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O sistema de prevenção e investigação de crimes financeiros

Conferência proferida a 19.04.2017 – Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


P. Saragoça da Matta

O sistema de prevenção e investigação de crimes financeiros

“We are what we pretend to be,


so we must be carefull about what we pretend to be”
Kurt Vonnegut
Mother Night

“There is no reason why good cannot triumph as often as evil.


The triumph of anything is a matter of organization.
If there are such things as angels, I hope that they are organized along the lines of the Mafia.”
Kurt Vonnegut
The Sirens of Titan

1. Delimitação do objecto da reflexão

O tema deste painel foi denominado “governance” do sistema de prevenção e investigação de


crimes financeiros.

Começamos, necessariamente, por delimitar o âmbito sobre o qual fomos convidados a reflectir,
para o que se impõe, preliminarmente, conseguir definir o que seja “governance”, o que seja
sistema e o que sejam crimes financeiros, deixando para a fase analítica os conceitos de
prevenção e investigação.

“Governance” é um daqueles termos de origem inglesa, hoje em dia tão usados em Portugal,
que tem como equivalentes no nosso idioma os vocábulos “governo” e “governação”. Governo,
substantivo masculino, ou governação, substantivo feminino, provenientes do latim guberno,
gubernare, significa o acto de pilotar, dirigir ou conduzir um navio1. Têm ambos por significado
o acto ou modo de governar ou administrar. Por seu turno, sistema, substantivo masculino,
provém do grego systema, systematis, significando, etimologicamente, um conjunto composto
por várias partes2.

O significado actual de sistema é plurívoco, podendo com utilidade nesta sede recordar-se
alguns desses significados:

1
Governo, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/governo [consultado em 02-04-2017]. Numa pátria de marinheiros, não poderia ser
de outro modo.
2
Sistema, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-
2013, https://www.priberam.pt/dlpo/sistema [consultado em 02-04-2017].

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a) Conjunto de princípios, verdadeiros ou falsos, reunidos de modo que formem um corpo


de doutrina;
b) Combinado de partes reunidas para concorrerem para um resultado, ou de modo a
formarem um conjunto;
c) Modo de organização de uma realidade, v.g. sistema capitalista de organização
político-económica;
d) Modo de governo, de administração ou de rotativismo da organização política, como
por exemplo diferentes sistemas eleitorais;
e) Conjunto de meios e processos empregues para alcançar um determinado fim;
f) Conjunto de métodos ou processos didacticos;
g) Método, modo ou forma;
h) E vários outros significados específicos no âmbito da anatomia (onde encontra
equivalente em aparelho), da astronomia, da filosofia, da geologia, da história, da
música, etc.

Destes últimos significados, e porque interessante para momentos mais finais desta reflexão,
sublinhemos apenas o conceito filosófico de sistema: um conjunto de ideias científicas ou
filosóficas logicamente solidárias, consideradas mais na sua coerência interna, do que na sua
verdade.

Daqui resulta, desde já, e para o fim que pretendemos, que sistema é um método, modo ou forma
de administrar e um modo de organização de uma realidade, tendo em vista concorrer para
um resultado ou formar um conjunto.

O objecto da nossa análise, por conseguinte, é o método de organizar e administrar os


mecanismos de prevenção e investigação dos crimes financeiros, método esse que, formando
um conjunto, visará concorrer para o resultado óbvio: prevenir e reprimir a realidade definida
como criminalidade financeira.

Vejamos, em seguida, o que são crimes financeiros, momento em que, pela dificuldade do
empreendimento a realizar (como melhor se perceberá adiante), optamos por abrir um capítulo
autónomo.

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2. Crimes financeiros – o menino que despejava o mar num buraco da areia

Conta-se que Santo Agostinho, estando em deambulações por uma praia tentando entender o
mistério da Santíssima Trindade, encontrou um menino com um pequeno balde de madeira.
A criança ia sucessivamente até a água do mar, enchia o seu pequeno balde e voltava,
despejando a água no buraco que escavara na areia. Santo Agostinho, observando o menino,
perguntou-lhe: – Que fazes, menino? Este, com simplicidade, olhou para o Santo e respondeu-
lhe: – Coloco neste buraco toda a água do mar! Perante tal inocência, o Santo sorriu e disse-
lhe: – Meu pequeno: isso é impossível! Como podes querer colocar toda essa imensidão de
água do mar neste pequeno buraco? E foi então que, segundo a lenda, um anjo olhou profundamente
o Santo Bispo de Hipona e lhe disse: – Em verdade, te digo: é mais fácil colocar toda a água do
oceano neste pequeno buraco na areia, do que a inteligência humana compreender os mistérios
de Deus!

Lembramo-nos, aqui, desta história, porque aquilo que em Portugal se tem pretendido colocar
dentro do “pequeno buraco” do sistema de prevenção e investigação criminal, quando se usa
como categoria a fórmula “crimes financeiros”, só pode pretender ser uma tentativa de “meter”
no dito sistema, preventivo e punitivo, toda a água do Mar. Senão vejamos:

Cabe começar por clarificar que não existe, nem na Lei, nem na Doutrina, nem na
Jurisprudência, nem sequer na Criminologia, nenhuma categoria clara e indiscutivelmente
definida do que sejam crimes financeiros3.

É aliás curioso notar que mesmo em obras em que esse esforço definidor do que sejam os crimes
financeiros seria ponto de partida de todos os raciocínios, a definição não se encontre ou não
seja claramente determinável4.

3
A este propósito é curioso notar que em cada família de Direito ou sistema jurídico, em cada Estado dentro da
mesma família, em cada Autor trabalhando no mesmo ordenamento jurídico, são diversos os tipos penais que se
fazem incluir no rol dos crimes financeiros. Mesmo quando, estranhamente, manifestam algum acordo de princípio
sobre quais sejam os bens jurídicos tutelados por tal categoria de criminalidade.
4
Cfr. Palma, Maria Fernanda, Direito Penal Especial: o vértice do sistema penal, in Direito Penal Económico e
Financeiro, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 11 e seguintes. Neste estudo pode ler-se, contudo, com utilidade:
“Este Direito Penal Especial não se confunde com a Parte Especial do Código Penal, por dizer respeito a bens

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Isto apesar de a doutrina afirmar: “Separar o trigo do joio, delimitar os bens jurídicos ainda
sob a chancela de uma ideia de necessidade e dano social empiricamente comprovados,
delimitar novos princípios de responsabilidade tanto quanto possível transversais às diversas
áreas do Direito Penal, é a tarefa que exige uma investigação nova, que não minimize a força
da realidade e a recuse. Trata-se de procurar ‘estradas normativas’, em que se formulem as
novas ideias de um Direito Penal que, quer queiramos quer não, se afastam definitivamente do
Direito Penal mínimo e do velho princípio da necessidade de pena de Beccaria”5.

E essa delimitação de crimes financeiros que pressupõe encontrar os bens jurídicos subjacentes
a todos os tipos, tal como é necessário encontrar coerência entre bens jurídicos de tipos que se
pretendem fazer acolher dentro de uma determinada categoria jurídico-criminal, resulta da
lógica. Sob pena de a categoria em questão ser uma posta-restante sem qualquer congruência
interna, como tal insusceptível de qualquer organização ou sistemática.

Como bem defende alguma doutrina Espanhola: “… o direito penal recente se caracteriza por
criar novos bens jurídicos que normalmente têm um perfil vago ou pouco conciso, ou que estão
definidos somente a traços largos, por antecipar a protecção dos bens jurídicos que se podem
definir como clássicos”6. Mas a conclusão será a mesma… sempre será necessário identificar

jurídicos com uma outra funcionalidade. É constituído pelo Direito Penal que se foi desenvolvendo em legislação
avulsa, por vezes designada como legislação extravagante, ultrapassando a sistemática do Código Penal –
baseada, essencialmente, na protecção da pessoa, da propriedade e do Estado. Este Direito Penal Especial
abrange os interesses colectivos de carácter económico-financeiro e fiscal. E abarca outros bens em que o Direito
Penal surge com especial configuração, como acontece com os crimes de titulares de cargos públicos, a corrupção
em novas áreas (sector privado), ou mesmo o terrorismo, respondendo a exigências de uma rápida intervenção
social. O que pode unificar todos estes sectores é a consideração do Direito Penal como meio directo de política
social sem uma gestação imediata na indicação social, como acontecia com o Direito Penal Clássico”. Mais
adiante, e a propósito da análise de crimes do mercado de valores mobiliários escreve a mesma Autora: “a par
desta repercussão do bem jurídico na estruturação do tipo, também há uma inevitável repercussão nos critérios
de imputação de uma nova função do Direito Penal” (idem, p. 17). O que leva a concluir que, apesar de todas as
reflexões mais funcionalistas, não pode dispensar-se a identificação, com alguma (relativa) precisão, do bem
jurídico. Logo, a autonomização do bem jurídico subjacente ao que seja criminalidade financeira, afigura-se-nos
imperiosa.
5
Palma, Maria Fernanda, op. cit.,, pp. 23-24.
6
Sánchez, Bernardo Feijoo, Sobre a ‘administrativização’ do Direito Penal na ‘sociedade do risco’, in Direito
Penal Económico e Financeiro, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 40-41.

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um bem jurídico, ainda que vago ou pouco conciso, que abranja todos os tipos a integrar a
categoria pretendida7.

Num sentido muito mais correcto, há quem afirme que “é preciso avaliar a política criminal
para verificar se a construção destes tipos penais obedece a um estudo sério por parte dos
encarregados pela tipificação das condutas que lesam ou perigam bem jurídicos dignos de
protecção, ou se, ao invés, atendem a situações conjunturais e com isto se procura apenas
aplacar as preocupações que estas condutas geram na comunidade, no que se denominou pelos
estudiosos da sociedade do risco como ‘populismo punitivo’.”8.

E este esforço é tanto mais necessário quando, navegando pelo mundo virtual, se encontra uma
profusão de ilícitos que vão sendo, aleatoriamente, integrados na categoria de crimes
financeiros, com ou sem razão, com ou sem critério.

Assim vemos serem incluídos no rol de crimes financeiros, conforme o tempo ou a geografia,
os seguintes: apropriação ilegal de fundos, gestão fraudulenta de instituição financeira, evasão

7
Apesar do sentido categórico, não nos parece que a pretensão que prosseguimos seja conflituante com a afirmação
de A. Silva Dias, quando escreve: “A respeito do fundamento concreto da intervenção penal no âmbito do ilícito
fiscal (…), não se apresenta à partida um (ou vários) bem jurídico de contornos definidos, concretamente
apreensível, que funcione como constituens da estrutura do ilícito e vincule a uma certa direcção de tutela. Ao
invés, o objecto da protecção penal é um ‘constituto’, uma resultante de objectivos e estratégias de política
criminal previamente traçados. O legislador não parte aqui das representações de valor pré-existentes na
consciência jurídica da comunidade, mas intervém modeladoramente no sentido de uma ordenação de
convivência. Por outras palavras, o interesse protegido pelas normas penais fiscais não é um prius, que sirva ao
legislador de instrumento crítico da matéria a regular e do modo de regulação, mas um posterius, com uma função
meramente interpretativa e classificatória dos tipos, construído a partir da opção por um dos vários figurinos
dogmáticos e político-criminais que o legislador tem à disposição. Com esse sentido pode dizer-se que os crimes
tributários têm natureza ‘artificial’.” (Dias, Augusto Silva, O novo direito penal fiscal não aduaneiro, in Direito
Penal Económico e Europeu, Volume II – Problemas Especiais, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 239 e ss.,
maxime p. 263). De modo tal que acaba por apontar bens jurídicos, ou interesses jurídicos protegidos, para os
crimes fiscais que analisa. O mesmo, aliás, em Dias, Augusto Silva, Crimes e Contra-ordenações fiscais, in Direito
Penal Económico e Europeu, Volume II – Problemas Especiais, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 437 e ss.,
maxime p. 445. O mesmo se diga para o afirmado por M. Costa Andrade: “… pelo menos do ponto de vista
cognitivo, o bem jurídico em Direito Penal Económico pode ser posterior à identificação da respectiva área de
tutela ou protecção” (Andrade, Manuel da Costa, A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.-Lei n.º 28/84, de
20 de Janeiro), in Direito Penal Económico e Europeu, Volume I – Problemas Gerais, Coimbra Editora, Coimbra,
1998, pp. 387 e ss., maxime p. 404). Ou seja, por mais dúvidas que existam sobre qual seja o bem jurídico que
levou à incriminação, o mesmo tem de ser encontrado necessariamente para a aplicação do tipo. Infelizmente,
neste magnífico estudo o Autor apenas analisou uma parte dos crimes p. e p. no Dec.-Lei n.º 28/84, nenhum deles
susceptível de ser considerado crime financeiro.
8
Quintero, Hernando A. Hernández, Delitos Financieros y política criminal, in
https://www.uac.edu.co/images/stories/publicaciones/revistas_cientificas/escenarios/volumen-9-no-1/ art09. pdf.

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de divisas por operação de câmbio não autorizada, burla (estelionato com desvio da garantia
pignoratícia), desvio na aplicação de recursos (burlar o uso previsto em contrato para valores
conseguidos por meio de financiamento junto de instituição financeira oficial ou credenciada)9,
tráfico de influência, falsificação de documento, peculato, peculato de uso, participação
económica em negócio, abuso de poder10, corrupção11, crimes fiscais e cheques sem provisão,
burla com fraude bancária, abuso de autoridade, crimes cometidos no exercício de funções
públicas, fraude contra a segurança social12, falsificação e roubo de cheques, fraude com
abertura, uso e fecho de contas bancárias, o “esquema de Kiting”, roubo de identidade
financeira, infidelidades, clonagem de cartões de crédito, “roubos” a bancos (com violência),
assaltos a caixas automáticas de multibanco, sistema de pirâmide ou esquemas de Ponzi13,
“lavagem de dinheiro”, crimes de colarinho branco, gestão temerária da instituição
financeira14, etc.

9
https://economia.terra.com.br/operacoes-cambiais/pessoa-fisica/confira-o-ranking-dos-crimes-financeiros-mais-
comuns-no-pais,fb607942755fe310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html
10
Notícia in Dinheiro Vivo/Lusa de 30.06.2016 pelas 11:20, https://www.dinheirovivo.pt/economia/director-do-
museu-da-presidencia-detido-suspeita-seis-crimes/#stash.9Ai58ob2.dpuf.
11
Notícia in Dinheiro Vivo/Lusa de 30.06.2016 pelas 11:20, https://www.dinheirovivo.pt/economia/policia-
economica-uestiona-statoil-pagamento-50-milhoes-sonangol/#stash.IUreiTd.dpuf.
12
Dados disponibilizados pela Procuradoria-Geral da República portuguesa à Agência noticiosa Lusa em 4 de
Dezembro de 2016 e publicadas em www.noticiasaominuto.com.
13
Cfr. https://www.academia.edu/8600427/Delitos_Bancarios.
14
Interessante a inclusão da lavagem de dinheiro e dos crimes de colarinho branco como crimes financeiros feita
na página oficial do Ministério Público Federal Brasileiro do Estado do Ceará na internet. Aliás, depois de tudo
quanto ficou atrás referido sobre a imprecisão conceptual nesta área é curioso recordar a Lei 7.942/86 da República
Federativa do Brasil, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Nela, e entre outros, incluem-se
os seguintes tipos: imprimir, reproduzir ou, de qualquer modo, fabricar ou pôr em circulação, sem autorização
escrita da sociedade emissora, certificado, cautela ou outro documento representativo de título ou valor
mobiliário; imprimir, fabricar, divulgar, distribuir ou fazer distribuir prospecto ou material de propaganda
relativo aos títulos e valores mobiliários; divulgar informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre
instituição financeira; gerir fraudulentamente ou temerariamente instituição financeira; apropriar-se de dinheiro,
título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio; quem
negociar direito, título ou qualquer outro bem móvel ou imóvel de que tem a posse, sem autorização de quem de
direito; induzir ou manter em erro, sócio, investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação
ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente; emitir, oferecer ou negociar, de
qualquer modo, títulos ou valores mobiliários: falsos ou falsificados; sem registro prévio de emissão junto à
autoridade competente, em condições divergentes das constantes do registro ou irregularmente registrados; sem
lastro ou garantia suficientes, nos termos da legislação; sem autorização prévia da autoridade competente,
quando legalmente exigida; fraudar a fiscalização ou o investidor, inserindo ou fazendo inserir, em documento
comprobatório de investimento em títulos ou valores mobiliários, declaração falsa ou diversa da que dele deveria
constar; fazer inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos contábeis de
instituição financeira, seguradora ou instituição integrante do sistema de distribuição de títulos de valores
mobiliários; manter ou movimentar recurso ou valor paralelamente à contabilidade exigida pela legislação;
deixar, o ex-administrador de instituição financeira, de apresentar, ao interventor, liquidante, ou síndico, nos
prazos e condições estabelecidas em lei as informações, declarações ou documentos de sua responsabilidade;
apresentar, em liquidação extrajudicial, ou em falência de instituição financeira, declaração de crédito ou
reclamação falsa, ou juntar a elas título falso ou simulado; ex-administrador ou falido que reconhecer, como

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Também de particular interesse, para uma correcta percepção do cenário em que nos movemos,
é a categorização feita no âmbito da actividade bancária daquilo a que se chama “o quarteto
dos crimes bancários”, que quando analisados são ilícitos informáticos praticados através da
criação e difusão de vírus informáticos / softwares maliciosos com o propósito de abduzir dos
sistemas informáticos da banca informações relacionadas com transacções financeiras ou
permitir a apropriação de credenciais que permitem realizar operações bancárias fraudulentas,
contra as instituições e/ou seus clientes. Estes Cavalos de Tróia são o Citadel, o Carberp, o
Spyeye e o Zeus. Todavia, são em muitos países considerados verdadeiros crimes financeiros15.
***
Em face deste panorama caótico, entendemos que a abordagem não possa deixar de passar pela
procura do que seja o direito financeiro (e, em rigor, até deveria ser económico-financeiro16), para
depois poder circunscrever o que seja o crime financeiro, enquanto categoria dogmaticamente
aceitável (por preencher os requisitos da determinação e certeza ínsitos a toda e qualquer definição ).

Escreve Teixeira Ribeiro que “a actividade financeira concretiza-se (…), em receitas e


despesas. O Estado adquire receitas, transforma-as em despesas, e isso dá origem a um
complexo de relações entre os particulares e os agentes do Estado, e estes entre si. São relações
que, num Estado de direito, e atenta de mais a mais a importância dos interesses em jogo, não
podem deixar de encontrar-se submetidas a normas jurídicas. Ora, as normas que regulam a
obtenção, a gestão e o dispêndio dos meios financeiros públicos constituem, precisamente o

verdadeiro, crédito que não o seja; violar sigilo de operação ou de serviço prestado por instituição financeira ou
integrante do sistema de distribuição de títulos mobiliários de que tenha conhecimento, em razão de ofício; obter,
mediante fraude, financiamento em instituição financeira; aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou
contrato, recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou por instituição
credenciada para repassá-lo; atribuir-se, ou atribuir a terceiro, falsa identidade, para realização de operação de
câmbio; efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País; quem, a
qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver
depósitos não declarados à repartição federal competente; omitir, retardar ou praticar, o funcionário público,
contra disposição expressa de lei, ato de ofício necessário ao regular funcionamento do sistema financeiro
nacional, bem como a preservação dos interesses e valores da ordem económico-financeira; etc.
15
Cfr. https://blog.kaspersky.com.br/o-quarteto-dos-crimes-bancarios/1512/.
16
Por razões que se prendem com a nomenclatura legislativa dada à Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, e que nos
seus próprios termos pretendia ser a base de concretização das Medidas de combate à corrupção e criminalidade
económica e financeira. Aliás, desde já se sublinhe que todas as críticas e apreciações que se farão ao art.º 1º n.º 1
als. d) e e) da Lei n.º 36/94 são aplicáveis, ipsis verbis, ao teor (igualmente criticável), das alíneas p) e q) do art.º
2º da Lei n.º 101/2001 de 25 de Agosto (Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-
Financeira), na medida em que têm exactamente o mesmo teor daquelas. Idem para a al. j) do n.º 3 do art.º 7º da
Lei n.º 49/2008 de 27 de Agosto, atrás identificada.

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direito financeiro. O direito respeitante à aquisição de receitas contempla sobretudo as


receitas coactivas. E como estas são conseguidas mediante processos diferentes dos usados
pelos particulares, daí que se procurasse isolar, no próprio direito das receitas, o conjunto de
normas relativas à obtenção daquelas cujo montante é autoritariamente estabelecido pelo
Estado: eis o direito tributário. O direito tributário regula, portanto, a aquisição de taxas e de
impostos. Mas como as taxas as percebe o Estado em troca de serviços que presta, e os impostos
não têm contraprestação nenhuma e são, além disso, a fonte principal não só das receitas
coactivas como das receitas públicas – daí que se procurasse isolar, dentro do direito
tributário, o conjunto de normas que respeitam à incidência, lançamento e cobrança dos
impostos: eis o direito fiscal.”17.

Por seu turno, “no presente estádio do conhecimento, e de forma aproximativa, define-se o
objecto da disciplina do Direito Económico como o estudo da ordenação (ou regulação)
jurídica específica da organização e direcção da actividade económica pelos poderes públicos
e (ou) pelos poderes privados, quando dotados de capacidade de editar ou contribuir para a
edição de regras com carácter geral, vinculativas dos agentes económicos”18.

Dito de outro modo, “é possível afirmar que o Direito Económico, embora não integrando todo
o direito da economia – visto que há outros ramos de direito que dele se ocupam, como, por
exemplo, o direito comercial – é todavia o direito específico da ordenação da economia”19.

17
Ribeiro, José Joaquim Teixeira, Lições de Finanças Públicas, 5ª Ed., reimp., Coimbra Editora, Coimbra, 1997,
p. 46.
18
Santos, António Carlos, Gonçalves, Maria Eduarda e Marques, Maria M. Leitão, Direito Económico, 5ª Ed.
Revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2004, p. 13. Muito interessante, precisamente para a análise que se
empreende, e que é obviamente levada a cabo na perspectiva penal, com a sua imperiosa certeza, previsibilidade,
determinabilidade, é a apresentação feita pelos autores do que consideram ser as características principais do
direito financeiro: “a dispersão e heterogeneidade das suas fontes (…); a sua mobilidade, que se manifesta na
transitoriedade e na plasticidade na adaptação aos casos concretos de uma parte das suas normas, em parte
justificada pela sua natural sensibilidade às mudanças sociais e políticas e pela sua ligação às políticas
económicas conjunturais; a ampliação do âmbito das fontes tradicionais (…); uma certa privatização das suas
fontes, que se manifesta não só na importância da auto-regulação pelas próprias entidades privadas, mas também
na negociação das fontes públicas, tanto no processo da sua elaboração, como no momento da sua aplicação; o
declínio da coercibilidade, que se reflecte em diversos aspectos como sejam: o predomínio das normas de
conteúdo positivo sobre as de conteúdo negativo; a subalternização dos efeitos jurídicos relativamente aos
económicos e sociais; a relevância das normas programáticas; a utilização crescente da via contratual e da via
concertada, ao lado da imposição legal, para atingir os fins da política económica; a diminuição dos efeitos da
nulidade dos negócios, procurando maximizar os seus efeitos jurídico-económicos” (pp. 25 e s.).
19
Santos, António Carlos, Gonçalves, Maria Eduarda e Marques, Maria M. Leitão, op. cit. , p. 26.

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Por fim, recordar que “um dos sectores da actividade económica em que mais se tem
desenvolvido o fenómeno da regulação é o dos mercados financeiros, que correspondem, no
entanto, a uma das áreas onde a regulação se defronta com maiores problemas, resultantes
quer da globalização financeira, quer da tendência do sector para tentar impor formas de auto-
regulação. Em Portugal, a exigência de intervenção do Estado nos mercados financeiros
constitui um imperativo constitucional. De facto, na actual versão, fixada na segunda revisão
constitucional, o art.º 101º prevê que ‘o sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a
garantir a formação, a captação, e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos
meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social. É certo que a expressão
sistema financeiro está longe de ser isenta de ambiguidades e a própria inserção sistemática
do art.º 101º, num título com a epígrafe sistema financeiro e fiscal só contribui para as
aumentar, dificultando a separação entre os universos financeiros público e privado.”20.

Seguindo a mesma autoridade, estes mercados financeiros compreendem o sector bancário (e


parabancário, diríamos nós), o mercado de valores mobiliários e o sector segurador21 (e dos fundos).

Em face do exposto, a realidade económico-financeira será o conglomerado de relações e


normas protagonizadas e criadas pelas instituições e pelos agentes económicos, pondo-se na
fórmula enunciada o acento tónico no direito financeiro, o qual regula a obtenção, a gestão e o
dispêndio dos meios financeiros públicos, abrangendo, por conseguinte, o direito tributário, e,
mais especificamente ainda, o direito fiscal22/23.

20
Ferreira, Eduardo Paz, Direito da Economia, reimp., Lisboa, AAFDL, 2003, p. 415.
21
Ferreira, Eduardo Paz, op. cit., pp. 415 a 457. Já o direito da economia abrangerá o conjunto normativo
disciplinador do sector empresarial privado e do sector empresarial do Estado, Autárquico e Regional, o
intervencionismo estatal, a concertação económica e o contratualismo económico, as privatizações, a regulação
económica em geral, os mercados financeiros, o direito da concorrência, etc.
22
Finanças, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/financas [consultado em 02-04-2017], significa fazenda nacional, Estado
financeiro, ciência que tem por fim coordenar os interesses pecuniários do Estado com o bem-estar público.
23
Alfredo José de Sousa escreve: “Uma das especificidades do direito económico é o sistema sancionatório
próprio para a violação dos bens jurídicos que as suas normas e institutos jurídicos visam tutelar” (Sousa, Alfredo
José, Direito Penal Fiscal – Uma prospectiva, in Direito Penal Económico – Centro de Estudos Judiciários – Ciclo
de Estudos, CEJ, Coimbra, 1985, p. 189 e ss., maxime p. 200, com nota de rodapé a Simões Patrício, Introdução
ao Direito Económico, p. 31). Este Autor vai precisamente no sentido que defendemos no texto, ainda que coloque
a questão de saber se o direito penal fiscal é também um direito sancionador das violações da ordem económica,
questão a que responde afirmativamente, porquanto “o imposto constitui também um instrumento jurídico a utilizar
pelo Estado na regulação, intervenção ou direcção do sistema económico” (p. 201). Mais adiante, porém, vem a
identificar o bem jurídico dos crimes fiscais como “a confiança da administração fiscal na verdadeira capacidade
contributiva dos contribuintes” (p. 221), asserção esta que não acompanhamos de todo.

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Nestes termos, quando se fala em criminalidade económico-financeira, está a falar-se de factos


típicos, ilícitos, culposos e puníveis cujo bem jurídico protegido24 emergirá da referida
regulação constitucional e legal da realidade económico-financeira.

Conclusivamente, de um ponto de vista conceptual, dogmático, a criminalidade económico-


financeira será aquela que viola os bens jurídicos fundamentais tutelados pelas normas
reguladoras do sector empresarial, seja ele privado, autárquico, regional ou Estatal, dos
processos de intervencionismo estatal na economia, do domínio da concertação e do
contratualismo económico, do âmbito das privatizações, do direito da concorrência, do sector
bancário, parabancário, segurador e do mercado de valores mobiliários25.

Este será, dogmaticamente (e tanto quanto possível “determinar”), o âmbito da criminalidade


económico-financeira. Com o que se conclui, logo olhando para a primeira categoria enunciada,
que poderão e deverão ser considerados crimes económico-financeiros também todos aqueles
crimes ditos comuns, se e na medida em que forem cometidos “por”, “em” ou “contra” o sector
empresarial público ou privado.

Em face desta “definição” dogmática, cabe apurar o que entendeu o legislador fazer verter
dentro do conceito de criminalidade económico-financeira, para o que teremos de lançar mão,
compulsoriamente, da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, diploma que entendeu ex professo

24
Esta nossa busca é imposta pelo teor expresso do art.º 18º n.º 2 da Constituição da República, precisamente no
sentido defendido por Costa Andrade, quando escreve: “a fecundidade deste preceito (“a lei só pode restringir
direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-
se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”) para o tema
que aqui nos ocupa afigura-se-nos óbvia. (…) vale (como autêntica norma jurídica e não como mero princípio
programático) praeter legem, sine lege ou contra legem” (Andrade, Manuel da Costa, A nova lei dos crimes contra
a economia (Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro), in Direito Penal Económico e Europeu, Volume I – Problemas
Gerais, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 387 e ss., maxime p. 397). E segue logo adiante: “Um bem jurídico
que – resulta claro – não pode dissolver-se no conceito omnicompreensivo de ratio legis, mas há-de circunscrever-
se a valores devidamente identificados a que o tipo assegura uma específica – mas sempre limitada – área de
tutela (Schutzbereich). Limitação requerida por considerações de ordem vária, mas a que não é estranha a
homenagem a contra-interesses ou valores conflituantes e que, por isso, se inscrevem também no telos da norma
incriminatória. Certo como é que toda a decisão de criminalização é também uma decisão de não-criminalização
das condutas que caem fora da área de tutela tipicamente assegurada” (idem, p. 398).
25
Em abono desta abrangência conceptual se deve convocar, precisamente, o art.º 101º da Constituição da
República, quando estatui: “O sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação
e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento
económico e social”.

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prever e disciplinar as Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e


financeira26.

Todavia, dado o escopo da presente reflexão, e apesar da abrangência superior da Lei n.º
36/9427, limitar-nos-emos a analisar o sistema de prevenção e investigação dos crimes
financeiros, deixando de parte todas as infracções económicas.

E para determinar os bens jurídicos tutelados pelo direito financeiro, que possam merecer tutela
penal em ordem à constituição do acervo de crimes financeiros, teremos de atentar precisamente
na definição desse mesmo direito. Assim sendo, os bens jurídicos tutelados pelos crimes
financeiros exumar-se-ão das normas que regulam a obtenção, a gestão e o dispêndio dos meios
financeiros públicos, abrangendo, o direito tributário e o direito fiscal28, e ainda as normas que
disciplinam a actividade bancária, parabancária, seguradora, de fundos e de valores mobiliários.

Ora, a Lei n.º 36/94 tem um elenco de tal sorte amplo e variado que peca simultaneamente
por excesso e por defeito. Não só abrange muito mais crimes do que os verdadeiros crimes
económico-financeiros, como não abrange todos os crimes económico-financeiros que devia
abranger, como ainda abrange muitos crimes cuja inclusão no rol de crimes de corrupção ou

26
Como dito atrás, em lugar exactamente igual se encontram as alíneas p) e q) do art.º 2º da Lei n.º 101/2001 de
25 de Agosto. Também fazendo um apelo, igualmente incompreensível e censurável, ao conceito de crimes
económico-financeiros encontramos a Lei n.º 49/2008 de 27 de Agosto (Lei de Organização da Investigação
Criminal), mais precisamente no art.º 7º n.º 3 al. j). De relevo, contudo, este Diploma, para demonstrar a
desnecessidade total dos outros dos diplomas pré-citados.
27
Abrangência superior apesar de existir muita regulação de combate às infracções económicas e financeiras para
além da Lei n.º 36/94 e da Lei n.º 101/2001, regulação essa, aliás, muito mais “capaz” do que este diploma na
tentativa de lograr essa mesma prevenção e combate.
28
No correcto sentido cfr. Quintero, Hernando A. Hernández, op. cit., p. 97. A propósito conferir ainda Echandía,
Alfonso Reyes, Derecho penal, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, 1980, p. 30 (afirma o autor, a nosso
ver com alguma imprecisão conceptual entre Direito financiero e Direito fiscal: “El derecho financiero está
constitutido por el conjunto de normas jurídicas que permiten al Estado arbitrar los medios económicos
necesarios para la satisfacción de necesidades públicas; entre esos medios figura la pena imponible en casos de
infracción a ciertas normas de contenido fiscal”). Num sentido mais preciso cite-se Neira, Néstor Humberto
Martínez, Sistemas financieros, Bogotá, Biblioteca Felaban, 1994, p. 3, quando escreve: “entendemos por derecho
financiero el conjunto de principios y normas que gobiernan la formación, el funcionamiento, la actividad y la
liquidación ordenada de las instituciones que tienen por objeto la captación, el manejo, el aprovechamiento y la
inversión de fondos provenientes del ahorro del público, así como el ofrecimiento de servicios auxiliares del
crédito”). Por fim, Piñero, Rafael Márquez, Delitos bancarios, Editorial Porrúa, México, 1996, p. 12,
correctamente afirmando que o Direito penal financeiro “establece y sanciona las infracciones en materia de
finanzas (operaciones de Banca, de bolsa y actividades financieras en general)”, faltando apenas a referência à
dimensão que apontamos em texto, e a que alude também Martínez Neira supra.

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económico-financeiros é totalmente inadmissível. Claramente que o legislador pretendeu criar


aqui uma norma de atribuição de competências para os órgãos de polícia criminal e para o titular
da acção penal, e ao fazê-lo cozinhou uma salada russa, tendo-lhe dado uma nomenclatura
totalmente desadequada da realidade.

Tudo porque cometeu o pecado original de pretender verter em letra de lei um conceito que,
como vimos, é totalmente impossível – e até dogmaticamente desadequado – de utilizar com
total rigor na área jurídico-criminal, em que a precisão típica (lege certa, stricta et praevia) é
comando constitucional intransponível – precisamente, o conceito de crime económico-
financeiro.

Mas não se ficam por aqui os pecados deste diploma legal. Com efeito, há nele uma confusão
permanente entre conceitos típicos, largamente cristalizados por décadas ou centúrias de
reflexão dogmática e legal, com conceitos vagos e indetermináveis, alguns com mero valor
criminológico ou mesmo apenas sociológico. Só faltou enunciar como crime económico-
financeiro a categoria do white collar crime para o dislate ser total.

Mas para determinar o grau de desadequação do diploma legal, convirá precisamente atentar
no teor daquilo que pretende abranger nas acções de prevenção e de combate à corrupção e à
criminalidade económica e financeira. E concluir-se-á que o legislador foi como a Criança da
lenda de Santo Agostinho, a tal que tentou meter toda a água do mar num pequeno buraco na
areia.

3. A Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro

Dispõe o art.º 1º da Lei n.º 36/94 ser da competência do MP e da Polícia Judiciária, “sem
prejuízo da competência de outras autoridades”, a realização de acções de prevenção relativas
aos seguintes crimes:
a) Corrupção, peculato e participação económica em negócio;
b) Administração danosa em unidade económica do sector público;
c) Fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;

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d) Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à


tecnologia informática;
e) Infracções económico-financeiras de dimensão internacional e transnacional.

Quanto às alíneas a), b) e c), pode dizer-se que se trata de alíneas claramente bem definidas,
fazendo apelo a tipos penais concreta e precisamente tipificados na lei penal (art.ºs 372º a 374º-B
CP, art.ºs 375º a 377º CP, art.º 235º CP e art.ºs 36º a 39º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro)29.

Porém, quanto às alíneas d) e e), já se não pode tecer qualquer encómio30. Com efeito, na alínea
d), ao se referirem infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com
recurso à tecnologia informática, criou-se uma situação particularmente anómala. Não só não
consegue saber-se, com precisão (como visto), o que são infracções económico-financeiras, posto
que não existe nenhuma categoria legal como a enunciada, como não se alcança qual a razão
de se abrangerem apenas essas infracções quando cometidas de forma organizada “e” com
recurso à tecnologia informática, deixando-se de fora todas as que sejam produto, apenas, de
criminalidade organizada “ou”, apenas, de criminalidade informática. Teria sido mais
abrangente, e como tal profícuo de um ponto de vista das acções de prevenção que a Lei
pretendia autorizar, que se limitasse a utilizar a categoria da criminalidade altamente
organizada, conceito pleno de significado legal, porque definido no CPP e isento de dúvidas.

O mesmo se diga da previsão da alínea e), onde se referem as infracções económico-financeiras


de dimensão internacional e transnacional. Esta previsão, além de merecer a mesma crítica de
total indeterminabilidade do que sejam infracções económico-financeiras, resolveu repetir dois
conceitos que, in casu, só podem ter um e o mesmo significado: internacional e
transnacional… que significa criminalidade que ultrapassa as fronteiras de um determinado
Estado, que envolve espaço sujeito à soberania de mais do que um Estado.

29
Questão diversa, e a que só adiante se poderá dar resposta, é a de saber se mesmo para estes tipos de crime era
necessária a existência deste diploma.
30
Recorde-se que o mesmo se pode dizer, ipsis verbis, para as alíneas p) e q) do art.º 2º da Lei n.º 101/2001 de 25
de Agosto. A utilização de tais “categorias” já não existe, contudo e bem, na Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro, que
prevê e disciplina as Medidas de Combate à Criminalidade Organizada.

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Mas mesmo nos casos em que os tipos penais relativamente aos quais o legislador pretendeu
referir-se estão correctamente identificados (alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art.º 1º ), pergunte-se: a
competência do MP e da PJ carecia deste diploma para existir? Não resultava já do Código de
Processo Penal e dos diplomas legais31 que estruturam a orgânica e competência dos diversos
órgãos de polícia criminal?

A resposta é inequívoca: essa competência já resultava de outros diplomas em vigor, pelo que
a utilidade da Lei n.º 36/94, também para este efeito, é totalmente nula.

Já quanto aos casos em que ninguém conseguirá determinar com rigor absoluto a quê é que o
legislador quis referir-se (alíneas d) e e) do n.º 1 do art.º 1º ), dir-se-á que para o crime organizado,
para o crime informático, para o crime internacional ou transnacional, já o MP e a PJ tinham a
mesma competência, que aqui se afirma, claramente definida em outros instrumentos legais.

Daí ser totalmente incompreensível dizer-se aqui que a PJ realiza as acções previstas no
número anterior por iniciativa própria ou do MP (n.º 2 do art.º 1º). É que as acções de prevenção
já são sua obrigação in genere quanto a todos os crimes de que tomem conhecimento, ou de que
haja suspeitas, ou perigo, de que possam estar a ser, ou vir a ser, cometidos, nomeadamente as
que depois o legislador resolveu tentar elencar no n.º 3 do mesmo artigo.

Objectar-se-á ao nosso raciocínio dizendo: mas o objectivo do diploma legal foi clarificar o que
são as acções de prevenção, e que isso só ficou clarificado mercê do art.º 1º n.º 3… Tal asserção
é, porém, falsa!

Todas as recolhas de informação relativas a notícias de factos susceptíveis de fundamentar


suspeitas do perigo da prática de um crime (alínea a) do n.º 3 do art.º 1º), e todas as solicitações de
inquéritos, sindicâncias, inspecções e outras diligências necessárias e adequadas à
averiguação da conformidade de determinados actos ou procedimentos administrativos, no
âmbito das relações entre a administração pública e as entidades privadas (alínea b) do n.º 3 do

31
Precisamente a este respeito cfr. Lei n.º 49/2008 de 27 de Agosto (Lei de Organização da Investigação Criminal).

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art.º 1º) já são atribuições do MP, coadjuvado pelos OPC’s, e até por muitas outras instituições
reguladoras do mercado e até agentes económicos32.

Por fim, a proposta de medidas susceptíveis de conduzirem à diminuição da corrupção e da


criminalidade económico-financeira (alínea c) do n.º 3 do art.º 1º), já é uma prerrogativa das
autoridades judiciárias (MP aí incluído) e dos OPC’s… termos em que é também totalmente inútil
o n.º 3 do art.º 1º da Lei n.º 36/94.

Em suma, não pode senão concluir-se serem totalmente redundantes, para não dizer inúteis,
todas as normas do art.º 1º deste diploma legal, porquanto tudo quanto se entende aqui serem
acções de prevenção supostamente para um certo tipo de criminalidade especial, já são acções
de polícia de giro para todos os OPC’s, cada um deles para os crimes para os quais já tem
competências investigatórias próprias ou delegadas.

Igualmente inútil é o estatuído no art.º 2º n.º 1. Tanto quanto se saiba, os actos do MP e dos
OPC’s não só não podem ser indocumentados (sem forma, nem base documental), como não podem
ofender direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que não nos termos previstos na CRP e
no CPP. O que esta norma vem dizer é, portanto, absolutamente oco. Tal como o é o disposto
no art.º 3º - havendo elementos que indiciem a prática de um crime, é instaurado o respectivo
processo criminal… é precisamente o que manda fazer-se no CPP relativamente a todo e
qualquer tipo de crime.

As mesmas considerações valem para os art.ºs 4º, 7º, 12º, 13º e 14º, sendo que os 5º e 6º já se
encontram, felizmente, revogados, como revogada deveria estar a Lei n.º 36/94 in totum.
Quanto aos art.ºs 10º e 11º são normas de alteração a outros diplomas legais, precisamente
diplomas atributivos de competências da Polícia Judiciária e do Departamento de Perícia
Financeira e Contabilística.

32
Como abaixo, aliás, melhor se demonstrará.

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Sobram, assim, por analisar os art.ºs 8º e 9º, respectivamente sobre atenuação especial (da pena)
e suspensão provisória do processo, que cabe analisar ex professo pelas razões que
seguidamente se desvendarão.

Quanto ao art.º 8º, estatui que “nos crimes previstos no artigo 1º, n.º 1, alíneas a) e e)”, i.e., os
crimes de corrupção, peculato e participação económica em negócio, e nas infracções
económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional, “a pena pode ser
especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas
para a identificação ou captura de outros responsáveis”.

Esta norma é, a todos os títulos, inaceitável, pelas seguintes ordens de razão.

Em primeiro lugar porque o legislador do Direito penal codificado estatuiu tudo quanto quis
relativamente aos crimes de corrupção, peculato e participação económica em negócio no
momento em que criou esses mesmos tipos… tipos esses, aliás, p. e p. em artigos sucessivos do
Código Penal: 372º a 377º!

Relativamente a todos esses tipos, entendeu o mesmo legislador que um regime de dispensa ou
atenuação especial da pena só fazia sentido relativamente aos tipos p. e p. nos art.ºs 372º a
374º, i.e., aos crimes de corrupção (mais rigorosamente, aos crimes de recebimento indevido de vantagem,
corrupção passiva e corrupção activa, respectivamente). Já relativamente aos crimes previstos nos art.ºs

375º a 377º, i.e., peculato, peculato de uso e participação económica em negócio, entendeu o
legislador que nenhumas dispensas ou atenções especiais de pena existiriam, para além das
previstas em geral, nos art.ºs 72º a 74º do CP, e que são aplicáveis a todo e qualquer crime.

Criou assim o legislador da Lei n.º 36/94 um regime legal confuso e injustificável, em que: os
crimes de corrupção acabam por contar com duas normas legais de atenuação especial de pena,
uma constante do n.º 2 do art.º 374º-B, e outra constante do art.º 8º de Lei n.º 36/94; os crimes
de peculato, peculato de uso e participação económica em negócio, que beneficiavam apenas
do regime de atenuação previsto na parte geral do Código Penal, passaram a ter um regime de
atenuação especial ex vi deste diploma extravagante, quando em sede do direito penal

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codificado o legislador, cujo acerto de decisão se deve presumir, não quis instituir qualquer
regime especial com tal propósito.

Mas ainda não ficamos por aqui. É que os pressupostos da atenuação especial da pena nas ditas
duas normas que a prevêem para o mesmo crime (rectius, crimes de corrupção), são diferentes:
segundo o Código Penal a atenuação especial da pena depende de o agente “até ao momento da
audiência de julgamento em primeira instância, auxiliar concretamente na obtenção ou
produção das provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis; ou tiver
praticado o acto a solicitação do funcionário, directamente ou por interposta pessoa”; segundo
a Lei n.º 36/94, a atenuação especial da pena depende de “o agente auxiliar concretamente na
recolha das provas decisivas para a identificação captura de outros responsáveis”.

Como a redacção do art.º 374º-B n.º 2 CP remonta à Lei n.º 30/2015, de 22 de Abril, admitindo
mais situações de atenuação especial de pena do que as admitidas no art.º 8º da Lei n.º 36/94 de
29 de Setembro, só pode concluir-se que este art.º 8º foi tacitamente revogado, sob pena de se
admitir que um diploma extravagante anterior mantenha em vigor um regime jurídico mais
desfavorável ao arguido do que norma penal codificada posterior.

Em segundo lugar porque estabelece esta atenuação especial da pena para crimes de peculato,
peculato de uso e participação económica em negócio, em 1994, que o legislador do Código
Penal de 2015, que introduziu o art.º 374-B CP, e cujo acerto de decisão tem de presumir-se,
como dito atrás, não quis prever para esses mesmos tipos penais. Tivesse querido fazê-lo, e teria
criado um art.º 377º-A no CP de teor semelhante ao do art.º 374º-B CP previsto para os crimes
de corrupção33.

Em terceiro, e último, lugar, porque padece o art.º 8º deste diploma extravagante de todos os
males que inquinam o regime previsto no n.º 2 do art.º 374º-B do CP, na medida em que admite
um regime legal de atenuação especial da pena que não se limita a premiar o arrependimento

33
Cabe todavia aqui ressalvar o que abaixo se dirá sobre uma interpretação normativa favorável ao Arguido, que
restringirá a conclusão hermenêutica revogatória enunciada no texto. I.e., entendemos que havendo revogação do
art.º 8º no que respeita aos crimes de corrupção, uma correcta perspectivação jus-constitucional da questão impõe
considerar o art.º 8º em vigor para os demais crimes a que nele se faz alusão.

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pessoal, i.e., a confissão, antes se transformando numa consagração em Portugal de um instituto


que consideramos ser totalmente indesejável no quadro jurídico-constitucional português, a
saber, a delação premiada, e não a mera colaboração com a justiça (ainda assim sem a situação
extrema prevista no direito brasileiro de admitir a total dispensa de pena para aquele que em primeiro lugar delata
os parceiros no ilícito34). Curiosamente, ou talvez não, na parte geral do Código Penal a suspensão
provisória do processo pode ocorrer em variadíssimas situações, nomeadamente o
arrependimento manifesto do agente, mas nunca – porque escrito noutro quadro axiológico,
bem mais salutar – da delação de terceiros!

Em todo o caso, estando claramente revogado este art.º 8º no que respeita aos crimes de
corrupção, mercê da sucessão de leis penais no tempo causada pelo art.º 374º-B do CP, já o não
está expressamente para os crimes de peculato, peculato de uso e participação económica em
negócio, casos em que uma interpretação favor reus implicará admitir que o mesmo continua
em vigor, malgrado uma interpretação sistemática rigorosa, como a atrás sustentada, levasse a
concluir ter sido outro o espírito legislativo que presidiu à intervenção legislativa da Lei n.º
30/2015.

Por fim, este mesmo art.º 8º prevê também esta atenuação especial da pena para as infracções
económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional.

Dado o nosso entendimento sobre a insusceptibilidade de determinar com total rigor o que
sejam infracções económico-financeiras, dogmática e legalmente, então caberá concluir num
de dois sentidos radicalmente opostos: ou que esta atenuação especial da pena não tem
qualquer objecto (por indeterminabilidade do que sejam infracções económico-financeiras de dimensão extra-
fronteiriça); ou que a mesma valerá para todo e qualquer crime internacional ou transnacional,
sob pena de qualquer restrição a uns tipos de crime e não a outros criar situações de desfavor
em relação ao arguido, por depender de densificação de conceito totalmente arbitrária do que
sejam, em cada momento, considerados crimes económico-financeiros35.

34
O que poderá ser a única via de “salvar” este benefício ou prémio da sua total inconstitucionalidade, como
defendemos no nosso artigo “Delação premiada… o regresso da tortura!” (consultável em
https://www.academia.edu/31258040/Dela%C3%A7%C3%A3o_Premiada_O_regresso_da_Tortura).
35
Exemplo: um crime de açambarcamento, previsto no art.º 28º do Dec.-Lei n.º 28/84, se tiver dimensão
internacional ou transnacional, sendo um crime anti-económico, nos dizeres da própria lei em questão, terá de

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Quanto ao art.º 9º da Lei n.º 36/94, não sendo susceptível do mesmo nível de críticas que o art.º
8º, desde logo porque reduz o seu campo de aplicação aos crimes de corrupção activa, também
não incorre nos mesmos males apontados ao art.º 8º na parte em que admite a suspensão
provisória do processo na condição de “ter o arguido denunciado o crime ou contribuído
decisivamente para a descoberta da verdade”… estranhamente, aqui, a delação de terceiros já
não é necessária para nenhum efeito. Basta o arrependimento, através da auto-denúncia ou
(sublinha-se, “ou”) colaboração para a descoberta da verdade.

Enunciados os principais problemas emergentes da Lei n.º 36/94, e atento ser aceite
generalizadamente a mutabilidade do conteúdo da criminalidade económico-financeira, caberá
tentar agora densificar qual o possível objecto actual de tal conceito, para que possa ter-se uma
dimensão da realidade relativamente à qual serão admissíveis as acções de prevenção e combate
previstas no n.º 3 do art.º 1º desse mesmo diploma legal.

Daqui decorrerá, igualmente, a demonstração do carácter totalmente variável, para não dizer
arbitrário, da utilização, em normas de investigação criminal, de conceitos como crimes
económicos (ou crimes anti-económicos, se nos arrimarmos aos dizeres do Dec.-Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro),
crimes financeiros ou crimes económico-financeiros.

Apesar da unificação criminológica, e legal como visto, dos crimes económico-financeiros,


optamos aqui, como referido atrás e dado o escopo desta intervenção36, aos crimes financeiros.

Por fim, e como já atrás referido, não nos podemos esquecer de que integrarão necessariamente
o sistema de prevenção e combate à criminalidade financeira vários outros diplomas e
entidades (reguladoras), a que faremos alusão em momento próprio desta análise.

beneficiar deste regime de atenuação especial da pena. O mesmo para um crime de fraude sobre mercadorias,
previsto no art.º 23º de tal diploma legal, se cometido nas mesmas circunstâncias. E, pior ainda, dada a total
insegurança que gera, qualquer crime comum de burla praticado no âmbito bancário… conquanto praticado
também para além das fronteiras do Estado português. Com tudo isto se constata o perigo criado pela Lei n.º 36/94,
por total falta de ponderação dos respectivos dizeres e do demais previsto no ordenamento jurídico-criminal
codificado e extravagante.
36
Até porque no programa deste V Seminário Luso-Brasileiro de Direito prevê expressamente uma sessão de
trabalho sobre governance do sistema económico, pelo que não caberá aqui entrar nesse outro, e mais amplo,
universo da criminalidade económica.

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4. Que crimes podem considerar-se crimes financeiros?

I – Crimes financeiros: categoria criminológica vs. categoria jurídico-penal


Conforme vimos atrás, a designação de crimes económico-financeiros não corresponde a
qualquer categoria susceptível de ser encontrada definida na legislação, muito menos sendo
uma categoria facilmente desenhável de um ponto de vista dogmático. Tentativamente gizámos,
supra, um conceito dogmático, mas estamos claramente cientes da respectiva fragilidade, pelo
menos para fins tão sensíveis e perigosos como os da circunscrição típica dos meios de
investigação criminal admissíveis.

Aliás, é um trabalho, esse de circunscrição categorial, que não se encontra sequer feito, e que,
precisamente mercê de algumas das características apontadas pela doutrina sobre o conceito de
direito económico e de direito financeiro, nem sequer será nunca uma obra concluída.
O que se diz vale para o conceito “parcial” de criminalidade financeira.

Com efeito, como visto, o direito financeiro caracteriza-se principalmente, além do mais, pela
dispersão e heterogeneidade das suas fontes, pela sua mobilidade, que se manifesta na
transitoriedade e na plasticidade na adaptação aos casos concretos de uma parte das suas
normas, em parte justificada pela sua natural sensibilidade às mudanças sociais e políticas e
pela sua ligação às políticas económicas conjunturais, pela importância da auto-regulação
pelas próprias entidades privadas, e, the last but not the least, pelo declínio da coercibilidade37.

Ou seja, se o âmbito do direito financeiro é, como reconhecido pela doutrina unanimemente,


um âmbito disperso e heterogéneo, extremamente transitório, mutável e plástico na adaptação
aos casos concretos, dependente das constantes mudanças sociais e políticas e às conjunturais
políticas económicas, é tipicamente uma daquelas áreas do Direito mais incompatível com a
estabilidade, imutabilidade e perenidade de valores que podem ser erigidos em bens jurídicos
susceptíveis de tutela criminal.

37
Santos, António Carlos, Gonçalves, Maria Eduarda e Marques, Maria M. Leitão, op. cit., p. 25.

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Tudo porquanto o direito penal, por definição e imposição axiológica, deve reservar-se para a
tutela dos mais significativos, perenes, constante e imutáveis valores de uma sociedade. Além
de ser uma área do direito que, atenta a gravidade das suas reacções e consequências para os
destinatários das normas, impõe imperiosa certeza, previsibilidade, determinabilidade.

Logo, para ser jurídico-constitucionalmente legítima a incriminação de comportamentos na área


do direito financeiro, ter-se-á de ser particularmente cauteloso e frugal na selecção de quais os
bens jurídicos tuteláveis emergentes deste ramo do direito. Que o mesmo é dizer, dever-se-á ser
muito atento no processo de selecção daqueles bens jurídicos que não estejam sujeitos aos
ventos da mobilidade, transitoriedade, conjunturalidade. Sob pena de estar a incriminar-se algo
que, no momento seguinte e desapercebidamente, deixou de ser verdadeiramente um bem
jurídico para a comunidade. Com a consequente perda de legitimidade jurídico-constitucional,
e axiológica, da própria incriminação38/39.

Em suma, conseguir determinar o que sejam comportamentos típicos, ilícitos, culposos e


puníveis no âmbito do financeiro, é tarefa de extrema minúcia e cautela, em permanente devir,
para garantir que os bens jurídicos tuteláveis num determinado momento são, efectivamente,
bens jurídicos suficientemente estáveis e densos para merecer a inclusão no livro negro, e para
assegurar um acompanhamento permanente relativamente ao devir dessa área financeira, assim
evitando que o que é crime num dia, não passe uma década depois a ser um comportamento
considerado irrelevante, quando não mesmo lícito ou até desejável40.

38
O que se diz relativamente ao direito financeiro vale, na mesma medida, para a área do Direito Económico.
Aqui, particularmente, pelo carácter pouco determinável do âmbito deste mesmo direito económico, perpassado
por normatividades directamente emergentes de outros ramos do direito, como o direito civil em geral, o direito
comercial, etc. E até da própria filosofia do Estado no que respeita ao encarar da economia, como o demonstram
as políticas de intervencionismo vs. desintervencionismo, nacionalização vs. privatização, etc.
39
Neste sentido, e bem, M. Costa Andrade, A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de
Janeiro), in Direito Penal Económico e Europeu, Volume I – Problemas Gerais, Coimbra Editora, Coimbra, 1998,
pp. 387 e ss., maxime p. 397.
40
No âmbito do Direito Económico, ou mais precisamente da criminalidade económica, encontram-se exemplos
muito claros quando, olhando para a história, vemos tipos penais como o açambarcamento, que fazendo todo o
sentido em determinada conjuntura socioeconómica, se torna num elefante branco num momento económico logo
subsequente.

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A conclusão a que pode chegar-se, consequentemente, é a de que a categoria da criminalidade


financeira é uma fórmula vazia, que só pode ser correcta e eficazmente integrada, qual
categoria em branco, em cada momento da história. Olhando para o conteúdo normativo do
direito financeiro vigente a cada momento, determinar-se-ão quais os bens jurídicos essenciais
a essa área que imperiosamente merecem e necessitam de tutela penal (em obediência ao princípio
do merecimento de tutela e ao princípio da intervenção mínima ), dotá-lo dessa mesma tutela penal, e
mantê-lo sob vigilância apertada, para permitir acompanhar a actualidade e legitimidade
jurídico-constitucional do tipo em questão em face do devir histórico.

Assim não sendo, corre-se o sério risco de os tipos penais criados perderem totalmente a sua
colagem com a realidade, ou, o que ainda é pior, o de termos destinatários a ser criminalmente
censurados com base em normas penais totalmente desprovidas de qualquer bem-jurídico
penalmente legítimo.

Em suma, não há, nem pode por definição haver, uma criminalidade financeira, mas crimes
financeiros de cada momento da vida de cada sociedade, da sua filosofia político-económica
conjuntural. Mas assim sendo, com é, esta categoria é totalmente formal, vazia de critério
substancial que mantenha a sua congruência e unidade interna. E se não há congruência, por
definição, não há sistema que seja estruturável. Mas a isso se voltará mais adiante.

Sublinhada esta fragilidade do próprio conceito analisando, o mais que pode fazer-se, é, em
cada momento da nossa história e em cada concreta comunidade jurídica, determinar-se quais
sejam os tipos penais pré-existentes susceptíveis de poder considerar-se como protectores de
bens jurídicos incluídos na actividade financeira desse momento. Com o que terá de concluir-
se que fazer apelo a infracções financeiras é tentar definir uma realidade com critérios muito
tíbios e variáveis. É que uma infracção só será um crime financeiro se, e apenas se, e quando,
para o direito financeiro de um determinado momento, os bens jurídicos que o mesmo tutela
forem, do mesmo passo, valores cardeais desse direito financeiro. E mais: carentes de tutela
jus-penal. Na negativa, a infracção até pode existir por qualquer outro motivo (legitimada e
estribada num bem jurídico-penal geral), mas não poderá ser incluída nessa categoria.

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Com o que se conclui, forçosamente, que estamos aqui apenas perante uma categoria da
criminologia, da sociologia, até da política criminal, ou mesmo uma categoria comunicacional,
ou jornalística, mas não uma categoria jurídico-penal aceitável como tal. Terá tanto significado,
hoje, para efeitos jurídico-criminais, como o tem o conceito de criminalidade de colarinho
branco, criminalidade de colarinho azul, ou qualquer outra categorização própria de ramos
outros do saber que não a ciência jurídica stricto sensu41.

Como tal, deverá ser utilizada para todo o tipo de análises e debates, mas nunca, por ser nunca,
num diploma legal, principalmente um diploma legal atributivo de competências ou de
sistematização de políticas criminais… como é caso de diplomas em que se pretende estruturar
um sistema de prevenção e combate a determinado tipo de crimes.

Com o que se percebe o erro de fazer uso de tal conceito criminológico nas alíneas d) e e) do
n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro e nas alíneas p) e q) do art.º 2º da Lei n.º
101/2001, de 25 de Agosto.

Em todo o caso, como a lei se mantém formalmente em vigor, caberá tentar dar-lhe algum
sentido útil, até para poder determinar em que medida integra o sistema geral (que tem o concurso
de vários outros diplomas legais) de prevenção e combate à criminalidade financeira.

II – Crimes susceptíveis de integrar o conceito de crimes financeiros


Postas as considerações antecedentes, e olhando para o conteúdo do direito financeiro actual,
cabe bosquejar quais os tipos penais existentes que tutelam bens-jurídicos susceptíveis de ser
enquadrados como fundamentais para a estrutura financeira da nossa comunidade actual.

É o que fazemos neste sub-capítulo, agrupando os tipos penais em questão em categorias da


vida financeira, sempre que possível por relação com os diplomas legais que os prevêem.

Não esqueçamos, porém, o que atrás deixámos enunciado quanto ao facto de a criminalidade
financeira só poder ser aquela que viola os bens jurídicos fundamentais tutelados pelas normas

41
Sousa, Alfredo José, idem, ibidem.

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que regulam a obtenção, a gestão e o dispêndio dos meios financeiros públicos (aqui abrangidas
as normas do direito tributário42 e do direito fiscal), bem como pelas normas que tutelam o sector
bancário e parabancário, o sector segurador e dos fundos, e o mercado de valores mobiliários.

Vejamos, pois, o que se encontra de tipos penais susceptíveis de se enquadrar no âmbito


dogmático do que possa querer definir-se como criminalidade financeira.

Porém, como imperiosamente a função do intérprete e aplicador do Direito tem de conseguir


dar um conteúdo útil aos comandos do legislador, tendo mesmo de presumir, também
imperiosamente, pelo acerto desse mesmo legislador, avançaremos tendo no horizonte um bem
jurídico que identificaremos como sendo a organização financeira do Estado (com a abrangência,
ou desinências, atrás enunciadas).

a) Crimes antieconómicos – Dec.-Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro


Atenta a nomenclatura deste diploma legal, não podemos deixar de nele atentar. Isto porque no
mesmo se visava, nos termos expressos do respectivo preâmbulo, a criminalização e punição
das actividades delituosas contra a economia nacional. Reconhecia-se que decorridos mais de
26 anos sobre a publicação da anterior legislação sobre a matéria ( Decreto-Lei n.º 41.204, de 24 de

42
Especificamente quanto ao bem jurídico dos crimes tributários afirma G. Marques da Silva: “I. A doutrina
nacional e estrangeira não é unânime, longe disso, na determinação do bem jurídico tutelado pelos crimes
tributários, mesmo considerando apenas os tipos fundamentais: fraude fiscal, contrabando, introdução
fraudulenta no consumo. Indicação e caracterização das teorias mais frequentes e das mais seguidas pela doutrina
portuguesa: os modelos funcionalistas (ofensa à função tributária, ofensa ao poder tributário, ofensa ao sistema
económico, ofensa ao sistema fiscal), ofensa aos deveres de colaboração, de verdade e transparência, ofensa à
função social dos impostos, ofensa ao dever de obediência e modelos patrimonialistas. (…) O bem jurídico
tutelado pelos crimes tributários é o ‘sistema tributário’, entendido numa perspectiva funcional, como o conjunto
de actividades a desenvolver pelo Estado e outros entes públicos para a obtenção dos recursos financeiros e para
a aplicação destes na satisfação das necessidades públicas que lhes cumpre realizar. Mas, como já anteriormente
referimos, a função tributária não tem apenas o fim de arrecadar impostos para satisfação das necessidades
financeiras do Estado (art.º 103º da CRP), mas pode prosseguir outras finalidades como a de desincentivar o
consumo de determinados produtos (art.º 104º n.º 4) ou erigir-se num instrumento de política económica (art.º
81º al. b). O legislador penal tutela a função do tributo no quadro de um Estado Social e Democrático de Direito.
II. O objecto da acção nos diversos crimes tributários não é sempre o mesmo e se todos tutelam o mesmo bem
jurídico, o objecto da acção de cada um é variável: ora é o património do Estado (erário público), o dever de
colaboração dos cidadãos na determinação do facto tributário, a paz tributária, ora a economia nacional ou
determinadas mercadorias de especial relevância nacional, comunitária ou internacional.” (Silva, G. Marques,
Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2009, pp. 91-92). Embora não se acompanhem
todas as afirmações deste Autor, a respectiva leitura permite-nos confirmar o maior acerto da circunscrição do bem
jurídico feita por nós com base no correcto entendimento do que seja direito financeiro, direito tributário e direito
fiscal.

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Julho de 1957), a realidade criminológica, em permanente evolução, requer(ia) com premência


a revisão e a actualização do sistema de normas especialmente virado para o combate à
criminalidade económica.

Neste diploma prevêem-se como crime contra a saúde pública, o abate clandestino (art.º 22), e
como crimes contra a economia a fraude sobre mercadorias (23º), o crime contra a genuinidade,
qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares (24º), contra a
genuinidade, qualidade ou composição de alimentos destinados a animais (25º), o
açambarcamento (28º), o açambarcamento de adquirente (29º), a desobediência a requisição de
bens pelo Governo (30º), a destruição de bens e matérias-primas ou aplicação dos mesmos a
fins diferentes (31º), a destruição de bens próprios com relevante interesse para a economia
nacional (32º), a exportação ilícita de bens (33º), a violação de normas sobre declarações
relativas a inquéritos, manifestos, regimes de preços ou movimento das empresas (34º), a
especulação (35º), a fraude na obtenção de subsidio ou subvenção (36º), o desvio de subvenção,
subsídio ou crédito bonificado (37º), a fraude na obtenção de crédito (38º), e a ofensa à
reputação económica (41º).

Este diploma previa ainda a publicidade fraudulenta (art.º 40º), artigo entretanto revogado (em
1995), bem como a corrupção activa com prejuízo do comércio internacional (41º-A), a
corrupção passiva no sector privado (41º-B) e a corrupção activa no sector privado (41º-C),
todos eles introduzidos no ano 2001 e posteriormente revogados em 200843.

Bem demonstrativo, portanto, do que atrás escrevemos sobre a inconstância e pouca perenidade
destes tipos penais. Aliás, é curioso que estes crimes “antieconómicos” são claramente
marcados pelas circunstâncias sócio-económicas, e culturais, vividas na década de ’80 do
século XX português. Assim que pudesse até questionar-se hoje em dia a lógica e necessidade
imperiosa de criminalização de tipos como o açambarcamento e a desobediência a requisição

43
A este propósito convém não esquecer a Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, alterada pela Lei n.º 30/2015 de 22 de
Abril, em especial os respectivos art.ºs 7º a 10º, onde se desenham os seguintes tipos legais: corrupção activa com
prejuízo do comércio internacional, corrupção passiva no sector privado, corrupção activa no sector privado.
Mais se estabelece que o crime de corrupção activa com prejuízo para o comércio internacional se considera crime
de corrupção para os efeitos do disposto no art.º 368º-A CP (branqueamento de capitais), e para os efeitos do
disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 36/94 que vimos de analisar.

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de bens pelo Governo, tanto mais, neste segundo caso, em face dos tipos penais gerais de
desobediência previstos no Código Penal.

Dito por outras palavras, uma cuidadosa análise de política-criminal actual levaria quase
certamente a uma descriminalização generalizada da quase totalidade dos tipos previstos neste
diploma legal, deixando sobreviver alguns deles, eventualmente, apenas como ilícitos de mera
ordenação social, por total falta de substrato ético e de necessidade insuprível de reacção
criminal, susceptíveis de justificar a criminalização.

De todos os tipos penais enunciados neste diploma, podem respigar-se como podendo ser
entendidos como crimes financeiros os seguintes: a fraude na obtenção de subsidio ou
subvenção (36º), o desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado (37º), e a fraude na
obtenção de crédito (38º)44.

Isto porque todos eles protegem bens jurídicos fundamentais tutelados pelas normas que
regulam a gestão e o dispêndio dos meios financeiros públicos.

Em suma, temos aqui três tipos penais que claramente atentam contra aquilo que o legislador
considerou, in illo tempore, a economia nacional, na vertente da gestão e dispêndio de meios
financeiros públicos. Termos em que seriam infracções financeiras candidatas a integrar o
disposto no art.º 1º da Lei nº 36/94, ex vi das alíneas d) e e) do n.º 1 do art.º 1º respectivo, o
mesmo se passando com as alíneas p) e q) do art.º 2º da Lei n.º 101/2001 de 25 de Agosto, não
se dando o caso de estarem expressamente previstas noutras alíneas desses mesmos normativos.

Ademais, as acções de prevenção especialmente previstas na Lei n.º 36/94 seriam susceptíveis
de abranger estas infracções apenas se e quando sejam cometidas de forma organizada e com
recurso à tecnologia informática, ou tenham dimensão internacional… pelo que também

44
Uma leitura atenta da Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro e da Lei n.º 101/2001 de 25 de Agosto, precisamente nas
alíneas do art.º 1º n.º 1 e do art.º 2º, respectivamente, permite ver que estes tipos caem em alíneas outras que não
as alíneas d) e e) do primeiro normativo e nas alíneas p) e q) do segundo normativo… pelo que para estes tipos
tais alíneas redundam em clara inutilidade.

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muitas situações práticas ficariam de fora do âmbito deste normativo aparentemente votado à
prevenção deste tipo de infracção.

b) Crimes de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, Lei n.º 34/87 de 16
de Julho
Prevê a Lei n.º 34/87 os crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos e de altos
cargos públicos. Perguntar-se-á qual a razão de ser de enunciarmos este diploma nesta sede?

A razão é simples: como atrás afirmado, a criminalidade financeira será aquela que viola os
bens jurídicos fundamentais subjacentes às normas que regulam a obtenção, a gestão e o
dispêndio dos meios financeiros públicos, bem como pelas normas que tutelam o sector
bancário e parabancário, o sector segurador e dos fundos, e o mercado de valores mobiliários.

Vejamos, pois, se e quais dos tipos previstos neste diploma preenchem o requisito de tutelarem
tais bens jurídicos, posto que a especialidade dos agentes a quem o presente diploma se dirige
pode, pela esfera de domínio dos factos que funcionalmente lhes está cometida, colocá-los em
posição de ofender os mesmos bens jurídicos.

Depois de definir o que sejam cargos políticos e altos cargos públicos45, este diploma apresenta
como tipos a Traição à Pátria (7º), o Atentado contra a Constituição da República (8º), o
Atentado contra o Estado de direito (9º), a Coacção contra órgãos constitucionais (10º), a
Prevaricação (11º), a Denegação de justiça (12º), o Desacatamento ou recusa de execução de
decisão de tribunal (13º), a Violação de normas de execução orçamental (14º), a Suspensão ou
restrição ilícita de direitos, liberdades e garantias (15º), o recebimento indevido de vantagem
(16º), a Corrupção passiva (17º), a Corrupção activa (18º), a Violação de regras urbanísticas
(18º-A), o Peculato (20º), o Peculato de uso (21º), o Peculato por erro de outrem (22º), a
Participação económica em negócio (23º), o Emprego de força pública contra a execução de lei

45
Sobre a crítica a estas definições conferir Matta, P. Saragoça, “Os Vampiros”’ ou O combate à corrupção no
exercício das funções política e administrativa, in Política e Corrupção – branqueamento e enriquecimento,
Chiado Editora, Lisboa, 2015, p. 187 e ss., maxime 193 e 194.

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(ou) de ordem legal (24º), a Recusa de cooperação (25º), o Abuso de poderes (26º), e a Violação
de segredo (27º)46/47.

Claramente que, de entre todos os tipos enunciados, nem todos se poderão considerar, à luz do
critério definidor atrás utilizado quanto ao que sejam crimes financeiros, como tal.

Com efeito, com carácter de crime financeiro, podemos seleccionar de entre aqueles, apenas os
seguintes:
i. a prevaricação (11º), conquanto a intenção de prejuízo ou benefício que motiva a
acção do agente atente contra os bens jurídicos fundamentais subjacentes às normas
que regulam a gestão e o dispêndio dos meios financeiros públicos;
ii. a violação de normas de execução orçamental (14º) e o abuso de poderes (26º), posto
que se trata de comportamentos que, atentando contra a probidade, imparcialidade
e prossecução do interesse público por parte dos titulares de cargos políticos e altos
cargos públicos, igualmente violam as normas que regulam a gestão e o dispêndio
dos meios financeiros públicos;
iii. o recebimento indevido de vantagem (16º), a corrupção passiva (17º), a corrupção
activa (18º), a violação de regras urbanísticas (18º-A), o peculato (20º), o peculato
de uso (21º), o peculato por erro de outrem (22º), a participação económica em
negócio (23º), e até a violação de segredo (27º), porque, atentando contra a
probidade, imparcialidade e prossecução do interesse público por parte dos titulares
de cargos políticos e altos cargos públicos, necessariamente ofendem as normas que
regulam a gestão e o dispêndio dos meios financeiros públicos.

Por outro lado, cabe ainda acrescentar neste mesmo âmbito funcional, apesar de abrangerem
agentes que não sejam titulares de cargos políticos nem de altos cargos públicos, os tipos penais

46
De notar que muitos dos enunciados são crimes “comuns”, agravados aqui, ou atenuados (!), em razão da especial
circunscrição da autoria: titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos, posto que alguns já seriam crimes
específicos próprios de funcionários. De estranhar, apenas, haver regimes de aligeiramento da responsabilidade
nestas circunstâncias, crítica que apresentámos no texto identificado na nota anterior.
47
Também aqui não pode deixar de notar-se que vários destes tipos já encontravam subsunção nas alíneas a), b) e
c) do n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 36/94, pelo que também para este efeito as alíneas d) e e) se revelam de utilidade
nula.

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que não se encontrando previstos neste diploma, mas na Lei n.º 19/2003, de 20 de Junho,
respeitam ao chamado financiamento ilícito dos partidos políticos.

Com efeito, ao se levarem a cabo condutas que constituem obtenção ilícita de fundos para os
partidos políticos (digamo-lo assim por comodidade de exposição), não só se está a por em causa o
equilíbrio resultante das normas que regulam a obtenção, a gestão e o dispêndio dos meios
financeiros públicos para esse mesmo fim (a chamada ordem financeira do Estado no que aos Partidos
Políticos respeita), como verdadeiramente se está a colocar em perigo – tecnicamente abstracto, mas
criminológica e político-criminalmente muito real – o próprio subsequente exercício de funções pelos
titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos na gestão e dispêndio de meios
financeiros públicos que farão no post-eleições (pois é conhecida a lógica de troca de favores, para não
dizer mercadejamento com o cargo, que estas situações podem gerar ).

Os ditos tipos penais constam, sem nomen iuris proprio e sob a epígrafe “Sanções”, p. e p. no
art.º 28º do referido diploma legal. Já nos art.ºs 29º a 32º desse mesmo diploma encontram-se
previstas contraordenações que terão igualmente de considerar-se infracções.

Em suma, temos aqui um conjunto de tipos penais que – praticados em certo enquadramento, com
certos propósitos ou objectivos – atentam contra a desejada ordem financeira do Estado, termos em
que terão de ser infracções financeiras nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1º da
Lei nº 36/94, ex vi das alíneas d) e e) do n.º 1 do art.º 1º respectivo, sendo, todavia, que as acções
de prevenção especialmente previstas neste diploma serão susceptíveis de abranger estas
infracções apenas se e quando sejam cometidas de forma organizada e com recurso à
tecnologia informática, ou tenham dimensão internacional48.

48
Curiosamente os comportamentos que consubstanciam o tipo objectivo dos crimes de financiamento ilícito dos
Partidos dificilmente poderão cair na alínea e) do n.º 1 do art.º 1º, a menos que haja internacionalização no processo
de circulação de fundos, e também muito dificilmente poderão dar por preenchido o requisito da comissão por
forma organizada em sentido jurídico-criminalmente estrito, e ainda menos com recurso à tecnologia informática
(pois dificilmente se utiliza a via informática para certo tipo de comportamentos para deles não deixar rasto), com
o que também a alínea d) pode ser de muito difícil preenchimento. Com isto quer salientar-se que, mesmo
considerando estes crimes como criminalidade financeira, ainda assim poderá ser difícil enquadrá-los nas normas
habilitantes desenhadas pelo legislador da Lei n.º 36/94 para autorizar acções de prevenção reforçadas por parte
do MP e da PJ.

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De referir, porém, que a subsunção a tal art.º 1º da Lei n.º 36/94 depende, previamente a
qualquer investigação (o que não deixa de ser estranho), do apuramento da existência das tais
circunstâncias que permitem considerá-los tipos penais que protegem o bem jurídico
identificado como subjazendo aos crimes financeiros. Dir-se-ia, pois, que o lançar mão das
acções preventivas ao abrigo da Lei n.º 36/94 pode ser particularmente complicado, posto que
se imagina que os actos identificados no n.º 3 do art.º 1 acabem por ser levados a cabo antes de
qualquer índicio, v.g., de que o alegado acto de prevaricação, apesar de, por definição, atentar
contra a probidade, imparcialidade, e prossecução do interesse público por parte dos titulares
de cargos políticos e altos cargos públicos, viola ou não o bem jurídico que definimos como a
organização financeira do Estado.

c) Infracções no âmbito do mercado de valores mobiliários


Sendo esta, por excelência, uma área conceptual e inequivocamente incluída no direito
financeiro, o mercado de valores mobiliários deverá ser visto como uma fonte inequívoca de
infracções financeiras, nos termos e para os efeitos das acções de prevenção prevsitas na Lei
n.º 36/94. Isto apesar de, no próprio Código de Valores Mobiliários, haver toda uma
superestrutura orgânica e procedimental que constitui, explicitamente, política e mecanismos
de acções de prevenção e combate a tal criminalidade financeira no âmbito do mercado de
valores mobiliários.

Encontramos, assim, nos art.º 378º e seguintes do CVM três tipos penais, a saber: o Abuso de
Informação (378º), a Manipulação de mercado (379º), e a Desobediência (380º). Não sendo
aqui necessária qualquer especial análise dos respectivos bens jurídicos para os poder
considerar infracções financeiras, relevante é concluir que nos termos e para os efeitos do
disposto no art.º 1º da Lei n.º 36/94, necessário será para estar abrangido pelas acções de
prevenção aí previstas que estes crimes sejam praticados de forma organizada com recurso à
tecnologia informática ou terem dimensão internacional.

Porém, dada a especificidade da matéria, e a extrema completude do CVM, não pode olvidar-
se que a Comissão de Mercado, como entidade reguladora extremamente capaz e
profissionalizada que é, maxime numa área de tal especialização, desenvolve acções de
prevenção insusceptíveis de serem levadas a cabo seja porque órgão de polícia criminal for, e

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obviamente também pelo Ministério Público. Na verdade, a tecnicidade, experiência e


profissionalização exigidas numa área tão complexa e precisa como o mercado de valores, não
se compadece com acções de prevenção feitas por sujeitos e entidades sem qualquer preparação
técnica – económica e jurídica –, de nível suficiente a tal especificidade.

Aliás, não será por acaso que o CVM regula exaustivamente todos os procedimentos de
supervisão, auditoria, fiscalização, sindicância e até acompanhamento quotidiano, que
necessariamente tornam vazias de conteúdo quaisquer acções levadas a cabo pela PJ e pelo MP
à luz da Lei n.º 36/94. E também não será por acaso que o próprio CVM estabelece
procedimentos de comunicação da Comissão às entidades de investigação criminal, nos casos
em que entenda que estão verificados os pressupostos necessários a tal.

Em suma, sendo certo e seguro que os crimes p. e p. no CVM integram necessariamente a


categoria que o legislador da Lei n.º 36/94 quis desenhar para conferir competências para acções
de prevenção por parte do MP e da PJ, não menos certo é que por razões várias, nomeadamente
substanciais (de conhecimento técnico, especialização, etc.), bem andou o legislador na elaboração do
CVM ao cometer tais acções preventivas a um órgão regulador especializado. Aliás, conferindo
as concretas acções de prevenção previstas no art.º 1º n.º 3 da Lei n.º 36/94, bem se compreende
que são categorias gerais totalmente ultrapassadas, em âmbito e profundidade, pelas acções que
constituem a própria razão de ser da existência do regulador deste sector (cfr. art.ºs 382º e ss. CVM).

Assim sendo, como é, concluir-se-á, obviamente, pela total desnecessidade e até insuficiência
dos mecanismos da Lei n.º 36/94 para esta fatia importantíssima dos crimes financeiros que são
os crimes p. e p. no CVM.

E o que se diz para os crimes p. e p. no CVM vale, por maioria de razão, para as demais
infracções neste previstas, i.e., os ilícitos de mera ordenação social.

Por fim, recordar que as acções de prevenção levadas a cabo pelo regulador do mercado de
valores independem de quaisquer requisitos de internacionalidade, organização ou recurso a
tecnologia informática, com que a sua abrangência objectiva sempre seria superior às que

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pudessem tentar ser levadas a cabo nos termos da lei que institui as medidas de combate à
criminalidade financeira.

Em suma, não se afigura sequer possível, materialmente, que a Lei n.º 36/94 possa ter, nesta
tão importante fatia da criminalidade financeira, qualquer utilidade prática (isto para não concluir
pela revogação tácita parcial deste diploma no que se refere a toda a matéria regulada no CVM ).

d) Infracções na área bancária, parabancária e seguradora


No domínio da actividade bancária, parabancária e seguradora, ao invés do que possa pensar-
se à partida, não é muito extensa a lista de crimes especificamente previstos. Um simples
bosquejo pela área de legislação prevista para a área bancária permite identificar, com
exactidão, duas fontes possíveis para comportamentos criminais. Diferentemente se pensarmos
em infracções de mera ordenação social, em que, aí sim, é pródigo o legislador em sancionar
condutas com coima.

Assim que, para além da importância da actividade bancária, parabancária e seguradora, para a
comissão de crimes de branqueamento de capitais e de financiamento ao terrorismo (tipos estes
que merecerão atenção especial em alínea autónoma infra), encontremos apenas referências a tipos penais

no Decreto-Lei n.º 298/92 de 31 de Dezembro, na 44ª versão deste diploma, actualmente em


vigor.

Com efeito, nos art.º 200º e 200º-A deste Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades
Financeiras, encontramos tipificados os seguintes crimes:
a) Actividade ilícita de recepção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, tipo este que,
em rigor, nem sequer é susceptível de comissão por parte de Bancos ou Sociedades
Financeiras, mas antes por quem pratique actos de recepção de depósitos e outros
fundos, “sem que para tal exista a necessária autorização” (que é como quem diga, para
quem usurpe as funções de Banco ou de sociedade financeira);

b) Crime de desobediência, destinado a punir quem se recusar a acatar as ordens ou


mandados legítimos do Banco de Portugal, ou criar, por qualquer forma, obstáculos à
sua execução, ou ainda quem não cumprir, dificultar ou defraudar a execução das
sanções acessórias ou medidas cautelares aplicadas em processos de contraordenação.

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Por outro lado, toda a extensa área de actuação das instituições de crédito e das sociedades
financeiras, que é regulada por este Regime Geral, é armada com a cominação de centenas de
contraordenações, ainda reforçadas pelas: Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, Lei n.º 11/2002, de
16 de Fevereiro, Instrução n.º 24/2002, de 16 de Setembro, Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto,
Lei n.º 11/2004, de 27 de Março, Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho, Decreto-Lei n.º 125/2008, de
21 de Julho, Aviso n.º 5/2008, de 1 de Julho, Portaria n.º 41/2009, de 13 de Janeiro e pelo Aviso
n.º 5/2013, de 18 de Dezembro.

Tais infracções, todas elas, são claramente infracções financeiras, no conceito por nós
desenhado, porquanto violam os bens jurídicos fundamentais protegidos pelas normas que
tutelam o sector bancário e parabancário, o sector segurador e dos fundos, e até, lateralmente,
o mercado de valores mobiliários.

Cabe, porém, sublinhar que, também aqui, o papel na área da prevenção e combate a estas
infracções financeiras não cabe, em primeira linha, nem ao Ministério Público, nem aos órgãos
de polícia criminal tradicionais. Com efeito, toda esta área, como a área do mercado de valores
mobiliários, é policiada com muito maior experiência, saber, conhecimento, técnica e
tecnologia pelos diversos reguladores com competência legal para o fazer, a saber, o Banco de
Portugal e até, indirectamente, a Comissão de Valores Mobiliários.

Também na área seguradora e dos fundos o mesmo tipo de actividades de prevenção e combate
a infracções financeiras, sejam elas contraordenações expressamente estabelecidas para as
actividades desenvolvidas por tais entidades, sejam elas crimes previstos em geral, se e quando
cometidos nestes particulares ambientes, estão por definição – e por competência técnica e
conhecimento da matéria – entregues ao cuidado da Autoridade de Supervisão de Seguros e
Fundos de Pensões.

Termos em que, também aqui, como na área do mercado de valores mobiliários, o espaço que
resta para a intervenção do Ministério Público e da Polícia Judiciária ao abrigo da Lei n.º 36/94
seja, por definição, muito reduzido. Em todo o caso, afigura-se óbvio que estas infracções

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preencherão a previsão das alíneas d) e e) do n.º 1 do art.º 1º, se e quando verificadas as demais
circunstâncias nelas previstos e atrás sobejamente enunciadas e analisadas.

Por outro lado, lembre-se os crimes de falsificação de moeda, título de crédito e valor selado,
p. e p. nos art.ºs 262º a 268º do Código Penal, que claramente serão, com o critério enunciado,
crimes financeiros (e que, estes sim, cairão facilmente no âmbito de prevenção e combate por parte da Polícia
Judiciária e do Ministério Público).

Cabe, todavia, não esquecer, que no sistema de prevenção e combate a esta fatia da
criminalidade financeira terá de contar-se, até como superestruturas com especial capacitação
para o efeito, com o Banco de Portugal e a Associação Supervisora de Seguros e Fundos de
Pensões.

e) Infracções tributárias
Encontram-se no cerne da definição apresentada de criminalidade financeira, os crimes
previstos nas normas que regulam a obtenção, a gestão e o dispêndio dos meios financeiros
públicos, logo, as normas de direito tributário e de direito fiscal stricto sensu.

Para a sua determinação cabe lançar mão da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou o
Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o qual, além de prever uma série de infracções
ao nível do ilícito de mera ordenação social (art.ºs 108º a 129º), tipificou também os seguintes
crimes (art.ºs 87º a 107º):
a) Crimes tributários comuns: Burla tributária (87º); Frustração de créditos (88º);
Associação criminosa (89º); Desobediência qualificada (90º); Violação de segredo (91º).
b) Crimes aduaneiros: Contrabando (92º); Contrabando de circulação (93º); Contrabando
de mercadorias de circulação condicionada em embarcações (94º); Fraude no transporte
de mercadores em regime suspensivo (95º); Introdução fraudulenta no consumo (96º);
Contrabando de mercadorias susceptíveis de infligir a pena de morte ou tortura (97º-A);
Violação das garantias aduaneiras (98º); Quebra de marcas e selos (99º); Receptação de
mercadorias objecto de crime aduaneiro (100º); Auxílio material (101º); Crimes de
contrabando previstos em disposições especiais (102º).
c) Crimes fiscais: Fraude (103º); Fraude qualificada (104º); Abuso de confiança (105º).

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d) Crimes contra a segurança social: Fraude contra a segurança social (106º); Abuso de
confiança contra a segurança social (107º).

No que respeita às acções de prevenção e combate a estes crimes financeiros, dispõem os art.ºs
35º a 41º do RGIT o seguinte: que a aquisição da notícia do crime pode ocorrer por
conhecimento próprio do Ministério Público, por conhecimento dos órgãos da administração
tributária, por ambos por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou dos agentes tributários,
bem como mediante denúncia. Também qualquer autoridade judiciária tem obrigação oficiosa
de dar conhecimento de indícios de crime tributário às autoridades tributárias. Igual obrigação
impende sobre os órgãos de polícia criminal, sobre a Marinha de Guerra e sobre os órgãos e
agentes da segurança social.

A direcção do inquérito por crime tributário cabe ao Ministério Público, cabendo os poderes e
funções dos órgãos de polícia criminal aos órgãos da administração tributária e da segurança
social.

Mais ainda, é o próprio RGIT que procede a uma delegação de competências para a investigação
aos seguintes órgãos (41º):
a) Quanto aos crimes aduaneiros, no Director da Direcção de Serviços Antifraude ou na
Brigada Fiscal da Guarda Nacional Republicana;
b) Quanto aos crimes fiscais, no Director de Finanças, no Director da Unidade dos Grandes
Contribuintes ou no Director da Direcção de Serviços de investigação da fraude e de
acções especiais;
c) Quanto aos crimes contra a segurança social, nos Presidentes das pessoas colectivas de
direito público a quem estejam cometidas as atribuições nas áreas dos contribuintes e
dos beneficiários.

Em suma, a vigilância do universo tributário compete a todas as entidades referidas, termos em


que as acções de prevenção e combate a este tipo de infracções financeiras cabe, em bom rigor,
a todos os órgãos de polícia criminal, a todas as autoridades judiciárias, a todos os funcionários,
órgãos e agentes da administração fiscal, aduaneira e da segurança social, e ainda à Marinha de
Guerra.

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Sendo sabido que a própria administração tributária (fiscal, aduaneira e da segurança social) exerce
por definição e dever funcional actividades contínuas de fiscalização, monitorização,
sindicância e vigilância sobre todos os agentes económicos que se envolvam em quaisquer actos
com relevância tributária, cabe concluir que o art.º 1º da Lei n.º 36/94 se limita a prever acções
de prevenção que já se encontram cobertas, com muito maior profissionalização, por órgãos de
polícia criminal especializados neste tipo de infracção.

f) Financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais


A autonomização destes dois tipos penais faz-se aqui por duas ordens de razões: por um lado
porque poderão violar os bens jurídicos fundamentais tutelados pelas normas que regulam a
obtenção, a gestão e o dispêndio dos meios financeiros públicos, mas também porque poderão,
instrumentalmente, concorrer para violar as normas que tutelam o sector bancário e
parabancário, o sector segurador e dos fundos, e também o do mercado de valores mobiliários.

Com efeito, comecemos por analisar a questão relativamente ao crime de financiamento ao


terrorismo, para tanto fazendo uso do que já escrevemos noutra sede49.

“A disciplina legal do combate ao terrorismo vem prevista na Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto,
entretanto objecto da Rectificação n.º 16/2003, de 29 de Outubro, e das alterações nela
introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, pela Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho e pela
Lei n.º 17/2011, de 3 de Maio.
Esta Lei n.º 52/2003 foi aprovada em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/475/JAI do
Conselho, de 1 de Junho, relativa à luta contra o terrorismo, tendo implicado ainda uma
alteração ao Código de Processo Penal (a 12ª) e uma alteração ao Código Penal (a 14ª).
Nos termos do art.º 1º deste diploma legal, é seu objecto a previsão e a punição dos actos e
organizações terroristas. A estrutura do diploma é relativamente simples, passando-se a uma
apresentação da mesma: nos art.ºs 2º e 3º punem-se as organizações terroristas e
agrupamentos equiparados; no art.º 4º pune-se o terrorismo; no art.º 5º pune-se o terrorismo
internacional; e no art.º 5º-A o financiamento ao terrorismo. Já o art.º 6º estipula a

49
Matta, P. Saragoça, Quando o Estado prefere a Coima à Pena, in Política e Corrupção – branqueamento e
enriquecimento, Chiado Editora, Lisboa, 2015, pp. 125-185, maxime pp. 151 ess.

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responsabilidade penal das pessoas colectivas pelos crimes enunciados, sendo que no art.º 7º
se declara a aplicabilidade subsidiária à matéria da presente lei das disposições do Código
Penal e respectiva legislação complementar (!)50.
Atento o objecto da presente análise, a prevenção do branqueamento de capitais e do
financiamento do terrorismo, a nossa especial atenção tem de virar-se, contudo, para o tipo p.
e p. no art.º 5º-A da Lei n.º 52/2003 de 22 de Agosto, o qual, não constando da versão originária
do diploma, foi ao mesmo aditado pela Lei n.º 25/2008 de 5 de Junho.
Estabelece o art.º 5º-A, precisamente sob a epígrafe Financiamento do Terrorismo, o seguinte:
1 - Quem, por quaisquer meios, directa ou indirectamente, fornecer, recolher ou detiver
fundos ou bens de qualquer tipo, bem como produtos ou direitos susceptíveis de ser
transformados em fundos, com a intenção de serem utilizados ou sabendo que podem ser
utilizados, total ou parcialmente, no planeamento, na preparação ou para a prática dos
factos previstos no n.º 1 do artigo 2.º, ou praticar estes factos com a intenção referida no
n.º 1 do artigo 3.º ou no n.º 1 do artigo 4.º, é punido com pena de prisão de 8 a 15 anos.
2 - Para que um acto constitua a infracção prevista no número anterior, não é necessário
que os fundos provenham de terceiros, nem que tenham sido entregues a quem se
destinam, ou que tenham sido efectivamente utilizados para cometer os factos nele
previstos.
3 - A pena é especialmente atenuada ou não tem lugar a punição, se o agente
voluntariamente abandonar a sua actividade, afastar ou fizer diminuir
consideravelmente o perigo por ele provocado ou auxiliar concretamente na recolha de
provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.

Este tipo de financiamento do terrorismo, a nosso ver, e isso influi em toda a análise que do
mesmo fazemos, constitui um tipo instrumental para protecção dos bens jurídicos tutelados
pelos tipos penais de terrorismo e organizações terroristas previstos nos art.ºs 2º, 3º e 4º da
Lei. Visando evitar o financiamento do terrorismo, incriminando-o e punindo-o, antecipa-se,
por isso a tutela de todos os bens jurídicos tuteláveis através daqueloutros tipos.

50
Quantos aos art.º 8º a 10º da Lei, deixaremos a sua apreciação mais para diante.

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Nesta conformidade, o bem jurídico deste tipo afigura-se-nos patente e óbvio: a própria
integridade, independência e segurança dos Estados51 ou de organização pública
internacional, a subsistência dos Estados de Direito democrático e, indirectamente, todos os
bens jurídicos que subjazem às condutas p. e p. nos n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 2º e nos n.ºs 1 a 5 do
art.º 4. Acrescerá um outro bem jurídico, porém: o da utilização dos capitais, lícitos ou ilícitos,
para os ditos fins, e, assim, a utilização do próprio sistema económico-financeiro dos Estados.
Dado que estes tipos são tributários do leque de actos enunciados no art.º 2º n.º 1, temos então
como bens jurídicos indirectamente tutelados, todos quantos subjazem aos tipos penais
correspondentes ao elenco do n.º 1 do art.º 2 (desde a vida e integridade física, à segurança dos
transportes e comunicações, reais e informáticas, telefónicas, radiofónicas, televisivas, telegráficas, e bem assim
todos os bens jurídicos tutelados pelos crimes de perigo comum – através de incêndio, explosão, libertação de
substâncias radioactivas, tóxicas ou asfixiantes, inundações, desmoronamentos, contaminações hídricas ou
alimentares, difusão de pragas, etc. – o funcionamento dos serviços públicos, etc.).

Em suma, mercê do jogo remissivo existente entre o art.º 5º-A n.º 1 e o art.º 2º n.º 1 e 4º n.º 1
(sendo que também este remete para o elenco do 2º n.º 1), não podemos senão concluir que além do bem
jurídico próprio do art.º 5º-A (subsistência do Estado de Direito democrático e respectiva Soberania, em
Portugal e internacionalmente no concerto das nações, numa das claras demonstrações de transnacionalidade do
bem jurídico protegido, e, assim, do próprio dever de perseguição penal destes actos a que o Estado se obriga),

são indirectamente tutelados também pelo tipo de financiamento do terrorismo, em sede de


antecipação da tutela, todos os demais bens jurídicos referidos e ainda a incolumidade do
sistema económico-financeiro dos Estados.”.

Por seu turno, no que respeita ao crime de branqueamento de capitais dir-se-á52:

“A 27 de Março de 2004, o legislador introduziu no Código Penal um novo artigo, o art.º 368º-
A, naquilo que constituiu a 16ª alteração a tal diploma, o que sucedeu através da Lei n.º

51
E diz-se “dos Estados” propositadamente, posto que o art.º 3º n.º 1, que equipara outras organizações terroristas
às organizações terroristas do art.º 2º, demonstra-o claramente ao usar sempre a expressão “de um Estado”. Ou
seja, o Estado com este jogo de tipos obriga-se a perseguir criminalmente organizações terroristas e terrorismo,
contra si ou contra qualquer outro Estado. O que aliás determinou a alteração do art.º 5º CP, através do art.º 10º
desta Lei n.º 52/2003.
52
Matta, P. Saragoça, Quando o Estado prefere a Coima à Pena, in Política e Corrupção – branqueamento e
enriquecimento, Chiado Editora, Lisboa, 2015, pp. 125-185, maxime pp. 176 ess.

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11/2004 de 27 de Março. Esse artigo, que tinha, e tem, por epígrafe “Branqueamento”, foi,
logo em 5 de Junho seguinte, objecto de uma Rectificação (Rect. n.º 45/2004), tendo sido também
objecto de ulterior alteração pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
Na sua versão actual53, o tipo penal de branqueamento merece duras críticas, seja ao nível
dogmático, seja ao nível de política legislativa, seja ao nível de legística, críticas essas que
põem a nu boa parte das razões pelas quais se trata de um tipo penal com tão pouca
expressividade estatística e tão frouxa capacidade conformativa da realidade.”.

Centrando-nos no que aqui importa, convirá tentar enunciar qual seja o bem jurídico tutelado
por este tipo penal.

Ora, a tal propósito e como indicação liminar, este tipo “encontra-se inserido no Título V
Capítulo III da Parte II do CP, i.e., entre os Crimes contra o Estado, em especial no número
dos Crimes contra a realização da Justiça. Daqui se poderia retirar que o bem jurídico
protegido é, precisamente, a realização da Justiça. Porém, a doutrina tem sido mais ou menos
unânime (até ponderando a evolução histórica da previsão do tipo e sua passagem do direito penal extravagante
para o CP) no sentido de que estamos perante um bem jurídico múltiplo, que abrange não só a

53
Artigo 368.º-A – Branqueamento – 1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens
os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos típicos de lenocínio,
abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias
psicotrópicas, tráfico de armas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, fraude
fiscal, tráfico de influência, corrupção e demais infracções referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29
de Setembro, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses
ou de duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham. 2 - Quem converter,
transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou
por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou
participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal, é punido
com pena de prisão de dois a doze anos. 3 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira
natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela
relativos. 4 - A punição pelos crimes previstos nos n.os 2 e 3 tem lugar ainda que os factos que integram a
infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática
do facto ou a identidade dos seus autores. 5 - O facto não é punível quando o procedimento criminal relativo aos
factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e a queixa não tenha sido tempestivamente
apresentada. 6 - A pena prevista nos n.os 2 e 3 é agravada de um terço se o agente praticar as condutas de forma
habitual. 7 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de
cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em
1.ª instância, a pena é especialmente atenuada. 8 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena
pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial. 9 - A pena pode ser especialmente atenuada se o
agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis
pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens. 10 - A pena aplicada nos termos dos números
anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos
ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.

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realização da justiça mas também o próprio funcionamento do sistema económico-financeiro


e político do próprio Estado. E embora não se possa dizer que seja absolutamente inovadora
a perspectiva que aqui se perfilha, entendemos que, atenta a gravidade e ofensividade das
condutas que motivaram a tipificação, que também se insere no bem jurídico protegido o
próprio Estado de Direito.
Assim, a nosso ver, o tipo melhor teria sido enquadrado entre os Crimes contra a realização
do Estado de Direito (que integra o lote dos crimes contra a soberania nacional), precisamente porque
ao tutelar o funcionamento do sistema económico-financeiro e político do Estado e a realização
da Justiça, tem um escopo mais lato e mais fundo, que é o de tutelar a própria subsistência do
Estado de Direito democrático, pois, em última análise, é o próprio Estado de Direito, quer na
vertente económico-financeira, quer na vertente política, quer na vertente da justiça, que é
posto em crise com a prática deste ilícito.
Aliás, sendo conhecida a proximidade entre condutas de branqueamento e financiamento ilícito
dos partidos, entre branqueamento e proventos ilicitamente obtidos por titulares de cargos
públicos e políticos, durante ou após o exercício de funções, em estrita conexão com a prática
de ilícitos tão graves como a corrupção (no sector público, no sector privado e internacional), nada
obstaria a que o Título V do CP, que prevê os crimes contra o Estado, tivesse inserido este tipo
nos crimes contra o Estado de Direito, ou mesmo autonomizado um novo Capítulo IV em que
se inseririam o tipo e normas acessórias relativas ao branqueamento de vantagens de
proveniência ilícita54.”55.

Em suma, ambas estas infracções terão de ser categorizadas claramente como infracções
financeiras, no conceito por nós atrás desenhado, porquanto violam também o bem jurídico
identificado como a integridade, legalidade e subsistência do sistema económico-financeiro do
Estado.

Estes crimes, contudo, tratando-se de crimes comuns, no sentido de que não têm de ser
praticados por agentes dotados de especiais características e, simultaneamente, de que não

54
Capítulo esse em que igualmente deveria ser inserido um tipo penal que previsse e punisse o Enriquecimento
Ilícito (Matta, P. Saragoça, Enriquecimento Ilícito, in Política e Corrupção – branqueamento e enriquecimento,
Chiado Editora, Lisboa, 2015, pp. 11-43), precisamente por pôr em causa exactamente os mesmos bens jurídicos.
55
Matta, P. Saragoça, Quando o Estado prefere a Coima à Pena, in Política e Corrupção – branqueamento e
enriquecimento, Chiado Editora, Lisboa, 2015, pp. 125-185, maxime pp. 176 ess.

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carecem de um especial ambiente ou cenário para ser cometidos, embora necessitem


sobremaneira de utilizar o sistema financeiro (tributário, fiscal, bancário, segurador, dos fundos e dos
valores mobiliários) dos Estados, encontram-se na prática protegidos por múltiplas camadas de
agentes e procedimentos de prevenção.

Em rigor, todas as entidades que funcionam como reguladores, como órgãos de polícia criminal
e como autoridades judiciárias na tutela dos sectores referidos (tributário, fiscal, bancário, segurador,
dos fundos e dos valores mobiliários) concorrerão, na medida das suas actividades de prevenção e
combate à criminalidade nas áreas para que têm competência especial, também para a
prevenção e combate ao financiamento ao terrorismo e ao branqueamento de capitais.

g) Crimes de funcionários e equiparados


Conforme atrás ficou escrito relativamente aos crimes de titulares de cargos políticos e de altos
cargos públicos, faz sentido considerar este domínio da criminalidade dos funcionários e
equiparados dentro do círculo da criminalidade financeira, exactamente na medida em que a
especialidade dos agentes destes crimes pode, pela esfera de domínio dos factos que
funcionalmente lhes está cometida, colocá-los em posição de ofender os bens jurídicos que
identificámos como integrando o núcleo dos crimes financeiros.

Com efeito, o tráfico de influências (335º CP), a denegação de justiça e prevaricação (369º CP), o
recebimento indevido de vantagem (372º CP), a corrupção (373º a 374º-B CP), o peculato (375º CP),
o peculato de uso (376º CP), a participação económica em negócio (377º CP), a concussão (379º
CP), o abuso de poder (382º CP) e a violação de segredo (383º e 384º CP), bem como a apropriação

ilegítima e a administração danosa (contra o sector público ou cooperativo agravados pela qualidade do
agente – art.ºs 234º e 235º CP), tudo são comportamentos de funcionários e equiparados que, não
só ferem os bens jurídicos tutelados pelas normas que regulam a obtenção, a gestão e o
dispêndio dos meios financeiros públicos, como podem mesmo ser a génese dos fundos, ilícitos,
posteriormente utilizados na prática de crimes financeiros como o branqueamento de capitais,
o financiamento ao terrorismo e o financiamento ilícito aos Partidos Políticos.

A este propósito apenas uma última nota, que versa sobre o teor do tipo p. e p. no art.º 7º da Lei
n.º 20/2008, de 21 de Abril, a saber, a corrupção activa com prejuízo do comércio

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internacional. Neste tipo sanciona-se com pena de prisão de 1 a 8 anos quem, por toda e
qualquer via, “der ou prometer a funcionário, nacional, estrangeiro ou de organização
internacional, ou a titular e cargo político, nacional ou estrangeiro, ou a terceiro com
conhecimento daqueles, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que lhe não seja devida,
para obter ou conservar um negócio, um contrato ou outra vantagem indevida no comércio
internacional”. E este tipo é considerado crime de corrupção nos termos e para os efeitos do
disposto no art.º 368º-A do Código Penal (branqueamento de capitais), e do disposto na alínea a) do
n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 36/94 (ex vi do art.º 10º da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril)56.

h) Crimes “comuns” praticados em ambientes “especiais”


Chegamos, por fim, a um ponto em que não podemos deixar de reconhecer que há um universo,
de difícil delimitação, de crimes que sendo comuns, i.e., praticáveis por quem quer que seja,
que, se e na medida em que ocorram em empresas que integram o sector empresarial público,
em empresas como Bancos e Seguradoras, empresas Gestoras de Fundos e empresas que actuam
no âmbito do Mercado de Valores, violarão o bem jurídico que definimos retro. E quando
dizemos “que ocorram em”, temos de admitir que ocorram no decurso da actividade dessas
mesmas entidades, “por” elas, “através” delas ou mesmo “contra” elas.

Em todos esses casos, rigorosamente, temos crimes comuns praticados em ambientes


circunscritos, e que precisamente por essa razão põem em causa, ferem, violam o bem jurídico
que identificámos.

Pensamos, v.g., em burlas (quase todas) e abusos de confiança, falsificações e infidelidades,


insolvências dolosas e frustração de créditos, favorecimentos de credores e perturbações de
arrematações, violação de correspondência ou de telecomunicações, violação e aproveitamento
indevido de segredo, devassa por meio de informática e outros crimes informáticos que

56
Este tipo, contudo, merece sublinhado especial apenas pela estupefacção que não pode deixar de gerar por não
encontrar correlativo numa corrupção passiva com prejuízo do comércio internacional. Será, mesmo, o único tipo
de corrupção que apenas é punido na modalidade activa, e não na modalidade passiva, i.e., que não tem um tipo
correlato que puna, ainda mais severamente, a conduta do “funcionário, nacional, estrangeiro ou de organização
internacional, ou titular e cargo político, nacional ou estrangeiro” que solicitar ou aceitar “vantagem patrimonial
ou não patrimonial, que lhe não seja devida” para possibilitar os ditos fins. Aí o dito agente do crime só poderá
ser punido nos termos gerais de outro tipo de corrupção passiva geral… a especialidade da corrupção no comércio
internacional, tão forte que até levou à incriminação da corrupção no sector privado, não motivou suficientemente
o legislador para prever a situação correlata.

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permitem apropriações de património alheio ou respectivos dados, até furtos, extorsões e danos,
tráfico de influências, favorecimento pessoal simples e praticado por funcionário, associação
criminosa, etc. E pensamos também em todos os comportamentos de extraneus abrangidos em
crimes de sujeitos dotados de especiais condições ou qualidades, nos termos gerais previstos
nos art.ºs 28º e 29º CP.

Mas ao fazê-lo, em rigor, estamos do mesmo passo a ampliar o bem jurídico base que tais tipos
visam tutelar (dir-se-ia que a ampliação dos bens jurídicos tuteláveis pelo tipo ocorre pelo facto de serem
cometidos no referido ambiente especial), e a confessar, até certo ponto, a inadequação da autonomia

do próprio conceito de crime financeiro… porque, e na medida em que, arrasta para o seu
núcleo actuações típicas não por força da essência destas, mas pelo circunstancialismo da sua
comissão.

E como vimos pela enumeração atrás apresentada, o círculo da mesma foi-se ampliando até
tipos que apenas remotamente poderão considerar-se como tutelando o dito bem jurídico
subjacente à categoria dos crimes financeiros. Em suma, deparamo-nos com um verdadeiro
desbragamento do conceito!

Tal demonstra, inequivocamente, que estamos perante bens jurídicos que não constam no
âmbito de protecção “originário” da norma. Como se neste domínio o dito âmbito de protecção
da norma variasse consoante o cenário da prática do crime (circunstâncias de lugar da prática do
crime). E ao fazê-lo teremos de reconhecer que nesta área os bens jurídicos tuteláveis por certo
tipo podem variar consoante o âmbito de actuação material ou funcional do agente, ao invés da
grande maioria dos ditos crimes clássicos (v.g. crimes contra a vida, contra a liberdade, contra a liberdade
sexual, contra a honra, etc., em que o bem jurídico é perene e constante, independendo do ambiente em que ocorre
a sua violação).

Nesta senda, demonstrativa de que o conteúdo da categoria da criminalidade financeira não só


não é uniforme, como não é estável nem constante, então teremos de admitir que é
extremamente inconveniente utilizar a mesma para circunscrever seja o que for no âmbito
jurídico-penal e no jurídico processual penal. É que em ambos estes domínios tem de ser claro,
e antecipável, o âmbito de aplicação das normas respectivas, pelo que é gerador de forte

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insegurança jurídica, e em muitos casos de inexigibilidade para os destinatários das normas, o


conteúdo fragmentário, inconstante e não previamente determinável da categoria dos crimes
financeiros57.

Tudo o que se diz resulta totalmente confirmado se se olhar para tipos como os previstos nos
ver art.ºs 8º e 9º Lei n.º 20/2008, i.e., a corrupção passiva e a corrupção activa no sector privado.
É que sendo, à partida, crimes que não violam o bem jurídico tutelado pelas normas que
regulam a obtenção, a gestão e o dispêndio dos meios financeiros públicos, podem
perfeitamente ser comportamentos violadores dos bens jurídicos emergentes das normas que
tutelam o sector bancário e parabancário, o sector segurador e dos fundos, e o do mercado de
valores mobiliários.

Se assim tiver de concluir-se (como parece inafastável), então demonstrada está, a nosso ver, a
natureza muito pouco útil da categoria que até agora procurámos densificar, e, do mesmo passo,
do próprio bem jurídico encontrado… principalmente se recordarmos o que inicialmente
citámos como sendo o entendimento da doutrina sobre o conteúdo mutável, no tempo e
localização, do universo do financeiro.

5. O sistema de prevenção e investigação para os crimes financeiros

Depois de tudo quanto vimos, e apesar do carácter muito pouco preciso do que sejam crimes
financeiros, resulta perfeitamente claro e determinável o âmbito e conteúdo do sistema de
prevenção e investigação previstos legalmente para a totalidade dos crimes enunciados. Com
ou sem a sua inclusão sob a nomenclatura de crimes financeiros.

Como visto, partimos do pressuposto dogmático de que um sistema é um método, modo ou


forma de administrar e um modo de organização de uma realidade, tendo em vista concorrer
para um resultado ou formar um conjunto. Vimos também que o resultado visado é a prevenção

57
E se o que se diz é claro para a categoria dos crimes financeiros, por maioria de razão o é para a dos crimes
económicos, área esta em que já é conceptualmente identificado unanimemente pela doutrina o estarmos perante
uma área de entrecruzamento de um grande número de outros ramos clássicos de direito (direito comercial, direito
civil, direito fiscal, direito do trabalho, etc.).

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e combate à criminalidade que tentámos circunscrever. E fomos enunciando, topicamente, qual


o modo de organização das forças e agentes de autoridade pública encarregues dessa mesma
prevenção e combate.

Dito de outro modo, estamos em condições de identificar estruturadamente o método de


organizar e administrar os mecanismos de prevenção e investigação dos crimes financeiros,
método esse que, formando um conjunto, visará concorrer para o resultado desejado, a saber,
prevenir e reprimir a realidade definida como criminalidade financeira.

Podemos, então, concluir que a forma de administrar e o modo de organização funcional do


aparelho de prevenção e combate aos crimes financeiros é extremamente amplo, muito
complexo e diverso, e, nas mais das vezes, com instituições e procedimentos sobrepostos entre
si, numa estruturação de duplicação ou triplicação de funções e, consequentemente, de
responsabilidades relativamente a essa mesma prevenção e combate58.

Dir-se-á que depois da análise efectuada, o sistema de prevenção e investigação de crimes


financeiros passa pelo seguinte arsenal orgânico:

a) Autoridades judiciárias, maxime o Ministério Público, numa primeira linha, e também


a magistratura judicial, relativamente a alguns tipos penais (v.g., tributários);
b) Órgãos clássicos de polícia criminal, i.e., Polícia Judiciária, Polícia de Segurança
Pública e Guarda Nacional Republicana, nas áreas das suas competências gerais;
c) Banco de Portugal;
d) Autoridade Supervisora de Seguros e Fundos de Pensões;
e) Comissão de Valores Mobiliários;
f) Direcção de Serviços Antifraude da Autoridade Tributária;
g) Brigada Fiscal da Guarda Nacional Republicana;
h) Directores de finanças, Director da Unidade dos Grandes Contribuintes, Director da
Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e de Acções Especiais, todos da
Autoridade Tributária;

58
Com consequências que abaixo melhor se apresentarão.

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i) Presidentes das pessoas colectivas de direito público a quem estejam cometidas as


atribuições nas áreas dos contribuintes e dos beneficiários da Segurança Social;
j) Autoridade de Segurança Alimentar e Económica;
k) Todos os organismos governamentais da área agro-pecuária, do comércio e indústria,
relativamente à subsidiação das actividades desenvolvidas na sua área de intervenção;
l) Todos os organismos governamentais de outras áreas em que igualmente haja
subsidiação a operadores por si regulados ou controlados (v.g., Gabinete para os Meios da
Comunicação Social, Instituto do Cinema e do Audiovisual, Direcção-Geral das Artes, etc.), bem como

de outros graus de administração pública central, desconcentrada, regional e local.

Por fim, recordando que em Portugal vigora um diploma especial relativo, especificamente, a
medidas de prevenção à criminalidade financeira, a Lei n.º 36/94 a que fizemos referência
amiudada ao longo desta reflexão, recordar que as acções de prevenção por parte da PJ e do MP
nos termos desse diploma acabam por se reduzir, pela natureza da própria especialização
técnico-científica, aos crimes de titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, aos
crimes de funcionários, e aos crimes comuns como o financiamento ao terrorismo e o
branqueamento de capitais, ou a todos os crimes comuns que sejam praticados em ambientes
especiais que atrás igualmente enunciámos, bem como aos crimes “monetários” p. e p. nos art.ºs
262º a 268º CP a que atrás aludimos (posto que quanto aos crimes do mercado de valores mobiliários, aos
crimes tributários e contra a segurança social, bem como quanto aos crimes ditos anti-económicos há reguladores
especiais a fazer tal prevenção).

6. Problemas do sistema de prevenção e investigação dos crimes financeiros

Aqui chegados, e perante o cenário descrito, cabe apresentar um pequeno apontamento


relativamente à avaliação, estática, do sistema de prevenção dos crimes financeiros. Não
abordaremos qualquer benefício ou prejuízo para a prevenção dos crimes financeiros emergente
da actuação da estrutura organizacional criada para esse efeito, ou seja, da dinâmica do sistema.
Limitar-nos-emos a apreciar a estrutura tal como ela existe, detectando o que sejam entropias
manifestas e problemas patentes do sistema assim instituído.

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Assim, não pode deixar de recordar-se que a criação de uma estrutura organizacional com
competências concorrentes gera, por definição, o surgimento de lacunas de atenção. Com
efeito, a multiplicidade de reguladores, permitindo a duplicação de responsáveis pela mesma
função, leva sempre e necessariamente a desresponsabilização e descoordenação. Trata-se de
um mal, bem conhecido da teoria das organizações, trazido por qualquer sobreposição de
competências e funções.

Sintetiza-se num apotegma demonstrado e indesmentível: quando muitos são responsáveis


por alguma coisa, ninguém é responsável por coisa nenhuma.

Por outro lado, a sobreposição de normativos, e a sobreposição de reguladores e fiscalizadores,


potencia a criação de deveres concorrentes e/ou conflituantes (normas e procedimentos também
duplicados e/ou conflituantes) ou nem sempre exactamente coincidentes. Tal necessariamente
dificulta, senão impede, uma correcta interpretação dos deveres e procedimentos a ser levados
a cabo pelas entidades destinatárias da regulação, com prejuízo para a própria actividade
económica e, o que mais é, com prejuízo óbvio para as acções de prevenção desejadas.

Também aqui um apotegma é evidente: não sendo claro o que é para fazer, cada
destinatário da norma faz o que acha melhor… mesmo que o não seja!

Por outro lado ainda, cabe recordar que os herbicidas, tal como o fogo, tanto matam o trigo,
como o joio. Ora, como vem sendo dito há décadas em tudo o que respeita à regulação penal e
contraordenacional da economia, o excesso de regulação asfixia a iniciativa privada, seja a
criminosa, seja a lícita. Isto já Sutherland reconhecia!

Terceiro apotegma: excesso de regulação e perseguição pode matar a actividade regulada,


com todos os males macro-económicos e macro-financeiros que tal implica!

Pior ainda: quando o excesso de regulação, em número de diplomas sobrepostos, é


complexificado por um excesso de procedimentos, comunicações, burocracias, na prática
impede-se verdadeiramente o funcionamento de qualquer sistema. Isto é particularmente óbvio
nos departamentos de compliance das entidades bancárias, parabancárias e reguladoras, que

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investem a maior parte dos recursos humanos, técnicos e temporais a cumprir procedimentos
burocráticos, e não na eventual vigilância do seu mercado.

Quarto apotegma: quando tudo se quer regular, deixa de se distinguir o essencial do


acessório, contribuindo-se para o carácter meramente formal de muitas das obrigações e
proibições, tornando-se a norma difícil de ser restaurada em caso de violação, com a
criação de uma sensação de impunidade que pode ser até criminogenética.

Como afirma a maioria dos Autores que normalmente se conotam com a chamada Escola de
Francoforte, trilhámos um caminho no sentido de o Direito Penal estender o seu objecto muito
para além dos limites que tradicionalmente acompanharam a protecção dos bens jurídicos
clássicos, transformando-o num Direito Penal puramente funcionalista, orientado
exclusivamente para o fim de conseguir uma defesa da sociedade o mais eficaz possível perante
os riscos emergentes das disfunções do sistema social post-industrial59.

Mas em bom rigor, nem sequer é de espantar que o sistema de prevenção dos crimes financeiros
que atrás descrevemos tenha sido criado como foi e esteja no estado em que está.

Com efeito, tem já mais de quinze anos a análise brilhantíssima de Silva Sanchez 60, segundo a
qual a infindável expansão do âmbito do direito penal nas últimas décadas representa, na
essência, uma simplicíssima perversidade da actuação do Estado, que busca no recurso à arma
penal uma aparentemente fácil solução dos problemas sociais: desloca para o plano do
simbolismo da tutela penal o que devia resolver no plano instrumental da protecção efectiva
dos interesses que deseja afirmar. Com isso a consciência social apazigua-se e tranquiliza-se,
com a simples afirmação dos princípios e a declaração de que há uma protecção penal agregada
à tutela dos conjunturais interesses sociais. Mesmo que de facto, no plano da realidade, nada
em rigor aconteça.

59
Precisamente neste sentido veja-se Pérez, Carlos Martínez-Buján, Algunas reflexiones sobre la moderna teoria
del “Big Crunch” en la selección de bienes jurídico-penales (especial referencia al ámbito económico), consultável
em http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/handle/2183/2216/AD-7-61.pdf?sequence=1.
60
Sánchez, Jesús Maria Silva, La expansión del Derecho penal, Civitas, 1ª Edição, Madrid, 2001.

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Com o que se conclui ser vã a esperança de Kurt Vonnegut, enunciada no portal desta reflexão,
mas agora no que ao funcionamento do sistema de prevenção dos crimes financeiros diz
respeito: os anjos não têm nesta área, porque por definição não podem ter, o mesmo sistema
organizacional da Máfia!

Lisboa, Sexta-feira Santa, 14 de Abril de 2017.

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O Sistema de Prevenção e Investigação de Crimes Financeiros

1. Delimitação do objecto da reflexão

2. Crimes financeiros – o menino que despejava o mar num buraco da areia

3. A Lei n.º 36/94 de 29 de Setembro

4. Que crimes podem considerar-se crimes financeiros

I. Crimes financeiros: categoria criminológica vs. categoria jurídico-penal

II. Crimes susceptíveis de integrar o conceito de crimes financeiros

a. Crimes antieconómicos – Dec.-Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro

b. Crimes de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos – Lei n.º 34/87 de 16

de Julho

c. Infracções no âmbito do mercado de valores mobiliários

d. Infracções na área bancária, parabancária e seguradora

e. Infracções tributárias

f. Financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais

g. Crimes de funcionários e equiparados

h. Crimes “comuns” praticados em ambientes “especiais”

5. O sistema de prevenção e investigação para crimes financeiros

6. Problemas do sistema de prevenção e investigação de crimes financeiros

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