angu, Pa dre Miguel e Cam�o Pelos estatutos existentes, as lidera
_ das escolas podem ser eleitas entre nç as
G rand: e conhecido como o homem mais p rocess a do do B rasil; A��z seus membros associa dos, mas tais
processos reduziram-se a práticas de
Abraão Da vid, ex-diretor da B eij a-Flor de N ilópo lis, com_ �ontos :m t::'ilo­ confirmação dos eleitos, primeira­
mente por G e túlio, depois pelos bi
polis e Nova Iguaçu; e Aílton Gu imarães Jorge (C�plta o Gmmaraesj, cheiros e, pelo que se anuncia, dorav
te p elos traficantes de drogas. Há an­
aponta do como O g rande a rticulador da criação d a Li s a e um do m is
conflitos não só entre esses diferentes
� � � "donos" do samba, cujo poder se
poderosos chefes da contravenção. A i_mprensa te� divulgado a hg,.aça deve muito m ais a o "mundo exter
do que às comunidades com que no"
� se relacionam, mas também entre
desses bicheiros com cassinos clandestmos, tendo sido C astor de An� ra versos a tores e par tes interessa os di­
das desse inalca nçável mundo externo
de p rocessado pela exploração de um deles n a Rio-�etr�poli�, mas a liga ­ todos esses conflitos, os músicos, . Em
, passistas e componentes estão sempre
ção do jogo do bicho com o tráfico de drogas ate ho1e n a o f01 p rova da. A longe do palco do
poder .
F av e l a M a n g ue i ra e I m pério 139
Um Sécu l o de
138

nos d o p ode r n ão são os


O grito de guerra con tra os cafetões que ch eg am "de fora" do
N o ent anto, 0 que se observ a é que os do sa mba e a denúncia da din âmica acelerada do carnaval mostra m a per­
a d o da fest a, apes a r de to
do o seu contr�le
responsáve is pel o signific cepção aguçada de fundadores ou membros a eles ligados de que as ino­
rnaval nunca foi frut o de rel açoes
sobre ela . A criação do samba e do ca vaçõ es podem faz e r p assa r p ara outras mãos a s réd eas d o esp etáculo. A
s lideranças dos blocos carnav a­
democráticas. Ao contrário, as p rimeira . s a doção de um n ovo ritmo transforma o carn a v a l, fa z com q ue o s amb a
ento que mantinham com sua
lescos foram seu s "donos", e o rel acionam S ­
p erca espaço na a venida e põe em risco a Velha Guarda. O alto custo dos
redo Cost a e r a o "d ono " da �
comunidades era b astante autoritário. Alf desfiles impossibilitou, no pass ado, que moradores de favelas e bairros
r
ssim
rinha ; 0 G aldino, d o P a z e
Amor; o Coutinho, da Lira do Amor, e a p opu la res disputassem o controle da festa . O problema surge também
Quando as escola s s t ­
p or diante (Sil va & Oliveira Filho, 1981 :31). �na com a chegada de novos p adrões culturais trazidos p elas necessidades
o
,
e
m novos d -
o aval do Esta do, g anh a r a do mercado, os quais são alheios ao imaginário dos s ambistas. Afinal,
ram grêmios recreativos, com
o
-
,,
nos , ainda que s ob nova rou
p agem. Em todos esses casos, sabem os ver que há de errado com o verde e rosa e com os desfiles demorados?
e u m setor d a p opu 1 ç - r 1 d
sados no s amba que eles fazem p a rte d � .? - Outra ameaça que p arece atingir as escolas está na crescente frag­
a o e e a o

o da vida na ci n l m nt d p lit dmg mentação e deterioração dos l aços comunitários entre os integrantes de fa­
a se gundo plan o no cenár i
a o a o ela e e en
o
. velas e subúrbios, o que não lhes permite reunir forças p ara disputar suas
te e que su a ma rgem de decisão é pequena , _

s sc s m a lógi c d e m ercad o t ambem nao con marcas junto a um público maior. Quando as portas dos morros e dos su­
A ins rção d
s. N o
a
alte rnativ a às p atronagen búrbios se fecham, por medo da violência generalizada, p or desconheci­
e a e ola nu

titu i, p ara seus p articipantes, u ma boa mento do que h abita ao l ado, p or desconfiança, p or c ausa das competi­
dizer de um deles: ções e das novas formas de individualismo que se impõem, fech a-se
ta mbém a possibilidade do encontro e da reinvenção. N ovas religiões fun­
o c arnav al, que v ivem � o
que tem que a cab ar é com os cafetões d damentalistas e seg regadoras separam não só crenças, mas também anti­
m monte deles fal�n do. Sao gos vizinhos e p arce iros. Segundo dona Neuma, dep ois que novas reli­
carna v al. É você lig ar a televisão e vê u
0

desfile. A lguns estao em ca ­ giões protestantes e carismáticas tomaram conta do mundo, acabaram-se
p ess oas que na avenida at rapalham o
conhece m o carnav al. Car­ as escolas de s amba . Segund o depoimentos de particip antes d a M anguei­
marote c omendo lagostas, falando que
na v al é co isa de cr ioulo e
de malandro. Quem conhece o ca �av� ra, do Império Serrano e da P ortela, as alas das comunidades não chegam
l

dm h i- a representar 30'X, d os componentes dessas esco las. Se p or um l a do dimi­


é mestre F uleir · o e M a, n· o Dentinho (...) · E sses não ganharam
e
ra - n ui a p articipação desses se tores na e scola, por outro aumenta a dos fo­
ro com O carna val. Ag or a
, qu em está n a G lob o, M anchete e n as
l.2 5 liões carnavalescos de camadas médias da sociedade, uma vez que o desfi­
dios é que são os ca fetões do carnava le vem h oje ocupar o lugar dos antigos carnav ais de clube , vendendo-se
camarotes ou mesmo alas p ara turistas de outros estados e p aíses.
denunciar a atual mar- Apesa r do poder dos donos do carnav al, da c ome rcialização da
Dona Neuma mostra-se bastante lúcid
a ao
festa e da crescente fragmentação social das comunidades, as festas car­
cação do tempo: navale sca s continuam a traz er consigo a possibilid a de de um e sp aço em
que a promessa da reinv enção se faz presente. Aind a h oje, os que não
. utos p ra de sfilar. E u ach
Tempo marcado, v ocê tem tantos min _ ,7 têm alto p ode r aqu isitivo não se fantasiam de "sem-terra", e o brilh o e o
o
. . . R 'd o
evia existir , n ao
que isso é uma exigência que não d . � tem p aetê encantam apenas àquel es que desconhecem o luxo na vida c otidia ­
e ,
a i e

na �or a e ... e d�p ois �� o na. No carna val, p or mais empobrecido que ele seja, expressamos o que a
v ocê gasta u m dinheirão pra chegar .
q l s 90 min t s. E g ostar mmto . Eu J ª hr:11 ª razão não é capaz de explica r: a presença e a sensualidade do corp o e os
mais carnaval. É só
dá ampla liberd ade da escola desfilar
ue e u o
múltiplos e ambiva lentes significados que podem h a ver entre v ida e
a

acab a do c om O ca rn av al. Ou
carnav al. P orque a gente , morte, velho e novo, pass ado e presen te. As escolas de s amba até hoje
onde quisesse ou então acabava com o
eu acho, fica restrito só na qu
ilo . Você tem que montar no ca v alo e mantêm uma divisão entre os setores e a las da comunidade do samba e
de mostrar a graça da aqueles qu e são abertos ao público em geral e comercializa dos, o que pe r­
chu c, chuc, chu c... não p ode samba r, n ão po mite u ma troca contínua entre diversos setores da s ociedade, c om suas
fantasia .

:i\ i.,
Um Século de Favela Man g u e i ra e Império 141
140
a cion a l qu e
qu e faziam parte, além de Ismael Silva, Níl ton Bastos, Bide, Ma no Rubem,
. g s r , rias e c a racterís tica s . Há u m a d u a lid a d e organiz Mano Edga r, Baiaco, Brancu ra e ou tros, revelava a incursão do ritmo negro
1m � a
� l c mp or tar-se co m o in s titu
ição hie rarqui zad a e ab erta ,
per m1 p ;:c no sis tema musical branco, servindo aquele samba novo para o bloco p oder
seu es pa ço n o diá l o
g.,.0 c o m ou tros (D a
e a o a o

nd e setores lo c a is ga ra nte m e i ra , a l a
and ar.
est re- s al a e p o rt a -b a nd
�a tta, 1 980; C as tro , 1 994 ). M
as

m � a . !ª� s :t:�
m de 8. Entrevista a o foma[ do Brasil, 19-2-1995.
e b a t er i a , or ex e mp
lo , sã o ap en as dos qu e e n tend e
sa

a se r c �p � tas d e
r ias sã o p�rte fun d a
m en tal d as e s col as e c ontinu am
o o
t m 1mp o�- 9. Em entrevista a nosso grupo, Hiram Araújo, por exemplo, personagem
se tores
em d as e sc o l as . E sses
p ess oas d a c omu m· d ad e d e o rig
e
t r d1- importan te no cenário da s escolas de samba, considerou a década de 50
· a- es d e d eterminad a 1de · nh· d a d e o
tanoa n ão p o r ser em os gu ardl . . d e qu e
u a
A
da como a do "verdadeiro " surgimen to da s escola s de samba.
- ços e p oss1'b 1T1d ad es d e sociab1h
ç a o, mas po r ma nte re m e s p a ca n v l c as e , c o m 10. Matos (1982) enfa tiza qu e malandros nã o eram vagabundos, p ois traba­
e nta r sua s t ra diçõ

pe rm1· tam a os s am bis tas r e inv


es r a a e s

· gma · ç ã h m n a n e ces - lhavam em bisca tes, mas gos tavam da boa vida, de mulheres, eram valentes
, sentime nto e ima
e1as , a libe rd ad e d e p en sam ento
o u a
e nunca aceitavam o trab alho co tidiano, prol e tário, que sign ificava para eles
s ária ao seu diá l o g o c o
m o mu ndo .
confinamento na pobreza .
1 1 . Sobre o es tudo d os asp ectos associativos presentes no carnaval carioca,
bem como da relação en tre essas experiências e a exis tência dos espaços pú­
blico e privado na sociedade, ver Santos (1996, 1997).
. . .
o ap010 de b ol sist a s
de iniciação científica
Notas

1 . E ste trab alho foi realizad o com m em e ntrevis ta s e pe squ i-


.
finan ciad os pe1a UerJ· e pel º, CN Pq' que aux1·1·,iara . 0 . Freita s' José Carlos Vera
12. Sobre a memória e a his tória do carnaval carioca, ver, e ntre o utros, Mo­
.
sas em arqu ivo s . Sã o
eles Flavia T. Guerra, Flavio . raes (1987), Efegê (1965, 1982), Guimarães (1978), Jório & Araújo (1969), Silva
ento .
p a t '
no ·a T d Lim a , Ren a ta de M. Rosa e Roberto B. N ascim & Santos (1980), Silva & Oliv eira Filh o (1981), Silva et alii (1980), Valen ça &
Cruz, · Val ença (1981) e Riotu r (1991) .
e
. ba Mangu eira
, pres1dente da E. scol a de Sam
2 . O debate entre Ivo Meire.lles fo1 assu n to b em n o
.
t·ioado pela 13. O ún ico entrevis tado que nã o compartilhou da v ersã o c orrente de que as
ante d c l
em 1994 ' e os antigos particip
s a es o a

· Rw · , 1·an. 1994 . primeira s escolas de sa mba s urgiram em 1928 foi Ed Miranda, membro da
imprensa . Ver, por exemplo, Ve;a Velha G uarda da Mangueira, que a ssociou o início das esco la s à sua legaliza­
oc u rand� �nterpre ta
_r
sos trab alhos vêm pr
3 . De sde a déca da de 70' diver

o a 1s ção : "Há quem diga que nesse período (1928) nasceu a e sco la de samba, por­
st- es pohhc as e
carnaval escas e mos;ra��\�: �
so
signi fic a d o d as fe s tas p ocessos e e st u que as pessoa s diziam 'eu te espero lá na escola', no Ins tituto de Educaçã o . O
que lhes são .ineren.tes, bem c
rut ras
que aconteceu foi o segu in te : numa feira de amostra, em 1934, no morro do
campos da antrop ol o­
ª
n
sócio-econôm1c a s .
�1� alguns �;::� r;�e:��tes Cas telo, qua ndo nós fomos convidados a nos apres entar com mais ou menos
os
198 1b), Leopoldi
. � Da Matta (1973, 198 0, 198 1 a ,
gia social e da h1s tona cul t ural. eiroz (199 2), Ch ine
lli & Silva 100 componentes, estavam lá Pedro Ernesto e o dr. Lucídio Go nçalves . Her­
d ig (198 4), G oldw ass er (198 9) , Qu mes Calça Larga, seu Benedito, mestre F uleiro e seu Armando Santos co­
(197 8), R o r ues
(199 4).
(199 3), Castro (1994) e Pereira men taram que seria a hora de fal ar com os homens para legalizar nossa situa­
a d o por n ossa eqmp
· e um ano antes de morrer, ção porque a polícia nã o podia ver a gen te com algum instrumento de sam­
4. Mestre Fu leiro foi entrevist ba , que p rendia e saía batend o na gente. E o dr. Pedro Ernesto falou p ara o
em fevereiro d e 199
6, aos 85 anos . dr. L ucídio p ara legalizar a nossa situação , e marcamos nu ma segunda-feira,
91) e Au gras (1993) . na 3ª Delegacia Auxiliar. Nesse p eríodo não havia escolas de samba, p orque
5. Ver, entre o u tros, Riotur (19
. . s com d na N euma e don a Zica en tre 1994 e os ra nchos é que es tavam no apogeu . Chegando na delegacia , o dr. Lu cídio
ta
6 . Fizeram-se va, nas ��trev1s ncia da dire- falo u: 'Já que são v ocês qu em fazem as música s, compõem sambas e brin­
an har 1u n to com el� s a trans ferê
c mp

1997, o que nos perm itm cam, en tão é um grêmio . En tã o pa ssará a ser ch amad o Grêmio Recrea tivo Es­
,, d ermzador,, ' de Ivo Meire lles , para o grupo de-
.
a o

toria da escola d o grupo mo cola de Samba Fulano de Tal'. Apesar de os livros falarem que foi próximo
dos Santos .
fensor da "tradição ", de Elmo de uma escola normal, o que acontece u foi isso que te con tei".
Guimarães ,
ram esse e isódio (Cabra l, 1974;
7. Mu itos sã o os autores que nar (198 2:41 ) ob- 14. Rena to Ortiz (1985) mos tra como a obra de Gilberto Freyre, ao transfor­
3, entre ou�ros) . Claudia Ma tos
197 8; Tinhorão, 198 1; Mou ra, 198 no samba d E tácio' de mar a nega tividade do mes tiço em positividade, permite completar os contar-
, ia · da s,,mcopa , que se ace n tuava
s
- · s tenc
o
serv a qu e a ms1

D
142 Um Sécu l o de Favel a Ma n gue i ra e I m pér i o
143
nos de uma identidade naciona l que vinha sendo desenhada . Queiroz (1992) Referê nci as bib liográficas
também analisa como o modelo "mestiço" do ca rnava l da s escola s de sa mba
Augras, Monique. A ordem na d . . .
cariocas torna -se "tra diciona l" e signo de brasilidade. esordem. Revzs
' tn Bras1le 1ra de Ciências Sociais
(21):90-103, 1993.
15. Os da dos a qui citados sobre a a dministração de Pedro Ernesto têm como Cabra l, Sérgio. As escolas de samba:
o quê, como, qua ndo e por nuê· Rio de
·, .
Jane1-
b ase G awryszewski (1988). ro, Fontana , 1974.

história do rádio e dn MPB · R"10 de J


16. Depois que foi a fastado do governo por Getúlio, em 1936, a cusa do de li­ ---. N_o tempo de Alm iran te: uma
gações com comunistas, Pedro Ernes to ficou a lgum tempo na prisão a té ser Francisco Alves, 1990. ane1ro,
solto, mas sem direitos de atua r politicamen te (G awryszewski, 1988). Ca rvalho, José Murilo de. Os best
ializados. São Paulo Compa nh1·a da s
1987. ' Le tras,
17. Ver depoimento de Ed Miranda, no início deste tex to. Observe-se tam­
bém que Pedro Ernesto acumulou basta nte prestígio político entre 1933 e Cas tro, Maria La ura V. Cnnznvnl cario
ca: dos bastidores no desf .
Funarte, 1994. Y 'ile · Rio de Ja ne1ro,
1935, elegendo seis dos 10 candida tos a deputa dos consti tuintes e, depois,
elegendo-se como prefeito em 1934. Chinelli, Filippina & Silva, Luiz Ant
· onio Macha do da O va z1·0 da or
1�çoe
- s pol'ihca s e organizaciona is en tre as escol · dem·. re-
1 8. Ver "Carta ao Exmo. Sr. Dr. Pedro Ernesto", de Flávio Costa (CPDOC/ .
a s de samb a e o Jogo
bicho. Revista do Rio de Jane iro, 1 ( 1):42 d0
FGV PEB-34/ 1 1 / 08). _52, 1993 _
Costa , Haroldo. Salgueiro: ncade111in
de samba. Rio de Janeiro, Record, 1984
19. Dirceu Nery era um a rtista plástico conhecido não só como responsável .
Da M� tta, Roberto. O carna val com
pela pa rte folclórica d a exposição Arts Primitives et Modemes Brésilie11s, apre­ o tito de passagem. ln: Ens aios de antr
logzn estru tural. Petrópolis, Vozes, 1973 opo-
senta d a no Museu de Etnogra fia de Neuchâ tel (Suíça ), como também por .
su a s a tivida des de cenógra fo e baila rino na Compa nhia de Danças Bra silia­
---. Cnmnvnis, malandros e heróis. Rio
deJaneiro, Za ha r, 1980.
,� social · petropolis, Vozes,
na, que se a presentava fora do pa ís. Ele e sua mulher abrira m ca minho ---. Relativizando: uma introdução
il nntropoloain
p a ra a apresenta ção de novos tema s liga dos a o folclore nos desfiles (Cos ta, 1981a .
1984). --- . Universo do canznvnl: imagens
e reflexões. Rio de Janeiro p·ma ko tl1eke,
198 1b. e
20. Sobre a integra ção da s favelas no complexo urba no ca rioca , bem como
'

sobre a importância do sa mba e do futebol na complexa organização desses Efegê, Jota . Ameno Resedá, o rmzc/10
,1ue fiai escola. Rio de J ane1r
· o, L etras e
loca is, ver Leeds (1978). Artes, 1965.
---. Figu ras e coisas do cnnznvnl carioca.
21. Chinelli & Silva (1993). Rio
de Ja neiro, Funa r te, 1982.
G a ryszewski, �lbert?. Adminis traçã
22. Folha de S. Pa u lo, 24-3-1988. �931- 1936. o Pedro Ernes to: Rio de Janeiro (DF)
U111vers1dade Federal Fluminense ICH
tra do.) ' F, 1988 · (Tese de Mes-
23. Chinelli & Silva (1993).
Gol w sse , M. Jú ia . � p�lácio do
24. "Diretor da Divisão de Repressão a Entorpecentes (DRE) garantiu que ;e ; � � samba, es tudo antropológico da Esco
am a Estaça o Pnmetr a de la
Ma ngueira. Rio de Janeiro, Iuperj, 1989
um dos autores do samba que va i cantar o enredo do Império (...) é o chefe .
Gu es, Francisco (Vagalume). Nn roda do samb
do tráfico de droga s em Del Castilho." (Jomnl do Brasil, 1 1-10-1996). "Quem ��;;� a. Rio de Janeiro, Funar te,
esba rra com Teta pelas ru as ou botecos da Vila fa mosa não desconfia nem
por um momento de que sej a um dos principa is tra ficantes em ação no Rio. Iba c. Bibliografia do carnaval brasileir
o. Rio de Janeiro, Ibac; UFRJ, 1992.
(...) Teta não neg a a paixão pelo samba. 'Só falo se o assunto for samba '" (O Jório Amary & Ara uio, ,·
' . Hiram
" . Escolas de samba em desfile. Rio de Jane
Dia, 9-10-1996). gra, f1ca, 1969. iro Poli-
25. Entrevista rea lizada com Pa ulinho, filho de Mano Décio da Viola, em Leeds, An thony & Leed s, El"izab
eth · A soc10· logzn do Brasil urba no. Rio de Jane
' i-
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Um
1 44
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i ,w m ilha r: sa mb
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silei ra. 8 e d. Sã o Paulo,
e

ogia da cult u ra bra


t i m a R e g i n a C e c c h e tto
i h e. l
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110 Rio de Janei ro .
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Brasiliense, 1992. _
o, 199 1. s obre as galeras funk cariocas . Foca rzo, principalmen te , os bailes de " cor-
o ca rnaval. Rio de
Janeiro, Oficina do Livr · : k
Rio tu r. Me mó ias d re d or ", uma mo d alid ad e de ba i1e ; Wl que integra o con fron to v i olen to
itec,
anca. Sã o Paulo, Huc ·
r
.
. negr o, espoliação br en tre turmas d e 1 ov ens d o s exo mas culino · Nas g a1 era s, tom a-se fund a-
Rodrigues, Ana M aria Samb a . , . ,
menta l p ossu ir atributos corp orais necess anos à 1 u ta com os a dvers arias ·
1984. m m á s­ , . . - .
o carnaval s e As fa1as explicitas s obre a "disp " osiçao p ara brigar" , assim como o clima
a ba d Ri o de Jan eiro: . .
olas d C ongresso Luso-
Santos, Myrian. As esc
o
esentad o n o IV de J ocos idade e agressão e o gosto pel o des af10 que cara c terizam essa
e s m

199 6. (Trab alho ap r .


caras . Rio de Jan eiro, farma d e int eração 1· uvenil, são maneiras de afirmar e1emen tas centrais de
ncias Sociais.) .
Af ro-Brasileiro de Ciê Ecua­ um estil o masculino v iolen to na es fer.a d� la zer : o lúdico e o ethos g uerrei-
eiro . Quito,
rgy an d fraternity in Rio de Jan ·
-. Schools of a ba : o
esso Internacion
al de meri-
A ro . Tenciono an alis ar o s tipo s d e b ail e existen tes na od a d e, con s i d eran d o
o no 49 Congr
s m
balh a pre nta d º
o p a pe1 que eles d es emp enh am na produ ç ao - e rep roduçao - desse e stilo
dor, 1997. (Tra o s e

canistas.) ·
m as cu 1m o g uerreiro nas g aleras.
ne iro, José Olympio,
a Ba rb za t ali i. Fala Ma ngueira . Rio de Ja
Silva, Maríli o e

1980. e­
r L. d e . Sila s de Olive
ira: do jongo a o smnba-enr Os tipos de baile
, A rthu
- & Oliveira Filh .
, e, precis o te r disp os ição p ara p er-
o
rte, 1981 . P ara conhecer uma galera funk
do . Rio de Janeiro, Funa u lt u ras . Rio .. . o s eg uros da ci-
ço de união entre d u as c correr p raças e recantos e a té fre quentar lugares n ao- mmt
L ygia. l o da Po rtela, tra
dad e. Alguns de seus in teg rantes so, p u deram falar com igo d entro d e
Pa
- & Santos,
u
e, 1980 .
de Janeiro, MEC; Funart a à can ção
u ena h is tória da
mús ica pop ular: da modinh
Tinhorão , J é Ra mos . Peq
zes, 1981 .
os

de p rotesto . Petrópolis, V o do n
: A TIMA REGIN= CECCHE;;� � da ��iv�i�;���� �o Estad o do Rw de Ja eiro (Ueri" ) ·
io. Serra, Ser ri nha ,
Serra n o: imp ér io
Este trabalho é uma versão mod 1· t1· ca da d e um ap 't1 uI o d ª tese de mest ra d o "Ga lera sfu nk
u l & Va l ença, Sue tôn ,
Valença, Raq e I. oca�: o baile e a r ixa " , ap resen tad a no Progr:m de Pos-graduação em Ciê ncia s Sociais
é Olympio, 1981.
e

sa m ba . Rio d e Janeiro, Jos Paz e


:
d lnstituto d e F ilosofia e Ciê ncias Huma nas �a �eq em setemb ro de 1998. Ag radeço a
mo na po lítica bra
silei ra . Rio de Janeiro, Alba Zaluar a s sugestões dada s sob re o t e;'a d0 e //10s. gue rre i_ ro.
Weffort, Francisc o. O p op u lis
Te rra, 198 2.

1. ,
Um Século de Fave l a
146 G a l er a s Funk Cariocas
____
........ .... . - - ·�.... 1

suas áreas (favelas), pois sair dos arredores era considerado perigoso. Se­ O baile "de corredor"
gundo me relataram, eram "pichados" 1 na rua. Como veremos, para
eles isso implica, até certo ponto, a impossibilidade de freqüentar alguns As informações aqui veiculadas provêm de minha experiência de
lugares ou áreas próximas - como ruas de acesso a outras favelas, shop­ pesquisa em um determinado clube na Zona Oeste do Rio. Esse clube,
pings, lanchonetes -, pelo fato de serem facilmente identificáveis por que freqüentei durante seis meses, era basicamente dividido em três
membros dos grupos rivais. Passear, cantar ou namorar em uma comu­ ambientes. O espaço situado no primeiro nível é onde ocorre o baile.
nidade do comando rival representa, nesse caso, risco de vida. Mas nos No centro dele há uma divisão demarcada por uma fileira de homens
bailes, que são o ponto de encontro das galeras funqueiras, os jovens cir­ corpulentos e uniformizados: são os seguranças, que ficam de frente
culam livremente. para as galeras e, ao que tudo indica, têm suas áreas de ação delimita­
Ainda que a maioria dos bailes se concentre nos subúrbios da das. Ainda nesse andar situa-se um palco acoplado a uma parede de cai­
Zona Norte, recentemente ocorreu uma expansão para a Zona Oeste e a xas de som. No centro dela fica o DJ. No andar de cima ficam os espec­
Baixada Fluminense. Os bailes são realizados em antigos clubes de bair­ tadores, os namorados, os integrantes das galeras, realizando as tarefas
ro, quadras de algumas escolas de samba, terrenos baldios e até Cieps que compõem as etapas dos concursos de que falarei mais adiante. No
(Centro Integrado de Ensino Público). Tais locais, como pude constatar, clube há uma área externa, para descansar, arejar e paquerar, que em
invariavelmente possuem precárias instalações; a área física destinada ao princípio é considerada neutra. O acesso ao clube é feito através de
baile é às vezes incompatível com o número de freqüentadores. duas entradas diferentes, de forma que as galeras rivais não se encon­
Os bailes funk atualmente podem ser reunidos em três categorias: trem.
"baile de corredor", "baile normal" e "baile de comunidade". Entre o "O baile de corredor" é o momento maior de uma galera funk;
"baile normal" 2 e o "de corredor", a diferença reside na articulação entre nele são acionadas as marcas distintivas entre os grupos. Esse tipo de
o binômio espaço e tempo para o confronto. No primeiro, ele é controlado baile dá visibilidade às galeras, expondo abertamente a oposição entre
e limitado mais severamente pelos organizadores. No segundo, como assi­ elas. Divididos em dois grandes blocos, denominados "lado A" e "lado
nalou um DJ, "a briga é organizada", isto é, o baile é dividido em territó­ B", os jovens compõem uma figuração mais ou menos ordenada em
rios, para que as galeras se confrontem abertamente. Nos dois tipos de bai­ torno de uma linha imaginária que serve para separar os "amigos" dos
les existem também as áreas consideradas neutras (acessos e bares, por " alemães" . Embora intrigue, essa inflexível classificação é a que os inte­
exemplo). Diferentemente das modalidades anteriores, no baile "de comu­
grantes das galeras utilizam para se reconhecerem tanto no baile quan­
nidade", como veremos, esses confrontos simplesmente não existem. to fora dele. No baile, apesar de haver muita gente, avistam-se alguns
Cabe esclarecer, contudo, que meu ponto de partida foram os con­ rostos na multidão que ganham expressão guerreira. De surpreendente
textos no quais esse estilos são construídos. Em outras palavras, não semelhança, essas fisionomias superpõem-se tão insidiosamente que
estou afirmando que o comportamento violento seja uma peculiaridade confundem os espectadores, magnetizados pela estética aguerrida da
dos rapazes que freqüentam os bailes funk ou que todos os funqueiros ca­ festa.
riocas façam parte de galeras que brigam nos bailes e, por conseguinte,
Por motivos não muito bem explicados e nem sempre claramen­
adotem códigos guerreiros. Os dados etnográficos recolhidos no campo
te identificados, o atual padrão engendrado nessa configuração espa­
refutam a articulação mecânica que é feita entre a música funk e a violên­
cial do baile responde a uma dinâmica intrincada. É corrente associar
cia juvenil. Variáveis como tipos de baile, rixas juvenis, relações de gêne­
essa divisão à mesma lógica prevalecente nas quadrilhas que dominam
ro, disputas mercadológicas entre os organizadores das festas devem ser
o tráfico de drogas nas favelas cariocas, isto é, organizações criminosas
levadas em conta de modo a relativizar uma afirmação genérica quanto
conhecidas como Terceiro ou Comando Vermelho.4 No entanto, como
às práticas violentas no baile funk carioca.
veremos, pode haver galeras que brigam em bailes e mesmo ruas que
A questão que me proponho é demonstrar como os bailes e as ati­
são de áreas ditas pertencentes a um mesmo "comando". E pode haver
vidades neles existentes engendram uma ou outra experiência entre os jo­
lealdade entre galeras de comunidades cujos comandos são diferentes.
vens das galeras, abrindo o debate sobre a relação entre estilos e contex­
Os dois lados, todavia, conjugam comunidades de várias áreas da ci­
tos juvenis.3
dade.
148 Um Século de Fave l a Galeras Funk Car i ocas 149

Dança, luta e o controle da emoção le da excitação e a coibir, por exemplo, o uso de instrumentos cortantes,
como facas ou giletes. Para reduzir os danos físicos - que muitas vezes re­
No baile "de corredor", os funqueiros dançam ao mesmo tempo sultam em ferimentos graves e complicações para os organizadores -, as
em que lutam. Entoam estribilhos e gesticulam de f�rma a demo�st�ar invasões de território são controladas, e o "tempo de porrada" é também
sua hostilidade e "disposição" para brigar. Pode-se dizer que o obJetlvo limitado, seja em grupo ou num duelo específico que os funqueiros cha­
da galera no baile funk "de corredor" é a invasão do território rival. N? mam de "mano a mano", isto é, um confronto "corpo a corpo" onde o que
"corredor", os grupos rivais dirigem sua atenção uns para os outros e cm­ conta é tirar uma "diferença" sem a interferência dos demais.
dam para que o seu "pedaço" não seja invadido pelos "alemães". Alguns Alguns organizadores mais ousados costumam interromper o
investem com fúria, os punhos cerrados, atingindo o corpo e mesmo o
baile quando a excitação está no auge e atinge as áreas neutras, ou por
rosto (locus simbólico da honra) dos oponentes; outros recuam alguns
qualquer motivo que lhes convenha. A tensão é permanente, mesmo
passos, após receberem pontapés, e procura� refúgio no grupo _maior.
para os que estão fora do ringue. É um divertimento nervoso. Paradoxal­
Outros, ainda, ficam perdidos e procuram disfarçar o constrangimento
mente, a briga é incentivada quando "tá devagar".
de terem que se proteger das brigas nas precárias instalações existentes.
Um jovem assim me descreveu as diferenças entre os bailes: "nos
Contudo, um entrevistado fala da emoção proporcionada por essa bailes de comunidade só vão galeras amigas; nos bailes de clube, como o
modalidade de baile, emoção que não se encontra nos bailes que não têm M [clube], é baile de corredor, e cada galera sabe seu lugar. Mesmo quan­
briga: "essa é a única hora que você pode ver a cara do 'alemão' ( ...), de­ do não tem ninguém brigando, o dono da equipe manda parar o baile
para com o bonde todo ( ... ), tem emoção". E prossegue: "briga é cabe­ pra brigar".
ça (... ), quando a pessoa sente dor ela vai recuando ( . . . ), a dor é física".
É importante acrescentar que as invasões de lado acontecem deze­
Esse relato mostra bem como as atividades das galeras no baile re­ nas de vezes durante o baile. Alguns saem machucados, vão para "enfer­
querem o uso intensivo da força física. Um porte físico ��ivilegia_do é �1:1ª marias" improvisadas no clube. Dependendo da resistência e da gravida­
poderosa marca de masculinidade relacionada a papeis de disposi�ao, de dos ferimentos, vão embora ou retornam à linha de combate. Quando
"sujeito-homem", "raça". Todavia, pode-se ter um corp? fraco e �ngar os brigões "tomam prejuízos", ou seja, sofrem ferimentos sérios, são en­
bem. A expressão "briga é cabeça" confirma que, para alem dos atributos corajados pelos seus pares a "dar um tempo", ou seja, sair do corredor. É
físicos, a luta depende de qualidades psicológicas como temperamento e então que outras lideranças com "disposição", ou seja, capacidade de
ânimo para acabar com o adversário. luta, assumem a linha de frente para assegurar a reputação do grupo
No "corredor", os confrontos são intermináveis, sem que se possa diante de outras galeras. Assim, no baile "de corredor", os jovens não
saber exatamente quem são os vencedores e os vencidos numa luta vale­ temem os danos físicos que sofrem ou que provocam. Ao contrário, estes
tudo. A partir de uma posição inicial, os lutadores se mantêm do início podem representar uma espécie de emblema, uma medalha, numa de­
até o fim mais ou menos interdependentes, movimentam-se, reagrupam­ monstração do "ethos da virilidade" (Zaluar, 1988), da capacidade de se
se de acordo com o lado que ocupam, em resposta uns aos outros, como firmar como "homem", "força jovem", ou mesmo da crença na sua inven­
num jogo, porém sem regras explícitas. Nesse ca� o pensar no bai�e como cibilidade diante da morte. Por isso, os melhores lutadores tendem a se
um jogo é pensar num habitus da disputa não-ovihzada no sentido que tornar líderes; em geral, quem vai para o corredor tem que brigar tenaz­
'.

Elias (1992) empresta a esse termo. mente para demonstrar força, coragem e virilidade.
Todavia, algumas regras são asseguradas, ainda que oralmente. Através das brigas, da encenação dramática dos confrontos, ex­
Uma delas é a tática usada pelos funqueiros para se protegerem mutua­ pressam-se valores culturais importantes, como honra masculina, solida­
mente durante a permanência no corredor, dando a mão a um parceiro riedade grupal e condutas morais. Não pretendo me deter no enfoque da
para que ele possa lutar sem ser arrastado pelos rivais, _fi��nd� de "bucha" honra,5 mas, na prática, entre os jovens, a busca de respeito, o ganhar na
ou saco de pancada. Outra é que a invasão do terntono e controlada, moral é uma batalha cotidiana em que a respeitabilidade é conquistada
ainda que de maneira bastante flexível, por seguranças que empu_nham sobretudo nas brigas constantemente travadas com os grupos rivais.
cordas ou cassetetes e se introduzem entre os lutadores para separa-los e Como me disse um líder de galera, "você ficando junto com a galera, 90
realinhá-los novamente no corredor, quando passam dos limites. Essas mil pessoas, ninguém vai se meter com você; tem proteção ( ... ), a galera
ações visam a manter sob vigilância o que se poderia chamar de descontro- dá poder".
150 Um Século de Favela G a l e ras Fu n k C a r i ocas
151

Alguns líderes de "galera de briga" chegam a atestar que a existên­ ferências sobre as relações de gênero nesse universo parecem recair sobre
cia de dois tipos de bailes implica divergências nas atitudes dos funquei­ a percepção do feminino/masculino como esferas empiricamente separa­
ros: o "baile de corredor" é de "emoção", o "funqueiro é disposição", das e opostas, mas pode-se afirmar que, entre os integrantes das galeras,
quando não há briga é porque "só tem p layboy" que "peida" (recua). Por­ existem percepções ambíguas sobre esse estilo masculino violento: por
tanto, o funqueiro de briga é um sinal diacrítico (diferenciador) recorren­ um lado, é admirado, cultivado e reproduzido cotidianamente, como
temente acionado pelos jovens que lançam mão dessa classificação para parte das relações interpessoais; por outro, é denunciado e repudiado. Os
se distinguir dos outros, os "mauricinhos do asfalto". funqueiros sabem que as brigas são violentas, embora dêem aos confron­
Os confrontos físicos parecem desenvolver uma forma de lingua­ tos no baile uma conotação de "brincadeira séria". Uma hipótese seria
gem rudimentar através da qual se comunicam os jovens. Os funqueiros considerar que essa tensão oriunda de masculinidade ameaçada desempe­
integrantes das galeras são jovens geralmente nascidos em favelas, co­ nharia um papel na constituição do ethos em questão.
nhecem-se desde a infância e conhecem bem o ambiente em que vivem
seus adversários de baile. Cruzam-se, entreolham-se e distinguem-se
como jovens da cidade. Há um mútuo reconhecimento. Sou da comuni­ O "bonde" das galeras e a reciprocidade agônica
dade tal, parecem dizer uns aos outros. Quase todos falam numa gíria
que só pode ser compreendida pelos iniciados; os dançarinos/ guerreiros Uma peculiaridade do baile "de corredor" são os "bondes de gale­
manifestam-se por gestos e expressões corporais ou fisionômicas que ra" e seus respectivos gritos, uma das marcas mais importantes a serem
prescindem da palavra: articulam barulhos incompreensíveis, quase exibidas durante o baile. O "bonde" é um termo utilizado pelos integran­
inaudíveis, entregando-se maliciosamente às delícias dos chutes e ponta­ tes de galeras para designar a reunião ou aliança com galeras amigas. O
pés, às vezes não muito lúdicos. rito de entrada do bonde no baile reafirma a importância da galera peran­
As meninas dançam imediatamente atrás da linha de fogo e ficam te outras. Somente depois de entoarem seus gritos, percorrendo seu terri­
encarregadas de segurar peças de roupas e objetos de valor. Nunca assisti tório, é que começam a lutar. O tema freqüente desses "gritos", cantados
a um confronto ritualizado de mulheres nos bailes, mas ouvi relatos sobre em coro, é a exaltação do nome das comunidades, pontuada por referên­
um "corredor só de mulheres" num clube de um bairro da Zona Oeste ca­ cias aos "comandos". Além disso, contêm palavrões e xingamentos que
rioca, no qual as moças vão para a linha, porém num espaço separado do procuram desqualificar o adversário, pela covardia ou fraqueza de seu
dos homens. As brigas são mais aceitáveis entre os homens; entre as mu­ "bonde". O "grito" também serve para revelar quais são as outras gale­
lheres, segundo os funqueiros brigões, "dá muita sapatão que bebe cerve­ ras que formaram "o bonde" e fizeram a "união". Dependendo do grito,
ja sozinha no bar". O aspecto jocoso dessa afirmação evidencia· às atribui­ pode-se ver se estão "fortalecidas" (fortes) ou "humildes" (fracas); se
ções de gênero particulares ao universo estudado. Nas galeras, todos os estão de "mulão" (grandes) ou "mulinha" (pequenas). Nos gritos, o que
assuntos entre os rapazes se prestam à brincadeira;6 mas as representa­ conta é dar visibilidade aos territórios, ou seja, favelas, bairros e conjun­
ções em tomo das proezas (ou fraquezas) masculinas são o alvo predileto. tos habitacionais de onde vêm os funqueiros. Os "gritos" expressam aber­
As pilhérias envolvendo as classificações de macho/bundão/responsa/ tamente essa determinação de vencer o adversário: "tropa de elite, osso
bucha serviriam para ridicularizar o desvio e assim contribuir para fortale­ duro de roer, favela é o bonde do mal. ( ... ), ah ah, uh uh, somos os cape­
cer a imagem do funqueiro-disposição. É interessante notar, porém, que tas do Pilar, quem não correr, vamos quebrar".
essas marcas da masculinidade (valorizada) são relativizadas entre os pró­ Essas alianças visam ou ao ataque aos oponentes em incursões
prios parceiros. O brigão sofre acusações do tipo "ser neurótico" por "ir fora dos bailes ou ao fortalecimento da galera para participar e ganhar os
pro baile só pra brigar, em vez de pegar mulher". A imagem retratada da festivais. Um bondão ("cerca de 200 cabeças") é fonte de prestígio e alvo
mulher, nesse caso, é de um ser acessível, pronto a contatos sexuais súbi­ de recompensas materiais e simbólicas oferecidas pelos organizadores.
tos. É claro que muitas vezes isso diz não como as coisas são, mas como Esses alinhamentos, que definem o "bonde" como a reunião de várias ga­
deveriam ser. Os constantes questionamentos sobre os confrontos no baile leras amigas, segundo meus informantes, p9dem representar "alianças"
geram inquietações, e alguns tentam "se safar" de dar maiores explica­ (afinidades) entre galeras de comunidades ordenadas ou não pelo
ções. Mas quase todos os informantes dizem ser essa uma "fase de baile", mesmo "comando" do tráfico. É comum, no circuito funk, ouvir a expres­
na qual predominam adolescentes entre 15 e 17 anos. Em princípio, as re- são "funk é funk e tráfico é tráfico". Apesar de trivial, ela é reiterada pelos
152 Um S é cu l o de F av e l a Gal e ra s F unk Car i ocas 153

jovens que não querem ver suas imagens prejudicadas. Nessa linha, o re­ uma desavença com Campinho/Pombal/Fubá. Mas tudo era
lato de um funqueiro-líder de galera, 24 anos, revela uma intricada rede amigo, tudo era amigo do Urubu. E aí o pessoal do Escadão pas­
de alianças e rivalidades. Falando sobre a rixa antiga entre galeras, relati­ sou a brigar com Campinho/Pombal/Fubá. Tudo rolava no CCIP,
viza a influência das quadrilhas: era o baile do momento. Naquela época, os moradores entravam
na justiça. O Manckenzie também ficou fechado.

A rixa do Juramento [comunidade] com a Nova Holanda [comuni­


dade] é antiga. Foi porque eles mataram dois moleques. Tem gale­ - Quantos anos você tinha?
ras que os donos do morro tão na paz e galeras que tão em guerra
(...) e aí os donos mandam recado que não querem briga no baile.
Isso não acontece se as galeras de comandos diferentes forem ami­ Eu vivi essa história; tinha 16 anos. Eu ia pra todos os bailes, todo
gas. Eles não têm como pedir pros donos parar a guerra (...), esse domingo, do Luís Carlos Nascimento. Até um dia que os traficantes
negócio de galeras que seguem os comandos não tem nada a ver. do lriri tomaram o Urubu e mandaram os moleques do Urubu parar
Tem umas que brigam mesmo sendo de comandos iguais, mas bri­ de brigar com o Iriri. O Escadão já tava brigando com o CPF (...).
gam porque têm rixa antiga de bailes e são de outras áreas. Então mudou o clima, quem era amigo do CPF era alemão, e come­
çou a diferença do Iriri/Urubu. O Faz-Quem-Quer era a menor
mula (Bundão). O alemão do dia-a-dia. E resolveram não brigar com
Muitos alegam motivos espúrios, que resultam em confrontos per­ o Urubu. O CPF começou a chamar o amigo. Até que um dia, num
manentes: "foi porque os moleques roubaram o doce de Cosme e Damião show em 92, começaram a brigar com o Urubu.
da gente"; ou ainda naturalizam os confrontos através de referências gera­
cionais: "desde que existe Junk é assim; meu pai já brigava na rua". Um
líder de galera, que se considera um veterano no circuito de bailes, tentou As rixas construídas no baile, como revela esse extenso relato,
esboçar uma espécie de genealogia das rixas. Começou voltando no tempo: podem determinar a continuação do conflito fora dele, situação que cada
vez mais implica a adoção dos padrões de violência, mas não apenas para
retribuir o "prejuízo" perpetrado. Muitas vezes, o objetivo passa a ser a
Olha, em 1984, nessa época não tinha corredor. As galeras briga­ destruição dos oponentes, inclusive por meio de armas de fogo (empresta­
vam no baile, mas não tinha baile de divisão. Era só mulão. Mula das pelos traficantes), nas saídas dos bailes ou quando esses grupos se en­
com mula. Exemplo: Andaraí brigava com Macaco [Vila Isabel]. O contram em locais públicos como praias, praças, ruas, ônibus e shoppings
Urubu brigava com Iriri. Naquela época, não tinha isso de lado A e da cidade. Como foi visto, freqüentar os arredores de uma comunidade
lado B: quem era amigo do Urubu brigava com os amigos do Iriri e rival não é aconselhável para os pichados de baile. Uma vez reconhecidos
quem era amigo do Iriri brigava com os amigos do Urubu (...). como "de fora" (espiões ou X-9), podem sofrer agressões e até morrer. Essa
Quando encontrava alguém sozinho na rua, a gente perguntava: situação também está associada ao modo de vida dos traficantes, que, ao
mora onde? E eles respondiam: 'moro na Abolição'. 'Vocês colam contrário de alguns integrantes de galeras, circulam mais livremente pelas
com quem?' Quando o bonde chegava, dava um papo. Não tinha ruas do que em suas próprias comunidades, onde são reconhecidos. É
lado A e B; quem fez isso foi o Zezinho. comum traficantes jovens irem ao baile e lá permanecerem anônimos.
Ao comentar essas práticas violentas, um ex-integrante de galera,
atualmente tentando a carreira de MC, revela que as mortes de funqueiros
- Isso acontecia onde?
ocorrem pela disputa de poder, que ultrapassa os bailes, e resultam de vin­
.gança, ou seja, do circuito interminável da reciprocidade negativa: "uma
Acontecia no CCIP [clube], Mackenzie, a coisa foi ficando assim galera é considerada inimiga quando alguém é morto. Como vingança,
até 90, quando o morro do Urubu (Pilares) começou a brigar com vai ter outras mortes (...), e assim as galeras passam a ser inimigas".
Campinho/Pombal/Fubá (CPF) e uma parte do Urubu (dividido Os líderes, que também podem ser os representantes das turmas,
em várias partes: Correios, Escadão). O pessoal do Escadão teve têm então um papel fundamental para "puxar o bonde" e reiniciar o ciclo
Um Século de Favela G a l er a s Funk C a r i oca s
154 155

de violência. Novos arranjos são construídos p ara restabelecer o p restígio amigo do "contexto" sofre uma "jud ari a" (covardia ), no baile ou fo ra dele,
do g rupo. O "troco" ou a "volta" podem ser no p róximo ba ile, nos percur­ muitas vezes aciona-se o circuito de reciprocidade negativa ent re esses gru­
sos conhecidos por onde trafegam os ônibus dos riva is, ou em incursões pos para retribuir o dano e restituir a "honra" do grupo (Zal uar, 1985; Alvi­
arrisca das que envolvem meios mais eficazes de "tomb ar o alemão". O to, 1996). E assim recomeça_ o ciclo das riv alidades sem fim. O curioso é
papel dos líderes expressaria, nesse caso, a competência de um animador que a vingança se estende a· amigos e parentes dos integrantes das galeras,
para recompor com maior ou menor sucesso a coesão interna do grupo.
podendo oco rrer semanas ou meses depois de ter sido efetivamente plane­
Uma ce rta moralidade atravessa esses arranjos, e os códigos correspon­ jada. Nessa linha, Eric Dunning (1992) chama a atenção p ara uma forma
dem à avaliação dos riscos e das vantagens de admitir novos componen­ segmentar que preside os arranjos, fragmentações e alianças entre esses
tes que possam fortalecer ou enfraquecer o desempenho das galeras. bandos locais predominantemente masculinos. Tais práticas apontam p ara
Um relato sobre u ma rixa súbit a entre duas galeras amigas mostra um a montagem de laços sociais e d e reciprocidade limitados a o local m ais
a transitor ieda de n a composição do bonde: próximo, paroquiais e pré-modernos (Godbout, 1992).

O Adeus teve cola do [alia do] u ma sema na com o Pilares [comuni­ Emoção, movimento e catarse
dade]. Eles deram u ma força para quebrar os molequ es da I riri.
Quando eles precisaram da gente na Nova Holanda, nós fomos lá. O "baile de corredor" se nu tre bastante das "montagens" que os DJs
Chegou lá, eles que riam tomar o b aile sozinho, e a p ancada estan- fazem com a música e que servem de suporte sonoro para os confrontos.
cou lá mesmo. Sem elas, dizem tanto os freqüentadores quanto os responsáveis pela sono­
plastia, a festa não tem emoção. Aliás, a boa pe1formance dos DJs representa
um ch amamento à participação conjunta dos jovens, um " alô" para as gal e­
Podemos ver a í as alianças c onstruídas entre amigos de b a ile e ini­ ras do baile e as c omunida des "sangue bom" nos refrõe s mixados. D essa
migos de comunidade, ou entre inimigos de baile e amigos de comunida­ relação deriva um espaço de ambivalência onde se joga com um tipo d e as­
de. Elas são efêmeras, ou sej a, os vínculos de solidariedade podem ser cendência do coletivo sobre o individual e onde se vive a simbologia de
desfeitos por dispu tas intern as ou reviravoltas nos acordos preest abeleci­ um ritual de reconhecimento do cotidiano de centenas de pesso as.
dos. Isso significa que duas galeras que "formavam o bonde" podem tor­ No discurso dos integrantes das galeras, o b aile de "corredor" é as­
nar-se , de um mome nto p ara o outro, "alemães". Alguns funqu eiros me sociado à influência dos f amosos "15 minutinhos de alegria". Essa curio­
rev elaram qu e até "p aram de b aile" quando há a lteração dos "coman­ sa expressão, cuj a origem é motivo de intensa polêmica, significa u ma es­
dos"; recusam-se a brigar com "amigos de b aile". Gra dualmente, o pa ­ pécie de momento orgiástico int roduzido nos momentos fin ais dos b ailes
drão de rivalidade tende a modificar-s e : o convívio p assa a ser tolerado, "normais". É usada ta mbém nos bailes da Furacão 2000, de Rômulo
mas as rixas recíprocas continu am. Alguns abandonam a galera, e novos Costa, que pretende ser o rep resentante p acífico dos ba iles. Em entrevis­
componentes se incorporam a o novo "contexto". Não se p� de garantir ta concedida à revista Rio Funk em 1994, o DJ Roniee Rap assumiu a auto­
A ria d ess a invenção:
nem a reconstitu ição do padrão anterior, nem a permanenc1a do novo.
Portanto as re lações internas e externas das g aleras são ambíguas e p reca­
ri amente o rden a da s, su jeit as a rearranjos c onstante s. Um jovem me
RF: No seu ba ile tem 15 minu tinhos de aleg ria ? RR: Você pergun­
disse: "ninguém consegue entender. É como um folclore".
tou para a pessoa que inventou isso. Quando faltavam 15 minutos
Apesar de não haver uma única versão sobre o surgimento das riv�­ p ara nossa apresentação acabar, eu fazia uma seleção d as melho­
lidades, observam-se alterações no comportamento de algumas galeras di­ res músicas da noite, toda s em 15 minutos. Ou seja , uma música
ante dos desdobramentos da guerra do tráfico. Isso fica claro qu ando uma normalmente tem cinco, seis minutos. Eu fazia u m medley, tipo
galera "cola" (coopera) com outra de "comando" diferente; não pode mos­ assim 10 segundos de ca da música e tocav a uma s 30, 40 música s
trar no ba ile fidelida de a o "comando" rival, tem que ficar "neutra". Se o em 15 minutos (... ), só qu e outras equipes de som le vara m essa
"bonde" for considera do uma ameaç a, p el a infiltração de inimigos de ou­ idéia p ara ou tro lado: tiravam os seguranças do sa lão e de ixava m
tras áreas, as galeras se sep aram. Do mesmo modo, quando um p arente ou o p essoal brigar (Rio Funk , 1995).
156 Um Sécul o de Favel a G a l e ras Funk Cari ocas
157
E sse efeito da mús ica é associ ad o àquelas seqüênci as ou m onta ­ dos numa só d inâmica, desencadeada , com o afirmam os funqueiros, pela
gens que têm "conce ito" (as melhores) e "levantam o b a ile". A eufo�i � de­ bati da da mús ica e compl ementada pel a d anç a guerrei ra .
p ende da performance dos DJs ao mixarem trechos das melhores mu sicas ,
0 que , seg un do os m ais experi entes, aumenta ao mesmo o temp? o en �u ­
s iasmo e a tens ão d o b a ile . Qu ando tocam os "p anc ad õ es", a b n g a se in­ O baile de comunidade
ten sifica, ocorrendo a "panca dari a". Nesse p articu l ar, a son oridade da
mús ica é u m fator que une os j ovens das gal eras, propici an do-lhes um a Em ou tra vertente dos bailes, os b ailes de "comuni dade", o com­
experiência de co l etivi d ade e um mo do de entrar em contato corporal p ortamento d os j ovens assume contornos específic os. O curioso é que j us­
com a intensi dade da música, sem medi ações (Frith, 1987). Por outro tamente nesses ba iles c omunitá ri os nã o há confrontos entre ga leras nem
l ado, essa vivênci a da emoção pela música excitante permite consi derar qu alqu er conflito intern o. Alguns j ovens demons tram preferênci a por
aqui lo que p ara Eli as (1992:122) co nstitui ? p raz r pr o o rci on a �o pelos esse tip o de b aile porque nel e não tem conf usã o. T odavi a, ou tros entre­
� �
f atos miméticos n a esfera do l azer, nos quais a estimula çao em ooon al pe ­ vi stados aleg am que n o seu tempo de l azer pref erem sai r de s uas comu­
culiar e a renovação de en ergi as proporcionadas por u ma tensão a gradá­ ni dades e conhecer ou tros j ovens, namora r com pessoas d ife rentes . No
vel representam um a contrapartid a mai s ou menos i ns �itu c�on al�z�da em "ba i le de comuni dade", os concursos são realizados entre ga leras de "co­
face do p oder e da uniformidade das res trições emoc1ona 1s ex 1 g1das n a man dos amigos"; é o b ai le d a "união". P aradoxalmente, a se gurança é
s oci edade. proporci onada pelos grup os arm ad os do tráfico que ocu pam as comuni­
dades p ob res. Além d a s egu r ança, os p atrocinadores f orn ecem os ônibus
o que O autor s uge re é que a excita ção lúdica c ontém u m el emen-
to a gradável que p ode se r experimentado e vivi do em c ontr�s te com _a s para transporte das "gal eras amigas". O "bail e d e comuni dad e" seria
s itua çõ es crític as séri as. To d avi a , na config ura çã o desse es tilo de b i le
igualmente a única op ortuni dade para a "rapazi ada d o m orro cu rti r uma

d ive rs ão" e mesmo m ostrar seus dotes f ora do mundo d o crime . N esse
es tá presente t ambém a re cip roci dade ne gativ a ?u m� sm o o �ue S11:1-
A A tipo de ba i le, a vi olênci a entre as galeras é control ada pelos trafica ntes ,
m el (1983) ch am ou de c onflito pe l o conflito ou v10l��C1a � el a _ v�olene 1a .
O p razer deriva , nesse caso , dos própri os danos fis;c� s mfhg1d_os �o s mas exi ste uma preocupação dos freqü ent adores com a poss ibilid ade de
, invasão da p olíci a e i rrupção de confrontos com out ros gru pos rivai s do
op on entes. I sso não s ignifica neg a r o comp onente lu � 1 c
? do ba il� . de crime org anizado . Ch am am a a tençã o a exibiçã o e o desfile de arm as de
cor redor", mas ap ena s rel ativizá-lo como form a destitm� a de p raticas
fogo que os j ovens empunh am. Além di sso, nã o há restrições quanto à
vi o lentas. De ou tra f orma, o ba i le não seri a senão um tipo de esp or te
fre qüênci a de cri anças men ores de 12 anos e até d e col o . O ambi ente é li­
q ue, n o entanto, necess it a de re gras p ara evitar �ue �s cont: ndores se
cenci oso. Nesse ba ile é que sã o cantadas as versões proibi d as dos raps.
machu quem se ri am ente ou se m atem, o que o b a i le _a m da n �o tem. As
Algu ns MCs chegam a ficar duas horas cantando a m esm a mús ica em ho­
br ig as entre as ga leras como jogo soci al, n a pe rspe ctiva de S1mmel, en­
mena gem aos traficantes presos ou mort os . Se no "ba ile de corredor" não
gend ram p orém um conju nto de rel a ções c onflitantes , p arte do que esse
tem regras explícitas, nos "b a iles de comuni d ade" o es p aço é regulado e
au tor d enomina soci alidade . Alguns or g aniza d ores ap ostam que s eu
d isciplinad o de outr a f o rma : os confr ontos não exi st em, m as a convivên­
b a ile, ao org anizar a b ri ga , p ode c on stitu i r-se nu m es paço p ara u m a e� ­
cia com as a rmas de fogo ostentad as pel os t raficantes impõe um a outra
péci e de extravasamento das ten sões e qu_e a vi� lênci a e�tre o s funque1-
lógica igualmente impregnada de cód igos de di sput a e d e guerra . Se o
ros s e ri a mu it o pi or se el e não existi sse . E um tipo d e d 1scu rso q e tem
_ � baile funk " de corredor" cham a a atençã o pel a mi stura d e cód i gos de
a p re tens ão de s er s ociolo gizante, mas que antes v u lg a nza os efe ito
� � a­ guerra e j ogo, pe la adrenalina dos confrontos vi o lentos , deve-se a tenta r
tárticos da s ativi dades de l azer. C omo me di sse u m famoso empresano : também para o ba ile comunitári o. Num clube, notei maior ci rculação de
"se e les não forem ao s b ai les é muito pi or, e les p odem sa i r por aí assal­ jovens de classes diferentes. Mas os j ovens de cl asse médi a eram min o­
t ando ou fazendo bobagem. É me lhor ter o ba i le, aqu i eles b ot am tudo
rií].. H á um certo clima de entusi asmo em rela ção aos "da casa" recebe­
pra fora". rem os " de fora". Sem a tensão das b rigas, esse baile é b om p a ra d ançar
De todo m odo, a tensão, o movimento, a cat arse de emoçoes, o en- em grup o. Se gundo os freqüentadores , o melh or d o baile d e comu ni dade
tus i asmo e as p ráticas vi olentas estã o presentes 1 a atuaçã o dos i �te g r_an­ é a música, o ambi ente, o sentido coletivo, a multidã o d e pessoas c urtin­
tes das g ale ras de baile. Sã o e lementos que aparecem como que 1mbnca- do j untas.
Um Sécu l o de Favela
158 Galeras Funk Car i ocas

Os festivais de galeras e as regras (ambíguas) bres e com poucas a ltern ativas de la zer, levar uma eq
uipe de n ome pa ra
·�

locais mu itas vezes desconhecidos é fonte de status e c


onsideraçã o.
da competição
A p articipação nos concursos significa também ter t ra
Os b ailes com concursos tornaram-se, na f ase atual do funk cario ­ nsporte gra­
ças a acordo entre os org anizadores dos bailes e as empr
ca , uma atração introduzida pelos organizadores na p rogramação an� al es a s municipa is.
O t ransporte é garantido mediante o pagamento antecip
dos bailes. O primeiro fe stiva l f oi n a praça da Apoteose , em � 994 (Equipe ado do ingresso
do b aile. Aliás, esse é u m it em imp orta
Furacão 2000), e teve por mérito, segundo um dos m eus informantes, nte para o lazer dos jovens das ca ­
mad as populares, sobretudo pel a segurança proporcionada
unir ga leras de vária s comu nidades. A parti r des� e e':' ento vári a s equi­ , p ois do con­
trár io eles iriam de "suicid a " (ônibus comum) ou dormir iam
pes de som passaram a p romover concursos anuais, din amiza� do a p ro­
'.
nas calça­
das, f ican do mais vulneráve is à violência
e aos perigos da rua . Va le n otar
gramação d�s bailes. Esse processo impulsionou_ o desenvolvimento de
que no trajeto comunidade-baile-comunidade são f reqüentes
p adrões hierárquicos entre os jovens e os organiz adores, desta cando -se os inciden­
tes: mudança de ro ta, apedrej amento e tiros nos ônibus etc.
nesse contexto os representantes d as galeras com o m ediadores entre Isso oc or re
quan do esses grupos passam estrategicamente por áreas riva is
e ssa s esferas. Ao que tudo ind ica , ess a relação implica n egociação perma ­ e inici am
as lu ta s com os opon ente s.
nente e ma ior equ ilíbr io nas p osições das p artes envolvid as. E�iste_m re­
O que se not a é que as g alera s mais "brigonas" se destacam, sae
gras p ara p articipar dos concursos - por �xe�pl? ,_ a orgamzaçao do m
do anonima to e se torn am conhecida s n o ci
tempo para rea lizar as tare fas estipuladas, a d�stn�mçao e _ o va�or da pre­ rcuito pelo n ome e pela s "p roe­
� zas" que "suj a m" o b aile e "preju dicam
o funk" . As inform açõe s sã o dis­
miação etc. -, 0 que implic a uma nova confhtuahdade dinamica, p ostu ­
seminad as boca a boca pel o circu ito com notável eficiência. As puniçõ
ras re ivind icatóri a s ent re a s partes e negocia ção dessa s regras n os con- es
que uma galera p ode so frer são: a suspensão do ônibus para o p róxim
cursos.
ba ile, a diminuição de p ontos n os concursos e até a expulsão de inte
o

O processo de escolha dos re presentantes de g aleras qu� i_:ão me­ gran­


tes considerados nocivos à realização da festa.
d iar a s n ego ci açõ es obede ce a padrões muito efêmer os. Um bngao pode
Atualmente, é cada vez ma io r a m obilização dos jovens p ara os
se tornar um trunfo para o cont role mais efetivo do desempenho da gale­
concursos. Iss o aciona os mecanismos de interação e integ ração com u­
ra e, por esse mesmo m otiv o , s er destituído d o cargo. Há t ambém a n eb u­
tros grupos, o que, na linguagem dos j ovens, como vimo s, é cham
o
l osa dimensão da troca de favores, muit o difundida e que constantemen­
"bon de ", ou sej a, alianças com galeras amigas, vis and o ao fortaleciment
ado de
te abala a legitimidade dos concursos e a idoneid ade de seus ju ízes.
. . da e quipe para a vitó ri a n o baile . A mo bilizaçã
o
o do grup o p ara par ticipa r
C ombinando a estrutura de t orneios esportiv os c om algumas ativi­ dos concu rs os de g aleras requer o engaj amento
dos rep resent antes n os
dades da s escol as de sa mb a , os fe stiv ais incluem competiçõe s de vári a s
p rocess os de cooptação e alianças com outr as lid eranças e organi zadore
naturezas. "O melh or DJ", "disputa de pênaltis", " a rainha do b aile", " o s.
O rel ato que se segue é de um representante que se diz revoltado co
melh or rap", 0 melhor "grito " ou striptease _et� - As regras qua�to à progra­ mo
seu trabalho:
mação e à p remiação são p reviamente definidas p elos or?amzadores dos
b ailes. Disso resulta uma p ermanente interação com os integrantes, me­
d iada pelos rep resent antes e visando à n egociaçã o d a s re compensa s
Ser representante é trabalhar para muita gente se da r bem. Eu
m ateriais e simbólicas a serem oferecid as, tais com o transporte p ara as mesmo não ganho nada. Só gasto. Tenh o que ir peg ar ônibus domin­
g aleras, d inheiro vivo, bailes gratu itos, reconhecimento e considera ção. go de manhã, cansadão d o baile. Se eu não tivesse que arrumar um
N os concursos, os jovens têm oportunidade de demonstrar sua_s dinheiro com o festiva l, eu tinha l argado. D ependendo do que eu ga­
habilidades. Tornar-se MC é uma das m aiores aspirações. D e fato, mu�­ nhar no festival, eu largo . Vou fazer outra coisa, dá mais dinheiro.
tos cantores iniciaram suas carreiras com os raps apresentados nos festi­
v ais e que posteriormente "estouraram" nas rádios. O_utro aspecto cons­
tantemente mencionado é a possibilidade de reconhecimento das favel as - Que cois a ?
ou b a irros. As ga lera s vencedoras fica m conhecid as _p elo dese�penh o
n os concursos, e um dos p rêmios mais cobiçados coletiv am ente � ganhar
Ah, trocar cheque pros outros, arru mar um vídeo. E u já trabalhei,
um baile a ser realizado n a comunida de. C omo se sabe, ne ssa s areas po-
mas agora tô dando um tempo; quero arrumar um dinh eiro grande.
� G a l e ra s F u n k C a r i o c a s 161
Um Século de Fave l a i
160

A maioria das equipes segue hoje esse modelo de festiva is. Elas a brutalid ade, a dança e o pugilato, a competição e o conflito, no "baile d
inaugurar am, portanto, nesse circuito, um novo p adrão de sociabilidade briga" o convite à lut a vai na direção oposta . O uso do corpo, envolvend�
força física e destrez a, é feito com a maior intensidade possível, desenvol­
entre freqüent adores e equipes, expresso nas regras dos concursos, n a esté­
vend� o pra zer e o pod er da agressão física. E as fronteiras entre o jogo e 0
tica competitiv a, na manipulação de bens simbólicos. Essas a tivida des tam­
conflito, entre a competição e a destruição tomam-se, portanto, difusas.
bém representam a tentativa de imprimir um pa drão de domesticação ou
civilizatório (Elias, 1992) ao funk carioca, como ocorreu com a capoeira e, Quando observada do exterior, essa forma específica de recreação,
inicia lmente, com as escolas de samba em épocas anteriores. Tudo p arece que envolve provas corporais, pode vir a receber, por parte de diversos
ag entes, uma conotação b astante negativa, se orienta da por uma esca la de
colaborar p ara a constituição de um determinado estilo de lazer. A ma ior
procura dos jovens pelos bailes de "corredor" é a tualmente um tema que valores que desaprova a demonstração aberta do uso da violência física
suscit a contr_ovérsias políticas import antes entre os produtores das duas com que os jovens funqueiros ocupam seu tempo de lazer. Pais, líderes co­
maiores equipes de bailes da cid ade, Furacão e ZZ Produções, que dispu­ mu nitários e professores compartilham dessa opinião. Todavia, nas falas
tam violentamente o mercado, a opinião pública, os índices de au diência e de funqueiros de galeras, de suas namoradas e de alguns DJs, assim como
a legitimida de p erante o Estado e ou tros segmentos da socie da de ?
nas pouquíssimas declarações que consegui obter dos organizadores dos
bailes, fica-se com a sensação, misto de pavor e alívio, de que não há víti­
mas nem algozes, nem vencedores nem vencidos, pois ninguém sabe direi­
to definir a explosão de p aixões e ódio de uns contra outros no território in­
Conclusão ventado da violência. Talvez u ma briga entre conhecidos, não sonegada
Os concursos criar am novos p adrões relacionais entre os organiza ­ aos estranhos, mas exposta com toda sua intensidade durante horas inter­

dores e os jovens, o que pode ser considera do uma tenta tiv a de controlar mináveis. Quem vai ao "baile de briga " ou quem vive comercialmente
a violê�ci a mediante a int rodu ção de regr a s n a competição. Contudo, disso é cioso desse tipo de divertimento, e não há indícios de que exista um
essa medida p arece a mbígu a nos bailes que combina m "corredor" e con­ desejo de coibir sua continuidade. É comum ouvir tanto os jovens quanto
cursos. Por ou tro l ado, mesmo nos bailes ditos "normais" ou p acíficos, os organiza dores dizerem: "no baile de corredor vai e briga quem quer".
sempre se tocam alguns "minu tinhos de alegria " p ara as gale ras curti­ E por que coibir? O baile seria uma arena necessária ? Seria uma
rem a briga. A diferenç a é que, no b aile de "cor redor", os constrangimen­ oportunidade de alívio de tensões entre jovens que se fix a m em rixas an­
tos são menores. A diferença só se revela na ampliação do tempo reserva ­ tigas e imaginários medos, antecipando oportunidades de tir ar a difer en­
do p ara o confronto violento. Os festivais, por sua ve z, ao r efo rç arem ç a "mano a mano" com disposição? Pode -se dizer que o ba ile, ao mesmo
cert a identificação dos jovens das g aleras com um conjunto de a tividades tempo em que autoriza a liberação das tensões, é um evento em que a
pr aticadas de forma comp artilhada, parecem ditar ao mesmo tempo as tensão é desej ada e buscada.
relações de antagonismo e cooperação, de compe tição e conflito, de a lian­ O problema é que os confrontos ultrapassam os muros dos ba iles e
ça e luta, que se esta belece m com maior ou menor intensidade ent re p assa m a fa zer p arte do cotidiano dos grupos. Rea gi com surpresa à recu­
esses grupos. D ependendo do b aile, marcam sua pre senç a pela "disposi­ sa de um dos meu s informantes, quando sugeri sa irmos da f avela e to­
ção" p ara o conflito ou par a a harmonia. marmos um l anche num a loj a de uma da maiores cadeias de l anchonetes
Situados nos subúrbios da cidade, os clubes que promovem esse da cida de, a qua l estava loca liza da numa pr aça que e le não podia fre­
tipo de diversão transformam-se em arena nos fins de semana, quando re­ qüentar por c ausa dos "alemães". Essa restrição decorrente do f ato de ele
"ser pich ado" é uma condição muitas vez es reificada pelos jovens. Ado­
cebem de portas abertas as g aleras funqueiras de várias p artes da cida de.
Entender esse tipo de l azer, que também nos remete a algo demasiado ta m uma lógica classificatória excludente, um aspecto central do ethos
guerreiro, no espaço ritual do baile e fora do baile. A excitação do jogo
sério, faz desaparecer por alguns momentos certa concepção de diverti­
mento: nele o lúdico e o violento se complement am e se interpenetr am cres­ ou a sedução de correr riscos são aspectos a serem consider ados.
centemente. Corre-corre, gritos de guerra, inv asões de lado, hematomas, As tentativas de suprimir os "ba iles de corredor" sempre fizer am
cortes sanguinolentos, risos e pequenas confraternizações pelo dano certe i­ parte da retórica de alguns organiz adores, inclusive dos que mantêm,
ro desfazem uma versão do la zer como ausência de tensão e violência, mesmo veladamente, os "15 minu tinhos no baile ". É comum, no circuito
como puro pra zer do relaxamento do corpo e da alma. Entre a disciplin a e . funk, ouvir falar da capacidade dos produtores e org anizadores dos bailes
162 Um Século de Favela
Galeras Funk Ca r i ocas
163

para "administrar" a violência - esta sempre existiu, compon�o u�a


_ sos complexos que organizam hoje a vida social das favelas, segundo uma
narrativa sobre os bailes funk cariocas (Vianna, 1988). A comparaçao e sig­
lógica antagônica, territorial e guerreira (Zaluar, 1995). Isso pode ser obser­
nificativa: se antes havia os 15 minutinhos, agora o baile de "corredor" é
vado no forte estímulo à competição territorial, na referência recorrente
da "alegria" . Houve uma mudança no equilíbrio da produção da te�são:
_ aos "comandos" das comunidades e no emprego da lógica da guerra na
A excitação foi ampliada e considerada um fim em si mesma. A bnga e
divisão do " território" do baile. De forma nenhuma isso quer dizer que as
considerada a "emoção necessária" da festa, consagrada através da espe­
galeras sejam uma forma de agrupamento ligada à hierarquia do crime or­
tacularização dos confrontos violentos. É nesse sentido que entendemos
ganizado. O que se percebe é uma permanente negociação e interação
que houve uma mercantilização da violência dos bailes � qual �an �ém
: entre as galeras e os organizadores no que diz respeito tanto à recriação
com a forma de organização do baile uma relação de decidida contmmda­
dos códigos de violência no âmbito do lazer e da sociabilidade juvenis
de e lucros financeiros. Portanto, o fenômeno da "briga no baile", quase
quanto à representação simbólica da guerra entre as quadrilhas que divi­
um componente lendário, desejado e temido pelos orga��zadores, �ão
dem o espaço na cidade. Pode-se dizer que o bom baile se equilibraria ten­
pode ser considerado problema novo ou resultad� es_peofico dos bailes
samente entre duas funções: de um lado, desencadear a excitação agradá­
"de corredor" . A diferença é que atualmente, no circuito funk, alguns or­
vel no público, e de outro, propiciar um conjunto de dispositivos para
ganizadores passaram a marcar excessivamente a s�a re�evân:ia, institu­
manter o agradável descontrole das emoções através do ritmo do som, da
cionalizando a "divisão" de territórios em seus bailes, mclusive concla­
divisão espacial do baile e do tempo permitido para os confrontos.
mando os que gostam de se confrontar para que o façam livremente.
Como vimos, trata-se de um estilo de lazer masculino violento, en­
volvendo uma dinâmica entre dois subgrupos, isto é, um padrão de lutas
Notas
que pressupõe ao mesmo tempo cooperação e conflit�, �u�a variedade
_
de níveis que se estabelecem dentro de uma mesma dmamica de polar:­ 1. Pichado é um termo que expressa o modo pelo qual os funqueiros ficam
zação. Ou seja, num bailefunk "de corredor", a atuação das galeras de �a­ marcados e são facilmente identificados por integrantes dos grupos rivais.
,
rias partes da cidade conforma relações interdependentes e ate mesmo in­
separáveis para que os confrontos possam acontecer. Nenhuma delas 2. Além dessas subdivisões, existem os bailes charm, que muitos acreditam
seria o que é sem as outras. ser o que restou dos bailes sou/ da década de 70. Encontramos registro de
. que nos bailes sou/ houve uma fase de violência física entre os freqüentado­
Concluindo, de acordo com o baile, o comportamento v10lento ou
res, o que causou espanto a uma das figuras mais militantes do Rio de Janei­
h armonioso dos integrantes das galeras fica mais ou menos nítido. Com
ro, Asfilófilo de Oliveira Filho, líder da equipe de som Soul Grand Prix, preo­
isso não se quer afirmar que só existam dois tipos de freqüentadores de
_ cupado em articular o movimento em torno da organização e luta contra o
bailes Junk ou que essas formas de comportamento possam ser ass�m:­ racismo (ver Monteiro, 1991:76).
das como radicalmente opostas entre si. Acompanhando algumas traieto­
rias dos jovens, pude perceber a transitoriedade des� as práticas, ocorr=n­ 3. Em termos metodológicos, escolhi primordialmente a observação partici­
do cotidianamente transformações em seu ethos de vida nas suas relaçoes pante das práticas e discursos do cotidiano como fio condutor da análise,
com os grupos de que faziam parte. Alguns �e tornarai_n MCs, outros se sem contudo abrir mão de entrevistas semi-estruturadas como via de acesso
_ às falas mais genuínas dos jovens.
casaram e outros, ainda, entraram para igreias evangehcas. Entretanto,
isso não quer dizer que essas sejam as "saídas" para o� jovens que gos­ 4. Recentemente, um informante da pesquisa revelou a existência de mais
_
tam de "brigar". o que se percebe, mais que a oposiçao e1:t�e um ethos uma facção criminosa, chamada Amigos dos Amigos (ADA), que congrega
_
"brigão" e um ethos "da paz", é que muitas vezes essas praticas coexis­ basicamente dissidentes das outras facções (informação recolhida em junho
tem no mesmo jovem e na mesma galera. de 1998).
É preciso assinalar que os bailes funk de "corredor" �ermitem aos jo­
vens lutar ritualmente entre si nos bailes sem se matar, ainda que o pres­ 5. A utilização do conceito de honra nesse contexto precisa ser feita com cui­
tígio interno e externo das galeras funk seja assegur�do pela perpe�ação dado. Na literatura antropológica, a honra masculina e o pudor feminino são
_ _ noções-chave inspiradas nas etnografias de grupos rurais das sociedades me­
dos confrontos através de um ciclo de rivalidades mtermmavel. Dito de
outra maneira, no baile percebe-se a representação simbólica de proces- diterrâneas. Nessas análises, a honra é tida como valor ideal, construído inde­
pendentemente das práticas (Fonseca, 1992). Tal argumento, baseado em uma
164 Um Sécul o de F a vel a G a leras Funk C a r i ocas
165

articulação mecânica entre papéis masculinos e femininos, enfatiza demasia­ Hebdige, Dick. Subculture. T/1e memlillg of style. London, Methuen, 1979.
damente a subjugação dos segundos pelos primeiros (Cornwall, 1994). Além
Huizinga, Johan. Homo ludens. São Paulo, Perspectiva, 1971 .
disso, a honra estaria baseada em valores culturais herdados. Considero os li­
mites dessa noção para pensar o caso das galeras cariocas. Meus dados etno­ Katz, Jack. The seductio11s of crime. London, Basic Books, s.d.
gráficos divergem substancialmente das etnografias clássicas. Entre os meus
informantes, a idéia de honra herdada de outras gerações é de pouca impor­ Matta, Luis F. M. (DJ Marlboro). O funk Brasil. Rio de Janeiro, Mauad,
tância, e a memória genealógica (ver relato sobre as rixas) é muito curta. A 1996.
110

percepção temporal se restringe a um período mais reduzido. Monteiro, Helena. O ressurgimento do movimento negro no Rio de Janeiro
6. O humor é uma dimensão importante na dinâmica desses grupos, sobretu­ na década de 70. Rio de Janeiro, UFRJ, 1991. (Dissertação de Mestrado.)
do no tocante às diferentes maneiras de brincar com normas e lidar com ques­ Pais, José M. Culturas juvrnis. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
tões ambíguas no processo de transição para a vida adulta. Estudo interessan­ 1993.
te sobre humor e relações de gênero foi feito por Claúdia Fonseca (1992). A
autora alude à importância de investigar a relação entre o valor expresso e o Peirano, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1996.
estilo da expressão para revelar as diversas funções que o humor desempenha
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Projeto Cultura e Lazer para Adolescen­
na transmissão de valores de uma geração para outra.
tes de Baixa Renda. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Desenvolvimen­
7. Segundo a Ligasom, realizam-se hoje 2 mil festas funk por mês em todo o to Social, 1993.
estado. No município do Rio de Janeiro, a área da cidade onde há mais bailes
Sansone, Lívio. O local e o global na afro-Bahia contemporânea. Revista Brasi­
funk é a Zona Norte, seguida da Zona Oeste e da Baixada Fluminense. O pú­
blico que comparece aos bailes varia entre 800 mil ou 3,2 milhões de pessoas leira de Ciências Sociais (29), 1995.
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Capoeira e alteridade
sobre mediações, trânsitos e fronteiras*

i a D u a rte T r a v e s s o s

Nesse manejo inopinado e célere, a criatura é


um ser que não se toca, ou não se pega, um fluido,
o imponderável1

O ponto de partida que havíamos combinado era a gare D. Pe­


dro 11, também conhecida corno Central do Brasil, nas proximidades do
centro da cidade do Rio de Janeiro. Faltava pouco para as oito horas da
manhã de um domingo de março de 1996. De longe, pude facilmente
identificar o pequeno grupo que já havia chegado pelo colorido do tam­
bor, dos pandeiros e dos berirnbaus. Roupas largas, sorrisos largos, no ar
um certo clima de aventura e gozo pelo risco. Soube que vários ali nunca
haviam sequer andado de trem em suas vidas, quanto mais atravessado
os mais de 30 quilômetros que nos levariam até o distante bairro de
Bangu, na Zona Oeste da cidade. Ainda assim, o convite de mestre Muca
para participar de urna "roda" de capoeira promovida por seu próprio
"mestre", Poeira, foi de pronto atendido por aqueles jovens com idades
em torno dos 20 anos, em sua maioria pertencentes a camadas médias,
brancos ou quase brancos e moradores da Zona Sul da cidade.2 Na ca­
dência do trem, vazio se comparado com um dia normal de trabalho, al­
ternamos músicas, conversas, risos e a observação curiosa daquelas pai­
sagens muito pouco familiares para alguns de nós.3

SONIA DUARTE TRAVASSOS é da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC­


Rio) .
* Este texto faz parte de uma pesquisa, ainda em andamento, para o curso de doutoramento
no Programa de Pós -graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ , sob a
. móenração do pmf=, Gilbe,to Velho.

/
168 Um Sécu I o de Favela
T Capoe i r o e A l t er i do de

1
169

Mestre Muca, num primeiro olhar, contrastava menos pela diferen­ \�


Mestre de capoeira é aquele que te coloca dentro do mundo da ca­
ça de idade - na época ele tinha 29 anos - e mais por sua cor flagrante­ poeira. O que você aprende a partir dali, de você ter contato com 0
mente negra e seus cabelos com dread /ocks. Se aqueles moços estavam vi­ mundo, é a conseqüência de jogos, de você ver pessoas, de você
venciando uma experiência em vários sentidos nova, para Muca - vim estar em contato, de você estar rodando rodas, enfim, daí o apren­
mais tarde a saber - era mais um retorno, só que em condições espe­ dizado da vida é um apanhado num geral, não é ele [o mestre] que
,
ciais, ao seu lugar de origem. Criado na favela de Vila Vintém em Padre vai determinar. As vezes eu vejo que o Poeira não tem tanta clare­
Miguel, bairro vizinho de Bangu, ele havia começado a aprender capoei­ za com determinadas coisas, mas ele, como mestre de capoeira,
ra já aos nove anos, com mestre Poeira. Naquela época, meados da déca­ não me deixou faltar nada. ( ...) Nunca larguei ele, sempre viajava,
da de 70, a aversão de seus pais à capoeira e sua proibição eram justifica­ sumia assim de vez em quando, mas sempre treinei capoeira e
das com falas do tipo: "capoeira é uma coisa muito vagabunda", "se você sempre que tinha oportunidade de estar no Rio, de participar de
entrar para a capoeira, você vai largar a escola".4 Mas a capoeira, disse­ eventos, eu ficava com ele.
me o "mestre", "aquela coisa da magia que envolve a gente", acabou
sendo um caminho para as ruas juntamente com um grupo de amigos.
Os largos da Carioca e de Santa Rita, a praça 15, a Cinelândia, o campo Muca conta, então, como a sua relação com mestre Poeira "conta­
de Santana, a Lapa e a Central do Brasil, todos eles lugares de memória5 lo­ minava", por assim dizer, outras esferas da vida que não a da capoeira:
calizados nas cercanias do Centro da cidade, eram os palcos privilegia­
dos para as apresentações de capoeira. Depois de cada uma delas, eles
Eu acho que o mestre de capoeira, ele está muito longe ainda do
"passavam o chapéu" na "roda", pedindo algum dinheiro, e vendiam
ponto de ser um bom mestre. Eu sou um ser humano falho pra ca­
bijuterias, figuinhas, patuás e óleos. Falando ao público das proprie­
ramba, tenho muitas coisas assim, todo mundo tem. E o mestre,
dades "medicinais" e "protetoras" da "banha do peixe-boi da Amazô­
ele é uma coisa assim que não erra nunca, que sabe dar conselho,
nia", do "sabão do Joá" e dos "patuás" - todos, na verdade, produtos
que sabe seguir um exemplo de vida, que tem uma experiência.
forjados por eles próprios - ou mesmo simulando uma briga para cha­ Eu acho que eu vivi uns 20 anos na capoeira. (...) Ele [o mestre] ul­
mar a atenção do público, eles ganhavam o suficiente para o sustento de trapassa tudo. Por exemplo, meu mestre, ele sempre foi meu se­
cada dia. gundo pai. Num contexto geral, eu lembro de coisas que não ti­
Mas a rua, evidentemente, tinha suas próprias regras e conflitos, nham nada a ver com a capoeira, e ele falava assim comigo:
de modo que os espaços tinham que ser permanentemente negociados e "Muca, isso não é assim não, vou te mostrar como é que é, assim,
divididos com outros grupos que também acorriam ao centro da cidade assim, assim". E conselhos que meu pai não me dava. (...) Mas o
para fazer suas apresentações de capoeira. Foi assim, com o aumento da que rola mais é esse lance assim de mestre acompanhar, de viver o
concorrência, que Muca e seus amigos, sempre que conseguiam juntar momento. Eu acho que o Poeira, para mim, ele sempre foi e sem­
algum dinheiro, partiam para outros municípios ou mesmo outras cida­ pre será o meu grande mestre, o meu guru mesmo. Uma pessoa,
des fora do estado do Rio de Janeiro. Municípios vizinhos como Duque um conselheiro que está ali para tudo.
de Caxias e Nova Iguaçu ou cidades um pouco mais distantes como
Volta Redonda, Valença, Juiz de Fora, Campos e Belo Horizonte começa­
ram a fazer parte de um certo circuito onde as apresentações de capoeira O "mestre" só saiu das ruas e das apresentações de capoeira quan­
ainda eram, de certo modo, uma novidade e, por isso, rendiam algum di­ do entrou para o serviço militar. Poeira fizera dele também um "mestre",
nheiro a mais. numa festa surpresa de seu aniversário, em 1986, mas Muca afirma, não
sem alguma ambigüidade, que
O contato com Padre Miguel e com mestre Poeira, todavia, nunca
se desfez completamente nos cerca de 10 anos que Muca esteve pelas
ruas. É ele mesmo quem fala desses seus retornos ao bairro onde foi cria­ isso não alterou nada, eu continuei fazendo as mesmas coisas que
do e de como esse movimento constante de ir e voltar, e ir novamente, na fazia. (...) Pra mim foi uma coisa legal porque as pessoas começam
sua concepção, faz mesmo parte da formação de um "mestre": a te encarar de uma forma diferente. " Ah, o Muca agora é mestre!"
170 Um Século de Favela Capo e i ra e A l t er i dade
171

Mas aquele negócio que você põe na cintura6 é a maior besteira; se A trajetória de vida de mestre Muca, repassada aqui em linhas
tiver que apanhar, você vai apanhar com ele; se tiver que ser des­ bem gerais, deve ter deixado claro, entre outras coisas, um aspecto parti­
moralizado, vai ser desmoralizado com ele; acho que o que faz o cular que eu gostaria de ressaltar: a declarada opção do "mestre" pelo
mestre é a sua cabeça, a sua experiência, o seu modo de lidar com trânsito, não só em termos estritamente geográficos, mas, sobretudo, por
a matéria capoeira. diferentes fronteiras simbólicas, por distintos códigos de interpretação
da realidade, que não estão, em absoluto, vinculados a esta ou àquela re­
gião ecológica da cidade. Mais ainda, como seu complemento necessário,
O trabalho em shows que misturavam dança afro, samba e capoei­ a capacidade que ele demonstra de acionar gramáticas culturais radical­
ra na churrascaria Plataforma 1, no Leblon, aproximou mestre Muca da mente divergentes - ainda que sujeito aos reveses de uma condição que
Zona Sul da cidade e da capoeira que, na sua percepção, era "carente de de forma alguma está sob seu estrito controle -, promovendo constante­
cultura, de jogo", em oposição àquela praticada nos subúrbios. Através mente readaptações e re-significações em seu projeto de vida. Ele conse­
de um outro "mestre", Muca começou a circular por algumas "rodas de gue, por assim dizer, ajustar-se habilmente ao campo de possibilidades so­
capoeira" na Zona Sul e acabou conhecendo e convivendo mais assidua­ ciocultural que a cada momento tem a sua frente, levando ao limite a
mente com um grupo de capoeira na Gávea, do qual fazem parte alguns capacidade que, segundo Gilberto Velho, todo indivíduo em sociedade
daqueles jovens que o acompanharam de trem até Bangu. Na época da­ possui de se metamorfosear continuamente sem perder a unidade do seu
quela viagem, ele já morava no Leblon, bairro vizinho da Gávea. Muca próprio selj.7 Por outro lado, o que ficou evidenciado na viagem de trem
acredita que atualmente "está passando por um patamar diferente", que a Bangu é que ele se caracteriza, como diria Hermano Vianna, como um
"já lutou muito pela capoeira", que ela o trouxe para um outro lugar e mediador transcultural, quer dizer, aquele que coloca "as diferenças em in­
que isso "é conseqüência da vida, que faz com que você migre de uma si­ teração":
tuação para outra". Ele diz ter sido "muito bem recebido na Zona Sul" e
que as pessoas o abraçaram dizendo: "o Muca é nosso, o Muca é da rapa­
ziada, o Muca é da galera" . Mediadores de todos os tipos e com projetos os mais variados tran­
Hoje, Muca trabalha dando aulas de capoeira num colégio particu­ sitam pela heterogeneidade, colocando em contato mundos que
lar na Zona Sul, mas não apenas continua retornando com freqüência a pareciam estar para sempre separados, contato que tem as mais va­
riadas conseqüências, remodelando constantemente os padrões
Bangu para as "rodas" de mestre Poeira, como, de certa forma, "retorna"
correntes da vida social e mesmo redefinindo as fronteiras entre
esses mundos diferentes.8
também através das aulas que dá, juntamente com amigos do grupo que
conheceu na Gávea, para crianças da favela Parque da Cidade, nesse
mesmo bairro. Ele parece estar conseguindo, assim, articular esses dois
mundos, o "da favela" e o "do asfalto", suprindo a um só tempo suas ne­ O caso de mestre Muca, embora me pareça ter um caráter paradig­
cessidades financeiras e aquelas relativas aos seus valores: mático, não se afasta tanto assim das trajetórias dos outros "mestres" de
capoeira, sobretudo se levarmos em consideração o fato de que esses
trânsitos podem se dar em diferentes planos, não necessariamente exigin­
Na Zona Sul é outro papo. Eu trabalhava com um pessoal de outro
do o deslocamento físico do "mestre". Tento mostrar aqui, aliás, como a
nível. Dava aula na favela, tinha que falar com as crianças na lingua­
capoeira, ao menos contemporaneamente, parece constituir-se num locus
gem delas. E quando não era com as crianças, era com os pais, era
privilegiado de trânsitos de todos os tipos. No mundo da capoeira, os
"mestres"9 são figuras estratégicas, no sentido de que é sobretudo a par­
com o dono da boca-de-fumo, que não queria que o fulano fizesse
capoeira, senão ele ia sair da boca. Então você tinha que ter uma lin­ tir deles que se constroem discursos de enorme riqueza e eficácia simbóli­
guagem à altura. E isso aí é uma doideira. Eu dei muita aula em co­ cas, capazes de alinhavar, ainda que às vezes de modo um tanto precário
munidade carente, de graça, voluntariamente. Chegou uma hora e provisório, visões de mundo, estilos de vida e formas de percepção e
que fiquei meio desgastado, "eu preciso me recuperar" . Até mesmo construção da realidade com freqüência díspares. Nesse sentido, eles
para me estruturar como trabalho, como instrumento de trabalho e emergem, como vimos no caso de Muca, como mediadores e articulado-
fazer alguma coisa mais assim ..., que me dê um certo retorno. . res, nem sempre conscientes e todo-poderosos, de situações bastante
1 72 Um Século de

complexas que envolvem não só indivíduos pe rtencentes a c am adas so­


F avela

ciais e meios culturais muito diferenciados, mas também a queles que já


l .

!.;{
C a poe i ra e Alteri dade

ser realizados em espaços abertos, em academias ou na casa de alguém


nos quais somente alguns minutos são gastos com o aquecimento físico
. e
173

e
morreram e, no entanto, "sobrevivem" um pouco à maneira dos mitos. o prepar? dos inst�umentos. Logo a seguir, tem lugar a "rod a " de c apoei­
Esses indivíduos - em sua maioria jovens a ba ixo dos 25 anos -, ra prop riamente dita , que então congreg a vários "mest
res" e seus respec­
que gravitam de forma não necessariamente estática em torno dos seus tivos alunos.
"mest res", vão tecendo entre si, e com os próprios "mestres", redes de so­ Nos "treinos", como disse, os alunos aprendem os movimentos da
ciabilidade, de amizade, de namoro, de p arentesco, de ensino-aprendiza ­ capoeira, isto é, aqueles que a caracterizam e a distinguem de todas as
gem, tudo isso concomitante a um sistema paralelo e dinâmico de alian­ outras formas de expressão corporal. Esses movimentos, por vezes bas­
ças e oposições. Redes que certamente ultrap assam esse mundo, mas que tante comple�º2'' são na verdade golpes que podem ser mortais se aplica­
p arecem t�r n a capoeira um canal privilegiado de expressão das relações dos com p recisao e força . Ocorre que, juntamente com os movimentos de
nelas subentendidas. Ou, em outras palavras, eles constroem ali um ambi­ ataque e esquiva, ensina -se algo muito peculia r à capoei ra : a "mandin-
ente comum de comunicação, 10 no qual transitam e se comunica m e a través ,, . . ,,
ga ' 1 3 Na capoeir a, a ,, m an dmga como que resume cer tas qu alid ades
do qua l, eu diria mesmo, constituem-se enquanto t ais. É óbvio, por outro . .
definidas por eles de modo não muito rígido como "ginga", "manemo­
lado, que a lógica que governa esses trânsitos e encontros culturais no lência ", "malícia ", "esperteza" e "malandra gem". Desse modo, a "man­
mundo da capoeira , assim como as relações que ao mesmo tempo aí se es­ dinga ", essa representação tão cara aos capoeirist as sobre eles p róprios,
t abelecem, não está dissociada do espectro social ma is amplo. É bastante torna-se o conteúdo mesmo dos "treinos". Conteúdo, é bem verdade,
comum, inclusive, que redes de relações previa mente formadas fora do sobre o qual não se fala ou se fala muito pouco, numa linguagem que
mundo da capoeira - por exemplo, as de p arentesco - se entrela cem pede p ara ser decifrada : "quebrem o corpo; acabem com esses movimen­
com aquelas que já estão a li estabelecidas. Um dos g randes problemas, tos retilíneos"; "não faz que nem ginástica olímpica não; bota molho no
aliás, do traba lho de campo é chegar a conhecer essas relações que estão movimento"; "a ginga tem que ser bonit a; não vai ginga r que nem robô
muitas vezes ocult as. Se eu sei de antemão que quem está "jog ando"1 1
não". E é evidente, por outro lado, que essas frases enigmáticas são enun­
naquele momento é um casal de jovens na morados, posso ter uma per­
ciadas em meio a exa ustivos treinos, onde técnicas corpora is elabora díssi­
cepção do "jogo" de capoeira completamente diversa daquela que teria
mas são repetidas numa mimese que parece não ter fim. Técnicas que
se nada soubesse. Por isso, como tento mostrar aqui, não podemos falar .
precisam, de a lguma forma, ser incorporadas a ponto de que já não se
em uma transposição mecânica da estrutura social p ara dentro do mundo
tenha delas consciência ou sobre elas não se consiga mais refletir.
da capoeira ou vice-versa.
Bom "joga dor ", "jogador mandingueiro", eles me dizem, é aquele
Vej amos então como, via de regra , se estrutura isso que estou cha ­
que mostra ao adversário que poderia tê-lo atingido e que não o fez por­
mando de mundo da capoeira.1 2 Existem, a meu ver, dois momentos fun­
que não quis. Assim, o golpe - uma r asteira, por exemplo - não é efeti­
damentais em que os encontros se realizam: os "treinos" e as "rodas". Os
vamente aplicado, mas somente seu movimento mimético. É como se os
"treinos" têm um caráter privado por se referirem ao encontro de um
capoeiristas estivessem o tempo todo fazendo de conta que vão bater e
"mestre" com seus respectivos a lunos. Nesses encontros - que variam
de duas a cinco vezes por semana -, os alunos p assam a ma ior p arte do derrubar os outros sem, no entanto, nunca fazê-lo. É verdade que, às
tempo, cerca de uma hora e meia de um total aproximado de duas horas, vezes, não se consegue (ou não se quer) evit ar, e o outro "jogado r" é der­
fazendo exercícios de alongamento e de respir ação, abdominais e treinan­ ruba do, mas isso é a exceção e não a regra. Quem assiste somente aos
do, individua lmente ou em duplas, os movimentos próprios da c apoeira . "treinos" tem a clara impressão de que os alunos estão sendo p repar ados
Somente a última meia hora do "t reino" é dedicada à montagem dos be­ para a briga, para o enfrentamento. Até porque o que não faltam são
r imbaus, ao ajuste dos outros instrumentos (em ger al tambor, a gogô e falas que apontam p ar a o caráter potencial de luta que esta ria presente
pandeiro) e à realização de uma pequena "roda " ent re eles próprios. 11<l. capoeira, como a de um "mestre" que dizia a seus alunos: "O jogo
Eventua lmente, alguns visitantes, como eu mesma, são admitidos nesses pode ser jogo de morte; a capoeira já matou muita gente, vocês sabem".
encontros rela tiva mente p rivados. Por outro lado, existem os encontros ':' aparente contradição surge quando se assiste ao encontro dos capoei­
públicos, de caráter extra ordinário, chamados simplesmente de " rodas" ristas numa "rod � " pública, pois então ocorre justamente a evitação do
de capoeir a - como aquela de mestre Poeira em Bangu -, que podem confronto físico. E mais ou menos como se ensin assem e a prendessem
174 Um Século de Fave l a Capoe i ra e A l te r i d a d e
1 75

os golpes não p ara aplicá-los de fato, mas para que se produza u ma sen­ por e �:mplo, as mu �eres sere11_1 menos " mandingueiras" d o que os ho­
s ação quase igual àquela que se experimentaria se fosse para v aler. 1 4 mens. as mulheres tem men os J o go de cintura; p a rtem mais p ar a dentr
Nesse nível d o cotidiano dos "treino s" tenho p o dido observ ar umas das out:as". A fala de mestre Muca sobre as supostas diferença�
que os c ap oeiristas constroe m um complexo e dinâm ico qua dro de mú­ entre a capoeira ?ª
Z on a Sul e a do subúrbio, já aqui referida, é outro
tu as acusações entre si. Dependendo d as circunstâncias, do l oc al e d as e �em �lo das frequentes associações que eles fazem entre a falta de " man­
pessoas envolvida s, eles rec orrem a categorias acus atórias as mais dis­ d�ga e alguma característica sociológica dos indivíduos. A " mandin­
tintas, sempre n a busca d a legitimação d a c ap oeira que eles pra ticam ga , nesse plano d as rel ações remotas e cotidian as, atuaria então com o
ou d os c apoeiristas env olvid os n a questão . O que eles buscam é sempre �m _ orera dor lógico relaci on and o e classificand o de forma hierárquica os
a quilo que, na quele moment o específic o , p a rece c o nferir u m c a ráter md1viduos e os grupos m etonimicamente, quer dizer, sep arando mas
mais "purq" ou mais " o rigin a l" a um deter min ad o m od o de se pr a tic a r guardando contigüidade entre eles. is
a c ap oeir a, ou aquil o que el es supõem a tribuir a u m c apoeirist a o "ver­ Ocorre que, se nos "treinos" os grupos tendem a se pensar e a se
d adeiro s aber" s obre ela . _
orgamzar em tom o de projetos c oletivos própri os a c a d a u m deles O mo­
A manipulação d os mais diversos pares antinôm icos - como, p or ment� d a "ro ?a " pública é s obretudo a quele d a mistura , do enco�tro, d a
exemplo, homens e mulheres, mestres e alunos, antigos e n ov atos, Zon a negaçao, eu diria, a princípio, das desigualdades s ociais. Momento até cer­
Norte e Zon a Sul, moderno e tradicional, Rio de Janeiro e outras cidades, to p n to limin �r,1 6 �a "rod �" busca-se suspender, por assim dizer, as
� -
Brasil e estrangeiro, brancos e negros - opõe diversos grup os uns aos op o siço �s exteno re � � c a p oeira , p o nd o t od os juntos e p o ssibilitand o, de
outros, p o dend o fic a r apen a s n o discurs o ou chegando m esmo , emb o r a f r�a ntu al e alegonca, que as ma is v ariadas e distantes ca tegorias so­

raramente, ao conflito exp lícito. :iais se_ enc,?ntrem e se comu�iquem a tra vés d a cap oeira . É aqui que a
Essas op osições c otidian as não são absolutamente estáticas. O m andmga , que no esp aço pnvad o sep ar a e põe c ad a qu a l no seu devi­

"nós" e o "eles" n a cap oeira nunc a estão dados a priori, emb ora, é claro, d o lugar, confere à capoeira um espírito de aventura.17 Nesse sentido ela
a �ab a c om s �ntimento de segurança das hierarquias sociais já estabele­
haj a uma tendência de os indivíduos pertencentes ao m esmo grup o com­ .º
cid as e excita Justamente pelo risco que proporciona a situação relativa­
partilh arem um projeto coletivo acerca de c omo a cap oeira deveria ser
praticad a . De qualquer forma, essas oposições parecem ser definidas e re­ mente �esc onhecid a de c ad a no va "rod a " . O "j o ga d or mandingueiro ",

definidas quase que a cada nova interação d os person agens. O mesmo com � vimos, não "luta ", ele "joga" . Ao apontar p ara o encontro lúdico e
_
grup o ou subgrup o pode, num instante, opor-se a outro acusand o-o, p or cna hvo nas "rod as" públicas, e não p ara o enfrentamento físico direto a
exemplo, de usar de violência e referindo-se a ele como u m bloco monolí­ "mandin �a " igual a-os tod os uns aos outros e assemelha, assim, a cap o�i­
tico e sem diferenciações internas; noutro instante, entretanto, os mes­ ra a u m "Jo go ", o que, p or definição, env olve sempre algum risco . Volte­
mos indivídu os ou a lguns deles p o dem fa zer a cus a ções a outro s c ap oei­ mos a mestre Muc a e ao que ele no s diz s obre isso:

ristas, env olvendo p arte dos anteriores ou não, relativas, p or exemplo, à


cap oeira "praticad a p ara turista ver", cheia de malab arismos e acrob a­
A cap oeira é um diálogo dos corpos; são dois corpos que ficam no
cias. Assim, alianças e op osições vão-se construindo entre os grupos de
mes mo mo vimento , um dá um golpe, o outro dá u m contragolpe,
uma forma mais ou menos dinâmica, embora se p ossa perceber, é claro,
formam uma seqüência até o cara ser atingido, p orque de repente
alguns la ço s mais permanentes.
faltou � quele lance de ele s air na hora ... pronto, pegou ele. Então,
Mas a distinção entre "j og o" e "luta " - e as acus ações contra a -
esse dialog? de corpos, esse l ance de expressão corp oral te traz
falta de " mandinga" que d aí derivam - é talvez u ma d as mais presentes uma certa mse?urança . Vo cê nã o sabe o que o ca ra é cap az de
n as fal as dos cap oeiristas. P arece-me b astante plausível supo r - emb ora _
fazer c ��h �o ah; ou ele segue a seqüência ou ele te pega no meio
aind a me faltem elemento s ma is concreto s p ar a sustenta r ess a hipótese -
da sequencia .

"
- que a percepção de ter ou não ter "mandinga ", nesse nível do co tidia­
no, quer dizer, enquanto os grupos estão efetivamente afastad os uns d os
outros, p o ssu a a lgu ma liga ção com as ca ra cterístic a s étnic a s, de gênero ,
de b airro, de moradia, de estado ou país de origem, ou aind a outras, d os
?q�e estou querend o insinu ar é que esse risco, que s obretud o as
_
r od as publicas trazem, nã o se refere apen as à possibilidade, citad a por
indivíduos. Penso isso a partir de alguns comentários que j á ouvi sobre,
. mestre Muc a, de o "jogo" se tomar uma luta . Essa é de fa to uma p ossibi-
176 Um S é culo de Fave l a Capoe i ra e Alte r i dade 177

lidade sempre presente. Aliás, se assim não fosse, não haveria o sentido também no que diz respeito a saber tocar os instrumentos, saber as canti­
de risco e aventura. Entretanto, penso que, além disso, o gosto pelo risco gas e saber as etiquetas de comportamento na "roda". A "mandinga", por­
e pela aventura advém, em boa medida, dessa mistura perigosa de ele­ tanto, se constituiria num mecanismo que, num certo plano, separa, mas,
mentos que no cotidiano estão separados porque são pensados como de­ em outro, emerge como o ideal que os une: a negação das desigualdades
siguais. A alegoria da "roda" pública, então, para caminharmos próximo em todos os níveis e a ênfase nas diferenças individuais.
à uma idéia de Geertz, 18 poderia ser interpretada como uma experiência Espero que tenha ficado claro que não estou querendo dizer com
na qual os capoeiristas reproduzem e vivenciam os dilemas que o encon­ isso que a capoeira acaba com as desigualdades sociais ou que nela não
tro com a alteridade provoca. Entre outras coisas não menos importan­ há violência. Vale lembrar de pelo menos dois casos bem recentes de
tes, como o jogo generalizado de sedução que esse "diálogo dos corpos" mortes ocorridas em rodas de capoeira, uma em Petrópolis, em outubro
proporciona e as conquistas amorosas que daí podem emergir, os moços de 1996, e outra em Marechal Hermes, em abril de 1997. Entretanto, esses
têm necessariamente que aprender, por exemplo, a lidar com a vergonha são casos excepcionais, se levarmos em conta a quantidade de "rodas"
e a humilhação públicas de serem ocasionalmente derrubados pelo outro que acontecem todos os fins de semana. O que, por outro lado, estou bus­
(ou Outro?) no meio do "jogo" . Uma das primeiras lições a aprender é cando aqui é uma interpretação, em termos antropológicos, de um núme­
saber cair, levantar rapidamente sorrindo e permanecer altivo no meio ro necessariamente limitado de modos de pensar e agir referentes sobre­
da "roda", "jogando" . tudo ao mundo da capoeira. Estou tentando mostrar como eles podem,
A "roda" de Bangu foi apenas um exemplo dessa capoeira que se nos momentos rituais das "rodas" públicas, não somente reorganizar e
quer, digamos, "sem fronteiras", mas todos os fins de semana estão reple­ re-significar uma ordem social já estabelecida - transformando-se eles
tos de "rodas" desse tipo por toda a cidade. De fato, o que se vê nas próprios no mesmo movimento -, mas também se prestar a um movi­
"rodas" são crianças de quatro ou cinco anos "jogando" com adultos de mento reflexivo e, por que não, apaixonante. Como disse mestre Muca,
até 80 anos, homens "jogando" com mulheres, negros "jogando" com "era muito gostoso sair de manhã cedo para jogar". E é assim, de uma
brancos, moradores da Gávea "jogando" com moradores de Bangu, enge­ forma desavergonhadamente apaixonada, que todos eles, sem exceção,
nheiros "jogando" com quem nunca foi à escola, americanos "jogando" me falam sobre a capoeira. Quais as conseqüências, digamos, mais "con­
com brasileiros, ricos "jogando" com pobres, mestres "jogando" com neó­ cretas" da capoeira para a vida daqueles que estão envolvidos com ela -
fitos. E, curiosamente, reforçando ainda mais o caráter alegórico desses por exemplo, se ela promove algum tipo de ascensão social -, é uma
encontros, na capoeira não há ganhadores ou perdedores. "Joga-se", sim­ questão para a qual não tenho resposta no momento.22
plesmente, sem esperar que alguém seja declarado o vencedor. 19 A pe1for­ Para finalizar, gostaria de retomar rapidamente um ponto a que
mance individual, todavia, é sempre avaliada por eles como boa ou ruim, me referi anteriormente a respeito do lugar da capoeira na constituição
bonita ou feia, segundo critérios técnicos ou estéticos, mas não há um dos próprios indivíduos. Penso que talvez fosse interessante recorrer
cômputo final que aponte o indivíduo ou grupo que ganhou o "jogo". uma vez mais a Simmel23 e a sua noção de cultivo do eu. Não me parece
Além disso, é importante observar que a capoeira, tanto nesses mo­ absurdo ver a capoeira como uma forma eficaz, prazerosa e grupal que
mentos extraordinários e rituais das "rodas", nos quais todos podem, a esses jovens encontraram de cultivo da subjetividade de cada um e de
princípio, participar, quanto nos espaços privados, parece necessariamente todos. Ela poderia, assim, ser vista também como uma espécie de defesa
ser regida por um ethos que tem uma dupla face: de um ponto de vista, os dos indivíduos contra a fragmentação sem precedente que a modernida­
capoeiristas estão englobados pelos grupos aos quais se dizem ligados,20 de inaugurou. Além do que, poderia ser tomada como um feliz contra­
embora isso dependa sempre, é claro, de um maior ou menor commitment exemplo dentro do quadro sombrio de aniquilamento das tradicionais
em relação não apenas ao projeto coletivo do grupo, mas também à capoei­ instituições sociais apontado por Zaluar (1997). Penso que essas são pos­
ra como um todo; porém, de outro ângulo, esse ethos está marcado por sibilidades de interpretação bastante coerentes com o que apontei aqui a
uma postura individualista que se expressa de duas formas:21 a primeira respeito do mundo da capoeira no Rio de Janeiro.24 E mesmo levando-se
seria um individualismo igualitário, base da idéia tão cara aos capoeiristas em conta que, depois da "roda" de mestre Poeira em Bangu, os meninos
de que a capoeira recebe a todos sem distinções de qualquer tipo; a segun­ e meninas da Zona Sul voltaram para suas casas e os da Zona Oeste lá
da seria um individualismo diferenciador, singularizador, que realça as permaneceram, desconfio que os jovens que saíram daquele encontro tal­
performances de cada um, não apenas no "jogo" propriamente dito, mas vez não fossem exatamente os mesmos.
178

Notas
Um Século de Favela Capoe i ra e A l t er i dade
· · · ·�
se sabe ao certo, mas o fato é que nela esse significado parece ser completa­
mente diferente nos dias de hoje.
1. Descrição do capoeira em Luiz Edmundo (1932:39).
14. Uma explicação ii la Norbert Elias poderia ver aqui não uma contradição,
2. Os termos aspeados são categorias utilizadas naquilo que podemos cha­ mas sim um dos aspectos apontados pelo autor de O processo civilizador: o co11-
mar de mundo da capoeira. Falarei deles mais detalhadamente adiante. trole do uso da violê11cia física em todos os níveis. Assim, numa análise de longa
Mundo é aqui utilizado para enfatizar a idéia de que a prática da capoeira­ duração, como propõem os autores (Elias & Dunning, 1992), as transforma­
gem parece possuir relativa autonomia no que diz respeito à produção de ções por que passou a capoeiragem no Brasil poderiam ser compreendidas
fronteiras simbólicas que lhe são específicas, constituindo-se, assim, numa como resultado de um processo bem mais abrangente de controle do extrava­
província de significados (ver Schutz, 1979; Simmel, 1971; Park, 1979; Becker, samento das emoções. Essa análise, entretanto, se por um lado clareia nossa
1977; e Velho, 1994). Muca é o apelido verdadeiro do "mestre", a quem sou visão acerca de processos mais amplos, em termos tanto espaciais quanto
grata pela_recepção sempre gentil e prestativa e a quem dedico este texto. temporais, por outro não nos deve fazer perder de_ vista o que há de específi­
3. Cabem aqui três observações a respeito de algumas distâncias sociológi­ co em contextos particulares como o da capoeira. E verdade que a antiga luta
cas importantes entre mim e o restante do grupo: primeiro, nunca pratiquei certamente já não existe mais nos moldes do Rio antigo. Porém, tomá-la
capoeira, de modo que estava ali somente como uma pesquisadora que es­ como um esporte moderno e compreendê-la exclusivamente sob a ótica de
tava tendo a felicidade de ser bem aceita pelas pessoas a quem estudava; se­ um processo civilizador pode se constituir num bias, porque se a modernidade
gundo, nasci e vivi muitos anos num subúrbio do Rio de Janeiro, o que de fato aponta para novos "modelos sociais de conduta e de sensibilidade",
fazia com que aquela viagem tivesse algo de familiar para mim; terceiro, ela não determina jamais como as coisas caminharão.
em termos etários, eu estava mais de 10 anos acima da média de idade do 15. Trata-se de um mecanismo em parte análogo ao do feitiço, estudado por
grupo. Maggie (1992).
4. Todas as falas do "mestre" neste texto foram retiradas da entrevista a 16. Ver Van Gennep (1978), Gluckman (1962) e Turner (1974).
mim concedida, em 12-8-1996, na casa do próprio Muca.
17. Ver Simmel (1971:187 e segs.).
5. Ver Nora (1984).
18. Ver Geertz (1978:278 e segs.).
6. Muca se refere aos cordéis coloridos que se amarram na cintura e que al­
guns grupos adotam para marcar a graduação dos alunos na capoeira. 19. Para uma observação semelhante entre jogadores de praças públicas, ver
Travassos (1995).
7. Sobre as noções de projeto, campo de possibilidades e potencial de metamorfose,
ver Velho (1994). 20. O que nos remete uma vez mais a Turner (1974) e à idéia de communitas
por ele desenvolvida.
8. Vianna (1995:155).
21. Ver Simmel (1971).
9. "Mestre" é a mais alta graduação na capoeira, à qual se chega após mui­
tos anos de aprendizado. Não existe, contudo, consenso quanto a esse tempo 22. " Mestres" e capoeiristas em geral têm me falado, de forma um tanto obs­
de formação de um "mestre", nem qualquer diploma conferido por alguma cura, sobre um lugar que a capoeira ocuparia ainda hoje de "resistência ao
instituição reconhecida por eles. Somente um "mestre" pode conferir essa "ti­ sistema". Seja qual for o passado de que lancem mão - e a história "verda­
tulação" a alguém e, mesmo assim, não está isento de comentários críticos deira" da capoeira é também objeto privilegiado de disputas -, todos enfati­
por parte dos outros. zam a continuidade, numa espécie de atualização permanente de um tempo
de perseguições e conflitos pelo qual a capoeira, sem dúvida alguma, pas­
10. Ver Schutz (1979:160 e segs.). sou. Mas até porque ainda não está muito claro para mim a que "sistema"
eles se referem, vou evitar discutir esse ponto aqui.
11. O verbo jogar é usado correntemente com o sentido genérico de atuar, de
desempenhar, quando se refere à prática da capoeria de um modo geral. 23. Simmel (1971 :227 e segs.).
12. Vale lembrar que o trabalho de campo até aqui desenvolvido foi feito ex­ 24. Certamente o mundo da capoeira não é o único espaço possível para isso.
clusivamente na cidade do Rio de Janeiro. O trabalho de Novaes (1997), por exemplo, aponta para novas formas de orga­
nização de grupos juvenis que passam por projetos coletivos baseados na so­
13. "Mandinga" é um topônimo de origem africana que significa, no seu sen­ lidariedade mútua. A capoeira, por sinal, como indica a autora, está presente
tido mais lato, feitiço, feitiçaria . Quando ele foi incorporado à capoeira não em vários dos encontros reunindo jovens "da favela" e "do asfalto".
180

Referências bibliográficas
Um S écu lo de F avel a

Becker, Howard. Mundos artísticos e tipos sociais. ln: Velho, Gilberto. Arte e
•1
*\:
. . .

Um bicho-de-sete-cabeças*
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(Marcos A lv i to
Edmundo, Luiz. O Rio de Janeiro 1zo tempo dos vice-reis (1 763-1808). Rio de Ja-
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Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
Para o Deley, a "Família Marlene" e todos os amigos do Larguinho.
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blique.)
Novaes, Regina. Juventudes cariocas: mediações, conflitos e encontros cultu­
rais. ln: Vianna, Hermano. Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros HÁ UMA ARMADILHA na famosa frase de Clifford Geertz: "os
culturais. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997. antropólogos não estudam as aldeias (...) eles estudam nas aldeias".
Como costuma ocorrer com sentenças exaustivamente citadas, acaba-se
Park, Robert. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento hu­
por perder de vista o contexto em que foram pronunciadas pela primeira
mano no meio urbano. ln: Velho, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de
vez. No caso, Geertz (1989:32) estava preocupado com uma questão me­
Janeiro, Zahar, 1979.
todológica: pretendia criticar dois modelos elaborados pelos antropólo­
Schutz, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. gos visando "justificar a m udança de verdades locais para visões gerais".
Simmel, Georg. 011 individuality and social fonns. Chicago, University of Chica­ O primeiro modelo a ser impiedosamente demolido é intitulado por ele,
go Press, 1971. com a carga de ironia habitual, de "falácia Jonesville-é-a-América em
ponto pequeno (ou a América-é-Jonesville em ponto grande)". A afirma­
Travassos, Sonia Duarte. Jogo, praça pública e sociabilidade masculina. Rio tiva, que viria a ser repetida com freqüência por diferentes cientistas so­
de Janeiro, UFRJ/PPGAS, 1995. (Dissertação de Mestrado em Antropolo­ ciais, aparece no decorrer dessa contra-argumentação, destinada a escla­
gia Social.) recer a diferença entre o locus e o objeto do estudo.
Turner, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis, Vozes, 1974. O que Geertz não diz, de forma alguma, é que seja possível estudar
na aldeia, sem que ao menos se tente conhecer, minimamente, o que seja
Van Gennep, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis, Vozes, 1978.
uma aldeia ou, pelo menos, a aldeia onde decorre o estudo. Afinal, o próprio
Velho, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1994.
MARCOS ALVITO é do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar; UFRJ, 1995. • Gostaria de agradecer aos amigos e colegas que comigo leram e comentaram este texto:
Alba Zaluar, Marcelo Burgos e Zairo Cheibub. Acima de tudo, sublinho aqui a dívida inte­
Zaluar, Alba. Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e vio­
lectual incomensurável para com a minha querida mestra e orientadora Maria Lúcia A.pa­
lência. ln: Vianna, Hermano. Galeras cariocas: territórios de conflitos e encon­ recida Montes, da USP, sem a qual a pesquisa da qual deriva este texto não teria sido pos­

--.
tros culturais. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997. sível.

--
182 Um Século de Favela Um B i c ho-de-Sete-Cabeças
183

Geertz tentou definir o que seria uma aldeia balinesa mais de uma década A tarefa que nos propomos pode parecer inalcançável. De fato,
antes de escrever a famosa frase.1 Ou melhor, ele provou ser impossível pretendemos apenas avançar um pouco no sentido da elaboração de
dar uma definição acabada de uma aldeia balinesa "típica" ou "média". O uma teoria sobre a favela carioca. E o faremos considerando os dois ní­
que haveria em comum entre elas seria um conjunto de planos organizacio­ veis que, no nosso entendimento, têm sido mais negligenciados nas análi­
nais cuja importância e inter-relação variam de aldeia a aldeia. Os planos ses existentes.4 Por um lado, o nível macrossociológico das relações entre
organizacionais, em número de sete, seriam: a obrigação compartilhada de as localidades, que são as favelas, e as instituições supralocais, como as
devoção em um determinado templo, a residência comum, a propriedade agências governamentais, as Igrejas, a "mídia", o aparelho policial etc.
de terras de arroz no interior de um mesmo sistema de irrigação, status so­ Ao mesmo tempo, saltaremos dois níveis, o interlocal e o local, para nos
cial adscrito comum, laços de parentesco de consangüinidade e afinidade, concentrarmos em uma realidade microssociológica, focalizando as mi­
pertencimento comum a algum tipo de organização "voluntária" e subor­ croáreas de vizinhança existentes no interior de cada favela.
dinação legal comum a um único funcionário governamental administrati­ Primeiramente, vamos aos conceitos básicos que iremos empregar:
vo. Mesmo no interior de cada um desses planos organizacionais há com­ instituições supralocais e localidade. Anthony Leeds (1978:31 e segs.) cha­
plexas variações. Tomemos, por exemplo, os templos. Em cada localidade mou de localidade,
há um conjunto de "três grandes templos": um associado à origem, ao pri­
meiro assentamento naquela área; um templo-cemitério para os espíritos
dos mortos da localidade; e o terceiro e último, um templo voltado, basica­ os loci de organização visivelmente distintos, caracterizados por coi­
mente, para a manutenção da fertilidade dos campos de arroz circundan­ sas tais como um agregado de pessoas mais ou menos permanente ou
tes. Mas não pára por aí: há também templos "de casta", "de associações", um agregado de casas, geralmente incluindo e cercadas por espaços
"de parentesco", "estatais" (pessoas sujeitas a um mesmo senhor) etc. Al­ relativamente vazios, embora não necessariamente sem utilização.
guns deles são encontrados por toda parte, outros apenas raramente, al­
guns são obrigatórios para todos, enquanto outros são voluntários. A característica fundamental das localidades seria o fato de consti­
Pode parecer complicado e, a julgar pela descrição de Geertz, o siste­ tuirem "pontos nodais de interação", onde há "uma rede altamente comple­
ma é altamente complexo, caracterizado por possibilidades incontáveis: xa de diversos tipos de relações". Estas seriam, sobretudo, laços de paren­
cada um desses planos é praticamente independente do outro, e eles va­ tesco bastante próximo, amizades mais significativas, parentela ritual e
riam de importância de aldeia a aldeia, bem como se entrecruzam ou se vizinhança. Em suma, como resume Leeds, localidades "são, na verdade,
opõem.2 Na fórmula bem-humorada do autor: "Como todas as coisas bali­ segmentos altamente organizados da população total". Por que utilizar o
nesas, as aldeias balinesas são peculiares, complicadas e extraordinariamen­ termo localidade? Acredito que Anthony Leeds fez uma crítica extrema­
te diversas". Pois bem, o que tudo isso tem a ver com as favelas cariocas? mente relevante ao uso do conceito de comunidade.5 No enten.der desse
Recomecemos, partindo de uma base concreta mais próxima. Duran­ autor, os chamados "estudos de comunidade" simplesmente transplanta­
te o meu trabalho de campo na favela de Acari,3 no Rio de Janeiro, voltei­ vam os métodos utilizados no estudo de "tribos" para outras realidades
me para o estudo da honra, da hierarquia e da reciprocidade. Caso típico bem distintas. O principal problema: tratar a comunidade como uma to­
de um estudo na favela. Mas um mero jogo de preposições não resolve o talidade isolada, autônoma, sem examinar sua inserção em um contexto
problema de fundo: embora não seja o objeto do meu estudo, devo tentar, mais amplo.6 No caso da favela carioca, amplamente estudado por Leeds
grosso modo, descrever analiticamente o que seja a favela de Acari. Não se e que lhe serviu de inspiração à elaboração do conceito de localidade, é
trata, como Geertz lucidamente questiona, de tomar Acari como um caso impossível pensá-la sem levar em consideração a atuação de "estruturas
"típico" ou "médio". Trata-se, isto sim, de tentar reconhecer, no caso da fa­ supralocais", entre as quais se destaca o Estado. A expressão "estruturas
vela de Acari, um conjunto de "planos organizacionais" que talvez possa supralocais", mais uma vez, é um conceito forjado por Leeds:
ser encontrado, com outras ênfases e outro arranjo, em diferentes favelas.
Nesse tipo de enfoque, cabe salientar exatamente as características próprias, organismos sociais para cujos princípios organizacionais qualquer
as especificidades da favela de Acari. Em defesa dessa proposta, tenho a conjunto dado de condições locais e ecológicas é irrelevante. ( ... )
dizer não somente que o caso de Acari, dada a metodologia adotada, é tão Qualquer estrutura cuja formação não seja governada por, ou rela­
bom quanto qualquer outro, mas também que se reveste de crucial valor de­ cionada a, uma dada localidade e que confronta várias localidades
vido à sua complexidade, como o leitor poderá julgar daqui a pouco. de maneira idêntica.
184 Um Sécu l o de F ave l a Um B i cho-de-Sete-Cabeças
185

Seriam estruturas supralocais os partidos políticos, o sistema ban­ para a sua comunidade. Nesse momento, também é possível que venham a
cário, o mercado de preços, os sindicatos, as associações profissionais e, utilizar o eufemismo piegas, paternalista e equivocado: comunidades caren­
sobretudo, a mais antiga e mais importante delas, o Estado, operando tes. A expressão é utilizada quase que exclusivamente pelos líderes comu­
através de uma série de instituições supralocais, como o Judiciário, buro­ nitários. Mesmo assim, apenas quando estão em contato com agentes go­
cracias administrativas, organismos monetários, partes do sistema eleito­ vernamentais, políticos, imprensa, visitantes estrangeiros, pesquisadores,
ral etc. Como este trabalho tem a pretensão de efetuar uma análise de enfim, pessoas "de fora", diante das quais reivindicam melhorias e benes­
Acari que leve em conta as relações mantidas pelas localidades com "a ses para a comunidade. Numa reunião com vários líderes comunitários e
ordem mais abrangente", evitei utilizar o termo comunidade, que pode moradores, uma moradora conhecida por seu estilo direto afirmou: "é fa­
muitas vezes ser associado à idéia de um microcosmo isolado e autôno­ vela, comunidade é pra inglês ver". Quanto a "Complexo de Acari", é
mo. Quando aparecer no texto, a palavra comunidade virá sempre entre um conceito vindo de fora e que não serve, de forma alguma, para a cons­
aspas, indicando casos em que os próprios moradores se valeram do trução de uma identidade. Jamais ouvi alguém dizer que morava no
termo. "Complexo de Acari". Até porque o termo "complexo", hoje amplamen­
Quando tentamos aplicar esses dois conceitos (localidade e institui­ te utilizado para designar grupos de favelas ("Complexo da Mangueira",
ções supralocais) ao estudo de um caso em particular, as coisas compli­ "Complexo da Maré" , " Complexo do Jacarezinho" etc.) é originário do
cam-se um pouco. Ao chegar pela primeira vez em Acari, em setembro vocabulário penal: " Complexo Penitenciário Frei Caneca", por exemplo,
de 1995, fiquei profundamente surpreso com uma coisa: a "favela de engloba diferentes "instituições penais" como a Penitenciária Milton
Acari" não existe. Existem três favelas diferentes, cada uma com nome, Dias Moreira, a Lemos Brito e o Hospital Penitenciário. Hoje em dia, o
território definido e associação de moradores própria: Parque Acari, Co­ uso difundiu-se tanto que até mesmo a prefeitura o utiliza: em julho de
roado e Vila Esperança. A isso acrescentamos os moradores dos 600 apar­ 1997, a placa do programa Favela-Bairro indicava: "Complexo da Man­
tamentos do conjunto residencial Areal ou "Amarelinho", os quais gos­ gueira" (Telégrafo, Mangueira e Candelária).
tam de se distinguir "do pessoal da favela" e também possuem uma O todo formado pelas favelas do Parque Acari, do Coroado, da
associação de moradores. Do ponto de vista da administração municipal, Vila Esperança e pelo conjunto residencial Amarelinho, ao contrário, é
o que estamos acostumados a chamar de "favela de Acari" pertence a claramente reconhecido pelos moradores das quatro localidades como
três bairros diferentes: o Amarelinho e a Vila Esperança ficam em Irajá, o aquilo que eles chamam, tão simplesmente, de "Acari". Desse modo, em­
Coroado, em Coelho Neto, e o Parque Acari, no bairro de Acari. pregam com freqüência as expressões "aqui em Acari" ou "aqui dentro",
Qualquer delimitação espacial depende dos critérios que estabele­ em oposição a "lá fora". Mesmo os líderes comunitários de cada localida­
çamos. Para o aparelho policial, por exemplo, existe o chamado "Comple­ de, ciosos defensores de suas "comunidades" particulares, admitem a
xo de Acari", que englobaria um conjunto de 10 favelas (próximas, mas existência de um conjunto representado pelas quatro localidades. É o que
não contíguas) que estariam sob o controle de um mesmo traficante. Essa podemos depreender de três episódios. O primeiro, quando, em 30 de
área teria uma população de cerca de 1 80 mil pessoas. A mídia impressa, julho de 1995, fizeram um plebiscito para escolher um único líder comu­
principalmente os jornais populares, adotam irrestritamente esse concei­ nitário de "Acari" a concorrer nas eleições para vereador no ano seguin­
to: tudo aquilo que acontece em favelas como o morro da Pedreira ou da te. Meses mais tarde, quando da passeata Reage Rio, em novembro de
Lagartixa, perto da "favela de Acari", aparece muitas vezes como tendo 1995, enviaram uma só representação. Mais recentemente, no primeiro
ocorrido "em Acari" ou "no Complexo de Acari". Os líderes comunitá­ semestre de 1997, chegaram a entabular negociações para formar um
rios, sobretudo os presidentes de associações de moradores, oscilam bas­ Conselho das Associações de Moradores de Acari, proposta que acabou
tante: por vezes, quando querem salientar a necessidade de atendimento naufragando. Outra possível subdivisão de Acari é a estabelecida entre
a reivindicações mais gerais de saúde, por exemplo, mencionam os 1 80 os dois diferentes bandos de traficantes que dividem a área em duas:
mil habitantes e o famigerado "Complexo de Acari". Quando fazem quei­ uma controlada pelos sucessores de Cy (Parque Acari), e outra pelos su­
xas à imprensa, também é muito comum utilizarem-se desse recorte espa­ cessores de Jorge Luís (Coroado, Amarelinho e Vila Esperança). Não ire­
cial e desses números. Os mesmos líderes, todavia, quando intercedem mos analisar esses outros níveis, mas é preciso ter sempre em mente que
junto a políticos e a órgãos governamentais buscando melhoramentos na eles estão presentes e tornam extremamente complicada a questão da
rede sanitária ou na urbanização, reivindicam única e exclusivamente identidade. As rivalidades e alianças entre as duas quadrilhas, as "guer-
186 Um Século de Favela Um B i cho-de-Sete-Cabeças 187

ras" ocorridas no passado e a "paz" existente hoje entre a s duas quadri­ "favela d e Acari" começou a ficar "famosa" e a ser conhecida n a mídia a
lhas sem dúvida influíram, e muito, na construção das identidades lo­ partir de três "fatos": a existência de um intenso tráfico de cocaína, sob a
cais, ao mesmo tempo em que foram por elas afetadas. chefia de um "dono" famoso por sua política "assistencialista", o "Cy de
Acari"; a realização, bem em frente à favela de Acari, de uma "feira" co­
nhecida por vender produtos de origem legal duvidosa, presumivelmen­
O plano macro: as estruturas supralocais te furtados ou roubados, a "Robauto"; e a formação de um grupo de mu­
lheres, internacionalmente conhecidas como As Mães de Acari, visando a
Já foi adiantada uma definição de estruturas supralocais. Há, toda­
esclarecer o desaparecimento de 11 jovens - alguns deles moradores da
via, uma subdivisão a ser feita entre as estruturas supralocais. Primeira­
"favela de Acari", supostamente mortos por policiais. Sendo assim, pode­
mente, há aquelas que, basicamente, não possuem nenhum enraizamen­
mos dizer que Acari, a partir de meados da década de 80 até hoje, tem
to local, tais como os mass-media, os partidos políticos, a polícia, os ór­
ocupado um lugar de destaque (negativo) no imaginário urbano do Rio
gãos governamentais e as organizações não-governamentais (ONGs).
de Janeiro. Dessa forma, não admira que, em dezembro de 1995 - cerca
Há outros que, embora a esfera decisória, em última instância, resida
de 15 dias depois da realização da passeata Reage Rio -, o secretário de
fora da localidade - de outra maneira seriam poderes locais e não supra­
Segurança do Estado do Rio de Janeiro, general Nílton Cerqueira, tenha
locais -, também se compõem de membros da localidade, como as Igre­
feito a seguinte declaração em entrevista ao Jornal do Brasil (15-12-1995):
jas e o tráfico de drogas. Aqui, embora haja componentes locais, a organi­
zação da qual dependem ultrapassa o nível local. As variações, obvia­
mente, são bastante amplas. A Igreja Católica apresenta um grau bem De acordo com o manual de guerra das Forças Armadas, é conside­
maior de supralocalidade do que a imensa maioria das "Igrejas Protes­ rada uma zona amarela aquela área onde há um risco moderado
tantes" (no interior destas, talvez se pudesse fazer uma divisão, também para a tropa. As zonas vermelhas, onde há um alto grau de perigo,
no sentido decrescente de supralocalidade, entre as igrejas "históricas" e também foram identificadas na cidade pelo general: "As favelas
as "neopentecostais"); os templos das religiões afro-brasileiras parecem de Acari, Vigário Geral, Turano e Parada de Lucas apresentam um
representar, dentro desse continuum, um grau mínimo de supralocalida­ grande risco para a população e mesmo para a polícia, que deve
de. A categoria "estruturas supralocais" é apenas um recurso analítico, ter maior cautela", explicou o secretário.
não é uma descrição substantiva. Por isso mesmo a classificação torna-se,
por vezes, contestável, dependendo do caso. Embora normalmente as
chamadas ONGs não tenham uma base local, há outras, como a Casa da Menos de quatro meses depois dessa declaração, a "favela de
Paz em Vigário Geral, que se identificam fortemente com a localidade. Acari" (isto é, as quatro localidades já citadas) viria a ser "ocupada" (lin­
No caso de Acari, a ONG mais atuante é a Fábrica de Esperança, dirigida guajar militar) por centenas de homens da Polícia Civil, numa madruga­
por uma federação de igrejas evangélicas, a Vinde. Ela não tem nenhum da de abril de 1996. Vigário Geral e Parada de Lucas, também citadas na
enraizamento comunitário: embora atenda a milhares de pessoas de declaração, vieram a ser ocupadas meses depois. Lembremos que have­
"Acari" em suas inúmeras atividades e serviços, todo o staff da Fábrica é ria eleições municipais apenas seis meses depois e que o tema da violên­
vindo "de fora", sendo quase que exclusivamente composto de evangéli­ cia urbana, como tem acontecido há mais de uma década, estava no cen­
cos. Os próprios assessores da Fábrica afirmam que o trabalho da entida­ tro das discussões. Assim, podemos dizer que a "ocupação" de Acari foi
de visa a atingir as "18 comunidades do Complexo de Acari" .7 Casa da fruto de uma conjuntura muito especial que envolve a "opinião pública"
Paz e Fábrica de Esperança representariam dois pólos opostos em termos e sua preocupação crescente com a "violência urbana"; a mídia e seus re­
de supralocalidade. Mesmo que essas distinções não sejam absolutas latos; o ethos militar imposto ao aparelho de segurança pública; e o pro­
nem universais, têm algum valor explicativo. cesso eleitoral com suas estratégias de marketing. Em suma, um determi­
Antes de mais nada, devemos enfatizar que as estruturas supralo­ nado tipo de inter-relações entre poderes supralocais levou à "ocupação"
cais, como a mídia e a polícia, relacionam-se entre si e que essas relações de Acari. Enfatize-se, por exemplo, o fato de que os relatos da mídia de­
influenciam, por sua vez, as relações que mantêm com Acari. Raciocine­ pendem, em grande parte, do próprio aparelho policial: no dia-a-dia fre­
mos a partir de um episódio concreto: a "ocupação policial" de Acari. A nético do repórter policial, não há tempo para maiores investigações, e o
188 Um Sécu l o de Favela �rn B i ch o-de- S e te - C a b eça s
1 89

acesso a outras fontes (os moradores da localidade em geral ou mesmo permercado mais prox1mo teve seu número de consumidores grande­
membros de uma determinada quadrilha) demandaria um enorme· inves­ mente diminuído. Como a economia costuma funcionar em círculos
timento de tempo para conquistar a confiança necessária.8 No caso da "viciosos" ou "virtuosos", houve um efeito contrário ao de uma bola de
"ocupação" de Acari, por exemplo, menos de um mês antes de ela ocor­ neve, uma verdadeira "depressão econômica" vivenciada localmente.
rer, a polícia "descobriu" um "santuário" para dois chefes do tráfico fale­ Em cada semblante, em cada conversa, o assunto da "falta de dinheiro"
cidos: Tonicão (morto em 1989) e Jorge Luís (morto em março de 1996) . aflorava constantemente. Por vezes, pude ver pessoas porem à venda ele­
Coloquei "descobriu" entre aspas porque o "santuário" já existia há mais trodomésticos (como videocassete, televisão, geladeira) ou objetos de uso
de seis �nos, e os policiais passavam por ele quase diariamente. Portanto, pessoal (bicicleta, relógio). Houve uma diminuição do poder aquisitivo
não deve ser coincidência que a reportagem da Rede Globo tenha sido de uma maneira geral, e cresceu enormemente o número de desemprega­
avisada a tempo de acompanhar todo o processo e que a notícia tenha dos.
sido veiculada para todo o país como primeira manchete do Jornal Nacio­ Poucos meses depois, acirra-se a campanha eleitoral. Um candida­
nal. Na maioria das vezes, a imprensa só está presente graças ao "chama­ to a vereador pelo PFL contrata como cabo eleitoral o presidente de uma
do" da polícia para acompanhá-la numa "batida" ou "operação" de das quatro associações de moradores de Acari. Durante os três últimos
maior "envergadura" ou "impacto". Viaturas policiais e carros de repor­ meses que antecederam as eleições de outubro de 1996, a associação de
tagem chegam juntos. Isso quando as informações não são passadas por moradores daquela localidade foi transformada em sede e refeitório para
telefone ou obtidas depois que foi feito o registro da "ocorrência" na de­ um grupo de 300 moradores da favela, selecionados pelo presidente da
legacia. Desse modo, fica fácil para os policiais inventarem "bandidos pe­ associação de moradores e contratados, temporariamente, pela empreitei­
rigosos", "chefões", "gerentes" e toda uma gama de topai das páginas ra à serviço da prefeitura. O tal candidato foi um dos "campeões de
"policiais" . Mas o meu objetivo não é bater novamente na conhecida voto" no município do Rio de Janeiro. Imediatamente após as eleições,
tecla da utilização política das "campanhas" de segurança pública. Inte­ cessaram as obras naquela localidade (basicamente, melhoria do sistema
ressa-me, isto sim, o impacto que a "ocupação" veio a ter em Acari, como sanitário de algumas ruas). A relação privilegiada que aquele político do
exemplo da influência dos poderes supralocais. partido "do prefeito" mantinha com os órgãos municipais permitiu ao
Após aquela madrugada de abril de 1996, toda a dinâmica da vida líder comunitário amenizar, ao menos temporariamente, um problema
local foi afetada. A diminuição drástica do tráfico de drogas e sua quase local causado por uma intervenção do governo estadual, através do apa­
supressão durante os primeiros meses da ocupação caíram como uma relho policial, instigado a agir, presumivelmente, pelo potencial político
bomba na economia local. É verdade que o número de pessoas direta­ de uma ação daquele tipo em meio a um intenso debate midiático acerca
mente envolvidas no tráfico de drogas, em cada localidade, é ínfimo, da violência urbana. Mas isso não é tudo: a escolha do candidato a verea­
mas também é verdade que essa parcela, sem dúvida inferior a 1 'X, do nú­ dor que viria a ser apoiado pelo líder comunitário não dependeu somen­
mero total de moradores, acaba por controlar um negócio milionário cujo te do salário que veio a ser recebido pelo presidente da associação nem
impacto econômico afeta, direta ou indiretamente, todos os moradores tampouco do potencial "clientelístico" que os 300 empregos lhe propor­
de Acari, inclusive a maioria absoluta de trabalhadores. Senão vejamos. cionaram. Poucos meses antes, já depois da ocupação policial, o referido
Aquela parcela ínfima que participa da atividade ilegal vive na localida­ líder comunitário estava apoiando um candidato do PSDI3, partido no
de: negocia e aluga imóveis, faz compras no comércio local, ajuda fami­ poder no nível estadual, acreditando que o candidato a prefeito daquele
liares e amigos etc., o que movimenta toda a economia local. Ao mesmo partido sairia vencedor. Acontece que fora o governador quem, em últi­
tempo, os milhares de "viciados"9 que entravam em Acari a cada dia, ma instância, ordenara a "ocupação" de Acari. Sendo assim, a quadrilha
além de comprarem drogas, acabavam por fazer despesas no "comér­ de traficantes, que se vira prejudicada pela presença do aparato policial,
cio": biroscas, bares, restaurantes e ambulantes em geral. Quando esse fez saber ao líder comunitário todo o seu descontentamento por ele estar
enorme "movimento" 10 caiu quase a zero, inúmeros estabelecimentos co­ apoiando um candidato do partido do governo que estava reprimindo
merciais da localidade fecharam suas portas, principalmente os situados seu "negócio" . Coincidentemente ou não, o líder comunitário mudou de
nas ruas de acesso de "viciados" às bocas-de-fumo. Os comerciantes que candidato e de partido depois que um político do PSDI3 recusou-se a in­
resistiram, bem como alguns vendedores ambulantes, registraram que­ termediar uma reunião com o governador, na qual aquele líder comuni­
das de mais da metade das suas vendas. Segundo os moradores, até o su- tário tentaria "afrouxar" a ocupação policial. .. Em outra favela, fora da lo-
190 Um Século de Favela Um B i c ho-de-Sete-Cabeças
191

calidade de Acari, ouvira de um líder comunitário que jamais o marco do início da década d e 8 0 liga-se à s vicissitudes d o comércio inter­
candidato do partido do governador iria vencer as eleições para prefeito nacional de drogas. Segundo Philippe Bourgois (1996:74-5) - baseando­
nas favelas "ocupadas" pela polícia, pois o tráfico apoiaria, ostensiva­ se na afirmativa de um agente da própria Drug Enforcement Administra­
mente, candidatos de outros partidos. tion (DEA) -, a explosão do tráfico de cocaína derivou de uma reação à
O fim do tráfico ostensivo, o desaparecimento dos meninos em política antidrogas do governo norte-americano. Com o aumento da re­
armas das ruas, o patrulhamento ininterrupto e diuturno das localidades pressão à entrada de maconha nos Estados Unidos durante o primeiro
por policiais, poupando os sobressaltos causados pelas antes diárias "ba­ governo Reagan, os exportadores latino-americanos de maconha teriam
tidas policiais" e afastando o fantasma de uma possível "tomada da fave­ voltado seu negócio para a exportação de cocaína, que é mais fácil de
la" por parte de um bando inimigo, tudo isso causou outras mudanças transportar, pois ocupa apenas uma fração do espaço físico ocupado pelo
além da já apontada. A "paz" levou a uma reconquista do espaço "públi­ mesmo valor de maconha, além de poder ser misturada quimicamente
co" por parte das crianças e dos mais velhos: saíram os walkie-talkies e os de inúmeras formas. Com isso, há um crescimento vertiginoso da oferta
fuzis automáticos, voltaram o carteado à sombra da árvore, a mesa de de cocaína. As primeiras medidas de Reagan datariam de 1981, quando
pingue-pongue improvisada, o jogo de futebol no meio da rua, as meni­ ele colocou o então vice-presidente Bush da direção da South Florida
nas pulando corda. A "ocupação" de Acari foi fruto de uma conjuntura Task Force, responsável pela repressão ao contrabando no principal pon­
muito especial, que envolve a opinião pública, os mass-media, o processo to de entrada das drogas nos Estados Unidos.
eleitoral etc. Registre-se, entretanto, que mesmo aqueles que sofreram di­
Creio que o que foi dito até agora demonstra com clareza a com­
ficuldades financeiras provenientes da brusca diminuição da atividade
plexidade das ramificações e inter-relações entre as diferentes estruturas,
econômica em Acari, mesmo esses, jamais demonstraram sentir sauda­
locais e supralocais, que acabam por influir, numa dinâmica às vezes per­
des do que ocorria antes. Com a cautela natural dos que se sentem per­
versa, no dia-a-dia dos moradores de Acari.
manentemente vigiados, após certificarem-se de que não havia ninguém
1 suspeito por perto, abriam um vasto sorriso e afirmavam: "a favela está
1
uma uva". Isso apesar de todos os relatos que ouvi acerca de brutalidade
1
,,
policial, tortura e extorsão. Como tudo isso dirigia-se quase que exclusi­
O micro: os pedacinhos da favela
''
1
vamente aos "bandidos", os "moradores" não demonstravam tanta preo­ Onde pensávamos existir Acari descobrimos haver quatro localida­
cupação; afinal, como dizem: "eles lá, nós cá" e "cada um é cada um". des: Coroado, Amarelinho, Vila Esperança e Parque Acari. E onde acredi­
Outra estrutura supralocal que é necessário levar em conta é o trá­ távamos haver uma localidade, o Coroado, por exemplo, vimos que exis­
fico. internacional de drogas. Tanto policiais quanto moradores de fave­ tem vários "pedacinhos": Larguinho, Jaqueira, Couro Grosso, Madu­
las são capazes de apontar um momento, situado por volta de meados reira, Pousada, Olaria, Barreira, Cruzeiro, São Benedito, Rua Souza,
da década de 80, em que a dinâmica do tráfico de drogas modificou-se, Pereira da Silva, Viaduto... Além de "Acaü" ser formada por quatro loca­
assumindo, da noite para o dia, as proporções de um comércio milioná­ lidades diferentes, cada uma delas subdivide-se em mais de uma dezena
rio, cujo controle, sem dúvida, é supralocal e até mesmo supranacional, de microáreas de vizinhança. A favela Parque Acari, por exemplo, divi­
embora a ponta mais visível (e a única a ser, de uma forma ou de outra, de-se em mais de uma dúzia delas: Figueira, Piracambu, Bolonha, Beco
reprimida) esteja localizada - dentre outros sítios - nas favelas cario­ do Arrego, Bico Doce, Universal, Praça Roberto Carlos, Travessa Pira­
cas. O comércio ilícito de maconha, que existia de longa data nos morros cambu, Bolo Doido, Buraco Quente, Esquina do Lazer, Campinho, Tra­
cariocas, era um negócio cujo controle podia se dar, até certo ponto, no vessa Leandro.
nível local. Um antigo dono de boca-de-fumo na localidade de Acari na A forma pela qual foram nomeadas essas microáreas talvez nos
década de 50 afirmou-me que comprava a maconha diretamente de um diga alguma coisa. Às vezes, o nome é neutro e indica uma característica
fornecedor no Cais do Porto. As somas de dinheiro movimentadas eram geográfica, uma área mais ampla (Larguinho), o lugar onde havia um de­
insignificantes se comparadas às proporcionadas pelo tráfico de cocaína terminado tipo de árvore (Figueira, Jaqueira). Outras vezes, faz-se refe­
hoje em dia. Também em Acari, um líder comunitário lembrou-me que o rência a atividades de lazer: a existência de um campo de futebol (Campi­
dono da boca-de-fumo na década de 70 andou muito tempo a pé, en­ nho), um famoso forró (Madureira), uma esquina onde churrascos e
quanto vários barraqueiros já tinham seus fusquinhas. Obviamente, o comemorações são freqüentes (Esquina do Lazer). Pode-se fazer referên-
i
i
,l !
192 Um Século de F ave l a

eia ao nome ou de uma igreja (Universal) ou de um santuário (Cruzeiro).


Outras vezes, toma-se o nome da rua principal daquela microárea (Pira­
cambu, Bolonha, Travessa Leandro etc.). O nome pode ser um resquício
, <

:#{
S/
Um B i cho-de-Sete-Cabeças

<lacinhos", na verdade, encerra em si uma rede de relações firmemente


entrelaçadas, cujo ponto de partida é a vizinhança. Vizinhança num senti­
do bastante restrito: cada microárea compõe-se de algumas dezenas de
193

de atividades econômicas antes ali desenvolvidas: o local onde. antes ex­ casas e famílias. Aqui, sem dúvida, estamos próximos do conceito de "pe­
traía-se argila para fabricação de tijolos ainda hoje tem o nome de Barrei­ daço", segundo a definição de Magnani (1984:138):
ra, e o lugar onde os tijolos eram fabricados é hoje a rua da Olaria. Ou­
tras vezes, o nome faz menção à corrupção policial: beco do Arrego era o
discreto local onde policiais corrompidos vinham receber dinheiro do trá­ aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público,
fico; que a prática tenha dado nome à microárea indica a sua freqüência. onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a
Pousada deriva da existência de um prédio construído por um antigo fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e está­
chefe do tráfico, que o utilizava para festas, bailes e eventos como Cosme vel que as relações formais e individualizadas impostas pela socie­
e Damião. Couro Grosso e Buraco Quente eram locais onde residiram dade.
dois importantes chefes do tráfico, e Bolo Doido é uma microárea bem
próxima a uma importante boca-de-fumo.
As microáreas servem muitas vezes de suporte para representações Pude perceber com clareza, após algum tempo de trabalho de
acerca das diferenças existentes no interior de uma única favela. No Co­ campo em Acari, que a circulação de pessoas entre as localidades é
roado, a Barreira e o Madureira, área de maior concentração de forrós, muito pequena, e, o que é ainda mais surpreendente, mesmo a circulação
são vistas como pedaços "nordestinos"; a Piracambu, no Parque Acari, é no interior de uma única localidade, como o Parque Acari ou o Coroado,
vista como a região mais "rica" de Acari, às vezes chamada ironicamente é relativamente insignificante. O que eu entendo por circulação, natural­
de Zona Sul da favela, é também, na opinião de um líder comunitário, mente, exclui trajetos obrigatórios, como a ida ao trabalho, ao mercado
onde há a menor presença de negros; há microáreas vistas como mais po­ ou à escola. Notei que eu encontrava sempre as mesmas pessoas nos mes­
bres, entre as quais se destaca, sem dúvida, o Mangue Seco - nome irô­ mos locais, excetuando-se os líderes comunitários, o que é facilmente ex­
nico para uma área com sérios problemas de inundação -, uma das últi­ plicável. Depois de um certo tempo eu já conhecia alguns grupos de mu­
mas áreas de Acari (na favela de Vila Esperança) onde ainda predo­ lheres, sempre a conversar, sempre na proximidade de suas casas, às
minam barracos de madeira improvisados. Uma divisão básica pode vezes sentadas nas soleiras das portas. Quanto aos homens, cada birosca
ser feita entre microáreas "mais pra fora" e "mais pra dentro" da fave­ tem um bom número de freqüentadores "fixos", a imensa maioria deles
la. As regiões interiores, mais longe "do asfalto", são menos valori­ vizinhos muito próximos. Na maior parte do tempo, nada consomem: a
zadas. "barraca", como eles chamam, é apenas um ponto de encontro.
Os laços identitários e de solidariedade espraiam-se em círculos Essas microáreas de vizinhança é que servem de suporte quase
concêntricos cada vez mais amplos, mas vão perdendo força à medida exclusivo a uma série, de _atividades. Quando da organização de campeo­
que englobam unidades maiores, como a favela ou Acari como um todo. natos de futebol, por exemplo, não se formam times de uma localidade
Da mesma forma que entre os Nuer estudados por Evans-Pritchard contra outra, e sim times de determinadas microáreas: um time do Lar­
(1993:151 e segs.), o segmento mais amplo, a localidade do Coroado, por guinho, um time do Couro Grosso, um time da Barreira, um time do
exemplo, só existe em função das oposições diante de outros segmentos, Bolo Doido. Referem-se a um time da favela do Coroado como uma "se­
como a Vila Esperança ou o Parque Acari. leção" do Coroado, isto é, uma formação composta por jogadores origi­
As intensas rivalidades entre as quatro localidades que compõem nários de diversos times (e microáreas) diferentes. Outras atividades de
Acari são facilmente percebidas pelo mais desatento observador. O nível lazer, como "caipiras" (grupo de dançarinos de quadrilha), também cos­
de segmentação interno de cada localidade é, entretanto, tão ou mais im­ h,1mam estar associadas a esses "pedacinhos". Os grupos de crianças e
portante do que as divisões entre as localidades. De início, quando os de jovens também se agrupam segundo as microáreas: é entre eles so­
moradores de uma das localidades - digamos, a favela do Coroado -, mente que fazem brincadeiras, jogam pingue-pongue, disputam na
faziam menção ao Larguinho, à Barreira ou a outro lugar qualquer da fave­ b ola de gude, rodam pião, soltam pipa, jogam nas máquinas de video­
la, eu nem podia imaginar o que eles significavam. Cada um desses "pe- game.
! .,
� 194 Um Sécul o de Favel a Um B i cho-de - Se t e - C abeças 195

Muito freqüentemente, ocorrem namoros e casamentos no interior ciência, espantado, de que, a despeito de ter travado e firmado relações
de uma mesma microárea. É redundante dizer que, quando os filhos se bastante amistosas com muitos homens casados, jamais os vira na presen­
casam, procuram residir nas proximidades, de preferência na mesma mi­ ça de suas mulheres nem mesmo as conhecia, de nome ou de vista, afora
croárea. Os laços de amizade e vizinhança, já incrivelmente ativos, são um ou dois casos excepcionais em que visitei a casa de líderes comunitá­
assim reforçados por laços de parentesco. Isso sem falar no pa·rentesco ri­ rios (novamente uma exceção que confirma a regra) . Em um espaço tão
i
tual estabelecido pela existência de "compadres" e "comadres" . Esses di­ exíguo e densamente habitado, essa "invisibilidade" das mulheres casa­
ferentes tipos de relacionamento concorrem para a existência de uma das é algo impressionante. Várias vezes vi homens elogiando, sob a
coesa e importante rede de solidariedade. Some-se a isso terem freqüen­ forma aparente de uma queixa, essa qualidade nas suas mulheres: "ela
tado a mesma escola pública e o fato de que, muitas vezes, trabalham não gosta de sair, é muito caseira". Por outro lado, também não é bem­
lado a lado ou mesmo ombro a ombro, carregando mercadorias na Cea­ vista a presença de indivíduos adultos do sexo masculino em grupos de
sa, por exemplo. A possibilidade de ajuda mútua está sempre presen­ mulheres.
te: entre as mulheres, pedir uma "caneca" de açúcar, arroz ou óleo é bas­ Outro elemento caracteristicamente masculino é a busca de conside­
tante comum. Entre os homens, "adiantar" 11 pequenas quantias em di­ ração (Lins & Silva, 1 990:170). Ser considerado é uma expressão que sinteti­
nheiro, prestações de trabalho e "rodas de cerveja" são as formas mais za a qualidade daquele que sabe ser amigo, companheiro e igual, que
comuns de troca. Em ambos os casos, há uma etiqueta a seguir: a recipro­ não busca elevar-se acima dos outros, mas tampouco permite qualquer
cidade é um ideal a ser perseguido com esmero, e tanto a generosidade arranhão ou desafio à sua reputação, que não "baixa a cabeça" por nada.
excessiva quanto a avareza são vistas como deslocadas num ambiente A pessoa considerada também é qualificada como de responsa, termo que
I' 1

marcado pela horizontalidade das relações sociais. As queixas eram fre­ gravita em torno da firmeza, da honestidade e da confiabilidade. Nas
qüentemente transmitidas ao antropólogo, de maneira a alertá-lo quanto brincadeiras e nas disputas esportivas, nos comentários e nas conversas,
a indivíduos pouco retributivos, digamos assim. O título para aqueles avaliam-se ininterruptamente, trocam referências pessoais: "fulano é mar­
que sabem estabelecer esse relacionamento de forma equilibrada é parcei­ rento" (orgulhoso, arrogante}, "beltrano é de responsa" . É a qualidade da­
ro, entre os homens, e comadre, entre as mulheres, mesmo que não haja quele que sabe criar em torno de si urna extensa rede de reciprocidade
entre elas parentesco ritual propriamente dito. Aqui existe, entretanto, sem ferir susceptibilidades, que demonstra ter disposição, mas sabe vencer
uma diferença entre os gêneros bastante significativa. Principalmente no na moral, como salientou Alba Zaluar (1994b:25}. Já a reputação feminina
caso das mulheres casadas, a rede de reciprocidade que lhes é permitido é caracteristicamente negativa, lembrando a famosa frase que Tucídides
construir é bem mais restrita e normalmente assenta-se na própria orga­ atribui a Péricles: "grande será também a glória daquelas de quem
nização familiar: cunhadas e sobrinhas, preferencialmente sob a supervi­ menos se falar, seja pelas virtudes, seja pelos defeitos" .
são vigilante da sogra. No máximo, pode incorporar-se a esse círculo Em cada um desses núcleos de sociabilidade que são as microáreas,
uma vizinha muito próxima, da casa ao lado ou em frente. O locus de tais há um elemento que serve para medir o pertencimento ou não de alguém
relações femininas de reciprocidade é o espaço doméstico ou a fronteira ao "pedacinho" . Trata-se da possibilidade ou não do estabelecimento de
do mesmo ("as portas"). 1 2 A exceção fica por conta de atividades exter­ relações jocosas, dotadas de uma agressividade verbal intensa. Os pontos
nas justificadas pela dinâmica da "casa" e da família, como fazer com­ limites da honra masculina e familiar são constantemente tensionados,
pras no supermercado, levar as crianças à escola, ou então ir à igreja (nor­ maneira de reafirmar, de forma invertida, a amizade mais profunda. Em
malmente em grupos compostos de outras mulheres ou acompanhadas voz alta, em meio a gargalhadas, olhares marotos, abraços rejeitados com
dos filhos). Os homens, ao contrário, raramente visitam-se: o espaço um desdém claramente encenado, faz-se menção à atividade sexual exer­
onde se desenvolvem as relações de companheirismo e amizade é a rua. cida sobre o outro. Há uma coreografia da amizade, 1 3 um tom exato em
Embora a família ainda seja uma referência importante, havendo, por que devem ser ditas essas "piadas", cuja repetição incessante permitiria
exemplo, um grupo de irmãos que é amigo de outro grupo de irmãos, qualificá-las de um ritual. Espicaçam-se constantemente de uma forma
aqui as possibilidades de parceria são bem mais amplas. Diferentemente que pode parecer dura e até mesmo grosseira ao observador externo,
do que ocorre entre as mulheres, a presença do sogro é absolutamente ex­ caso este não seja capaz de traduzir ali uma contínua declaração do vín­
cepcional. Obviamente, os locais onde os homens reúnem-se são veda­ culo afetivo que os une. Afinal, na definição clássica de Radcliffe-Brown
dos às mulheres. Ao fim de um ano de trabalho de campo, tomei cons- (1952:91):
Um Séc u l o de Fave l a Um B i cho - de - Se t e - Cabeças 1 97
196

O relacionamento jocoso é uma combinação peculiar de amizade e meiam. No máximo, ouvem-se referências vagas e padronizadas a "dona
antagonismo. O comportamento é de tal tipo que, em qualquer Encrenca". E nunca, independentemente do grau de amizade entre dois
outro contexto social, expressaria e atrairia hostilidade; mas não é homens, elaboram-se chistes relacionados ao adultério: comprazem-se
levado a sério nem deve sê-lo. Há uma pretensa hostilidade e uma em criar maneiras elaboradas e engraçadas de chamar alguém, sem usar
amizade real. o termo, de homossexual, mas em nenhuma ocasião ousam sequer duvi­
dar do comportamento moral das mulheres da família, o que seria atingir
o limite último de qualquer interação: o respeito. É claro que se queixam
No mesmo artigo, Radcliffe-Brown propõe uma possível classifica­ da pretensa situação de frouxidão moral, de desrespeito, que imperaria
ção para esse tipo de interação: "relações simétricas" e "assimétricas". hoje em dia: "antigamente" - fala com saudade o morador -, "se xin­
Por vezes, como no caso estudado por Luiz Fernando Dias Duarte (1987), gasse a mãe, tinha briga para mais de 10 anos".
a agressividade verbal serve de comentário acerca das oposições e hostili­ Na verdade, essas microáreas são o Iocus de uma memória. Esta
dades reais existentes no interior de uma equipe de trabalho, como numa pode ser alegre, referir-se às travessuras conjuntas, às inúmeras brigas
companhia de pescadores. O que temos nas microáreas, ao contrário, é, na entre eles, das quais se riem muito hoje, ao tempo em que todos iam as­
maioria das vezes, uma jocosidade horizontal, isto é, entre pessoas que sistir televisão na única casa que ostentava uma. E pode ser trágica:
se consideram iguais. O futebol é o ponto de partida mais freqüente para "bem nesse lugar aqui meu irmão tomou um tiro". É um espaço com as
o exercício dessa jocosidade simétrica cujo tom dominante é a obscenida­ marcas das relações familiares, dos entes queridos hoje ausentes: "naque­
de. As rivalidades clubísticas servem de script perfeito para a encenação la esquina eu vendia churrasquinho com a falecida minha mãe", "meu
de hostilidades. Vitórias acachapantes ou apertadas, ou até mesmo empa­ tio, que hoje vive em Campo Grande, morava naquela casa".
tes considerados injustos, são o material perfeito para discussões intermi­ É uma memória plena de acontecimentos: o crescimento acelerado
náveis em que a igualdade é ritualmente afirmada, através da jocosida­ da favela, a chegada dos novos vizinhos, as modificações cotidianas da
de, pela afirmação de pretensas superioridades. Como lembrou Lévi­ paisagem, do cenário em que se movem; a transformação dos antigos
Strauss (1989:46), o jogo é uma atividade disjuntiva, instauradora de uma "barraquinhos feitos com tábua de caixote" na sólida casa de alvenaria
diferença, de um desequilíbrio. E, dentre os jogos, a escolha do "rude es­ onde hoje recebem o antropólogo; os aterros sucessivos, que tornaram ha­
porte bretão" é bastante apropriada, por ser uma atividade vista como es­ bitável uma região tão pantanosa que abrigava jacarés; o desaparecimen­
sencialmente masculina14 - que peladeiro não conhece a frase "futebol é to do antigo campinho de futebol, que deu lugar a mais casas; a laje do
pra macho"? vizinho, que eles ajudaram a levantar. Crescem e envelhecem juntos,
Explorando um pouquinho mais essa questão, percebe-se clara­ compartilham os nascimentos e as mortes, as pequenas alegrias, as tragé­
mente que a jocosidade é dirigida quase exclusivamente aos que perten­ dias pessoais. Essa história de vida comum expressa-se na frase muito
cem a uma mesma microárea: é um verdadeiro ritual de reconhecimento, utilizada: "fomos criados juntos".
de pertencimento. O pesquisador pode medir, claramente, sua "aceita­ Aqui, decerto, há um gap entre gerações e entre localidades. No
ção" (embora restrita e relativa) pelo aumento das brincadeiras que lhe Parque Acari, somente os que têm 40 anos ou mais é que se lembram da
eram dirigidas e até mesmo pela adoção de um apelido que fazia referên­ époéa em que a rua Piracambu tinha mais "mato" do que casas, ou de
cia irônica (como deve ser) ao físico franzino e aos óculos de míope: que lá havia até uma pequena lagoa. Também não se esquecem de que,
"super-homem"... Mesmo assim, jamais fui incluído no circuito das brin­ ao sair para o trabalho, tinham que levar dois pares de sapatos, um para
cadeiras mais "pesadas", que giram em torno da masculinidade. Foi-me colocar "lá fora", pois havia muita lama, lembrança que também encon­
permitido participar apenas das discussões clubísticas, para o que me trei entre os moradores mais antigos de Mangueira. Nessa época, onde
vali de minha cidadania rubro-negra e dos meus conhecimentos de leitor hoje é a favela vizinha havia somente a olaria e diversas chácaras.
voraz das páginas esportivas. Há graus, portanto, de jocosidade. E deve­ No Coroado, os que hoje têm pouco mais de 20 anos ainda se lem­
mos assinalar que há pelo menos um tabu zelosamente respeitado nessas bram dos barracos de madeira (às vezes de caixotes de legumes), da vala
trocas de golpes verbais. Trata-se do verdadeiro coração da honra mascu­ que servia de banheiro, da água buscada do outro lado da avenida Bra­
lina numa cultura da honra e da vergonha: o comportamento das mulhe­ sil, dos lampiões de querosene, das precárias gambiarras. Os adolescen­
res da casa. Jamais falam em suas mulheres de forma explícita, não as no- tes já não se lembram disso. Talvez a favela também lhes pareça "carente".
198 Um Século de Favela
Um B i c ho-de-Sete-Cabeças
199
Os moradores ma is an tigos, en tretanto, lembram-se de que a re de
h omem - termo genérico que , n o caso de b airros de classé média , equi­
de abastecimen to de água e a rede de es gotos são conquistas " recen tes".
vale a organizações p rivad as, como a construt ora , ou govern amentais,
Lembra m-se das comissões de luz, respon sáveis pela con strução e manu­
como a companhia de el etricid ade - mas, no caso das f avel as, n o caso
tenção d e um sistem a de forn ecimen to de ene rgia que , emb ora precário e
p olêmico (há muit as acusa ções de enriquecimen to ilíci to), funcion ou du­ de Acari (excetuando -se o Amarelinh o), pel os mesmo s homens que lá ha­
rante déca das an tes de a co mp anhi a elé tr ic a ofici al começ ar a p restar
bitam: com su as próprias mãos, lenta men te, duran te an os. Uma casa de
dois pavimentos p ode ser a síntese de 30, 40 an os de trabalh o, enquan to
esse serviço . Lembram-se das a mea ças de "remoção", jamais concretiza­
o a p art amen to onde m oro é, p ara mim, a penas uma es c olha de a co rdo
das , mas que os obrigaram, n a época, a buscar o apoio de p olíticos ; das
tentativ as da Formiplac de expandir-se n a direção da favel a. com minhas prefe rências e p ossibilid ades. L embremos, por um instan te,
. como alguém se instal ava em Acari, n as pal avras de um antigo morador:
O esp aço, as distâncias são carregadas de conteu' d o sunb �' l'ico:1 5
quando dizem "lá n a B arreira", "lá n a Olaria ", nem p arece q�e estao a se
.
referir a lugares que podem se r alcançados em men os de d ois mmutos a
Bem, quando eu vim pr' aqui eu morava n o J orge Turco, num quar­
pé. Talvez por isso o an tropólo go tivesse fama de anda rilho: "você anda to alugado ; eu trabalhava na empresa d e ônibus, que f az a 362,
muito p or aí afora". De início, sem entender, eu estranhava quando se re­ mas eu, achando que não dava pra continuar pagando alugue l, eu
cusavam a me acompanhar até outra microárea, argumen tando: "é muito tinha vontade de ter minh a casinh a, nem que fosse numa favela ,
longe ". Certa vez, após uma visita comigo a outra l ocalidade, ?oucos me­ mas minha. Na época e u não tinh a condição de comprar um terre­
tros dep ois de ter cruzado a rua que separava as �uas l�cahdades, u� no e construir uma c asa . Pel o qual eu vim sem conhecer ninguém
.
líder comunitário comen tou, aliviado, ao retornar a sua comunidade .
a qui dentro , nunca tinha vind o a qui dentro, aí vim de bicicleta ,
"você não acha o lado de lá mais quente?" A distância , aqui, não deve ser
procurando, ia comprar um ped acinho lá embaixo, lá dentro do
medida em metros: descobri que muitas pessoas ficam an os sem circular
brej o, n aquela época 100 mil réi s, né, foi em 71, aí estiquei pra
em outras l ocalidades de Ac ari ou até mesmo em ou tras microáreas de
fren te , vim a té aqui, che gand o a qui, um a vizinh a me disse: "ó,
uma mesma l ocalidade . Não é raro encon trar pessoas que n em mesmo co­
esse pedaço da í tá desocupado, o moço roçou aí mas não apareceu
nheçam toda a favela onde moram. Quando p erguntei a um morad�r p or
mais, te aconselh o esse pedaço aqui", que el e também não morava
que não utilizava os serviços do Cen tro Comunitário de D efesa da Cidada­
a qui. M as, a minh a situa ção não t and o b oa, eu não tinha como
nia (CCDC), localizado a uma rua de distância da favel a onde morava , ele
fazer a casa . Aí comprei lá n o Jorge Turco um boc ado de madeira,
disse simplesment e: "é lá fora ", isto é, já pertencia a outro mundo ("o as­
um as pernas de três, não tinh a dinheiro pra pa gar o aluguel, dei o
falto"), e a distância simbólica é muito significativa. Não se pense q�e
relógio que eu tinha pra pag ar o carreto, coloquei a qui a madeira,
estou exagerando ou que tal atitude fosse excepcion al: segundo um �nc10-
deixei o vizinho do l ado, que aqui tinh a um barra quinh o de táu­
nário do Juizado de Pequenas Causas existente n o CCDC de Acan, das
ba de madeira, tomando con ta pra mim, e a out ra vizinha aqui do
800 ações até agora movidas n aquel a repartição, men os de 50 (6'X,) haviam
lado, até que e u pudesse vim e f azer o barra co; a í vim, reuni uns
sido iniciadas por mo ra dores d a "f avel a d e Acari".
coleg as, vim, eu botei as madeiras, j oguei a s te lhas em cima, não
Faç amos uma primeira reflexão . N o espaço geométrico do "mundo
tinha madeira p ra cercar; comecei a juntar táuba de caixote, que é
do as fa lto", as únicas marcas são as administrativ as (placas de ruas, de
pra fechar o ba rraco. Aí fechei um cômodo com táuba de caixote,
numeração) e as de delimitação de propriedade (muros, cercas, grades).
não tinh a port a pra entrar, vim morar num b arra co de chão, preci­
Há também, é claro, semáforos, placas de trânsito e pinturas (no asfalto
sav a fazer a cozinha , a í fiz a cozinha , não tinh a telha, tudo cercado
da rua, por exemplo, ou indicando "garagem - não estacione ") p ar� re­
de táuba de c aixote, aí eu fui n a lixeira, arrumei um encerado,
gular a circulação dos ve ículos. Tais coisas ine_xis tem n a favela : a h, ao
, tape i com encerado . Aí fiquei, não tinh a conh e cim ent o nenhum.
contrário do "asfal to", as ruas são para o tran sito de pessoas, even tual­
Aí cerque i, daqui a té lá n a frente , não pra vender, pra dar pras pes­
men te p ara carros. O esp aço da f avel a, n a verdade , �e m inúmeras out ra�
soas , de m od o que pudesse traz er pessoas conhecid a s p ra perto de
marcas . Embora se ja verdade que t odo esp aço h abitado p el o homem e
um produto socialn:ente con struí� o, n o _caso da favela isso assume uma mim, que eu aqui era completamente es tranh o, aí comecei a dar
_ , esses pe da ços d a qui pra lá, aí comecei a arrumar a mbien te com os
dimen são radica l. E um espaço que n ao somen te f01 con strmdo pelo
mo radores.
200 Um Século de F avela

A re laç ão mantida com esse espaço por esse mora dor, há 27 an os


resident e em Acari, é a de um conq uistador, a de um de sbr av ador, d e al­
guém que domesticou a n ature za, que const ruiu tudo a p artir do nada.
,
ti;}
�;
Um B i cho - de - Se t e - C a beça s
··································· ··· · ···· ············

qu e complica toda essa quest ão da id entid ade e d a s olidaried ade. O t ráfi­


co é obrigado a apoiar-se ao mesmo tempo n a identidade l ocal e mi crolo­
cal, n em sempre h armônicas. Antes de torn ar-se chefe , um membro de
201

Ali onde a classe mé dia se mpre vê carência, mesmo quando p arece elo­ destaque do bando e mesmo um "sold ad o" procuram fort alecer ainda
g iar : "u m bairro in acabado", 16 esse morador vê uma ob ra de décadas de ma is seu s víncu los microl ocais: g ast and o dinh eiro d e forma excessiva
trab alho, chegando, p or vária s vezes, a dizer: "ist o aqu i h oj e é uma cida­ ("derramar", n a gíria l ocal), comprando j ogos de camis as, fin anciando
de ". Nessa ép oc a, faziam camas com tábuas impr ovis adas, uma lata vira­ festas, churrascos etc. A p retensã o de tornar-se ch efe, t od avia, implica a
va fog ão, e nfim, fabricavam, eles mesmos, muit os dos obje tos de uso coti­ conquista da simp atia (mesmo que rel ativa) dos morad ores de t od a a lo­
dian o: a toalha cor-de-rosa encontrada n o lixo virava o pij aminha do calidade.
bebê recém-nasc ido. O mor ador já citado orgulha-se t amb ém da te ia de As duas quadrilhas existentes em Acari sempre dividiram a favela
r elações pessoais que soube construir, das amizades, do " ambiente", do em á reas ou, n o linguaj ar específico, em setores. Essa divisão dav a-se por
"conheciment o" - aqui u tilizado n o sentido de "ser conhecido". Tudo quatro motivos. Em primeiro lugar, os motivos "comerciais": h avia várias
isso demandando a tenç ão e resp eito mútuo cu idad os amente cultiv ad o, "bocas-de-fumo" diferentes, claramente distribuíd as ao longo d as proxi­
bem como, da mesma forma que n a construção de uma casa, plan ej amen­ mid ades dos d ois eixos viá rios, para proporcionar um fácil a cesso aos "vi­
to: ele cercou ma is terren o do que o n ecessário, n ão p ara vender, mas ciados". Havia, portanto, que distinguir entre as diferentes á reas comer­
p ara po der escolher e ag radar a seu s futuros vizinhos. Por n ão ter sido ciais: a Boca da Edgar Soutello, a Boca do Amarelinho etc.; ao mesmo
"nascido e criado " n aquela localidade, esse h omem teve qu e p restar uma tempo, havia motivos estratég icos: os " olheiros" espalhavam-se p or t oda
atenção to da e special à vizinhanç a, tent ando, de certa man eira , constru �­ a área portando "fogos" (como se ch amavam os en ormes morteiros) par a
l a. Foi uma futura v izinha que lhe indicou o melhor lugar p ara construir alertar quanto à che g ad a da polícia ou d e membros d e uma p ossível qua­
seu barraqu inho, foram os futur os vizinhos que tomaram conta do seu drilha rival invasora. A clara del imitação de se tores, com denomin ações
"material de construção". Aqui temos uma verdade ir a carta de fundação codificadas, permitia também a comunicação através d e walkie-talkies,
de uma microárea de vizinhança. muito utilizad os, dando a localiz ação precisa d os p ossíveis p roblemas.
Tratemos agora de um tema difícil. A convivência calorosa n o inte­ D o ponto de vista administrativo e de pessoal, a divi são em seto­
rior de uma microárea é uma das experiências human as mais inesquecí­ res t ambém era imp ortante : cad a um tinha seu pe ssoal e sp ecífi co, que al­
ve is que O trabalho de camp o em Acari me proporcionou. A m icroárea, moçava em determinad o local etc. Cert a vez eu est av a numa "pensão",
entretanto, é também uma unidade básica de organização dos bandos de dirigida pel a irmã de um "sold ad o". El a fornecia "quentinh as" p ara os
traficantes. Um episódio p ode dar uma idéia de como os vínculo s existen­ membros de um dos bandos. Quando um del es chegava p ara buscar
tes em cada pedacinho são mobilizados e aproveitados pelo tráfico de dro­ uma ou mais "quentinhas", el a perguntava : "p ar a que s etor?"
gas. 17 Em n o vemb ro de 1995, n uma sexta-feira à tarde , um dos_gerent:s Os setores, grosso modo, equivaliam, quase exatamente, às micro­
do tráfico de drogas, chamado Edu ardo, foi morto por membros da pro­ áreas; isto quer dizer qu e o tráfico valia -se dos mais fortes laços d e identi­
p ria quadr ilha. Era n ascido e criado n a mi� roárea ?º� L a�guinho (fa�ela dade e solidariedade existentes em cada um d os "pedacinhos". Devemos
do Cor oa do) e muito querido p or seus amigos de mfancia e p or muitos dizer que esta tática lubrificava o funcionamento d as ati vidades ilícit as,
naquele trecho. Me ses dep ois, os jornais anunciaram a p ri�ão de um am aciava , atenuava e , em determin ad os momentos, resolvi a os possíveis
memb ro da qua drilha, originário de ou tra microá rea , a Jaqueira. N aqu e­ conflitos derivados da convivência entre trabalhadores e bandidos.
le dia eu estava n o Larguinho e um morador dali me confidenciou que Eduardo, por exemp lo, só era "traficante" fora do L argu inh o; ali ele er a o
todos estavam com vonta de de fazer uma fest a p ara comemorar a prisão Eduardo: irmão, amigo de infância, vizinho. Os memb ros da qu adrilha,
do tal suje ito, p ois to dos sabiam qur fora ele um dos assassin os de Eduar­ em cada "se tor", por serem, em boa parte, provenientes d a mesma micro­
do. O mesmo mora dor fez outro comentário bastante esclarecedor: o p ro­ área, tinham facilidade em atuar juntos. Lemb ramos que o t ráfico, como
blema de Eduardo, segu ndo ele, estava no fato de ficar m uito n o L argui­ a tividade ilícita, n ão p ode b asear as "relações d e trab alh o" em contratos
nho, sem se movimentar p or outras p artes da favela . Para alguém com e n ormas legais.1 8 O uso da violência, pur a e simplesm ente , n ão basta.
ambições de su bir n a hierarq uia d o tráfico, e ssa era uma estratégia erra ­ Logo, as relações "pessoais" tornam-se o ponto de partid a tant o do recru­
da. Aqu i temos um elemento, até agora propositalm ente po sto de lado, tamento quanto do funcion amento da atividade. Conheci um ex-"vap or"
202 Um Século de Fave l a Um B i c h o-de-Sete-Cabeças 203

do tráfico que era amigo de infância d e Eduardo e que se tornou seu su­ pessoas vindas da estrada de ferro), Beco das Facas (representado como
bordinado. Atuavam no mesmo setor, exatamente a microárea onde ha­ local de "nordestinos" e associado a brigas por causa de mulheres, com
viam nascido e brincado quando crianças. Pois bem, quando da morte de as indefectíveis "peixeiras"), Onze Unidos (nome de um time de futebol
Eduardo, o "vapor" imediatamente abandonou o tráfico, pois não se sen­ da região). Vigário, ao contrário de Acari, onde há um conjunto compos­
tia mais seguro. Confidenciou-me que, se Eduardo continuasse vivo, ele to por quatro localidades que estão em contato permanente, apresenta
continuaria no tráfico ainda por muito tempo... uma oposição muito clara com sua vizinha Parada de Lucas, acirrada
Outros exemplos confirmam essa hipótese. Vejamos o caso de pela rivalidade entre Terceiro Comando (a que "pertenceria" Lucas) e Co­
"donos" de boca-de-fumo que conseguiram manter-se à frente desse ne­ mando Vermelho (de que Vigário Geral faria parte). Ao mesmo tempo,
gócio perigoso por seis, sete anos, período absolutamente incomum. Um um fato que chocou a opinião pública nacional e internacional fez com
deles certa vez teria dito a um líder comunitário que jamais seria preso no que Vigário se tomasse o epicentro de uma série de ações não-governa­
interior da favela (e não foi). O motivo seria simples, nas palavras daque­ mentais, tomando a dinâmica da vida comunitária muito mais complexa
le chefe do tráfico: "eu tenho muitas 'sogras' e trato todas elas muito que a de uma favela de Acari, por exemplo. Em suma, a relação de Vigá­
bem". Sendo assim, aquilo que a mídia compara a um harém, dotando a rio com os poderes supralocais é diferente daquela existente em Acari. O
favela de um exotismo oriental, é igualmente - além de uma demonstra­ que costuma ser chamado de Mangueira também é composto por quatro
ção de poder, prestígio e virilidade - uma estratégia conscientemente localidades distintas: Telégrafo, Candelária, Mangueira e Chalé. Em cada
percebida. Ter várias mulheres significa ampliar a rede de parentesco e, uma delas, como Telégrafo, por exemplo, também temos microáreas: o
também, de solidariedade. 1 9 Multiplicam-se as casas onde abrigar-se por Cruzeiro, a Vila Miséria, a Mesa-Redonda (onde Mineirinho perdia di­
algumas horas ou por uma noite, os locais onde esconder armas e drogas. nheiro no jogo de ronda), o Campinho, a Fazendinha... Ao mesmo
Ademais, essa parentela ampliada é utilizada na "administração" da fave­ tempo, a importância da escola de samba da Mangueira toma essa favela
la. Pode-se, por exemplo, colocar uma sogra na diretoria da associação de muito mais visível e presente na vida da cidade e sem dúvida faz com
moradores, com a importante tarefa de fazer a cobrança das mensalida­ que ela mantenha um outro tipo de relação com os poderes supralocais,
des. Não admira que, nessa época, os moradores pagassem em dia. Pode­ tanto agências governamentais quanto ONGs.
se colocar para presidir a associação de moradores um concunhado ou Da mesma forma, se tomássemos qualquer uma das mais de 600
uma vizinha de microárea, considerada comadre da mãe; ou um amigo favelas existentes no município do Rio de Janeiro, encontraríamos, para
de infância na contabilidade do tráfico. Para gerir, controlar e vigiar, ati­ cada uma delas, um arranjo original e único desses níveis diferenciados e
vam-se todos os vínculos mais fortes: parentesco, amizade, vizinhança, imbricados. Somente a multiplicação de estudos monográficos, mas que
compadrio. Nessa situação, há um entrecruzamento de lealdades, solida­ levem em consideração a inter-relação de todos esses fatores, inclusive os
riedades e pertencimentos que torna extremamente espinhosa a questão supralocais e microlocais, é que poderá aprofundar o nosso conhecimen­
de perceber até onde vai a amizade, até onde vai a vizinhança e onde co­ to da favela, aquilo que um morador de Acari definiu como "um bicho­
meçam o medo e/ ou o interesse. de-sete-cabeças".

Conclusão Notas
À semelhança das aldeias balinesas, as favelas cariocas apresen­ 1. O artigo "Form and variation in Balinese village structure" foi originaria­
tam arranjos originais de elementos recorrentes, de planos organizacio­ mente publicado em dezembro de 1959 na revista America11 Antlzropologist,
nais ou de instituições supralocais, interlocais, locais e microlocais. A 61 (6); a primeira edição de The i11terpretatio11 of cultures data de 1973. Agrade­
existência de microáreas, por exemplo, é um fenômeno comum a todas ço ao professor Roberto Kant de Lima a indicação do artigo.
as favelas cariocas, mas a importância relativa de cada uma delas, sua li­ 2. Por exemplo: grupos que são indiferentes ou mesmo antagônicos entre si
gação com características econômicas, ecológicas, históricas e identitá­ do ponto de vista de unidades políticas podem estar subordinados a um
rias, varia de favela a favela. Em Vigário Geral temos, entre outras, Infer­ mesmo funcionário administrativo, representante do "governo central"; os
ninho (a microárea mais pobre), Pátio da Estação (onde desembarcam as membros de uma mesma sociedade de irrigação vêm de 10 a 15 unidades po-
204 Um Século de Favel a Um B i cho - de - Se t e - Cabeças
205

lítica s diferen tes, enqua n to os membros de uma única unid ade p olítica p er­ 13. Da qua l f�zem p a rte, p or exemplo, mane iras bas tan te características de
tencem a um bom núme ro de sociedade s de irrigaçã o diferente s. ape rt �r as maos, colocan do os braços numa p osição próxima à "que da de
,
3. Ver Alvito (1996). Fui a Acari pela primeira vez em se tembro de 1995, mas braço , o que leva � u ma proximidade física bem maior do que no caso do
_ _
apert d e mao trad1c1onal, em que os braços ficam e ste ndidos, na horizon tal
só in iciei o trabalho de campo em novembro daquele a no. Ern junho de 1997 �
eu já con sid erav a o trabalho de camp o "te rminad o ", e mb ora tenh a ido a
Esse �1po de sa_udaçã �, �ais fria e formal, é reservada aos qu e não são "d o pe�
,
Acari depois disso. No me smo p eríodo, fui a Vigário Gera l e à Parada de daço (no sen tido de hmdo por Magnani).
Lucas dezena s de v ezes. Visitei a Mangueira algumas v ezes em j u lho de 1997. 14. Para t_ornar claro e s te p onto, b as taria lembrar um curioso debate q ue du­
4. Há exceções, é claro . Alba Zaluar (1996:54), p or exemplo, tem s ublin hado ��n te muito tempo fre qüentou a s página s espor tivas d os jornais. Muita tin ta
fortemente, nas su as próprias palavras, "a necessi da de de entender essa Jª se gastou em tor no d a nece ssid ade o u n ão de "concentração" ' i sto e' ' de os
.
onda re cente de v io lência n ã o a p en a s como efeito arqueológic o da s ca ma da s
Joga dores, a' v e, spera d e partid as consideradas importan tes, isolarem-se do
cu lturais da violência cos tumeira no Brasil, mas dentro do p anorama do conta to c?� suas famíli as e, p artic ularmente, do con tato com mulher es em
crime organizado internacionalmen te ". gera � . Medicos e preparadores físicos cos tumavam se r consul tados sobre a
pa lpitante questão: a ativida de sexual de véspera prejudicaria ou não O rendi-
5. Para uma ótima introd ução a o tema da "comunidade ", ver Be ll & Newby 1:1en_to �o atleta no dia se g�in te_? S� o fu tebol é uma ativida de viril p or exce­
(1971). l �n cia, assun to pra macho , e, obvio que o exercício dessa masculinida de -
vista como uma qualid ade esgotável pelo uso excessiv o - a fetaria O "desem­
1

6. E unice Durham (1988:21) critica du ramente o viés fu ncionalis ta de mui­


penho " ( uma palavra d e sen tid o dúbio que comprova a ligação que estamos
tos "e studos de comunidade " realiza dos no Brasil.
estabel ece do) d os joga d ores ... E n tr e os Ba ru ya d a N ova Gu iné, estu d ados

7. Assim afirmou o " assessor para assun tos comun itários da Fábrica de Es­ por Godeher (1982:44), o a to sexu al é consid erado perigoso, p orque p olui, en­
perança ", André Fe rnandes, d urante o ciclo Ju ven tude : C onflito e Solidarie­ fra q�ec� e corrompe a força e a vid a, começando pelo homem. O p erigo v em
dade, no Iser, e m 22 de maio de 1997. dos hqmdos ema na dos da mulher.

8. Numa en trevista (Caros Amigos, 1(2):19, maio 1997), C aco Barcellos admi­ 15 �o�a �en te , seria ��il !e m?r�r u_m concei to de Evans-Pritchard (1993:123),
,; ,
tiu exis tir u ma "subserviência à palavra da polícia" por p ar te da maioria dos ª distanci� estr utu ral : a distancia entre grupos de pessoa s den tro de um
.
repórtere s policiais, submetidos a u m ritmo de pro du ção da mercadoria j or­ sistema social, e m termos de v a lores".
nalís tica que impede uma a pura çã o cu id a dosa dos fatos. Para u m excelente
16 É a ssim que Z uenir Ven tura define Vigário Geral em s e u Cidade partida
exemplo da investiga çã o j orna lís tic a in depend ente e do s riscos que el a env ol­ :
(Sao Pa ulo , Companhia das Le tra s, 1994. p. 58): "as paredes de tijolos aparen­
ve, ler o relato pitoresco de Oc távio Ribeiro, o Pena Branca, acerca da entre­
tes, sem acab amen to, dão a impressã o de um bairro inacaba do ".
vista com Mineirinho (Ribe iro, 1977:14-25).
17. V er Zaluar (1994a:138 e segs.).
9. Sobre o significado local do termo "vicia do ", v er Alvito (1996:150-2).
18. Mais u ma vez, qu em primeiramente salientou essa qu estão foi Zaluar
10. "Movimen to " é também sinôn imo de tráfi�o : "o pessoal do movimento ", (1994b:18).
"o movimento" são expre ssões muito u tilizadas.
1 � . G��rd ada s as devid as proporções, essa prática aproxima-se do "cunha­
1 1 . Na gíria local, "adiantar" sign ifica "aj u dar" (num sen tido amplo, não ne­ d1smo lembrad o por Darcy Ribeiro (1995).
'
cessariamen te finance iro ), versus "a trasar ", sinônimo de "prej u dicar".
12. As su tilezas e c omplexidades do espaço feminino da casa seriam de sco­
nhecidas por mim não fosse a entrada em cena de Chris tina Vital da Cunha, Referências bibliográficas
que foi min ha assis tente de pesqu isa em Acari entre agos to de 1996 e julho
de 1997. Estando e la pre sente, até mesmo eu pu de visitar com mais freqüên­ Alvito, Marcos. A honra de Acari. ln: Velho, Gilberto & Alvi to, Marcos
cia o espaço doméstico, além de passar a dispor da e tnogra fia que só u ma (orgs.). Cidadania e violência. Rio de Janeiro, FGV; UFRJ, 1996. p. 147-64.
pesquisadora poderia realizar. Minha compreensão desse universo deve-se Bell, Colin & Newby, Howard. Community studies - an i1Ztroductio11 to the soci­
muito a ela . Aqui fica o re gistro e o agra decimento . ology of local commwzity. London, George Alle n, 1971 .
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Como se sabe, o processo de redemocratização do regime político


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Silva, Luiz Antonio Machado da. O significado do botequim. In: Cardoso, vimentos sociais. Alguns desses movimentos, os chamados "movimentos
Ruth (org.). Cidade: uso e abuso. São Paulo, Brasiliense, 1978. p. 79-112. de base", almejavam autonomia em relação ao Estado e aos partidos polí­
ticos, revelando ao mesmo tempo uma tendência a preservar da interfe­
Soares, Luiz Eduardo et alii. Violê11ci11 e polít �ca 1w Rio de Janeiro. Rio de Janei- rência externa as comunidades por eles organizadas. Essa orientação, en­
ro, Relume-Dumará; Iser, 1996. tretanto, teve o efeito paradoxal de reforçar a segmentação que o cliente­
Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Brasília, UnB, 1982. lismo - que esses movimentos combatiam em primeiro lugar - sempre
teve na política brasileira. No período militar, como o Congresso não foi
Velho, Gilberto. Individualismo e cultura. Rio de Janeiro, Zahar, 1981 .
fechado - ao contrário do que aconteceu em outros países da América
---. Projeto e metamorfose. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994. Latina - o governo continuou a usar a corrupção adicionada ao cliente­
lismo como estratégia para controlar os políticos que tomavam as deci­
--- & Alvito, Marcos (orgs.). Cid11d1111i11 e violê11ci11. Rio de Janeiro, Funda-
sões no Congresso. É compreensível, pois, que atitudes fortemente anti­
ção Getulio Vargas; UFRJ, 1996.
clientelistas e antiestatais tenham marcado esses movimentos. A Igreja
Zaluar, Alba. A máquina e II revolta. 2 ed. São Paulo, Brasiliense, 1994a. Católica teve grande responsabilidade nisso, assim como os partidos so­
--. Condomí11io do diabo. Rio de Janeiro, Revan; UFRJ, 1994b. cialistas criados durante a abertura, tais como o PT e o PDT.
Contudo, enquanto nas associações de moradores da classe média as
--. Crime, medo e política. Sociedade e Estado, 10(2):391-416, 1995. principais questões foram as ecológicas, o aumento das taxas urbanas e as
---. A globalização do crime e os limites da explicação local. In: Velho, prestações do Sistema Financeiro da Habitação, as associações de morado-
Gilberto & Alvito, Marcos (orgs.). Cid11d1111i11 e violê11ci11. Rio de Janeiro,
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tiany, J. G. EI co11cepto dei /zo11or e11 la sociedad mediterránea. Barcelona,


• Este texto foi originariamente apresentado na conferência internacional do Social Move­
men t Commitee da International Sociological Association (Paris, 27-30 de outubro de 1993 ) e pu­
Labor, 1968. p. 225-39. blicado na revista Estado e Sociedade, 10(2). Esta é uma nova versão do mesmo artigo escrito

Zylberberg, Sônia. Morro da Providê11ci11: memórias da Jave/ln. Rio de Janeiro, Se­


há cinco anos. Desde então ocorreram algumas mudanças em várias favelas, como Vigário

i
cretaria Municipal de Cultura, 1992.
Geral, Acari e outras, mas como os problemas aqui discutidos não desapareceram completa­
mente, continua sendo importante levantá-los para manter acesa a discussão.
210 Um Século de F avela C r i me, Pol í t i ca
Medo e 211

res dos bairros populares e das favelas tiveram que enfrentar o problema medida em que o medo imaginário tomou diferentes formas nas diversas
da falta de serviços públicos nas suas áreas, especialmente nas favelas onde classes sociais e afetou suas inter-relações.
a presença do Estado é ainda mais frágil, intermitente e insuficiente. Nesses O modelo da democracia participativa, predominante nos novos
locais, a ação política exibiu engajamentos paradoxais, articulados com a movimentos das associações de moradores do final dos anos 70 e duran­
peculiar relação entre o político e o religioso no Brasil contemporâneo. te os anos 80, tinha por objetivo conseguir uma posição autônoma em
Por fim, mas não menos importante, outro problema teve que ser en­ face do Estado e dos partidos políticos (Cardoso, 1983, 1987), como alter­
frentado simultaneamente. Pois o processo de redemocratização coincidiu nativa à democracia representativa, ao mesmo tempo reforçando a mani­
com a dramática transformação na organização transnacional do crime, festação da diferença e da cidadania ativa. A transformação de uma ne­
que afetou principalmente as regiões met_ropolitan�s e, nelas, os �a�rr�s _po­ cessidade material num "direito" foi o mote que marcou, de fato, esses
,
pulares e as favelas. A entrada dos carte1s colombianos e das mafias liga­ movimentos criados com o objetivo de melhorar as condições de vida da
das ao narcotráfico, particularmente o da cocaína, trouxe para o país as população (Durham, 1984; Jacobi, 1989). A ideologia comunitária, imple­
mais modernas armas de fogo, que foram distribuídas entre os jovens trafi­ mentada principalmente sob influência da Igreja Católica, teve, porém,
cantes e "aviões", envolvendo uma rede de intermediários que incluiu ainda um outro efeito. Em conseqüência da prioridade dada às identida­
desde logo policiais e "matutos", ou seja, os que trazem as drogas de ou­ des locais e grupais, ela reforçou a segmentação da população e dimi­
tros estados ou países e que as vendem em grandes quantidades ("a peso" nuiu os compromissos com os interesses, demandas e estratégias gerais e
e não em papelotes). Como, no tráfico, as atividades ilegais têm o caráter públicos.2 De fato, embora explicitamente oposta ao clientelismo, a ideo­
de negócio contínuo, que flui por meio de relações interpessoais baseadas logia comunitária3 seguiu o padrão dessa forma de fazer política no que
no segredo, na confiança sempre posta à prova, no conhecimento das pes­ se refere à segmentação, pois o clientelismo é bem conhecido pelos seus
soas e nos acordos tácitos estabelecidos entre elas, o conceito de rede se efeitos segmentadores (Badie, 1991; Hermet, 1991). A oratória comuni­
aplica ao fluxo hierárquico e às relações interpessoais que impl�cam rela­ tária exigia que o tribuno sempre falasse para a comunidade ou da comu­
ções não grupais ou institucionais, corporativas e fechadas, e sim a rela­ nidade, ou seja, de grupos locais demarcados, apenas acrescentando uma
ções abertas no tempo e no espaço, vinculando inúmeras pessoas através visão geral dos pobres como aqueles que deveriam congregar-se para re­
de contatos de diversos tipos que se vão multiplicando pelos intermediá­ solver seus problemas por si mesmos, enquanto esperavam a Justiça
rios. A organização em rede prescinde da idéia de organização corporati­ final na Terra, como aqueles que careciam de trabalho, moradia, saúde,
va, burocratizada, podendo ser rapidamente desfeita e refeita em outras educação, melhores salários e assim por diante, ou seja, serviços e políti­
rotas, circuitos e fluxos ou com outros personagens. Ela se aplica especial­ cas governamentais, a maioria deles em nível local. Um problema adicio­
mente aos níveis mais baixos do tráfico de drogas, que - à diferença dos nal surgiu na década de 80, quando as organizações e associações popu­
negociantes atacadistas e grandes financistas do tráfico, tendentes à centra­ lares, por causa da importância dada à autonomia, passaram a obter
lização e à hierarquia em cartéis e máfias - têm uma intricada malha des­ verbas diretamente do governo, a fim de implementar a política social es­
centralizada, de difícil controle pela estrutura de gerenciamento do negó­ tatal. Isso fez surgirem nessas organizações a prática da corrupção e a
cio em grandes números e poderosas hierarquias (UNDCP, 1997). Nas desconfiança em relação aos seus líderes. Todo esse processo foi reforça­
favelas cariocas, onde se formaram essas redes, os movimentos sociais do pela tradição do regionalismo e da defesa de interesses locais e parti­
foram profundamente afetados por esse novíssimo fenômeno, que gerou culares em detrimento dos interesses gerais e da união, o que, por sua
novas dificuldades para seus militantes. vez, apoiou-se na nova ênfase sobre a diferença trazida pela vulgariza­
Neste texto, focalizarei principalmente os aspectos políticos e reli­ ção do pensamento pós-moderno (Pierucci, 1990). Ficaram, em suma,
giosos decorrentes dos índices crescentes de crime violento, um fenôme­ adstritos à comunidade local e a uma concepção pré-moderna de recipro­
no mundial. Discutirei os paradoxos e ambigüidades das velhas e novas cidade, recuando em relação às práticas e idéias das comunidades imagi­
culturas políticas, concebidas como modelos e práticas que articulam o nadas (classe, nação, gêneros, cristandade etc.) (Calhoun, 1991), onde po­
político com o social, as quais parecem ter tido conseqüências não inte�­ deriam desenvolver-se os princípios da solidariedade com estranhos,
cionais para os que acreditam no poder de mobilização do modelo parti­ característico da reciprocidade moderna (Godbout, 1992; Zaluar, 1997a).
cipativo de democracia. Uma cultura do medo fluida, facilmente conta­ Não obstante, esses novos movimentos, a certa altura, tiveram tam­
giosa e instável teve importantes conseqüências políticas e sociais, na bém que tentar permanecer independentes das quadrilhas de traficantes
212 Um Século de Favela
Crime, Medo e Pol í t i ca 213

mento no tável do crime violento, em especial do homicídio entre ho


d e drogas, as quais introdu ziram um problema inesperado, qua l sej a, o . '
mens J ovens qu e dele participam. As vezes em processos paralelos, às
au mento d a crimin alid ade violenta, que em algu mas cidades duplicou e
vezes em processos perversos de interação com o tráfico e o u so de dro­
em ou tras triplicou, além do desa fio apresentado pelo nov o poder mili­
gas (legais e ilegais), a chamad a violência doméstica e a violência institu ­
tar d o crime organizad o, especialmente entre os j ovens tra ficantes de ru a
ci onal também tiveram seus registros oficiais aumentados n as d uas últi­
qu e moravam e faziam seu s negócios nas favelas e conj untos habitacio­
mas décadas, sem qu e disso tenha resultado um conhecimento maior a
nais da Cehab. Esse p oder militar u ltrap assou o camp o restrito do crime
respeito de seus mecanismos e círculos vicios os. Os efeitos acumu lados
e d o tráfico de drogas, transformand o-se numa importante qu estão p olíti­
d o desconhecimento e da falta de políticas estra tégicas de segu rança é 0
ca em vários níveis. Na "comunidade local", os grup os do tráfico ou as
reforço do medo e dos preconceitos e pathos s ocial qu e carregam.
"quadrilhas", como são chamad os pelos morad ores da vizinhança, come­
C ontu do, não convém ampliar, como muitos fizeram, os efeitos do
ç aram a se .interessar pelas eleições das associações de moradores, apre­
m:do num c ontexto de pânico moral provocad o pela mídia . As imagens
sentando candidatos lig ad os a eles. Muitos j ovens moradores do local aca­
b aram identificando-se com eles, apoiando-os explicita mente em virtu de veicu lad as pelos meios de c omunicação de massa são s u ficientemente
d o processo de marginalização d os jovens p obres, inclusive as medidas plurais, dif:r�nciadas e mesmo divergentes, além de se terem multiplica­
do os particip antes do deba te público (McRobbie & Thornton, 1995),
repressoras e arbitrárias tomad as pelos p oliciais n as últimas déca das con­
p ara que se p ossa redu zi-las a u ma só visão preconceitu os a s obre certos
tra tod os aqueles que corresp ondiam aos estereótip os p oliciais do crimi­
setores da popu lação ou a um exagero acerca da incidência dos crimes
noso . Muitos u su ários de drogas, e não apenas trafic antes, foram detidos
violentos : Estes inequ ivocamente aumentaram, em especial nas regiões
e coagidos a p aga r propinas a fim de evitar processos ju diciais e a prisão .
metropolitanas do Brasil, as mais afetadas pela recente curva ascendente
Os que não tinham esse dinheiro terminaram cumprindo penas n a prisão
dos c:imes violentos, particu larmente d o homicídio entre homens jovens
po r algo que está longe de ter a av aliação de um crime, já qu e faz p arte _
(Paixao, 1983; Zaluar et alii, 1994 e 1995).
dos chamados crimes sem vítimas (Zaluar et alii, 1994; Za lu ar, 1997b).
No caso brasileiro não se p o de dizer, por isso, que o medo seja ape­
A atual pesquisa b aseou-se em entrevistas recentes feitas n o con­
nas uma criação do imaginário ou a té mesmo d a recepção p assiva de
j unto habitacion al qu e estu dei nos anos 80, comp arand o-se seu s resu lta­
mensagens da mídia. Apesar d os crimes contra o pa trimônio terem índi­
d os com os de d ois estu d os em b airros p opulares e de classe média de
ces mu ito mais altos, é indiscu tível o aumento d os crimes violentos, ou
São P aulo, e com os de um estu do sobre a experiência de p articipação co­
seja, dos crimes contra a pess oa,5 conforme inúmeras pesqu isas feitas
munitária numa favela d o Rio de Janeiro. Todos esses estu dos ap onta­
nos anos 90. O medo aqui é, até certo p onto, um medo realista . Os d ados
ram nov as visões discriminatórias e conservadoras da socieda de e da p o­
oficiais s obre o au mento d a criminalidade violenta n os anos 80 são inso­
lítica, co mo resu ltado do medo da crimina lidade violenta.4
fi �máveis, mas b asta �ensarmos no crime violento qu e tem maior repú­
dio e �ue provoca mais med o: o homicídio. Como as demais regiões me­
trop olitanas d o Brasil, o Rio de Janeiro teve um extraordinário aumento
O medo dos índices de h omicídios em menos de uma déca da . Em 1982, os índices
O caráter ideológico do adjetivo "violento" fica claro qu ando é u tili­ de homicídio em Nov a Yo rk e na região metrop olitana d o Rio de J aneiro
zado sistematicamente para caracterizar o "ou tro", o qu e não pertence ao eram os mesmos: 23 p or 100 mil h abitantes (New York Times, 21-8-1993),
mesmo estado, cid ade, raç a, etnia, bairro, família, grup o etc. Em algumas mas em 1989, o índice oficial na região metrop olitana d o Rio já estava
cid ades, o crime e a violência são como um artifício ou um idioma para três vezes maior (63 p or 100 mil habitantes), ou seja, triplicou em menos
se pensar sobre o ou tro (Merry, 1981; Varg as, 1993). Ao mesmo temp o de 10 anos. Em 1992, a taxa era de 60,75 por 100 mil habitantes. Na Baixa­
em qu e o paroqu ialismo nas imagens do crime se refo rç a, o crime violen­ da Flu minense, no mesmo ano, ela chegou a 74,67 por 100 mil habitantes.
Na região de São Paulo, embora os anos de pico não sej am os mesmos, a
to torn a-se cada vez mais inequ ivocamente p arte de processos globa is
tendência de aumento durante a década repete-se. Em 1987, o índice de
econômicos e s ociocu ltu rais, sem que isso traga mu d anç as em p olíticas
homicídio n aquela cid ade era de 53,8 mortes por 100 mil habitantes, em
públicas de segu ranç a e de prevenção e tratamento nas práticas socia is
comparação com o início d a décad a, quand o se mantinha em torno de 20
mais associadas à violência . Isso porque o tráfico de drog as ilega is tem
(Adorno, 1992).
trazid o, princip almente por seu próprio funcion amento intern o, um au-
Um Sécu lo de Favela Crime,
i' 214 Medo e P o l í t i ca
l'
2 15
11

As pesqu isas mais recentes confirmam o que vinha sendo reiterado e ins eguranç a daí dec orrentes têm implic açõe s relev antes p ara as n ova s
em vários trabalhos sobre as mor tes violentas entre os adolescentes acima · .
imagens d a CI"d ade, n -ao mais associad a s à u topia libe ra l d a liberd a d d
de 14 anos de ida de, em sua maioria assassinados pr ov avelmente p or ou­ segurança (Caldeira, 199�; V argas, � 993; Zaluar, 1993), no Rio de J:n:ir�
tros j ovens da mesma id ade e p or p oliciais corruptos. O problema reside ou em Nov a York, nem as velhas virtudes cívicas, como civilidad e, se gu­
' 1

1:
n a dificu ldade de co mp rovar a au toria das mortes. P oliciais corruptos rança, trato e confi�nça �Zu kin, 1995). As cidades têm hoje suas imagens
a gem c o mo grup os d e extorsã o que p od em ser ro tu lad os de grup os d e ex­ tom��as pel� de tenoraçao da qualidade de vid a urban a, da qu al O temor
termínio . Qua drilhas de traficantes e assaltantes não usam métodos dife­ .
da vihnuz�çao (tanto qu anto a experiência dire ta) é um d os indicadores.
rentes dos p r ime iro s, e tudo leva a crer que a lu ta p el o bu tim entre e les es­ Nas tenta hvas d o senso �omum ou d a e tnome tod ol ogia de vários se tores
taria lev ando à morte os seus j ovens·p eões. Talve z isso explique p or que o _
da populaçao p ara explicar as experiências concre tas d e violência e 0
índice de morte s violentas atribu ídas a homicídios sej a dos mais b aixos med o, tem-se tomad o a direção p aroquial já mencionad a, concentrando­
em Bel o Horizonte - que tem u ma p olícia reconhecid amente eficiente e se na presença de n orde stinos em São Paulo (Caldeira, 1992; V argas, 1993)
dura, mas não corrupta - e dos mais altos no Rio de Janeiro. Nesta últi­ ou de pob res fave la d o s e ne gro s em outra s capitais brasileiras.
ma cida de, ficou claro, pela investigação que se segu iu aos recentes massa­ Os �ovimentos sociais no Rio, particul armente n as áreas pobres, ti­
cre s de Acari, C andelária e Vigário Geral, que ele s foram execu tados por veram entao que enfrentar uma situação dramática de mortes recorrentes
policiais que p e rtenciam aos mesmos grupos e que estav am exi gindo sua a� mento d a incidência d e fur tos e roubos, med o manifestad o p e la popu la�
parte nos lucros do tráfico ou dos assaltos. Em São Paulo, o índice de ho­ çao �ob re e� se� local de moradia, medo e preconceitos d os h abitantes
micídios aumentou assustadoramente nos últimos anos, à medid a que en­ das areas mais ncas ou re gulares da cid ade, assim como O e svaziamento
travam cada vez mais drogas e armas neste estad o . Uma das princip ais d: suas organizações. No �o, como nas outras cidade s do p aís, as explica­
rotas d a cocaína no Brasil passa por Rondônia, Mato G rosso d o Su l e São ç�es i:a ra o aumento do cnme passaram a cobrir todo o espectro ideoló­
Paulo , estados cuj os índices de mor tes violentas atingiram os mais altos ní­ _
gICo . E p ossivel, e� tretanto, simplificar a variedade de afirmações sobre 0
veis do p aís, após terem duplicado na déca da de 80. assunto em duas h�has principais de pensamento que se combinam para­
No esquema de extorsão pra ticado p or p oliciais e nas dívidas con­ doxalment� em m�itas del as. Uma é a demanda crescente p or ordem, b a­
traídas com tra ficantes, os j ovens que c omeç am como u su ários de d rogas _
� ea� a n� diagno�hco de um insuperável conflito social e na incapacidade
são levad os a roubar, a assaltar e algumas vezes até a matar p ara p agar mstituoonal de hdar com ele . Uma nov a tendência conse rvad ora, encon­
aos que os ameaç am d e morte, caso não consig am s ald ar a dívid a, e que trada em tod as as classes sociais, passou a exigir mais e ficiência e mais du­
os instigam a se comp ortar como eles, p ort ando armas de fo go e pratican­ re za nas práticas policiais, além de eleger políticos d e direita que defen­
do assaltos. Muitos deles acabam s e tomando membros d e qu adrilhas - dem � pena de morte6 e governos fortes (Zaluar, 1985, 1991, 1992, 1993;
sej a p ara pagarem dívidas, sej a p ara se sentirem mais for tes diante dos ini­ C aldeira, 19: 2; V argas, 1993). A ou tra linha mantém-se na crença de que,
migos cria dos, seja ainda p or "fascínio", " euforia" e "ilusão", como eles _
a �e a deteno raçao das c ondições de vid a d os trab alh a d ores, os baixos s a­

pr óprios den ominam a atração que as quad rilhas exercem sob re el es -, lanos, as al�as t��as �e inflação, a miséria crescente e o desempre go, a d e­
afund and o-se c a da v ez ma is nesse círc ulo diabólico . Assim, a idéia d e que , -
sordem e nao so mevi tave l, como boa . Mais à esquerda estão os que conti­
tod os os índices de crimes violentos são ape nas uma forma disfarçada d a nu ai_n � acha: qu� a guerra civil já começou e que a revolução está perto.
!' '1.. . . lu ta de classes, em que os pobres estão cob rand o d os ricos, não tem funda­ Os ulhmos tem tido bastante influência em alguns m ovimentos sociais e
,I,:i
mento, visto que aumentam muito mais na p eriferia da cidade, onde part�dos políticos e , de certo modo, garantiram o ap oio, especialmente
'

:1 moram os pobres. As p esquisas também indicam que os p ob res são as d os Jovens moradores de favelas, para a principal organização de trafican­
j princip ais vítimas dessa onda de criminalid ade violenta, sej a pela ação da tes de d rogas e a� saltantes (Comando Vermelho - CV), na presunção de
polícia ou dos p róp rios delinqüentes, p ois não têm os recursos políticos e que e les c omeç ariam uma guerrilha urbana para derrub ar o governo e o
econômicos que lhes g arantam acesso à Ju stiça e à segu rança . a tual mod elo ec onômico d o p aís.
Mas também é fa to que o crime n as ruas, especialmente o crime vio­
1

Na l ocalidade, entre os líderes comunitários que dirigem as asso­


1, : lento, é hoj e uma das preocupações centrais d as p op ul ações me tropolita­ . _
ciaçoes de morado res, p rev aleceram o silêncio sobre as ações dos b andi­
nas b rasileiras (Kow arick & Ant, 1982; Zaluar, 1985). A generalizaçã o de dos e a constante denúncia d a re pre ssão policial contra os morad ores. O
imagens da cida de co mo um ambiente violento e os sentimentos de medo p aradigma rev olucionário, combinad o com a matriz milen arista da ação
216 Um Sécul o de Favel a Crime. Medo e Pol í t i ca
217

política, embora nem sempre explícita, caracteriza essa interpretação dos estranhos como parte da cidadania. A crença nos processos democráticos
índices crescentes de crime contra a propriedade e do aumento da violên­ fi��u restrita à eleição de um chefe do Executivo, em todos os níveis (mu­
cia contra as pessoas como uma manifestação da luta ativa dos pobres �1cipal, estadual e federal), de "pulso" . A concentração no espaço domés­
contra os ricos e contra o Estado opressivo ou mesmo como um sinal do tico, o retomo à família e a uma idealização da comunidade de semelhan­
fim de uma era mundial. O papel do crime organizado e das máfias foi tes (a concepção política do chez naus, não muito diferente da Front
subestimado, se não ignorado, principalmente pelos que apoiaram a luta Nationale francesa) encolheram os horizontes sociais desses moradores de
contra a pena de morte e contra as políticas penais do Estado. Outra ten­ São Paulo, restringindo seu mundo significativo e de confiança aos familia­
dência é reduzir a importância e o impacto do crime violento afirmando res mais próximos e a alguns poucos amigos (Vargas, 1993). O ódio aos
que ele é exagerado pela mídia e pelo medo imaginário por parte das nordestinos mestiços parece ser, no entanto, um fato específico da cons­
classes proprietárias. trução do medo e da apatia política nesses bairros de São Paulo, onde sen­
Grande parte da população do Rio, entretanto, admite que a situa- timentos regionalistas fortes se mesclam com uma alta concentração de
ção é muito séria e advoga reformas institucionais para tomar a polícia descendentes de imigrantes europeus brancos. Portanto, o problema nes­
menos corrupta e mais eficaz, e a Justiça mais eficiente (principalmente ses bairros não é apenas um retorno à comunidade mais fechada, uma
os homens) ou mais de acordo com o valor moral do trabalho (as mulhe­ conseqüência possível dos novos movimentos sociais que desconsideram
res) (Zaluar, 1991). Afirmações mais desesperadas, pedindo por socorro, as questões institucionais (Maheu, 1993), mas também um reforço da
exigindo medidas imediatas para terminar com a situação de inseguran­ identidade racial e étnica, que nega a convivência com os diferentes por
ça, encontram-se na seção de cartas dos leitores de jornais, em geral pes­ conta do risco que isso implica. Padrão similar poderia estar se desenvol­
soas da classe média que vivem atrás das grades de suas casas e condomí­ vendo no Rio de Janeiro por conta dos arrastões nas praias da Zona Sul
nios ou dos vidros fechados de seus carros, mas não escapam das balas da cidade, os quais envolvem, de um lado, os jovens pobres e predomi­
perdidas nem dos assaltos à mão armada. Embora seja maior o número nantemente negros da periferia da região metropolitana, e de outro, os
de mulheres da classe média que aprovam a pena de morte como meio moradores da Zona Sul, incluindo-se aí os brancos, mestiços e negros fa­
de fazer justiça e dissuadir os que preferem fazer dinheiro fácil a traba­ velados que estejam na praia no momento do tumulto. Embora, em geral,
lhar, as mulheres pobres pensam de modo parecido (Zaluar, 1991). as brigas envolvam as "galeras"7 dos bairros afastados, muitos desses
Em São Paulo, cidade que seguiu o padrão de segregação espacial moradores, inclusive os favelados, reclamaram de terem sido assaltados
norte-americano e não o padrão crioilo das cidades latino-americanas, estu­ por aqueles.
dos recentes mostram que as mudanças populacionais no espaço físico da Pierucci (1990) interpretou esses novos fatos sociais de São Paulo
,.cídade contribuíram para o medo que se instalou entre os moradores dos como uma conseqüência não intencional dos novos movimentos sociais
bairros de classe média (Caldeira, 1992; Vargas, 1993). O fim da expansão que têm como foco a diferença entre grupos e não a universalidade dos
dos bairros populares na periferia trouxe os pobres de novo para o municí­ direitos de cidadania. De acordo com ele, os movimentos de esquerda
pio de São Paulo, em especial os bairros centrais tradicionais, antes habita­ contribuíram paradoxalmente para tomar inalcançável a igualdade na ci­
dos por uma população étnica e economicamente distinta - de origem eu­ dadania e também para o que ele chama de "re-emergência dos conserva­
ropéia -, que se considera racial e socialmente superior aos "invasores dorismos" . Esse seria apenas um deles, pois há outras tendências conser­
brasileiros" de origem nordestina (Vargas, 1993). Isso explicaria o novo vadoras reaparecendo na crise político-institucional brasileira. A razão
medo dos antigos moradores, os quais, na sua interpretação do aumento disso é o fato de nunca ter havido no Brasil, mesmo em tempos recentes,
da violência na cidade, culpam os nordestinos que vieram morar no um movimento de direitos civis.8 A preocupação quase que exclusiva
mesmo bairro pelo estado de coisas considerado insuportável. São eles dos intelectuais brasileiros foi estender os direitos políticos a cada vez
que exigem e elegem políticos mais duros - "de pulso forte", "autoridade mais setores da população e garantir direitos sociais aos que não tinham
competente" - para restabelecer a ordem (Pierucci, 1990; Vargas, 1993). assistência ou serviços públicos, passando essa preocupação para os mili­
Os efeitos mais evidentes dessa postura foram a modificação do as­ tantes. Isso resultou numa concepção e numa vivência de cidadania res­
pecto das residências, que passaram a exibir muros altos, grades, fecha­ tritas ou incompletas, de modo que o termo "direitos" nunca teve um
duras, alarmes e cadeados, e principalmente o descrédito da participação sentido real, ou seja, não deixou de ser meramente formal, existente ape­
em espaços públicos, com a evidente negação da civilidade no trato com nas na letra da lei (Zaluar, 1991; Santos, 1993).
218 Um Século de Favela C r i me, Medo e Po l í t i ca

Os estudos feitos em favelas ou bairros da periferia do Rio de Ja­ foi resolvido graças a um modelo implantado pela companhia estadual
neiro mostram um fech amento de outro tipo, além da substituição do dis­ Ligh t, através do qual primeiro os moradores se organizam em comis­
curso político por outro tipo de discurso. O movimento de associações sões, para discutir com os técnicos da companhia como serão feitas as co­
de moradores nos bairros pobres cariocas também foi profundamente nexões nas partes comuns, e depois se instalam medidores em cada casa.
afetado pela presença de quadrilhas' de traficantes de drogas, o que fez Esse modelo foi muito bem-sucedido e não criou conflitos entre vizinhos.
aumentar tão dramaticamente os índices de crimes violentos nesses lo­ O mesmo não aconteceu com os serviços de água e esgoto, a cargo de
cais que a morte e o estupro se banalizaram. Por volta de 1985, as associa­ out�a companhia estadual, a Cedae. Adotou-se a política de entregar o di­
ções de moradores passaram a despertar o interesse dos traficantes; igre­ nheiro a algumas associações para fazer o trabalho, com pouca ou nenhu­
jas católicas ficaram cercadas por casebres e casas comprados pelos trafi­ ma discussão pública dos planos técnicos. Ao final, cada família tinha
cantes, que se tornaram ouvintes atentos do que o padre dizia nos ser­ que decidir onde instalar o encanamento que, de qualquer maneira, deve­
mões; algu'ns templos evangélicos foram obrigados a aceitar a existência ria encontrar o esgoto central ou a tubulação principal de água. Assim, al­
de "paióis" ou esconderijos de armas e, junto destes, de pessoas ligadas guns moradores construíram seus encanamentos muito próximos uns
ao tráfico.9 É claro que quaisquer críticas às suas atividades no bairro dos outros, sem muito cuidado com a separação entre água e esgoto.
não eram bem-vindas, e essas tensas relações entre os traficantes e os lí­ Além disso, enquanto a luz era paga individualmente pelas famílias e
deres comunitários ou meros vizinhos várias vezes terminaram com a mantida coletivamente pela Ligh t, a água e o esgoto eram pagos coletiva­
morte ou a expulsão destes últimos. Em compensação, os traficantes já vi­ mente, mas a manutenção era individual. O resultado da conquista desse
nh am há tempos fazendo o papel de segurança do local, eliminando ou atendimento governamental foi criar mais tensão e conflito entre vizinhos
expulsando os que roubassem trabalhadores ou estuprassem suas fi­ que moravam cada vez mais próximos uns dos outros por causa do au­
lhas.1 0 Mas a sua mera presença e a maneira de lidarem com os jovens vi­ mento populacional indiscriminado nessas favelas já atendidas por tais
ciados em drogas estimularam esses jovens a cometer crimes violentos. serviços públicos.
Conseqüentemente, a imagem dos traficantes sempre foi ambivalente e A maior densidade populacional, as dificuldades advindas da con­
amedrontadora, para não dizer aterrorizadora. O medo imaginário, fruto vivência tão próxima de pessoas vindas de diferentes regiões do país,
do real, não adquiriu, no entanto, as mesmas tonalidades que nos bairros particularmente entre nordestinos e cariocas negros, a confusão entre res­
de classe média de São Paulo. ponsabilidades individuais e coletivas, assim como os conflitos em torno
As mudanças ocorridas na política local não se originaram apenas das verbas oferecidas pelo Estado e por algumas organizações não-gover­
do medo causado pelos crimes violentos e pela presença de traficantes no namentais, tudo isso dificultou as tarefas das associações de moradores.
bairro. Elas foram especialmente notáveis nas associações em que o mode­ A ausência de meios jurídicos formais para fazer valer suas decisões e co­
lo participativo da democracia negava ou criticava o da representação de­ branças das taxas coletivas, para obrigar os devedores renitentes a saldar
mocrática, ainda montado no clientelismo, ou seja, num circuito de trocas suas dívidas, foi uma das razões pelas quais a população local aceitou
de bens e serviços que atinge seu auge na época das eleições e implica um cada vez mais a participação dos traficantes - que já vinham cumprindo
contato constante entre os políticos e os moradores, h avendo vários inter­ a função de garantir a segurança - nas atividades das associações de
mediários, inclusive de fora da localidade. Se a autonomia foi reforçada, e moradores. O desalento tomou conta dos militantes que acreditavam no
com ela muitos intermediários desapareceram, a possibilidade de corrup­ modelo participativo e viram os moradores deixarem a associação, pois
ção entre os líderes locais criou novas tensões e nova desconfiança. esta já não conseguia mais mobilizá-los para as suas reuniões (Peppe,
Naquele primeiro tipo de associação, o efeito principal da presença 1992). Além disso, as pessoas ficaram mais isoladas dentro de suas casas
indesejada dos grupos de tóxico foi tornar irrealizáveis as atividades roti­ e de suas famílias devido à falta de previsibilidade e segurança, causada
neiras e as funções administrativas mais simples, tais como o pagamento não só pela crise econômica e a inflação, mas também pela desconfiança,
da água, que é coletivizada em quase todas as favelas, ou a discussão pú­ o medo e a violência.
1 blica e livre dos problemas da comunidade, inclusive a violência e o baru­ Todavia, as novas entrevistas feitas na Cidade de Deus, bairro po­
lho (Peppe, 1992). A luz, a água e o esgoto são os principais problemas co­
1

pular do Rio de Janeiro que venho estudando desde o início da década


letivos que os favelados não resolvem sem os serviços do Estado, e a de 80, apontam novas direções da sociabilidade das pessoas e novos in­
maioria das favelas foi atendida durante os anos 80. O problema da luz vestimentos que compõem um quadro bastante diferente do encontrado
220 Um Século de Favel a
Crime, Medo e Po l ít i ca
221
em São P aul o ou daquele retratado pelo estudo da favel a carioc� - _N u�a
das associações daquele bairro, o desencan to com o mo de l� � artlcip atlv ? Se nós vamos f azer tud o jun tos, por que um com and ar o outro?
de e xperiência democrática f oi que levou mu itos de seus �i�tan tes a dei­ Por que você vai se col ocar num a reunião, é tan ta pancadaria ver­
xarem a associação. Segundo eles, o fato, de essas associaçoes se v erem ba l que acon tece, que você não c onsegue mais (...). Você tem um a
de repente disputadas p or diferente s partidos p olíticos de esquer�a e idéia e aí você quer expor, e vêm três, quatro, cinco respostas ne ga­
p or diferen tes candidatos a cargos eletivos em c ada um _ desses par tidos tivas. E você vai olhar p ara eles, está sendo negativo por qu ê, se o
mostrou-lhes que a faceta do interesse político perm an eoa, �p es ar da re­ interesse é o mesmo? M as é porque "A" quer a p arecer, "B" qu er
a par ecer a inda m ai s . Existem os g rupinh os d e int eresse, as f orm a­
tórica . Como não ha viam ap rendido a lidar com isso - muito pe lo con­
trário, foi justamen te esse in teres se que os levou , n os an os a �eri ores, .ª
ções políticas, a realidade deles é diferente da Cid ade de D eus [ alu­
, � dindo aqui aos memb ros de p artido que vã o às associa ções em
se a f astar ,dos p olíticos client elistas, tambem cham a dos ?e mteresse ­

ros" -, sen tiram-se traídos n a sua confiança . Qu ando vi ram seus P ­
busca de votos, como A. Z.]. Ach o que é por isso que as pess oas
:�
prios companheiros candidatando-se, e quando �oram cham ados a p_artici­ a cab am sa indo do movimento. El as s aem quando ela s percebem

p ar de campanhas eleitorais (desses compa�hei�os e de seus candida_t�s que as pessoas estã o c om interesses pessoais . El as qu erem uma
a c argos executivos), en tenderam que seu s idea is de traba lho comumta ­ casa melhor, uma conta de telef one, querem coisas m ateria is, quan­
_ do existem a quel es mais int eressad os em b ens p ara a comunidade,
rio desin teressa do estav am perdidos. Des de entao, p ass aram a acusar
esses an tig os comp anheiros de "interessei ros " e, p or�an to, f al s? s amigos m as você não v ê. O Collor é apenas o que ap ar eceu na telev isão ,
que ap en as "usaram" a comunidade - os mesmos rotul_os aplicados aos m as se você f or de a s sociação em associação, você t em mu ita gente
p olíticos de velho estilo (Zaluar, 1985) e, de f ato, a qu aisquer estranh os honesta , mas você tem uma grande p arte de desonest os . E esses
da classe média, inclusive pesquisadores com o eu . desonestos ac abam a trapalhando nesses problem as (ex-diretor a ,
A o mesm o tempo , os ideais de uma p articipação m ais i�ualitári� evangélica, testemunha d e Jeová).

deixaram os m embros da associação insatisfeitos com a hierarqu ia auton­


tá ri a que sempre existiu n as associ ações v ol� n tá ri as � o �rasil. L o ge de
� Além desse p roblema não resol vido da hierarquia insti tucion al
serem au tônomas em rel ação ao Estado, taIS org amz açoes segui ram o
den tro da organização comunitári a, uma desconfianç a generalizada
model o institucion al d o p residencialismo brasileiro , n o qu al a figura do
gerou a cusações de roubo contra os responsáveis p ela ass ocia ção, inde­
chefe é mu ito forte, com claríssimos sinais de autoritarism o. Ess_e tra�o,
penden temente de seus p artidos políticos . N essa questão havia uma
jun tamen te com a cor rupção e as n ovas formas disf arçadas d� chentehs­
grande diferença en tre c atólicos e pentecost ai s. O s primeiros a ceitavam
m o, c riou uma si tuação peculiar que minou as b ases do m ovimento_ das
" a existência da fraqueza hum ana", a necessidade de ficar e misturar-se
associaçõ es de m or a dores . M as as crí ticas feit as a esse m o��lo segu r m
_ �� aos peca dores, lutando perma nen temen te con tra a corru pção dentro d a
me nos a retórica dos n ovos movimentos sociais que a da afrhaç ao rehg10-
as s o ciação, que n unca ficari a compl etamente li vre desse perigo . Os úl ti­
sa. Como dis seram m ora dores ins ati sfeitos:
mos se retiravam da associação assim que surgisse alguma evidência ou
mesmo suspei ta de corrupção.1 1 A ligação dos católicos com a associação
Só não fiquei porque (...) v i alguma s coisas que n_ão rr:e agra dou de mor adores também justificava-se pela necessid ade inescapável de re­
. solv er coletivamen te o s p robl emas comun s, t ais com o os serv iços de
(... ). Eu a cho que o p residen te da República, que _ e o dm �en te do
nosso p aís, sabe, muita coisa que sai n os jornais, e�� � ao P º?e água e esgoto, qu e e xigiam um plano de urb anizaçã o d o l ocal. Com o afir­
fazer a s coisas sozinho (... ). Eu era o tesoureiro e eu Jª tinh a dito maram dois diretores de diferen tes religiões:
p ara el e [o presidente da a ssociação, c atólico, A. Z.) : "você tem a
ob rig ação , com o p residente , de p restar con tas comig o p or�ue o
_ _ A ass ociação de m ora dores, ela v inh a até me b enefici ar e aos mora ­
conselho fiscal está me apertando e eu aperto voce... Voce nao
quer dar atenção àquilo que [dizem) as p es�oa� que faz[em ! p a�te dores p orqu e n a h ora de f azer a cobrança , na h ora de cobrar a
do corpo [de ] que nó s fazemos p arte, voce nao q�er ouvir nin­ mensa lidade , eu ia levar a pal avra de D eus ... N a hora de fazer a co­
guém" (ex-se gundo secretário, pentecostal, Assembleia de D eus). brança , começava a conversar: " a vida tá muito ru im de ganhar o
dinheiro"; en tão, um a ssu nto puxava o outro ... P regava o Eva nge -
Século de Favela Crime, Pol í t i ca
Um Medo e
223
222

é lém � o mais, a difícil situação enfrentada pela população local,


lho, que é o que Jesus quer, falava que Jesus era o Salvador, que . �
querem os. Eu ef�Ito sim�lt�neo da presença de quadrilhas violentas, da inflação e da
ele que nos dá paz de espírito, que é o que nós cnse economica, levou esses militantes a valorizarem um trabalho ainda
r
tenho visto com os meus olhos Deus curar o doente, Deus liberta mais concreto, mais direto e mais restrito. Passaram a desacreditar O dis-
.
r as
o oprimido lá fora, aquele que está preso. Eu vejo Deus liberta curso ide?lógi�o que procurava enumerar as causas sociológicas dos pro­
A pessoa passa a ter outra visão . ..
pessoas e dar uma nova vida. blem�s vivenoados pela população, sem apresentar soluções concretas,
esposa , por causa dela .. .
Eu não saio daqui por causa da minha especia��ente no caso �as crianças e adolescentes atraídos pelas quadri­
tipo de morad or que
Este lugar é bom, o que estraga aqui é certo lhas. Vanos deles segmram a tendência atual de aprofundar seus laços
a,
torna o lugar insuportável ... E a minha vida, a minha vida polític com �s �o_munidades religiosas e de trabalhar na comunidade segundo
em
assim não me envolvo mais. Se o esgoto passa ali, eu vou pular os prmcip10s novamente valorizados da caridade e da evangelização.
ae
cima dele. Se está vindo para a minha porta eu pego uma enxad
que não prejud ique ningu ém, eu No �ue se refere aos traficantes e seus ajudantes jovens, outro
desvio para o meio da rua, desde _
secretá rio, evang élico.) tr_aço, na direçao oposta, diferenciava as relações entre o político e o reli­
jogo ele lá. Vou fazer o quê? (ex-segundo
g10s? nas d_ua,:' r�ligiões. Enquanto os militantes católicos preferiam O si­
A
e lencio e a distancia em face da ameaçadora presença dos traficantes arma­
Eu vejo a Igreja Católica oferecer tudo isso sem que você precis
só de um dos, com uma velada reprovação a estes no seio da comunidade local e
largar o movimento. Já o protestantismo, eles falam
m uma forte oposição a punições mais severas do Estado, os protestantes es­
Deus que liberta, mas na verdade é um pouco egoísta, só pensa
que se­ colheram uma proximidade evangélica, tentando salvá-los para aumen­
neles. Você não pode se misturar. .. A Bíblia é que diz: tem
do joio é aquilo que Jesus Cris­ tar o rebanho. Alguns deles hoje atendem adolescentes e crianças da vizi­
parar o trigo do joio. Separar o trigo
São Lucas , na verda de nhança através do discurso religioso e do trabalho comunitário. Levar­
to, que está contado em São Mateus, em
tem que ser lhes a palavra de Jesus, a fim de convencê-los a abdicar o vício e o domí­
não é isso [não misturar, A. Z.], é orar e vigiar. Você
do cor­ nio do diabo, implica às vezes rituais de exorcismo que se tornaram a
prudente que nem a serpente, você sabe que está no meio
para marca registrada dessas igrejas emergentes. De fato, os evangélicos fo­
rupto, mas você tem que estar no meio com propostas sérias ram os que conseguiram realizar um trabalho mais eficaz e permanente
a corrup ção imper a. O protes ­
mudar, para não se enrolar, senão de prevenção e de reeducação dos usuários de drogas e criminosos. Si­
rar, que não tem
tantismo já acha que você não tem que se mistu multaneamente, foram eles que cada vez mais se voltaram para suas fa­
Ele [o ex-se­
que estar ali, não tem que fazer obra comunitária (... ). mílias, seus filhos, seus afazeres privados, defendendo soluções indi­
do conta
cretário] está lá no cantinho dele. O cocô continua toman viduais para problemas coletivos tais como a água e o esgoto.
associa-
da porta dele, mas ele não quer se misturar (presidente da
Há ainda outro ponto no qual não é possível fazer uma distinção
ção, católico).
clara e sem ambigüidades entre essas religiões nas suas relações com a
política. Pois também ficou claro, pelos depoimentos, que o estabeleci­
articulação
Por esses depoimentos, pode-se observar a complexa mento de práticas democráticas nas organizações populares seria mais
o padrão weberiano
entre o político e o religioso no Brasil, que não segue fácil de acordo com as regras religiosas desenvolvidas pelos crentes,
religi ão. No caso do Brasil, não se entre os quais o hábito de discutir e deliberar sobre as decisões é adotado
da relação entre a ação econômica e a
da Refor ma, principal­
pode dizer que a cidadania seja apenas um efeito sempre, sem ser desafiado pela hierarquia:
apostam na evan­
mente na sua versão calvinista, como acreditam os que
as e falhas da
gelização das classes trabalhadoras para resolver os dilem
catolicismo ti­ Anciões são os líderes de uma localidade. Servo ministerial é o que
cultura política brasileira. Tanto o protestantismo quanto o
da cidad ania no mundo.1 2 O ajuda os líderes. Mas acontece que esse papel autoritário eles não
veram efeitos contraditórios na construção
corrupção, do exercem. Porque se você for discutir com ele - "fulano, olha, a Bí­
isolamento individual e uma insistente preocupação com a
atitud e tolerante blia explica isso e isso, não é isso que você está falando" -, ele vai te
lado dos protestantes; a mobilização, a mistura e uma
são ouvir. Se você pedir para vir uma pessoa além daquele ancião, ele
em relação à corrupção e a outros crimes, do lado dos católicos; tais
vai vir e vai conversar com você de igual para igual. Não tem essa
as peças fundamentais desse quebra-cabeça local.

il
,1
Um Século de Fave l a
224 Crime, Medo e Pol í t i co
225

de " a gente vai parar p ara respeitar o irmão que tem 30 �nos mais ses onde a Justiça funcion a vagarosa e inj ustamente - d a falta de lei.
que v ocê". E a gente v ai conversar um com o o� tr� (ex-diret�ra de Com o fracass o d a lei e d a moral, que não conseguem estabelecer os limi­
u ma d as ass ociações, desencantad a tom o au to ntansmo do s lideres tes para ess as tentati v as de enriquecimento ilíci to - como no cas o dos
e a predominância dos interesses p olíticos dos outros diretores). políticos e policiais corru ptos, bem como dos traficantes vio lentos -, di­
luem-se as fronteiras entre o certo e o errado e entre ca tegorias de pes­
soas confiáveis e não-confiáveis. Em outras palavras, a previsibilid ade e
Os católicos têm feito muito p ara mudar os vícios au toritários e p a­ algu ma c onfi anç a , sem a s quais a vid a social e a o rdem s o cial n ão s ão
ternalistas de sua vivência religiosa. Exemplos dessa tenta tiv a s ão os cír­ possíveis, desaparecem. Se, em tal crise de legitimidade, n ão é nem no
cul os bíblicos, que funcion am em bairros pobres com a finalida�e de es­ p olítico nem n o ju ríd ico que as pessoa s po dem encontrar saída p ara o
_
tudar e discu tir a Bíblia, o mov imento carismático, qu e imp o� novos med o e para o sentimento de u m iminente colaps o da v id a social, então
_
rituais mais abertos do qu e a missa como p rincip al � tivi� a de re!igiosa, e se rá n a religião - p articularmente a que constrói a sepa ração absolu ta
as c omunida des eclesiais de base, qu e se propõem discu ti r c olet�v amente
entre os b ons e os mau s - e n o que está mais próximo - a comunid ade
to dos os problemas comuns enfrentados pelo b air�� - M as eles nao amea- local d os conhecidos e confiáveis - que elas irão se refugiar p ara esca­
çam o p oder e a aut oridade investidos no clero c atohco . p ar d a avalancha .
Entre a p opulaç ã o loc al menos politizad a e q�e nunc� se e_nga1 ara M as essa escolh a, no caso das igrej as pentecostais que militam con­
_
num movimento d a associação de moradores de estilo p articipativo: au ­ tra as demais religiões e que fazem do diab o nelas existente o p rincip al
mentou b astante a conversão às nov as seitas p rotestantes q� e enfatiz_am inimi go, acarreta sérios problemas. Trata-se de um abrigo que reinventa
a necessid ade de destru ir o diab o através de rituais de exorc�mo � rabea­ o mu nd o , t o rn and o-o sem c onflitos ou interesses, um mund o sem políti­
dos com os indivíduos qu e se iniciam. Nos rituais da Igre1 a Universal, ca. Um mund o também sem esp aço público, o qu al al arga os horizontes
p or exemplo, símbolos do ritual católico e d a u mb and a se misturam: ? d a s ociabi lidade, para incluir os estranhos e os distantes, ou da civilida­
diab o incorp orado em algu ém tem os mesmos gestos ,d os exus _ afro-bras�­ de, n o sentido do respeito mútu o que ca da um deve aos demais mem­
leiros 1 3 e as exortações seguem o discu rso católico . E o exorcismo, mais bros d a nação, inclusive ou principalmente ao diferente. Em outras p ala­
do q�e a adesão a uma ética de conversão, que está em destaqu e em algu­ v ras, u m mu nd o que exclui e marca o ou tro com os sin ais do ma léfico;
mas dessas nov as religiões. Por trás dele, a idéia de u m mal absol� to que em certos casos, um mund o doméstico, paroquial, conhecido, face a face,
explicaria a explosã o da criminalidade violenta é a c renç a mais forte o úni co em que aind a se p o dem est abelece r relações de c onfianç a, p or
dessa p opu lação (Zaluar, 1985, 1992, 1993). A solu ção encontrada p or mais ilu sório que isso sej a, o qu e o torna distante das p rop ostas polifôni­
esses p opul ares, inclusive os muitos b andidos qu e se convertem, e, a p r� ­ cas e plurais do pós-moderno, assim como do projeto de um n ovo univer­
gaç ão d a p alav ra de Cristo e a prática da carid ade no trato � o_m os mais salismo intersubjetiv o e plural (Habermas, 1989, 1991; Ricoeu r, 1990),
necessitados, com as crianças, com os infelizes. O mo delo relig10s� da so­ não mais centrad o na filosofia e nas ilusões d o sujeito absolu to, mas
,
ciabilid ade restrita e da p regação religiosa, p or parte dos evangehc� s: � o ainda a ssim solidário c om a r a z ão modern a .
_
d a comunidade fechad a, d o trabalho coletivo e da liderança ª':1 ton_tana, O caso brasileiro, entretanto, coloca algumas qu estões. Primeiro,
por p arte dos católicos, tomam conta da v i da socia l nesses locais e influ­ não é possível opo r qu estões morais e materiais, de mod o a diferenciar
enciam suas idéias políticas. Ao mesmo temp o, há d a p�rt� de tod� s, velhos e novos movimentos sociais. Mais d o que o p roblema em qu estão,
mais p articu larmente dos evangélicos, um no tável reto rno a vida domes­ o qu e imp or ta é o m o d o de lidar com ele p olitic a mente, sej a ele m a te ria l
tica e às preocu pações individuais com o trab alh o, o casamento, o ganhar ou moral. A dicotomia é p or si mesma problemática, n a medida em que
melhor e ou tro s assuntos priv ad os. questões materiais sempre envolvem noções de j u stiça e u m discu rso pú­
No plano religioso , bandido é o qu e es� o_lhe a i? entid�de negativ a, blico e moral que transforma a necessidade num direito. Apenas no dis­
_ _
com a qu al acaba p or se identificar p or uma sene de cucunstanoas, inclu ­ curso religioso maniqu eísta tal dico tomia faz sentid o, mas em relação à
sive a corrupção p olicial que o indu z a roub ar e ass altar, sobretu� o para v oracidade ou à av areza indivi duais.
p oder pa gar O qu e lhe é exigid o para n ão se r p rocessado. ".:, a�esao ca da Para ev itar as armadilhas apontadas nos novos movimentos so­
vez maior às nov as religiões é possivelmente u ma consequenoa d a falt� ciais no Brasil e em ou tros lugares, movimentos sociais e religiosos que
de restrições morais e - no que diz respeito ao tráfico de drogas, em pai- não consegu iram transcender os problemas e identidades p aroqu iais es-
I'
l
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'I
Um Século de Favela
226 C r i m e, Medo e Pol í t i ca
227
pecíficos a seus grupos, organizações ou localidades, é necessário agora ou de vizinhança. Criam-se assim vários tipos de ligações, seja através da
pensar em novas formas de reivindicar 'e exigir direito� . Es tas � evem doação do bem, seja através da participação na discussão pública sobre a
_
levar os outros em consideração de tal maneira que eles nao seiam mstru­ avaliação e a distribuição. Nesse circuito de reciprocidade, estariam in­
mentalizados ou objetivados (Habermas, 1991). Um retorno a valores ou cluídos, portanto, não só os bens mercantis mas também os não-mercantis,
regras universais redefinidos, que garantam ao menos um encontro pos­ como nacionalidade, seguridade, educação, sistema de justiça, ou seja, de
sível ou o diálogo entre diferentes posições, identidades, grupos ou loca­ diferentes esferas de justiça controladas pelo Estado (Walzer, 1 995), ou
lidades no espaço público, mesmo sabendo-se que o consenso é impossí­ ainda aqueles decorrentes do próprio processo de justificação das deman­
vel e que os conflitos permanecerão - eis o novo desafio para os movi­
das por justiça e de avaliação desta. São os invocados nas disputas que
mentos sociais no final do século XX.
decorrem de noções de honra, confiança e reputação - bens imateriais e
Para enfrentar os novos medos e sua atual simbolização na figura não controlados pelo Estado (Thévenot, 1995; Boltanski, 1990).
do diab�, assim como novas formas de discurso religioso mais conectado
com a ação política do que com a econômica, as teorias da relação entre o
religioso e o político deveriam também ser parte de nossa agenda. Funda­ Notas
mentalismo é uma das questões, mas não é a única. A ideologia comuni­
tária antiestatal e paroquial que romantiza a comunidade "pré-moderna" l . O conceito de máfia está imbricado no de crime organizado e é objeto de
dos laços primários e das relações diretas (Calhoun, 1991), assim como as interminável polêmica iniciada no século passado. Uma com referência ao
posições antiinstitucionais, também abriu caminho para �ut�as formas seu caráter organizado ou desorganizado (Arlachi, 1986; Reuter, 1986; Calvi,
de engajamentos religiosos e políticos que ameaçam os pr�pnos valo:e_s 1993; Bettancourt & Garcia, 1994; Tullis, 1995; Labrousse & Koutousis, 1996)
e fins que constituíram a razão inicial de suas críticas aos sistemas politi­ e outra quanto ao seu estatuto de crime ou trabalho ou empresa (Reuter,
cos clássicos e de sua rejeição à razão universalista, tal como proposta 1986; Thoumi, 1994; Bettancourt & Garcia, 1994). De qualquer modo, trata-se
pelo Iluminismo europeizante e centralista. certamente de uma rede de atividades que tem um componente de empreen­
Quando se abandona essa perspectiva dualista e dicotômica, ina­ dimento econômico, ou seja, implica atividades que se repetem ao longo do
dequada para pensar hoje o quadro complexo e reticular das relações tempo (mesmo sem a disciplina, a regularidade e os direitos jurídicos do
_ mundo do trabalho), visando ao lucro (tanto mais fácil e alto quanto mais
entre o Estado e as várias formas de associação, entende-se a sua plurali­
dade de princípios: os do caráter burocrático intermediário do Estado na bem colocado se está na rede de intermediários e atacadistas) e utilizando
_ _ moedas variáveis nas trocas baseadas em características comuns às relações
redistribuição, os da procura do ganho no mercado, os das orgamzaçoes
não-governamentais - também burocráticas e também ne�essitando de secretas ou subterrâneas, bem como valendo-se do escambo na troca de mer­
verbas e realizando o trabalho de redistribuição - e, por fim, o do cha­ cadorias e no pagamento de serviços. A existência de leis que proíbem tais
mado quarto setor ao qual pertencem as várias formas de associação que atividades e de fortes censuras morais ao exercício das mesmas impõe práti­
cas e formas organizacionais que, além de permanecerem subterrâneas, ape­
criam laços entre pessoas estranhas (Zaluar, 1997a) . Do mesmo modo,
lam para meios violentos na negociação (ameaças, coações, chantagens, extor­
por causa dos efeitos de sua própria presença na dinâmic_a s �cial, os crité­
sões) ou na resolução (agressões, assassinatos, terrorismo) de conflitos comer­
rios particulares e locais de justiça presentes no comumtansmo, de que
ciais ou pessoais.
depende o funcionamento do setor doméstico ou da vizinhança, passam
por uma inflexão. A autonomia local, que não organiza rela ções entr� os 2. No entanto, a presença da Igreja nas organizações locais nunca teve um
_
vários grupos ou comunidades, rompe-se para formar cadeias de solida­ efeito uniforme, pois dependia das ações adotadas pelo padre da paróquia
riedade entre estranhos, cujo objetivo final pode ser a distribuição de um Oacobi, 1989).
bem escasso, baseada em diversos critérios de justiça que implicam uma
3. A ideologia comunitária sustentada pela Teologia da Libertação preconiza
discussão pública permanente nos processos de escolha dos beneficia­
a transformação da sociedade por meios políticos, com a participação ativa
dos, tanto na distribuição que resulta de uma política estatal, quanto na­
dos pobres, dos explorados, dos dominados. Com isso criou, de fato, uma
quela em que as organizações governamentais e não-governament�is sã �
"comunidade mítica de iguais" (Durham, 1984), que escondia profundas di­
meras redistribuidoras, ou ainda naquelas em que as redes de rec1proo­
ferenças sociais e econômicas entre os moradores (Zaluar, 1985), assim como
dade ultrapàssam os limites das identidades étnicas, religiosas, sexuais conexões políticas através de assessores e membros de partidos de esquerda
C r i me , Medo e Pol í t i ca
228 Um Séc u l o de Favel a · ···· · · . . 229

ção, embo,a se trnte de imigrnntes brnsileirns d e tecceirn gecação,-�� pode se,


(Durh a m, 1984). Por con ta d a imp ortância d a da a o a tiv ismo po lítico, a Teolo­ .
exp li ca d o p or essa fal ta d e d ire itos civis ou in div id ua is · ,
gia da Libertação d escu idou das funções ri tuais e simbólicas da religião, que _ E ssa tradi· ç a
- o e que
p �rmitm· . . a as ocia
.
ça o de di.ferenças individ uais ou grupais com valores e di·-
passaram a ser procu radas em outras religiões . Ao mesmo tempo, as CEBs � �
reitos umversa is .
(com unidades eclesia is de b ase) ma ntêm uma matriz re ligiosa m u i to imp or­
ta n te n a c ultura p op ular b rasileira, isto é, o messianismo e o milenar ismo, 9. O Globo, 13-!�-1993, fez uma longa reportagem sobre o a ssun to, com de­
_
que apon tam para o fim de ste mundo após o qual os p ob res fina lmen te en­ pmmentos de �anos m ora dores . Na minha pesquisa, também surgiram dep oi-
contrarão a j ustiça, o b em e a paz. Essa matr iz também con tém, po is, d ico to­ men tos a respeito dessa si tuaçã o .
mias ab solutas do b e m e do ma l.
10. Esses fa tos talve z exp liquem por que ta n tos líderes com unitários recu­
4. A definição de crime v iolento não é uniforme em toda s as e sta tís ticas dis­ sa m-se a falar sobre os meios violentos empregados pelos trafica n tes de dro­
poníveis n o ·Bra sil. A definição j u rídica inclui homicídios e ten ta tivas de ho­ g �s '. como acon teceu recenteme n te na guerra en tre os j ovens tra fican tes de Vi­
micíd ios, assaltos, latrocínios, lesões corp orais dolosa s, e s tup ros e tentativas ga no Geral e o s que m ora m n uma favela v izinha (Pa rada de L ucas). Nessa
de es tup ros . Os d a d os o ficiais da p olícia à s vezes também incluem homicí­ guerra, de zenas de jovens morreram.
dios culposos, às v ezes con sid eram apena s os h omicídios dolosos .
1 1 . Apesar disso, a Igreja Ca tólica é uma das insti tuições que mais confiança
5. Jea n-Claude Chesna is (1981) ap onta o ca ráter imaginár io do medo na Fran­ d sp er tam na popu lação b ra sil eir�, de acordo com pesquisas de opinião pú­

ça, v isto que, em re lação a os séculos anteriore s, os crimes violen tos e a v io­ bhc� recentes . Por outro lado, pohh. cos evangélicos, eleitos pa ra O C ongresso
l ência d ifusa dimin uíram b astante n a sociedade . O recente a u men to dos cri­ Nac10na l _ cº 1:1º _rep resen tan te s de s ua s co ngregações re ligiosa s, assim como
mes con tra o pa trimônio ap ontaria apenas u ma tendênc ia recen te de prio­ a lg �ma s mshtmções de ca ridad e evangélicas, estão envolvid os nos recen tes
rizar a prop riedade em de t rimento do s va lores da p essoa . O medo resu ltant e esca �dal s de c o r upçã o n a com_is sã o de orçamen to. A investigaçã o que se
� �
desse aumento, que nã o a feta as p essoa s, ser ia p or tan to ma is ima ginário do segmu foi u a a ça o se m p r na his tóri a p olítica d o país , p ressi on ada p or pa s­
� - �
que real. s ea ��s e comic10 s
p�omovidos em algu mas cidades por várias organiza ções
p �hhcas, que mob il�zaram pessoa s de diferentes idades, sexos, afiliações reli­
6. A Igreja Ca tól ica tem sido a p rincipal força p olí tica e socia l que con testa e _ _
con dena a pena de morte, hoje aprova da pe la maioria nas ú ltimas pesqu isas g10sas, classes sociai s e bairros . Essas manifestações nã o " d ã o as costas p ara
,, .
o Es ta do , mas alme1 a m de moc ra tizá- lo .
, 1 de opiniã o públic a . G raç as a es sa firme op osição, também se gu ida p or a lgu ­
mas igrej as evangélicas, a pena de mor te não fo i votada ne m aprova da no 12. Enquan to � cat olici smo separou cla ra men te o pla no espiritual d o secular,
Brasil . Seu princip a l a rgu men to ba seia-se nos d ireitos hum an os, na perspecti­ _
torn a n do possivel o ap arecimento das n açõe s modernas , 0 lutera nismo a dvo­
va da lei na tural, que garante o direito à vid a de todos, inclusive dos prisio­ gava u �a reunião da religiã o e do Es ta do . O calvinismo, p or sua vez, fez da
n eiros . Um a rgumento mais prático afirma qu e seria m os pobres , negros e . _
sua �pç�o ec n �mica e p ol íti ca a única legítima, reforçan do u ma en orme in­

mestiços os punidos dessa forma, de acordo com os v ieses das instituições to!er anoa r eligiosa . Enqua n to o p rotes tan ti smo gera c onformi s mo e ab se n­
en carre gadas de p romover a lei e a or dem n o p a ís. te�s �o elei toral nos p aí ses e m que era predominan te, o catolicismo, ao con­
7. A ma ioria desses joven s pertencia a "galeras", a rec en te versão brasile ira trario, m:smo com o cl ien telismo, estimula a mobiliza ção p olí tica (Badie,
1991 ? . Ale m do mais _ , a ideologia calvinista é socialmen te con serva d ora , na
das gangues d e adol escentes estadunid en se s que ado tam esti los de mús ica e
_
medida em que afirma que os lucros de uns não engendram a miséria de ou­
v es tu ário com fortes v íncu los co m a loca lida de onde moram. As rivalidades
en tr e eles sã o a princip a l ca usa da v iolênc ia exibi d a n os "b a iles fu11k" lo ca is tros e que , porta n to, a b usc a d a j us tiça social nã o é e tica men te j us tificáve l.

ou n as p ra ia s do Rio de J a neiro, ond e "g a leras " de bairros difere n tes se en­
Por out�o lad o, d o pon to de vis ta ins ti tuciona l, o purita nismo ang lo-saxão de­
se �volvido n a Ingla t �rra in tro� � ziu p roced imen tos democ ráticos : a) p or su­
contra m. E ssas b rigas seguem um mod elo mais recente d e segregação nas ci­ _ dade md _ iv idual diante de tudo e nã o apenas na lei tura
dades b ra s ileiras que é ma i s p areci do c om o mod el o n or te -am er ic a n o do que
b linhar a resp onsabili
_
d a B �ha , tra nsfor1:1� nd o � ca mpo político num espaço aber to d e deb ate plu­
com o mo delo ibérico ou crioilo da mistu ra, a té então m arca de cida des bra si­ _
rahshco ; b) p ela p ratica eleitor al que presc re veu a eleiçã o do p resbí ter o' b asea-
le iras como Rio d e Janei ro e Salva dor.
da n o l ivre -a rbítri o in d ivid ua l .
8. O fa to de os n ovos mov imento s sociais não tere m alcança do o pa drã o qu e
1 :
c ien t is tas s ocia i s (Fische r, 1986:230-3) lh es atribuíram em ou tras p ar tes d o
l3 . Outra caracterís tica da recen te conversã o a seitas eva ngélicas é a oposição

i
1 mun do, ficando, ao con trá rio, no pad rão clá ssico da primeira fa se da imigra- clara e radical à s ou tras religiões, especia lme nte a s afro-brasileiras, que são
, 1

,tII" 'i
Um Sécu l o de Fave l a C r im e ,
- - - -------
Po l í t i ca
230 Medo e
23 1
chamadas de "coisa do diabo ", sendo as sua s entidades ambivalentes (exus) Dahrendorf, Ra lph. O conflito social
identificadas com o próprio diabo (Almeida, 1996). Isso trouxe para o campo moderno . Rio de Janeiro, Zahar, 1992
.
re ligioso uma forte intolerância e uma atividade guerreira que a sociedad e
Durham, Eunice. Movimentos socia
is : a cons truçã o da cida
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1
1

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li
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_ ·
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--. Justiça , violência e dinheiro fácil. . . .
des sur la Justice.) s1stente de pesquisa, Mana Severa da Silva, aos líderes comunitários e especialmente àque­
lho a presenta do ao lnstitu t des Hau tes Étu _
les hgados ªº �e�tro de Direitos Humanos Bento Rubião, pelas muitas horas compartilha­
l -
,,.
Violência : p ob rez a ou fra queza ins­ das em expene�c1as e descobertas. Por motivos óbvios, eles devem permanecer anônimos.
---; Albu que rque, C. & Noronh a, J. C.
Jan e iro , Fiocr uz (10), 1994 . Agradeço ta1:1bem a Martha Huggins, Susan Eckstein, Alba Zaluar e Mick Moore, bem
,',

titu cion al? Cadenzos de Saúde Públ ica. Rio d e


!

1' _
como ªºs anommos revisores da Latm American Research Review, por seus pertinentes co­
j e, 20(1 15), 1995 . _ .
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l, 1995.
234 Um S éculo de Favela Coca ína e Po deres Para lelo s na Per i fer i a U r b ana B ra s i le i ra 235
-
tolerada (Pinheiro, 1992). E se p ara as classes mé dias as prá ticas den:ocrá­ importantes ba irros residencia is de elite, os moradores da fa vela reuni­
t ica s voltaram, nada que sej a inerente à tran sição p a ra a democracia ga ­ ram- se pa r a protesta r n um vi a du to de quatr o pi stas p or ond e se entra e
r ante ess as pr á ticas ou mesm o a democrac ia sub stanti a p ara as classes sa i do t únel. Tal es tra tégia provoco u um enga rrafament o de trânsit o de

inferiores (Huggins , 1991; O'Donnell, 1992; F ox, 1994a). 8km de extensão. A ação p oli cial, como sempre viol enta, com espanca­
N a América Latin a , a transição p olítica do autoritarismo para regi­ mentos e uso de gás la crimogên eo, nã o l og rou dispe rsar os manifest an­
mes democráticos se fez acompanhar de u ma transição econômica que tes e le vou a lguns morado res a começar a apedrejar, d o alt o d o m or ro , os

au men tou drastica mente a po breza . Tal tr an sição - em


ge ral a tribuída à carros que tran si tav a m pelo túnel. A polí cia era imp o ten te cont ra esse

crise da d ívida e à sub seqüen te re e s tru t u r a ção e co nômic a que exigiu p ro­ tipo de a ta que. Segund o alguns, os apedrejament os só cessa ram quando,
- t ngi b re tu d o os seg­
fundos cortes nos gastos go vernamentai s a i u so da prisão , o " don o" d o tráfico orden ou su a su spensã o.
i s tid?s. Em g e­
ment os p opulares tradicionalmente vuln_eráve�s _e desass
E sse incidente exemplifica um quad ro de condições contraditórias
o saude , educa­
ral O Estado não tratou de p ropici ar se rviço s b as icos com que grassam nas 500 favelas e conjuntos h abitacionais popul ares do Rio
çã�, infra -estrutura urbana e um sistema p olicial não-repressivo, mas � de Jan eiro. Os morado res dessas áreas representam cerca de um terço d a
rees truturação econômica ajudou a cr ia r espaço p ara
qu e atores altern ati­ p opulação do município. A dis tribuição e a venda de cocaína a partir des­
vos assu missem importan te papel nas esf as s , e conômica_ e p olítica
er ocial
sas comunidades, principalmen te para as cl asses méd ia e alta, criaram
r amen �a�s (OrGs)
dos segmentos popu la res . A s organizações não-gove 1: u ma trama comple xa de rel ações econômicas e polí ticas en tre comuni da­
preenche ra m lacuna considerável na prestação de serviç�s basicos, _ mas 5
des, tra ficantes e Es tado. Tais relações res ultaram sob re tudo da presença
elas represen tam apen as um a p arce la dos atores alternat
iv os que vieram 1
1
e ausência seletivas do Estad o, constitu indo o que ch amo d e "violência es­
ocupar esse espaço . 6
tru tural", violênci a e rep ressão c ontínu as con tra as classes p opulares. D e
Tais percalços das transições democrá ticas e os e feitos deletérios da_s m od o geral, este estud o trata da s ameaças à red emocratização e à gover­

r
com o de�en�olvi­
tran sições econômicas coinc idiram, na década passada, nança em nível comunitário na periferia urbana brasilei ra, as quais se
mento do que poderíamos den omin a r a p rim e i ra e mp r�sa mu �tmacion_al fazem sentir quando con dições sócio-econômicas ad versas e a presença
autóctone da América Latina e sua p rimeira fo r m a g e n u m a de mtegraç ao repress iv a do Estado es timulam forma s alternativ as e ex tralegai s d e o rga­
tr ui çã de c?caina (Q�i-
econômica : a produção, o process amen to e a d is ib nização econômica e po lítica ? Procura e xplicar p or que, à medida que as
o

· ano, 1993). O estágio e a forma dessa empresa variam de p ais p �r� pais, p rá ticas democráticas se d ifundem no Estado b rasileiro, a democracia em
�as, em todos eles, as conseqüências políticas e econômicas das atividad�s nível local nas comunidades operárias está sendo solapada. Os favel ados,
ligadas à cocaína atingir am sobretudo os segmen:� s eco
nô�icos aos quais em par ticular, se vêem entre dois fog os : a violência il e g al dos traficantes
moc i . C onsi derem os o se-
se negaram os "benefícios" da transição e a violência oficial d as forças p oliciais.
3
de rat ca

guinte episó dio, a mplamente divulgado. M ais especificamente, este estudo aborda o uso político e os efei­
N o final dos anos 80, a maior favel a do B rasil, a R ocinh a, situada tos da distribuição e ven da de cocaína nas comunida des u rbanas de
nu m b airro de elite da Zona Sul do Rio de Janeiro e com u ma p opulação baixa rend a do Rio de Janeiro. Susten to que a violência física e criminosa
ra a sua vizinhança
e s timada em 150-200 mil h ab itantes, insurgiu-se c ont resu ltan te d o tr áfico de d r og as é uma forma visível e p alpável da violên­
de classe méd i a , num show de violênc ia , o qual
foi se�saci�nal isticamen­ cia empregad a pelo Estado, e que ela mascara uma violência estrutural­
te rotulado de "guerra civil" p imp n oc l e n a cional.
ela re sa l a
institucion al mais oculta, ao mesmo tempo em que perpetua rel ações po­
Segun do versão o ficial apresent ada p ela assoc�ação �e mo�adores líticas neoclien te lis tas com essas comunidades de ba ixa renda . O modo
.
da comunidade, 0 episó dio co meçou com o um a mamfestaç ao p a� i �ica de pelo qual o Estado reage ao tráfico de drogas nas favelas con sti tui um
moradores da R ocinha revoltados com a violência crônica da p olicia con­ exemplo atual (numa sé rie de paralelos históricos) de re pressão do "com­
tra os favelados. Já de ac o rdo com v ersões nã o-o fic ia is, a R ocinha p rotes ­ p ortamen to aberrante" da classe inferior e, logo, de repressão de segmen­
tava con tra a transferência do c hefe do n arco tráfico da favela , ca pturado tos exp ressivos de toda um a classe. M ais imp ortan te, a on ipresenç a do
recen te men te , de um a p ris ão de onde ele pod ia m an te r con tato com a co­ tráfico de drog as ameaça o frágil processo de criação, e m nível loc al, de
munidade p ara outra, mais segura, cu jo acesso era ma�s difí_cil . Como .ª estruturas democrá ticas cap azes de fo rtalecer e mo bil izar poli tica men te
Rocinha ocu pa u m morro a través do qual p assa u m tunel ligando dois as comunidades d e baixa rend a.8
236 Um Século de Fave la
Cocaína e Poderes Para l e l o s no Periferia Urbano B r a s i l e i ro
23 7
O Estado como protetor - de quem e contra o quê? eia é ton:iada em sen tido restrito, com
o da no a pesso as e o
em sen ti do amp lo, com bje tos, ou
As imp ressionan tes imagens d o Rio d e J aneiro veiculadas na �m­ o violação d os desejos e
,
guem; por ambos os critérios, os go int eresses de al­
prensa nacional e internacional mostram uma cidade sitiada, a necessit ar vernos se destacam de outras or­
ganizações por sua ten dência a mono
da pr oteção das Forças Ar madas p o rque a instituição trad ic i onalment e polizar os meios concen trados
de violênc ia.
encarregada de z elar pela ordem pública - a po lícia - torn ou- se dem�­
si a do corrup ta e envo lvi da n o tráfico de ' d rogas e armas que lhe cabena
combater. Supostamente para p rote ger a p opulação , as F orças Armadas A idéia do Estado como protetor ambí
guo - que cria a percepção
invadiram e ocuparam certas favelas à s véspe ras das eleições gov�r�a­ �a ameaça contra ª qua l se deve proteger o país - é um princ
men tais e presidenci ais de novembr o de 1994. Se gundo as forças m ilita ­
..
tivo de g ran de utili
ípio organiza­
dade para minha análise do surgimen to
de pod eres p a­
res bras ileiras e a mí di a local e n ac ional, as favelas eram fonte de d rogas ralelos em nível local e do p apel do Estad
o nesse processo. Neste es
e a rmas. Como expl icar e sse fenômen o ex tremamente an tidemocrático co�eçaremos por examinar
tudo,
a s o rigens do crime organi
z ado n o Rio d e J a­
no níve l local, quando o Br asil parece estar tocan do a su a agen da demo­ n_eiro d ran te a repressão dos anos 60 e
70. No esforço p ara "proteger a so­

crática n o nível nacion al? E por que a tare fa de pr o te ger a p opulação ciedade con tra as du a s ame
aças represent adas pelos criminosos co
muns
1

c ivil de todas as classes é t ão difícil de se r cump rida nas g ran des cidades e pelos militan tes p o lí ticos
de esquerda, o Estado brasil
eiro criou inadver­
brasileiras? tidame� te a forma de crime organizado
contra a qu a l p resen temen te
compelido a protege r a socied a de. Em se vê
Uma resp osta é a ambígua noção do Estado como ? rot: tor. Se, seguida, descreveremos a dinâmica
como supõem os ana list as, é deve r do E stado pr oteg e r seu s cid a� aos con­ do "proteto r em níve l loca
_ l" atuando no contexto de "comunidad
es des­
tra certos perigos básicos - como ame aças à segurança pessoal, a proprie­ protegidas" - as favelas. Tais comunida
des con sti tuem apen as um
a ca te­
dade e aos d i re i tos civis e hum anos -, en tão cab e também sup or que goria de uma série de exemplos compara
tivos de surgimento de poderes
todos os segmen tos da socieda de têm direit o a ser igu almen te p rotegidos paralelos como resultado da omissão do
Estado. Nas demais seções, ana li­
e que existe algum conse n so quant o ao que con s titui ameaça à seguran­ saremos o impacto po lítico sobre a orga
nização de comunidades em nível
ça, quer p ara os indivíduos, quer para a socied ade em geral. local e o papel do Estado na perpetuação d
esse impacto.
Uma década a trás, num ensaio sob re a constituição do Est ado
co mo c rime organizado , Charles Tilly (1985) expressou su a preocup a�ão
com a crescen te importância do regime militar em p aíses d o T:rceiro Origens do pod er paralelo
Mundo . B aseado em seu estudo histórico an terior sobre a formaçao dos A ex tensão e a estru tu ra atuais do na rco
tráfico no Rio de J an eiro
E stados-nações n a Europa, dizia ele que o b anditismo, as riv alidades n o
� :� grande p arte de medidas tomadas em fins dos anos 60 pe lo
res ltam
mundo do crime , a atividade po lic ia l e a a tivi dade bélica , tu do i sso per­ regime mili tar com vistas a reso lve r p ro
blemas supostamen te ligados à
ten ci a ao mesmo continuum n o processo de f ormação do E stado , que cos­ "segurança nacion al".9 Pa ra começa r, os
militares d ecidiram, em 1969,
tuma mon op olizar os meios concentrados de violência. A idéia central de cla ssificar_ como ame aças à segu
rança n acion al tan to os prision
_ eiros p o lí­
su a tese era que os E stados atuam como protetor es de su as �opulaçõ:� t cos (muitos dos qu a is se
' � env o lveram em ass a ltos a banc
os para fin an­
contra ameaça s extern as e in tern as , sej am e las rea is ou percebid as, l e giti­ ciar ativi da des p olíticas ) quanto os "assalta
ntes comuns", que roubavam
mas ou f ab ricad as. Se gundo Tilly (1985:171): b ancos sem motiv os p olíticos. 1 0 Esses dois
grupos foram sepa rados dos
demais "criminosos comun s " e recolhi dos
à mesma seção da Penitenciá­
ria Cândido Mendes, p risão de segurança
máxima si tu ada n a ilha Gra
N a medida em que as ameaças contra as quais um governo protege de, n o litora l do estado do Rio de Janeiro 1 1 n­
seu s cidadãos sã o ima giná rias ou con seqüência de su as p rópri as
. A tortura sis temática e a falta
de mate ria l básico (colchões, lençóis, c
oberto res, sa bão) f a ziam p a r te das
atividades, o g overn o m ont a um si stema de p roteção ex torsioná­ terríveis condições vigentes n as prisõ 2
es.1
rio ( ...) . Obse rv a dores po líticos reconhece m que, indepen dentemen­
Os prisioneiros políticos, em sua maiori
te de quaisquer out ras atividades , os gov ernos rganizam e, se_m re a de classe méd ia, instruí­
� � ?ºs e esquerdistas, trouxeram para a prisão a estrut
que possível, monopolizam a violênci a. P ouco importa se a violen- ideo logi a do "coletiv
ura organizaciona l e a
o ", qu e fo ram transmitid as
aos "assa l tantes comuns",
238 Um Século de Fave l a Coca ína e Poderes Para l e l o s
B ra s i l e i ra
239
p assando estes a denominarem-se " o coletiv o".
1 3 O coletivo adotou a ni UI'da por novas lideranças que uti , .
forma org anizacion al e p arte da ideologia antigovernista dos p risioneiros dentro das prisões e nas f lizam as tec mc as organiza cionais
a vela a monta r lucr a
políticos, quant o mais não fosse para assegurar seus p róprios direitos de cocaín a, mas rinci alm tivas r�des de tráfic;
ente :e:: men ta li. da de do
como p risioneiros. Também adquirir am, com os prisioneiros p olíticos, Nos anos 70, o adven to da coletivo. 1 8
p p
cocaína como n ova n:er
p rincípios de o rganiz ação p olític a e uma consciên cia coletiva até então ine­ va modificou radica l men cadoria lucrati­
te as oportum'd ade� ara
xistentes no sistema p enitenciário brasileiro . Os limites dess a p olitização e p a rtir da p r isão. 1 9 A chefi· a do
cn rne organ iz a do a
Corn ando vm � o tr , fico
p o
a f orma p or ela assumida fora m descritos p or um ex-p risioneiro p olítico . m eio de ma nter alt � d e cocaína um
Quan do o entrevistei em 1988, ele ocup ava um cargo de resp onsabilid ade geralmente exigid as ara
os lu cros sem ter
que p agar � pohci_ a as alt
as p r o ina s
, os assaltos a bancos 2 De · , .p
numa secret ar ia mun icip al do Rio de Janeiro : "Na verdade, h avia ali um coca m a se torn ou O , . · 01s que tr afico de
p
i ci a l negoc10, um de
stacado membro da lide-
p o
enorme p otencial p ara rev olta p rincipalmente porque os valores dominan­ r ança do Comando (mora p
p r n

,, ag dor de uma favela da z


tes do sistema eram p ara eles [os p risioneiros] inalcançáveis. P ortanto não or a s omos auto-su on a N a rte) declar
- p . . ficientes" 2 1 Consequ.. entern ou:
veio a ser u ma revolta contra o sistema, mas uma revolta para conquistar sao olici al co ntra os t · e te, quando a repr es-
raficantes a umentou
n
o que o sistema tinha a oferecer. Os p risioneiros comuns her d ar am um ton Moreir . du rante O gov erno Wellm .
a Franco, em 1987
e 1988, tambe, m o nú mero
, g-
p ouco do discurso radical da esquerda; herdaram b oa p arte do sistema de cos aumentou significativam 22 d e assal tos a ban-
. en te Ern fms ' dos anos 80,
val ores da sociedade contemp orânea e muitas das p ráticas dos políticos ativi· da de criminos · surgm · uma
a su p lemen tar.. o . . tro de
tradicionais" . 14 Esse conserv adorismo básico, ap esar da formação "ra­ da classe média-alta' sendo .
seques pessoas da classe a lta e
o d'm hei r o do resg
dical'', a inda tende a dominar as a tuais relações dos grup os de tra fican­ a te u tT i izado ara com rar
coca ína nos p aíses r odu tor
tes com as favelas, p ont o que será examinado mais adiante. 1 5 es vizinh os.23 Em 1994, arma p
dos vieram incluir -se no ro men tos s o fistica -
p
.
p
l de mercad ona s a serern

r
Em meados dos anos 70, os p risioneiros p olíticos foram trazidos de grup os de traficantes, so bre . trafica das. Certos
tudo das favelas situ d s
volta p ara as p r isões do continente . O coletivo integrou-se ao restante da do aerop orto e da z ona ort , . s roxim idades
uana , começaram a es eciTiza p
a a na

p op ulação carcerá ri a e ficou conhecido como "lei de segu rança", p rovavel ­ de armas aos trafica ntes de r -se na ven da
p
outras fa velas q u
e qu�na
p
·
mente p orque mantinha a ordem entre essa p op ulação pun indo os comp a­
1 tra a invasão da olícia e de . . 2 rn roteger -se con-
. ou tr os grupos nv
diço- es fav oráveis, o tráfico ais. .. A ssi· rn, h ave
p
nheiros que cometessem furto e estupro. O grup o desenvolveu um código , n do con -
p
de eacam a e ou tras mercad
de conduta, base de um sistema interno de autoridade p arecido com aque­ com e1e, o envolvimento das oria s aum enta, e,
16 Valendo-se da consciência cornum'dades em que se a ch .
le existente n os sistemas car cerários dos EUA. tes. Como no final do s anos . . arn os tra fican -
70 e mic , io dos anos 80 os li'deres d
coletiva, a lei de segur anç a implantou um sistema de contribuições mone­ ou Coman do Vermelh
o estavam ms . a Fa l ange
tárias voluntárias p or p arte dos detentos, espécie de "vaquinha" para . talados em favelas or tod .
crescim ento do tráfico de drogas nes o o Rio, o
sas comum· dades i01
p
obter artig os básicos e também financi ar fugas d a prisão. Eles apren deram, qüência natura l. Os chefes da e · uma
conse-
Falange vi· am as favelas corn
com os p risioneiros p olíticos, a fazer greves de fome e a enviar cartas à im­ relativarnente seguro, on de o um redu to
eontavarn com algum ap010 · cornum· ta, n. o . 25
p rensa e outras entidades denunciando violações dos direitos humanos. Nelas o tráfico de drogas,
sobretudo maconha' Ja · ' exi· sti· a ha, dec ,
As autoridades carce rárias, considerando inconvenientes essas sendo a "boca -de-fumo" urn a das
a constante da vid
prop iciado p elos ganhos finan a na f a ve1� - Mas o
nov as táticas, integ rar am o grup o à mass a dos demais detentos, cont an ­ p oder
ceiros obtidos com a coc a m
do diluir sua força e organização. Ao invés disso , o p oder do coletiv o se narcotráfico urna im ortânci a conferiu a o
a sem precedente n .
fortaleceu e expandiu. Na tentativa de enfr aquecer a organização, as au­ ca da comunid ade . Embora
p vid ec nô mica e p olíti-
se desconheça a exata exten -
a a o

torid ades carcerárias transferiram os membros da l ei de segurança p ara Coman do, o fato é que ele cre �ao do p oder do
sceu bast t uran os o
out ras prisões, o que efetivamente difun diu e reforç ou a ind a ma is a idéia estive estudando a sua resen te ito anos em que
ça nas fav:�: 2�
de ação coletiva. Hoje, a organização é conhecida como F al ange Verme­ O Brasil é u m p aís onde a cocaín , . .
p
a e P[t ºP lmente . .
lha ou , mais recentemen te, Comando Ve rmelho, a maior e mais organiza­ exportada , e não roduzida � distnb u íd a e re-
e roeessada . A�sim, o
da de cinco organizações carcerárias indep enden tes e amiúde riv ais.17 dades ligadas à cocaín a vari volume das ativi-
p
a c!nforme a qua
Graç as à imp rensa, os atua is chefes do Comando Vermelho t omaram-se duzi· da nos princi a is aíses n tida de da d rog a que ,
, . e p ro -
fomec':dores, corno B ohvi
figuras p op ulares, se não he róis, entre os favelados e a p opulação em bia. O drástico aumento na a , Peru e Colôm -
p p
. roduçao de folh
geral. Hoje, a geração do "coletivo" dos anos 70 foi em gran de p arte subs- a de coca na B o l'ivi· a, de
mil toneladas em 1978 para p 35
171 mil. toneladas em 1985,
somente na re-
Um Século de Favela Coca ína e Poderes Paralelos no Pe r i fe r i a Urbano
240 B r a s i l e i ro 241

co d e coc a_�­ q� an to às priv ações fís ica s ) ge ralmen te cria m um sen timen to de lealdade
gião de Ch ap are (Healy, 1986:1 1 2), b em como o pes� d_? tráfi _
e id entid a d e com
(Mason et aln, u ma determinada c omunidad e e ta mbém com a con d i-º
na n a economia peru ana, estimado em US$1- l,2 bilh ao - d e fave lado .3 1 Fis icamen te as fave las me lhoraram muito n os úl
çao
ína dis ­
1993), têm amb os a ver com o maciço2incremen to no v al or da coca 25 anos , g raças sobretu do aos esfo rços d os morad ores, ma s continuam
tim os
8 Em 1994, a Polícia F ederal infor­
tribu ída n o Rio n o mesmo período . _ _
exemplificando a o p re ss iva d es igualda de re in an te n a s
mou ter ap reen d id o 1 1 ,8 toneladas de c oca
ína n a rota da C olômbia p ara ociedade b ra silei­
ra . No caso da Roc inha, os p rincipai s exempl os dessa
se te tonel adas de 199 � (1! S De­ des igualda d e s ã o
a E urop a e os EUA. E sse total supera as _
asil sao _b as­ os serv ços de ed uc açã o e saú de , tota lmente in ade qu
p artmen t of State, 1995). As cifras do tráfico de cocaína no B� � a d os . N os limi tes da
comumdade, apen as qu atro escolas primárias servem a mais de 1,5 m il
me n tados n os p aises an d in os .
tan te inferi ores aos bilhões de dólares movi
b e- es �u dan tes , numa p o pul ação d e 150 mil a 200 mil h abit
Mas os v alores regis trados indicam um ne gócio multimilionário que an tes . A s dema is
crianças tentam obter v a ga em esc o las públicas dos b a i
ne ficia um amplo segmen to d a popu1 açao b rasi·1 eira .29
- . rros vizinh os de
a classe m édia, ma s g eralmen te não conseguem . Cerca d e 15 creches e set
Ta l como s u cede com a maioria das atividades e conômicas e es tabelecim en tos p ré- esc o la res atend em a crianças d e
e
de dro gas no Rio est á es t tu­ até cinco anos . Na
maior p arte do crime or gan i za do , o tráfico
ru

co ín ibuída a p artir d as favel as e R_o�inha nã o há escolas secun dá rias, mas um dos cen tros comunitários ca­
rado hierarqu ic amente , sendo a ca a distr
to hco s oferece cursos p rofiss ion alizan te s pa r a ad o lescen
i ç ão , e v en­ tes . Exi stem ap e­
conjuntos p opulares, no extremo inferior da cad eia de d is tribu _
nas dms p� quenos pos t os d e saúd e para toda a comunid ade - um geri­
cl é i . O g a t �c�­
d ida princip almen te a uma cl ientel a
m d a s randes
do p rec ariamen te p e la p re fe i tura do Rio e ou tro pe
de asse
ide ntific o ( c n trario la ass ociaçã o de
d is tas do n arcotráfic o no Rio raramen te são .
ad s ao o
mor dores d a Roc mha . Quas e todos os serviç os m
amar ga dos p q n t fican­ � édicos têm que ser ab­
do que sucede na C olômbia) . Um a queixa
e ue os ra
sor v idos p el os h os pi ta is públicos in a dequad os de ba
men te s ã o toc ados , e nq n to os irros vizinhos d e
tes é que es ses " tub arões " anônimos rar a
ua
c l asses méd ia e a lta .
d istribuidores de classe b aix a são vio len tame
n te p erse gu idos . Dentro da
dis trib ui dores con stituem o A g rand e m a ioria dos moradores da fave la e stá empregad a na in­
estrutu ra de c lasses do narc o tr áfico, esses . , .
w M , ntro da es trut1:1ra soC1al d a_s dustri a ou n o se tor d e serviços or a em e xpansão, hav nd o
períod os d e
se gment o v uln er áv el e explorad o.
as de e
s e temi- desemp re go qu e refle tem as c ondiçõe s d e t rabalh o na s ociedade
fav e las, eles são ou rev erenciados ou relutantemen te respeitado em
geral. As crises econômicas por que passou o Bra sil na últim a década se
dos . S ua p resença j amais é n eutra .
,
;f
tradu zem , n o n ív e l l oc a l, elevado s índice s de d esem p re go , sub empre­

� o e tra b a lh o au to n omo , mas a fave la sempre conv iveu com vários


tipos d� ativi da�e econômic a no se tor informal, le gais ou ile ga is . A ex­
O contexto _
pansa o m ternaC1 on al d o tráfico de cocaína na última déca da afetou seria­
1 a 2 mi­
Atua lmen te estima- se que a popu lação fav el ada v arie de m��te as favelas e_ conjuntos populares cuja es trutu ra física é propícia à
as sur giram �� r
lhões de p essoas, dependendo de quem conta . As fav el ativ idad e c land e s tm a . Qualqu er at ividad e ilegal n o setor info r
ma l acarre­
de el ite quan to da c l� sse o p er ar i� ta con se qüên c ias qu e n ão existem n o caso d e muita s a ti vid ades
toda p ar te n a c idade, tant o em bairros "leg ais "
industrial. Sua popul ação varia de a lgumas centenas a mais de 200 mil no mesm o setor . Tal como es ta s úl timas , as a tivid ades c land est
inas ali­
os que vã o desde morros íngremes mentam e são alimen tad a s p elas d esiguald ad es sociais e econômicas .
moradores , e el as se s ituam em terren
sua forma de o�u p aç ão (se el� Po rém s ua ile galidad � re qu er certo ambiente, certo es paço que somente
até a la gadiç os . A to p o grafia d a fav ela e
sinuos os , p re feri dos p el�s tra �­ algu m as fave la s e c on1u ntos habitaci on ais p opula res p o d em
tem ruas l ar gas e urb anizáv eis ou becos propiciar .
l. A situaçao
i'i cantes) auxiliam su a " conv eniência" p ara a a tividade ile ga
p rtencer a
le gal d os terrenos de uma fave la também v aria, p ois podem �
,,

a en tid ad es re­
p articu lares, aos gove rnos municipal, estadu al ou fed eral, Cocaína, cliente la e poder comun itário paralelo:
ligiosas, às Forças Armadas ou mesmo aos p r ópri os fa v el ados . protetor es em nível local
a
Em geral as fave las são comunidades es táveis , com residência
vá g çõ , d p n Das 500 fav ela s e conjuntos habitacionais populares d o município
longo prazo e popu lações que ab rang
cari. oca (exc luind o os municíp ios da á rea me t ropolitana periférica ), pra ti­
em rias era es e e dendo de

quan do su rgiram . E ssa relativ a estabilidade p roduziu na maioria das fa­


: \)!. ,
,,
camente todas têm grup os d e trafican tes de d rog as , emb ora o â mbi to das
vel as uma coesã o soci al e um senso comunitá rio que (apesar das queixas
I
i',' ],

''
,1

i
Um Séc ulo de Favela
242 Co c a í n a e Poderes Para lelo s na Per i fe r i a Ur b a n a B ra s i le i ra
243

operações e o impact o lo cal variem consid eravelmente . N ma únic


� � �o­ quem quer que os traficantes suspeitem ser um inf ormant e é duramente
munidade, 0 número de pessoas economicamente envolvidas n o trafico punido - expulso da comu nidad e ou até mesmo ext erminado. Embora
p ode chegar a várias centenas. Nas comunidades maiores, a atividade li­ os m ora do res da favela não r ar o se sintam constr angid os com essa coope­
gada ao tráfico apresenta diversas especializações - p or exemplo, mu­ ração forçada, eles têm p ouco ou nenhum respeit o pel a p olíci a, que sem­
lheres que confe ccion am os papelotes ("endol adoras"),33 meninos que pre os tratou com desprezo e violência simpl esment e p or serem f avela­
são vigias ("olheiros"), meninos mais velhos que efetuam as entregas dos ou morarem num de termina do conjunto popu lar.
("aviões") ou vendem em p ont os da favela ("v apores"), adolescente s que O uso abusiv o da força e outros atos discriminatóri os contra as p o­
patrulham a área ostensivamente arm:dos ("s�gurança_s"), encarr;gado� pulações margin alizadas cons tituem f enômeno u niversal. Porém as con­
.
da cont abilidade, o "relações públicas 1unto a comunidade e o , dono seqüências desses at os va riam de acordo com as alternativas organizaci o­
do tráfico. Os m oradores se referem indistintamente aos traficantes como na is e sociais disponíveis p a ra a população oprimida. Nos bairros pobres
"o grupo", ,;a quadrilha", "a rapaziada" ou_, mais rec_en �emente , " o m_ovi­ das cidades dos EUA, a reação pode ser uma convulsã o urbana prol onga­
mento". Qualquer que seja a função exe roda, a maiona dos env ol�id�s da. No Rio, assim como em mu itos bairros pobres das cidades nort e-ame­
_
no tráfico vê neste uma das p oucas alternativas economicamente viave is ricanas, uma conseqüência a l ongo prazo é a a ceit ação, em vários graus,
a sua disposiça- o.
, º · 34
de um sistema alte rnativ o de segurança ou previdência.37
' (

A nature za da inte ração dos traficantes e a comunidade é determi- Por exemplo, em troca da "proteção" e do anonimat o que a comu­
nada pela personalidade, o estilo de liderança e a fi�osofia p �ssoa,l do nidade venha a o fe recer aos traficantes, ela pode espera r recebe r uma
chefe do tráfico. Tal interação inclui o apoio e a proteçao ofere cidos a co­ série de serviços, como segurança interna, dinh eiro p ara ambulância ou
munidade, a relação do grupo de traficantes com a associação de mora­ táxi até o h ospit al, dinhe iro p ara remédios, sopa d os pobres, creches, f es­
dores, a demonstração de força bélica e a extensão do consumo de dro­ tas infantis em ocas iões especiais e outras verbas de emergência em casos
gas entre os membros do grupo. São características de um "bo� don�": de extrema priv ação. Apenas uma parcela menor da comunidade p od e
mostrar preocupação com o bem-estar básico dos morad�res, evitar a �10- receber benefícios finance iros diretos desse sistema previdenciário alt er­
lência gratuita e desencoraj ar o uso de drogas entre o s J ovens . Esse tipo nativo criado pel o tráfico de drogas, mas a comunid ade e m geral se b ene­
de "don o" geralmente cresceu na comunidade , gozando aí de certo res­ ficia do sistema de segurança int erno propiciad o pel o grupo de trafican­
peito , mesmo entre os que não querem s aber do tráfico de dro gas. N a fa­ tes . N a ma ioria das fav el as e conjuntos populares, d elit os como roubo,
vela do Morro do Sossego, na Zona Norte do Rio, encontra-se um exem­ es tupr o e outros tipos de vi olência interpessoal costumam ser combati­
plo que bem mostra a natureza um tant o contraditória e cons er: adora do dos com ações igualmente violentas por parte do "dono", que pode im­
"bom don o". Em 1995, criou-se lá um programa pel o qual as crianças tro ­ por sua própria forma d e justiça. É comum ouvirem-se comentários co­
cavam armas de brinquedo p or lápis de cor e papel. Pe rgu ntada sobre mo o de um morad or da R ocinha que declarou: "P osso d ormir de p ortas
quem financiava o ma terial, a encarregada do pro grama respo� deu que e j an el as abe rtas . Ago ra não tenho me do que minha filha and e pela f a ve­
e ra O "don o".35 Um bom ex emplo de "don o" p ode r os o e respeitado er a la a uma da manhã".
"Meio Quilo", herói do Jacarezinho, uma das maiores favelas �o Rio Tal de claração mostra não só qu ã o important e é para a p opulação
(cerca de 150 mil habitantes). Meio Quilo foi morto e:11 1 �87, apos uma local a segurança propiciada pelos traficant es, mas também os mei os in­
audaciosa tentativa de fuga da pri s ão. Seu enterr o atram milh a res de pes ­
form ais de solucionar problemas atravé s do "c omp ort ament o anti­
soas. Duas semanas depo is d e su a mo rte, foi lançado um disco co� uma s ocia l". Assim como a socie dade em ge ral (a parcel a d os cid adãos que é
música em sua homenagem, e o segmento da comunidade que mais o ad­ de a lgum mo do atendida pelas instituições formais da sociedade ) defin e
mirava tent ou em vão erigir-lh e um bust o numa das praças públicas da o que é comp o rtamento aceitável ou co mp o rtamento abe rr ante, os gru­
favela. Já O sucessor de Meio Quilo costumav a ser d_e snecessariament� p os de traficantes que se tornaram p oderosos impõem à comunidade
violent o e pouco ligava p a ra o bem-estar da comunidade. Qua�do �01 seu próprio código , definindo que forma de vi olência é p ermitida e
morto' meses depois, poucos compareceram ao seu enterro, e nmguem quem pode praticá-la. A pe rcepção dos favelados - n a verdade, da maio­
lhe rendeu nenhuma h omenagem.36 ria da classe operária - de que pa ra eles a j ustiç a formal não funciona
Certamente é importante que os grupos de traficantes tenham o levou uma p a rcela dessa p opulação a aceitar um s ist ema d e justiça alt e r­
"ap oio" da comunidade, a qual não deve coope rar com a p o lícia. De fato, nativo. 38
Um Século de F avel a Coca ína e P o deres P a ralelo s na Pe r i fer i a Ur b a n a B r a s i le i ra
244 245

1987 p el a como tropa de choque em operações especia is. Duran te a fase mais re­
Tal aceitação foi comprovada nu m es tu do feito em
e mont u m p osto de pressiva do regime militar, ela foi incorporada às Forças Armadas em
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) / Rio, q u o u
N rt . Os advog a­ 1969, supostamente pa ra "defender os interesses da segurança nacional".
atendimento na favela do Morro da C oroa , n a Zona o e
tra p qu isa da Controlar a agitação social e política, inclusive comb ater a guerrilha, tor­
dos que lá trabalhavam consta taram que 56'X, da amos
es
que prefe­ n ou-se a j ustificativa p olítica para o emprego de táticas repress ivas con­
preferiam "meios informais" de resolver conflitos, contra 20%,
a (OAB, tra a população civil brasileira de tod as as cla sses. Após 1974, tendo o re­
riam processos formais e 24% que n ão expressaram preferênci
1987:50). 39 gime se convencido de que a ameaça política diminuíra , a Polícia Militar
grupos foi incumbida de comba ter o crime conve ncional, mas continuou recor­
A imprensa tem m ostrado uma tendência a roman tizar os
ela d o Ju ra­ rendo aos mesm os métodos repressivos e violentos usados contra a guer­
de traficantes e líderes como Meio Qu ilo e seu cole ga da fav
ste ai_n da na pris , apresentan­ rilha (Pinheiro, 199lb:172). O envolvimento da Polícia Militar na "guerra
mento, n a Zona N orte, o "Escadinha", e ão
a o crime" foi intensificado em 1977 por uma emend a que lhe concedeu
H ods c rrigir a s ini­
do-os com� bandidos sociais, m odern os Robin
�ão . d:
o a o

guind a tradi as m esmas garantias le gais vigentes n o final dos anos 60, " obliterando
qüidades de uma sociedade injusta e violenta, se o
es es m �1v1- a ssim as fron teiras entre a 'guerra' contra a guerrilha e o combate a o
Lampião, o mais fam os o bandido social do Brasil. Embora
s
co munid a­ crime comum" (Pinheiro, 1991b:173). Dessa forma, o Es tado brasileiro
duos p ossam sentir-se obrigados a dar algo em troc a a suas criou n ovamente um mecanism o de violência a o misturar questões co­
físic o da fave­
des, eles são antes de tudo negociantes que us am o espaço muns ou civis com a spec tos p olíticos e militares. Assim como juntara cri­
lc d peraçõ s para uma ativid a de al t a­
la ou conjunto po pular como p a o e o e

que e e paç s ja disp onível e minosos c omuns com presos políticos durante a dita dura, c ontribuindo
mente lucra tiva do s etor in formal. P ara ess s o e
s inadvertidamente para que o crime organiza do assumisse a s ua f orma
protegido, eles têm que oferecer algo em troca. Os s erviç os m e
� onad o
ci
n­ atual, o Estado n ovamente contribuiu para criar o mecanismo de violen­
.i
os pre sta e p orque as tid de
s ó são valiosos porque o Estado não
en a s e

,i g r nç - Polícia Militar e P olícia Civil - ta repress ão policial a o atribuir um papel e uma finalidade militares a
r s
,1

carregadas de o f e r e c e e u a a
te perseguem e uma força policial civil.
1
atuam como forças corruptas e repres sivas que geralmen
Por exemplo, torn ou-se c omum, no Brasil, a polícia efe tuar blitze
matam em vez de proteger.
nas favelas, a pretexto de perseguir criminosos, batendo à p orta dos mo­
radores, prendendo p or vadiagem os que não portassem documentos de
identidade, fazendo vôos rasan tes de helicóptero a ponto de arranca r as
Presença repressiva do Estado: violência policial, t elhas dos barracos, disparando armas indiscriminadamen te e extorquin­
corrupção e segurança paralela do dinheiro e droga s dos favela dos sob ameaça de prendê-los.4 1 Segun­
do me disse o chefe do B a talhão de Choque da Polícia Militar do Rio,
Nas favelas cariocas, a segurança intern a é o serviç o p úblic o mais quando grupos de traficantes rivais promovem tiroteios nas fa velas, a ta­
n otoriamente ausente e, logo, o pr incipal serviç o "al tern a tivo" p resta do refa da polícia torna-se mais fácil.42 Na verdade, tais ações criam uma s i­
pelas gangues de traficantes do Rio. Mu it as favela s e conjuntos têm um tuação em que a fronteira entre a a tividade policial e a criminosa desapa­
posto da Polícia Militar situado no espaço físico comunit ário, m as p ou­ rece, de m odo que a populaçã o da favela já n ão sabe m a is em quem
cos favelados confia m n ela o su ficien te p ara procurá-la quando surge confiar.43
algum problema. Ess a falta de confiança resu lta de uma long a tradição A segunda f orça, a Polícia Civil, é uma organização à pa isana com
de abu sos e violência praticados pela polícia bras ileira con tra as classes função sobretudo investigadora. Tem o duvidoso mérito de s er a m ais
inferiores em geral e contra o s mora dores de favelas e conjuntos em p arti­ corrupta das du as forças policiais . O fa to de a polícia ser corrupta no Rio
cular.40 e em mu itas outras cidades bras ileiras n ão chega a ser discutido aberta­
Tais abusos são cometidos com igual gra vid a de pelas duas p rinci­ m ente.44 Entrevis ta s com altos funcionários da polícia e do Judiciário pro­
pais forças p oliciais que cuidam da seguranç a p ública. N os ú ltimos 150 duziram observações como as seguintes: "poucos são os crimes cometi­
anos, o papel tradicional da Polícia Milita r tem sid o ga rantir a segurança dos sem o conhecimento e a permissã o da polícia"; "quando falamos de
pública (Holloway, 1997). Atua lmente, su a funçã o é servir c om o força pú ­ 'crime organizad o ', na verdade estamos falando da polícia"; " o grande
blica uniformizada pa trulhando a s ru as, controland o o t ráfego e a tuando problema do Bra sil é a impunidade". Num estudo sobre corrupção na Po-
Um Séc u l o de Fave l a Coca ína e P o deres Para l elo s na Per i fe r i a U r bana Bras i le i ra 247 1
246

i ta L emg rub er colh eu depoi­ do nas artes marciais africanas. Os c apoeiras serviam como guarda-costas
líci a Civil do Rio e m mea dos dos anos 80, Jul
a m ser corriqueiro o en volv
imen to �a_ r olí­ de pessoas influentes e ajudavam a manter a ordem em eventos públicos
mentos de policiais que d isser .
e rend a ihci ta � e como festas e procissões (Huggins, 1985:123). Mesmo ass im eram tidos
e que, qua nd o u ma f on te d
c i a em a tiv ida des ileg ais ,
:25), ª. p olicia pela polícia como um p roblema a exigir regulamentação e controle social
11

g a, p m as . Segu nd o Lemgru b er �198�


euo d o J ºgo d? (Hollow a y, 1989:674; 1997:206-11). Não seria descabido estabelecer um p a­
reas porque perdeu o dmh
ot eles rocu ra outr

está en tra nd o e m outras á


es
, . ,
s la n o . ralelo entre os capoeiras do século XIX e os atuais tra ficantes das favelas
p f n id d u m complemen to de seu �
bicho, que se­
ca n tes , começo� a � ra hcar envolvidos em ativid ades que são passíveis de repressão qu ando pratica­
oi co s era o

Além disso, a polícia, assim como os trafi


sem re

ntar a s nda. E id nt n­ das pelas classes inferiores e toleradas quando praticadas pela classe
qüestros nos últimos 10 anos p ara supleme
ua re v e eme
q p média ou os p róprios policiais , como, por exemplo , o tráfico d e drogas.
te a políc ia não opera num v
ácuo e sim reage às n o:mas ue reva lecem
alto memb ro Em ambos os casos, os grupos têm certas funções socia is p ositivas num
si a ju dic ial. Co mo d isse um
em outros segmen tos do
do, custa menos sub ornar um segmento d a socieda de no qual as insti tuições sociais e políticas n ão fun­
stem

do Ju diciá.rio do Rio, "para um advoga r- cionavam ou não funcionam. 8


4
memb ro d a P ol íc i a Civil n as
fases iniciais de um inqu érito do que subo
. . · ,, 46 Outras práticas h oje aceitas como manifestações cultura is válidas da
nar um JUIZ numa fase postenor . classe tr abalha dora foram igualmente reprimidas no Brasil no século XIX e
a corrupção e a v iolência
E mbora a sociedade em geral sofra com que início do século XX. Por e xemplo, a celebração pública do carnaval pelas
s inferi ores , sob retud o � s-
policiais, quem mais sofre são as classe n to da p ohcia no c lasses inferiores era proibid a e rep rimid a pela polícia numa ép oca em que
tos ref eren tes ao envolv ime
v ivem n a f avel a . D ocumen somente as pessoas brancas que tinham posses podiam comemorar nas
e carre ��°:en tos
a part ic ipação n a escolta d
narcotráfico comp rova m su ruas (Queiroz, 1985:18; Raphael, 1980:52, 54, 76). O candomblé e outras reli­
termínio d tr os p ol�ci ais cor­
de drogas e armas p ar a as fave las e no ex
e ou
O giões afro-brasileiras também foram declarados ilega is e passíveis de re­
rup tos, inculpand o os tra fica
n tes das favelas p or esses � s��ss�nat�s .
ol iciais p i n pressão policia l (M aggie, 1988). Tais práticas (ou pelo menos sua ver são
o massa cre p erp etrad o p� r p
exemplo ma is violen to foi
a a sa a
moderna) são hoje aceitas como válidas e legais e mesmo pra ticad as por
) contra 21 m ocentes que i_n ­ r
(agindo como um esquadrão da morte
o a

enas um mes de­ segmentos das classes médias. Mas o problema da dis tribuição e do consu­
eral, em agos to de 1993, a p
vam n a favela de Vigá ri o G mo de drogas continuou sendo um pre texto para o controle e a repressão
de oito meninos de _ru � no centro
p ois do massacre, também pela p olícia, e ­ das classes inferiores por mais de um século.
r- se de u m a �etaliaçao p e�o , �
do Rio. As p rimeiras versões diziam trata nt s d Vig no A o longo da história, as acusões de consumo e tráfico de drogas r e­
termínio de quatro memb ros
da P olícia Militar por tr afica _ 4
e a
caíram p rincip almen te sob re as classes inferiores e as minoria s. 9 P or
e

s sin os esta vam retali a nd �­


Geral,47 mas na verdade os p oliciais assa
o os tr
d i­ exemplo, em seu estudo in titulado Drugs and minority repression, John
eg ame_nt� - P or não tomar
fican tes p or terem-nos lesado num carr
me

suas fileiras , o E stado torn�u -s� Helmer (1975) diz que nos EUA, nos séculos XIX e XX, certas minorias
das contra os transgressores dentro de ia f01 foram injustamente acusadas de usar e distribuir drogas. Segundo ele, o
c úmplice e sóci o d o crime
. Nas favelas, �elo menos, a democrac
t t ­ sup osto uso excess ivo de ópi o pelos imigrantes chineses em fins d o sécu ­
uma "narcocracia ( ... ), send� � � eco
sub stitu ída pel a cri ação de
as es u ras
md , n lo XIX, de coca ína pelos negros n o iníci o d o sécu lo XX e de m ac onha
imento geral, dueto
nômicas e políticas resultado do envolv
e ueto o
pelos mexicanos durante a Dep ressão n ão p assava de mito criado duran­
tráfico de drogas" (Sage , 1989:49). te p erío dos de crise econôm ica. Em todos esses casos, as p opulações visa­
das estavam tirando vag as d os operários norte -americanos nos mercados
nte de traba lho em São Francisco, Nova York e no Sudoeste.50 Quer se trate
Definição do comportamento aberra de acesso a empregos, quer de acesso a outros tipos de recursos (como es­
stado ou as clas ses domi
­ paço ha bitacional nas áreas urbanas preferid as ), o uso de drogas como
Repetidamente , ao longo da história, o E lares
e práticas das classes popu pre tex to p ar a a repressão de classes tem sido generalizado em ambos os
nantes definiram certos comportamentos ã . O Bra­
e, portanto, passíveis d p países. Culpar as fave las pelos males da sociedade ligados ao consumo
como aberran tes ou anti-sociais
e re ress o

w ay (1989, 1997) e M artha H gg (1985 ) de drog as toma -se facilmente um pretexto para consider ar as favelas
sil não é exceção. Thomas H ollo
u ins

écu lo XIX e início do sécul_o XX � fonte de todos o s p roblemas socia is brasi leiros e p ar a rec lamar novamen­
estud aram a repressão policial, n o s
co tra

m J go mspua- te a sua erradicação.


'.

os "capoeiras", escravos e negros livres


q ue p rati cava esse o
248 Um Sécul o de Favela C o c a í na e P o deres Pa rale l o s no Per i fer i a Urbano B ra s i l e i r o 249

Não é facil mudar um sistema de repressão que já existe há 150 as favelas. Enquanto bandidos ou traficantes prestassem benefícios à co­
anos ou mesmo o comportamento adotado para fazer cumprir as suas munidade, esta lhes daria proteção. Segundo Orlove (1980:190), "a cum­
normas. Durante o primeiro mandato do governador Leonel Brizola plicidade dos camponeses, ajudando os ladrões a fugir, é talvez o fator
(1983-87), tentou-se melhorar o desempenho da polícia e do sistema cor­ crucial ( ... ). Quando hacendados e policiais tentam capturar os ladrões, os
retivo, no que tange aos direitos humanos, estabelecendo uma relação camponeses dizem não tê-los visto e não dão informações sobre seus mo­
melhor entre a Polícia Militar e a favela. Proibiu-se a polícia de efetuar vimentos. Já os ladrões de gado podem contar com a maioria da popula­
batidas de improviso e de prender favelados simplesmente por não por­ ção local para informá-los sobre seus perseguidores, especialmente a polí­
tarem documentos de identidade. O êxito de tal iniciativa depende do cia, e escondê-los se necessário".
segmento da população que é interrogado a esse respeito. Os moradores Os benefícios prestados à comunidade evidentemente variam de
das favelas reconheceram e apreciaram a mudança no primeiro mandato acordo com o contexto histórico e geográfico em questão. Os campone­
de Brizola. Mas uma grande parcela da população de classe média conde­ ses das montanhas peruanas, que se viam ameaçados pelo constante
nou o governador por seus métodos populistas e demagógicos, acusan­
avanço dos latifundiários sobre os cultivos e as pastagens comunais, sen­
do-o de incentivar o tráfico de drogas ao deixar a polícia de mãos atadas.
tiam-se "protegidos" por ladrões de gado que se recusavam a invadir
O comandante da Polícia Militar do Rio, que pretendia criar uma força
essas terras. Aos olhos dos camponeses, os ladrões de gado estavam limi­
policial mais operante e mais integrada à comunidade, admitiu com frus­
tando o poder dos proprietários rurais enquanto se aliassem aos campo­
tração a dificuldade de mudar em um ano ou dois uma mentalidade poli­
neses (Orlove, 1980:191). Duas décadas depois, a presença crescente do
cial formada ao longo de mais de 150 anos.5 1
Sendero Luminoso nas barriadas de Lima, numa nova escalada urbana
após a prisão de Abimael Guzmán, reflete a crise econômica, o aumento
da pobreza e uma calculada estratégia de oferecer bens e serviços (geral­
Visão comparativa de sistemas de poder paralelo mente "oferecidos" sob coação) em troca de fidelidade e apoio políticos
O advento de grupos políticos e sociais alternativos como reação às (ver Burt, 1994; Burt & López Ricci, 1994). E os moradores de um conjun­
desigualdades sociais está bem documentado em vários casos ao longo da to habitacional dominado por gangues, em Chicago (EUA), mesmo não
história: o fenômeno do banditismo (estudado por Eric Hobsbawm e aprovando a violência e a instabilidade decorrentes do tráfico de drogas,
Anton Blok na Europa meridional, por Benjamin Orlove no Peru e por "são no entanto obrigados a aceitar a mão-de-obra, os recursos e os servi­
Peter Singelman no Brasil);52 as gangues nos EUA (ver Moore, 1977; ços oferecidos pelas gangues de jovens", num contexto de serviços públi­
Jankowski, 1991; Padilla, 1992; Venkatesh, 1996); os cartéis do tráfico na cos precários e recursos financeiros escassos. "Os moradores se vêem di­
Colômbia (Bagley, 1986; Thoumi, 1987) e na Jamaica (Gunst, 1995), e Sen­ ante de um difícil dilema: aceitar o dinheiro e a mão-de-obra das gan­
dero Luminoso em áreas urbanas e rurais do Peru (Burt, 1994). Analisan­ gues ou lutar contra elas e receber pouco apoio da cidade" (Venkatesh,
do as causas do banditismo no sul da Itália, disse Hobsbawm (1969:17, 20) 1996:252, 254).
que este "tendia a se tornar endêmico em termos de pauperização e crise Quer se trate de camponeses, membros de gangues urbanas ou re­
econômica". O banditismo tornou-se "não um programa para a sociedade volucionários, a relação social e política resulta não só da injustiça social
camponesa, mas uma forma de iniciativa independente para fugir a cir­ percebida pela comunidade, mas também da possibilidade de tirar pro­
cunstâncias peculiares". veito dos "espaços desprotegidos" percebida pelos "bandidos". As gan­
O banditismo prosperou sobretudo onde a inacessibilidade e a ine­ gues norte-americanas que atuam nos bairros pobres da maioria dos
ficiência e complicação administrativas eram a regra. Descrevendo o fe­ grandes centros urbanos oferecem o tipo de segurança e proteção que a
nômeno do abigeato (roubo de gado) nas montanhas do sul do Peru em polícia raramente proporciona. Vários estudos recentes sobre as gangues
começos dos anos 70, Orlove observou que a inacessibilidade (falta de es­ urbanas nos EUA atestam a existência desses "serviços", como, por exem­
tradas e postos policiais) e a cumplicidade de camponeses dispostos a plo, proteção contra criminosos em outros bairros, contra comerciantes
oferecer guarida determinaram o êxito desses ladrões de gado. A descri­ exploradores ou contra empreiteiros interessados na desapropriação ou
ção feita por Orlove do reduto propiciado pelas comunidades campone­ "gentrificação" de certas áreas. Em todos os quatro estudos aqui citados,
sas bem poderia comparar-se às relações dos traficantes de drogas com uma longa tradição de assédio policial foi a causa primeira desse serviço
250 Um Século de Fave la Cocaína e Poderes Parale los na P e r i fe r i a U rb a n a B r as i l e i ra
251

de proteção mútua - as comunidades oferecendo às gangues u m refú­ mesmo eleger-se para o cargo, visando assim a "legitimarem-se" e a tor­
gio contra a polícia em troca da proteção dada pelas gangues contra pre­ narem-se respeitáveis na comunidade.
dadores não pertencentes à comunidade (incluindo assédio policial). A O caso a seguir foi relatado pela líder de uma favela da Zona
dinâmica da relação entre comunidade e bandidos é complexa e variável, Norte, uma mulher de 34 anos que se via constantemente pressionada a
assumindo às vezes o significado de protesto social ou político e outras dividir sua autoridade com o chefe do tráfico. Como ela era presidente
vezes parecendo refletir interesses mais práticos. Como assinalaram Blok da associação de moradores, que construíra e mantinha uma creche co­
e Orlove a respei to do banditismo no sul da Itália, "a imagem heróica do munitária, o chefe do tráfico pediu-lhe para assumir a vice-presidência
bandoleiro na consciência popular pode servir para despertar e manter da associação. Tal cargo lhe daria legitimidade e lhe permitiria prestar fa­
u m sentimento de protesto, mas geralmente o verdadeiro comportamen­ vores à comunidade. Como a creche empregava 10 moradores da favela,
to do bandido contradiz essa imagem" (Orlove, 1980:181). o traficante disse que poderia contratar cinco pessoas, que assim ficariam
Não raro os rótulos que a sociedade confere a membros das clas­ em dívida para com ele. Além disso, passaria a dispor de um espaço para
ses inferiores fornecem a própria identidade que os membros das gan­ realizar festas e outras atividades ligadas ao tráfico. A presidente procu­
gues (nas cidades dos EUA e da América Latina) podem usar para justifi­ rou diminuir seu isolamento e sua vulnerabilidade apelando para a co­
car suas atividades. "A reação mais óbvia era exercer o papel implícito munidade. Em vez de responder individualmente, convocou uma reu­
no rótulo de aberrante", disse Félix Padilla (1992:6) a respeito do compor­ nião da comunidade, a que compareceram 80 moradores. Os membros
tamento da gangue porto-riquenha em Chicago. "Como uma reação sim­ da comunidade responderam aos traficantes dizendo: "Olhem, estamos
bólica diante do mundo, a subcultura da gangue desenvolve sua própria muito satisfeitos com o trabalho da presidente. Ela é alguém que realmen­
lógica", afirmou Joan Moore (1977:37) em seu estudo sobre as gangues te luta pela comunidade, que realmente trouxe alguma organização para
de chicanas em Los Angeles. E a imagem criminosa projetada por alguns o morro. Se. vocês quiserem trabalhar com a gente, vamos unir as nossas
dos mais famosos traficantes nas favelas cariocas teve origem no rótulo forças, em vez de dividir o movimento". A presidente então explicou aos
de "marginal" aplicado ao favelado pelas classes média e alta, e também traficantes o modo democrático de dirigir uma organização de favelados:
na imagem romântica do bandido violento e anárquico projetada na im­ "Não vou substituir ninguém na minha chapa. A única maneira de isso
prensa do Rio. Ao proclamarem que estão executando a "lei do morro" acontecer é na próxima eleição. Se vocês quiserem, podem concorrer com
ou a "lei do fumo" (expressão que remonta à época em que a maconha sua própria chapa". Os traficantes não se deram por satisfeitos. Queriam
era o principal tóxico), os traficantes geralmente realizam a profecia lan- dividir o poder sem assumir as responsabilidades do cargo, e não houve
çada pe1a sooeº d ade "la' emba1xo".53
º
como resolver o impasse satisfazendo ambos os lados.
Tal situação ocorre com freqüência nas favelas e mostra o frágil
equilíbrio entre a rudimentar organização democrática da comunidade e
Drogas e autoridade "legítima" em nível local
as forças autoritárias locais com potencial para submeter as lideranças le­
A presença do narcotráfico em quase todas as favelas e conjuntos gítimas. Como disse o ex-presidente de uma conhecida favela da Zona
populares do Rio tem graves conseqüências para o poder e a autoridade Sul, "é preciso ter habilidade política e jogo de cintura para saber quando
legítimos, bem como para a independência da organização política em se deve resisitir e quando se deve ceder". Um dos maiores problemas
nível local. Praticamente todas as favelas e conjuntos contam com asso­ para os líderes comunitários é definir sua posição perante a lei, especial­
ciações de moradores cujos dirigentes são eleitos pelos membros da co­ mente durante hostilidades entre gangues ou invasões policiais para pren­
munidade. A associação e seus líderes representam a comunidade junto der ou matar traficantes de drogas. Os líderes comunitários, muitos dos
às estruturas administrativas formais do município ou do estado e cum­ quais já foram maltratados pela polícia, conhecem muito bem a aversão
prem o papel de "mediadores" perante a sociedade. À medida que os da comunidade aos violentos métodos policiais. Eles têm pouco respeito
grupos de traficantes se tornam mais poderosos nas favelas, aumenta a pela polícia, mas, mesmo assim, freqüentemente são acusados de tomar
tensão diante da ameaça, real ou potencial, à autoridade eleita. Como partido, tachados ou como cúmplices dos traficantes, caso não cooperem
dispõem de poder financeiro, além de um formidável arsenal, os trafican­ com a polícia, ou como informantes desta, caso não imponham sua autori­
tes geralmente procuram influenciar a política da autoridade local ou dade como líderes comunitários para manter a polícia afastada.54 Cada
252 Um Século de Fave la Cocaína e Poderes P a ra l e l o s na Per i fe r i a Urbana Bras i l e i ra
253

vez mais nota-se a tendência a expulsar ou mesmo assassinar os líderes co­ O Estado e o tráfico de drogas: criando a p ercepção
munitários que são tidos pelos traficantes como informantes da polícia.55 da ameaça e recriando o clientelismo
Tal situação é evidente sobretudo na favela de Santa Marta, onde
os traficantes de drogas souberam tirar proveito da aversão da comuni­ O geralmente frágil equilíbrio de poder numa comunidade, bem
dade pela violência policial. Protestar contra a violência da polícia mas como os esforços dos líderes comunitários para criar um movimento
manter silêncio sobre a violência dos traficantes acabou por fortalecer local forte diante de ameaças como a representada pelos grupos de trafi­
esta última. No final dos anos 80, os traficantes conseguiram assumir o cantes podem ser prejudicados pelas estratégias de governos estaduais
controle da associação de moradores apoiando uma chapa de candidatos ou municipais que costumam usar a presença de traficantes para seus
considerados simpáticos aos seus interesses e, logo, menos capazes de en­ próprios objetivos políticos. Há décadas que as favelas constituem uma
volver a polícia nas questões de segurança da comunidade. Em 1990, os mercadoria política para o sistema. Nos anos 50 e antes da repressão im­
traficantes invadiram a sede da associação de moradores para impedir a posta pelos militares de linha dura nos anos 60, quando as eleições eram
instalação de um telefone comunitário, provavelmente temendo que isso permitidas e os partidos atuavam com relativa liberdade, um dos poucos
viesse a tornar a favela mais acessível à polícia. O secretário da associa­ recursos políticos à disposição das favelas eram as relações clientelistas
ção protestou contra o ato dos traficantes e foi morto dois meses depois, estabelecidas com os políticos (Leeds & Leeds, 1976; Leeds, 1978). Os
acusado de ser informante da polícia. No seu enterro, o presidente da as­ votos eram dados (ou pelo menos prometidos) em troca de pequenos fa­
sociação acusou os traficantes de terem assassinado o secretário. Três vores concedidos pelos políticos, seja a determinados indivíduos nas fa­
meses depois, o presidente e sua mulher também foram mortos.56 velas, seja à comunidade em geral. A relação entre as favelas e o sistema
Devido à desconfiança dos favelados contra a polícia, tornou-se era simbiótica, cada lado procurando obter do outro algum benefício ou
cada vez mais difícil estabelecer um diálogo entre as associações de mo­ serviço. Assim, os canais pelos quais os favelados lidavam com o sistema
radores de favelas e a polícia. Os moradores nunca sabem se seus direi­ se limitavam a uma série de manipulações de vínculos de patronagem
tos civis serão violados ou se a própria polícia está envolvida com os tra­ num contexto em que os partidos políticos eram sobretudo elitistas e a
ficantes. Um presidente de associação comentou: "Estamos num beco inexistência de partidos de massa dava pouca margem a ganhos expressi­
sem saída. Acaba sendo uma contradição perversa, na qual a ausência do vos através do sistema partidário formal. Corno em todas as relações de
Estado [sob a forma da polícia] se torna benéfica. Quanto mais o Estado patronagern em que os recursos são desiguais, os políticos procuravam
intervém, mais ele tenta ultrapassar os limites, e mais fica abalada a cre­ criar urna dependência das favelas para com seus benfeitores em época
dibilidade da associação de moradores".57 de eleições. Só se prometia numa eleição o suficiente para deixar a favela
O desenvolvimento de sistemas paralelos de poder, em parte devi­ necessitando ainda de favores na próxima eleição e novamente disposta
do à repressão e à corrupção das forças oficiais, significa que os morado­ a trocar favores por votos.
res das favelas ficam entre duas forças armadas: a polícia e os grupos de Em meados dos anos 60, surgiu no âmbito estadual urna federação
traficantes. Estudo feito recentemente no Rio por uma organização não­ de favelas que procurou questionar as políticas estaduais e nacionais pri­
governamental de direitos humanos destaca o dilema fundamental de se meiramente responsáveis pelo surgimento das favelas. Tal grupo exigia a
ver acuado entre essas duas formas de violência. Protestar contra a vio­ prestação de serviços que viessem eliminar as relações clientelistas e de­
lência e a corrupção da polícia em manifestações coletivas é permitido pendentes. Mas na atmosfera política cada vez mais repressiva e todavia
pelas regras do processo democrático e pode fortalecer as associações lo­ clientelista do regime autoritário no final dos anos 60 e início dos anos 70,
cais. Mas protestar contra a violência dos grupos de traficantes significa a federação como corpo político independente não chegou a durar muito.
pôr em risco a própria vida e acaba por dividir e destruir a ação coletiva Tornou-se mais um dos vários canais clientelistas do governo Chagas
no âmbito local. Portanto, o clima de medo imposto pelos traficantes des­ Freitas no anos 70, o qual se transformara numa bem azeitada máquina
trói o senso de coletividade (Centro Bento Rubião, 1994:64). Essa tensão política dentro do regime rnilitar.59
nas relações intracomunitárias tem graves conseqüências para a viabili­ Os eventos das duas últimas décadas criaram urna dinâmica algo
dade da participação popular, em nível local, na democratização. Por diferente entre as favelas e o sistema. Os movimentos oposicionistas sur­
causa da ação dos grupos de traficantes, as associações locais correm o gidos nos últimos anos do regime militar, no final dos anos 70 e início
risco de perder seu papel de mediadoras junto ao Estado.5 8 dos 80, trouxeram consigo o ressurgimento de um movimento favelado
254 Um S é c u lo de

com um novo senso de conscientização política - o conceito de cid ad a­


nia e o direito a exigir do Estado aquilo a que os cidadãos faziam jus. As
favelas p ass aram assim a dispor de muito mais recursos políticos que
nos anos 50 e começos dos anos 60, antes de ter início a dura repressão
Favela

l
�;
<t�
. Co ca í n a e Poderes Pa rale l o s na Per i fe r i a U r b a na

narcotráfico, diminuir os índices de crimin alid ade no Rio e incorporar as


favel as ao resto d a cid ade com direitos de cid ad ani a em seu mais amplo
sentido. Na verd ade, a operação não cumpriu nenhum desses objetivos.
Prenderam-se alguns traficantes, mas os índices de criminalidade conti­
B r as i l e i ra 255

sob o regime militar. Mas o clientelismo não desap areceu inteiramente. nu aram aumentando em tod a a cid ade (Fernandes & C arneiro, 1995:31),
Na verd ade, lid ando com um eleitorado mais exigente e sofisticado nas e violaram-se gravemente os direitos humanos de favelados inocentes.6 1
favelas, o governo julgou necessário enfrentar essa nova conscientização Mais uma vez, os que mais se benefici aram d a campanha foram a classe
com esforços mais diligentes para manter as relações clientelistas existen­ média - que experimentou uma temporária e ilusória sens ação de segu­
tes. Velhas práticas, hoje conhecidas como "política da bica d'águ a ", rança - e os políticos que diziam estar limp ando o Rio.62 E, mais uma
foram retoma das em maior escala no final do século XX, sej a pelos políti­ vez, prevaleceu uma visão estreita do problema d a violência como estan­
cos que concorriam a mand atos, seja pelos que, já os exercendo, queriam do associado ao tráfico nas favelas.
manter sua base eleitoral. O surgimento de forças polític as p aralelas em A exploração política do problema d as drogas pode assumir diver­
decorrência do tráfico de drog as facilitou o restabelecimento do clientelis­ s as formas. Usar o medo d a população propondo medid as palia tiv as que
mo, como mostra o exemplo a seguir. não raro só exacerbam a violência nas favelas é apenas uma delas. Outra
Nesse caso, trat a-se de autorid ades públicas que usam a presenç a forma mais gritante são as alianças entre candid a tos a cargos públicos e
de grupos de traficantes como pretexto para intervir à força em nome d a grupos de traficantes, as qu ais costumam ocorrer nas comunid ades onde
seguranç a pública e d a boa administração, valendo-se desses grupos estes últimos são p articularmente poderosos. Tais vínculos fazem lem­
p ara ter maior acesso político à comunid ade. Alguns meses antes d as brar os anos 50 e 60, qu ando o cabo eleitoral de um candid a to era geral­
eleições municip ais de novembro de 1988, o então governador do estado mente um líder político d a favela que, graças à su a influência pessoal,
do Rio de Janeiro, Moreira Franco, tentou cumprir uma promess a feita podia garantir-lhe certo número de votos. Mais recentemente, sobretudo
no pleito de 1986 - acabar com o tráfico de drogas e a violência n a cid a­ nas favelas com lideranças instruíd as, os líderes comunitários vêm ten­
de num prazo de seis meses. Moreira Franco adotou um plano de caça e t ando permanecer neutros, a fim de promover o livre acesso e um diálo­
extermínio cujo objetivo era livrar as princip ais favelas de su as gangues go aberto com todos os candidatos. Mas a essa tendência se opõe o cres­
de tra ficantes, esp antando assim os temores d a cl asse média de que o Rio cente poder dos grupos de traficantes. É sabido que candidatos inescru­
estav a se tornando, como dizia a imprensa, "uma nova Beirute". Após o pulosos pass am por cima d a autorid ade legítima nas favelas, preferindo
mass acre de vários trafic antes na Rocinha, o governador criou um pro­ obter um acesso mais exclusivo através de grupos de traficantes que lhes
grama que pretendia oferecer mais serviços de s aúde, assistência jurídi­ permitam fazer camp anha à vontade ou que pressionem a associação de
ca, um banco de empregos e "todo o saneamento básico que faltava há moradores a proibir a campanh a de outros candid atos. Um líder comuni­
anos". Sendo uma das maiores favelas do Rio, a Rocinha obviamente re­ tário d a Rocinha disse ter sofrido ameaças de morte por fazer c ampanh a
presentav a uma virtu al mina de votos. Mas a pretensão do governador para um candid a to a prefeito que não era do agrado d a a ssociação de mo­
de livrar a Rocinha da violência e do tráfico de drogas três meses antes radores nem dos traficantes. Os grupos de traficantes podem também
das eleições não mereceu muito crédito entre os moradores, que já ti­ pressionar os moradores a votarem de determinad a forma . Os votos para
nham escutado ess as promessas muitas vezes. Um ano depois, pouco res­ o candidato são trocados por dinheiro e influência legítima para os trafi­
tara além de promess as, e na eleição seguinte os assessores do g��erna­ c antes, que geralmente querem livrar-se d a im agem de "margin al" fazen­
dor estav am negociando com os novos traficantes p ara que permitissem do amigos influentes nos postos certos.63 Assim wmo a educ ação políti­
aos canditados de seu p artido fazer campanha livremente.60 ca dos presos durante a ditadura militar, os qu ais aprenderam a usar os
Como j á foi dito, de outubro de 1994 a julho de 1995 efetuou-se métodos d a ação coletiva p ara sua própria sobrevivência, o envolvimen­
uma operação semelh ante, a ch amad a Operação Rio. A idéia já vinh a to dos grupos de traficantes na política eleitoral visa igu almente à sobre­
sendo cogitad a desde maio de 1994, mas a decisão de enviar o Exército vivência . M as ao aprenderem as regras do jogo eleitoral, os trafic antes
para ocup ar determinad as favelas só foi de fato posta em prátic a pouco podem estar contribuindo não só para distorcer o processo democrático
antes d a s eleições governament a is e presidenciais de novembro. A oper a­ com a ajud a de políticos inescrupulosos, mas também p ara criar uma
ção foi anuncia da como um plano p ara desarmar as favelas, livrá-las do forma ainda mais perniciosa de clientelismo.64
256 Um Século de F av e l a
Cocaína e Poderes Paralelos na P e r i fe r i a U rb a n a Bras i l e i ra
257

Conclusões Notas
Em termos comparativos, a extensão e o montante do narcotráfico
1. Por práticas democráticas entende-se aqui as que são conducentes à liberda­
no Brasil são bem menores que nos países andinos. Também o grau de
de de expressão, à realização de eleiçôes, à liberdade de associação e à livre ati­
violência associado a esse tráfico é consideravelmente menor em todo o vidade dos partidos políticos. Tais práticas são usadas como critérios distintos
Brasil. Por que então deveriam os pesquisadores se preocupar com uma da noção de democracia substantiva, pela qual a igualdade de oportunidades
atividade que, numa perspectiva global, é relativamente insignificante? para todos os segmentos da população através de direitos como educação,
A resposta está na idéia de que a governança democrática em nível local saúde e moradia deve ser considerada parte essencial da democratização. Uma
é fundamental para a democratização da sociedade organizada.65 Numa das principais questões no atual debate sobre a transição democrática é saber
sociedade como a brasileira, n a qual os segmentos mais pobres da popu­ se as variáveis sociais e econômicas devem ser incluídas na definição de demo­
lação costumam ser ignorados pelo Estado a não ser sob a forma de re­ cracia. Ver, por exemplo, a argumentação de Terry Karl (1990:2). Ela define de­
pressão policial, a necessidade de criar formas locais autônomas de toma­ mocracia em termos de práticas políticas, mas assinala a importância dos as­
da de decisões e de prestação de serviços torna-se uma questão de sobre­ pectos substantivos para a sobrevivência das democracias no contexto latino­
vivência. Quando tais formas são ameaçadas por sistemas de poder para­ americano. Diz Karl (1990:13): " Ironicamente, as condiçôes que permitem às
lelos, autoritários e amiúde violentos, os sistemas democráticos formais democracias perdurar a curto prazo podem restringir o seu potencial para so­
da nação tornam-se irrelevantes. lucionar os enormes problemas da pobreza e da desigualdade que ainda carac­
A forma que o tráfico de drogas assumiu nas favelas - em grande terizam o continente (...). Ainda que essas democracias garantam maior respei­
parte devido à incapacidade do Estado para prestar serviços básicos e à to à lei e à dignidade humana, em comparação com regimes anteriores, elas
repressão por ele promovida ao incutir a noção de perigo para justificar podem mostrar-se incapazes de realizar reformas substantivas que melhorem
a ação policial ou militar violenta - levou à criação de uma nova rede a situação dos cidadãos mais pobres. Se tal vier a ocorrer, elas se tornarão víti­
de relações clientelistas. Em muitos casos, os próprios traficantes criaram mas de sua efetiva consolidação, e as transições democráticas dos anos 80 que
perdurarem poderão vir a ser as democracias 'congeladas' dos anos 90".
uma simbiose forçada - "serviços" previdenciários alternativos em
troca de proteção e anonimato -, minando a autoridade dos líderes lo­ 2. Ver, por exemplo, as atas inéditas da conferência Modelos de Desenvolvi­
cais legitimamente eleitos. Durante os oito anos em que estive acompa­ mento e Eliminação da Pobreza na América Latina, organizada pelo Progra­
nhando as relações entre grupos de traficantes e associações de morado­ ma Latino-americano do Centro Woodrow Wilson, Washington, D.C., 1-3 de
res, a autonomia destas últimas foi-se desgastando paulatinamente . O dezembro de 1993, particularmente o trabalho de Charles A. Reilly, "Revis­
que antes era definido pelos líderes comunitários como um frágil equilí­ iting participation and reinventing empowerment: NGOs and local authori­
brio de forças coexistentes tornou-se hoje o domínio dos grupos de trafi­ ties in Latin America". Ver também Reilly, 1994.
cantes na maioria das favelas.
3. Ver os relatos na imprensa carioca a partir de 17-8-1987.
O Estado brasileiro usou a presença dos grupos de traficantes
como pretexto para táticas repressivas que, nesse período de redemocra­ 4. As estimativas da população favelada são notoriamente incoerentes e impre­
tização, só têm legitimidade quando certas atividades são definidas cisas. A população da Rocinha varia de meros 32.966 habitantes (Cavallieri,
como aberrantes, anti-sociais e passíveis de coerção. Paradoxalmente, tal 1986:21) aos 200-250 mil habitantes geralmente citados na imprensa. A estimati­
processo criou uma situação em que, para as favelas, é preferível a omis­ va absurdamente baixa baseia-se nos números oficiais do Instituto de Planeja­
são do Estado quando este se faz representar pela polícia e as forças de mento Municipal do Rio de Janeiro (Iplan-Rio), extraídos do Cndnstro de fnvelns
segurança. O Estado e os candidatos que procuram dele fazer parte conti­ de 1983. O Cndnstro foi elaborado pela Secretaria Municipal de Desenvolvi­
nuam com sua prática tradicional de granjear votos com promessas, mento Social (SMDS), tomando por base o censo de 1980 realizado pelo Institu­
usando a violência associada ao tráfico de drogas e a falta de serviços nas to Brasileiro de Geografia e Estatística (II3GE). Estes últimos números são consi­
derados problemáticos pelo pessoal da SMDS. Mas há incoerências nos pró­
favelas como pretextos para ofertas clientelistas. Daí o surgimento de sis­
prios números do Iplan-Rio relativos ao mesmo período. Por exemplo, enquan­
temas de poder paralelos no vácuo deixado pela falta de estruturas for­
to uma publicação do Iplan de 1986 (Cavallieri, 1986:20) registra um total de
mais realmente protetoras. No Rio de Janeiro, o Estado se omite em mui­
722.424 favelados, o Cndnstro de fnvelns (lplan-Rio, 1983:5) fala em 1,7 milhão. O
tos aspectos fundamentais, mas continua pronto a intervir para tirar
Cndnstro contabiliza 377 favelas, mas uma publicação municipal de 1988 regis­
proveito de situações criadas por tal vácuo.
tra 1,6 milhão de pessoas morando em 480 favelas e 487 loteamentos clandesti-
258 Um Século de Favela
Coca ína e Poderes Paralelos na Periferia Urbana B r a s i l e i ra 259

nos (Bielschowsky, 1988:11-2). Neste trabalho, considerei mais precisas a s esti­


10. Existe uma interessante semelhança entre o Brasil e a Jamaica no tocante às
mativas mais elevadas. conseqüências da ação do Estado na orientação e na forma do tráfico de drogas.
5. Nas favelas, a cocaína está sendo consumida em maior quantidade do que Ver a análise de Gunst (1995) sobre o papel do governo jamaicano na repressão
antes, mas a maconha continua sendo a droga preferida, talvez pelo preço. O à produção e à venda de maconha, criando assim espaço para o tráfico de cocaí­
crack é encontrado nas ruas de Belo Horizonte e São Paulo, mas só de vez em na e crack e para o desenvolvimento das gangues na Jamaica e nos EUA.
quando nas do Rio de Janeiro, o que talvez indique o poder relativo dos trafi­
cantes para mantê-lo fora de circulação. 1 1 . Sobre as origens da Falange Vermelha na ilha Grande, ver o relato de
Lima (1991), um de seus fundadores, e o estudo de Coelho (1987).
6. Entende-se aqui por violência estruturnl ou violência institucionalizada as con­
dições que causam ou conduzem a uma distribuição extremamente desigual 12. Disse Coelho (1987:1 14) sobre as prisües em meados dos anos 70: "as de­
de recursos básicos, como serviços de saúde precários ou inexistentes, educa­ ploráveis condições dos detentos e o abandono do Estado tiram toda a credi­
ção pública e transporte de massa deficientes, e serviços urbanos que resul­ bilidade à implementação de políticas mais humanas, obrigam a população
tam em elevados índices de subnutrição, mortalidade infantil, evasão esco­ carcerária a emprender uma luta brutal para obter um mínimo de conforto e
lar, alcoolismo e outras características de uma população urbana carente. reforçam a propensão natural do sistema para ser fechado, rígido e repressi­
Essa lista, conquanto não exaustiva, é típica da maioria dos países em desen­ vo". Desde então, as condições das penitenciárias melhoraram um pouco
volvimento e de uma parcela crescente das populações urbanas dos EUA. (ver Americas Watch, 1989).
7. Usei deliberadamente a expressão mais genérica, periferia urbana brasileira, 13. William da Silva Lima (1991 :47-9) disse que os dois grupos não coexis­
embora este estudo se baseie principalmente no caso do Rio de Janeiro. O tiam sem tensões e que os prisioneiros políticos de classe média queriam
Rio possui características singulares - como sua configuração geográfica, manter uma separação - sua identidade como prisioneiros políticos distin­
seu papel como principal pólo turístico brasileiro, seu propalado nível de vio­ tos dos prisioneiros comuns. Tal separação contradizia "uma velha tradição
lência e a forma específica que aí assumiu o crime organizado -, mas tam­ carcerária pela qual os prisioneiros políticos e revolucionários, quando com­
bém apresenta certas tendências em comum com várias outras grandes cida­ partilhavam o mesmo 'chão e pão', passavam a compartilhar também o
des brasileiras. Curtas viagens exploratórias a São Paulo, Porto Alegre e Belo mesmo ideal". Os a tos dos prisioneiros políticos tinham motivações políti­
Horizonte permitiram-me identificar algumas das variáveis cruciais para a
cas: visavam não só a contradizer a ditadura militar, que dizia não haver pri­
formação de "poderes paralelos": tráfico de drogas nas favelas, altos índices
sioneiros políticos no Brasil, mas também tornar a opinião pública nacional e
de corrupção e violência policiais, e sistemas de ensino e mercados de traba­
internacional ciente de sua dura situação. Mesmo reconhecendo a estratégia
lho que oferecem aos adolescentes poucas opções econômicas "legítimas".
política, a "massa" considerava essa postura elitista. Sobre a colaboração
8. Embora este texto analise as conseqüências do narcotráfico para a vida so­ entre revolucionários e "presos comuns" nos anos 30, ver Ramos (1953).
cial e política das favelas, a violência associada ao crime organizado no Rio
de Janeiro tornou-se uma preocupação da população brasileira em geral. Se 14. Joan Moore fez observação semelhante em seu estudo (1977) sobre as gan­
por "crime organizado" entendia-se antes o jogo do bicho, agora a expressão gues chicanas de Los Angeles. Embora desafiassem o meio exterior (gangues
designa popularmente as organizações que, tendo por base as favelas, estão rivais e comunidade anglo-saxônica) com pichações, discursos e vandalismo
envolvidas em tráfico de drogas e, secundariamente, assaltos e tráfico de simbólico, o verdadeiro desafio, sobretudo para os membros mais velhos,
armas. Embora a população em geral esteja ciente da existência do crime or­ era vencer no mundo anglo-saxônico e adquirir certa respeitabilidade. Segun­
ganizado, sobretudo através da mídia, são os moradores das favelas e conjun­ do Moore (1977:38), "as gangues se orgulham muitíssimo de seus membros
tos habitacionais populares que convivem diariamente com a violência e a ar­ que venceram no sistema anglo-saxônico (...). Os membros mais velhos da
bitrariedade dos sistemas paralelos de poder. poderosa gangue de Clanton formaram uma associação que hoje promove
reuniões com boas orquestras de dança, boas bebidas e outros sinais de su­
9. O regime militar ficou no poder de 1964 a 1984. Teve diversas fases, desde
o período relativamente mais brando sob os generais Castelo Branco e Costa cesso".
e Silva (1964-66) até os anos mais repressivos sob Médici (1970-73) e Geisel 15. Vários autores que abordaram o banditismo social na América Latina as­
(1974-78). A abertura gradual para o processo democrático durou de 1978 a sinalaram o seu conservadorismo básico, dizendo que "não raro o banditis­
1984, sob Figueiredo. Sobre a evolução do regime militar, ver Alves (1985). mo representa uma adaptação, mais que uma resistência, a um regime explo­
As medidas em questão foram impostas durante a fase repressiva do final rador" e que, "nesse processo, contribui para manter tal sistema" (Joseph,
dos anos 60.
1990:10).
260 Um Século de Favela
Cocaína e Poderes Paralelos na P e r i fe r i a U rb a n a B r as i l e i ra 261

1 6 . Moore (1 977:93-127) abordou uma dinâmica semelhante e m seu estudo 21 . Relatado em entrevista com o ex-repórter policial Valério Meinel, cujo ro­
sobre as gangues chicanas de Los Angeles. O capítulo intitulado "Prisões e mance Avestruz, águia e cocaína é um relato ficcional levemente dissimulado
barrios" descreve as complexas relações existentes entre as gangues de barrio, de certos segmentos do crime organizado no Rio.
a comunidade e as organizações com base nas prisões. 22. Antônio Carlos (Caio) Ferraz, líder da comunidade de Vigário Geral, diz
17. O nome original do Comando Vermelho era Grupo União Grêmio Recrea­ que o traficante da favela, Flávio Negão, ao ser perguntado sobre o que faria
t�vo e Esportivo do Presídio Ilha Grande. O nome Falange Vermelha (e poste­ se as drogas fossem legalizadas, respondeu: "Podem legalizar, mas a gente
normente Comando Vermelho) foi criado pelos funcionários do presídio, que encontra outro negócio" . Ver Ferraz (1995) .
queriam passar a imagem de um perigoso grupo militar politicamente subver­ 2 3 . Entre 1989 e 1992, o número de seqüestros n o estado do Rio de Janeiro au­
sivo. Os nomes Falange Vermelha e Comando Vermelho foram então usados mentou 1 33'X, (de 39 em 1 989 para 124 em 1992) . Os índices continuam eleva­
pela imprensa e "pegaram" a partir dos anos 70. Essa informação foi revelada
dos, tendo havido 90 seqüestros em 1994 (Fernandes & Carneiro, 1 995:17).
em entrevista com um romancista e ex-repórter policial bem familiarizado
Mas estes não são praticados somente por traficantes. O envolvimento da po­
com aquele período. Como explicou William da Silva Lima (1991:83-4), "o Co­
lícia em seqüestros foi noticiado recentemente no artigo "Golpe no bom as­
mando Vermelho ( . . .) não era uma organização, mas principalmente um tipo
tral", publicado na revista Veja (1 nov. 1995, p. 75-6) .
de conduta, um modo de sobreviver em tempos difíceis. O que nos mantinha
vivos e unidos não era uma hierarquia nem uma estrutura material, e sim 24. As armas são obtidas de várias maneiras. Podem ser roubadas de arse­
uma simpatia que desenvolvemos uns pelos outros na época mais difícil de nais militares ou importadas por via aérea ou marítima, graças a funcioná­
nossas vidas" . rios da alfândega (sob j urisdição da Polícia Federal) que aceitam suborno
para deixar a mercadoria entrar no país sem notificar as a utoridades. Entre­
1 8 . Edmundo Campos Coelho (1988: 1 14) distingue entre a "Lei de Seguran­
ça" dos anos 70, mais "normativa", e o atual Comando, mais calculista e vol­
vistas feitas em 1 994 com altos funcionários da polícia no estado do Rio reve­
lam que o contrabando e o tráfico de armas são hoje considerados um proble­
tado para o lucro, comparando dois líderes representativos: "William [da
Silva Lima, da velha geração de bandidos] exercia uma espécie de poder nor­ ma muito pior do que a venda de cocaína . Em artigo para o Ncw Ti11!es, jornal
mativo; Escadinha [bandido mais jovem], um poder remuneratório. A 'Lei de Miami, Elise Ackerman (1995) mostrou como se efetua o contrabando de
de Segurança' preconizava um envolvimento de natureza moral; os novos lí­ armas de Miami para o Brasil.
deres, um envolvimento de natureza calculista". 25 . Segundo William da Silva Lima (1991 :85): "Começamos a nos instalar nas
1 9 . Cumpre distinguir entre o crime organizado do narcotráfico, dos assaltos favelas por uma questão de segurança. Respeitávamos a comunidade e éra­
a banco e dos seqüestros, tal como praticado por grupos como a Falange (ou mos bem recebidos".
Comando) Vermelha, e a organização contraventora do jogo do bicho. Os "bi­ 26. As versões jornalísticas sobre a extensão do poder da Falange ou Coman­
cheiros" têm presença marcante nas favelas, mas não dependem de relações do Vermelho devem ser vistas com reserva, embora dêem alguma noção
simbióticas como as que existem entre as favelas e os traficantes. No Rio, os desse poder. Carlos Amorim (1993:29) menciona uma estimativa de 1 996, do
pontos de jogo do bicho estão em toda parte e gozam de relativa liberdade,
jornal O Globo, segundo a qual 90% das 480 favelas eram dominados pelo
enquanto o tráfico de drogas se concentra nas favelas, exigindo assim maior
grupo, ou seja, cerca de 2,5 milhões de habitantes do Rio. Uma análise mais
cooperação entre moradores e tra ficantes. Outra diferença fundamental entre
realista da atual situação, tomando por base entrevistas feitas com líderes
essas duas formas de crime organizado é a base essencial de seu poder. O
das favelas em j ulho de 1 994, sugere antes um esquema de alianças do que
jogo do bicho, mesmo não sendo destituído de violência, sempre dependeu
propriamente uma organização, dividindo-se essas alianças entre dois gru­
de um processo de negociação e captação de clientes em que a estrutura per­
pos, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. As organizações de trafi­
sonalista e paternalista de cada grupo (geralmente chefiado por uma só pes­
cantes das favelas costumam aliar-se a um ou outro grupo, sem um controle
soa) é mantida por laços de lealdade do tipo familiar. A natureza mais coleti­
rígido ou geral.
va do tráfico de drogas se impõe pelo uso ou ameaça de violência. Este últi­
mo ponto foi levantado por Luís Antônio Machado da Silva (1994:164). 27. Em toda a literatura recente sobre tráfico de drogas na América Latina, rara­
mente se menciona o Brasil. São exceções uma nota de Peter Reuter (1985:90),
20. Segundo William da Silva Lima (1991 :85), os custos e riscos associados ao
afirmando que quase toda a cocaína chega à Europa através do Brasil, e um ar­
roubo de bancos superavam o dinheiro obtido: "o assalto a bancos não é tão
compensador quanto se pensa. Requer muita gente, e, quando a polícia detec­
tigo de Velez e Lado (1995), que analisa o potencial do Brasil como superpotên­
cia do narcotráfico. No noroeste da Amazônia brasileira começou-se a cultivar
ta a presença de um bando especializado, a repressão aumenta para todos".
Um S éc u l o de F ave l a
262 Coca í n a e P o deres P a r a l elo s na Per i fer i a Urba n a B r a s ilei:��

um tipo de cocaína chamado "epadu", mas a quantidade é rela tivamente insig­ du tores de folhas de coca (cn111pes11zos), os transportadores de coca (zepes ou 1
nificante comparada à cocaína dos Andes. motobones) e os produtores de sulfato (pisacocns). A especialização continua,
28. Vários pesquisadores que escrevem sobre a Bolívia, o Peru e a Colômbia envolvendo menos pessoas, até o produto refinado chegar ao seu destino e a
falam da dificuldade de estimar o valor econômico total do tráfico de cocaína "narcoburguesia" acumular seus lucros monopolistas (ver Suárez Salazar,
num determinado país. Por exemplo, Alvarez (1992) diz como é problemático 1993:88, 90) . Tirante os conhecidos chefões colombianos que foram captura-
estimar todo o potencial agrário e a quantidade de mão-de-obra envolvida, a dos ou mortos nos últimos anos (só para serem substituídos por outros), os
fim de determinar o valor da produção de coca no Peru. Segundo ela, o valor que mais lucram com cocaína costumam manter uma conduta discreta e não
agregado fica entre 500 milhües e 1,2 bilhão (2 a 4'X, do produto interno bruto raro gozam de certa proteção contra ilcusações. Falando da situação no Peru,
do Peru), numa indústria que gera de 3 a 4% de todo o emprego no país. Na Edmundo Morales (1990:102) cita um ditado local que diz: "quem está por
Bolívia, país produtor que mais influencia diretamente a quantidade de cocaí­ cima não pode brincar com fogo porque tem rabo de palha".
na que entra no Brasil, a produção de coca em 1987 representou quase um 31 . Nos anos 60, quando iniciei minha pesquisa nas favelas, o termo "favela­
terço do total da produção agrícola nacional no mesmo ano. Em 1988, totali­ do" era usado pelas classes média e alta em sentido pejorativo, equivalendo
zou 6,4% do produto nacional bruto boliviano e quase 60% de toda a produ­ a "marginal" ou "criminoso" . Hoje, muitas vezes é usado como símbolo de
ção do setor manufatureiro. Cerca de 150 mil pessoas participam do ciclo identidade pelos próprios moradores das favebs, geralmente em relação ao
coca-cocaína (cultivo da coca, produção de sulfato e indústria de transforma­ "exterior", denotando uma espécie de orgulho de classe, como por exemplo
ção), o equivalente a 7% da população economicil mente ativa tfa Bolívia (Ma­ "eu sou favelado" . Geralmente o termo não é usado desse modo dentro das
chJdo, 1992). Parn um estudo abrangente tra timdo do villor econômico da co­ favelas. Para uma análise dos usos políticos do termo dentro das favelas, ver
caína, ver Heilly (1995) . As estimativas do montante das exportações ilpre­ Segala (199 1 :317-8).
sentam uma série de problemas inteiramente diversos e números também di­
vergentes. Analisando as dificuldi1des pilra computM as receitas ilegais pro­ 32 . As condições econômicas se deterioraram bastante na última década em
venientes das drogas, Francisco Thoumi (1995:199) diz que os lucros variam todo o Brasil, mas o Rio sofreu um declínio particularmente acentuado, per­
entre US$2 e 5 bilhües por ilno. Sobre o valor econômico do ciclo coca-cocaí­ dendo terreno para São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre em termos de
na, ver também Tullis (1995, esp. caps. 2 e 5) e Bagley & Walker (1995) . investimento industrial e financeiro. Estudo recente do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatístirn (II3GE) revelou que no estado do Rio de Janeiro, nos
29 . As estimativas do montante do tráfico de cocaína no Rio são ainda menos anos 80, il renda reill dos 20% mais pobres da população diminuiu 24%, en­
fidedignas do que os dados sobre coca e cocaína apresentados para os países quanto a renda per capita global do estildo Ciliu 15%. A incapacidade para atrair
andinos. As mais acessíveis provêm de diários paulistas e cariocas e de sema­ novos investimentos, somada a uma drástica redução do investimento públi­
nários nacionais, mas nenhuma é particularmente confiável, pois a maioria co federal e a uma diminuição de 50% no emprego no setor da construção
das publicações tem sua própria agenda política com relação a essas estatísti­ civil, acarretou uma proliferação de empregos no setor informal, a maioria
cas tão problemáticas. Consta que, em 1987, as favelas mais ativas realizaram dos quais desvinculada do sistema previdenciário nacional (Oliveira, 1991 :7) .
aproximatfamente US$350 mil mensais cada, perfazendo os 66 pontos de Isso tudo no contexto da tendência, observada no país nos anos 80, de redu­
venda no Rio cerca de US$10 milhões por mês. Ver o artigo "A explosão da ção do emprego assalariado e, logo, do número de brasil�iros com direito aos
droga nos guetos do Rio", publicado na revista IstoÉ (2 set. 1987, p. 21-2) . benefícios previdenciários (IBGE, 199<-l:xxv) . Estudo da pesquisadora Jane
Numa análise mais recente sobre o volume do tráfico de cocaína no Rio, Julia­ Souto de Oliveira (1991 :6), do II3GE, mostra que, na difícil tarefa de medir o
na Resende (1995:61), repórter de O Estado de S. Paulo, menciona 344 pontos tamanho do setor informal, é muito tênue a linha de separação entre empre­
vendendo mensalmente um total de duas toneladas de maconha e cocaína, go, desemprego, mendicância e atividades ilegais. Analogamente, estudo de
chegando a 962 quilos o total vendido por mês nas 15 favelas mais ativas (não Sônia Rocha ( 1994: 1 26), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
se mencionam cifras). A dificuldade de obter estatísticas precisas sobre o nar­ revela que, de nove capitais pesquisadas, o Rio era uma das duas em que a
cotráfico decorre da estrutura centralizada em que este é efetuado. Além parcela da população pobre aumentou nos anos 80, de 27 para 32%.
disso, a quantidade considerável de cocaína desviada por vários agentes poli­
ciais sugere que a polícia não estaria interessada em divulgar estatísticas preci­ 33. A palavra vem de dólar, com referência ao fato de ser verde o papel geral­
sas sobre drogas. mente usado para enrolar as trouxinhas de maconha. Outra das poucas fun­
ções desempenhadas por mulheres é il de "mulas", que transportam grandes
30. A complexa hierarquia do narcotráfico se patenteia em todos os países pacotes de cocaína (dois a três quilos) para pontos de venda em outras fave­
nele envolvidos. Nos países que produzem e processam cocaína, a camada las. Geralmente as mulheres têm participação limitada no tráfico existente
mais baixa e explorada é constituída pelos pequenos proprietários rurais pro- nas favelas porque os homens que disso se ocupam costumam ter uma visão
264 Um Século de Favela Cocaína e Poderes P a ra l e l os na P e r i fe r i a U rbana B r a s i l e i ra
265

tradicional d o papel delas. Pa ra uma análise d o papel das mulheres no trá fi­ 40 : Ver o estudo de Ma ria Victoria Benevides (1985:239) sobre a violência po­
co de d rogas e dos casos relativamente raros em que elas têm aí posição des­ _
licial e a necessidade de preencher cotas diá rias de prisões. Tais cotas são
tacada, ver Zaluar (1994:224-34, esp. cap. 23). � ais facilment �p reenchid � s �rendendo-se moradores das favelas que sejam
v1stos pela policia como cnmmosos em potencial. Os abusos da polícia lam­
34. Em sua etnografia do Morro da Cruz, a maior favela de Porto Alegre, Ro­ ,
bem foram documentados por Chevigny ( 1991) e Americas Watch (1993b).
bert Shirley (1990:265) diz que a principal atividade econômica na comunida­
de é o tráfico de d rogas, que emprega "um grande número de jovens da re­ 4 1 . A �ntropóloga Alba Zaluar (1983) estudou a Cidade de Deus, conjunto re­
gião, p rovavelmente às centenas, como 'olheiros' e 'aviões'". _
s1denc1al popular construído nos anos 60 na periferia do Rio para abrigar os
35. Agradeço ao arquiteto e planejador urbano Manuel Ribeiro por ter me moradores das favelas erradicadas. Zaluar registra um comentário feito fre­
transmitido essa informação. Sobre outro "dono" no Rio, ver Vieira (1985), q�entemente pelos adolescentes que optaram por juntar-se aos traficantes:
que apresenta uma longa entrevista com Flávio Negão, da favela de Vigário "E a polícia que cria os bandidos". Menciona igualmente o "p rocesso de re­
Geral, morto recentemente. p ressão-medo-revolta" entre os jovens e a presença ameaçadora da polícia,
por ela p rópria testemunhada inúmeras vezes durante seu trabalho de cam­
36. Em sua esclarecedora etnografia da política e da vida associativa na favela po. A delegacia local nem mesmo se preocupava em esconder que torturava
de Santa Marta, na Zona Sul do Rio, Atílio Machado Peppe (1992:432) chama os que fossem detidos, culpados ou não: "ao contrário, esse fato notório faz
a atenção para o risco de, a longo p razo, o bom dono vir a torna r-se um mode­ par te da imagem da polícia todo-poderosa, que inspira temor " .
lo para os jovens da favela . Segundo ele, "os bandidos que são estrategicamen­
te 'bons', 'charmosos' e 'sociáveis' podem alcançar seus objetivos espúrios 42. Entrevista feita n o Rio e m julho de 1994. Esse comentário pa rece dizer
mais facilmente que os tipos tacitu rnos e b rutais de outras gangues". nas entrelinhas: "Eles que se matem uns aos outros, pois assim não temos
que fazê-lo" . Não há nenhuma consideração para com os membros da comu­
37. Na verdade, já existiam sistemas previdenciários alternativos nas favelas
nidade, em sua maioria inocentes e cuja vida é assim posta em perigo. Ver
bem antes dos traficantes de d rogas. Alison Raphael (1980:38) fala do papel
dos "bambas" no policiamento e na manutenção da ordem nas favelas nos também a descrição da ação violenta da Polícia Militar durante a guerra
entre bandos rivais de traficantes na favela de Santa Mar ta em agosto de
anos 20.
1987 (Machado, 1992:397-8).
38. O desgaste das instituições oficiais e o surgimento de instituições alterna­
tivas também já foram vistos como conseqüência do tráfico de drogas na Co­ 43 . Num seminário sobre a violência u rbana e na mídia, o coronel Nazareth
lômbia. Segundo Thoumi ( 1987:47), "um efeito ainda mais importante sobre Cer queira, comandante da Polícia Milita r do estado do Rio, assinalou o enor­
o governo é o enfraquecimento das instituições oficiais que ocorre l1uando me destaque que a mídia confere ao a rsenal possuído pelos traficantes. Se­
muitas atividades começam a sair do âmbito do sistema legal ( . . . ). Por exem­ gundo ele, dá-se pouca atenção à corrupção policial, a "grande arma de que
plo, a segurança pessoal começa a ser propiciada pelo setor privado ( . . . ). Mas dispõe o crime organizado para poder agir livremente" (Faperj, 1993:37) .
.·. como na economia clandestina não se pode fazer cumprir os contratos por
44. O que está dito a seguir se baseia em entrevistas com Antônio Carlos Bis­
meio do sistema oficial, surge um novo sistema de justiça em que as questões
caia, ex-procurador-geral do estado do Rio de Janeiro; Hélio Luz, recém-no­
costumam ser resolvidas com violência ( . . . ). Daí a impotência das instituições
meado chefe da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro; outros magistrados
formais para proteger adequadamente os fracos quando se eleva o nível de
agressão social ( . . . )" . Mesmo havendo na Colômbia uma analogia com a situa­ do Rio de Janeiro, e membros do Judiciário e de entidades de direitos huma­
ção brasileira, uma diferença importante é que, na Colômbia, essas institui­ nos de Belo Horizonte e Porto Alegre. Ver também a entrevista com Hélio
ções funcionaram no passado, enquanto no B rasil elas nunca funcionaram Luz na reportagem de Xico Vargas e Teima Alvarenga, " Um estranho no
efetivamente para o segmento da população mais afetado pelos traficantes. ninho", p ublicada na revista Veja, 23 ago. 1995. p. 5 .
Portanto as instituições alternativas criadas pelos traficantes vieram preen­
45. Ver também Lemgruber (1985). Sobre o envolvimento d a Polícia Civil e m se­
cher uma lacuna que sempre existiu.
qüestros praticados recentemente, ver as declarações de Hélio Luz na matéria
39 . Segundo o estudo da OAB, as penas aplicadas aos que violassem a "lei "Golpe no bom astral", publicada em Veja, l nov. 1995. p. 75-6. Relatório inter­
do fumo" iam desde a prisão domicilia r até a execução sumária, passando no da Polícia Civil, recém-liberado, diz que 80'X, dos policiais (9.600 numa força
por medidas intermediá rias como ser barrado em certas áreas da favela, ex­ de 12 mil) eram desonestos e estavam arrecadando 1 milhão de dólares por mês
pulsão temporá ria ou permanente da favela, espancamento, atirar na mão de extorquindo dinheiro de traficantes e seqüestradores. Ver Schemo, Diana Jeano.
um ladrão ou condenar à morte um estuprador . A common bond: fea r of each other . Tlze New York Times, 24-12-1995. p. Al5.
266 Um S é c ulo de F a vel a Co c a í n a e P o deres P a r ale l o s na Per i fer i a Urb a n a Bra s i lei ra
267

46. Entrevista pessoal com um membro anônimo do sistema de justiça penal, de Brizola, a tentativa do governo estadual de criar um novo modelo de rela­
em 17-7-1995, Rio de Janeiro. ções entre a comunidade e a polícia se concretizou num projeto piloto intitula­
do Centros Comunitários de Defesa da Cidadania . Criados inicialmente em
47. Ver Americas Watch (1993a); Ventura (1994, esp. p. 48-52, 67, 191); e Fer­ três comunidades, os centros deveriam contar com postos locais de defesa
raz (1994). Ferraz é líder comunitário e diretor da Casa da Paz em Vigário civil; defensores públicos; escrivãos municipais para emitir carteiras de identi­
Geral. Em números que se aproximam daqueles registrados nos bairros po­ dade e de trabalho, bem como certidües de nascimento, casamento e óbito;
bres de cidades norte-americanas, o grupo etário mais afetado pela violência postos locais das polícias Civil e Militar; serviços de mediação; tribunais de
ligada às drogas é o dos adolescentes, sobretudo garotos entre 12 e 17 a��s. pequenas causas; assistentes sociais para tratar de problemas familiares e be­
_
Quatro quintos dos óbitos nessa categoria decorrem de intervençao policial nefícios previdenciários; uma agência de emprego, e um banco.
ou guerras entre bandos (Fernandes & Carneiro, 1995:14).
52. O tema do banditismo social, sobretudo após os trabalhos seminais de
48. Peter Singelman (1975:60) estudou fenômeno semelhante no Nordeste Hobsbawm, Primitivc rcbcls e Bn11dits, tornou-se um filão aparentemente ines­
brasileiro, onde eram frequentes os conflitos entre cangaceiros e "coronéis" gotável. Para uma ampla discussão do fenômeno no tocante à América Lati­
Os coronéis tinham suas próprias milícias independentes, cujas atividades se
na, ver Gilbert Joseph (1990). Meu estudo não pretende entrar na discussão,
assemelhavam às dos bandidos. Segundo Singelman, "a diferença era que os
e sim apontar certas analogias históricas com as precondições que levam ao
coronéis, por controlarem a polícia e a justiça, podiam rotular de criminosos
banditismo em suas várias formas (rurais e urbanas) e com as conseqüências
os cangaceiros".
do banditismo.
49. O Brasil (especialmente o Rio) não foge a essa regra. Ver o estudo de Júlio
53. A distinção entre "lei do morro" e "lei do asfalto" certamente já existia
César Adiala (1986), para quem o mito vinculando o uso de maconha pela muito antes da presença dominadora dos traficantes de drogas. Sobre as
população afro-brasileira às suas origens africanas serviu para fortal�ce� a complexidades da distinção, ver Segala (1991 ). Nos últimos anos, porém, as
política de discriminação racial no Brasil. Segundo o ex-defensor publico
expressões assumiram novas conotações, e "lei do morro" passou a significar
Lizst Vieira (1985:80, 84), "não é a classe média que é acusada. Os acusados o poder dos traficantes.
nos tribunais são os pobres, os setores populares". Os filhos das classes
média e alta subornam os funcionários antes de serem indiciados: "Os que 54. Nota-se uma dinâmica semelhante entre os plantadores de coca no Peru,
têm dinheiro escapam à indiciação". as forças do Sendero Luminoso e as forças de segurança do governo peruano
empenhadas na erradicação da coca. Os plantadores de coca se vêem numa
50. Essa argumentação também foi formulada num livro de Mathea Fa�co
_ situação análoga à dos líderes favelados cariocas. Para o governo peruano, o
(1992), advogado que serviu como subsecretário de Estado para questoes m­
plantio da coca serve de apoio político ao Sendero, enquanto o Sendero vê na
ternacionais ligadas a narcóticos no governo Carter. Explicando a adoção do
recusa a plantar coca uma forma de apoio ao governo. Como assinalaram
Marijuana Tax Act em 1937, durante a Depressão, quando os tr�bª}hadores
, Mason e Campany (1993:3), "quem planta coca arrisca-se a sofrer duras san­
estrangeiros eram vistos como uma ameaça ao emprego, Fale� diz: t�ndo o
ções por parte do governo, e quem se recusa a plantar coca arrisca-se a sofrer
público associado essas drogas a minorias �aciais e est�ª!;geiros pengosos,
, sanções por parte do Sendero". Analogamente, os migrantes que vieram
criaram-se certas atitudes populares que persistem ate hoje . para as imediações da Carretera Central, em Lima, fugindo da violência na
51. Em entrevistas concedidas em 1988, 1991 e 1994, o coronel Carlos Magno região de Ayacucho 1 viram-se entre dois fogos: as pressões do Sendero em
Nazareth Cerqueira, comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, expres­ Lima para que lhe prestassem favores e as suspeitas da polícia de segurança
_
sou grande frustração por ter que lidar com práticas e atitu�es arraigadas (Smith, 1992:134).
dentro da polícia. Nilo Batista, então secretário de Justiça e vic�-governador
55. A Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) registrou
do estado, supervisionava as polícias Civil e Militar e assumm o governo
mais de 25 assassinatos de líderes favelados entre 1987 e 1995.
quando Leonel Brizola decidiu concorrer à presi �ência �º i'.1ício de 1994. Fa­
-
lando sobre o modelo de reorganização dos serviços policiais para a comum­ 56. Esse relato se baseia em entrevistas com líderes comunitários de Santa
dade, Batista (1994:70) afirmou em entrevista publicada: "o que precisamos Marta em 1992 e na versão dos fatos fornecida por Machado (1992:429-30).
reformular são as relações dentro da corporação, e isso é um processo gra­ Dois jornais cariocas concorrentes, Jomnl do Brasil e O Globo, encheram-se de
dual". A dificuldade de modificar instituições policiais há muito arraigadas acusações e contra-acusações referentes ao envolvimento de líderes comuni­
foi extensamente documentada em 1992 por Guaracy Mingardi em estudo tários com os traficantes de drogas. Porém o fato de esses líderes estarem ou
que examinava as malogradas tentativas do governador paulista �ranco Mon­ não ligados ao tráfico é irrelevante para a questão que realmente importa.
toro de promover reformas duradouras na Polícia Civil. Nos d01s mandatos Em todo caso, o poder inescrupuloso dos traficantes e o dilema dos líderes
268 Um Século de Fave l a
Cocaína e Poderes P a ra l e l o s na Periferia Urbana B r a s i l e i ra
269
com relação à polícia significa que toda a com unidade está constantemente
ameaçada pela violência de d uas forças armadas. nando Henrique. O acordo entre os governos estadual e fed erill para reillizar
operações mil i tares em conj unto foi firmado em 31 de ou tubro. Foi ini cial­
57. A generalização d esse fe nômeno pa ra o u tras grande s cidades b rasileiras mente combatido pelo goven1ildor pedetista em exercício e pelo cand i dato
é assinalada no estu do de Teresa Caldeira (1992:183, 190) sobre os e feitos e a pedetista ao governo, por representa r uma vir tual a meaça aos direitos h uma­
perpe tuação da violência em São Pa ulo. Referindo-se a um bai rro operário nos. O candidato do PSDB responsabilizou as políti cas libera is do PDT pela
(u m dos vários bairros pa ulistas exa minados), ela diz que " el es tem em tanto e scalada da violência e do tráfico de d rogas, diz e ndo e sta r o Rio d e sp roteg i ­
a polícia, que os confund e com criminosos, quanto os criminosos, que os .
do e necessi tando de um a intervenção federal. A vitória de Fernando Hen ri­
ameaçam em suas comunidades (...). O prole tariado se vê paralisado entre o que no primeiro turno dava-lh e condições de apoia r a interve nção. Quando a
me do da polícia, o me do da r e taliação dos cr iminosos e (...) a visão de que o opinião pública torno u-se favorável à intervenção, ambos os canditados de­
sistema j u d icial é incapaz d e propiciar j ustiça". Caldeira conclu i: "Um dos fend era m a idéia, mas o do PSDB vence u o pleito. Ve r Americas Watch
e fe itos m ais paradoxais da arbitra r ie dade e inj u stiça constant eme nte sofridas (1996:14) e Resende (1995:22).
pelas classes prole tárias é que o i mpério da le i passa a ser visto como m ais
u ma form a d e inj u stiça". 63. Os traficantes ta mbé m fazem alianças com donos de negócios legais na fa­
vela, visando a obter vantage ns econôm icas e políticas. Machado (1992:407)
58. V er também o comentário de Alba Zaluar (1994:95): "A intimidação de descrev eu a aliança que funcionou na favela de Santa Marta em 1988/89,
testemunhas e líde res d e associações de moradores em vári as partes do esta­ qu ando os traficante s u sava m negóci os locais pa ra a lavagem de dinh eiro e
do do Rio de Jane iro tem g raves conseqüências, pois el i mina o que veio a ser também para cri ar vínculos com o PDT d e Brizola. O PDT assumira a pre fei­
u ma saída para o ciclo d e pob re za e violência: a reivind i cação dos dir e itos tura em 1988 e queria derrubar os dirigentes da associação de moradores
políticos, sociais e civis como parte desta nação, como seu s cidadãos". (que já estava m no cargo há oito anos), porque e les formava m com o Par tido
dos Trabalhadore s (PT). Entendendo que seria melhor alia rem-se ao PDT, os
59. Para uma análi se da máquina de Chagas Freitas, ver Eli Diniz (1982, esp.
traficante s se prontificara m de bom grado a aj uda r a destituir os pe tistas da
cap. 4: "Articu lando bases d e sustentação"). Esse pe ríodo também é analisa­
associação.
do por Valladares (1978) e Gay (1994).
60. V er, em particular, Adriana Bacellar, "Rocinha vive de prome ssas", Jomnl
64. Sit uação análoga, porém nu ma escala maior, crio u-se na Colômbia, ond e
o tráfico d e drogas em grande escala levou os chefões a procurarem obter in­
do Brasil, 12-9-1988, C i dade, p . 5. O fato de o Estado u sar a a meaça à seguran­
fl uênci a política. Ca rlos Lehder (atualmente cumprindo pena d e prisão nos
ça para promover sua própria agenda política certamente não constitu i novi­
EUA) fundou um pa r tido político, o Movimento Cívi co d e Liberación Nacio­
dade. Além do trabalho de Charle s Tilly, Brown (1990:259, 268) observou,
nal, caracterizado pelos observadores como " uma espécie d e mistura eclética
com relação ao Egito nos anos 20, que a d e finição do banditismo como pro­
d e fascismo e ana rquismo" (Bagley, 1986:95). L ehder atraiu seguidores nos
blema nacional tev e papel fundamental na formação do Estado. U m motivo
bairros pobres d e várias cidad es colombianas, onde ele e seus capilngas dis­
pelo qu al o banditismo merecia tanta atenção era que os governantes egípcios
. tribuía m grandes som as de dinheiro.
"podiam promover seu ambicioso progra ma de formação do Estado mvocan­
do uma a meaça à segurança e u ma crise nacional da l ei e da ordem causada 65. Ver a análise d e Jonathan Fox (1994b:106) sobre a importância da demo­
pelo banditismo. Se o banditi smu era um problema nacio�al, �n �ã � o Estado cratização em nív el local pa ra a consolidação da d emocraci a em nív el nacio­
e gípcio te r i a que enfr enta r o d e safio; te ria qu e c riar novas mshtmçoe s ou for­ nal: "A persistência de enclaves a u toritá rios pod e pôr em risco a consolida­
talece r as já existe ntes, a fim de v encer a a meaça recém-descoberta". ção de!}1ocrá tica em nív e l nacional. Velhas práticas exclusivistas não desa­
parecem por causa d e decretos ne m por causa da transferência do poder nas
61. As v iolaçõe s dos direitos h umanos ocorridas d urante a Operação Rio
capitais nacionais".
far tamente documentadas no re latório feito em 1996 pela Hu man Rights
e stão
Watch/ Americas (ver Americas Watch, 1996) e Resende (1995).
62. Obviamente, a política pa r tidá ria e as qu estões e leitorais fora m fatores de­ Referências bibliográficas
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EM JUNHO DE 1997, Flávia e Catarina, apoiadas por diferentes or­
V a lla da res, Licia do Prado. Passa-se u 111a casa: a11álise do progra111a de renwçíio de
ganizações, da "favela" e do " asfalto", 1 procuravam iniciar mais um pro­
favelas do Rio de Ja11ciro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
jeto na favela Santa Marta.2 Sua idéia era juntar, no aprendizado de jardi­
Velez de Berlin er, Maria & Lado, Kristin . Brazil, the emerging drug super­ nagem, adolescentes de famílias em situação mais precária, encarregan­
power. Tra11s11atio nal Orga11izcd Cri,ne, 1 (2):239-60, Summer 1995. do-os posteriormente de cuidar dos jardins de Botafogo. A iniciativa partiu
Venka tesh, Sudhir Alla di. The ga n g in the commun ity. ln: Huff, C. Ronald de Flávia, seguindo uma linha de atuação social que parece estar se difun­
( ed .) . Gmzgs in A111erica. 2 ed. Thousand Oa ks, Calif., Sa ge , 1996. dindo pelo mundo, basta ver a semelhança desse projeto com outro já de­
senvolvido com sucesso em Barcelona, onde meninas prostitutas transfor­
Ventura, Zuenir. Cidade partida. São Pa ulo, Compan hia das L e tras, 1994.
maram-se em estudantes e jardineiras da cidade. Mas o que vale destacar
Vieira, Lizst. Maconha, um problema político. ln: Sabina, Ma ria (e d.). Maco- nesse caso é que Flávia e Catarina tiveram dificuldades antes mesmo de
11/za em debate. São Pa ulo, Bra sili ense, 1985 . p. 75-88. dar o primeiro passo, pois, mesmo tendo os recursos financeiros, os conta­
Zalu a r Alb a. Condomín io do diabo: a s cla sses popula res urb ana s e a lógica tos e o espaço para realizar o curso, não conseguiram atrair mais que 10
do ;'ferro e fumo". ln : Pin heiro, Pa ulo Sérgio (ed.). Crime, violência e poder. adolescentes. A dificuldade não decorria - como é comum acontecer
São Pa ulo, Brasilien se, 1983. p. 251-77. entre esses mediadores sociais de classe média - da pouca familiaridade
das organizadoras com os moradores locais, pois ambas já tinham traba­
---. A máqui11a e a revo lta: as o rga11izações populare s e o significado da pobreza .
São Pa ulo, Bra siliense, 1985. lhado anteriormente na comunidade: Flávia, como representante de uma
ONG que gere um banco de solidariedade no local, e Catarina, numa das
---. Co l!domí11 io do diabo . Rio de Jan eiro, Revan ; Universida de F e d era l do creches.3 Certamente que tais atuações dariam um perfil mais simpático a
Rio de Ja neiro, 1994.

C LARA M AFRA é do Instituto de Estudos da Religião (!ser).


* A primeira versão deste texto foi apresentada na VI Jornada sobre Alternativas Religiosas
na América Latina (6-8 de novembro de 1996). O texto foi lido e discutido com Otávio
Velho, Regina Novaes, Cecília Mariz, Marcelo Camurça e R ubem César Fernandes, entre
outros, a quem sou grata. Porém, como sabiamente reza a tradição, cabe a mim a responsa­
bilidade pela forma e o conteúdo finais .
Um S é cu l o de F a vel a
D ro g a s e S ím bolo s
278
279

alguns e mais antipático a outros, mas isso não justificaria um boicote por do ao desconhecimento do código local pelas coordenadoras do progra­
parte dos moradores, inclusive aqueles com quem elas já haviam estabele­ ma e à possibilidade iminente de o mal-entendido transformar-se em atri­
cido contato, como estava acontecendo. to, recorrendo-se à força e à violência. A solução do impasse ter-se-ia
A solução do mistério veio à tona paulatinamente, quando, atentas dado, nesse contexto de duplicidade de poderes, quando as organizado­
ao circuito das fofocas, elas compreenderam que o local do curso - a ras do projeto "reconheceram" a necessidade de dialogar com esse "outro
quadra da escola de samba - era considerado espaço do "movimento" . poder" e acertaram, mais uma vez, os limites do "pacto implícito" . O "mo­
O vínculo d o curso com a quadra fez correr à boca pequena que Catarina vimento", mesmo sem impor nenhuma condição à realização do projeto
e Flávia iriam treinar meninos já com dívidas para com o tráfico . Daí a re­ dos jardineiros ou à utilização da quadra, fez-se notar como um interlocu­
sistência das mães e a falta de interessados. Nem mesmo depois de ter tor presente e atuante, capaz de ditar a conduta dos moradores e investi­
percorrido as casas, explicando a impropriedade da fofoca e explicitando do de "autoridade" na organização do espaço local. Esse "acordo tácito"
os financiadores e a idoneidade da iniciativa, Catarina conseguiu romper eliminou as tensões decorrentes da indiferença à autoridade do "movi­
o bloqueio imposto ao projeto. Então, no último fim de semana daquele mento" e, sintomaticamente, suspendeu a acusação, veiculada nas redes
mês, um menino do "movimento" se aproximou de Catarina e a "convo­ de fofoca, de conivência e submissão dessas mulheres ao narcotráfico -
cou" para uma conversa. Catarina foi ao encontro e, em meio a uma roda pelo menos num determinado círculo de moradores, pois, como veremos
de adolescentes armados, viu-se crivada de perguntas sobre o projeto: mais adiante, a acusação de ligação com o narcotráfico é de certo modo
quem estava envolvido, quem financiava, qual era o objetivo, quanto bastante rotineira entre os grupos que se instalam na favela e, por vezes,
tempo duraria etc. Feitas as perguntas, Catarina foi dispensada com o tão eficaz na promoção da "desgraça" do grupo concorrente nas redes de
OK do "movimento" . Na segunda-feira seguinte, o número de inscritos prestígio local quanto a acusação de bruxaria entre os Azande -, permi­
já ultrapassava a sua cota máxima. tindo a alguns moradores utilizar o serviço.
Para o antropólogo, essa história é uma entrada e uma chave para
Essa história poderia ter se desenrolado de outra forma. As auto­
se compreender o campo tenso e singular do sistema de reciprocidade
ras do projeto chegaram a cogitar a possibilidade de usar algum outro es­
existente nas favelas cariocas . Podemos começar pela ironia da história:
paço na favela, eliminando assim o problema da fácil assoei.ação entre ,º
enquanto Flávia e Catarina desconheciam ou pretendiam ignorar o
uso da quadra e o narcotráfico. Quando decidiram prosseguir, cont� �la­
bando de narcotráfico como uma instância de poder e autoridade e usar
via, elas levaram em conta tanto a qualidade do espaço para suas ativida­
a quadra segundo seus próprios desígnios, elas foram acusadas de man­
des, quanto a oportunidade de desmistificar uma asso�iação b �seada. e�
ter vínculos com o narcotráfico. Quando, posteriormente, foram a uma
inúmeros elementos implícitos e no uso da força. Havia tambem a h1po­
"reunião" com o "movimento", a comunidade rompeu o boicote ao proje­
tese de o projeto construir uma sede própria - como fazem muitos gru­
to, pondo de lado os receios de "contaminação", antes questão candente.
pos de atuação social -, mas até quando a "convocação" dessas mulhe­
Nessa versão, a história abre uma incógnita que se amplia ainda
res para uma conversa com o "movimento" seria postergada?, No
mais após o desfecho dos eventos. Inicialmente, desconhecendo os códi­
mercado imobiliário do morro, por exemplo, a oferta de barracos e um
gos implícitos de divisão do espaço, Flávia e Catarina se dirigiram ao
tanto quanto rarefeita. Alguns barracos, contudo, permane�em desocupa­
chefe da quadra, que lhes deu, sem colocar em dúvida sua função de ge­
dos por longos períodos, alguns deles marcados pela dub1:da�e da f, ro­
renciador do espaço, o direito de utilizá-lo. Contudo, para os que domi­
priedade do vendedor que se apresenta. Assim, as casas do umao do ge­
nam os sentidos implícitos dos códigos locais, havia uma tensa sobreposi­
rente", da sogra do antigo chefe, da terceira esposa de fulano de tal,
ção de autoridades constituídas: de um lado, o "movimento" como "dono
fugido da polícia, podem ficar vagas por tempo indeter.minado, i� depen­
da quadra", e de outro, o chefe atual da quadra, membro da escola de
dentemente da qualidade e localização do imóvel - amda que a venda .
samba. O fato de Flávia e Catarina levarem em conta apenas uma dessas
Quando uma pessoa ou uma associação aproveita a barganha de algum
autoridades colocava em risco o próprio projeto e todos os que nele se en­
desses imóveis, coniventemente ou não, passa a ser alvo de fofocas.
volvessem, pois na possibilidade real de alguma disputa mais clara entre
Além disso, os terrenos vagos, os barracos abandonados, as praças, as
ambas as autoridades, um dos lados poderia sustentar sua opinião, literal­
quadras são, como rege o "acordo tácito", espaços do tráfico . Nesse c�n­
mente falando, com "poder de fogo" . Nesse caso, o boicote converte-se texto, se Flávia e Catarina tivessem contornado o problema da quadr� m-
em medida de cautela das mães para com seus filhos adolescentes, devi- . , 1 no morro, am· da ass1·m não estanam
vestindo na compra de um 1move
280 Um Século de Fave l a Drogas e Símbolos
· ··············· ········· ·················
281

resguardadas da possibilidade de contaminação com o narcotráfico, na de fora e pretende estabelecer laços mais efetivos de ajuda mútua, como
medida em que há uma geopolítica interna que penetra, por diferentes lembra Boltanski ao discutir a dinâmica da linguagem da mídia e a
caminhos e em diferentes níveis, os mais diversos espaços e bens disponí­ noção de piedade romântica que a movimenta. As redes de solidarieda­
veis no morro. A "linha de perigo"das relações com o narcotráfico não se de monetária e material ou de força voluntária que se estendem pelo
inscreve nitidamente no espaço e nos bens, embora esteja potencialmen­ mundo visam a mitigar o sofrimento da "vítima", distinguindo-a do
te presente. "cúmplice" ou do "mediador inidôneo". Além disso, essa questão é cen­
Assim como são tênues os limites dessa geopolítica, são confusas tral para quem se movimenta internamente nas redes em contextos vio­
as relações de favor e contrafavor de inúmeros moradores do morro com lentos, na medida em que reconhecer as nuanças e os graus de pertenci­
o "movimento", principalmente entre os jovens. Assim como existem os mento, de endividamento com a contravenção, garante a oportunidade
sistemas de reciprocidade diretos - pelos quais o narcotráfico financia o de resolver convenientemente as situações.
casamentà ou o enterro, garante o tratamento de saúde, subsidia a com­ Uma distinção qualitativa, em termos do uso da linguagem pro­
pra do cimento etc., estabelecendo um compromisso face a face -, há posto por Boltanski (1990), auxilia-nos nessa problemática. Segundo
inúmeros meios indiretos de reciprocidade que podem ser acionados esse autor, o discernimento de diferentes usos da linguagem é funda­
sem que a pessoa venha a ter intenção ou consciência da relação. As mental porque, geralmente, entre as ações guiadas pela violência, pelo
redes de amizade, vizinhança e parentesco, com o sistema recorrente de interesse, pela justiça e pelo ágape - os quatro tipos puros de ação que
ajuda mútua que os moradores estabelecem entre si, dificilmente estão in­ o autor define mais detalhadamente - existem lapsos que não são pre­
cólumes, havendo sempre algum membro com "passagem" no "movi­ enchidos racional ou argumentativamente. A passagem de uma compe­
mento". tência para outra - passagem que fazemos constantemente no nosso co­
Voltando mais uma vez ao caso de Flávia, em muitas situações o tidiano - exige movimentos, ritmos e posturas específicos, que podem
que está em causa não é a reciprocidade envolvendo bens ou pessoas, se processar mais fácil ou dificilmente conforme o campo de competên­
mas sim a reciprocidade no reconhecimento de hierarquias e a submis­ cia que se recusa ou a que se adere. Nesse caso, a ordem dos fatores alte-
são a quem tem força, poder e prestígio. Nesse sentido mais tênue - ra o produto.
mas simbólica e materialmente eficaz - é que é válida a correspondên­ Na ação violenta, a ênfase está colocada nos bens em circulação,
cia entre morador do morro e submissão ao narcotráfico. Numa vertente em detrimento das pessoas envolvidas; inversamente, no regime do
durkheiminiana de interpretação sociológica, pode-se dizer que a pró­ ágape, as pessoas é que são supervalorizadas na troca, em detrimento da
pria condição de sobrevivência no morro - o domínio dos códigos de hie­ consideração dos bens circulantes. A tendência centrípeta da ação violen­
rarquias e valores sobre o espaço, os bens e as pessoas - faz do morador ta, sua capacidade de transformar os demais modos de ação, tornando-as
um sujeito "poluído" pela contravenção e o poder paralelo. ou semelhantes a ela ou parte, mesmo que periférica, de sua composição,
Para não cristalizarmos essa associação entre ser morador e "conta­ relaciona-se com sua natureza absoluta. A linguagem em curso na ação
minação" com o narcotráfico, lembremos, por exemplo, o campo de atua­ violenta não é argumentativa nem racional, mas poderosa na medida em
ção das ONGs e associações filantrópicas, esses centros produtores de que instaura o vazio mais básico de sentido na recusa da contin� idade
redes de solidariedade e formuladores de mediações entre o "morro"e o do circuito de reciprocidade com a alteridade. A presença do regime da
"asfalto". Essas instâncias, articuladas geralmente a partir de diferentes violência no contexto da favela, por exemplo, abre a possibilidade de um
versões do discurso social sobre a reparação de injustiças, tendem a bus­ vazio de reciprocidade que facilmente inibe as modalidades concorrentes
car como clientela os segmentos mais carentes cultural e materialmente e esvazia o sentido de humanidade. Numa imagem ilustrativa, podemos
ou, para usar um termo do campo, "em situação de risco". Essa caracte­ reconhecer o narcotráfico como o buraco negro cuja força invisível orga­
rística comum implica inevitavelmente uma convivência bastante próxi­ niza o centro de gravidade da estrela visível da comunidade, criando
ma com a condição dúbia daquele que está sendo ajudado. eixos de tendências sociais formadas por repulsões e impulsões que só
Nesse contexto em que a porosidade da presença do narcotráfico, existem sob a condição de se afirmarem fora de suas margens.
com seus bens, valores e hierarquias, invade os diferentes territórios, pa­ De forma menos metafórica, o argumento deste estudo é que o uso
rece inadequada e fora de propósito a questão de quem não é conivente da força faz diferença no contexto da favela não apenas por tornar m� is
com o narcotráfico. Entretanto, essa é a primeira questão para quem está árido o cotidiano do morador - dada a possibilidade constante da nao-
282 Um Sécu lo de Fave l a D ro ga s e S í m bo l o s 283

reversibilidade da troca e do vazio de sentido, interrompendo circuitos Do "asfalto " para o "morro " - o caso das
de bens, pessoas e símbolos -, como também pela conformação de uma associações voltadas para o atendimento
interlocução coletiva que deve responder, explícita ou implicitamente,
elaborada ou canhestramente, ao impacto dessa presença que subverte a Segundo Silvana, uma das diretoras da Pequena Obra de Nossa Se­
lógica do gerenciamento democrático do espaç o coletiv o . Dessa forma, le­ nhora Auxiliadora (Ponsa), é para suprir à necessidade dos trabalhado­
varei a sério a questão de quem é ou não conivente com o tráfico, ques­ res do morro, prestando serviços de apoio a essa populaç ão carente, que
tão mobilizadora e formadora de diferentes discursos sociais eficazes por­ as ex-alunas do Colégio Sacre Coeur se mantêm ativas ainda hoje, admi­
que ordenadores da ação dos indivíduos e das organizações em con­ nistrando e gerindo recursos em torno da entidade. A P onsa é uma asso­
textos violentos. A questão é válida, nesse sentido, porque homens e mu­ ciaç ão que atua no local desde 1941, prestando preferencialmente às cri­
lheres querem respondê-la e têm o capital simbólico para isso, sendo o anças do morro serviços corno creche, curs o complementar educacional e
trabalho do antropólogo o mapeamento da formulação dessas diferentes cursos profissionalizantes, corno marcenaria, empalhamento, datilogra­
respostas e o balizamento do entrelaçamento geral dos discursos. Basean­ fia. A noç ão de caridade e de ação social católica está na origem do
do -me na etnografia que realizei na favela Dona Marta4 e servindo-me grupo, formado em 1925. Graças ao apoio do padre Vellos o, jesuíta, fez­
das distinções conceituais enunciadas p or Boltanski, destacarei, inicial­ se a ligaç ão entre o grupo de senhoras de classe média e média alta com
mente, as principais vertentes discursivas sobre a relação dos diferentes a favela Santa Marta.
grupos e associações com o dado da presença dos bandos de narcotráfi­ Um dos p ontos tensos do gerenciamento da Ponsa, visando a cum­
co,5 para, posteriormente, diante do leque de alternativas de códigos so­ prir adequadamente os objetivos de caridade cristã, é a eqüidade com
ciais presentes naquele contexto, discutir alguns dos efeitos mais eviden­ que seus serviços são distribuídos entre os moradores da favela. A p ossi­
tes dessa combinação. bilidade de que a ajuda prestada por esse grupo à população carente
venha a beneficiar apenas seus segmentos mais privilegiados é um pro­
blema visualizado pela coordenação da entidade, ainda que não extensa­
As diferentes redes associativas em face mente equacionado. Segundo Silvana, essa questão é contornada pelos
do narcotráfico mecanismos de autocontrole da entidade no seu dia-a-dia, de forma a
"n ão fazer distinç ão entre o público que atende", servindo de referência
Cada uma das associações existentes na favela D ona Marta foi comum à maioria dos pais, meninos e meninas que nasceram e cresce­
constituída num momento diferente da formação da favela; em certa con­ ram n o morro. A creche, diz Silvana, treina suas educadoras para tratar
juntura do debate sobre as "questões sociais" na sociedade mais ampla; da mesma forma o filho do "chefe" e o filho do Zé Ninguém, sem preocu­
num momento específico da presença do narcotráfico no morro . 6 Esse ca­ paç ão de ferir os brios de quem quer que seja.
ráter conjuntural da formação de cada associação po de ser mais ou Traços singulares dessa linha de atuação social são a preocupação
menos valorizado, formar memórias mais ou menos tradicionalistas, com o caráter redistributivo da ajuda social implementada - donde a
marcar ou n ão os rumos e a estrutura da organização, permitir uma per­ atenção, como dissemos, aos mecanismos cotidianarnente ativos contra a
meabilidade maior ou menor com as questões candentes do momento e s obrep osiç ão de privilégios - e, em outro nível, a preocupação e_m s:r
com a sociedade mais ampla. Mesmo reconhecendo esses aspectos, limi­ _
suficientemente flexível para adaptar a entidade aos dramas da h1stona
t o-me a abordar neste texto as questões das diferentes redes articuladas comum da populaç ão. A história da Ponsa é um exemplo típico dessa se­
pelas ass ociações ao longo de 1996, período da minha pesquisa de gunda característica, tendo a entidade servido de p onto de apoio em dife­
campo. Quer dizer, não tratarei das questões da dinâmica social, mas me rentes momentos da história da favela, adaptando -se às necessidades du­
preocuparei em reconstituir um quadro sincrônico em que se p ossam de­ rante calamidades corno enchentes e deslizamentos, transformando-se
linear as áreas ocupadas pelas instituições legais, seu campo de negocia­ em dormitório de famílias desabrigadas, centro de recebimento de doa­
ção com o tráfico, as principais frentes do jogo de acusações e contra-acu­ ções, local de entrega de material de construção etc.
sações, com seus descompassos entre o discurso explícito e as posturas Esse entrelaçamento da entidade com a "co munidade"7 tem, entre­
implícitas. A princípio, é possível distinguir três tendências entre as tanto limites bem claros. A diretoria é composta de urna rede restrita de
redes ass ociativas existentes na favela Santa Marta. arnig�s católicos, moradores do "asfalto", que faz urna administração de
284 Um Século de Fave l a Drogas e S ímbolos 285

forma centralizada, com completa autonomia e responsabilidade pelos que envolvam o tráfico como organização coletiva, mesmo que haja ofe­
rumos da associação. A relação com os moradores do morro é de empre­ recimentos de "dom" gratuito, através de doações financeiras ou de
gador - já que estes são preferencialmente contratados como auxiliares força de trabalho em momentos de maior necessidade. Contudo, como
- ou de clientela. tantos outros moradores, essas pessoas e suas entidades participam da
Pelo menos quatro outras associações têm perfil similar ao da "lei do silêncio", cumprem certas regras do ir e vir na favela (a metade
Ponsa, quer dizer, são instituições criadas principalmente por iniciativa e do morro é um limite respeitado mesmo para visitas ocasionais), conhe­
empenho de senhoras de classe média e/ ou média alta, moradoras do as­ cem e acompanham as trajetórias de seus "meninos" e "meninas", e, por
falto, que por motivação religiosa iniciaram uma creche, um trabalho de meio dessa relação afetiva e "maternal", procuram articular opções alter­
complemento escolar etc. Em geral, essas senhoras levaram anos para nativas ao tráfico, sempre que necessário e possível, para aqueles que se
conseguir construir a sede, tendo mobilizado ao máximo as redes de in­ "envolveram".
fluência a seu alcance, procurando garantir certa regularidade e boas con­ Sinteticamente, essas associações são fundamentalmente prestado­
dições de atendimento. É fácil ver que as estruturas que essas senhoras ras de serviços pontuais aos moradores do Dona Marta, articulando pre­
montaram se mantêm a duras penas, refletindo em grande medida as ferencialmente redes de fora para dentro, com uma administração em
redes de solidariedade que o trabalho social e seu prestígio social conse­ geral centralizada, baseada em grande medida no prestígio pessoal. Por
guem mobilizar. Silvana, Carmem e Amália são três dessas mulheres, essas características, tais associações estabelecem uma continuidade em
cada qual a face mais visível de serviços de atendimento permanente a diferentes níveis com noções e valores da sociabilidade cotidiana da fave­
crianças e adolescentes locais, cada qual capaz de mobilizar uma rede de la, assim como do asfalto, sem formular uma política ou estratégia especí­
apoio na sociedade mais ampla. fica para enfrentar a questão do narcotráfico.
Em geral, os moradores do morro, os donos de birosca, os pasto­
res, os padres e o presidente da associação reconhecem o "valor" dessas
senhoras, incluindo-as entre as "personalidades locais". Além disso, o O ideal participativo e o resgate do morro pelo morro
prestígio pessoal também funciona "para fora" na identificação, de uma
forma ou de outra, dessas pessoas com uma atitude de solidariedade do Não é possível uma contextualização apropriada da favela Santa
asfalto com as áreas carentes da cidade. E é seguindo essa percepção de Marta sem se levar em conta o Grupo Eco. Formado por um grupo de jo­
respeito conquistado que elas articulam o discurso sobre como respon­ vens no começo da década de 70, inicialmente reunidos para produzir
der à presença do narcotráfico em sua área de ação: como prestadoras de um pequeno jornal local, O Eco, esse grupo ampliou suas ambições gra­
serviço pontual, suas instituições atendem a todos, sem discriminação de ças à presença de um morador singular no morro. Trata-se do padre
crença, cor ou mesmo atividades dos pais. Por esse princípio de presta­ Agostinho, jesuíta professor da PUC, articulador de inúmeras experiên­
ção de serviço de forma universal, sabem que num dado momento estão cias de atuação social da Igreja Católica na cidade do Rio de Janeiro.
cuidando de filhos de contraventores, dando orientação a pais de alunos Padre Agostinho comprou um barraco no meio do morro, um pouco
que têm atividades escusas, fornecendo abrigo à família de um "chefe" mais acima da Assembléia de Deus, onde passou a residir ainda no ano
numa calamidade etc. Essa postura resvala entre o risco da cumplicidade de 1978. Pessoa apaixonada e apaixonante, acabou conquistando a amiza­
com o "criminoso" ou com o "ato ilícito" e o risco da ofensa pela quebra de daqueles garotos e fazendo da família Campos um ponto de referên­
de um circuito de prestígio que funciona dentro da comunidade. Usual­ cia obrigatório para seus amigos do asfalto.
mente, o cálculo e neutralização do risco passa pelo jogo entre poder de O movimento que nasceu desse encontro, mesmo que influencia­
influência e prestígios acumulados. do pelas mesmas correntes católicas que originaram inúmeras CEBs, aca­
Em conformidade com essa linha de atuação social, duas posturas bou não se constituindo como tal. Esse movimento desenvolveu ativida­
são caraterísticas na formulação de respostas à presença do narcotráfico: des variadas, como mutirões comunitários - foi o grande responsável
por um lado, a criação de mecanismos inibidores da reprodução dos va­ pela substituição das tábuas de madeira por tijolos na maioria dos barra­
lores de honra e força,8 complementares ao tráfico nos limites das ativida­ cos, pela abertura das primeiras valas e caminhos de concreto e pela cons­
des desenvolvidas como educadoras e administradoras; por outro lado, a trução da sede da Associação de Moradores do Morro Santa Marta -,
inibição e recusa da interação direta, evitando a participação em circuitos organização de equipes e campeonatos de futebol, colônias de férias, tea-
286 Um Século de Fave l a Drogas e S ímbolos 287

tro, a edição do jornal O Eco, criação da Escola de Informática etc., mar­ um berçário. Ao final da negociação, a Casa Santa Marta foi construída
cando sua presença local mais por uma atuação político-cultural e não ne­ segundo os propósitos dos moradores.
cessariamente religiosa. Em relação à presença do narcotráfico no morro, a posição das
A valorização da cultura popular, da participação democrática e da mais fortes lideranças desse movimento é de recusa à relação direta e
formação de uma "comunidade" está no bojo dessas diferentes iniciati­ disputa de espaço e influência. Faz parte da sua história a concorrência
vas. A adesão às noções de participação e democracia faz com que as asso­ com chapas para a Associação de Moradores ligadas ao narcotráfico; a re­
ciações criadas por esse movimento contem com mecanismos representati­ jeição de sua influência na organização de centros de criadores de cultu­
vos na tomada de decisões. Como no caso anterior, a mobilização entre ra, como a escola de samba, grupos de pagode, festas funk etc. Essa oposi­
esses grupos está vinculada a noções de justiça social, mas com um duplo ção se dá não apenas pelo caráter ilegal, mercantilista e armado da
e novo significado: por um lado, por trazer ao centro da discussão sobre organização do narcotráfico, mas pela adesão ao que eles definem como
desigualdadés sociais a questão das lacunas em termos do capital cultu­ estilo "clientelista" e "populista" dos seus líderes.
ral. Daí uma atenção maior desses segmentos não só à criação de ativida­ De modo bastante explícito, a postura dessas lideranças visa a criar
des educativas, lúdicas e artísticas, visando a responder a diferentes ní­ um jogo de forças entre os setores organizados da favela e a organização
veis de "desapossamento" cultural, mas também à exposição do potencial do narcotráfico regida pela lógica da exclusão: onde a ideologia participa­
de criatividade dos moradores do morro. Por outro lado, a condição de tiva cristã ganha terreno, não haveria "contaminações" pela presença
"morador" é revalorizada como ponto de apoio legitimador da ação justa. subterrânea do tráfico. Vale notar que essa oposição não implica adesão
Alimenta-se assim uma noção de equivalência social que se produz a par­ ao modelo repressivo, pois, como justifica uma de minhas entrevistadas,
tir do próprio sujeito, não sendo "recebida" de um agente exterior, que a presença da polícia na favela expõe usualmente os moradores ao peri­
até pode ser cúmplice mas não pode ser "co-participante na privação". go, sem inibir efetivamente a presença do narcotráfico.
O desgaste do modelo que tem o ideal comunitário e a valorização Uma das críticas dos setores evangélicos a esse movimento é que
da participação como elementos centrais da ação política, referência "o rigor na rejeição do tráfico leva esses católicos à rejeição da própria co­
comum a inúmeros movimentos sociais surgidos na década de 70, pro­ munidade". A premissa desse raciocínio é que não há como estabelecer
cessou-se lentamente ao longo das décadas seguintes. É que a sobreposi­ fronteiras claras com o narcotráfico, pois, queiramos ou não, sempre ha­
ção, ocorrida em meados da década de 80, do tráfico às associações de verá um parente, amigo, filho, vizinho ou namorado que transpôs a fron­
moradores nas favelas do Rio de Janeiro (Zaluar, 1995) teria não apenas teira, atuando, mesmo que temporariamente, no "movimento". Para
fortalecido a organização do narcotráfico como aparelho, mas também completar o raciocínio, argumenta-se que são justamente as pessoas mais
explicitado o descrédito da utopia participativa emancipatória. Essa uto­ pobres, mais carentes, geralmente moradoras do "pico", que acabam em­
pia fora responsável por quase uma década de mobilização popular, purradas para esse tipo de "negócio". A indiferença a essa problemática,
num movimento tão intenso, criador de novos atores e aglutinador de completam os evangélicos, levaria essas associações católicas a prestar
composições específicas de forças sociais, que chegou a merecer o nome serviço aos setores mais providos da comunidade.
de Novo Associativismo Local (Peppe, 1992). Diante desse jogo de acusações, vale sublinhar que, ao priorizar as
Na história do Santa Marta, a adesão a esse modelo valeu mesmo estratégias macrossociais, a clareza da concepção e do raciocínio acerca
quando o projeto de ação envolvia alianças com o "asfalto", como no das possibilidades de transição para uma sociedade justa, a linha de atua­
caso das alianças com o Colégio Santo Inácio e com a Associação dos An­ ção católico-comunitária minimiza os efeitos constrangedores e desmobi­
tigos Alunos do Colégio Santo Inácio (Asia), instituições que garantem o lizadores que a presença do narcotráfico produz no conjunto das redes
fomento de estruturas profissionalizadas, como o berçário Casa Santa sociais na favela. Algumas questões que esses movimentos enfrentam no
Marta e a Unap (centro de complemento educacional). Um momento alto seu dia-a-dia - por exemplo, no apoio afetivo, emocional ou financeiro
da afirmação dessa posição foi a construção da Casa Santa Marta - com a jovens que eles estão formando e que se vêem envolvidos momentanea­
os recursos na mão para construir um prédio, duas posições se formaram mente com o tráfico - são excluídas do discurso, mesmo fazendo parte
no movimento: uma ligada à Asia, que pretendia empregar os recursos da ação. Esses descompassas entre intenção e efeito, discurso e ação, dão
na criação de um centro de recreação e de formação dos adolescentes; e margem ao surgimento de discursos concorrentes, entre os quais, mais
outra, ao grupo de moradores da favela, que defendia a construção de visivelmente, um segmento entre os evangélicos.
288 Um S é c u lo de F a vel a D ro g a s e S í m bo lo s 289

"Armados na palavra ": a "guerra de movimentos" gido que ocorre no nível individual, na mensagem proselitista dos cren­
entre evangélicos e traficantes tes em favor da "aceitação de Jesus" e da mudança de vida do irmão, do
marido, do vizinho etc. - aquelas pessoas da rede de relações mais pró­
Há segmentos bastante diferenciados entre os evangélicos residen­ xima que se deixaram envolver pelo "movimento" .
tes no morro. Um conjunto, formado por igrejas de vertente pentecostal, A questão sociológica que permanece com relação a esses grupos
como a Assembléia de Deus e a Deus é Amor, tem uma vida comunitária evangélicos é quanto ao ponto de apoio da eficácia de seu discurso, pois
bastante ativa, com cultos cerca de três vezes por semana, vigílias conjun­ se por um lado eles parecem desprezar a elaboração de estratégias direta­
tas ao menos uma vez por mês e encontros bastante freqüentes com ou­ mente contrárias ao narcotráfico, concentrando-se nas questões "espiri­
tras congregações evangélicas, geralmente da periferia. Além disso, o vín­ tuais" - o que poderíamos descrever corno uma atitude quietista -, por
culo com um ideal de "santificação" e de "negação do mundo" faz com outro a rede dessas igrejas tende a se ampliar, ao que parece, justamente
que o fiel demonstre 24 horas por dia, no seu modo de vestir, no seu co­ nesses contextos de violência . 9 O paradoxo da questão está no fato de que
nhecimento da Palavra, no uso de uma linguagem particular, que ele é re­ esses grupos pentecostais crescem em contextos de violência justamente
almente "cristão" . O consumo também é regulado por esse ideal de santi­ por não darem respostas diretas à presença da violência, dado seu "apar­
ficação, sendo comum os amigos e parentes crentes promoverem um tamento" do mundo e a diabolização de tudo o que se refira ao "movi­
controle rígido das músicas ouvidas, dos programas de TV permitidos, mento". Urna possível explicação seria que o discurso dos "crentes" e dos
da mensagem escrita que se lê. "bandidos", mesmo com questões substantivas opostas, assume as mes­
A peculiaridade, em termos do código de usos e costumes, comparti­ mas formas: maniqueístas, clientelistas, hierárquicas etc. A continuidade
lhada por esses evangélicos reflete-se inclusive na sua leitura da história do entre os dois sistemas simbólicos propiciaria o crescimento de um no
morro: nessa versão, o protagonista da ação não é a "comunidade", como outro: onde se amplia a presença dos bandos de narcotráfico, crescem as
entre os grupos descritos anteriormente, e sim os "crentes" e as congrega­ possibilidades de avanço dos "crentes" . Uns são violentos pelo uso da
ções pentecostais, protagonistas efetivos da verdadeira ação - "a guerra arma, outros, pelo uso da palavra dogmática.
espiritual" - que se desenrola entre os homens como reflexo da disposição A fragilidade dessa linha de argumentação é que a relevância do
da batalha entre Deus e o diabo. A ressacralização do mundo, intrínseca a problema repousa na diferença: mesmo que haja similaridades e proximi­
esse código, não implica uma atitude de acomodação diante do mundo - dades, "crentes" e "bandidos" se organizam como tais, auto-referidamen­
interpretação linear que subverteria uma leitura mais rica da teoria de se­ te. Enquanto os "bandidos" afirmam o poder da "arma", os crentes afir­
cularização de Weber, segundo a argumentação de Geertz (1978) -, e sim mam que sua "arma" é a Palavra; se os rapazes do movimento têm que se
uma leitura específica da "ação no mundo". Nos últimos anos, essa guerra prevenir contra a "tornada do morro" pelo bando rival, um ou outro cren­
espiritual - que pode assumir os mais diferentes contornos - tem recebi­ te tem uma "visão" de corno deve preparar a "tomada" do morro pelas
do uma versão particularmente voltada para o drama da violência. "forças celestes"; para uns, a ininteligibilidade da possibilidade da morte
A resposta desses grupos à presença do narcotráfico não é direta, por tiro, para outros, a ininteligibilidade da fala do Espírito San�o etc. �e
mas assume contornos "espirituais" - segundo seus próprios termos - esses exemplos ilustram continuidades e a banalidade do uso diferencia­
envolvendo ações como encontros de oração, vigílias em fins de semana, do das mesmas palavras e expressões, indicam também a existência de di­
leituras da Palavra, encontros de louvação etc. Não é raro que em épocas ferenças no plano metafísico articulado em cada discurso. E aqui recorre­
de tiroteio, nos dias ou semanas de "guerra" do narcotráfico, as vielas mos novamente a Boltanski, com sua ênfase nos diferentes usos da
permaneçam vazias e silenciosas, sem crianças a correr e adultos a circu­ linguagem, para ampliarmos o horizonte de interpretação da questão.
.
lar, sem as rodas de conversa, os rádios no último volume, o som da tele­ Entre os tipos ideais de ação propostos por Weber, B0ltansk1
visão na birosca mais próxima, o que contrasta com a rotina populosa e (1990:223) inclui um tipo a mais, que ele denominou ação ágape, assim de­
movimentada desses bairros. Nesses períodos, que muitas vezes ficam finida: "l' agape possede des proprietés si11g11lieres, com me la préférc n ce pour le
como marcos da memória coletiva, o silêncio é cortado de tempos em prése n t, le ref11s de la comparasio n et l' éq11ivale n ce, le silcnce des désirs, o u e n co
_ �
tempos pelas secas espocadas dos tiros, pelas rajadas de AR-15 e, signifi­ re l'abse n ce d'an tecipatio n s da n s l'i n teractio n , q11i l'éloignen t dcs modeles sw
cativamente, pelo som dos coros e vigílias das igrejas pentecostais. Essa lcsquels n os disciplines - éco nomie, sociologic ou psyclzologic sociales - p ren­
linguagem indireta e simbólica contrasta com o discurso claramente diri- n e n t habit11elleme11 t appui".
290 Um Séc u l o de Favela D ro gas e S í m bo l o s 291

Tomando esse tipo ideal de ação como referência de compreensão ximidade entre os dois movimentos é dad a pela organização de relações
sociológica, toma-se ma is inteligível a linguagem a rticulada pelos gru ­ de reciprocidade , s em apoiar-se em perspectivas de referente s gera is, o
pos de "crentes" e sua relativa eficácia em contextos de violência. Assim que inclu iria le itu ras mais sofistic ada s do social e s u as s egmentaçõe s.
como os grupos envolvidos no "movimento", os crente s não procu ram N e sse sentido, o universo p ecu liarmente autocentrado dos "c rentes" re­
encontrar referências de princípios gera is para ordenar s uas noçõ es socio­
laciona-se com o ca ráter pouco argumentativo da difusão e m anu tenção
lógicas de reciprocidade. Ao invés da ênfase em parâmetros de eqüidade do "tônu s" lingüístico do ágape , enfatizando-se, em contra p artida, o
e ju stiça social, investem na criação da "vida espi ri tual s antificada", que "estar juntos" na participa ção da vida congregaciona l e no compartilha­
poderíamos tradu zir como a busca de uma utopia s em exterioridad e. mento de u m pe culiar sistema ritu al, pleno de formas e símbolos, que
Não há exterioridade porque não se apresenta a possibilidade d e recu sar contém "significados em excesso", se j a nas profecias, na glossolalia ou
o estado de coisas tal como está dado, se ja em relação a algum passado, na pres ença do Espírito Santo. A eficácia da interação contra stante c�m �
exigindo a recuperação de algo que existia e foi perdido, s e ja em rel a ção
"movimento" decorre do plano da lingua gem que ca da rede de sooabi­
a um futu ro, protestando porque o prometido e o acordado não se reali­ lidade enfatiza, u ns e ou tros valorizando "o não-dito" e os significados
zam. do silêncio. Em contraposição, na perspectiva dos católicos progressi�­
Essa utopia au to-referida, tal como a lingua gem do regime do tas a "boa cabeça" e a "boa liderança " são confirm adas por uma capao­
ágape, pode-se difundir, mas por caminhos muito mais tortu osos que o dade de elaboração de discursos a rgumentativos e sociologicamente in-
da imposição - presente na ação violenta - ou da argumentação. Se­ formados.
guindo Kierkegaard, Boltanski (1990:240) propõe que a forma de difusão Uma das novidades no campo evangélico, nas décadas de 80 e 90,
do ágape é a própria suposição do suj eito que ama d e que o amor está no
é a emergência de u ma nova corrente - os neopente costais - com
coração do outro: "L'être qui aime (. . .) fonde et Jait surgir en cet autre homme
maior visibilidade pública . 10 N a etnografia do morro Dona Ma rta, um
l'amour". O que não tem existência pass a a existir a partir da convicção grupo de m issionários interdenominacionais se destacou _por m esclar
da su a existência. Essa economia de reciprocidade independente do con­
entre seus objetivos a "busca de santifica ção" com um proJ �t� claro de
tra-dom e sem passar pe lo cálcu lo do ganho e da falta encaminha a ex­
atu ação política, bem no e stilo dos novos movimentos e vange hcos : A �o­
pansão do ágape no silêncio da linguagem.
vens com uma Missão (Jocum) reunia missionários jovens de igrei as
Nestes termos, se o circuito da violência s e impõe p elo a bsolutis­ evangélicas de diversos est a dos do Br a sil, com menos de 25 anos,
que,
mo de su a presença - a força ignora j ustificativas -, o circuito do ágap e após um curso de treinamento de oito me s s, no m lment ss vam ª
e : a e
� a a
.
qu er s e difundir pela influência de uma presença na s ingularidade . Os residir nas favelas. Se gundo o id ealiza dor do movimento no R10 d e Jan e i­
termos da troca no ágape são e stabelecidos no próprio ato - pres ente - ro, We llington de Oliveira , o intuito do grupo é interfe :ir dire tamente na
segu ndo a s ingu laridade das pessoas envolvidas na re l ação. Ess e modelo questão da violência nas favelas, num_a . gue�ra de simbolos e co_nt:a­
conceitua! indica o leque de alternativas de regimes de reciprocidade pre­ que os miss10-
exemplos, que el e chama de "guerra espmtual . Ele e spera
sentes na linguagem: pode-se ir do vazio da reciprocidade da ação vio­ s, v nham a promov r um modelo de
nários, jovens como os traficant e e e
lenta ao cálcu lo da eqüida de entre dom e contra-dom da ação ju sta ou ns "bandido s" q anto para a s no-
vida alternativo tanto para e sses jov e u
ainda à possibilidade da doação presentificada do ágape. Assim como vas gerações.
toma mais claro o ponto onde os extremos s e tocam: as ações regidas
Tal objetivo, que supõe a possibilidade da criação de uma rede de
pela violência e as do ágape, ambas indiferentes ao cálculo e à eqüidade,
sociabilidade em função do critério geracional,1 1 tem implica do um con­
ambas distanciadas de expectativas de transformação dos homens pela
tato entre missionários e traficantes, nu m trabalho de assistência espiri­
argumentação e ponderação racionais.
tual e p roselitista. Algumas vezes esse "contato" fere o " aco�d � tá�it_o"
Com esse apoio conceitual, ao invés de condenarmos ao truísmo
local. Ao contrário de uma postu ra mais reservada, esse s missionanos
ou à banalidade a au to-afirmação desses grupos pentecostais como "guia­
não re jeitam em bloco o conta to com a organização do tráfico _e com os
dos pelo amor", podemos encontrar aí a chave de interpretação para a
tra ficantes. Na su a concepção, têm que ser bem claras as fronteiras entre
nossa questão. Para tanto, temos que e stabelecer uma correspondência,
os dois gru pos, mas isso não significa que não se j�n_1 fe itos "mo:i1:'.en:
mesmo que grosso modo, entre o "movimento" e o uso da força, e entre os
tos" de aproximação entre indivídu os. Mais espeohca ment,e,_ a id�i a e
"crentes" e a adesão ao modelo do ágape. Le vando isso em conta, a pro-
qu e a " guerra é de movimento" (Velho, 1996), com avanços taticos visan-
292 Um Século de Fave l a Drogas e S ímbolos 293

do a ocupar o território inimigo, sobretudo por laços de solidariedade hu­ da localidade e da cidade, dos louvores e de uma pregação, desenvolveu­
mana. Tal concepção supõe atitudes ousadas. O caso de Tartaruga, ex-ge­ se a campanha " troque sua arma de brinquedo por um brinquedo de ver­
rente do tráfico local, atual membro da Assembléia de Deus, é bastante dade", junto às crianças. As armas de brinquedo dadas pelas crianças for­
ilustrativo. Cerca de um ano atrás, um missionário ficou sabendo, en­ mam agora o monumento pela paz na entrada da Fábrica de Esperança,
quanto tratava um ferimento de um rapaz, que o bando rival do de Tarta­ em Acari.
ruga iria "acertar contas" com ele naquela tarde. Poucos dias antes, esse As principais críticas a essas estratégias evangélicas provêm do es­
mesmo bando tinha assassinado o chefe de Tartaruga. Depois de termi­ toque discursivo compartilhado pelas lideranças católicas locais, que dis­
nar o curativo na sobrecoxa do rapaz, o missionário se dirigiu imediata­ param principalmente contra a Jocum: questionam a idoneidade da liga­
mente para a "boca", a fim de tirar Tartaruga de lá. Com essa atitude, o ção desses jovens com o tráfico. De onde surgiram os recursos para que,
missionário interferiu no andamento "normal" das coisas, quebrando a em tão pouco tempo, missionários que não tinham sequer urna sede con­
lei do silêncio e da não-participação. Mas, na "visão" do missionário, seguissem adquirir três casas e construir uma creche? A resposta está, se­
com aquela atitude salvou-se uma vida e, mais tarde, ganhou-se um gundo os membros da Jocum, nos jovens amigos europeus que, após
"servo de Deus". acompanharem seu trabalho no morro durante algum tempo, retornam a
Essa estratégia de "atitudes ousadas" correlaciona-se muito bem suas casas deixando recursos para a missão. Mas, além disso, alguns cató­
com a peculiaridade da estrutura do grupo, formado por uma rede inter­ licos crêem pouco na capacidade de discernimento e resistência desses
nacional de jovens religiosos. Tal estrutura permite, localmente, uma mo­ "meninos inexperientes". Sugerem que essa tática de infiltração e de cor­
bilidade de residência dos missionários e uma capacidade de circulação dialidade com os membros do tráfico pode voltar-se contra os próprios
de informações nos níveis nacional e internacional, com receptores espe­ missionários, pois nessa "guerra santa" travada em fronteiras bastante tê­
cialmente disponíveis para a doação de recursos de solidariedade, seja nues, pode chegar o dia em que o mínimo necessário de resistência, que
em termos financeiros e materiais, seja com trabalho voluntário. Por articula as diferenças, seja anulado diante do poder do carisma do chefe
exemplo, para a construção da creche do "pico", a equipe da Jocum con­ do tráfico atual, o Márcio V.P.
seguiu atrair, só no primeiro semestre de 1996, mais de 30 jovens evangé­
licos norte-americanos, que vieram ao Brasil para aplainar o terreno, le­
vantar pedra, carregar cimento etc. A título de conclusão
De modo geral, a inserção da Jocum no morro tem-se realizado
através do preenchimento de lacunas deixadas pelas demais associações: Acompanhando as respostas dadas pelas diferentes associações
o trabalho foi iniciado em 1993 com a criação de um ambulatório; depois existentes na favela Santa Marta ao problema do narcotráfico, percebe-se
eles compraram casas em pontos pouco assistidos, como o centro do que a linguagem religiosa fornece alguns dos subsídios fundamentais
morro e o pico; e hoje eles reúnem recursos para construir uma creche para as atuações sociais agregadoras. No contexto da cultura cristã oci­
também no "pico". Em 1994, o líder da Jocum no Dona Marta reuniu re­ dental, o campo religioso é um campo privilegiado para a formulação de
presentantes de outras seis denominações evangélicas presentes no respostas às questões relativas a injustiças e desigualdades sociais. Esse
morro, com o propósito de formar a Associação dos Evangélicos do arcabouço comum reflete-se, por exemplo, na relutância dos participan­
Dona Marta. O primeiro e último resultados da iniciativa foi a Caminha­ tes das mais diversas associações em negar solidariedade às pessoas en­
da da Paz pelo morro Dona Marta, após a qual o grupo se desfez, cindi­ volvidas no tráfico, em situações especiais, mesmo que se compartilhe a
do por divergências quanto à tomada de decisões. rejeição do contato institucional. Algumas associações religiosas mais tra­
No final de 1994, os evangélicos, mais especificamente a AEVB, dicionais entendem que a assistência social, baseada na idéia de carida­
passaram a ter uma presença na mídia em função da campanha Rio De­ de, é o meio pelo qual se pode reforçar os vínculos interclasses e a ajuda
sarme-se, implementada em parceria com o Viva Rio. Essa campanha, mútua. Apoiadas em noções como essas, senhoras de classe média e
com diferentes frentes, teve como referência básica a questão da integra­ média alta vêm mantendo as mais sólidas e tradicionais organizações de
ção do morro e o asfalto, enfatizando atos simbólicos . O centro da campa­ assistência a crianças e adolescentes locais.
nha foi a realização de caminhadas de pastores e leigos do asfalto em dife­ Outras associações, formadas "no morro por pessoas do morro",
rentes favelas na cidade. NPssas caminhadas, além das oraçôes em favor surgiram a partir de concepções de "comunitarismo cristão" e do ideal
294 Um Século de Favela Drogas e S ímbolos 295

da transformação das consciências através da participação democrática. calizando, por exemplo, a atuação das associações de moradores como
Com discursos bastante ideologizados, tais organizações tendem a afas­ núcleo mobilizador das demais relações sociais, falta ainda indagar
tar de sua rede de influência os setores menos escolarizados e menos pro­ quanto ao efeito de conjunto. Como, diante desse estado geral de dife­
vidos de capital cultural, mas têm forte noção de cidadania na interação renciação e integração social, se dispõe o conjunto das cadeias de inter­
com pessoas e instituições do "asfalto". Esse segmento, ligado ao Grupo dependência e de consolidação de controle mais gerais? Quais os efeitos
Eco, se destaca por implementar respostas desafiadoras ao tráfico como orga­ dessa "constelação" de forças sociais sobre o morador da favela Santa
n ização, bancando disputas em chapas para a Associação de Moradores, Marta?
influenciando decisões de políticas públicas quanto ao narcotráfico etc. Antes de uma avaliação nesse sentido, é preciso sublinhar que a et­
Porém, esse conjunto de esforços voltados para a reparação de injusti­ nografia básica deste texto foi realizada num contexto especialmente
ças e a eqüidade no nível coletivo tem acarretado também separações e denso de associações e mediações sociais e que tem forte " visibilidade"
exclusões, havendo uma gama cada vez maior de moradores com pon­ na mídia local, nacional e até mesmo internacional. A ausência dessas
tos de contato com o tráfico. A porosidade do narcotráfico na favela é condições em outras favelas cariocas diminui a capacidade de pressão de
tal que é necessário uma postura bastante militante para excluir da seus moradores sobre a sociedade mais ampla, tornando-as internamen­
rede de parentesco ou vizinhança pessoas que se "envolveram" no trá­ te mais suscetíveis à presença do narcotráfico. Levando isso em conta,
fico. fica patente que a intepretação e a análise aqui desenvolvidas têm pouc_a
Descrevi, por fim, como os evangélicos se expõem em programas capacidade generalizante, mas fornecem subsídios à reflexão antropológi­
de risco: seja nas campanhas, chamando a classe média carioca a subir o ca e sociológica pelo aprofundamento de um caso específico.
morro, seja nos desafios morais e nas aproximações corporais. A atuação Feita essa ressalva, vale dizer que existe a possibilidade de que o
dos evangélicos, incluindo aí os pentecostais clássicos, é mais individuali­ efeito combinado do "vazio" de cidadania experimentado pelos grupos
zada, em contraste com a atuação coletivista dos católicos. Também em de narcotráfico e da atuação de redes de solidariedade no contexto da fa­
contraposição, os evangélicos investem menos na reparação de injusti­ vela tenha promovido o redimensionamento da noção mais restrita de ci­
ças, no sentido de equilíbrio de direitos (Oliveira, 1996). Isso se reflete no dadania habitualmente em vigor naquele contexto. Vimos anteriormente
fato de que muitas vezes os traficantes convertidos "esquecem" crimes como, via de regra, os grupos católicos mostram-se impermeáveis e arre­
que cometeram ou mandaram cometer, comprometendo-se em cumprir dios em relação ao narcotráfico, não apenas por sua condição ilegal, mas
apenas as sentenças da sua consciência e da "lei dos homens". também porque perpetua o "clientelismo" e o "paternalismo" que se quer
O deslocamento que os evangélicos propiciam nesse contexto rela­ combater. Nessa postura de oposição, os grupos católicos procuram cor­
ciona-se com sua inserção de noções de reciprocidade presentificadas no roer as bases do narcotráfico oferecendo os instrumentos básicos de cida­
horizonte do possível. Daí essa diferença com relação ao campo do peca­ dania ao conjunto dos favelados, ficando impotentes, contudo, ante os ef�i­
do essencialista ou ao campo do legal, os quais supõem a reparação da si­ tos perversos de sua estratégia, na medida em que ela r�fo�ça os mec�1s­
tuação de equanimidade dos direitos. Os evangélicos que conheci não mos de exclusão que possibilitaram o surgimento do propno narcotrafico.
procuraram investigar a vida de Tartaruga, a fim de que ele, após a con­ O contraponto a essa posição grupal articula-se no campo dos 4:.vangéli­
versão, restaurasse o equilíbrio de justiça perdido, balizando suas razões cos, que têm adquirido visibilidade basicamente por suas atuaçoes pon­
das razões de quem ele feriu em sua vida no tráfico. O que faz diferença _
tuais, pelo gerenciamento de uma g;1erra de símbolos e p�la formaçao de
é que há menos um "menino do morro" envolvido na "guerra", e mais uma pes­ redes de solidariedade face a face. E significativo que na mterface desses
soa que busca, no caso de Tartaruga, apaixonadamente, agir conforme a "Pa­ movimentos se esteja desenvolvendo um processo de construção de cida­
lavra". Sendo assim, nesse circuito evangélico, o descompasso entre inten­ dania que rompe com o imobilismo herdado, na medida e_m que, �or u�
ção e ação, palavra e ato, passa a ser medido a partir do rito de passa­ lado, põem-se em xeque noções muito restritas que equalizam o c1d�da�
gem, desde o dia em que Tartaruga "aceitou Jesus". ao trabalhador, e por outro, desgastam-se as concepções meramente md1-
Para finalizar, temos até aqui um quadro geral com os discursos e vidualistas, dualistas e segregadoras, próprias a certas lideranças evangé­
forças sociais atuantes em justaposição na favela. Mesmo que esse qua­ licas que perdem espaço. No bojo desse processo, é possível que forças so­
dro seja rico em relação a outras leituras concentradas na interpretação ciais criativas ganhem livre curso no nível local, contribuindo para uma
de contextos de violência a partir de um ou outro ponto de referência, fo- concepção cidadã mais universal e plural.
----------- ---� - -- -

296 Um S é c u l o de F a v e l a Drogas e S ímbolos 297

Notas 8 . Entre os trabalhos que descrevem os meandros d a sobreposição entre sis­


temas de honra e prestígio e a organização do narcotráfico, destaco aqui os
1 . A oposição morro x asfalto ou comunidade x a sfalto é uma oposição básica textos de Marcos Alvito, em Cidndmzin e vio/êncin e nesta publicação, a partir
na linguagem da população carioca residente em favela e que enfatiza e so­
de sua etnografia em Acari.
brepõe os aspectos sociogeográficos da classificação social em relação aos
econômico-culturais, sem ignorá-los. 9. Sigo aqui uma impressão decorrente do meu trabalho de campo, concor­
dando com avaliações de autores como Zuenir Ventura e Alba Zaluar. Contu­
2. Segundo dados do Censo de 1991, a favela Santa Marta tem uma popula­
do, ainda está para se fazer uma justaposição de mapeamentos das redes de
ção de 4.019 habitantes, 1 .008 domicílios e ocupa uma área de 61 .660m2 .
igrejas evangélicas e das zonas de incidência da violência na cidade, pesqui­
Situa-se numa encosta irregular no bairro de 13otafogo, Zona Sul do Rio de Ja­
sa que daria subsídios importantes para a avaliação dessas correspondências.
neiro, apresentando, segundo o Iplan, sérios riscos de desabamento, desliza­
mento e rolamento de pedras. 10. Ver, entre outros, Freston (1992), Mariz & Machado (1994) e Fernandes,
( 1996).
3. A etnografia básica deste texto foi realizada na favela Santa Marta, entre fe­
vereiro e junho de 1996 e entre setembro e dezembro do mesmo ano, tendo 1 1 . O recorte pelo viés da juventude é uma das marcas comuns a inúmeros
eu residido no morro no primeiro mês. Para proteção de meus entrevistados, movimentos sociais emergentes na década de 90, peculiaridade que permite
utilizo aqui nomes falsos. a composição de redes de solidariedade cortando transversalmente divisões
4. Existe entre os moradores da favela uma d isputa pública quanto ao seu sociais em termos de classe, estilo de consumo e espaço. O recorte da juven­
nome, se Santa Marta ou Dona Marta, tendo-se de um lado católicos e de tude como chave de composição de uma certa mediação social é tema estuda­
outro evangélicos. Os primeiros preferem a alcunha de "Santa", e os últimos, do por Regina Novaes ( 1996).
a de "Dona ". Para legitimar cada alcunha, evocam-se histórias diferentes: os
católicos contam que padre Velloso quis homenagear a santa ainda no início
de seu trabalho social na área, quando surgiram os primeiros barracos, nos Referências bibliográficas
anos 40. Para os evangélicos, a favela foi levantada no terreno de uma senho­
ra que, morando no exterior, teria generosamente cedido sua propriedade Alvito, Marcos. A honra em Acari. ln: Velho, Gilberto & Alvito, Marcos
aos moradores. Daí a homenagem da comunidade, dando ao lugar o seu (orgs.) Cidndmzin e violência. Rio de Janeiro, UFRJ; FGV, 1996.
nome: dona Marta. Neste artigo utilizo os dois nomes alternadamente, sem 13oltanski, Luc. L'nnwur et ln justice com111e compétences. Paris, Métailié, 1990.
me preocupar em referendar uma ou outra versão.
- --. Ln souffrmzce à distmzce - mornle lzummzitnire, médias et politique. Paris,
5 . Especialistas no tema da violência tendem a concordar quanto ao caráter Métailié, 1993.
um tanto precário e intermitente das organizações de narcotráfico no Rio de
Janeiro, considerando mais apropriado descrevê-las como bandos orgmzizndos Burdick, John. Looking for God in Brnzil: tlze progressive cntlwlic clzurch in u rbnn
em redes de "commzdo" do que como gangues ou máfias (ver, entre outros, Za­ Brnzil's religious nrenn. Berkeley, University of California Press, 1993.
luar, 1994; Ventura, 1994; Fernandes & Carneiro, 1995).
Fernandes, Rubem Cesar. Novo nascimento - os evangélicos em casa, na
6. Segundo Peppe (1992), a organização do narcotráfico - como organização igreja e na política. Rio de Janeiro, 1996. mimeog.
com pontes de importação e exportação de drogas e armas - só se instalou
'10 morro Santa Marta no início dos anos 80 . Até esse período, seria mais -- - & Carneiro, Leandro Piquet. Cri11zi11nlidnde, drogas e perdas econômicas
tpropriado falar-se em famílias que controlavam o ilícito: o contrabando de 120Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Iser, 1995. (Cadernos de Pesquisa do Iser.)
furtos e um comércio incipiente de drogas, mais o jogo do bicho.
Freston, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impenc/1-
7. A categoria "comunidade" é aqui usada como categoria nativa - habitual­ ment. IFCH; Unicamp, 1992. (Tese de Doutorado em Sociologia.)
mente presente, como se pode acompanhar ao longo do artigo, nas diferen­
Geertz, Clifford. A interpretação dns culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
tes redes católicas - e supõe uma unidade (espacial, social e/ ou moral) mais
orgânica que na "não-comunidade", envolvendo jogos de inclusão e exclu­ Jankowski, M. S. Islnnds Íll tlze street - gnHgs mzd Americmz u rbmz society.
são, ativados mais ou menos estra tegicamente pelo agente. Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press, 199 1 .
298 Um Século de Favela

Leeds, Elisabeth. Cocaine and parallel polities in the Brazilian urban democ­
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ro, Iser; Relume-Dumará, 1996.
Ventura, Zuenir. Cidade partida. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
Velho, Otávio. Globalização: objeto - perspectiva - horizonte. Mana. Rio
ESTE TEXTO é parte d a dissertação de mestrado realizada n o Pro­
de Janeiro, 3 (1), 1996.
grama de Pós-graduação em Antropologia e Ciência Política da Universi­
Violência. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, Iser; CER, 1 5(1), 1990. dade Federal Fluminense, em que discutimos a importância da oratória
Zaluar, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro, Revan; UFRJ, 1994. no tribunal do júri da cidade do Rio de Janeiro. A temática surgiu a par­
tir de uma disciplina cursada: poder do direito e direito de poder.
--. Crime, medo e política. Sociedade e Estado. Brasília, 1 0(2), jul. / dez. Os discursos orais, parte do conteúdo dessa disciplina, desperta­
1995. ram a nossa curiosidade. E foi através de um breve levantamento biblio­
gráfico que pudemos compreender a importância da oralidade não só na
cultura jurídica, mas também na sociedade brasileira como um todo. Por­
tanto, a relevância conferida aos discursos orais era algo a ser destacado.
A partir de uma nota de jornal anunciando um curso de oratória
oferecido pela OAB-RJ, propusemo-nos investigar a importância da orali­
dade na cultura jurídica brasileira. Fomos àquela instituição e nos matri­
culamos nesse curso, a fim de realizar um trabalho de campo com obser­
vação participante. 1
Durante o curso, pudemos perceber sua importância para os inte­
grantes desse universo. Havia duas turmas - sendo o trabalho feito em
apenas uma -, cada qual com mais de 20 alunos, compostas de profissio­
nais "iniciantes" e pessoas que já estavam no ofício do direito há mais
tempo. Informalmente, fomos perguntando aos integrantes da turma por
que faziam um curso que "ensinava a falar", e um deles respondeu:

ALESSANDRA DE ANDRADE RINALDI é da Universidade Federal Fluminense.


300 Um Século de Favela Marg i n a i s , Deli nqüentes e V í t i m as 301

Mesmo que alguns tenham experiência profissional, esta não é su­ vestigar a prática dos discursos no júri; a idéia que seus profissionais
ficiente porque a maneira de falar é muito importante. Isso não é fazem da oratória e os mecanismos que o universo jurídico inventa (cur­
necessário para todos os ramos do direito, como o é no júri, por l ; sos e manuais) para produzi-la como um bem passível de ser ensinado.
exemplo, que é um teatro, mas é importante para falar com o juiz, Construímos o objeto a partir da noção de campo jurídico de Pierre
para saber como se expressar. Bourdieu e também de suas considerações sobre sistema de ensino e de
pensamento (Bourdieu, 1987 e 1989). Com a noção de campo2 jurídico,
pensamos o tribunal do júri como parte de um universo jurídico relaciona­
Com esse contato inicial, fomos construindo nosso objeto. Notamos
do à nossa sociedade, entendendo que sua dinâmica e funcionamento são
que os integrantes não eram, em sua maioria, advogados criminais, mas,
ligados às nossas representações sociais. Com essa noção pudemos tam­
quando se referiam à oralidade, faziam menção ao tribunal do júri. Assim,
bém pensá-lo como parte integrante de um universo que se constitui de
fomos percebendo que, apesar de advogados das áreas trabalhista, civil e
lutas de forças ou conflitos de competência, fundados no saber jurídico.
criminal (não ligada ao júri) estarem num curso para "aprender a falar", a
Com as considerações sobre sistema de ensino e de pensamento, pudemos
oratória era considerada mais necessária para os "advogados de júri".
ver os cursos e manuais como veículos de transmissão, produção e repro­
As aulas e o programa do curso eram conduzidos como se todos os
dução de representações da oratória que fazem parte da cultura jurídica.
alunos fossem falar em :'plenário". Ensinava-se como ficar de pé ante o ad­
versário e o público (com as pernas entreabertas e as palmas das mãos para Desse ponto de vista teórico, partimos para investigar o objeto
cima); como usar microfone (com uma das mãos apenas, deixando a outra construído realizando trabalho de campo nos cursos de oratória e no
para a gesticulação); como falar (articulando bem a boca, com frases canta­ II Tribunal do Júri da Comarca do Rio de Janeiro. Fizemos levanta­
das); como olhar (fixamente para o adversário, sem desafiá-lo, mostrando mento bibliográfico de manuais de oratória forense e entrevistas for­
firmeza nos argumentos); como expressar um "semblante" (variando de mais e informais com profissionais do júri e alunos de cursos de direi­
acordo com os argumentos, aparentando tristeza, alegria ou perplexida­ to. Mediante entrevistas com estes últimos, investigamos de que manei­
de); como alternar argumentos e tons de voz de acordo com o interesse ou ra as escolas de direito tratam a oratória do júri.
desinteresse do ouvinte, como mostra a seguinte fala da professora: O tema deste estudo - como advogados e promotores vêem os fa­
velados - é parte dessa dissertação, na qual procuramos mostrar como os
integrantes do júri incorporam representações sociais em seu ofício.
O bom orador deve criar um campo magnético com sua interlocu­ Considerando que a sociedade brasileira constrói uma série de cate­
ção. Caso perceba o público desatento, deve mudar o tom de voz gorizações sobre a favela e os grupos que nela residem, os chamados fave­
ou os argumentos. lados - por exemplo, as idéias de falta de higiene, "marginalidade", "pe­
riculosidade", "pobreza", "delinqüência"-, propusemo-nos investigar
de que maneira os oficiantes do direito que atuam no tribunal do júri,
Todas as técnicas ensinadas eram reproduções de representações
órgão do Poder Judiciário, incorporam, reproduzem e recriam representa­
construídas acerca de atitudes de oradores de júri. É nesse lugar que o
ções desses grupos e fazem uso delas em seu ofício. Melhor dizendo,
advogado ou promotor, na condição de orador, fica de pé ao falar. É em
como promotores de justiça, defensores públicos e advogados articulam
"plenário" que o orador usa o microfone e precisa se preocupar com o
seus argumentos - quando do debate oral que ocorre no júri -, atribuin­
tom e com a atenção prestada a seus argumentos. Ao contrário, noutros
do ou deixando de atribuir responsabilidade penal aos atos do réu mora­
ofícios do direito, como por exemplo numa "vara de família", advogado
dor de uma favela, com base nas idéias construídas a seu respeito.
e promotor permanecem sentados um em frente ao outro, numa mesa
grande, com o juiz ao meio. Chamou-nos a atenção, pois, o fato de que
um curso de oratória, não específico para advogados criminais, ensinasse
técnicas características das falas do tribunal do júri. O "sistema judiciário" brasileiro e o tribunal do júri 3
Percebemos que esses cursos estavam reproduzindo algo difundi­ O tribunal do júri é um órgão do Poder Judiciário4 com competên­
do na cultura jurídica: a idéia de que a "oratória ideal" é a do júri e que cia para julgar os crimes intencionais, ditos dolosos, contra a vida e crimes
oradores são aqueles que sabem proferi-la. Foi então que optamos por in- que tenham conexão com estes. 5 Compõe-se de profissionais do campo
302 Um Sé c ul o de F avel a Marg i n a i s , Del i n q ü entes e V í t imas 303

jurídico, como promotores, advogados, defensores públicos e juízes toga­ O tribunal do júri: os debates e os diferentes réus
dos, e dos chamados juízes leigos, os jurados.
No campo jurídico6 brasileiro, esse tribunal é representado como Com base nas considerações anteriores, podemos afirmar que o sis­
uma instituição democrática e popular, tendo como característica a capaci­ tema judiciário e, logo, o tribunal do júri atuam como reflexo da coexis­
dade de trazer para seu universo "os cidadãos comuns", que, ao se torna­ tência desses princípios que os constituem.
rem jurados, segundo crença desse universo, terão o papel de assegurar, Internamente ao universo jurídico, a constituição do júri faz com
de forma democrática, a aplicação da justiça (ver Lima, 1996.) que seus agentes (promotores, advogados), formalmente considerados
"iguais", busquem diferenciar-se. Na relação que estabelecem entre si,
O tribunal do júri é uma conquista do cidadão e de seu poder sobe­ operacionalizam mecanismos para distinguirem-se de seus pares. Ao en­
rano. A prerrogativa de ter um acusado julgado por seus pares é a trarem em plenário, procuram diferenciar-se através de sua fala. Procu­
prova da democracia e da soberania do cidadão. (Discurso de um ram reconhecimento entre os pares e o público em geral, a fim de serem
defensor no júri.) consagrados e, com isso, galgarem um grau maior numa hierarquia vir­
tual, uma vez que no plano formal não há uma escala hierárquica a ser
Porém, o exercício dessa atividade, vista como garantia e perpetua­ atingida.
ção da democracia nacional, é conseqüência de uma atuação personalizada Um dos aspectos que permite essa relação de distinção estabeleci­
e hierarquizante. Na prática, o "arrolamento" dos jurados (que formalmen­ da pelos oficiantes é a representação de que exista uma "verdade real"
te deveriam ser os representantes dos "cidadãos comuns"), apesar de pau­ oposta à "verdade formal", aquela trazida pelas partes ao processo, vo­
tado em critérios formais,7 é feito a partir de escolhas arbitrárias do juiz. luntariamente, como é próprio do "sistema adversário",9 em especial nos
Este formula critérios reconhecendo algumas pessoas como habili­ Estados Unidos. A partir dessa crença, as partes (acusação e defesa)
tadas social e intelectualmente para tal exercício. Na maioria das vezes, a "lutam" no júri para impor sua verdade, a fim de que uma delas seja re­
escolha, de maneira implícita, é feita a partir de um rol de amigos e co­ conhecida como a melhor "verdade real". Como podemos notar na se­
nhecidos (ver Lima, 1995). guinte frase de um promotor, ao iniciar sua acusação: "Vim hoje aqui tra­
Essa prática é o reflexo do funcionamento do sistema judiciário brasi­ zer a verdade dos fatos. Não importa o que a defesa fale, vou mostrar a
leiro, formalmente constituído de princípios constitucionais igualitários e, 'verdade real"'.
na prática, fundamentado por uma ideologia hierarquizante e diferencial. Esse tipo de prática diferencial é possível porque nesse sistema a
O sistema judiciário brasileiro (e, logo, sua organização judicial) "verdade" não é construída de forma dialógica (com a exposição dos
constitui-se a partir de diferentes princípios. De um lado, encontram-se fatos e a busca do consenso), mas a partir de interpretações. Como pode­
ideais da tradição portuguesa de manutenção da ordem, vigentes no Bra­ mos observar no trecho de uma fala da promotoria no júri: "Vamos inter­
sil-colônia, cuja característica é a crença na desigualdade de direitos dos pretar que ele [o réu] agiu sem dolo de matar, e sim com o de ferir".
litigantes, compensada pela ação do Estado, cujo papel é promover a jus­
A argumentação oral distingue-se bastante do que consta no pro­
tiça de forma compensatória. Por outro lado, esse sistema se baseia em
princípios da tradição do inquérito judicial da Europa continental, no cesso escrito. Os debates são conduzidos a partir do que os oradores con­
qual a construção da verdade é feita, com a contribuição das partes, de sideram crenças e valores sociais, o que chamam de "emoção". Baseiam­
forma pública e dialógica. Esse sistema possui também princípios do dis­ se na crença de que os jurados julgam a partir de sua "consciência". Com
curso político liberal, que entende serem os conflitos essenciais ao estabe­ isso, as "partes" pautam suas falas não só por "provas técnicas" - resul­
lecimento de uma ordem consensual. tado de um longo período, iniciado com o inquérito policial, de depoimen­
Esse sistema, originário de uma "tradição da inquirição portugue­ tos, interrogatórios e "laudos periciais" 1 0 produzidos no decorrer do pro­
sa", 8 lidando de forma compensatória e mediadora com as desigualda­ cesso Judicial -, mas também por valores sociais.
des sociais, ao ter que pôr em prática princípios igualitários de sua carta As "partes", porém, ao construírem seus argumentos, dizem estar
constitucional (pautada na ideologia de que "todos são iguais perante a fundamentando-os nas "provas dos autos" e reiteram a importância do
lei"), introduz privilégios, hierarquizações e distinções sociais. Tal práti­ que consta no processo escrito, como podemos ver nessa frase de um ad­
ca ocorre tanto entre os agentes do campo jurídico, quanto na relação vogado de defesa: "o doutor está dizendo que o réu confessou, mas isso
entre esse campo e a sociedade, questão que discutiremos a seguir. não consta nos autos; o que não está nos autos não está no mundo".
304 Um Século de F av e l a Ma r g i n a i s , Deli nqüentes e V í t i m as 305

No entanto, na prática, essas "provas dos autos" - ou seja, o que duas. De acordo com o espaço socia/ 1 2 ocupado pelos diferentes litigantes,
está escrito (laudos, requerimentos, depoimentos) - são pouco utiliza­ os julgamentos distinguem-se em quatro tipos, que variam de acordo
das. Há situações em que o orador chega a dizer que vai deixar de lado o com o status da vítima ou do réu.
processo escrito e passar aos fatos: "vamos deixar de lado essa confusão O primeiro é aquele em que o acusado é reconhecido como uma pes­
processual que consta nos autos e passemos aos fatos". soa (Da Matta, 1979) possuidora de um capital econômico ou cultural (Bour­
A argumentação é muito mais ligada aos valores sociais do que dieu, 1996a:18), de um habitus reconhecido como dominante em nosso
aos argumentos técnicos, característicos do universo jurídico. O que cons­ meio social, e a vítima é um indivíduo (Da Matta, 1979) a quem não se reco­
titui um paradoxo: formalmente, as "provas dos autos" são postas em nhecem direitos diferenciais pelo fato de, por exemplo, ser morador de
primeiro plano; na prática, são complementares aos argumentos preten­ uma favela. O segundo tipo é aquele no qual o réu é um indivíduo, e a víti­
didos. No entanto, podem retornar ao lugar de importância formal nas si­ ma, uma pessoa. No terceiro tipo de julgamento, réu e vítima são tidos
tuações em que o veredicto dado é diferente do esperado pelos oficiantes como pessoas. No quarto tipo, acusado e vítima são vistos como indivíduos.
do direito. Nesse caso, os valores sociais são tidos como erros ou como Os três primeiros tipos são mais longos (chegando a durar mais de
contrários às "provas dos autos", e o saber característico desse universo três dias); os profissionais são consagrados internamente ao universo; os
adquire um lugar de maior prestígio. Quando acontecem julgamentos debates são extensos, com "tréplicas"1 3 e "apartes" (interferência na fala
nos quais o veredicto não é o previsto pelas prescrições do universo, a ar­ do adversário no decorrer de sua exposição); há leitura de "peças" (par­
gumentação dos oficiantes do direito é que os jurados julgaram contra as tes do processo); há requerimentos feitos pelas "partes", com pedidos de
"provas", donde o direito de "recorrer da decisão" questionando a ido­ anulação de provas.
neidade dos "juízes leigos" e também a idoneidade do tribunal do júri, Nos do quarto tipo, em que ambos são indivíduos e fazem parte do
visto como instituição garantidora da democracia, como podemos ver mesmo espaço social, as sessões chegam a durar até menos de duas horas,
nessa matéria publicada no jornal O Globo, de 20-6-1997: raramente há leitura de "peças" e na maioria das vezes são dispensadas
as testemunhas; os profissionais são pouco reconhecidos no universo jurí­
dico; muitas das defesas são feitas por defensores públicos que, segundo
Condenado num primeiro julgamento, em novembro de 1996 (...) relato de campo, devido ao excesso de trabalho e ao seu número reduzi­
o ex-soldado da PM Nélson Oliveira dos Santos Cunha foi absolvi­ do, não têm tempo de se dedicarem às leituras mais detalhadas dos pro­
do ontem (...). A decisão chocou os juristas e representantes da so­ cessos ou mesmo vão a "plenário" sem ter tido nenhum contato anterior
ciedade civil (...). Ontem o Ministério Público recorreu da sentença com seu cliente.
pedindo anulação do julgamento, alegando que a decisão do júri Há julgamentos excepcionais, que fogem à tipologia mencionada.
contraria as provas do processo. (...) O jurista Virgílio Donnici (...) São aqueles em que réu ou vítima, mesmo ocupando um espaço social re­
afirmou que nunca viu um processo com duas sentenças em pri­ conhecido como inferior, tem direito a um julgamento especial, como o
meira instância tão contraditórias e concluiu que a decisão pôs em das pessoas.
dúvida a soberania do júri. (...) A linha de defesa era a de que o po­ Isso ocorre quando o delito é avaliado do ponto de vista dos direi­
licial conhecido como Sexta-feira 13 foi o grande mandante do tos humanos. Por exemplo, os julgamentos dos acusados na "chacina da
crime. No entanto, as provas recolhidas mostraram que essa teoria Candelária" (assassinato de "meninos de rua" por integrantes de grupos
era fraca demais. de extermínio de menores) ou dos acusados da "chacina de Vigário
Geral" (assassinato de moradores da favela de Vigário Geral por policiais).
Nestes casos, os julgamentos são também extensos e têm caracterís­
Apesar disso, é uma constante nos julgamentos do júri o fato de
ticas muito semelhantes às dos três primeiros tipos já descritos. Mas isso
que os debates sejam pautados mais pelos valores 1 1 (pelo que é conside­
por uma pressão externa ao âmbito do campo jurídico. A importância
rado certo ou errado, normal ou patológico) do que pelas "peças" e pro­
dada a esses julgamentos decorre de pressões populares, políticas, de
vas construídas no decorrer do processo. redes de tevê, jornais e rádios. Por conta dessa pressão e da exposição
O sistema do júri, com sua prática, diferencia não só os agentes in­ desses casos pela mídia, geralmente os profissionais que realizam esses
ternos ao campo jurídico, mas também os grupos sociais ou os indiví- julgamentos já são consagrados no meio em questão.
306 Um Século de Favela
307

O tribunal do júri funciona desigualmente, de acordo com a posi­ da sociedade. No contato entre favelados e não-favelados, esse contágio
ção social do acusado, não só na organização e disposição dos julgamen­ é visto como ameaçador à integridade dos "bons cidadãos".
tos, mas também na articulação de diferentes defesas e acusações. Os pro­ Ser morador da favela é trazer a "marca do perigo", é ter uma
fissionais do júri atuam de maneira diferente conforme a posição social identidade social pautada pela idéia de pobreza, miséria, crianças na rua,
do réu ou vítima. Baseiam sua atuação nas distinções que a sociedade es­ família desagregada, criminalidade, delinqüência. Tais imagens são reali­
tabelece entre grupos e indivíduos. Suas falas de defesa e acusação, além mentadas pelos veículos de informação, que trazem notícias sobre o
de diferirem segundo a repercussão da causa ou a posição social dos liti­ "morro" sempre do ponto de vista negativo, enfatizando o tráfico de dro­
gantes, se pautam pelas representações que se fazem de grupos e indiví­ gas e a violência.
duos. Quando são defendidas pessoas que pertencem a um dado grupo Por causa dessas crenças, o fato de um indivíduo morar numa fa­
social, usam-se nas falas em plenário as representações que a sociedade vela o transforma num estigmatizado, sendo-lhe atribuída uma condição
fez desses grupos. desviante,14 de anormalidade e periculosidade.
Quando do debate oral que ocorre no júri, promotores de justiça,
defensores públicos e advogados formulam seus argumentos atribuindo
ou deixando de atribuir responsabilidade aos atos do réu em função das
idéias construídas a seu respeito. Para corroborar essa afirmativa, procu­
O tribunal do júri, ou como os oficiantes do direito
raremos mostrar como são esses debates no júri, quando os oficiantes do vêem a favela e os favelados
direito têm que defender ou acusar réus moradores de uma favela. Os oficiantes do direito, ao defenderem ou acusarem réus morado­
res de favelas, usam em seus discursos representações previamente for­
muladas pela sociedade e incorporadas nesse campo profissional.
O lugar das marcas sociais, ou quando a condição Suas falas se fundamentam nas representações inventadas a respei­
de favelado deve ser reavaliada to da favela e que acabam por marcar a identidade dos indivíduos que
A idéia corrente em nossa sociedade e, logo, entre os oficiantes do nela residem. Os argumentos utilizados se pautam pela situação de estig­
direito é que a favela é um lugar de grande perigo. Isso porque ela não ma em que se encontram os moradores das favelas.
confirma as expectativas normativas ideais que essa sociedade formulou. A favela se apresenta, aos olhos dos oficiantes do direito, como
Por "fugir ao padrão", apresenta-se como uma espécie de ameaça um lugar de perigo, um "meio difícil" e propício ao crime, infestado de
ao esquema classificatório de nossa estrutura social. Por não representar "marginais", integrantes "da boca-de-fumo", que ameaçam a vida das
os valores "ideais" do padrão social, passa a ser vista como algo a ser evi­ populações carentes, como podemos ver na frase a seguir:
tado, como perigosa.
A idéia de perigo (Douglas, 1976) formada a respeito da favela e
o fato, em si, diz respeito a uma diligência entre policiais e "margi­
dos favelados tem por função coordenar ações sociais. A favela é vista
nais" do tráfico de entorpecentes que infestam a favela e ameaçam
como um lugar sem ordem, capaz de ameaçar os que nela não se inclu­
a vida das populações carentes.
em. Atribuir-lhe a idéia de perigo é o mesmo que reafirmar os valores e
estruturas da sociedade que busca viver diferentemente do que se consi­
dera ser a "vida na favela". As categorizações a respeito de seus moradores variam de acordo
As atitudes e comportamentos dos favelados passam a ser vistos com os rumos da argumentação de quem profere o discurso: se um advo­
como poluentes, capazes de oferecer perigo aos que não são da favela. gado de acusação ou de defesa.
Isso porque estes que se incluem na categoria geral de favelado são tidos Um favelado pode ser classificado como "vítima da sociedade",
como "ladrões", "bandidos", "assaltantes", "delinqüentes", "marginais"; "criminoso", "traficante" , "marginal", "pobre, porém honesto". A varia­
"violentos" e "perigosos" . ção de sentidos depende da necessidade que o oficiante tenha. Ao nego­
Como esse rótulo genérico é atribuído aos moradores indistinta­ ciar os diferentes significados para a categoria favelado, ele pode estar
mente, todos eles são considerados perigosos, capazes de, ao se relaciona­ pretendendo ou aumentar a responsabilidade penal do delito ou dimi­
rem com as "pessoas do asfalto", contagiá-las com sua "falta" de valores nuí-la ou mesmo anulá-la.
308 Um Século de Favela Marg i n a i s , Del i nqüente s e V í t i mas 309

Há argumentações que tentam negar a identidade estigmatizada traficantes: "Ele mesmo ( o réu) disse que conhece d e vista u m desses tra­
do réu com ideais como: "apesar de favelado", não tem um comporta­ ficantes. O que por si só é péssimo".
mento característico deste; outras, ao contrário, reafirmam-na: "ele come­ Nessa fala está presente a idéia de que o simples fato de o réu ter
teu um crime porque estava no morro, um lugar propício para tal". algum contato com traficantes já o coloca sob suspeita . Com base nessa
Os dois argumentos têm como ponto de partida essa identidade es­ idéia se produzem outras argumentações, mas em sentido inverso. Argu­
tigmatizada: "no morro só há traficantes? Só há marginais? Mas também mentações de defesa buscam desconstruir a idéia de que o contato com o
há pessoas honestas. Pobres, mas honestas" . meio considerado "marginal" possa produzir esse tipo de comportamento.
No caso de o defensor de um réu precisar afirmar que na favela Tal argumento representa um esforço para impor a idéia de que
não existem só "marginais", ele está apontando para a existência de uma pode haver contatos sociais entre "marginais" e "não-marginais" sem o
categoria mais ampla, a de favelado, à qual deve atribuir novos significa­ contágio destes últimos. Esforço porque essa idéia está arraigada na socie­
dos - por exemplo, honestidade - diferentes dos que são correntes na dade, sendo também compartilhada pelos oficiantes do júri, os quais se
sociedade. valem dela ainda que para negá-la:
Como, ao formular seu discurso, o oficiante do direito pressupõe
que os jurados compartilhem determinados valores, ele procura atingi­
Senhores jurados, eu poderia estar no lugar do réu e ser confundi­
los, para que seu discurso seja eficaz.
do com um marginal porque já trabalhei entre favelados na Pasto­
Ao fazer uma defesa ou uma acusação em que o réu seja um fave­ ral junto ao morro da Formiga. Dessa forma eu poderia, então, ter
lado, o advogado ou promotor discutirá a partir do que considera ser a sido confundido com um dono de "boca-de-fumo" . Então, quer
opinião dos jurados. O fato de um advogado precisar dizer, numa fala de dizer que, porque eu conheço um marginal, eu sou um também?
defesa no júri, que na favela há pessoas honestas denota a crença gene­
ralizada a respeito da identidade "marginal" do favelado. Mesmo que o Conhecer um traficante, estar perto dele não prova associação com
agente do direito a esteja negando, não deixa de mencioná-la. o tráfico. Qualquer um poderia estar próximo de um marginal.
O mesmo pode ser observado quando se faz menção ao fato de o Apenas a presença física do meio marginal não prova que o réu
réu ser morador da favela e estar em contato com um universo e indiví­ tenha matado por causa de tráfico de drogas.
duos considerados perigosos.
Na sociedade existe uma crença, muito bem expressa pelo adágio Isto deveria ser investigado antes, mas ninguém sobe a favela para
popular "dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és", segundo a qual as perguntar: "fulano integra o tráfico?"
pessoas são capazes de influenciar o comportamento umas das outras. 15
Essa crença também está presente no universo que estamos examinando.
As argumentações são conduzidas dessa maneira porque, apesar
Há uma representação de que a favela, como "meio marginal", é capaz de procurarem impor uma "nova visão" através de sua fala, elas se ba­
de produzir "bandidos", uma vez que o mero contato com estes acaba seiam numa representação anterior, que apresenta a favela como um lugar
transformando o comportamento de "pessoas inocentes", devido às más de perigo. No discurso, usa-se todo um conjunto de idéias e categoriza­
influências. ções que fazem parte do rol de representações a respeito do que se acre­
Essa é a expressão da idéia do contágio, da poluição (Douglas, 1976) dita ser a favela. Por exemplo, num julgamento: " Esse rapaz é morador
social produzida por esse meio considerado marginal. A favela é vista da favela, mas é trabalhador" .
como lugar propenso a contaminar aqueles que nela estão envolvidos. Essa fala revela a noção mais ampla de favelado empregada nos
Essa idéia de poluição social produzida pelo contato com "margi­ discursos no júri. Significa dizer: mesmo que afirmem que nem todos os
nais" também está presente nas argumentações dos oficiantes do direito favelados são bandidos, isso deve ser dito, demonstrado com esforço, fa­
no tribunal do júri. Isso pode ser observado na fala de um promotor que, lando dos antecedentes do réu, porque a representação maior é que fave­
ao proferir seu discurso (no caso, pedindo a absolvição do réu por tentati­ la é lugar de "marginal", é lugar de perigo: "A vítima morreu porque
va de homicídio, por falta de provas), aponta como um dos pontos nega­ vivia nesse meio, o da favela. Assim como o réu está aqui porque vive
tivos, capaz de depor contra a absolvição do réu, o fato de este conhecer nesse meio".
312 Um Século de Favela Marg i n a i s , De l i n q ü e n te s e V í t i mas
313

anômico) é o ponto de partida, como na frase já citada: " Esse rapaz é mo­ Essa idéia d a vitimização decorre da representação segundo a
rador da favela, mas é trabalhador". qual, como excluídos da sociedade, eles não tiveram a possibilidade de
A qualidade de trabalhador é apresentada como uma espécie de compartilhar de seus valores. Sua condição de pobreza e de carência os
exceção à regra que não deve deixar de ser levada em conta, uma vez leva a conviver num universo de anomia. Por esse motivo, acabam envol­
que se apresenta como algo capaz de favorecer o réu. vendo-se no mundo da marginalidade. Estar nessa condição não é um
A condição de trabalhador torna-se então um símbolo de prestígio 16 ato de escolha, mas antes uma conseqüência de sua situação de exclusão.
para esse réu, capaz de diferenciá-lo e de produzir uma ambigüidade em Essa representação está presente nos discursos no júri nos casos
relação a sua identidade estigmatizada. Esse tipo de símbolo só pode ser em que os oficiantes procuram retirar por completo a responsabi lidade
usado como argumento a favor do réu e, quando em uso, deve remeter à penal do réu. Ela parte do princípio de que existe a crença de que o fave­
identidade anterior, acrescentando novos elementos capazes de retirar lado é vítima da sociedade, do lugar de exclusão e de carência que esta
ou diminuir sua responsabilidade penal.
lhe reserva e que faz com que ele acabe por cometer um crime, como po­
demos ver na seguinte alegação:
Não tenho mais o que falar. O réu é honesto, trabalhador, tem resi­
dência certa e carteira profissional. Seu único erro é ser do morro.
Esse homem (réu) é vítima da sociedade. Morava numa favela,
Será que no morro só tem bandido?
uma cabeça-de-porco, onde o banheiro é público. Ele não tinha
lazer, a alternativa que tinha era beber. Ao beber, acabou cometen­
A idéia da pergunta acima, que consta também da argumentação, do um ato impensado, atirou num momento de fúria, mas não
aponta para uma outra questão. Uma pergunta (Canetti, 1983) é uma teve o dolo de matar. 1 7
forma de utilização de poder por parte daquele que a faz. Na situação de
argumentador, aquele que a faz já sabe o tipo de resposta que irá ter,
mas sua intenção não é obtê-la, e sim introduzir uma dúvida a respeito Esse argumento indica uma outra ideologia: a ocupação como
da idéia corrente, que levou à formulação de tal questão. forma de evitar comportamentos desviantes. É a idéia foucaultiana
Perguntar se no "morro" só há "bandido" não é procurar respon­ (1987) da disciplina. Se o corpo é controlado por regimes disciplinares,
der à questão; é, antes, introduzir dados na nova identidade de favelado como o trabalho, por exemplo, o poder social, ou seja, as regras da socie­
que está sendo construída. É uma forma de atribuir i nsígnias de honesti­ dade não são quebradas, mesmo porque não há tempo para isso. O
dade (como a residência certa, a folha penal limpa) a uma identidade es­ corpo é então utilizado como instrumento do poder. Seu uso passa a
tigmatizada, transformando-a, colocando-a em outra ordem. estar fundamentado em sua utilidade prática.
A idéia de que existem agrupamentos sociais que não têm o que
fazer nem como ocupar seu corpo e seu tempo nos momentos de lazer
Os antecedentes do réu não o apontam como culpado. Hoje ele
implica considerá-los propensos a uma inadequação às normas sociais. A
está em uma situação favorável. A prova lhe favorece. Diante
conseqüência lógica desse tipo de raciocínio é que os indivíduos que
disso, não resta a esse promotor senão pedir a absolvição do réu.
fazem parte desses agrupamentos tendem a comportar-se indisciplinada­
Se ele realmente for traficante, voltará para cá ou como réu ou
mente, porque tendem a dar vazão aos seus desejos.
como vítima de um assassinato consumado.
É essa a idéia que está presente quando, no argumento anterior, o
orador diz que o réu não tinha o que fazer, ou seja, não tinha como disci­
Vítima social, ou quando a situação de favelado plinar-se. Sendo assim, tenderia para o crime. A questão, como temos
dito, é que há a pretensão de isentar o réu de responsabilidade quando
condiciona a irresponsabilidade penal
se usam argumentos desse tipo.
Outra maneira de representar o morador da favela no tribunal do Ele cometeu um ato delituoso porque é um indisciplinado, mas
júri é como "vítima da sociedade". não por sua vontade, e sim por sua condição de favelado, por conta do
314 Um Século de Fave l a Marg i na i s , D e l i nqüentes e Víti mas 3 15

lugar de onde provém, que não lhe dá possibilidade de escolha e de ade­ de social, mas como um ato de escolha ou produto de uma "personalida­
quação às normas sociais. de" voltada para o crime, questão que abordaremos a seguir.
O mesmo tipo de argumento podemos ver nos trechos a seguir:

Quando o crime é naturalizado: a situação


Vejamos o passado deste menino, que veio da favela e se transfor­
de favelado, apenas mais um condicionante
mou num menino de rua. Ele é uma vítima, quem deveria estar as­
sentado ali é o Estado, pelo descaso das autoridades públicas. O Entre as representações que ligam o crime à pobreza e ao meio de
réu matou? Não sei, ninguém sabe. origem, há no universo jurídico aquela segundo a qual se cometem cri­
mes porque existem indivíduos propensos a fazê-lo, seja por causa de
Este que está aqui é uma vítima da sociedade, assim como os so­ uma herança genética, seja por terem algum distúrbio psicológico (congê­
breviventes da chacina da Candelária, a maioria dos quais cumpre nito ou adquirido).
pena por roubo.
Essas idéias fazem parte do processo de socialização dos advoga­
Como acusar e questionar o comportamento deste homem, que se dos e remontam ao final do século XIX,18 quando chega ao Brasil a biolo­
envolveu numa briga de rua? Como falar em dignidade diante gia como modelo explicativo dos fenômenos sociais. Esse modelo relacio­
deste homem, que conheceu como casa telhados e árvores. É justo, nava patrimônio genético, aptidões e comportamentos sociais.
senhores jurados, condenar este homem? É justo colocarmos uma As faculdades de direito no Brasil incorporaram essas idéias atra­
cruz em seus ombros? vés da chamada escola positiva, surgida na Itália em fins do século XIX e
início do século XX. Essa escola tinha como um de seus pontos centrais a
compreensão do crime como um fenômeno físico e hereditário, detectá­
Nesse caso, a busca de isenção de responsabilidade se pauta pela vel nas diferentes sociedades. Sua proposição era criar uma "concepção
idéia de que alguém que não tenha sido criado com os valores da socie­ positiva do crime". 1 9
dade "normal" não pode apresentar um comportamento que esta consi­ Através das proposições de Lombroso, Garofalo e Ferri, mentores
dere adequado. Ou seja, um indivíduo que não partilhe de valores tais dessa escola, o crime passa a ser avaliado a partir do criminoso. Como
como família, que não tenha casa nem os valores a ela associados está fa­ método de análise, construíram-se tipologias de delinqüentes, a partir de
dado a ser um criminoso. Sendo assim, não deve ser condenado por seu seus tipos físicos e suas idiossincrasias. Não porque acreditassem que
comportamento porque, ao contrário de "criminosos comuns", não tem existia morfologicamente um tipo de delinqüente, mas porque argumen­
responsabilidade por seus atos, que não são fruto de escolhas indivi­ tavam que estes trariam em seus corpos anomalias comuns a todos os
duais, e sim conseqüência de sua situação social de excluído. que apresentassem o mesmo comportamento criminoso. A tipologia ser­
Há outro tipo de argumento cujo propósito é o oposto do referido via então para auxiliar na identificação de delinqüentes através do que
anteriormente. Mostrar que, ao invés de vítima, o réu é inteiramente res­ acreditavam ser seus estigmas típicos.20
ponsável por seu comportamento criminoso, como podemos ver a se­ Segundo essa escola, o criminoso era condicionado por sua morfo­
guir: logia, seu meio de origem e sua personalidade (seu caráter psicológico).
Este último elemento era de grande importância, pois acreditavam que
O acusado matou ou não matou a vítima? Ele foi forçado na dele­ um indivíduo, mesmo num "ambiente propício ao crime", só praticaria o
gacia a confess_ar? Vejam sua folha penal e tirem suas conclusões. delito se possuísse o "caráter ou o estado psíquico especial para tanto"
Ele já foi preso duas vezes por roubo, com violência. Este que está (Ingenieros, 1914:146).
aí é manso? É inocente? É vítima de sua condição de favelado? No Brasil, essas idéias foram introduzidas inicialmente nos cursos
de direito através dos estudos de criminologia e, após a década de 20, da
cadeira de medicina legal. Hoje, essa mesma cadeira é oferecida nas fa­
Nesse tipo de alegação, o comportamento de um indivíduo que culdades de direito com um conteúdo muito semelhante às proposições
tenha cometido um crime passa a ser visto não mais como uma fatalida- da escola positiva italiana.
316 Um Sécu l o de F avel a Marg i na i s , Del i n q ü e n tes e Vítimas 317

Na cadeira de medicina legal, existe ainda hoje em algumas facul­ Olhem para este homem. Ele não tem tipo de marginal. Não tem
dades de direito - como pude constatar21 - uma parte reservada a uma tipo de traficante. Um sujeito como este não tem cara nem caracte­
certa criminologia nos moldes da que foi introduzida nas escolas de direi­ rísticas de traficante, senhores jurados.
to no início deste século e na qual são tratadas questões referentes a base
biológica da criminalidade, base sociológica da criminalidade, classifica­
Nessa afirmativa, considerando que o réu em referência era bran­
ção dos criminosos, prognóstico, profilaxia e tratamento. Outros tópicos
co, há a crença implícita de que uma das marcas corporais de um crimi­
são reservados à chamada psicopatologia forense: doenças mentais, bioti­
noso é a cor da pele; isso porque existe um preconceito em relação aos ne­
pologia das personalidades psicopáticas e psicoses. Adotam-se manuais
gros difundido em nossa sociedade. Quando, num tribunal do júri, o
q;-1� discutem o crime e o criminoso à luz do determinismo morfo-psico­
advogado de defesa está diante de um réu originário da favela e branco,
logICo, tal como formulado originariamente pela escola italiana: "O co­
não hesita em usar, de maneira implícita, o argumento de que, por não
nhece-te a ti rriesmo socrático assenta, primeiro, no autoconhecimento bio­
apresentar em seu corpo uma das marcas que o incluiria numa tipologia
lógico, depois no psicológico e no moral. Se não há psiquismo sem
de delinqüente, ele é então inocente. Não se diz "esse homem é branco",
somatismo, para se compreender o mental é necessário estudar-se o orgâ­
mas "um sujeito desse não tem cara de marginal". Portanto, a delinqüên­
nico. (...) Os conhecimentos biológicos ministrados pela medicina legal
cia pode ser detectada por fatores externos, pelo tipo físico do réu.
aos estudantes de direito enriquecem-lhes a cultura científica, descorti­
Encontramos outro exemplo de idéias dessa escola na seguinte
nam-lhes mais vastas perspectivas no estudo do direito criminal, facili­
afirmação: " Esse homem não tem perfil de integrante de boca-de-fumo.
tam-lhes a compreensão da gênese dos atos humanos" .22
Integrante do fumo não leva tapa na cara".
A reprodução dessas idéias é uma constante nos itens que essa dis­ Encontra-se pois difundida nesse universo uma classificação ante­
ciplina reserva à identificação de criminosos. Citam-se autores como Ga­ rior do perfil psicológico criminoso e também do perfil de "criminosos"
rofalo, Ferri e Lombroso. Sobre os critérios formulados para a identifica­ originários da favela.
ção do criminoso encontramos o seguinte: N o caso, o argumento usado para retirar a responsabilidade penal
do réu é o fato de ele ter levado um tapa na cara e não reagido. Isso por­
que existe a representação de que um criminoso oriundo da favela tem
Examinaremos sucessivamente, sem maiores detalhes, a determi­
um perfil psicológico pautado pela violência. Se o réu não reage é porque
nação da raça, do sexo, da idade, altura, peso, conformação, sinais
sua personalidade não condiz com uma tipologia formulada ante­
individuais abrangendo cicatrizes, os sinais profissionais e tatua­
riormente acerca da psicologia de "marginais" e de "favelados marginais".
gens (Gomes, 1989:52).
Quando o que pretende é a isenção da responsabilidade pelo su­
posto delito, usa-se o argumento da personalidade, do perfil, da falta de
Nos livros adotados na disciplina de medicina legal, há fotografias marcas corporais . Isso porque, havendo referência à favela, existe a repre­
mostrando indivíduos anômalos (gigantes, anões, pessoas gordas, tatua­ sentação mais geral de que favelado é delinqüente por natureza. Ao se
gens, arcadas dentárias, indivíduos com sindactilia), o que reflete a idéia usar o argumento da personalidade, introduz-se outro elemento que di­
da escola positiva de que indivíduos degenerados apresentam anomalias minui o peso da condição de favelado, tornando-se esta apenas mais um
comuns. Essas idéias contribuem para formar a opinião dos advogados condicionante do ato delituoso.
atuais e acabam por refletir-se em seu ofício, quando se trata, por exem­
plo, de defender ou acusar um réu no tribunal do júri.
Conclusão
Por serem formados nessas idéias, os profissionais do campo jurí­
dico atual fundamentam seus argumentos, muitas vezes de maneira in­ Os profissionais do campo jurídico, ao reproduzirem representa­
consciente, com proposições originárias dessa escola. Por exemplo, há ções acerca da identidade estigmatizada do favelado, assim o fazem por
falas no júri em que o oficiante acusa ou defende o réu a partir do que conta do processo de socialização pelo qual se constituíram.
considera presença ou ausência de marcas corporais ou personalidade crimi­ Tendo-se formado numa sociedade e numa escola de direito (que,
nosa: como todas as escolas, incorpora as representações sociais e as sistematiza,
318 Um Século de Fave l a Marg i na i s, D e l i n q ü e n te s e V í t i ma s 319

transformando-as em saberes) que estigmatizam o favelado, esses profissio­ Para fins práticos, evitaremos citações em excesso. Fica, porém, registrado
nais tomam-se uma espécie de prisioneiros de nossas crenças sociais. que utilizamos aqui as argumentações do autor.
Nos debates do júri, essa "prisão" é ainda mais evidente por conta
da eficácia que cada "parte" procura emprestar ao seu discurso. Tais par­ 4. O sistema judiciário brasileiro "é organizado em diferentes níveis de juris­
tes, ao atuarem, procuram adequar-se aos valores e às ideologias daque­ dição, chamados de instâncias, que constituem degraus progressivos numa
les a quem se dirigem. sucessão de apelações. Existem juízos singulares e tribunais do júri na pri­
meira instância, tribunais regionais na segunda instância e tribunais superio­
Uma vez que os oficiantes discursam para os membros da socieda­
res na terceira instância. Esses níveis jurisdicionais são graduais: os juízos
de, suas argumentações vão ao encontro do que acreditam ser os valores
singulares classificam-se em entrâncias e, juntamente com os tribunais re­
dessa sociedade. Por isso as falas do júri reproduzem ou, quando muito,
gionais, subordinam-se ao Tribunal de Justiça (âmbito estadual). Estes e os
inovam pontos de vista baseados em representações sociais já sedimenta-
tribunais superiores estão subordinados ao Supremo Tribunal Federal"
das. (Lima, 1994:4).
Podemos corroborar tal afirmativa com os dados até aqui apresen­
tados a respeito de como os favelados são vistos no júri. As referências 5. Um crime, para ser julgado pelo tribunal do júri, passa por uma série de
que pudemos encontrar reproduzem as idéias que a sociedade inventa etapas que são iniciadas (Lima, 1995:75) com um flagrante feito pela polícia,
acerca desse grupo social. Mesmo quando alguns advogados, ao falar que se encarregará de produzir provas da autoria do delito, sem que haja
sobre favelados, procuram dar a seus discursos rumo oposto ao das re­ nessa fase participação da defesa do acusado. Finda essa fase, é enviado para
presentações correntes, acabam reafirmando uma representação mais o Ministério Público o inquérito policial, que traz provas produzidas sem o crivo
geral, que permanece. do contraditório (sem a presença das partes), depoimentos do acusado e de tes­
Em certas falas, esses profissionais afirmam que nem todos os fave­ temunhas; de posse deste, o promotor decide se fará ou não a "denúncia"
lados são marginais; que ter contato com eles não oferece perigo; que (acusação pública) contra o acusado. Fazendo-a, é iniciado o inquérito judicial,
existem favelados honestos e trabalhadores. O que permanece, no entan­ no qual o juiz chama os envolvidos para depor (já com a presença da acusa­
ção e da defesa); caso fique convencido de que há indícios da autoria do
to, é que toda vez que procuram renegociar a identidade do favelado, o
crime por parte do acusado, o juiz o pronuncia, transformando-o em réu que
ponto de partida é o estigma, o lugar da "anormalidade", da anomia, da
será julgado pelo tribunal do júri.
carência. Por isso, mesmo quando se usam símbolos de prestígio, tais como
uma folha penal limpa e uma carteira de trabalho, permanece a categori­ 6. Campo jurídico "é o lugar de concorrência pelo monopólio do poder de
zação mais geral acerca desse grupo. Favelado continua sendo "margi­ dizer o direito ( ...) no qual se defrontam agentes investidos de competência
nal", e os que não confirmam a regra são exceção. ao mesmo tempo social e técnica, que consiste na capacidade reconhecida de
interpretar ( ... ) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do
mundo social" (Bourdieu, 1989:212).
Notas
7. "Todo brasileiro, homem ou mulher, está apto a servir como jurado desde
1. Técnica de investigação antropológica que consiste em colocar o pesquisa­ que seja nato ou naturalizado, maior de 21 anos e cidadão idôneo" (Marques,
dor em contato com seu objeto de estudo, a fim de poder compreendê-lo do 1963:90-1).
ponto de vista daqueles que constituem o objeto em questão.
8. "Tradição da inquirição portuguesa" (Lima, 1995:84) - que, em sua ori­
2. "A noção de campo é, em certo sentido, uma estenografia conceitua! de gem, aparece para lidar com as desigualdades de uma sociedade aristocráti­
um modo de construção do objeto que vai comandar - ou orientar - todas ca, fornecendo, através do Estado, princípios de justiça a todos.
as opções práticas da pesquisa. ( ...) Por meio dela torna-se presente o primei­
ro preceito do método que impõe que se lute por todos os meios contra a in­ 9. O sistema adversário opõe-se ao acusatório e ao inquisitorial porque, de
clinação primária para pensar o mundo social de maneira realista ou substan­ acordo com Kant de Lima (1995), as partes, e não o juiz, controlam a iniciativa
cialista, pensando-o de forma relacional" (Bourdieu, 1989:27-8). do processo. De acordo com o mesmo autor, o "sistema inquisitório surge dos
procedimentos eclesiásticos, como forma de dar acesso à justiça aos fracos, po­
3. As considerações nesse item se baseiam na tese apresentada ao concurso bres e oprimidos (a lei é igual para todos), em uma sociedade nitidamente re­
de professor titular de antropologia da UFF pelo prof. Kant de Lima (1995). presentada como marcada por hierarquias e desigualdades substantivas. O
Marg i n a i s , D el i n q ü en tes e V í t i mas 321
320 Um S é c ulo de Favela

partir d o final d o século XIX, oriunda d e universid;,des européias, cursadas


sistema acusatório, por sua vez, remete a urna representação igualitária dos
depois das faculdades nacionais de direito e medicina), que assumiram posi­
contendores, que se defrontam, cada um por si, em iguais condições (todos
ções teóricas tais como o darwinismo social, o evolucionismo e teorias funda­
são iguais perante a lei), em urna arena de acusações públicas".
das no determinismo geográfico. "Do darwinismo social adotou-se o suposto
10. Por exemplo, quando o juiz, ao iniciar o julgamento, faz a leitura do relató­ da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizas­
rio do processo, ou quando a acusação inicia a sua fala e lê o libelo crime acusató­ sem as implicações negativas da miscigenação. Das máximas do evolucionis­
rio ou quando alguma das partes requer a leitura de alguma peça (partes) do mo social sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam es­
processo antes do debate oral. tacionadas, mas em constante evolução e aperfeiçoamento, obliterando-se a
idéia de que a humanidade era una. Buscavam-se, portanto, em teorias formal­
1 1 . Apesar de não estarmos tratando dos casos das "chacinas", o que pode­
mente excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando
mos observar é que um réu confesso, corno foi o caso do PM citado, pode ser
modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso" (Schwarcz, 1993).
absolvido quando, implicitamente na sociedade, o extermínio é visto corno
urna prática eficaz para eliminar ou diminuir a delinqüência . 19. "Foi assim que nasceu a concepção positiva do crime, aplicando-se ao es­
tudo deste as regras do método científico e lançando os alicerces da crimino­
1 2 . "O espaço social é construído de tal modo que os agentes ou grupos são
logia. E isso com o auxílio da escola italiana, cujos chefes eram Lornbroso,
distribuídos em função da posição ( ... ) de acordo com os dois princípios de
Ferri e Garofalo. O método positivo comum aplicado ao estudo particular
diferenciação ( . . .) o capital econômico e o capital cultural. Segue-se que os
dos fenômenos específicos da patologia humana e social nos ensina que estes
agentes têm tanto mais em comum quanto mais próximos estejam nessas
devem ser encarados em três fases: as causas, as manifestações e as modifica­
duas dimensões, e tanto menos quanto mais distantes estejam nelas" (Bour­
dieu, 1 996a : 19). ções terapêuticas" (Ingenieros, 1914:1 39).

1 3 . Nos debates que ocorrem no j úri, as "partes" têm direito de falar duas 20. Por exemplo, Lornbroso, com sua tabela de tipos subdividida em elemen­
horas cada, sendo a primeira fala a da promotoria. Finda a fala da defesa, tos anatômicos, como o tamanho do cérebro, as arcadas dentárias, as mandí­
caso a promotoria queira reargumentar, tem direito a mais meia hora de "ré­ bulas; fisiológicos, corno a ambidestria, olfato ou paladar frJco ou forte; psi­
plica", e a defesa, por sua vez, a mais meia hora de "tréplica" . cológicos, corno falta de atividade, inibição; e, por fim, sociológicos, corno a
existência de tatuagens pelo corpo, elementos que seriam reveladores do
14. "A própria noção d e desviante vem tão carregada d e conotações proble­ lugar de origem (Schwarcz, 1993:166).
máticas que é necessário utilizá-la com muito cuidado. A idéia de desvio im­
plica, de um modo ou de outro, a existência de um comportamento 'médio' 21. Analisei o conteúdo programático da cadeira de medicina legal nos cur­
ou 'ideal', que expressaria urna harmonia com as exigências do funcionamen­ sos de direito das faculdades Presidente Antônio Carlos (Ubá, MG) e Cândi­
to do sistema social" (Velho, 1981 :17). do Mendes (Rio de Janeiro, RJ).

1 5 . Não é nossa intenção discutir teoricamente a influência do meio e dos 22. Gomes (1989:8). Utilizamos a 26ª edição desse manual . Isso mostra que
contatos sociais, mas antes discutir corno a sociedade pensa esses contatos. serviu a muitas gerações de profissionais de direito no Brasil, contribuindo
para o seu processo de socialização.
16. "Símbolos de prestígio podem ser contrapostos a símbolos de estigma, ou
seja, signos que são especialmente efetivos para despertar a atenção sobre
uma degradante discrepância de identidade que quebra o que poderia, de
outra forma, ser um retrato global coerente, com urna redução conseqüente Referências bibliográficas
em nossa valorização do indivíduo" (Goffrnan, 1988:53) . Lima, C. Araújo. Os grandes processos do júri. Rio de Janeiro, Lurnem Juris,
17. Esse argumento foi utilizado num caso em que o réu, ap.ós beber e ser 1996. V. 1 .
chamado de "corno" (o que é traído pela esposa), foi em casa buscar urna
Bourdieu, P. Sistema d e ensino e sistema d e pensamento. l n : Bourdieu, P .
arma para atirar em quem o havia agredido verbalmente.
A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1 987.
18. Então, penetram no Brasil outras idéias do pensamento social da época: as
- - -. A força do direito - elementos para umJ sociologiJ do campo jurídi­
teorias deterministas. Estas entram em nosso campo intelectual por intermé­
co. ln: Bourdieu, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989 .
dio de nossos "homens de ciência" (elite intelectual que se forma no Brasil a
322 Um Século de Fave la

---. Espaço social e espaço simbólico. ln: Bourdieu, P . Razões práticas.


Os universitários da favela
<
Campinas, Papirus, 1996a.
---. __Lm?uagem e poder simbólico. ln: Bourdieu, P. A economia das trocas
º
. ,
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Canetti, E. Massa e poder. São Paulo, Melhoramentos, UnB, 1983. C e c í l i a L . Ma r i z
S í lvia Reg i na Alves Fernandes
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Fou�ault, Michel. Os corpos dóceis. ln: Foucault, M. Vigiar e punir. Petrópo­
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Por que estudar os universitários da favela ?
Gomes, H. Medicina lega l. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1989.
O tráfico de drogas, a criminalidade, a violência são hoje e m dia os
lnge�ieros, J. �lassificaç�o no;ª dos _delinqü_entes. ln: lngenieros, J. As forma­
_ . aspectos mais marcantes não só da imagem que a mídia divulga das fave­
çoes natu ra is na fzlosofza bwlogzca. Lisboa, Tipografia de Francisco Luiz Gon­
las do Rio de Janeiro, mas também da idéia que delas fazem os morado­
çalves, 1914.
res de outras áreas da cidade. Por isso a literatura das ciências sociais
Leeds, Anthony & Leeds, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janei­ sobre favela tem recentemente focalizado esses problemas sociais. Isso
ro, Zahar, 1964. não significa que todos os estudos se debrucem apenas sobre os aspectos
�ª-
Lima: R. Kant ?e. A p�l!cia cidade do Rio de Janeiro. Seus dilemas e pa radoxos.
negativos dessas áreas. Pesquisas sobre associação de moradores, lutas
pela legalização da terra, participação em movimentos sociais e mesmo
R10 de Janeuo, Pol1C1a Militar do Estado do Rio de Janeiro, 1994.
atividades lúdicas, como escolas de samba e bailes funk, também contri­
--- . Da inquirição ao jú_ri: modelos para a produção da verdade e a negociação da buem muito para ampliar o conhecimento sobre as favelas. No entanto,
culpa em u ma perspectiva comparada (Brasil/EUA). 1995. (Tese para Profes­ esses trabalhos em sua grande maioria tendem a colocar os hab itantes
_
sor Titular de Antropologia da UFF.) das favelas num universo cultural distante daqueles que estão no "asfal­
Marques, F. A instituição do júri. São Paulo, Saraiva, 1963. v. l . to" . Sem negar que essa distância cultural - que na verdade reflete em
parte uma oposição e uma diferença dos interesses desses grupos - exis­
Pereira, A . B a ndidos e favelas (uma contribuição ao estudo do meio marginal cario­ te e persiste, queremos chamar a atenção para os processos de aproxima­
ca). Rio de Janeiro, Eu e Você, 1984. ção que estão ocorrendo entre os da "favela" e os do "asfalto". Pretende­
Perlman, J. O mito da marginalidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. mos neste trabalho entender a dinâmica, os limites e o alcance de um
desses processos. Assim, embora haja outros processos de aproximação,
Perelman, _ C. Argumentação. ln: Oral/ escrito (argumenta ção). Lisboa, Impren­ falaremos aqui apenas de um que é a chegada à universidade de habitan­
sa Nacional-Casa da Moeda, 1987. v. 1 1 . tes de favelas.
Sch arcz, L. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racia l n o Bra­
":
sil (1870-1 930). São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
CECÍLI A L. M ARIZ é da Uni,·ersidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), S íLVlA R EGINA
Velho, Gilberto. Estigi:11ª e comportamento desviante em Copacabana. In: A LVES FER:\ANDES é aluna do mestrado em ciências sociais (Uerj) e ROBERTO BATISTA é bol­
Velho, G. Desvw e divergência. Rio de Janeiro, Zahar, 1981 . sista de aperfeiçoamento, do CNPq.
324 Um Século de Favela Os U n i vers i tários da Favela 325

Recentemente, tem-se notado maior presença, em certos cursos pulação, como também pode implicar redefinições no encaminhamento
nas universidades do Rio de Janeiro, de estudantes de origem popular das lutas e da forma de organização popular nessas áreas. Por outro
em geral, vários dos quais moram em favelas (Novaes, 1994). Esse fenô­ lado, identificar o que permite a alguns fugir ao círculo vicioso que leva
meno tem sido observado especialmente por professores de cursos das à exclusão e à marginalidade pode ser tão ou mais útil para propostas de
áreas humanas, tanto nas universidades públicas da cidade como nas políticas sociais quanto apontar esse círculo vicioso. Ao buscarmos iden­
universidades particulares que têm programa de bolsas. É evidente que tificar os fatores que levam certos indivíduos a romper o círculo vicioso
esses estudantes são minoria, tanto nas universidades como nas áreas da pobreza e ainda evitar o fracasso escolar a que pareciam estar conde­
onde moram,1 mas mesmo assim não podemos explicar sua existência nados, estamos adotando um enfoque similar àquele proposto pelo soció­
como simples exceções . O aparecimento desses universitários indica uma logo israelense Aaron Antonovsky para estudar sociologicamente saúde
tendência de mudança nas favelas. Conhecer o perfil desses indivíduos e e estresse.
sua visão de mundo pode ajudar a entender que mudança é essa, que fa­
Analisando os trabalhos em sociologia médica, Antonovsky (1982:
tores contribuem para ela e que direção parece estar tomando.
13, 36) chama a atenção para o predomínio do enfoque analítico que ele
Como já mostrou Alba Zaluar (1985:64-5), a percepção - subjacen­ chama de modelo da patogênese. Nessa perspectiva de análise, a principal
te nos trabalhos acadêmicos e nas políticas públicas da década de 60 e pergunta que se faz é: "como surge a doença?" Para respondê-la, os pesqui­
início da de 70 - de que as favelas são um fator físico e ecológico gera­ sadores procuram identificar os transmissores de doenças e os fatores estres­
dor de marginalidade vem sendo superada. A urbanística da favela não santes que enfraquecem o paciente e o levam a adoecer. Mas Antonovsky
é mais considerada o principal problema nem o elemento causador da chama a atenção para a ubiqüidade de elementos potencialmente patógenos
marginalidade no Rio de Janeiro. Embora a favela não seja mais o único - microbiológicos, químicos, físicos, psicológicos e sociais, entre outros -,
lugar de pobreza e marginalidade, pois outras áreas, como a Baixada, e parece-lhe evidente que as pessoas sucumbam ao bombardeio desses ele­
são tão ou mais pobres, as diversas análises sobre as favelas enfocam, em mentos. Assim, argumenta que, dada a ubiqüidade desses elementos, a ques­
geral, as mazelas e a pobreza dessas áreas e mostram como essa pobreza tão mais intrigante é: por que certas pessoas resistem à doença? A saúde pa­
implica muito menos vantagens e possibilidades sociais, levando jovens rece ser mais difícil de ser explicada do que a doença. Por isso, ao invés dos
ao ingresso no tráfico de drogas e ao fracasso e à evasão escolar. Destaca­ doentes, Antonovsky se propõe esh1dar as pessoas que estão saudáveis,
se que os jovens das favelas se encontram num círculo vicioso de pobre­ para identificar os elementos que as ajudam a escapar das doenças. Esse mo­
za, passando a reproduzir e reforçar a situação de exclusão e marginali­ delo centrado na saúde, no qual a questão primordial se refere aos fatores
dade material e cultural em que vivem suas famílias. Poucos estudos ten­ que geram a saúde e não a doença, ele chama de modelo da salutogênese.
tam explicar como algumas pessoas conseguem escapar disso. Tanto já
Nossa referência a Antonovsky absolutamente não significa que
foi repetido que pobreza gera pobreza e por vezes desvio, que se tornou
consideramos a pobreza uma doença, nem que estamos adotando um �?­
muito difícil, e mais complicado, explicar como alguns rompem esse cír­
delo de patologia social à la Durkheim para entender os problemas soo� is.
culo vicioso. De fato, considerando todas as condições sociais que incen­
Não pretendemos fazer nenhuma analogia entre o biológico e o social.
tivam os jovens a abandonar a escola, como explicar a motivação dos
Nosso interesse em Antonovsky é sua proposta metodológica e sua suges­
que se esforçam e chegam a entrar na universidade, conseguindo romper
tão quanto ao redirecionamento de questões e temas �a pesquisa. S�us_ ar­
tal círculo e por vezes até alcançar melhor situação social? Que outras gumentos nos inspiraram a focar a atenção num fenome�o ���nhtah_va­
forças em jogo podem se opor à carência de recursos materiais e sociais, mente menor, mas que ganha importância por ser o de mais dificil explica­
já mencionada, que limita a possibilidade de mudar de condição de ção. Parece-nos sociologicamente mais difícil compreender como certos
vida? Não podemos aceitar a idéia de que os universitários encontrados jovens de famílias pobres de favelas chegam à universida�e e conseguem
na favela são exceções, pessoas especiais cuja vida particular nada teria evitar o mundo do crime do que explicar como os demais permanecem
em comum com a dos demais habitantes de sua comunidade. Também numa situação de exclusão. Portanto, nosso objetivo aqui será tentar iden­
rejeitamos o argumento de que o estudo desse grupo, por ser numerica­ tificar que forças e/ ou elementos motivam esses jovens a desenvolver es­
mente insignificante, em nada contribui para o entendimento sociológico tratégias integradoras que se contrapõem ao processo de exclusão. Interes­
da realidade. Por um lado, o fato de moradores da favela chegarem à uni­ sam-nos pois os processos de integração dos jovens de camada popular e
versidade não apenas significa mudança no perfil educacional dessa po- as estratégias de ascensão social por eles desenvolvidas. Tal como o traba-
326 Um Século de Favela Os Un ivers i tários da Favela 327

lho realizado por Novaes, Catela e Nascimento (1996:1-2), nosso estudo se priamente de renda. A melhora material e econômica proporcionada pela
propõe identificar algumas das "dinâmicas integradoras" que estão dispo­ educação superior não ocorre necessariamente no mesmo grau que a mu­
níveis para os jovens das favelas e que os têm incentivado a buscar d1ais dança de visão de mundo trazida por essa mesma educação. Entre os cur­
instrução e entrar numa universidade. sos superiores em que mais freqüentemente encontramos estudantes de fa­
Através de contatos que tínhamos previamente a este trabalho velas, como veremos mais adiante, estão os que oferecem diplomas com
com alguns estudantes universitários moradores de favelas, notamos que menor valor no mercado de trabalho; claramente, a ascensão promovida
muitos deles tinham ou tiveram uma vivência religiosa importante em por esses cursos será basicamente de status. Uma ascensão desse tipo pro­
grupos católicos. Essa observação nos levou a levantar uma hipótese rela­ vavelmente terá causas e conseqüências sociais bem diferentes de outros
cionando o ingresso de jovens da favela na universidade com a prática re­ tipos de ascensão, que pode ser basicamente econômica, como aquela ex­
ligiosa. Tal hipótese também se inspirou na literatura que chama a aten­ perimentada, por exemplo, pelos que tiveram relativo sucesso financeiro
ção para o pápel integrador e de agente motivador de ascensão e luta com o comércio em suas favelas.
social desempenhado pelos grupos religiosos em camadas populares Há poucos estudos sobre a ascensão social no Brasil.2 Parece sub­
(Mariz, 1994). Respaldou-se igualmente em pesquisas recentes no Rio de sistir certo preconceito de origem marxista em relação a esse tema.
Janeiro (Novaes et alii, 1996; Mesquita, 1995; Pinheiro, 1997), que mos­ Supõe-se que analisar a mobilidade social é reconhecer e de certa forma
tram o papel integrador desempenhado por grupos religiosos na vida "pregar" a existência da ascensão social, negando a oposição entre as
dos jovens das camadas populares. De certo modo, estamos aqui tentan­ classes e defendendo assim o status quo e a opressão social através de
do dar continuidade a algumas idéias desenvolvidas em trabalhos ante­ uma ideologia de "querer é poder". É comum acusar de conservadores
riores sobre religião e enfrentamento da pobreza, nos quais se discutia o os trabalhos sobre esse tema. Analogamente, considera-se que a busca de
papel das igrejas pentecostais e das comunidades de base na luta pela ascensão individual está quase sempre na contramão da luta pela mudan­
sobrevivência e a melhora material das camadas populares no Brasil ça social. Queremos neste texto contestar essa visão. Como veremos, nos­
(Mariz, 1994). Sabemos que não é novidade discutir o papel integrador sos dados nos sugerem que a luta pela ascensão individual pode se atre­
de grupos religiosos. Mas nossa questão aqui é mais ampla: queremos lar a uma proposta de mudança social e vice-versa.
saber se de fato a religião tem motivado jovens da favela para um tipo es­ Para responder à questão levantada por nossa hipótese da relação
pecífico de ascensão social: a ascensão via educação universitária. Se entre religião e ingresso de moradores da favela em curso superior, realiza­
assim for, passamos a nos perguntar: como isso ocorre? Todos os grupos mos uma pequena pesquisa exploratória, visando apenas a levantar pistas e
religiosos enfatizariam esse tipo de ascensão? novas questões para serem aprofundadas no futuro. Nossa análise é basea­
Apesar da propalada desvalorização dos títulos de cursos de nível da em entrevistas com moradores das favelas da Rocinha e da Maré que ti­
superior, obter um diploma universitário é ainda um indicador de ascen­ veram ou têm vivência universitária. Nessas entrevistas, procuramos cons­
são social. Os que têm educação superior em geral têm melhor remunera­ truir a história de vida de cada um de nossos sujeitos. Nosso objetivo era
ção, mesmo que esse rendimento seja também afetado por fatores outros avaliar nossa hipótese sobre os fatores que ajudam esses jovens a chegar à
como raça, gênero e origem social. No entanto, se por um lado a educa­ universidade e obter um diploma, apesar de todas as dificuldades, já tão
ção superior nem sempre acarreta uma transformação objetiva na posi­ conhecidas e discutidas, que enfrentam os indivíduos de camadas popula­
ção econômica do indivíduo, proporcionando-lhe maior nível de renda, res para realizar tais projetos. A aplicação de questionários a estudantes do
por outro, obter um diploma de curso superior significa uma ascensão Curso Pré-vestibular para Negros e Carentes da Rocinha e ainda o prévio e
em termos de status e também uma mudança subjetiva, que implica uma amplo conhecimento do campo (Rocinha e Maré) por dois dos autores
nova visão de mundo, novos valores, nova postura política e nova atitu­ deste estudo complementaram os dados obtidos através das entrevistas.
de em relação ao gênero.
Assim, quando definimos como nosso objeto de estudo o universi­
tário da favela, estamos preocupados não apenas com o problema das di­ O que disseram nossos entrevistados
nâmicas integradoras pelas quais os jovens de camadas populares evitam Entre estudantes e já graduados na universidade, entrevistamos
o desvio social, mas também com o problema da ascensão social . Contu­ nove pessoas (três graduados e seis estudantes). Para não identificar nos­
do, essa ascensão, como já dissemos, pode ser mais de status do que pro- sos informantes, usamos aqui pseudônimos.
328 Um Século de Favela Os U n i v e r s i tó r i o s da Fave l a 329

O primeiro elemento que nos chama a atenção é que, embora anos vem tentando passar sem sucesso. A perseverança é uma qualidade
todos comentem o desejo de melhorar de vida e conseguir um er1prego importante para conseguir entrar na universidade. Essa perseverança,
que lhes permita satisfazer sua aspiração de uma vida mais confortável, para alguns, resulta do apoio familiar, da determinação pessoal e tam­
a motivação para ter um diploma não é meramente econômica. Isso fica bém do exemplo e do apoio de um grupo de amigos - o apoio de ami­
claro em várias entrevistas. Marluce, 32 anos, acha que é importante gos e colegas é mais freqüentemente mencionado pelos que participam
fazer um curso superior para adquirir conhecimentos em geral, ficar in­ do movimento Pré-vestibulares para Negros e Carentes, que analisare­
formada sobre a realidade e também porque sente necessidade de cres­ mos mais adiante.
cer. Kardecista e ex-militante do PT, criada na Rocinha, essa estudante de O apoio familiar é sempre tido como importante pelos entrevista­
serviço social tenta organizar grupos de mulheres, e sua motivação para dos. Em geral esse apoio é mais afetivo e psicológico, mas em alguns
estudar está portanto ligada a sua luta e interesse por trabalhos comuni­ casos é também material. Por vezes, quando há maior estabilidade econô­
tários e políticos. A declaração de Arlindo, bacharel em direito pela UFRJ mica, os pais não exigem que os filhos contribuam materialmente para as
e morador da favela da Maré, revela motivação semelhante à de Marlu­ despesas da casa e permitem que eles destinem o que ganham ao custeio
ce. Diz ele: "eu sempre fui meio inconformado com a realidade, sempre de seus estudos, como foi o caso de Otávio e Bartolomeu, da Rocinha,
achei que a vida tinha que ser diferente, que não era justo, por exemplo, que tiveram que pagar o cursinho que fizeram numa escola particular, a
algumas pessoas terem muita coisa e outras não terem quase nada ( ...), Hélio Alonso. Alguns pais, como os de Arlindo, da Maré, chegaram a
eu então achava que de repente eu podia ser alguém que ajudasse a manter os filhos sem trabalho por um ou dois anos, quando o curso supe­
mudar essa situação, então eu precisava de um curso (... ). Eu dizia: 'vou rior exigia-lhes muito tempo de estudo. O grande incentivo familiar é
estudar para defender o pessoal pobre"'. Um mesmo tipo de preocupa­ mesmo afetivo e motivacional, como afirma Otávio. Segundo ele, apesar
ção humanitária e política reaparece na entrevista de Carmem, estudante de analfabetos, seus pais incentivaram muito os filhos a estudar, "talvez
de psicologia na Fahupe, quando ela afirma que queria fazer uma facul­ devido às dificuldades que passaram por não ter instrução" . Na sua famí­
dade "para ajudar as pessoas de alguma forma". lia, dos sete filhos, os dois caçulas fizeram curso superior. Outro entrevis­
Isso não significa que não seja forte a motivação para conseguir um tado relata como foi motivado por um tio, que o fazia lembrar o quanto
emprego melhor. Todos dizem querer também melhorar economicamen­ seu pai sofrera por não ter estudado. "Na minha família havia essa co­
te, mas apenas Otávio, negro de 34 anos e formado em química industrial, brança, a minha avó dizia 'estude para você ser alguém na vida'." A maio­
coloca explicitamente sua motivação econômica como primordial. Como ria considera que a família teve papel importante, incentivando a estu­
quase todos (há exceções) conseguem apenas ingressar em cursos de ciên­ dar, mas há casos como o de Carmem, que comentou: "sinto que meu
cias humanas, onde é menor a disputa por vagas e onde se sabe de ante­ pai, devido à pouca formação dele, não soube motivar a gente até
mão a dificuldade no mercado de trabalho, fica claro que a motivação eco­ mesmo para um trabalho melhor (...), ele falava muito que nunca i a
nômica não pode ser a mais importante. A pouca ênfase no mercado de poder pagar estudo para a gente (... ), então isso bloqueava a nossa expec­
trabalho e na profissionalização também se notam nas respostas dos 23 es­ tativa, nosso desejo de querer vencer profissionalmente" .
tudantes do pré-vestibular que responderam ao questionário: apenas qua­ Em geral, os jovens universitários d a favela fizeram mais d e uma
tro relacionaram sua motivação para entrar na universidade com o merca­ tentativa de ingresso através do vestibular, e nenhum dos entrevistados
do de trabalho; a maioria (15) alegou o desejo de realização pessoal, e três entrou no curso de sua escolha no primeiro vestibular que prestou. Para
apresentaram motivos ideológicos, afirmando que com curso superior po­ alguns, a frustração de não passar da primeira ou da segunda vez retar­
deriam contribuir mais para mudar a sociedade. dou uma nova tentativa, mas não os levou a desistir. No entanto, mencio­
Não falar tanto sobre o mercado de trabalho pode revelar uma nam-se casos de conhecidos que, desestimulados, desistiram de vez. O
visão realista dos estudantes, que reconhecem os limites profissionais que faz alguns não desistirem facilmente e terem disposição para tentar
dos diplomas que vão conseguir. Os cursos que mais profissionalizam o vestibular outras vezes, até quatro vezes, como fez Flávio, um de nos­
são os que apresentam maior dificuldade de ingresso. Os entrevistados sos entrevistados? Ele explica que foi o seu grupo de amigos. Tendo deci­
afirmam, por exemplo, não conhecer ninguém em sua favela que tenha dido ingressar no Pré-vestibular para Negros e Carentes junto com ou­
ingressado no curso de medicina, embora saibam de alguns que tenta­ tros amigos da Juventude Operária Católica QOC), Flávio conta que al­
ram esse vestibular. Um entrevistado lembra de uma moça que há cinco guns entraram na faculdade antes dele, mas sempre o incentivaram a es-
330 Um Século de Fave l a Os Un iver s i tá r i o s da Favela 33 1

tudar, pois permaneceram ligados ao curso como diretores. N o pré-vesti­ que os viram crescer, têm orgulho daquilo que alcançaram . Mesmo co­
bular, Flávio conheceu sua atual esposa, e juntos continuaram estud 11D­ nhecendo v,í rios outros moradores da favela que também têm curso supe­
do. Da mesma forma, Carmem, que também participou de pastoral 1·
rior, sabem que eles si'io minoria. Por isso, sentem uma responsabilid c1de
católica, lembra que quem lhe deu apoio e incentivo foram outros jovens social para com su a favela. Como diz Arlindo: "eu acho que é importante
de sua favela, a maioria dessa mesma pastoral, os quais já tinham conse­ também il gente puder diL. e r: 'olha, tem um monte de gente c1qui que estu­
guido entrar na universidade. Assim, os amigos que têm meta similar, es­ dou, que está fazendo faculdade; pobre, sem nenhum apoio, nenhum estí­
tejam ou não num mesmo movimento religioso, são importantes para mulo ( ... ), se esforça tanto que consegue"; e conclui: "é, o pessoc1l gostava,
gerar perseverança. Parece-nos que o cursinho pré-vestibular, que anali­ admirava". Apenas uma dc1s entrevistadas não estava engc1jada numa ati­
saremos adiante, também contribui para o sucesso no vestibular, na me­ vidade social ou política em sua favela; e somente essa mesma entrevista­
dida em que cria um grupo de amigos que se estimulam mutuamente, o da declarou que pretendia mudar-se da favela. Os demais, embora fos­
que impede que alguns desistam da meta antes de haverem tentado o sem também mudar-se, explicavam que o faziam por outros motivos,
bastante . Como é raro alguém ser aprovado logo no primeiro ano, o como trabalho ou casamento com alguém de outro lugar. De qualquer
grupo contribui também para impedir a evasão e o desânimo. Coordena­ modo, deixavam claro que não viam essa saída da favela como parte de
dores do pré-vestibular da Rocinha, que são estudantes universitários, seu projeto de ascensão social. Assim, faz parte do discurso desses estu­
comentando a respeito dessa dificuldade para entrar na universidade, dantes a afirmação e valorização de sua origem social.
brincavam uns com os outros dizendo que alguns tinham ficado no cursi­ Por outro lado, a experiência na faculdade traz suas dificuldades.
nho tanto tempo quanto num curso superior (quatro anos), até consegui­ Muitos falam de decepção e de sensação de estar forc1 de seu lugar. Um
rem passar no vestibular. Um deles gracejou: "quase fiz meu doutora­ entrevistado comentou a respeito de seus professores na universidade:
mento em pré-vestibular". " [eles] passavam pra gente que você precisava ter toda uma história de
Uma experiência comum a todos é o trabalho desde a adolescên­ vida pra você fazer alguma coisa na área de direito, ter pistolão (... ), pra
cia. O trabalho fez alguns adiarem seu projeto de continuar estudando. mim foi decepcionante". Outra entrevistada relata sua dificuldade com
Alguns chegaram a interromper o curso secundário, outros pararam de os colegas: "Então o contraste começou ( . .. ), eu tenho uma realidade de
estudar ao concluir o segundo grau e passaram alguns anos apenas traba­ vida: moro em favela, pago faculdade com muito sacrifício, e o povinho
lhando. No entanto, para muitos essa experiência no mundo do trabalho lá é de outra realidade (.. . ), vão fazer psicologia às vezes para resolver
também contribuiu para fortalecer o desejo de estudar na universidade. seus problemas emocionais". E prossegue: "os professores eram todos
No trabalho, sente-se que a instrução superior pode ajudar a progredir. novinhos também (... ), cheios de conhecimentos, encontram pessoas tam­
Mas nem sempre se consegue ingressar no curso que o trabalho motiva a bém com conhecimentos (... ). Quem não tinha conhecimentos ficava fora
fazer; daí a importância de outras motivações para levar a cabo o projeto do assunto. Aí eu falo (.. . ) comigo mesma: eu gosto de participar, sempre
de educação universitária. É o caso de Bartolomeu, que queria entrar no liderei os assuntos, agora estou me vendo, me sentindo muito pequena,
curso de administração de empresas, não conseguiu e, influenciado pela entendeu? Não consigo participar, não consigo fazer perguntas". Embora
Pastoral da Juventude, optou por ciências sociais. Caso semelhante é o todos de certa forma afirmem sentir-se pouco à vontade convivendo com
de Carmem, que pretendia estudar direito e, após algumas tentativas estudantes com melhores condições materiais, a entrevista de Lúcia nos
sem sucesso, decidiu cursar psicologia, incentivada por sua experiência chamou a atenção porque conta a experiência de urna minoria que busca
com adolescentes no grupo de sua igreja. Diz ela: "coordenei o grupo de se organizar. Lúcia, que cursa serviço social na PUC com bolsa do convê­
jovens, isso foi mudando essa minha idéia de cursar direito e pensei: nio com o movimento Pré-vestibulares para Negros e Carentes, explica
acho que vou fazer psicologia, estudar mais o comportamento desses jo­ que há muitas alunas da favela que fazem esse mesmo curso. Assim, esse
vens para poder dar respostas mais práticas, mais coerentes para eles". grupo de estudantes, que têm a mesma origem social e a mesma experiên­
A motivação humanitária e social declarada por quase todos os en­ cia de pré-vestibular e de bolsistas, se uniu para realizar atividades e even­
trevistados, já graduados ou estudantes, é reforçada pelo sentimento, tos que chamem a atenção para o papel e a situação do negro na socieda­
compartilhado pela maioria, de que seu sucesso educacional é importan­ de. Lúcia comenta com orgulho que a própria direção da PUC já reconhe­
te não apenas para sua vida individual, mas também para a vida de sua ceu a mudança positiva que esse grupo tem trazido para aquela universi­
comunidade. Têm consciência de que os parentes e vizinhos da favela, dade. Portanto, outro papel que esse tipo de curso parece exercer é pre-
332 Um Século de Fave l a Os U n i ve r s i tá r i o s da Favela 333

parar os estudantes para se organizarem dentro da universidade, de forma a rentes, que se expandiu no estado do Rio de Janeiro a partir da Baixada,
superar a sensação de outsiders que possam vir a experimentar. chegando posteriormente às favelas. Tais cursos atraíram a atenção de al­
' guns pesquisadores recentemente, não apenas por seu sucesso, mas tam­
Todos os entrevistados tinham tido forte experiência religiosa (os
que à época da entrevista não participavam de um grupo religioso tinham bém por sua proposta estar relacionada com a questão negra. No entan­
participado no passado), a maioria em pastoral de juventude católica de to, essa experiência de cursos pré-vestibulares para a camada popular
cunho progressista. No entanto, eles não viam uma relação clara entre sua não é única. Os entrevistados se referiram a outros cursos pré-vestibula­
motivação para entrar na universidade e sua prática religiosa. Alguns re­ res para jovens de baixa renda, com inspiração e matriz ideológica dife­
conheceram que sua prática e seus valores religiosos influenciaram na es­ rentes daqueles para negros e carentes. Mencionam, por exemplo, o
colha do curso, mas todos foram unânimes em afirmar que em seus gru­ curso pré-vestibular ministrado pelo IFCS, da UFRJ, para trabalhadores,
pos religiosqs nunca ouviram um discurso que os incentivasse aber­ e o pré-vestibular Êxito. Decidimos estudar essa experiência por ser a
tamente a tentar entrar na universidade. Disse uma entrevistada: "as pes­ que mais cresce e também por nos parecer interessante sua primeira vin­
soas que trabalhavam com a gente, quer dizer, padres e irmãs, mostravam culação com a pastoral católica. Como já foi registrado no trabalho de No­
uma outra realidade, mostravam que você tinha que evangelizar, tinha vaes, Catela e Nascimento (1996:61-2), esse movimento se articula com a
que se doar, tinha que ajudar a Igreja a crescer (...), eu acho que esquece­ Pastoral da Juventude em Nova Iguaçu ou com a Pastoral Negra em ou­
ram um pouco da formação humana que a gente precisa". Essa entrevista­ tras localidades.
da sublinha assim que a preocupação da pastoral com a luta da comunida­ As primeiras experiências do movimento de pré-vestibular para
de parecia ser mais importante do que a luta individual para a melhoria negros se deram na Bahia a partir da reflexão de grupos ligados ao movi­
de vida. Mas reconhece que esse incentivo vinha de forma indireta, de ou­ mento negro. O pré-vestibular foi proposto como instrumento de cons­
tros jovens que participavam do grupo. Havia uma estimulação mútua, cientização, articulação e apoio à juventude negra da periferia de Salva­
como disse outro entrevistado, nos seminários e debates realizados. A dor. Da Bahia a idéia foi disseminada para outros estados e cidades.
linha progressista da Pastoral da Juventude também requeria um bom co­ Esses cursos chegaram ao Rio de Janeiro através do trabalho da Pastoral
nhecimento da realidade sócio-política para participar desses debates. Ad­ Negra e, posteriormente, da Pastoral da Juventude. Nesse estado, a pro­
miravam-se os mais verbalmente articulados e informados, e aspirava-se a posta ampliou-se, passando os cursos a se chamarem pré-vestibulares
desenvolver essas habilidades intelectuais. O desenvolvimento dessas ha­ para negros e carentes.
bilidades era importante para a própria "caminhada religiosa". A primeira experiência do estado do Rio de Janeiro foi em São
A idéia da Pastoral Negra e da Pastoral da Juventude de trazer João de Meriti, Baixada Fluminense, em 1992/93. A partir das reflexões
para o Rio de Janeiro o movimento Pré-vestibulares para Negros e Caren­ dos grupos engajados em trabalhos populares e eclesiais, especialmente
tes é portanto uma mudança significativa na pastoral popular. Esta a Pastoral do Negro, formou-se o primeiro núcleo da Baixada, que teve
ganha nova dimensão quando passa a ver como instrumento de luta so­ como principal articulador o frei Davi R. Santos. De São João de Meriti
cial a luta do indivíduo pela ascensão social e o progresso material. Tal esse movimento de pré-vestibulares se espalhou por várias cidades do es­
movimento nos chamou a atenção por explicitamente motivar ascensão tado, como Duque de Caxias, Nilópolis, Petrópolis, Rio de Janeiro, Bel­
social via educação e por estar, ao menos em sua origem, no Rio de Janei­ ford Roxo, ltaguaí, Nova Iguaçu, Mangaratiba, São Gonçalo e Niterói. Se­
ro, vinculado a um grupo religioso. gundo o informativo do movimento, o jornalzinho Azânia, atualmente os
pré-vestibulares contam com mais de 600 professores voluntários e coor­
denadores envolvidos nas 46 experiências. Ainda segundo o informati­
Um pouco sobre o Curso Pré-vestibular vo, esses cursos conseguiram colocar estudantes em diversas universida­
para Negros e Carentes des do estado do Rio de Janeiro, tanto públicas quanto particulares,
como Uerj, UFF, PUC, UFRRJ, Estácio de Sá, Nuno Lisboa, Unigranrio,
Para complementar nossas entrevistas com graduados e estudan­ Luíza de Marilac, Uni-Rio, Feuduc, UCP e Cefet. Algumas universidades
tes universitários de favelas, fizemos visitas e aplicamos questionários a particulares oferecem bolsas. A PUC oferece bolsa integral para estudan­
alunos do Pré-vestibular para Negros e Carentes, na Rocinha. Esse curso tes carentes, enquanto a Estácio de Sá e a Luíza de Marilac oferecem bol­
da Rocinha faz parte do movimento Pré-vestibulares para Negros e Ca- sas parciais de acordo com convênio feito com esse movimento. Além de
334 Um Século de Favela Os Un i v e r s i tá r i o s da Fav e l a 3JS

preparar o estudante para o vestibular, esses cursos oferecem uma disci­ um questionário a 23 deles . O curso foi trazido para a Rocinha por uma
plina chamada cultura e cidadania, na qual se discutem política de demo­ freira e inicialmente funcionava num templo da Igreja Metodista, IT1as
cracia racial e outros problemas referentes à questão da cidadania :eara atualmente não tem nenhuma vinculação com grupos religiosos.
populaçües negras e carentes. Custeado pelos próprios estudantes, que No grupo de 23 entrevistados, havia 15 mulheres e oito homens. A
pagam a quantia mensal de 5'X, de um salário mínimo, cada núcleo é in­ faixa etária era mais elevada que a de um pré-vestibular de classe média:
teiramente autônomo, com vida própria dentro dos seus limites. Faz oito estudantes tinham entre 17 e 25 anos; sete tinham de 25 a 30 anos, e
parte da proposta do grupo rejeitar qualquer tipo de financiamento cinco, mais de 30 anos. Portanto a maioria já tinha completado 25 anos.
vindo de fora. Tenta-se com isso manter a autonomia e evitar que as pes­ Embora o grupo tenha surgido a partir da discussão da questão do
soas se envolvam com o trabalho por questões financeiras. negro: apenas cinco alunos se identificaram como negros, seis como bran­
O movimento propõe que, se possível, os cursos sejam ministra­ cos, 1 0 corno pardos e dois não declararam a raça.
dos basicamente por professores negros ou da própria área carente. No
Os dados sobre participação religiosa são significativos porque,
entanto, por falta de pessoal com essas características, admitiram-se pro­
embora apenas seis dos 23 alunos tenham afirmado participar regular­
fessores de fora que aceitassem o trabalho voluntário e compartilhassem
mente de um grupo religioso, uma vez por semana ou mais, 1 1 já o ha­
dos ideais do grupo. Para ser professor não é necessário ter concluído
viam feito no passado. Apenas seis declararam não ter tido nenhum en­
um curso superior. Muitos dos professores são estudantes universitários.
volvimento religioso maior, nem no presente nem no passado. A maioria
Os coordenadores do movimento estabeleceram 12 critérios para orientar
participou ou participa de grupos católicos. Há ainda três espíritas karde­
a escolha do pessoal docente. Apenas o item cinco refere-se a sua compe­
cistas e três evangélicos. Esses dados reforçam nosso argumento de uma
tência profissional, quando diz ser necessário que os professores "pos­
" afinidade eletiva, como diria Weber, entre prática religiosa e ambição
suam sólido conhecimento das disciplinas que se disponham a ministrar,
educacional, sendo talvez a procura de um curso superior por parte de jo­
mesmo não sendo academicamente formados". Os demais chamam a
vens da favela uma conseqüência não intencional de sua vivência reli­
atenção para os ideais e valores desses professores. O critério de escolha
giosa.
que encabeça a lista é o que afirma ser necessário que esses candidatos a
professores "se mostrem conscientes do alcance sócio-educativo do movi­
mento Pré-vestibulares para Negros e Carentes". Observa-se que a lista
de critérios é também uma lista de aconselhamentos: segund o o item Religião e motivação para entrar na universidade
oito, o professor "deve reconhecer que todo cidadão é livre para escolher Embora alguns dos estudantes universitários sejam filhos da elite
e praticar a religião ou a opção partidária de sua preferência ( ... ), compro­ econômica d a favela, nossos dados indicam que nem sempre isso ocorre.
metendo-se a respeitar e a tratar todos de forma igual e não influenciar Ou seja, o elemento renda da família de origem, mesmo podendo contri­
ninguém nesse sentido". Já o item nove diz que é preciso que o professor buir para o ingresso na universidade, não é o único responsável por esse
não transforme sua ajuda "num ato paternalista, pois induzirá o 'benefi­ sucesso educacional, nem o mais importante. Já um elemento comum a
ciado' à indolência, à autodepreciação e à dependência" . A lista também todos os nossos entrevistados que eram graduados ou estudantes univer­
faz referência ao livro de Carl Rogers Por que falham os professores? sitários é sua experiência religiosa presente ou passada . Além da vi vência
Esses cursos pretendem não só preparar o estudante para entrar religiosa, muitos deles tinham também uma experiência de luta política,
na universidade, mas também formar uma "consciência negra e de clas­ seja em sindicato ou em movimento de mulheres. Muitos, mas não todos,
se" . Colocar negros e outros de origem popular em universidades é uma dos que estavam fazendo pré-vestibular e que l"l''TJOnderam ao nosso
proposta de luta que alia o progresso individual a uma luta social. Não questionário têm ou tiveram em algum momento uma prática religiosa in­
vendo necessariamente uma tensão entre esses d ois projetos, os que tensa. Como não fizemos estudo com amostra represen tativa, não pode­
fazem esses cursinhos de pré-vestibular sabem também dos limites de mos falar aqui de correlação estatisticamente significativa entre prática re­
sua ascensão econômica ao ingressar na universidade. ligiosa e ingresso na universidade de indivíduos da favela. Mas nossos
Na Rocinha, o pré-vestibular iniciou-se em 1995. Em 1997, quando dados indicam uma grande afinidad e entre o discurso religioso, especial­
de nossa visita, esse curso funcionava aos sábados, das 8h às 20h, no pré­ mente o discurso "religioso-politizado", e o desejo de adquirir maiores co­
dio de um Ciep. Havia então cerca de 30 alunos, e conseguimos aplica r nhecimentos.
336 Um Século de Favela Os U n i v e r s i tá r i o s da Fave la 337

Não estamos afirmando que qualquer prática religiosa leve ao de­ Oferece um discurso que alia a luta política e social a maior instrução,
sejo de estudar, nem que alguns grupos religiosos preguem explicitamen­ dando motivação e significado à obtenção de qualquer diploma superior,
te o aprimoramento intelectual. O que nossa análise sugere é que essa mesmo aqueles com pouco valor no mercado. Oferece estímulo e apoio
procura de um curso superior parece surgir como conseqüência não in­ afetivo para que se persevere na busca desta meta, seja tentando o vesti­
tencional de um tipo específico de vivência religiosa. Parece-nos que es­ bular seja depois enfrentando os problemas e dificuldades na própria
pecialmente a religiosidade desenvolvida nas pastorais dos grupos pro­ universidade.
gressistas da Igreja Católica teria essa conseqüência não intencional por
sua ênfase em debates, leituras e conscientização. Nessas pastorais sur­
gem grupos de amigos com metas semelhantes de aprimoramento inte­ 1 Notas
lectual. Esses amigos são importantes para criar um sentimento de solida­ 1. Os dados da pesquisa que Inácio Cano está realizando na Rocinha mos­
riedade que contribui para a perseverança necessária ao sucesso escolar. tram que o percentual da população com curso superior é muto baixo nessa
É assim que muitos dos entrevistados foram motivados a tentar várias favela.
vezes o vestibular ou a redefinir suas escolhas quanto ao curso que que­
riam fazer e - apesar das dificuldades enfrentadas na universidade - a 2. Pastore (1982) é um dos poucos que se dedica a esse tema.
concluir esse curso. A maioria de nossos entrevistados era ligada ao cato­ 3. A partir dessa análise, levantamos a hipótese de que a maior religiosidade
licismo progressista, mas nos parece que outros grupos religiosos, como que Regina Novaes observou entre os estudantes de ciências sociais do IFCS
evangélicos e kardecistas, que também enfatizam leitura e estudo, têm in­ pode estar relacionada com a origem social desses estudantes.
fluência similar. A pastoral católica, contudo, teve a intenção explícita de
promover maior educação entre os jovens pobres quando trouxe da ..
Bahia para o Rio de Janeiro a proposta do movimento Pré-vestibulares Referências bibliográficas
para Negros e Carentes. Antonovsky, Aaron. Healtlz stress and coping: new perspectives on mental and
Nossa hipótese de que a religião é um fator integrador e motiva­ plzysical well-being. 4 ed. San Francisco, Jossey Bass, 1982.
dor para a educação não nega a existência de outros possíveis fatores .
Machado, M. D. C. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera Jmniliar.
Mas ele também se destaca quando se observa que a motivação declara­
Campinas, Editores Associados, 1996.
da pelos entrevistados para seguir um curso superior, embora se relacio­
ne com um desejo de melhoria material, não se reduz a este. De fato, há Mariz, Cecília L. Coping with poverty base communities and pentecostals in Brazil.
outras formas mais rápidas e menos custosas para se conseguir melhoria Philadelphia, Temple University Press, 1994.
material. Argumentamos aqui que a motivação para procurar um curso Mesquita, Wânia Amélia B. Participação religiosa dos jovens evangélicos. Ni­
superior tem, para esses estudantes, um significado humanitário e social terói, Universidade Federal Fluminense, 1995. (Monografia de Bacharela-
que está de certa forma relacionado com discursos políticos e religiosos. do em Ciências Sociais.)
Notamos essa afinidade entre o discurso religioso e o dos universitários
da favela quando estes falam de sua motivação para concluir a universi­ Novaes, Regina. Religião e política: sincretismos entre alunos de ciências so­
dade. Como a maioria só consegue entrar em cursos tais como geografia, ciais. Comu nicações do Iser, 45:62-74, 1994.
ciências sociais, história, serviço social e filosofia, que não oferecem chan­ ---; Catela, Ludmila & Nascimento, Rozicléa. Caminhos cruzados: juventude,
ces de melhoria material rápida e concreta, os estudante alegam motiva­ conflitos e solidariedade. Rio de Janeiro, Iser, 1996.
ções que não são econômicas nem estão ligadas ao mercado de trabalho.
É portanto uma visão de mundo político-religiosa que dá significado ao Pastore, José. Desigualdade e mobilidade social no Brasil. São Paulo, Edusp, 1979.
diploma desses estudantes.3 Pinheiro, Márcia L. A linguagem do funkeiro - inovações e estratégias conver­
Observamos que, para os estudantes de favelas ou outras áreas po­ sionistas em igrejas neopentecostais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Uni­
bres do Rio de Janeiro, o movimento Pré-vestibulares para Negros e Ca­ versidade do Estado do Rio de Janeiro, 1997. (Dissertação de Mestrado.)
rentes desempenha de forma explícita e intencional o mesmo papel que Zaluar, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da
tiveram alguns grupos religiosos para vários de nossos entrevistados . pobreza. Rio de Janeiro, Brasiliense, 1985.
Poemas

D e l e y de A c a r y

VALA
à Delma, irmã
Vala,
manancial de "xistossomose"
berço de tifo
cova natural de muitos
.. amigos de infância
crivados de bala.
Rio,
dos meus barquinhos
de elástico e graveto
Rio das pescarias de rã
com barbante e miolo de pão.

PARA A LÉM D E TESÃO

E aquela tesão da manhã


que rareou um pouco no dia
na cozinha e no tanque da madame
E aquela tesão da manhã
que rareou mais um pouco ainda
com o sufoco no ônibus Castelo-Acari
sem sequer eu saber se chegava viva ou não
E aquela tesão da manhã
que rareou ainda mais um pouco
com a fome não saciada
pelo pedaço de ovo com macarrão
e feijão requentado pra sobrar
mais um pouco pras crianças
almoçarem amanhã, dividindo
o pouco, irmão com irmão.
340 Um Sécu l o de F avela Poemas 341

E aquela tesão que pouco a pouco Saindo d o barraco bem cedo


se rareou mais um pouco à procura de emprego levou
até ser quase só desespero a força do meu amor, minha fé
esse amor feito quase sem gosto deixou um beijo gostoso de Colgate
e com muito cansaço até o gozo e café saboroso feito mel
misto de orgasmo e aflição voltou à noite trazendo
esse amor feito dum outro jeito um beijo mau gosto de caldo de cana
de se amar que nos foi preciso encontrar amargoso feito fel.
pra fazermos bem gostoso... Ah, a insegurança do amanhã
porque só a gente se amando, de todos, do tudo, ah, seu velho medo
se amando muito mesmo desaguado em lágrimas no regaço
para além das necessidades do espírito do meu colo, chorado em segredo,
e do corpo ou simplesmente paixão longe do olhar racista do senhor burguês
dono e senhor dos empregos
para conseguir fazer amor gostoso
ah, esse imenso desejo que
cansada e quase sem tesão.
seu velho medo se transforme
com o axé do meu amor, minha fé
SÍNDROME DO DESEMPREG O
na minha, na sua, na nossa nova e indestrutível
Saindo do barraco bem cedo coragem libertária do amanhã.
à procura de emprego, levou
a força do meu amor, minha fé. POR UM AMOR MAIOR
No último anúncio marcado,
mente e corpo abalados, Hoje tua preta amada
pela má aparência rejeitado, deixou não pode fazer amor contigo
que vissem seus olhos pela fome chegou do trabalho, cansada,
bem fundo escavado, que vissem explorada, currada, assediada
pelo olhar tarado
o carapinha emaranhando, deixou
do senhor patrão.
o suor fazendo da face negra
um ébano vitrificado
Hoje tua preta amada
mas não deixou
não pode fazer amor contigo
que lhe vissem o medo precisou de ti, mais
comum a quem vive a síndrome do desemprego que pai, irmão ou homem
não deixou que lhe vissem precisou e encontrou-te amigo.
o velho medo porque é da certeza
que existe o medo em nós é que Hoje tua preta amada
o burguês racista faz do humano dócil escravo não pode fazer amor contigo
um inimigo finalmente vencido mas te ensinou um amor,
depois que de sua humanidade um amor maior que jamais
ele mesmo já havia se esquecido. havias aprendido.
342 Um Século de Favela Poemas 343

DOMING O
Ivo VÊ o Ovo
A catuaba para à Delma, irmã amada
escorregar o café
um "giro" na feira Barquinha de graveto
comprar uma Roberta Close nas valas da favela
para comer ao molho pardo banhos de rio
a pelada no "rala-coco" jogo de gude
para tirar a barriga cachorro fazendo trenzin
um mocotó com arroz dibico de pipa
uma cerveja com vizinha de perna aberta
um "vapô" da área aparecendo a calcinha
na tendinha do Tião pique de esconder
um pagode esperto gazeta bem batida
um samba do Nei e do "Luso" machucadinho no dedo
o maraca à tarde E,riminha fazendo xixi
Vasco e Flamengo cavalo cavalgando
de "casa cheia" professora sorrindo
os trapalhões na TV correição de formiga
o fantástico mentir da vida manga roubada
uma bimbada na nega contar estrelas com dedo
para relaxar corpo e mente viajar pelo mundo
e amanhã acordar "tranquilis" na goiabeira do fundo do quintal
e ser explorado ver São Jorge na lua
pelo patrão "numa boa" ... tudo isso me assustava
fascinava e emocionava
E me deixar fazendo a um só tempo
o almoço que será jantar fazendo da minha infância
talvez amanhã outra vez almoço pobre e desamada
que você irá comer uma infância quase feliz
temperado com "amortesão"
que sempre fica recolhido Mas nada, nada me assustava
em meu corpo inteiro fascinava e emocionava a um só tempo
ardente, inquieto, angustiado que ficarmos horas a fio
de insatisfação e frustração vendo pintinhos nascerem do ovo.
de quase sempre e esse quase sempre
entre nós é todo dia Só C R I OULO
que você me come, jorra-se à Liane Galvão
cai pro lado e dorme
antes mesmo que eu sinta
Ipanema ...
dor, prazer ou gozo
Madureira
de ter você dentro de mim.
sou Favela
344 Um Século de Favela Poemas 345

branco .. . Quem diz que favela é quilombo urbano


negro .. . não vive, não sabe o que diz
sou mestiço só vive a favela, nas lombras alucinadas das madrugas
do Baixo-Gávea, ainda meio cheirado
operário
intelectual Quem diz que favela é quilombo urbano
sou poeta não vive, não sabe o que diz
só vive a favela, no assistencialismo paternalista
machista .. .
feminista .. . da neodireita vivariqueana que
sou simplesmente periga imobilizar a favela de sua autonomia
amante ...
Quem diz que favela é quilombo urbano
esquerda ... não vive, não sabe o que diz
direita ... não sabe que quilombo urbano seria sinônimo de socialismo,
sou só crioulo. .. só! não machismo, não racismo, igualdade, irmandade,
parceria, ajuda mútua, amor, felicidade, harmonia
Q U EM D I Z QUE . . . NÃO V I V E , NÃO S A B E O Q U E D I Z e que na favela, há muito pouco de cada
isso, um quase nada de cada isso.
Quem diz que favela é quilombo urbano
não vive, não sabe o que diz Daí que, a existência da favela
não vive, não sabe da angústia da favela. é ela mesma a prova mais contundente
da inexistência de quilombos urbanos.
Quem diz que favela é quilombo urbano
não vive, não sabe o que diz
não vive o medo que a favela vive constantemente FAVEL A : CEM ANOS

Quem diz que favela é quilombo urbano Tá visto que em cem anos de favela
não vive, não sabe o que diz muito sangue de morte banhou
não vive a miséria que vive a favela as terras batidas de becos, ruas e vielas.

Quem diz que favela é quilombo urbano Mas tá visto também que na favela
não vive, não sabe o que diz há muito mais mulher que a gente
não vive a violência do crime organizado que domina a favela e muita menina vira moça a toda hora, todo dia
se vendo meio que assustada e maravilhada
Quem diz que favela é quilombo urbano
pela primeira vez menstruada.
não vive, não sabe o que diz
não vive os abusos e as chacinas policiais que atingem a favela
V ai daí, que por bênção de Mãe Oxum
Quem diz que favela é quilombo urbano dessa sanguinolência toda que jorra na favela
não vive, não sabe o que diz por cem anos a fio, filetes e chimbicas
só vive a favela nas retóricas acadêmicas de suas teses tem sido menos de certeza da morte
de doutorado, exceções da regra, é claro e muito mais da verdade da possibilidade da vida
346 Um Sé culo de Fav ela Poemas 347

Daí que pela graça de Mãe Oxum NÃO HÁ UM C ANTO DA FAVELA


na favela, centenariamente, se sangra ainda Não há um canto da favela
muito mais da divina maravilha da criação
que não guarde uma história
que dos horrores letais das chacinas.
Não há um canto da favela
A C A R I - SUPRAEMERGENTE que não tenha um conto pra cantar
(ou entregando a favela à cidade)
Não há um canto da favela
Quem sabe na próxima enchente que não guarde histórias na marca da última enchente
a favela submerge no Rio Acari na parede
duma vez ... só de vez que levou água abaixo tvsvideogeladeiras
e emerge na Avenida Sernambetiba armários, roupaspanelas que ficou-se
frente à barraca do Pepê devendo prestações
vai daí que para gáudio dos emergentes mas com sorte saiu-se com vida

Não há um canto da favela


dá até pra acreditar que só assim
um cantinho de viela que não guarde
nós da favela sejamos entregados
ainda os sons de vozinhas femininas
saco na cabeça e algema nos pulsos infantis brincando de casinha e Barbie
favelabairranamente à cidade até uma saraivada de AR-15
botar todo mundo embaixo da mesa
Zé Gabiolé: ói nós da favela da cozinha longe do lugar da bala perdida achar um.
supraemergentes da Barra.
Não há um canto da favela
que não guarde as vozes sussurradas
REGRAS E EXCREÇÕES
dos meninos contando à boca miúda
Vê legal... são cento e cinqüenta e três bairros os feitos lendários de jotaélli
e seiscentas favelas dentro deles quando da retomada épica do seu
coisa meio assim que matar o porco, tirar a tripa do porco reino d 'pó das paradas de Acari
e botar o porco dentro da tripa que vira lingüiça.
Não há um canto da favela
Vê legal que já há mais favela que bairro que não guarde o testemunho choroso
e agora os bairros tão dentro da favela de um irmão em Deus subitamente
per'vertido à fé cristã depois de
Vê legal então ... já não é alguma pobreza tantas dores e horrores que infligiu
dentro de muita riqueza aos seus inimigos e suas famílias em Terra.
agora é alguma riqueza dentro de muita pobreza
S E F I C A M I MPUNES . . . NOS C H A C INAM A D I GNIDADE
Vê legal então, se favela hoje é regra
então se bairro é exceção Chacinam em Hiroxima, Nagasaki, Auschwitz . . .
se ficam impunes . . . uma chacina contra nossa verdade.
ser da favela hoje é regra Depois, que verdade diremos às nossas crianças
ser do asfalto hoje é excreção. e a toda gente que amamos e que nos amam também
348 Um Século de Favela

Chacinam em Sharpville, Saigon, Luanda ...


se ficam impunes ... uma chacina contra o nosso olhar Cidade de Deus
depois, com que olhares olharemos nos olhos de nossas crianças
e a toda gente que amamos e que nos amam também

Chacinam em Ruanda, em Bagdá . .. Guerra do Golfo... b l o d a s O l i ve i ra s


se ficam impunes ... uma chacina contra nossa alegria
depois, com que alegria abraçaremos nossas crianças
e a toda gente que amamos e que nos amam também

Chacinam no Carandiru, na Candelária, em Acari, lanomamis ...


se ficam impunes ... uma chacina contra a nossa esperança
depois, com que esperança mostraremos o caminho
para nossas crianças. . . com que esperança caminharemos
junto com elas e com toda gente que amamos e nos amam tambem
PRÓLOGO

Por quanto tempo tu foste a menina dos meus olhos? Cidade-Orbis. Nem
Chacinam em Eldorado dos Carajás, em Belford Roxo, em Vigário Geral
sei se alguma vez fechei os olhos a ti.
se ficam impunes ... uma chacina contra nosso senso de justiça
Vem, vaga mente, a voz da adolescência... quando tive uma primeira na­
depois, com que senso de justiça legaremos
morada.
às nossas crianças e a toda gente que amamos e nos amam tambem.
Era tão certo que te desposaria. Vem agora, tudo de lance... a lembrança
Chacinam em Sabra e Shatila se lança de vez, cegamente.
se ficam impunes ... uma chacina contra o amor que existe em nós A decegar-me, quebro o silêncio dos olhos: ah! mesmo assim é noite;
depois, com que amor amaremos nossas crianças como aquelas em que te vasculhei, sitiando tuas luas empoçadas nas cal­
e toda gente que amamos e nos amam também. çadas; se antes do anoitecer, foi tarde anunciada para cartão-postal, e ser
vista na segurança das janelas e cortinas; antes, cedo ainda, te segui em
Chacinam na favela, chacinam no campo, chacinam na cidade grave correria desejando o sol agudo do teu meio-dia. Tudo era clareza.
se ficam impunes... uma chacina contra nossa dignidade humana Em nascimento, a céu aberto e terra fresca, tu, sob o arco-íris dos meus
depois, com que dignidade continuaremos vivendo olhos,
com nossas crianças e com toda gente que amamos enfileiravas as janelas das casas que me viam. No pisca-pisca de olhos in­
e que nos amam também. fantis, tu foras, desde antes, a prometida.
E, para que não roubes mais, com teus beijos em minha boca, palavras
Chacinam nossas crianças, chacinam a gente que amamos para tua palavra, inscrevo versos-relevos da tua íntima anatomia-geográ­
e que nos amam também. .. fica, que em mim revelaste.
, . .
se ficam impunes ... uma chacina contra nossa propna vida
depois que vida continuaremos a viver
. .
sem verdade, sem olhar, sem alegria, sem esperança, sem 1ustiça
sem amor, sem dignidade humana... Tu não és um pedaço de mapa mal traçado
Nem Éden ou Eldorado.
Tens casas de pombo cercadas de corvos
Cidade de Deus menina,
Tu caíste na boca do povo.
350 Um Sé c u l o de F a vel a C i dade de Deus 35 1

Só porque Ao que já é cidade, emendas


És sumária, nua, templária, pagã de meia estética
És, sobretudo, de teus filhos, a maçã. mão-de-obra-prática.
Achados,
puxadas sem janelas
II de dentro da lembrança:
No teu seio de cidade se infunde auto-moto-contínua-favela.
O que te engana ou confunde; 1

Se por atributo ou patrimônio, IV


És feia e foi;te, ingênua e demônio.
Quantos olhos espalhados no espanto!
Quem - nativo? estrangeiro? - FOGO! Quanto fogo! Me afobo tanto!
Às avessas teu sítio atravessa, Quantos barracos de fósforos extintos,
Te espreita, espia e espera? As labaredas! em parede de pau e zinco!
Onde? longe? O salto da fera.
Era praia. Era povo. Era pinto.
Se a mão incauta não afaga, sente Nada. Lágrima de um lodo comum.
E enfeita a flor da pele, sangra Na dor desenlace, dor desabrigo,
Na fina faca que trazes no dente. Dor desespero de um em um.

Se a mão direita é atada e dura, Se é choro, chuva, cheia, enxurrada


Ela, mesma, se volta àquela Desmedida; o veio da água é vida
Que Bela, te arrasta às agruras. Os desafogados com sobreviventes,

Desaguaram em ti as gentes.
III Nenhuma pomba no dilúvio após,
Somente uma estranha Arca de Nós
Afamada é a rama,
O derrame da sombra
V
E a faminta astúcia.
Trazes no nome a cica das verdes uvas. Aquela,
Te cobiçam à vertigem entre outras tantas favelas
No vértice da torre dos olhos. chegou a ti num Êxodo.
Não tombarás, estejas certa Terra Prometida ou degredo?
De tuas raízes dementes, sem dar de ré ou filosofia,
Na espalmada alma, dar das mãos. num entra e sai de caminhões velozes,
Decifra-te procissão de fé e fila
E não esqueças, num coro de vozes:
Pois, já te viram de ponta cabeça. "Cidade de Deus.
Cidade de Jesus.
Tu cresces na dimensão do ter De dia falta água
E é assim que a si se vê. de noite falta luz"
Um Século de Fave l a
C i dade de D eus
352 353

É a memória da água e do fogo Sob as lâmpadas de mercúrio se inflama


que ainda ferve no sangue do teu povo.
a paixão de sua tragicomédia humana.
Entre o deboche e o choque do ser e não ser:
E tu, Cidade menina,
"ah! eu tô maluco",
com casas de pouca intimidade,
há quem aplauda, há quem se aturda e abafe o grito
ex-favela
quando dá por si no espelho do conflito.
ex-passo num salto
"Passa-se uma casa"
Minha cara Cidade,
de volta pro alto.
és a cara de um, de mil,
De um canto a outro,
daqueles que oh!
"A refavela revela aquela"...1
sumiu ...

VI VII
É de manhã... Vigia Cidade!
Mira-te ao espelho transatlântico a felicidade se esvai na vírgula,
Naus Nós n'África na busca íngreme de brusca alegria
Cabras Caboclos que te draga;
Carecas Crilouros! agora não, droga!
próximo...
Tuas histórias
de-feito cênicos num beco, num canto, ao largo
o rosto astênico declara: há sempre dentes à mostra.
o tempo desfaz o que o tempo mascara. amargo.
na risca, o riso natural e franco?
Teus insistentes foliões do cotidiano arrisca o riso, de bílis infiltrada no esmalte branco.
das festas juninas a-gosto;
próximo ...
de reis; carnavais,
agora não, porra!
bate-bolas dos olhos infantos ...
acordam para as filas - vai encarar?
onde seguem murchos olhos, tantos... sai pra fora filho da puta!
- olhaí! nas costas...
Sob a luz do sol
entra pra dentro, vem...
fazes contínuas cenas de rua
- taca pedra covarde, taca, viado!
ensaios abertos à realidade que se cria,
- sai da rua, mané...
creias:
acertô? vem pra cá
é uma linda e louca dramaturgia.
- sai pra rua, filho da puta!
- Ai meu Jesus toca o coração dessa gente!
1 Refavela, Gilberto Gil. - vai explodir o quê?
vai explodir é o caralho!
354 Um Século de Fave la
C i dade de Deus 355

as palavras quase sempre são tentativas. Quem é o porta-voz-da-vez?


entre elas e o gesto, o tempo é incerto esse coro uníssono que diz - diz
um tiro dispara em ângulo "Eu só quero ser feliz! " 2
e reto. Quantas como tu formam uma nação?
acobertado por ti, Cidade, sem geografia e sem mapa.
o tiro diz pára antes e depois Cidade, és igual a tantas outras
a bala alada louca e desabalada abala lá... quantos mais se revela,
denúncia vazia. despejo. ainda mais se encapa.
...no corpo, casa que invade num dilacerado beijo.

IX
VIII
Conheces de perto os anjos;
Tu és o sorriso
esses filhos do amor,
dessa juventude de púberes adorno
esses filhos de arranjos.
top-short
Tens o poder de cedo concebê-los
bermuda-pareô
onde o rio do rego desemboca nos esconsos,
pernas coxas; dorso bunda. ombros e abraços... ao nascer dos pelos;
todo balanço é tua dança.
nem sete e a boneca aposenta,
És íntima e pública como um banco de praça, nem catorze em-grave-vida, tantas
onde abunda solidão com vinte um, vinte oito, como se fossem oitenta.
e o segredo se avizinha d.a q.evassa;
na transparência das paredes, os ciúmes. no tempo prudência não há,
na transparência das roupas, os vclumes.
no espaço da demência que é
A turba grita sem fadiga mais uma indigestação adquirida.
e a palavra em fuga as ruas estão grávidas
pelos ares voa avulsa e as crianças gravitam de dentro delas
nem poesia, nem prosa à infância e à asfixia.
na voz que a recusa entre a palmada e o berro,
nos samplers que ensandecem o ar e o erro, o ir reconhecível das ruas.
no diabo que abusa. ardendo ao sol.
virando as luas.
És dos sem-voz, agora
Cidade, tu ainda, segues a trama contra
atual trilha sonora
a velhice e a demência,
samba-soul

ji
posto que confias na veleidade das aparências
brother-bamba
que o baticum
i�
.,?

finca-funca-funk-faz . 2 Rap da felicidade, Kátia e Júlio Rasta.


do mix, ritmos tribais. .

'
356 Um Sécu l o de Favela C i dade de Deus
357

X XI

Vocação de comércio tens à vista Leia-se em memorial, aqui sitiado:


artigos de compras, vendas, conquistas Pré-ocupada. Invadida. Sem meta.
pelas ruas perfilam ambulantes Como um mapa mal traçado,
e camelôs e trailers e biroscas Em caligrafia analfabeta.
onde a porta de casa era antes.
são as assembléias de feiras - sábado - domingo, Como os rios, entre paredes marginais,
e o dia do descanso, sempre, findo. Tu afluis previsível ou em emanações torrentes;
Mantendo submerso o arbítrio dos limites
No meio da encruzilhada Quando avança na desordem das enchentes.
o lixo pré-fixo.
calcinha sem elástico Por um furo, por uma diferença
amarrando a boca do saco plástico Vem a rombo toda intolerância.
por sobre Convívio? Confinamento futuro.
retrato peteca boneca sapato
colchão caixote comida cachorro sem pelo Parte, reparte teu corpo aos murros;
garrafa tapete jornal sofá cabelo Valoriza-te na fama adjetiva
casca de ovo absorvente menstruado meia escarro ... Dos teus que morrem e te deixam viva.
antes e depois da coleta!
o velho; a criança; o mendigo; o esteta
0 TREM: 3 5
o bancário; a dona-de-casa; a vizinha; o usuário
do ambulante, da janela dos c�rros Aquela torre é uma exclamação:
vêm de todos os lados ... papel - cigarro - cinzeiro ... Quantas gentes!
ao invés de lixo fosse o que é Chegam norteadas pela quarta-face do relógio-obelisco-Central-do-Brasil.
Dinheiro! A base da torre é o (ponto) Palácio do povo.
Afeito ao público, é uma festa à passagem . . . à espera ...
sobre o perseguido fio-frio-brilho-dos-trilhos,
Aglomerada de mais
uma festa que recomeça e pára.
és uma cidade que se estica
puxada pra-um-lado-pra-outro
Festa áspera que o passa-passa lixa todas as manhãs.
no stress de nervos, tijolos, arames
No passe ligeiro, diminutos passageiros,
subindo sobre ti os andaimes
passam tão depressa que não precisam ser vistos.
alicerce de carne-osso Passam, por entre altas paredes do imenso salão, os anônimos.
e trepa no primeiro o segundo, terceiro Olha! O Brasil já foi moderno.
mais um quarto, O olho passa e, não reconhece o art decor,
e te empurram pro alto esmaecem as cenas panorâmicas dos mega-murais,
pro fundo poço. efetiva a presença e passa o que permanece.

j'
.
358 Um Sécu l o de Favela C i dade de Deus 359

A esperança desesperada de todas as manhãs Determinado e-vem ...


abre os bares com fome, mordendo as cores, Animal ferroso em fuga. ln-vento
os tamanhos e as vitrines de pães-doces. que rasga raspa risca rima, em ruga: o tempo
A espera engraxa e dá brilho de escovas nos sapatos. de si passageiro, de ser travessia.
A espera é diária e brilhante como as lâmpadas acesas, Corredor em par de paredes e janelas em fitas-filmica à paisagem
despejada ao chão movediço das sombras. ambulante.
A esperança faz - Psiu...
Entre estações advém,
dos jornais, das loterias, depois se esconde ... onde?
quem de fora, quem de dentro inverte o trem?
X I I I I I I faz pra um. Faz pra mais de mil.
Pára no ponto a composição diária.
Pára a menina vespertina.
Pára a mulher noctívaga. III
Pára a velha ladina. Lá vem o trem da manhã!
Os ferroviários pré-param as máquinas. À vista de lá, o ramal Leopoldina. Outra viagem.
Pára, ainda mais, a parada em trânsito. Quando passa Lauro Miller até a Quinta
Pára quem tem fome. - Boa Vista - e passa a terceira, a segunda,
Pára homem com homem. passa até quem foi a primeira: Estação verde-rosa de Mangueira;
As grades pré-param o serviço social. e pára no sobe-desce de Francisco Xavier;
Pára o camelô, o camburão e o policial. segue em direção aos engenhos engendrados no subúrbio,
Pára o soldado em continência. o Salgado Filho da cidade.
Pára o bêbado a sua abstinência. Passa saudando Todos os Santos, ora profano, ora ao sagrado,
Param pelas ruas, meninos em cega correria. vai o povo pedindo Piedade.
Pára o malandro da periferia. Vem alternando seu embalo, balanço de balsa,
Pára quem joga. Pára quem éhora. Pára quem ria. entre o vai-não-vai de avarias várias, segue a valsa.
O exército da salvação tira do caldeirão sua cantoria. O trem da manhã, de ré-volta da cidade,
Pára quem canta e quem esconde sua agonia. vem vindo sem empurra-sem-segura . . .
Pára quem dorme à sombra da noite e ao relento do dia. Entre uma e outra estação,
Pára quem rouba e quem vigia. também pára em Cascadura.
Pára na plataforma o trem e sua longa sinfonia.
Pára o relógio sem pontaria. IV
Só o tempo não conhece paralisia.
Em Madureira, o trem também, é Magno.
Alinha-se ao Império do samba, em bateria composta,
II X I I 1... X I 1 . .. X 1 . . . seus agogôs com reco-recos ...
segue serrano serrano serrano ...
E l á e-vem, rente, rent'rent'rent'rent'rent-e o chão treme trem-e trem-e
trem-e trem-e-vem Na estação de onde vem: Pedro II - 35 - Sta. Cruz,
longínquo; fonético; retilíneo; dialético; paralelo; concurvo; conforme: o quem pensa no futuro, tão longe de Madureira e adjacências,
trem vê o trem que não passa, atrasado.

j
360 Um Século de Fave l a
C i dade de Deus 361

Na plataforma alinhada e paralela, De tal forma é o arranjo pré-posto,


meus olhos irmãos, e muitos outros olhar-irnãs, atraem o trem que a venda e a compra, antes de ser necessidade,
num vem-não-vem... se faz por apuro do gosto.
num vem-não-vem... Gosto curto que se gasta no passo de um, passa pra outro.
num vem-não-vem... Nenhuma estação se ultrapassa, imobilizada no concreto;
chegando no subúrbio. nem os mercadores, com seu mercado, ultrapassam esta-ação
Aqui só o trem é futurístico por concepção, imposta por decreto, lei do cão:
na ordem dos vagões um túnel móvel. Cigarros; Biscoitos; Chocolates e Refresco sobre rodinhas. Latas de
Dragão festivo, "qualquer coisa irreal". Amendoim; Sacos de Balas; Caixas de Cervejas e Picolé do China. Reló­
De fora o povo comemora e conclarna: gios; Brinquedos do Paraguai. Jornal do Dia: Óculos de sol; Guarda­
- Abra-te Sésamo! !! chuvas; Termômetros; Ferramentas e Luvas...
O dentro e o fora vertem-se: passageiros. Tudo a preço de banana
Entro e dentro o expresso é cara-cara; e contrato de compro e vende,
enquanto um ri, o outro cala. feito um jogo de esconde-esconde.
E parte· o trem com-fiando-se por fora "Minhas senhoras e meus senhores,
a pôr dentro, trago um instrumento que não requer prática ou habilidade,
mas fará urna verdadeira revolução na sua cozinha ...
sendo ele mesmo seu inverso-centro.
Veja!... Basta apenas um toque...
e nenhuma força, além da sua criatividade."
V
I · ' E o trem segue sua linha utilitária,
E passa Oswaldo Cruz. freqüentando casas; becos; quartos; cozinhas...
Passa Bento Ribeiro. numa intimidade invejada entre comadres e vizinhas...
Pára Marechal Hermes: bairro para-militar, até a chegada da composição para a baldeação de Deodoro...
bela estação art noveau, casas assobradadas, telhados à francesa.
A paisagem à paisana vai se aquartelando, de vez enquanto,
VI
na vizinhança do burburinho com ordenanças.
XI XI I I I I I I I I 1...
Ar Apartam-se as portas a pleno despejo
tigos de sua Ah... o alívio de quem veio apertado;
necessidade e pressa: de pé, o passageiro descrito pela pilastra,
Aspirina e Alfinete de cabeça. em-discreto arco-brilhante-fresco,
Baralho. Biela. Batom pra beijo na boca. injeta um jato de mijo-ácido
Benjamim. Cadeado de segredo. Cola de dentadura. no concreto da plataforma;
Caderno. Caneta. Dedal; Agulha e Linha de costura. o corrosivo-ar invade o vagão do trem
Espátula; Esmaltes de unha. Fita em novelo que aperta suas portas e parte compacto,
encheio e cheiros
Fech'ecler. Fio dental e Gel de cabelo...
e suor filtrado nos blusões
Variedade à vista e preço baixo;
e óleo de máquina e trabalho queimado
é a deixa do homem-gancho
no vapor e poeira por sobre
com seu bazar em e ainda paira no ar do comboio
cacho suspenso. a baunilha das balas e o aroma dos bombons.

j.
i
362 Um Sécu l o de Favel a C idade de Deus 363

Aqui tudo se cruza. Uma viagem ao meio. VIII


As vias e desvios convergidos para
Quem vem?
Deo
Entrem no trem... em trem no trem. .. em trem no trem...
são todos enviados a voltar, mais cedo ou mais tarde, Cada estação é um convite a céu aberto
cada qual a sua, est'ação: auxiliar. "quem qué vim-tem!"
Quem vem de lá, do lado do lado de lá, Entre o preto e o branco; Maria e Miguel; pastor e com-padre
teve ou terá São Cristóvão como guia de baldeação encontram os fiéis.
e norte dos viajantes. E seguem no trem
Adorar a deuses em Deo' cloro não é heresia. Cristo olhai prá isto!
Pelas linhas de outras línguas que se cruzam, Cristo olhai prá isto!
também chegam a ti: Iguaçu. Inhaúma. Japeri... Cristo-isto...
E eu sigo pelo sinal de Santa Cruz. Com a bíblia na mão um carismático
encontra um vagão para seus versículos,
inter-calados,
VII as palavras de um João Batista:
Todo silêncio, um deserto para atravessar.
...segunda; terça; quarta; quinta; sexta; ou sábado... Todo deserto, um tesouro a ser descoberto.
Segue o trem, outra parte da viagem. Entra na casa de vosso coração e vossa mente.
E verá uma luz que não se apaga, lá dentro,
Levanta e senta; o de pé se agüenta pendurado por algemas.
De tudo que há, creia, este é o centro.
Senta-levanta, conformidade, resignação, reclames e ambulantes
atravessam a Cidade Real de São Sebastião do Rio de Janeiro Entrem... entrem novas o 'velhas,
para seu ante-centro, onde o real não é Real, nem São. Entrem no trem... em trem os lobos também.
Cont' estação de Realengo, Segue um pastoreio sem fim,
reminiscências de um fausto tempo que nunca houve nos desvios e desvãos das vaias, no vai do trem
e, no entanto, ao imaginário da cidade aquiesce-se. O Senhor é santo...
E se não basta a fantasia, entre Magalhães e a Vila Militar O Senhor é santo...
entram os soldados: O Senhor é santo...
. . . 1 . 2. 3. 4 - 4. 3. 2. 1 . . . Apregoa mais um, num coro de tantos pregões
Ver-de uniforme os varões d a Pátria, oh! mãe gentil que lixam as paredes dos vagões de ouvidos ocos
os órfãos e filhos;
dormentes e trilhos de um trem que passa. IX
E se não basta o vexame, Corra-do-burro-quando-foge!
vale o deboche, que o cabelo-escovinha não uniformiza: Cor-de-burro-quando-foge
"O que é, que a boina não esconde burro-quando-foge
nem com a mão tapando? quando-foge
Quem carrega a maior orelha do 'Albano ' ?!!!" quando-foge ...
364 Um S é c u l o d e Fave l a C i dade de Deus 365

Vagam olhos e avisos gastos nos vagões: que canta e vigia pelo avesso
'Preserve' . . '. 'Proteja' ... 'Portas fechadas' ... a função final do filho, o outro,
A voz eletrificada dos alto-falantes-indiferentes que-com-a-cuia-recolhe-colhe-esmolas.
conferem em cômoda passagem; "Obrigado por um tudo
e a viagem segue dentro e fora das janelas. Que o amigo ofereceu;
Em trem. Em trem. Em trem. .. X I I I I I I I Quem dá aos pobres
Pára! Moça Bonita! Dívida não faz à Deus."
A moça que entra fica de pé,
com-sol-tecido-na-pele e seu vestido de segunda estampa, ...adeus ...
avista e mede com-passo um assento no banco-do-trem-corrido,
que as pernas em ângulo dos caval(h)eiros abertos
À frente do cego, segue mais agudo a-guia do menino.
deixam as senhoras e as senhoritas contritas.
Outras vozes vêm em viés;
O trem reparou na desistência da moça,
e foi no fio da linha até Bangu, vem consoante o pregoeiro, mântrico ou matreiro?
dando balanço prá dança das curvas dela. Amém-do-in do(i)r-mil...
Fosse a manequim da fábrica, os estoques estariam para fora, Do(i)r-mil amém-do-in
1 '
como meus olhos que ela levou pela janela.
Ouve o trem ... ou-vê o trem ... ouve o trem ...
Que segue afinado e fonético
X Na 'scuridão nad'existe .. .
Quem vem ... quem vem ... Na 'scuridão nad'existe .. .
Vem-de trem Na escuridão o nada existe.
Vem-de trem
Vem-de trem
XI
Entre tantos, e-vem o cortejo do cego,
pisando sem descalço: plano ego. O trem é um corredor.
Inversamente a luz: azul profundamente; O tempo também é um trem.
nos olhos entrevados do-eu, que vê e nada alcançam. Que tem-não-tem ... que tem-não-tem ...
E o cego resmunga: XIII!
"Meu camarada, bravo-camará. A vida também é uma estação passageira;
Sa-na-dor se tem um amigo,
lá se vão ... lá se vão ... lá se vão
Patrício, meu pedido ...
Passam bem ... passam mal...
é poder contar contigo."
Pasta o bicho-homem e o animal;
...tá contigo ... o "seo doutô"; o peão; o sábio-de-mente .
Passam todas as mães e seus filhos.
O pequeno guia e segue o cego: solfeja ... Passam os mastros, mestres, maestros
Abre-alas içando com a bengala-branca, enquanto a música permanece, e se propaga pelo tempo-trem
n' alça do braço que abraça a viola, Pelo trem ... não-trem ... tem-não-tem ...
o cego velho; XIIIII!
366 Um Século de Favela C i dade de Deus 367

O tempo não pára. Repara no trem que pára Ninguém dormia. Ninguém respondia ninguém.
Santíssimo! onde nem se sabe. "Eu dispais, à besta quadruple pedi:
Onde fica a estação Dr. Augusto de Vasconcelos Não me aperreia e vai-se'mbora!
vê-se o trem investir por entre o verde o-este. Êh êh... não crê na garra d'esporas,
Vê-se o verde-azul que ainda resiste no Maciço da Pedra Branca, mas eu cri-na sua ..."
na força invisível do vulcão na Serra do Mendanha;
tão de cima à vista as veias expostas do nosso passa-passa. E lá ia longe o pégaso ...
Passageiro... Pr'álem do aço do trem, foi-se... pegazul
Único: segue o trem: seta. Foi-se ... por sobre o cavalo de ferro
que seu dono montava a contragosto . . .
Cada qual ·seu empenho, seu ofício e meta.

XIII
Chiiiiiii. . . cheguei em Campo Grande. Foice n a distância.
Onde ia tão depressa? Foi constante até Benjamim; Inhoaíba,
alinhado; condizente; reto; concurvo: trem muito além da próxima, na lonjura das estrelas,
De pé na plataforma sinto o tempo passando quem já foi ao Cosmos?
num trem-ido Quem foi em guarda dos amores de Pedro, primeiro
e a paralisia nest' ação dizia: Paciência... Paciência...
é de uin mastro e sua flâmula; como vão, ainda, os jogadores guardando vez-a-vez o lance
é de um maestro fechando os olhos à sua música fluida. no leque do carteado e, na purrinha...
E o mestre d'eu e recebeu: na matemática da sorte e azar;
Luz de uma viagem: Campo Grande. do horário e avaria, várias vezes ao dia.
Só a avareza do trem com a pontualidade,
justifica uma estação chamada Tancredo Neves,
onde quase tudo é quase nada.
XII
Enfim, o trunfo da chegada.
L á se vai ... se vai... se vai. . . Fim da linha... (cada qual na sua?)
o trem e sua pontuada cantilena, estórias das gentes, Pois, para depois de Santa Cruz,
que somos nós, ante a história a ser escrita. A via-férrea continua...
Lá se foi... Ilha de Vera Cruz!
com aquele homenzinho-gabiru em botas e chapéu, Terra de Santa Cruz!
Venerada Cruz do Senhor.
talvez, ainda re-pita e reconta
Este sítio guarda de herança em nome,
o acontecido causo d'ante esta-ação,
um martírio consagrado e esquecido num fim de linha.
ele, que o cavalo amarr'em vão:
Estrada Real de Santa Cruz. Um ramal real em agonia.
"Tenho nessa mão corda-e-laço;
Tudo por um fio de linha, sem sim, sem fonia.
ninh'outra mão milho e sal. Quem tem um dó, pró recomeço?
Mas não abraço nem traspasso Em quem dói a falta de trilhos para a memória,
o pescoço escasso do animal..." para o bem público, para a história que descarrila a meio caminho?
368 Um Século de Favela C idade de Deus 369

XIV As visões d o trem são conforme surpresas; sua aparição!


Dragão faminto!
.. .ida (v) inda ... (e a brevidade quase se perde ...)
(a fome nunca é imaginária, mesmo para um dragão),
Pausa: oca ocasião: consecução entre vãos: vagões repousam em si: silêncio.
A viagem peca pela gula, fustigada na pressa alheia,
Perpassa-se sem passos, sem pressa - em círculos - novo começo
ao que foi findo. suas bocas devoram, embarcam à rota:
Fim impróprio, à vaga de vagões arrocha, engasga, cospe .. .
que delinea-nau; engole, em gole, em gole .. .
círculo impróprio, inscrito sobre paralelas. Dragão demente, embandeirado pelo teto,
Ciência. porém, de idas e vindas: vaivém apinhado de gente;
catando estações: grão-gão-grão ... esfiapa-se no ar suas franjas, pingentes.
De ponta cabeça, o trem Dragonas. Cristas oscilantes, gentes acrobatas
desvira-se-per-si: hermafrodita.
e saltos suicidas.
Desponta pela força ígnea que o deslinda,
Oh!
o trem em-forma-se: comboio.
Festejos e fogos de artifícios. Faíscas humanas.
O trem de presença conterrânea. Celebração de morte e esquecimento coletivo.
O trem de aparência dragontina.
O trem, nada tem do fluxo aquoso de um rio,
com sua orientação ígnea. Arrocha. Arrota. Engasga. Cospe.
Engole. Em gole. Em gole ...
XV O primeiro passe é pela esfinge do funcionário público,
o segundo passe é pela roleta da fortuna burocrática.
Os trilhos no chão é a certidão do trem, O último é o jeitinho, instituição brasileira,
conterrâneo de cada passageiro! que cava túneis nos muros, lança pontes; abre portões
Sujeito e objeto nas relações diárias.
às passagens pragmáticas.
Vivo, veloz.
Vítima, algoz Lá vai um ... dois ... mil guerreiros sem lanças!
Tem sua existência para o tempo-espaço, As lanças modernas são forjadas para a imobilidade,
que o fogo do espírito humano dá função. adornam grades que separam e espetam o ar.
Lá vão três ... quatro ... mil guerreiros em suas guerras não declaradas.
Parado em quarto de linha, também é recessivo, paralítico, avaro;

1
E lá vem pedra ... pedras ... pedras ... pedras tão ao alcance das mãos;
justo à hora do relógio-de-ponto. os pés e as pedras se vão disparados sem qualquer destino . . .
O trânsito epidérmico das plataformas
às vezes demonstra o que é o movimento intestino do trem
(nenhuma solidão reclusa de Mestre Jonas e Gepeto embaleados); Encheio vai-e-esvai o trem
em-trem-no-trem-em-trem-no-trem-em-trem-no-trem ... arrastando sua crítica pelo chão:
O fluxo da manhã em direção ao centro da cidade não tem poesia ...
Prest' atenção!
e mais pesado, arrasta-se no rush rush rush rush rush rush
de um carrinho de mão empurrado pela força do peão. Presta tensão?
E-vem o trem ... Pre-tensão ...
370 Um S é culo de Favela

XVI

A luz captura imagens: capítulos de janelas: tela-visão:

O Sol. Céu azul. Nuvens. O morro, a mata, o verde, o vale. O vento. A árvore
Os pássaros; as pipas; a calha; a caixa d'água. O sobrado. A Chuva. A cheia.
A torre. A teia. O fio. A antena. A parabólica. O rio. O cio. O passeio.
O poço. O pasto: cabra, vaca, cavalo; a cerca; a porteira. O poente...
Estrela da tarde. Janela aberta. Namoro de moça; porta-e-meia.
O Cristo. O sino; o sinal da cruz. A novela. A ceia .
O breu d a noite: estrelas
Lua Cheia...
Luz
... O Sol em cheio
Café com pão. Sangue na veia.
O banho. A fila. O ônibus. O jornal do dia.
O guri. O gude. A conta. A escola; letra escrita leia.
O calo do velho; o ai -ai -ai. A fome come o home. Esmola alheia.
A casa. Água de filtro. As coisas. O credo. A cria da cadela magra e feia.
A praça. A igreja. A fogueira. Festas e fitas. O casório, flor de laranjeiras.
A bola. O jogo. A briga. A peia. A feira. A fábrica. O médico. Sapato e meia.
A ponte. O homem - A mulher - O fruto. Paz n'aldeia. O que o coração vê, creia.

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